Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
QUEDA DE GIGANTES
Segunda Parte
De início a meados de agosto de 1914
Katerina estava angustiada. Quando os cartazes referentes à mobilização começaram a se espalhar por toda São Petersburgo, ela se sentou no quarto de pensão de Grigori e chorou, passando os dedos de forma distraída pela cabeleira loura e repetindo:
– O que será de mim? O que será de mim?
Isso o fez querer tomá-la nos braços, beijá-la até secar-lhe as lágrimas e prometer que jamais a abandonaria. Porém essa era uma promessa que ele não podia fazer e, além do mais, ela amava seu irmão.
Grigori já havia prestado serviço militar, portanto era reservista e teoricamente estava pronto para o combate. Mas, na verdade, havia passado a maior parte do treinamento apenas marchando e construindo estradas. Ainda assim, imaginava que fosse estar entre os primeiros convocados.
Isso o deixava possesso. Aquela guerra era tão idiota e inútil quanto qualquer outra medida do czar. Um assassinato ocorrera na Bósnia e, um mês depois, a Rússia entrava em guerra contra a Alemanha! Milhares de trabalhadores e camponeses iriam morrer de ambos os lados – e ninguém ganharia nada com isso. Para Grigori, assim como para todas as pessoas que ele conhecia, isso provava que a nobreza russa era burra demais para governar.
Ainda que ele sobrevivesse, a guerra estragaria seus planos. Ele estava economizando para comprar outra passagem para os Estados Unidos. Com o salário que recebia da Metalúrgica Putilov, talvez conseguisse fazer isso em dois ou três anos, mas, com o soldo do exército, levaria séculos. Por quantos anos mais precisaria suportar a injustiça e a brutalidade do governo do czar?
Katerina o preocupava mais ainda. O que ela faria caso ele precisasse ir à guerra? Ela dividia um quarto com outras três garotas na pensão e trabalhava na metalúrgica, embalando balas de fuzil em caixas de papelão. No entanto, teria que parar de trabalhar quando o bebê nascesse, pelo menos por algum tempo. Sem Grigori, como faria para se manter e sustentar o bebê? Ela ficaria numa situação muito difícil – e ele sabia o que garotas camponesas faziam em São Petersburgo quando precisavam desesperadamente de dinheiro. Pediu a Deus que a poupasse de precisar vender o próprio corpo nas ruas.
Contudo, ele não foi convocado no primeiro dia e tampouco na primeira semana. Segundo os jornais, dois milhões e meio de reservistas haviam sido mobilizados no último dia de julho, mas isso não passava de boato. Era impossível que tantos homens fossem reunidos, uniformizados e despachados em trens para a frente de batalha em apenas um dia, ou mesmo em um mês. Eles eram convocados em grupos, alguns mais cedo, outros mais tarde.
À medida que os primeiros dias quentes de agosto foram passando, Grigori começou a pensar que talvez o tivessem deixado de fora. Era uma possibilidade sedutora. O Exército era uma das instituições mais mal geridas daquele país lamentavelmente desorganizado, então era provável que milhares de homens fossem ignorados por pura incompetência.
Katerina se habituara a passar em seu quarto todos os dias de manhã bem cedo, enquanto ele preparava o café. Era o melhor momento do dia de Grigori. Nessas horas, ele já estava sempre de banho tomado e vestido, mas ela aparecia com o vestido que usava para dormir e os cabelos adoravelmente despenteados, bocejando. Agora que estava engordando, a roupa parecia pequena para ela. Pelos seus cálculos, Katerina deveria estar grávida de quatro meses e meio. Os seios e os quadris dela estavam maiores, enquanto sua barriga exibia uma protuberância discreta. A voluptuosidade de Katerina era uma tortura deliciosa. Grigori se esforçava para não ficar olhando para o seu corpo.
Certa manhã, ela apareceu enquanto Grigori preparava dois ovos mexidos em uma frigideira. Ele não podia mais se dar ao luxo de limitar o café da manhã a um mingau: o filho ainda por nascer de seu irmão precisava de comida de verdade para crescer forte e saudável. Quase todos os dias, Grigori tinha algo de nutritivo para dividir com Katerina: presunto, arenque, ou então linguiça, o prato preferido dela.
Katerina vivia com fome. Ela se sentou à mesa, cortou uma fatia grossa de pão preto e começou a comer, impaciente demais para esperar. Com a boca cheia, falou:
– Quando um soldado morre, quem fica com seu soldo?
Grigori se lembrava de ter fornecido o nome e o endereço de seu parente mais próximo.
– No meu caso, Lev – respondeu.
– Fico pensando se ele já está nos Estados Unidos.
– Deve estar. A viagem não leva oito semanas.
– Espero que ele tenha arranjado um emprego.
– Não se preocupe. Ele deve estar bem. Todos gostam dele. – Grigori sentiu uma pontada de ressentimento do irmão. Era Lev quem deveria estar ali na Rússia, cuidando de Katerina e do bebê que estava por vir e ainda se preocupando com a mobilização, enquanto Grigori começava a vida nova para a qual havia economizado e que passara tanto tempo planejando. Mas Lev havia lhe roubado essa possibilidade. Mesmo assim, Katerina se afligia com o homem que a abandonara, não com o que tinha ficado ao seu lado.
– Tenho certeza de que ele está bem nos Estados Unidos, mas, de qualquer forma, queria que recebêssemos uma carta dele – disse ela.
Grigori raspou o canto de um queijo duro por cima dos ovos e acrescentou um pouco de sal. Perguntou-se com tristeza se algum dia teriam notícias dos Estados Unidos. Lev nunca tinha sido uma pessoa sentimental – poderia muito bem ter decidido deixar o passado para trás, como um lagarto que se livra da pele antiga. Grigori, no entanto, não deu voz a esse pensamento por respeito a Katerina, que ainda esperava que ele fosse mandar buscá-la.
– Você acha que vai ter que ir à guerra? – perguntou ela.
– Não se eu puder evitar. Por que estamos lutando?
– Dizem que é pela Sérvia.
Grigori serviu, com uma colher, os ovos em dois pratos e sentou-se à mesa.
– A questão é se a Sérvia vai ser tiranizada pelo imperador austríaco ou pelo czar russo. Seja como for, duvido que os sérvios liguem para isso. Eu, com certeza, não ligo. – Ele começou a comer.
– Pelo czar, então.
– Eu lutaria por você, por Lev, por mim mesmo ou por seu bebê... mas pelo czar? Não.
Katerina comeu os ovos depressa e limpou o prato com uma segunda fatia de pão.
– De que nomes de menino você gosta?
– Meu pai se chamava Sergei, e o pai dele, Tikhon.
– Eu gosto de Mikhail – disse ela. – Como o arcanjo.
– Você e quase todo mundo. Por isso é um nome tão comum.
– Talvez eu devesse batizar o bebê de Lev. Ou mesmo de Grigori.
Ao ouvir isso, Grigori ficou comovido. Adoraria ter um sobrinho com o mesmo nome que o seu. Mas não gostava de exigir nada de Katerina.
– Lev seria um bom nome – falou.
O apito da metalúrgica tocou – um som que se podia ouvir em todo o bairro de Narva – e Grigori se levantou para sair.
– Eu lavo os pratos – disse Katerina. Seu expediente só começava às sete, uma hora depois que o de Grigori.
Ela virou a bochecha para cima e Grigori a beijou. Foi apenas um beijo rápido, e ele não deixou que os lábios se demorassem, mas, ainda assim, se deliciou com a maciez de sua pele e com o cheiro cálido de seu pescoço, que lembrava uma cama quentinha.
Então pôs a boina na cabeça e saiu.
Embora fosse cedo, o clima de verão já estava quente e úmido. Grigori começou a suar enquanto caminhava a passos largos pelas ruas.
Nos dois meses desde a partida de Lev, Grigori e Katerina haviam estabelecido uma amizade constrangida. Ela confiava nele e ele cuidava dela, mas não era isso que nenhum dos dois queria. Grigori queria amor, não amizade. Katerina queria Lev, não Grigori. Mas assegurar que ela se alimentasse bem proporcionava satisfação a Grigori. Era a única forma que ele tinha de expressar seu amor. Dificilmente poderiam ficar como estavam muito tempo, porém, àquela altura, era difícil pensar a longo prazo. Ele ainda tinha planos de fugir da Rússia e de conseguir chegar à terra prometida: os Estados Unidos.
Cartazes de mobilização haviam sido afixados ao portão da metalúrgica e os homens estavam reunidos em volta deles, os analfabetos pedindo aos outros que lessem em voz alta. Grigori se viu parado ao lado de Isaak, o capitão do time de futebol. Ambos tinham a mesma idade e haviam servido o Exército juntos. Grigori correu os olhos pelos avisos, procurando o nome de sua unidade.
Desta vez, estava lá.
Ele tornou a ler, mas não havia dúvida: regimento de Narva.
Foi descendo pela lista até encontrar seu nome.
Não havia acreditado de fato que aquilo pudesse acontecer. Mas vinha enganando a si mesmo. Tinha 25 anos, era forte e estava em boa forma física: o soldado perfeito. É claro que iria à guerra.
O que seria de Katerina? E do bebê?
Isaak soltou um palavrão. Seu nome também estava na lista.
Uma voz atrás deles disse:
– Não precisam se preocupar.
Eles se viraram e deram de cara com a forma esguia de Kanin, o amigável supervisor da seção de fundição, um engenheiro de seus 30 e poucos anos.
– Como assim não precisamos nos preocupar? – repetiu Grigori com ceticismo. – Katerina está grávida de Lev e não tem ninguém para cuidar dela. O que eu vou fazer?
– Fui falar com o responsável pela mobilização neste bairro – disse Kanin. – Ele prometeu conseguir dispensa para qualquer operário meu. Somente os arruaceiros terão de ir.
O coração de Grigori saltou no peito com esperança renovada. Parecia bom demais para ser verdade.
– O que nós temos que fazer? – perguntou Isaak.
– É só não irem ao quartel. Vocês não vão ter problema nenhum. Está tudo combinado.
Isaak tinha um temperamento agressivo – sem dúvida era isso que o tornava tão bom no esporte – e não se contentou com a resposta de Kanin.
– Combinado como? – quis saber.
– O Exército fornece à polícia uma lista dos homens que não comparecem e a polícia tem que apanhá-los. O nome de vocês simplesmente não estará na lista.
Isaak soltou um grunhido de insatisfação. Como ele, Grigori não gostava daquele tipo de acerto semioficial – havia margem demais para algo sair errado –, mas lidar com o governo era sempre assim. Kanin devia ter subornado um oficial, ou então feito algum outro tipo de favor. Criar caso por causa disso era inútil.
– Que ótimo – disse Grigori a Kanin. – Obrigado.
– Não me agradeçam – respondeu Kanin com brandura. – Eu fiz isso por mim... e pela Rússia. Nós precisamos de homens qualificados como vocês para fabricar trens, não para deter as balas alemãs. Isso um camponês analfabeto pode fazer. Os governantes ainda não entenderam essa questão, mas com o tempo vão entender. E ainda me agradecerão pelo que estou fazendo.
Grigori e Isaak atravessaram os portões da fábrica.
– Acho que podemos confiar nele – disse Grigori. – O que temos a perder? – Os dois fizeram fila para bater o ponto, deixando cair um quadradinho de metal numerado dentro de uma caixa. – É uma boa notícia – completou.
Isaak não estava convencido.
– Eu só queria me sentir mais seguro – disse ele.
Ambos se encaminharam para a seção onde eram fabricadas as rodas. Grigori afastou as preocupações da cabeça e se preparou para o dia de trabalho. A Metalúrgica Putilov estava produzindo mais trens do que nunca. O Exército tinha que partir do princípio de que locomotivas e vagões seriam destruídos por bombas, de modo que seria necessário repor peças assim que os combates começassem. A equipe de Grigori estava sendo pressionada a produzir rodas mais depressa.
Ele começou a arregaçar as mangas assim que entrou na oficina. Tratava-se de um galpão pequeno, que a fornalha deixava quente durante o inverno e um verdadeiro forno naquela época, o auge do verão. O metal rangia e estalava ao ser moldado e polido pelos tornos.
Grigori viu Konstantin em pé diante de seu torno e franziu as sobrancelhas ao notar a postura do amigo. A expressão de Konstantin transmitia um aviso: alguma coisa estava errada. Isaak também percebeu. Reagindo mais rápido que Grigori, ele se deteve, segurou o braço de Grigori e disse:
– O quê...?
Não pôde terminar a pergunta.
Um homem de uniforme preto e verde saiu de trás da fornalha e golpeou Grigori no rosto com uma marreta.
Ele tentou se esquivar, mas foi um segundo mais lento do que o necessário e, embora tenha se encolhido, a cabeça de madeira da ferramenta grande o atingiu no alto da maçã do rosto, derrubando-o no chão. Uma dor agonizante varou sua cabeça e ele soltou um berro.
Sua visão demorou vários segundos para clarear. Por fim, ergueu os olhos e viu a silhueta corpulenta de Mikhail Pinsky, capitão de polícia daquele distrito.
Deveria ter imaginado que aquilo fosse acontecer. Havia se safado com facilidade demais daquela briga em fevereiro. Policiais nunca esqueciam esse tipo de coisa.
Ele também viu Isaak brigando com o parceiro de Pinsky, Ilya Kozlov, e dois outros policiais.
Grigori continuou no chão. Não iria revidar a menos que fosse obrigado. Pinsky que se vingasse, quem sabe assim ficaria satisfeito.
No instante seguinte, não conseguiu manter essa decisão.
Pinsky ergueu a marreta. Percebendo o óbvio em um lampejo, Grigori viu que a arma era sua própria ferramenta, usada para encaixar os moldes na areia de fundição. Então ela desceu em direção à sua cabeça.
Ele se inclinou para a direita, mas Pinsky corrigiu o golpe, fazendo a pesada ferramenta de carvalho bater no seu ombro esquerdo. Ele soltou um rugido de dor e raiva. Enquanto Pinsky recuperava o equilíbrio, Grigori se levantou com um pulo. Seu braço esquerdo pendia frouxo e inútil, mas não havia nada de errado com o direito, de modo que ele recuou o punho para acertar Pinsky, sem pensar nas consequências.
Nunca chegou a desferir o soco. Dois homens de uniforme preto e verde em quem Grigori não havia reparado se materializaram de cada lado dele, agarrando seus braços e o imobilizando. Ele tentou em vão se desvencilhar de seus captores. Através de uma névoa de raiva, viu Pinsky recuar a marreta e desferir outro golpe. A pancada o atingiu no peito e ele sentiu as costelas se partirem. O golpe seguinte foi mais baixo, atingindo-lhe a barriga. Ele teve um espasmo e vomitou o café da manhã. Então uma nova marretada atingiu a lateral da sua cabeça. Por alguns segundos, ele perdeu os sentidos e, quando voltou a si, seu corpo pendia mole dos braços dos dois policiais. Isaak também estava imobilizado por dois outros homens.
– Mais calmo agora? – perguntou Pinsky.
Grigori cuspiu sangue. Seu corpo inteiro doía e ele não conseguia pensar direito. O que estava acontecendo? Pinsky o detestava, mas alguma coisa deveria ter acontecido para provocar aquilo. E era muita audácia dele agir bem ali no meio da fábrica, cercado por trabalhadores que não tinham motivo algum para gostar da polícia. Por alguma razão, ele devia estar se sentindo seguro de si.
Pinsky ergueu a marreta e assumiu uma expressão pensativa, como se estivesse cogitando desferir mais um golpe. Grigori se contraiu e lutou contra a tentação de implorar clemência. Então Pinsky perguntou:
– Qual é o seu nome?
Grigori tentou falar. A princípio, tudo o que saiu de sua boca foi sangue. Por fim, ele conseguiu dizer:
– Grigori Sergeivich Peshkov.
Pinsky lhe deu outra marretada na barriga. Grigori gemeu e vomitou sangue.
– Mentiroso – disse Pinsky. – Qual é o seu nome? – Ele tornou a erguer a marreta.
Konstantin se afastou de seu torno para chegar mais perto.
– Senhor agente, este homem é Grigori Peshkov! – protestou ele. – Todos nós o conhecemos há muitos anos!
– Não minta para mim – disse Pinsky, levantando mais um pouco a marreta. – Ou vai ter um gostinho disto aqui.
A mãe de Konstantin, Varya, se manifestou.
– Não é mentira, Mikhail Mikhailovich – disse ela. O uso do patronímico significava que ela conhecia Pinsky. – Ele é quem diz ser. – Ela ficou parada com os braços cruzados sobre o peito farto, como se desafiasse o policial a duvidar dela.
– Então explique isto aqui – falou Pinsky, sacando do bolso uma folha de papel. – Grigori Sergeivich Peshkov deixou São Petersburgo dois meses atrás a bordo do Anjo Gabriel.
Kanin, o supervisor, apareceu e perguntou:
– O que está acontecendo aqui? Por que ninguém está trabalhando?
Pinsky apontou para Grigori.
– Este homem é Lev Peshkov, irmão de Grigori... procurado pelo assassinato de um policial!
Todos começaram a gritar ao mesmo tempo. Kanin levantou a mão para pedir silêncio e disse:
– Senhor agente, eu conheço tanto Grigori quanto Lev Peshkov e passei vários anos vendo os dois quase diariamente. Como todos os irmãos, eles se parecem, mas posso lhe garantir que este aqui é Grigori. E o senhor está impedindo o trabalho desta seção.
– Se este aqui é Grigori – disse Pinsky, com ar de quem lança mão de um trunfo –, então quem embarcou no Anjo Gabriel?
Assim que ele fez a pergunta, a resposta ficou clara. Depois de alguns instantes, Pinsky se deu conta e ficou com cara de bobo.
– Meu passaporte e minha passagem foram roubados – disse Grigori.
Pinsky começou a enrubescer.
– E por que você não deu queixa à polícia?
– De que iria adiantar? Lev já tinha saído do país. Vocês não iriam conseguir trazê-lo de volta, e menos ainda meus documentos.
– Isso faz de você cúmplice da fuga dele.
Kanin tornou a intervir.
– Capitão Pinsky, o senhor começou acusando este homem de assassinato. Talvez isso fosse motivo suficiente para paralisar a produção da seção de rodas. Mas já reconheceu que estava enganado e agora está alegando apenas que meu funcionário não deu queixa do roubo de alguns documentos. Enquanto isso, seu país está em guerra e o senhor está atrasando a fabricação de locomotivas de vital importância para o Exército russo. A menos que queira ver seu nome mencionado no nosso próximo relatório ao alto-comando do Exército, sugiro que encerre seu trabalho aqui imediatamente.
Pinsky olhou para Grigori.
– Qual é a sua unidade de reservistas?
Grigori respondeu sem pensar:
– O regimento de Narva.
– Rá! – disse Pinsky. – Eles foram convocados hoje. – O policial olhou para Isaak. – Você também, aposto.
Isaak permaneceu calado.
– Podem soltá-los – ordenou Pinsky.
Grigori cambaleou quando lhe soltaram os braços, mas conseguiu ficar de pé.
– É melhor vocês aparecerem no quartel conforme solicitado – disse Pinsky a Grigori e Isaak. – Senão vou atrás de vocês. – Ele deu meia-volta e saiu com o pouco de dignidade que lhe restava. Seus homens o acompanharam.
Grigori deixou-se cair sobre um banquinho. Sua cabeça latejava, suas costelas doíam e ele sentia a barriga machucada. Precisava se encolher em um canto e desmaiar. O pensamento que o mantinha acordado era um desejo ardente de destruir Pinsky e todo o sistema do qual ele fazia parte. Um dia, ele não parava de pensar, nós vamos acabar com Pinsky, com o czar e com tudo o que eles representam.
– O Exército não virá atrás de vocês – disse Kanin. – Isso eu já garanti... mas infelizmente não posso fazer nada quanto à polícia.
Grigori meneou a cabeça com raiva. Era o que ele temia. O golpe mais violento de Pinsky, pior do que qualquer um que houvesse desferido com a marreta, era garantir que Grigori e Isaak se apresentassem ao Exército.
– Não gosto da ideia de perdê-lo – disse Kanin. – Você tem sido um bom operário. – Ele parecia sinceramente comovido, mas estava de mãos atadas. Ficou calado por mais alguns segundos, então ergueu as mãos para o alto em um gesto de impotência e saiu do galpão.
Varya surgiu na frente de Grigori com uma tigela cheia de água e um pano limpo. Limpou o sangue do seu rosto. Era uma mulher corpulenta, mas suas mãos largas tinham um toque delicado.
– Você deveria ir para o alojamento da fábrica – disse ela. – Achar uma cama vazia e se deitar por uma hora.
– Não – respondeu Grigori. – Eu vou para casa.
Varya deu de ombros e virou-se para Isaak, cujos ferimentos não eram tão graves.
Com esforço, Grigori se levantou e a fábrica rodopiou à sua volta por alguns segundos. Quando ele titubeou, Konstantin segurou-lhe o braço, mas, depois de algum tempo, se sentiu capaz de ficar em pé sozinho.
Konstantin recolheu a boina do amigo do chão e a devolveu a ele.
Quando Grigori começou a andar, sentiu-se trôpego, mas recusou com um gesto qualquer oferta de ajuda. Então, depois de alguns passos, voltou a andar normalmente. O esforço clareou sua mente, mas a dor em suas costelas o obrigava a pisar com cuidado. Ele foi percorrendo devagar o labirinto de bancos e tornos, fornalhas e prensas, até chegar ao lado de fora do galpão e depois ao portão da fábrica.
Foi quanto topou com Katerina, que estava chegando.
– Grigori! – exclamou ela. – Você foi convocado, eu vi o cartaz! – Ela então reparou em seu rosto ferido. – O que aconteceu?
– Tive um encontro com seu chefe de polícia preferido.
– Pinsky, aquele porco. Você está ferido!
– Os machucados vão melhorar.
– Vou levar você para casa.
Grigori ficou surpreso. Aquilo era uma inversão de papéis. Katerina nunca havia se oferecido para cuidar dele antes.
– Posso chegar lá sozinho – disse ele.
– Mas eu vou com você mesmo assim.
Ela o tomou pelo braço e os dois saíram caminhando pelas ruas estreitas na contramão do fluxo de milhares de trabalhadores que se dirigiam à fábrica. O corpo de Grigori doía e ele se sentia mal; mesmo assim era uma alegria caminhar de braços dados com Katerina enquanto o sol nascia por sobre as casas malconservadas e as ruas sujas.
A caminhada pelo trajeto conhecido, no entanto, o deixou mais cansado do que ele esperava. Então, quando por fim chegaram em casa, ele se sentou pesadamente sobre a cama, deitando-se logo em seguida.
– Eu tenho uma garrafa de vodca escondida no quarto das meninas – disse Katerina.
– Não, obrigado, mas gostaria de um chá.
Grigori não tinha um samovar em casa, mas ela preparou o chá em uma panela e lhe entregou uma xícara na qual havia colocado um torrão de açúcar. Depois de beber, ele se sentiu um pouco melhor.
– O pior de tudo é que eu poderia ter escapado da convocação... – falou. – Mas Pinsky jurou que ia garantir que isso não acontecesse.
Ela se sentou ao seu lado na cama e tirou um panfleto do bolso.
– Uma das meninas me deu isto aqui.
Grigori olhou de relance para o papel. Parecia algo sem graça e oficial, como uma publicação do governo. O título era “Ajuda às Famílias dos Soldados”.
– Se você for esposa de um soldado, tem direito a uma pensão mensal do Exército – disse Katerina. – Não é só para os pobres, qualquer um pode receber.
Grigori se lembrava vagamente de ter ouvido falar nisso. Como não lhe dizia respeito, não tinha dado muita importância ao assunto.
– E não é só isso – continuou Katerina. – Você também tem descontos na compra de combustível para calefação e de passagens de trem e ainda recebe uma ajuda para custear a educação dos filhos.
– Que maravilha! – disse Grigori. Ele queria dormir. – Chega a ser estranho tanto bom senso vindo do Exército.
– Mas é preciso ser casada.
Grigori ficou mais atento. Será possível que ela estava pensando...?
– Por que você está me dizendo isso? – perguntou ele.
– Do jeito que as coisas estão agora, eu não vou receber nada.
Grigori se apoiou em um dos cotovelos e olhou para ela. De repente, seu coração estava disparado.
– Se eu fosse casada com um soldado, minha situação seria melhor – disse ela. – E a do meu filho também.
– Mas... você ama Lev.
– Eu sei. – Ela começou a chorar. – Mas Lev está nos Estados Unidos e nem sequer se dá ao trabalho de escrever perguntando como estou.
– Mas então... o que você quer fazer? – Grigori sabia a resposta, mas precisava escutá-la.
– Eu quero me casar – disse ela.
– Só para ter direito à pensão de uma esposa de soldado.
Ela aquiesceu, eliminando com esse gesto uma esperança tênue e ingênua que havia brotado no peito dele por um instante.
– Seria tão importante para mim... – disse ela. – Ter um dinheirinho quando o bebê nascesse... principalmente agora que você vai estar longe, no Exército.
– Eu entendo – disse ele com o coração pesado.
– Podemos nos casar? – indagou ela. – Por favor?
– Sim – respondeu ele. – É claro que podemos.
Cinco casais foram unidos ao mesmo tempo na Igreja da Virgem Abençoada. O padre correu com a cerimônia e Grigori observou, irritado, que ele não encarava ninguém nos olhos. Aquele homem mal teria percebido se uma das noivas fosse um gorila.
Grigori pouco se importava. Sempre que passava por uma igreja, lembrava-se do padre que havia tentado ter algum tipo de relação sexual com Lev quando o irmão tinha 11 anos. O desprezo de Grigori pelo cristianismo havia sido reforçado mais tarde pelas palestras sobre ateísmo do grupo de discussão bolchevique de Konstantin.
Grigori e Katerina estavam se casando às pressas, assim como os outros quatro casais. Todos os noivos estavam fardados. A mobilização havia provocado uma onda de matrimônios e a Igreja estava se esforçando para dar conta da demanda. Grigori detestava aquela farda; para ele, um símbolo de servidão.
Não havia contado a ninguém sobre o casamento. Não via nele motivo para comemoração. Katerina deixara bem claro que se tratava de uma medida puramente prática, uma forma de conseguir o dinheiro do governo. Nesse sentido, era uma ótima ideia – e, quando estivesse no Exército, Grigori ficaria menos ansioso ao saber que ela gozava de alguma segurança financeira. Mesmo assim, não conseguia evitar a sensação de que aquele casamento tinha algo de horrivelmente farsesco.
Já Katerina não foi tão reservada, de modo que todas as moças da pensão estavam na igreja, assim como vários operários da metalúrgica.
Depois da cerimônia, houve uma festa no quarto que Katerina dividia com as meninas, com cerveja, vodca e um violinista que tocou músicas folclóricas conhecidas por todos. Quando as pessoas começaram a ficar embriagadas, Grigori saiu de fininho e foi para seu quarto. Tirou as botas e se deitou na cama vestindo a calça e a camisa do uniforme. Apagou a vela com um sopro, mas conseguia enxergar graças à luz da rua. Ainda estava dolorido por causa da surra de Pinsky: sentia dor no braço esquerdo sempre que tentava usá-lo e uma pontada nas costelas fraturadas a cada vez que se virava na cama.
No dia seguinte, estaria a bordo de um trem rumo ao oeste. Os combates começariam a qualquer momento. Ele estava com medo: somente um louco não ficaria. Mas era um homem inteligente e decidido e faria o melhor para permanecer vivo – como vinha fazendo desde a morte da mãe.
Ainda estava acordado quando Katerina entrou no quarto.
– Você saiu cedo da festa – reclamou ela.
– Não queria ficar bêbado.
Ela suspendeu a saia do vestido.
Ele ficou estupefato. Não conseguiu desgrudar os olhos do corpo desenhado pela luz dos postes da rua, das longas curvas das coxas e dos cachos louros. Ficou excitado e confuso.
– O que você está fazendo? – perguntou.
– Indo para a cama, é claro.
– Aqui, não.
Ela descalçou os sapatos.
– Que história é essa? Nós agora somos casados.
– Só para você poder receber a pensão.
– Mesmo assim, você merece alguma coisa em troca. – Ela se deitou na cama e beijou-lhe a boca com hálito de vodca.
Grigori não conseguiu evitar o desejo que nasceu dentro dele, fazendo-o corar de paixão e de vergonha. Apesar disso, conseguiu articular um “Não” com a voz engasgada.
Ela puxou a mão dele e a encostou no seu seio. Ele a acariciou, contra a vontade, apertando com delicadeza a carne macia e encontrando, com a ponta dos dedos, o mamilo através do tecido grosseiro do vestido.
– Está vendo? – disse ela. – Você quer.
Seu tom de voz triunfante o deixou zangado.
– É claro que quero – respondeu ele. – Eu amei você desde o primeiro dia em que a vi. Mas você ama Lev.
– Ai, por que você vive pensando em Lev?
– É um hábito que tenho desde que ele era pequeno e vulnerável.
– Bom, ele agora é um homem feito, além disso, não liga a mínima para você ou para mim. Ele pegou seu passaporte, sua passagem e seu dinheiro e nos deixou sem nada a não ser este bebê.
Ela estava certa: Lev sempre fora egoísta.
– Mas você não ama seus parentes porque eles são gentis e compreensivos. Você os ama porque são seus parentes.
– Ah, dê um presente para você mesmo – disse ela, irritada. – Amanhã você vai entrar para o Exército. Duvido que queira morrer arrependido por não ter trepado comigo quando teve a oportunidade.
Ele estava muito tentado. Ainda que ela estivesse meio embriagada, o corpo ao seu lado era quente e convidativo. Não teria ele direito a uma noite de prazer?
Katerina subiu a mão pela perna dele e empunhou seu pênis rijo.
– Vamos, você se casou comigo, agora pode muito bem gozar dos seus direitos.
E era justamente esse o problema, pensou Grigori. Ela não o amava. Estava se oferecendo em pagamento pelo que ele tinha feito. Aquilo era prostituição. Sentiu-se tão ofendido que ficou com raiva – e o fato de estar louco para ceder só fazia piorar a situação.
Ela começou a esfregar seu membro para cima e para baixo. Furioso e exaltado, ele a empurrou. O empurrão foi mais violento do que pretendia e a fez cair da cama.
Ela soltou um grito de surpresa e dor.
Aquela não fora sua intenção, mas ele estava furioso demais para se desculpar.
Durante vários segundos, Katerina ficou deitada no chão, chorando e praguejando ao mesmo tempo. Ele resistiu à tentação de ajudá-la. Com dificuldade, ela se levantou, titubeando por causa da vodca.
– Seu porco! – falou. – Como pode ser tão cruel? – Ela endireitou o vestido, cobrindo as belas pernas. – Que tipo de noite de núpcias é este para uma garota... ser chutada para fora da cama do próprio marido?
As palavras deixaram Grigori sentido, mas ele continuou deitado sem dizer nada.
– Nunca pensei que você pudesse ter um coração tão duro – disse ela, irada. – Vá para o inferno! Vá para o inferno! – Ela recolheu os sapatos, abriu a porta com violência e saiu do quarto pisando firme.
Grigori se sentiu totalmente arrasado. Em seu último dia como civil, havia brigado com a mulher que adorava. Agora, se viesse a morrer em combate, morreria infeliz. Que mundo podre, pensou, que vida miserável!
Ele foi até a porta para fechá-la e ouviu Katerina no quarto ao lado, falando com uma jovialidade forçada:
– Grigori não conseguiu... estava bêbado demais! – disse ela. – Alguém me dê mais um pouco de vodca e vamos dançar outra música!
Ele bateu a porta e se jogou na cama.
Grigori acabou tendo um sono agitado. Na manhã seguinte, acordou cedo. Lavou-se, vestiu a farda e comeu um pouco de pão.
Quando passou a cabeça pela porta do quarto das meninas, viu que todas dormiam profundamente e que o chão estava coberto de garrafas, e o ar carregado de fumaça de cigarro e rançoso de cerveja derramada. Passou um minuto inteiro encarando Katerina, que dormia com a boca aberta. Então saiu da casa, sem saber se algum dia tornaria a vê-la, dizendo a si mesmo que não se importava.
Mas seu humor melhorou com a animação e a correria de se apresentar ao regimento, receber arma e munição, encontrar o trem certo e conhecer os novos companheiros. Ele tirou Katerina da cabeça e começou a pensar no futuro.
Embarcou em um trem junto com Isaak e várias outras centenas de reservistas, todos vestidos com as calças e túnicas de seu novo uniforme cinza-esverdeado. Como os demais, carregava um fuzil Mosin-Nagant de fabricação russa que, com sua comprida baioneta pontuda, tinha a mesma altura que ele. O grande hematoma deixado pela marreta, que cobria quase totalmente um dos lados de seu rosto, fez os outros pensarem que ele era algum tipo de criminoso, o que os levou a tratá-lo com um respeito cauteloso. O trem saiu de São Petersburgo cuspindo fumaça e foi resfolegando em um ritmo constante por campos e florestas.
O sol poente estava diante do trem, à direita, o que significava que estavam indo para sudoeste, na direção da Alemanha. Isso parecia evidente para Grigori, porém, quando comentou a respeito com seus companheiros de farda, eles ficaram surpresos e impressionados: a maioria não sabia onde ficava a Alemanha.
Aquela era a segunda vez que andava de trem na vida, e se lembrou com clareza da primeira. Quando tinha 11 anos, sua mãe o havia levado a São Petersburgo junto com Lev. Fazia poucos dias que seu pai tinha sido enforcado. A cabeça do pequeno Grigori estava cheia de medo e tristeza, mas, como qualquer criança, ele ficara muito entusiasmado com a viagem: o cheiro de óleo da locomotiva gigantesca, as rodas imensas, a camaradagem dos camponeses no vagão de terceira classe e a velocidade estonteante com a qual a paisagem campestre passava pela janela. Ele voltou a experimentar um pouco do mesmo entusiasmo e não pôde deixar de sentir que havia iniciado uma aventura que poderia ser não só terrível, mas também empolgante.
Desta vez, no entanto, ele viajava em um vagão de animais, assim como todos, exceto os oficiais. O vagão abrigava cerca de 40 homens: operários de São Petersburgo com a pele clara e malícia no olhar; camponeses de barbas compridas e voz arrastada, que examinavam tudo com uma curiosidade cheia de fascínio; e meia dúzia de judeus de olhos e cabelos escuros.
Um dos judeus sentou-se ao lado de Grigori e se apresentou como David. Segundo ele, seu pai fabricava baldes de ferro no quintal dos fundos de sua casa e depois os vendia de vilarejo em vilarejo. Havia muitos judeus no Exército, explicou, porque era mais difícil para eles conseguir uma dispensa do serviço militar.
Estavam todos sob o comando de um tal sargento Gavrik, um soldado comum que parecia ansioso, ladrava ordens e blasfemava muito. Ele fingia pensar que todos os homens fossem camponeses e os chamava de fodedores de vacas. Tinha a mesma idade de Grigori, jovem demais para ter participado da guerra contra o Japão de 1904-1905, e Grigori imaginava que, por baixo de toda aquela bravata, ele estava com medo.
De tantas em tantas horas, o trem parava em uma estação do interior e os homens desciam. Às vezes recebiam sopa e cerveja, outras, apenas água. Entre as paradas, ficavam sentados no chão do vagão. Gavrik se certificou de que todos sabiam limpar o fuzil e relembrou-lhes as diferentes patentes militares e as formas de tratamento que deviam ser usadas com os oficiais. Tenentes e capitães eram “Sua Excelência”, mas os oficiais de alta patente demandavam uma série de títulos honoríficos que iam até “Mais Alto Fulgor” para os que também fossem aristocratas.
No segundo dia, Grigori calculou que já estivessem no território da Polônia russa.
Perguntou ao sargento de que seção do Exército faziam parte. Sabia que formavam o regimento de Narva, mas ninguém lhes dissera como se encaixavam no contexto global das Forças Armadas.
– Não é da sua conta, porra – disse Gavrik. – Vá para onde mandarem, faça o que disserem e pronto. – Grigori imaginou que ele não soubesse a resposta.
Um dia e meio depois, o trem parou em uma cidade chamada Ostrolenka. Grigori nunca tinha ouvido falar nela, mas pôde ver que era o final da linha do trem, então imaginou que deveria ficar próxima à fronteira alemã. Centenas de vagões estavam sendo desembarcados ali. Homens e cavalos suavam e se esforçavam para retirar imensas peças de artilharia dos trens. Milhares de soldados aguardavam enquanto oficiais carrancudos tentavam agrupá-los em pelotões e companhias. Ao mesmo tempo, toneladas de mantimentos precisavam ser transferidas para carroças puxadas a cavalo: peças de carne, sacos de farinha, barris de cerveja, caixotes de munição, embalagens contendo projéteis e muitas toneladas de aveia para alimentar todos os cavalos.
Em determinado momento, Grigori viu o rosto odiado do príncipe Andrei. Ele usava uma farda suntuosa – Grigori não conhecia tão bem os emblemas e listras para identificar seu regimento ou sua patente – e estava montado em um cavalo baio de grande porte. Um cabo vinha atrás dele, carregando um canário dentro de uma gaiola. Eu poderia matá-lo agora com um tiro e vingar meu pai, pensou Grigori. É claro que era uma ideia idiota, mas ele ficou alisando o gatilho do fuzil enquanto o príncipe e seu pássaro engaiolado desapareciam em meio à multidão.
O tempo estava quente e seco. Naquela noite, Grigori dormiu no chão com o restante dos homens de seu vagão. Atinou que formavam um pelotão e que ficariam juntos por algum tempo. Na manhã seguinte, foram apresentados ao seu comandante, um segundo-tenente aflitivamente jovem chamado Tomchak. Ele os conduziu por uma estrada que seguia em direção ao noroeste, fazendo-os sair de Ostrolenka.
O tenente Tomchak disse a Grigori que eles formavam a Unidade 13, comandada pelo general Klyuev, que fazia parte do Segundo Exército sob as ordens do general Samsonov. Os outros homens ficaram assustados quando Grigori transmitiu essa notícia a eles, pois o número 13 trazia má sorte, e o sargento Gavrik disse:
– Eu disse a você que isso não era da sua conta, Peshkov, sua bicha de merda.
O pelotão não estava muito longe da cidade quando a estrada pavimentada terminou, virando uma trilha de areia que cortava uma floresta. Os veículos de mantimentos atolaram e os condutores perceberam que um único cavalo não conseguia puxar uma carroça do Exército cheia por um solo arenoso. Todos os cavalos tiveram de ser desarreados e reatrelados de dois em dois, de modo que metade dos vagões teve de ser abandonada à beira da estrada.
Eles marcharam o dia inteiro e dormiram outra vez ao relento. A cada noite, antes de dormir, Grigori pensava com seus botões: mais um dia e eu ainda estou vivo para cuidar de Katerina e do bebê.
Naquela noite Tomchak não recebeu nenhuma ordem, portanto eles passaram a manhã seguinte inteira sentados debaixo das árvores. Grigori achou ótimo: a marcha da véspera o deixara com as pernas doloridas e as botas novas machucavam seus pés. Os camponeses estavam acostumados a passar o dia inteiro caminhando e riam da fraqueza dos recrutas da cidade.
Ao meio-dia, um mensageiro trouxe, com quatro horas de atraso, ordens de que deveriam ter partido às oito da manhã.
Não havia como prover os homens de água durante a marcha, então eles tinham que beber dos poços e riachos que surgiam pelo caminho. Logo aprenderam a beber o máximo de água possível a cada oportunidade e a manter seus respectivos cantis sempre cheios. Tampouco era possível cozinhar – e a única comida que recebiam eram bolachas duras e secas. De poucos em poucos quilômetros, eram convocados para ajudar a desatolar um canhão de algum brejo ou banco de areia.
Eles marcharam até o pôr do sol e dormiram novamente debaixo das árvores.
Na metade do terceiro dia, emergiram da mata e se depararam com uma bela casa de fazenda localizada entre campos de aveia e trigo maduro. Tinha dois andares e um telhado íngreme. No quintal havia uma fonte de concreto e uma construção de pedra baixa que parecia um chiqueiro, embora estivesse limpo. O lugar parecia a propriedade de algum rico dono de terras, ou talvez do filho caçula de algum nobre. Estava trancado e deserto.
Quase dois quilômetros mais adiante, para espanto geral, a estrada cortava um vilarejo inteiro composto de propriedades do mesmo tipo, todas abandonadas. Grigori começou a se dar conta de que havia cruzado a fronteira com a Alemanha e de que aquelas eram as casas luxuosas dos agricultores alemães que, junto com suas famílias e animais, haviam fugido para escapar do Exército russo que se aproximava. Mas onde estavam os casebres dos camponeses pobres? Que fim tinha levado a sujeira dos porcos e das vacas? Por que não havia nenhum curral de madeira caindo aos pedaços, com as paredes remendadas e buracos no telhado?
Os soldados ficaram radiantes.
– Eles estão fugindo de nós! – disse um dos camponeses. – Estão com medo dos russos. Nós vamos conquistar a Alemanha sem disparar um tiro!
Por frequentar o grupo de discussão de Konstantin, Grigori sabia que o plano alemão era conquistar antes a França para só depois lidar com a Rússia. Os alemães não estavam se rendendo, mas apenas escolhendo o melhor momento para lutar. Mesmo assim, seria surpreendente se estivessem de fato abrindo mão daquele território tão rico sem resistência.
– Que parte da Alemanha é esta, Excelência? – perguntou ele a Tomchak.
– Eles a chamam de Prússia Oriental.
– É a parte mais rica da Alemanha?
– Creio que não – respondeu o tenente. – Não estou vendo nenhum palácio.
– O povo comum da Alemanha é rico o suficiente para morar em casas como essas?
– Parece que sim.
Era óbvio que Tomchak, que parecia recém-saído da escola, não sabia muito mais do que Grigori.
Grigori continuou andando, mas sentia-se desmoralizado. Considerava-se um homem bem informado, mas não fazia ideia de que os alemães vivessem tão bem.
Foi Isaak quem deu voz às suas inseguranças.
– Nosso Exército já está com dificuldade para nos alimentar, apesar de nenhum tiro ter sido disparado ainda – falou em voz baixa. – Como vamos lutar contra um povo tão bem organizado a ponto de criar porcos em chiqueiros de pedra?
Walter estava eufórico com os acontecimentos na Europa. Tudo indicava que a guerra seria curta e que a Alemanha conquistaria uma vitória rápida. Ele poderia reencontrar Maud no Natal.
A menos, é claro, que morresse. Mas, se fosse o caso, morreria um homem feliz.
Ele estremecia de alegria sempre que se lembrava da noite que haviam passado juntos. Não tinham desperdiçado seu precioso tempo dormindo. Fizeram amor três vezes. No fim das contas, a penosa dificuldade inicial só intensificara a euforia de ambos. Entre cada uma das vezes, haviam ficado deitados lado a lado, conversando e afagando preguiçosamente um ao outro. Nenhuma conversa se comparava às que tiveram. Tudo o que pudesse dizer a si mesmo, Walter podia dizer a Maud. Nunca se sentira tão íntimo de outra pessoa.
Perto do raiar do dia, os dois haviam comido todas as frutas da fruteira e todos os chocolates da caixa. Por fim, tiveram que ir embora: Maud para voltar às escondidas para a casa de Fitz – dizendo aos empregados que saíra para dar uma caminhada matinal – e Walter rumo ao seu apartamento, para trocar de roupa, fazer as malas e deixar instruções com o lacaio para enviar seus demais pertences por navio a sua casa em Berlim.
No táxi, durante o curto trajeto entre os distritos de Knightsbridge e Mayfair, eles ficaram segurando as mãos um do outro com força, sem dizer muita coisa. Walter mandara o motorista parar na esquina da casa de Fitz. Maud o beijara uma última vez, enroscando a língua na dele com uma paixão desesperada, indo embora em seguida e deixando-o a pensar se um dia tornaria a vê-la.
A guerra havia começado bem. O exército alemão avançava de forma implacável pela Bélgica. Mais ao sul, os franceses – movidos mais pelo entusiasmo do que pela estratégia – haviam invadido a Lorena apenas para serem triturados pela artilharia alemã. Agora estavam em franca retirada.
O Japão havia entrado na guerra ao lado da França e da Grã-Bretanha, o que infelizmente não permitia que soldados russos no Extremo Oriente fossem transferidos para a frente de batalha na Europa. Os norte-americanos, contudo, para grande alívio de Walter, haviam confirmado sua neutralidade. Como o mundo havia ficado pequeno, refletiu ele: o Japão ficava no limite oriental do mundo, e os Estados Unidos no limite ocidental. Aquela guerra dava a volta ao mundo.
De acordo com os serviços de inteligência alemães, os franceses haviam enviado uma série de telegramas para São Petersburgo implorando ao czar que atacasse, na esperança de que isso distraísse os alemães. Os russos, por sua vez, haviam se movido depressa demais, contrariando todas as previsões. Seu Primeiro Exército tinha surpreendido o mundo inteiro ao cruzar a fronteira alemã em apenas 12 dias de mobilização. Enquanto isso, o Segundo Exército invadia o país mais ao sul, a partir do terminal ferroviário de Ostrolenka, em uma trajetória que faria as duas frentes se encontrarem perto de uma cidade chamada Tannenberg. Nenhum dos dois exércitos encontrou qualquer oposição.
A estranha apatia alemã que tornou isso possível não tardou a acabar. O comandante supremo da região, general Prittwitz, conhecido como Der Dicke, O Gordo, foi rapidamente afastado pelo alto-comando e substituído pela dupla formada por Paul von Hindenburg, que teve de abandonar sua aposentadoria, e Erich Ludendorff, um dos poucos oficiais veteranos que não tinha o “von” dos aristocratas no sobrenome. Aos 49 anos, Ludendorff era também um dos generais mais jovens. Walter o admirava por ter chegado tão alto por puro mérito e estava feliz em ser seu contato com a inteligência.
No dia 23 de agosto, um domingo, enquanto estavam indo da Bélgica para a Prússia, eles fizeram uma breve parada em Berlim. Lá, Walter pôde passar alguns instantes com a mãe na plataforma da estação. Seu nariz fino estava avermelhado por causa de um resfriado de verão. Ela o abraçou com força, tremendo de emoção.
– Você está bem – disse.
– Sim, mãe, estou bem.
– Estou muito preocupada com Zumwald. Os russos estão tão perto! – Zumwald era a propriedade rural dos Von Ulrich, no leste do país.
– Tenho certeza de que vai ficar tudo bem.
Ela não se deixou convencer com tanta facilidade.
– Eu falei com a esposa do Kaiser. – Sua mãe a conhecia bem. – Várias outras senhoras fizeram o mesmo.
– Você não deveria incomodar a família real – disse Walter, repreendendo a mãe. – Eles já têm muito com que se preocupar.
Sua mãe fungou.
– Não podemos deixar nossas propriedades nas mãos do Exército russo!
Walter sentia o mesmo. Ele também detestava pensar nos camponeses russos primitivos e seus senhores bárbaros sempre de chicote na mão pisoteando os pastos e pomares bem cuidados da propriedade dos Von Ulrich. Aqueles agricultores alemães tão esforçados, com suas mulheres musculosas, seus filhos asseados e seu gado gordo, mereciam proteção. Não era esse o motivo da guerra? Além disso, ele planejava um dia levar Maud para conhecer Zumwald e mostrar o lugar para sua esposa.
– Ludendorff vai deter o avanço dos russos, mãe – disse ele, torcendo para que fosse verdade.
Antes que ela pudesse responder, o trem apitou e Walter lhe deu um beijo, embarcando em seguida.
Ele sentia uma pontada de responsabilidade pessoal pelas derrotas alemãs na frente oriental. Foi um dos especialistas em inteligência a prever que os russos não conseguiriam atacar tão depressa uma vez ordenada a mobilização. Sempre que pensava nisso, ficava mortificado de vergonha. Porém desconfiava que não tivesse se enganado por completo, e que os russos estavam enviando à frente de batalha tropas despreparadas e sem suprimentos adequados.
Quando chegou à Prússia Oriental mais tarde naquele mesmo domingo, acompanhado pela comitiva de Ludendorff, essa desconfiança foi reforçada por relatórios segundo os quais o Primeiro Exército russo, ao norte, havia parado de avançar. Ele havia penetrado apenas uns poucos quilômetros em território alemão e, segundo a lógica militar, deveria seguir em frente. O que os russos estavam esperando? Walter suspeitava que estivessem ficando sem comida.
A frente sul do Exército russo, no entanto, continuava a avançar – e a prioridade de Ludendorff era detê-la.
Na manhã seguinte, segunda-feira, 24 de agosto, Walter entregou a Ludendorff dois relatórios de valor inestimável. Eram duas mensagens telegráficas dos russos, interceptadas e traduzidas pelo serviço de inteligência alemão.
A primeira, enviada às cinco e meia daquela manhã pelo general Rennenkampf, ordenava ao Primeiro Exército russo que retomasse a marcha. Finalmente Rennenkampf havia voltado a agir, mas, em vez de tomar o rumo do sul para encontrar o Segundo Exército e reunir as duas frentes, estava avançando de forma inexplicável para oeste, o que não representava ameaça alguma para as forças alemãs.
A segunda mensagem fora enviada meia hora mais tarde pelo general Samsonov, comandante do Segundo Exército russo. Ele ordenava às suas Unidades 13 e 15 que fossem ao encalço da Unidade XX dos alemães, que ele acreditava estar batendo em retirada.
– Isso é espantoso! – comentou Ludendorff. – Como foi que conseguimos estas informações? – Ele tinha um ar desconfiado, como se Walter pretendesse enganá-lo. Já Walter tinha a impressão de que Ludendorff suspeitava dele por vê-lo como um membro da antiga aristocracia militar. – Nós sabemos os códigos deles? – quis saber o general.
– Eles não usam códigos – disse-lhe Walter.
– Eles enviam ordens às claras? Meu Deus, mas por quê?
– Os soldados russos não são instruídos o bastante para lidar com códigos – explicou Walter. – As informações que colhemos antes da guerra indicaram que mal há homens alfabetizados suficientes para operar os transmissores de telégrafo.
– Então por que não usam telefones de campanha? Uma chamada telefônica não pode ser interceptada.
– Acho que eles provavelmente ficaram sem fios de telefone.
Ludendorff tinha os lábios virados para baixo, um queixo proeminente e parecia estar sempre franzindo o cenho de um jeito agressivo.
– Isso não poderia ser um truque, poderia?
Walter fez que não com a cabeça.
– Essa ideia é inconcebível, senhor. Os russos mal conseguem se comunicar por vias normais. Usar sinais falsos de telégrafo para enganar o inimigo está tão fora da capacidade deles quanto voar até a Lua.
Ludendorff curvou a cabeça calva por cima do mapa sobre a mesa à sua frente. Ele era um trabalhador incansável, porém muitas vezes se via assaltado por dúvidas terríveis, e Walter imaginou que o que o impulsionava era o medo do fracasso. Ludendorff pôs o dedo sobre o mapa.
– As Unidades 13 e 15 de Samsonov formam o centro da linha de frente russa – disse ele. – Se elas avançarem...
Walter percebeu na mesma hora o que Ludendorff estava pensando: os russos poderiam ser atraídos para uma armadilha, ficando cercados por três lados.
– À nossa direita, temos Von François e sua Unidade I. Ao centro, Scholtz e a Unidade XX, que recuou um pouco, mas não está batendo em retirada, ao contrário do que os russos parecem pensar. E, à nossa esquerda, porém 50 quilômetros mais ao norte, temos Mackensen e a Unidade XVII. Mackensen está de olho na frente norte dos russos, mas, se esse grupo estiver se dirigindo para o lado errado, talvez possamos ignorá-lo, por enquanto, e mandar Mackensen avançar para o sul.
– Uma manobra clássica – disse Walter. Era simples, mas ele próprio não havia cogitado aquela medida antes de Ludendorff a assinalar. Era por isso que Ludendorff era general, pensou com admiração.
– Mas isso só vai funcionar se Rennenkampf e o Primeiro Exército russo continuarem avançando na direção errada.
– O senhor viu a mensagem interceptada. As ordens russas já foram emitidas.
– Vamos torcer para Rennenkampf não mudar de ideia.
O batalhão de Grigori estava sem comida, mas uma carroça cheia de pás havia chegado, de modo que eles fizeram uma trincheira. Os homens se revezavam para cavar, substituindo-se a cada meia hora, portanto, não demorou muito. Não ficou perfeita, mas daria para o gasto.
Mais cedo naquele mesmo dia, Grigori, Isaak e seus camaradas haviam passado por uma posição alemã abandonada. Na ocasião, Grigori percebera que as trincheiras inimigas eram cavadas em uma espécie de zigue-zague, o que formava reentrâncias a intervalos regulares, de modo que não se conseguia ver muito à frente. O tenente Tomchak disse que essas reentrâncias se chamavam recessos, mas ele não sabia para que serviam. Não ordenou a seus homens que copiassem o modelo alemão. Grigori, no entanto, estava certo de que ele tinha alguma função.
Grigori ainda não havia disparado sua arma. Ouvira tiros de fuzil, de metralhadora e de canhão, e sua unidade conquistara um bom pedaço de território alemão, mas, até aquele momento, ele não tinha atirado em ninguém e ninguém atirara nele. Aonde quer que os soldados da Unidade 13 chegassem, eles descobriam que os alemães haviam acabado de fugir.
Isso não fazia o menor sentido. Aos poucos ele percebia que, na guerra, o caos reinava. Ninguém sabia ao certo onde estava ou quem era o inimigo. Dois homens do pelotão de Grigori tinham morrido, mas não pelas mãos dos alemães: um havia dado um tiro de fuzil na própria coxa por acidente e sangrara até a morte com uma rapidez espantosa, enquanto o outro havia sido pisoteado por um cavalo desembestado e nunca mais recobrara a consciência.
Há dias que eles não viam uma carroça de comida. Suas rações de emergência e até as bolachas tinham acabado. Estavam todos em jejum desde a manhã da véspera. Depois de cavarem a trincheira, foram dormir com fome. Felizmente era verão, então pelo menos não estavam com frio.
O tiroteio começou ao raiar do dia seguinte.
O barulho surgiu à esquerda de Grigori, a alguma distância de onde estavam, mas ele pôde ver nuvens de metralha explodindo no ar e a terra solta jorrar repentinamente do solo onde os projéteis aterrissavam. Sabia que deveria estar apavorado, mas não estava. Estava com fome, com sede, cansado, dolorido e entediado, mas não com medo. Imaginou se os alemães estariam sentindo o mesmo.
Também havia fogo cerrado à sua direita, alguns quilômetros mais ao norte, mas, no local onde estavam, reinava o silêncio.
– Parece o olho do furacão – comentou David, o vendedor de baldes judeu.
Logo chegaram ordens para que avançassem. Cansados, abandonaram suas trincheiras e seguiram em frente.
– Imagino que deveríamos ficar gratos – disse Grigori.
– Gratos por quê? – quis saber Isaak.
– Marchar é melhor do que lutar. Nossos pés estão cheios de bolhas, mas estamos vivos.
À tarde, eles se aproximaram de uma cidade que o tenente Tomchak disse se chamar Allenstein. Reuniram-se nos arredores em formação de marcha e assim adentraram o centro.
Para surpresa geral, Allenstein estava repleta de cidadãos alemães bem-vestidos tocando normalmente suas rotinas de quinta-feira à tarde – pondo cartas no correio, fazendo compras e passeando com bebês em carrinhos. A unidade de Grigori parou em um pequeno parque, onde os homens se sentaram à sombra de árvores altas. Tomchak entrou em uma barbearia próxima e saiu de lá barbeado e com os cabelos cortados. Isaak foi comprar vodca, mas voltou dizendo que o Exército havia postado sentinelas na entrada de todas as lojas de bebidas alcoólicas com ordens para não deixarem os soldados entrar.
Por fim, um cavalo e uma carroça apareceram com um barril de água fresca. Os homens fizeram fila para encher os cantis. Conforme a tarde avançava e a temperatura diminuía, outras carroças chegaram com pães comprados ou requisitados às padarias da cidade. A noite caiu e eles dormiram sob as árvores.
Quando o dia raiou, não houve desjejum. Um batalhão foi deixado para trás para garantir o domínio da cidade, enquanto Grigori e o restante da Unidade 13 saíram marchando de Allenstein, rumo ao sudoeste pela estrada para Tannenberg.
Embora ainda não houvessem travado combate, Grigori percebeu que o clima entre os oficiais tinha mudado. Estavam sempre percorrendo as fileiras de homens a passos largos e se reuniam em grupinhos agitados para conversar. Vozes se alteravam, enquanto um major apontava para um lado e um capitão gesticulava na direção oposta. Grigori continuava ouvindo artilharia pesada ao norte e ao sul, embora o barulho parecesse estar avançando para leste, ao passo que a Unidade 13 seguia para oeste.
– De quem é essa artilharia? – perguntou o sargento Gavrik. – Nossa ou deles? E por que está indo para leste, quando nós estamos indo para oeste? – O fato de o sargento não ter dito nenhum palavrão sugeriu a Grigori que ele estava seriamente preocupado.
A alguns quilômetros de Allenstein, um batalhão ficou para trás para proteger a retaguarda, o que surpreendeu Grigori, pois ele supunha que o inimigo estivesse à frente, não atrás. A Unidade 13 estava minguando, pensou ele com uma expressão carregada.
Mais ou menos no meio do dia, seu batalhão foi destacado da formação principal. Enquanto seus camaradas prosseguiam rumo ao sudoeste, seu grupo foi conduzido para o sudeste por uma trilha larga que atravessava uma floresta.
Foi ali que, finalmente, Grigori se deparou com o inimigo.
O batalhão parou para descansar junto a um riacho e os homens encheram os cantis. Grigori se embrenhou na mata para fazer suas necessidades. Estava em pé atrás de um tronco grosso de pinheiro quando ouviu um barulho à sua esquerda e, para sua surpresa, a poucos metros de onde estava, viu um oficial alemão fardado, inclusive com o capacete pontudo, em cima de um belo cavalo negro. O alemão espiava com um telescópio o local onde o batalhão havia parado. Grigori se perguntou o que ele estava olhando: não conseguiria ver muito longe entre as árvores. Talvez quisesse descobrir se os uniformes eram russos ou alemães. De tão imóvel, mais parecia um monumento numa praça em São Petersburgo, embora seu cavalo não estivesse tão tranquilo, movendo-se e repetindo o barulho que o havia alertado.
Grigori abotoou a calça com cuidado, pegou o fuzil e recuou sem se virar, mantendo sempre a árvore entre ele e o alemão.
De repente, o homem se moveu. Grigori sentiu medo por um instante, pensando que tivesse sido visto. O alemão, no entanto, fez o cavalo dar meia-volta com habilidade e, colocando o animal para trotar, seguiu rumo a oeste.
Grigori voltou correndo para junto do sargento Gavrik.
– Eu vi um alemão! – disse ele.
– Onde?
Grigori apontou.
– Ali... eu estava dando uma mijada.
– Tem certeza de que era um alemão?
– Ele estava de capacete pontudo.
– O que ele estava fazendo?
– Estava montado a cavalo, usando um telescópio para olhar para cá.
– Um batedor! – exclamou Gavrik. – Você atirou nele?
Somente então Grigori recordou que estava ali para matar soldados alemães, não para fugir deles.
– Pensei que deveria vir contar ao senhor – disse ele com voz fraca.
– Seu veadinho, por que você acha que nós lhe demos uma arma, porra? – berrou Gavrik.
Grigori olhou para o fuzil carregado que trazia na mão, com sua baioneta amedrontadora. Era óbvio que deveria tê-lo usado. Onde estava com a cabeça?
– Eu sinto muito – falou.
– Agora que você o deixou escapar, o inimigo sabe onde estamos!
Grigori se sentiu humilhado. Não havia sido treinado para aquele tipo de situação quando serviu o Exército, mas deveria ter conseguido se virar sozinho.
– Em que direção ele foi? – quis saber Gavrik.
Pelo menos isso Grigori sabia responder.
– Para oeste.
Gavrik deu-lhe as costas e andou depressa até o tenente Tomchak, que fumava encostado em uma árvore. Logo em seguida, Tomchak jogou o cigarro no chão e correu em direção ao major Bobrov, um oficial mais velho e boa-pinta, com uma cabeleira grisalha.
Depois disso, tudo aconteceu depressa. Eles não tinham artilharia, mas a seção de metralhadoras descarregou suas armas. Os 600 homens do batalhão foram espalhados em uma linha irregular de um quilômetro de comprimento, estendendo-se de norte a sul. Alguns homens foram escolhidos para seguir em frente. Os demais começaram a avançar lentamente para oeste, em direção ao sol da tarde que se punha em meio à folhagem.
Minutos depois, o primeiro projétil aterrissou. Depois de cruzar o ar com um barulho estridente, ele varou as copas das árvores, finalmente atingindo o chão poucos metros atrás de Grigori e explodindo com um estrondo grave que fez a terra tremer.
– Aquele batedor informou a nossa distância – disse Tomchak. – Eles estão atirando na nossa posição anterior. Ainda bem que saímos de lá.
Os alemães, no entanto, também sabiam usar a lógica, de modo que pareceram notar o próprio erro, pois o projétil seguinte aterrissou bem diante da linha russa que avançava.
Os homens em volta de Grigori começaram a ficar nervosos. Não paravam de olhar ao redor com os fuzis em riste, xingando uns aos outros à menor provocação. David olhava o tempo todo para cima, como se achasse ser capaz de ver uma bomba chegando e driblá-la. Isaak estava com a mesma expressão agressiva que costumava exibir no campo de futebol quando o time adversário começava a jogar sujo. Grigori descobriu que a ideia de que alguém estava dando o melhor de si para matá-lo era incrivelmente opressiva. Sentia-se como se tivesse recebido uma notícia muito ruim mas não conseguisse recordar direito qual era ela. Teve uma fantasia boba de cavar um buraco no chão e se esconder lá dentro.
Perguntou-se quanto os artilheiros conseguiam enxergar. Haveria um observador situado no alto de uma colina, rastreando a floresta com um potente binóculo alemão? Um só homem ficava invisível em uma floresta, mas talvez fosse possível ver 600 se movendo juntos em meio às árvores.
Alguém havia decidido que a distância estava certa, pois nos próximos segundos houve uma chuva de projéteis, sendo que alguns acertaram em cheio. Grigori se viu cercado de estrondos ensurdecedores, chafarizes de terra jorrando pelo ar, homens aos berros e partes de corpos humanos que voavam pelos ares. Aterrorizado, ele tremia. Não havia nada a fazer, nenhum jeito de se proteger: ou o projétil acertava você, ou não. Grigori apertou o passo, como se andar mais depressa pudesse ajudar. Os outros devem ter pensado a mesma coisa, porque, sem receberem ordem alguma, puseram-se a andar em ritmo acelerado.
Grigori segurava o fuzil com as mãos suadas, tentando não entrar em pânico. Mais bombas caíram, atrás dele e na sua frente, à esquerda e à direita. Ele correu mais depressa.
O fogo de artilharia ficou tão cerrado que ele não conseguia mais distinguir um projétil do outro: o barulho era um só, contínuo, como uma centena de trens em alta velocidade. Então o batalhão pareceu sair da linha de fogo, pois os projéteis começaram a aterrissar às suas costas. O bombardeio logo arrefeceu. Pouco depois, Grigori entendeu por quê. À sua frente, uma metralhadora começou a disparar e ele percebeu, com um pavor nauseante, que estava próximo da linha inimiga.
Rajadas de metralhadora alvejaram a floresta, rasgando a folhagem e estraçalhando os pinheiros. Grigori ouviu um grito ao seu lado e viu Tomchak cair. Ajoelhou-se ao lado do tenente e viu sangue em seu rosto e no peito da farda. Horrorizado, notou que um de seus olhos havia sido destroçado. Tomchak tentou se mexer e soltou um grito de dor.
– O que é que eu faço? O que é que eu faço? – perguntou Grigori. Teria conseguido fazer um curativo em um ferimento superficial, mas como ajudar um homem que levara um tiro no olho?
Ele sentiu um impacto na cabeça e, quando ergueu os olhos, viu Gavrik passar correndo por ele, gritando:
– Continue correndo, Peshkov, seu imbecil!
Ainda ficou olhando mais um pouco para Tomchak. Pareceu-lhe que o oficial não estava mais respirando. Era impossível ter certeza, mesmo assim se levantou e saiu correndo.
O tiroteio se intensificou. O medo de Grigori se transformou em raiva. As balas do inimigo trouxeram à tona uma sensação de indignação. No fundo de sua mente, sabia que era um sentimento irracional, mas não conseguia evitá-lo. De repente, teve vontade de matar aqueles desgraçados. Uns 200 metros mais à frente, depois de uma clareira, viu uniformes cinza e capacetes pontudos. Apoiou-se sobre um dos joelhos atrás de uma árvore, deu uma espiada pela lateral do tronco, ergueu o fuzil, mirou em um alemão e, pela primeira vez, puxou o gatilho.
Nada aconteceu – então ele se lembrou da trava de segurança.
Não era possível destravar um Mosin-Nagant com ele sobre o ombro. Abaixou a arma, sentou-se no chão atrás da árvore, aninhou a coronha do fuzil na dobra do cotovelo e girou o grande ferrolho serrilhado que liberava a culatra.
Olhou em volta. Assim como ele, seus camaradas haviam parado de correr e buscado proteção. Vários estavam disparando, outros recarregavam as armas, e outros, feridos, contorciam-se em agonia, alguns já tomados pela paralisia da morte.
Grigori espiou novamente por trás do tronco da árvore, levou o fuzil ao ombro e apertou os olhos para enxergar ao longo do cano. Viu a ponta de um fuzil saindo de um arbusto e um capacete pontudo logo acima. Com o coração cheio de ódio, apertou o gatilho cinco vezes com rapidez. O fuzil no qual ele estava mirando recuou depressa, mas não caiu, de modo que Grigori imaginou ter errado. Sentiu-se decepcionado e frustrado.
O Mosin-Nagant só disparava cinco tiros. Ele abriu a bolsa de munição e recarregou a arma. Agora queria matar alemães o mais rápido possível.
Quando tornou a espiar de trás da árvore, viu um alemão correndo por uma clareira na mata. Esvaziou o pente, mas o homem continuou a correr e desapareceu atrás de um grupo de árvores jovens.
Grigori percebeu que de nada adiantava apenas atirar. Acertar o inimigo era difícil – muito mais difícil – em um combate de verdade do que nos poucos treinamentos de tiro ao alvo que havia recebido. Teria de se esforçar mais.
Quando estava recarregando de novo, ouviu uma metralhadora abrir fogo, e a vegetação ao seu redor foi crivada de balas. Ele pressionou as costas no tronco da árvore e encolheu as pernas, tornando-se um alvo menor. Aos seus ouvidos, parecia que a metralhadora estava a uns 200 metros à sua esquerda.
Quando os tiros cessaram, ele ouviu Gavrik gritar:
– Mirem naquela metralhadora, seus imbecis! Atirem enquanto eles estiverem recarregando! Grigori esticou a cabeça para fora, à procura da metralhadora. Viu o tripé montado entre duas árvores grandes. Mirou o fuzil, mas então se deteve. Não adianta só atirar, lembrou a si mesmo. Respirou pausadamente, posicionou o cano pesado e mirou em um capacete pontudo. Abaixou um pouco o cano, até conseguir ver o peito do alemão. O dólmã do uniforme estava aberto no pescoço: o homem sentia calor por conta do esforço.
Grigori puxou o gatilho.
E errou. O alemão pareceu não ter notado o tiro. Grigori nem desconfiava onde tinha ido parar a bala.
Disparou de novo, esvaziando o pente inteiro em vão. Era enlouquecedor. Aqueles porcos estavam tentando matá-lo e ele era incapaz de acertar um deles que fosse. Talvez estivesse longe demais. Ou talvez simplesmente fosse um mau atirador.
A metralhadora tornou a abrir fogo e todos congelaram.
O major Bobrov apareceu, rastejando de quatro pelo chão da floresta.
– Ei, vocês! – gritou ele. – Ao meu comando, avancem para cima daquela metralhadora!
Você só pode estar maluco, pensou Grigori. Mas eu não estou.
O sargento Gavrik repetiu a ordem.
– Preparem-se para atacar o ninho da metralhadora! Aguardem o meu comando!
Bobrov se levantou e saiu correndo agachado pela linha de fogo. Grigori o ouviu gritar a mesma ordem um pouco mais adiante. Você está gastando saliva à toa, pensou ele. Está achando que somos um pelotão suicida, por acaso?
O barulho da metralhadora cessou e o major se levantou, expondo-se sem a menor cautela. Havia perdido o capacete, de modo que seus cabelos grisalhos faziam dele um alvo fácil.
– Agora! – gritou ele.
Gavrik repetiu a ordem.
– Vão, vão, vão!
Para servirem de exemplo, Bobrov e Gavrik saíram correndo por entre as árvores em direção ao ninho da metralhadora. De repente, Grigori se viu fazendo a mesma coisa, varando os arbustos e pulando por cima de troncos caídos, correndo meio agachado e tentando não deixar cair o fuzil difícil de carregar. A metralhadora continuou silenciosa, mas os alemães puseram-se a atirar com todas as outras armas que tinham. O efeito de dezenas de fuzis atirando ao mesmo tempo pareceu igualmente ruim, mas Grigori continuou correndo como se não tivesse alternativa. Conseguia ver a equipe responsável pela metralhadora recarregando a arma em desespero, manuseando atabalhoadamente o pente, com os rostos pálidos de medo. Alguns dos russos já estavam disparando, porém Grigori não teve tanta presença de espírito – simplesmente correu. Ainda estava um pouco longe da metralhadora quando viu três alemães escondidos atrás de um arbusto. Pareciam muito jovens, encarando-o com suas caras assustadas. Partiu para cima deles com a baioneta do fuzil erguida à sua frente como uma lança medieval. Ouviu alguém gritar e percebeu que era ele próprio. Os três soldados saíram correndo.
Ele os perseguiu, mas, como estava fraco de fome, eles se distanciaram com facilidade. Cem metros depois parou, exausto. Por toda parte, alemães fugiam perseguidos por russos. A equipe da metralhadora havia abandonado sua arma. Grigori imaginou que devesse estar atirando, mas por ora não tinha energia para erguer o fuzil.
O major Bobrov reapareceu, correndo junto à linha de soldados russos.
– Em frente! – gritou ele. – Não os deixem fugir! Matem todos, ou eles vão voltar outro dia para atirar em vocês! Vão!
Sem forças, Grigori começou a correr. Então a situação mudou. Ele ouviu um tumulto à sua esquerda: tiros, gritos, palavrões. De repente, soldados russos surgiram daquela direção, correndo a toda a velocidade. Bobrov, que estava ao lado de Grigori, exclamou:
– Mas que droga é essa?
Grigori então percebeu que eles estavam sendo atacados pelo flanco.
– Aguentem firme! – gritou Bobrov. – Protejam-se e atirem!
Ninguém lhe deu ouvidos. Os recém-chegados se enfiaram pela mata, em pânico, e os camaradas de Grigori começaram a se juntar à debandada, virando para a direita e disparando rumo ao norte.
– Ei, vocês, mantenham a posição! – gritava Bobrov. Ele sacou a pistola. – Eu disse para manterem a posição! – O major mirou nos soldados russos que passavam correndo por ele. – Estou avisando: vou atirar nos desertores! – Ouviu-se um estalo e os cabelos do oficial se tingiram de sangue. Ele caiu no chão. Grigori não sabia se Bobrov havia sido abatido por uma bala perdida alemã ou por uma de seus próprios companheiros.
Grigori deu meia-volta e saiu correndo com os outros.
Àquela altura, os tiros vinham de todos os lados. Grigori não sabia quem estava atirando em quem. Os russos se espalharam pela mata e aos poucos ele parecia estar deixando para trás o barulho do combate. Seguiu correndo até não aguentar mais, então finalmente desabou sobre um tapete de folhas, incapaz de se mexer. Ficou um bom tempo deitado ali, sentindo-se paralisado. Ainda estava segurando o fuzil, o que foi uma surpresa: não sabia por que não o havia largado.
Por fim, ele se levantou vagarosamente. Há algum tempo sua orelha direita estava dolorida. Ao tocá-la, soltou um grito de dor. Seus dedos voltaram pegajosos de sangue. Com delicadeza, tornou a apalpá-la. Para seu horror, notou que ela havia sido quase toda arrancada. Tinha sido ferido sem perceber. Em algum momento, uma bala levara embora a metade de cima da sua orelha.
Ele verificou o fuzil. O pente estava vazio. Recarregou a arma, embora não soubesse ao certo por que: parecia incapaz de acertar quem quer que fosse. Armou a trava de segurança.
Parecia-lhe que os russos haviam caído em uma emboscada. Tinham sido instigados a seguir em frente até ficarem cercados, e então os alemães fecharam a arapuca.
O que ele deveria fazer agora? Não havia ninguém por perto, de modo que não podia perguntar a nenhum oficial quais eram as ordens. Contudo, não podia ficar onde estava. A unidade havia batido em retirada, isso era certo, então imaginou que devesse voltar. Se ainda restasse algo das tropas russas, elas supostamente estariam a leste dali.
Ele deu as costas para o sol poente e começou a andar. Moveu-se da forma mais silenciosa possível pela floresta, sem saber onde os alemães poderiam estar. Perguntou a si mesmo se o Segundo Exército inteiro não teria sido derrotado e fugira, dando-se conta de que poderia morrer de fome naquela floresta.
Uma hora depois, parou para beber água de um regato. Cogitou limpar o ferimento, mas decidiu que talvez fosse melhor deixá-lo quieto. Depois de matar a sede, resolveu descansar de cócoras, com os olhos fechados. Logo iria escurecer. Felizmente o tempo estava seco e ele podia dormir no chão.
Estava quase pegando no sono quando ouviu um barulho. Erguendo os olhos, ficou chocado ao ver um oficial alemão a cavalo movendo-se vagarosamente em meio às árvores, a 10 metros dali. O homem havia passado sem reparar em Grigori agachado junto ao regato.
Furtivamente, Grigori pegou o fuzil e girou a trava de segurança. Ajoelhando-se, levou a arma ao ombro e mirou com cuidado no meio das costas do alemão. O homem estava a 15 metros dele, uma distância curta para um tiro de fuzil.
No último segundo, o alemão foi alertado por um sexto sentido e se virou na sela.
Grigori apertou o gatilho.
O barulho foi ensurdecedor no silêncio da floresta. O cavalo saltou para a frente. O oficial caiu de lado e bateu no chão, porém um de seus pés continuou preso ao estribo. O cavalo ainda o arrastou por uns 100 metros pela vegetação rasteira, mas então desacelerou até parar.
Grigori ficou prestando atenção para ver se o som do tiro havia atraído alguma outra pessoa. No entanto, a única coisa que ouviu foi a brisa suave de fim de tarde agitando as folhas.
Andou em direção ao cavalo. Quando chegou mais perto, levou o fuzil ao ombro e apontou-o para o oficial, mas sua cautela se mostrou desnecessária. O homem estava imóvel, com o rosto virado para cima, os olhos arregalados, o capacete pontudo caído no chão ao seu lado. Tinha cabelos louros cortados rente à cabeça e olhos verdes muito bonitos. Talvez fosse o mesmo homem que Grigori tinha visto mais cedo: ele não conseguiu ter certeza. Lev saberia – teria se lembrado do cavalo.
Grigori abriu os alforjes que ladeavam a sela. Um deles continha mapas e um telescópio. O outro, uma linguiça e um naco grande de pão preto. Grigori estava faminto. Mordeu um pedaço da linguiça. A carne estava carregada de pimenta, ervas e alho. A pimenta deixou suas bochechas quentes e suadas. Mastigou depressa, engoliu e, em seguida, enfiou um pouco do pão na boca. A comida estava tão boa que ele se sentiu capaz de chorar. Ficou em pé ali, recostado no flanco do enorme cavalo e comendo o mais depressa possível, enquanto o homem que havia matado o encarava com seus olhos verdes vidrados.
– Nossa estimativa é de 30 mil russos mortos, meu general – disse Walter a Ludendorff. Estava tentando não deixar sua euforia transparecer demais, mas a vitória alemã era tão acachapante que ele não conseguia tirar o sorriso do rosto.
Ludendorff mantinha uma calma inabalável.
– Quantos prisioneiros?
– Na última contagem, cerca de 92 mil, senhor.
Era uma estatística incrível, mas Ludendorff absorveu a informação com serenidade.
– Algum general?
– O general Samsonov se matou com um tiro. Temos o cadáver. Martos, comandante da Unidade 15 dos russos, foi capturado. Nós confiscamos 500 peças de artilharia.
– Em suma – disse Ludendorff, finalmente erguendo os olhos de sua mesa improvisada –, o Segundo Exército russo foi dizimado. Não existe mais.
Walter não pôde deixar de sorrir.
– Sim, senhor.
Ludendorff não retribuiu o sorriso. Em vez disso, brandiu o pedaço de papel que vinha analisando.
– O que torna esta notícia aqui ainda mais irônica.
– Que notícia, senhor?
– Nós vamos receber reforços.
Walter ficou pasmo.
– O quê? Não entendi direito, meu general... reforços?
– Estou tão surpreso quanto você. Três unidades e uma divisão de cavalaria.
– De onde?
– Da França... Precisamos da maior quantidade de homens possível se quisermos que o Plano Schlieffen funcione.
Walter lembrou que Ludendorff havia esmiuçado o Plano Schlieffen com a energia e a meticulosidade que lhe eram habituais, então sabia o que era necessário na França – até o número exato de homens, cavalos e balas.
– Mas o que provocou isso? – quis saber Walter.
– Não sei, mas posso adivinhar. – O tom de Ludendorff se encheu de amargura. – É uma decisão política. As princesas e condessas de Berlim têm falado aos prantos com a esposa do Kaiser que as propriedades de suas famílias estão sendo arrasadas pelos russos. O alto-comando cedeu à pressão.
Walter sentiu que estava corando. Sua mãe tinha feito a mesma coisa. Mulheres ficarem aflitas e implorarem por proteção podia ser compreensível, mas o Exército ceder a seus pedidos e pôr em risco toda a estratégia da guerra era imperdoável.
– Não é exatamente isso que os Aliados querem? – disse ele, indignado. – Os franceses convenceram os russos a realizar a invasão com um exército despreparado, na esperança de que nós entrássemos em pânico e mandássemos reforços para a frente oriental, o que enfraqueceria nosso exército na França!
– Exatamente. Os franceses estão batendo em retirada. Encontram-se em desvantagem numérica, sem armas suficientes, derrotados. A única esperança deles era que tivéssemos uma distração. E o desejo deles foi realizado.
– Então – falou Walter, desconsolado –, apesar da nossa vitória espetacular na frente oriental, os russos conseguiram a vantagem estratégica de que seus aliados precisam na frente ocidental!
– Isso – respondeu Ludendorff. – Exatamente.
De setembro a dezembro de 1914
O som de uma mulher chorando acordou Fitz.
A princípio, ele achou que fosse Bea. Então se lembrou de que sua mulher estava em Londres e ele em Paris. A mulher ao seu lado na cama não era uma princesa grávida de 23 anos, mas sim uma garçonete francesa de 19 com um rosto angelical.
Apoiou-se em um dos cotovelos e olhou para ela. A moça tinha cílios louros que repousavam em suas faces como borboletas sobre pétalas de flores. Eles agora estavam molhados de lágrimas.
– J’ai peur – soluçou ela. – Estou com medo.
Ele acariciou-lhe os cabelos.
– Calme-toi – falou. – Fique calma. – Havia aprendido mais francês com mulheres como Gini do que em todo seu tempo na escola. Gini era apelido de Ginette, que por sua vez também parecia inventado. Seu nome de batismo provavelmente era algo prosaico, como Françoise.
Era uma manhã de sol e uma brisa morna entrava pela janela aberta do quarto de Gini. Fitz não estava ouvindo tiros ou botas marchando sobre as pedras do calçamento.
– Paris ainda não caiu – murmurou ele em um tom de voz tranquilizador.
Não foi um comentário feliz, pois provocou novos soluços.
Fitz olhou para o relógio de pulso. Eram oito e meia. Tinha que estar de volta ao seu hotel às dez sem falta.
– Se os alemães chegarem, você cuida de mim? – perguntou Gini.
– É claro, chérie – respondeu ele, dissimulando uma pontada de culpa. Se pudesse, até cuidaria dela, mas não seria a maior de suas prioridades.
– Quando eles vão chegar? – perguntou ela com uma vozinha miúda.
Fitz bem gostaria de saber. O Exército alemão era duas vezes maior do que o serviço de inteligência francês previra. Havia avançado de forma implacável pelo noroeste da França, ganhando todas as batalhas. Agora, a avalanche tinha alcançado uma frente ao norte de Paris – onde exatamente, Fitz descobriria dentro de poucas horas.
– Há quem diga que a cidade não vai ser defendida – disse Gini, ainda chorando. – É verdade?
Essa era outra coisa que Fitz não sabia. Caso Paris resistisse, a cidade seria castigada pela artilharia alemã. Suas esplêndidas construções seriam destruídas, crateras seriam abertas em seus amplos bulevares, seus bistrôs e lojas seriam transformados em entulho. Era tentador pensar que a cidade deveria se render para escapar de tudo isso.
– Talvez seja melhor para vocês – disse ele a Gini, fingindo sinceridade. – Você vai fazer amor com um general prussiano gordo que a chamará de Liebling.
– Eu não quero nenhum prussiano. – A voz dela se tornou um sussurro. – É você quem eu amo.
Talvez amasse mesmo, pensou ele; ou talvez o visse apenas como uma passagem para longe dali. Todos os que podiam estavam deixando a cidade, mas isso não era fácil. A maioria dos carros particulares havia sido confiscada pelo Exército. Os trens poderiam ser requisitados a qualquer momento e os passageiros civis expulsos dos vagões e abandonados no meio do nada. Um táxi até Bordeaux custava 1.500 francos, o preço de uma casa pequena.
– Talvez isso não aconteça – disse-lhe ele. – Os alemães devem estar exaustos a esta altura. Já faz um mês que estão marchando e lutando. Não vão aguentar esse ritmo para sempre.
Ele de fato acreditava um pouco nisso. Os franceses haviam lutado com afinco durante a retirada. Seus soldados estavam exaustos, famintos e desmoralizados, mas poucos tinham sido capturados e somente um punhado de armas tinha sido perdido. O inabalável chefe do Estado-Maior do Exército francês, general Joffre, conseguira manter as forças aliadas unidas e recuar até uma frente a sudeste de Paris, onde estava reorganizando suas tropas. Também fora implacável ao afastar oficiais veteranos que não haviam se mostrado à altura da situação: dois comandantes de exército, sete comandantes de unidade e dezenas de outros oficiais tinham sido dispensados sem dó.
Os alemães não percebiam isso. Fitz tinha lido mensagens alemãs decodificadas que davam a impressão de um excesso de confiança. O alto-comando alemão chegara até mesmo a deslocar soldados da França para mandá-los como reforço para a Prússia Oriental. Fitz achava que isso poderia ser um erro. Os franceses ainda não estavam derrotados.
Quanto aos britânicos, ele não tinha tanta certeza.
A Força Expedicionária Britânica era pequena: cinco divisões e meia, em comparação com as 70 divisões francesas atualmente mobilizadas. Os britânicos haviam lutado bravamente em Mons, deixando Fitz orgulhoso; mas em cinco dias tinham perdido 15 mil de seus 100 mil homens e, em seguida, bateram em retirada.
Os Fuzileiros Galeses faziam parte das forças britânicas, porém Fitz não estava entre eles. A princípio, ficara desapontado ao ser enviado a Paris como oficial de ligação entre os franceses e os britânicos; ansiava por combater com seu regimento. Tinha certeza de que os generais o estavam tratando como um amador, que deveria ser enviado para um lugar onde não pudesse causar maiores estragos. No entanto, ele conhecia Paris e falava francês, de modo que não podia negar ser qualificado para o cargo.
No fim das contas, sua função se mostrou mais importante do que ele imaginara. As relações entre os comandantes franceses e seus equivalentes britânicos eram perigosamente ruins. A Força Expedicionária Britânica era comandada por um sujeito melindroso, criador de caso, que se chamava Sir John French, sobrenome que, por si só, causava certa confusão. Logo de início, ele se ofendera ao considerar que o general Joffre havia deixado de consultá-lo em determinada questão e ficara emburrado. Apesar do clima de hostilidade, Fitz se esforçava para sustentar o fluxo de dados e informações de inteligência entre os dois comandantes aliados.
Tudo isso era constrangedor e um pouco vergonhoso, e Fitz, como representante britânico, sentia-se humilhado com o mal disfarçado desprezo dos oficiais franceses. Mas a situação havia piorado drasticamente na semana anterior. Sir John dissera a Joffre que seus soldados precisavam de dois dias de descanso. No dia seguinte, ampliara a solicitação para 10 dias. Os franceses tinham ficado horrorizados, e Fitz sentira uma profunda vergonha de seu país.
Tinha ido se queixar com o coronel Hervey, o ajudante lambe-botas de Sir John, porém sua reclamação fora recebida com indignação e negativas. No fim das contas, Fitz havia falado ao telefone com lorde Remarc, que era subsecretário no Departamento de Guerra. Os dois tinham estudado juntos em Eton e Remarc era um dos amigos fofoqueiros de Maud. Fitz não se sentira confortável passando por cima de seus oficiais superiores dessa forma, mas a situação da luta por Paris era tão periclitante que ele sentira que precisava agir. Havia aprendido que o patriotismo não era uma coisa tão simples assim.
O efeito de sua reclamação foi explosivo. O primeiro-ministro Asquith despachou para Paris o novo ministro da Guerra, lorde Kitchener, e Sir John acabou sendo duramente repreendido por seu chefe. Fitz tinha grandes esperanças de que ele seria substituído em breve. E, mesmo que não fosse, pelo menos o homem talvez saísse daquela letargia.
Fitz logo iria descobrir.
Ele se virou de costas para Gini e pôs os pés no chão.
– Já está indo embora? – perguntou ela.
Ele se levantou da cama.
– Preciso trabalhar.
Ela afastou com as pernas o lençol que a cobria. Fitz admirou seus seios perfeitos. Ela notou seu olhar, sorriu em meio às lágrimas e abriu as pernas de forma convidativa.
Ele resistiu à tentação.
– Faça um café, chérie – pediu.
Gini vestiu um roupão de seda verde-claro e foi esquentar a água enquanto Fitz se vestia. Na noite anterior, ele havia jantado na embaixada britânica vestido com o uniforme de seu regimento, mas depois do jantar havia trocado o casaco vermelho chamativo por um smoking curto para se misturar aos seus inferiores.
Ela lhe estendeu um café forte em uma xícara grande que mais parecia uma tigela.
– Vou esperar por você hoje à noite no Clube Albert – falou.
As casas noturnas, assim como os teatros e cinemas, estavam oficialmente fechadas. Até mesmo o Folies Bergère estava às escuras. Os cafés fechavam às oito e os restaurantes às nove e meia. Mas não era tão fácil pôr fim à vida noturna de uma grande cidade. Assim, homens empreendedores como Albert não tardaram a abrir casas clandestinas onde podiam vender champanhe a preços exorbitantes.
– Vou tentar chegar lá à meia-noite – respondeu ele.
O café estava amargo, mas levou embora os últimos vestígios de sonolência. Ele entregou a Gini um soberano britânico. Era um pagamento generoso por uma noite e, em tempos como aqueles, as pessoas preferiam de longe ouro a cédulas.
Quando foi dar um beijo de despedida em Gini, ela o abraçou.
– Você vai estar lá hoje à noite, não vai? – perguntou.
Fitz sentiu pena dela. Seu mundo estava ruindo, e ela não sabia o que fazer. Quem lhe dera poder abrigá-la sob a sua asa e prometer cuidar dela, mas era impossível. Sua mulher estava grávida e qualquer aborrecimento poderia fazer Bea perder o bebê. Mesmo que ele fosse solteiro, comprometer-se com uma prostituta francesa o transformaria em motivo de piada. De toda forma, Gini era apenas uma entre vários milhões. Com exceção dos mortos, todos estavam com medo.
– Vou fazer o possível – falou ele, desprendendo-se do abraço.
Seu Cadillac azul estava parado no acostamento. Uma pequena bandeira da Grã-Bretanha tremulava sobre o capô. Não havia muitos carros particulares na rua e a maioria ostentava uma bandeira, em geral da França ou da Cruz Vermelha, para deixar claro que eles estavam sendo usados para tarefas indispensáveis à guerra.
Trazer o carro de Londres até lá havia exigido um uso inescrupuloso dos contatos de Fitz e uma pequena fortuna em subornos, porém ele estava satisfeito por ter insistido. Precisava transitar diariamente entre o quartel-general britânico e o francês, e era um alívio não precisar implorar por um carro ou um cavalo dos sobrecarregados exércitos.
Ele acionou a ignição automática e o motor deu partida e começou a girar. Quase não havia tráfego nas ruas. Até os ônibus tinham sido requisitados para suprir o Exército na frente de batalha. Ele teve que parar para dar passagem a um grande rebanho de ovelhas que cruzava a cidade, provavelmente a caminho da Gare de l’Est para ser despachado em um trem a fim de alimentar as tropas.
Ficou intrigado ao ver uma pequena multidão reunida em volta de um cartaz recém-colado ao muro do Palais Bourbon. Parou o carro e juntou-se às pessoas que estavam lendo o texto.
EXÉRCITO DE PARIS
CIDADÃOS DE PARIS
Fitz examinou a parte de baixo do cartaz e viu que trazia a assinatura do general Galliéni, comandante militar da cidade. Galliéni, um oficial veterano e linha-dura, havia sido conclamado a abandonar a aposentadoria. Era famoso por suas reuniões em que ninguém podia se sentar: segundo ele, as pessoas decidiam mais rápido assim.
Como de hábito, sua mensagem era concisa:
Os membros do Governo da República
deixaram Paris para renovar
as forças de defesa nacionais.
Fitz ficou assombrado. O governo tinha fugido! Os dias anteriores foram marcados por boatos de que os ministros iriam bater em retirada para Bordeaux, mas os políticos haviam hesitado, pois não queriam abandonar a capital. Agora, porém, tinham ido embora. Era um péssimo sinal.
O restante do comunicado possuía um tom desafiador:
Fui incumbido da tarefa
de defender Paris do invasor.
Então, no fim das contas, Paris não vai se render, pensou Fitz. A cidade vai lutar. Isso era ótimo! Com certeza favorecia os interesses britânicos. Se a capital tinha de cair, que pelo menos o inimigo fosse obrigado a pagar caro pela conquista.
Dever este que cumprirei
sejam quais forem as consequências.
Fitz não pôde deixar de sorrir. Deus abençoe os veteranos.
As reações das pessoas à sua volta eram variadas. Alguns comentários eram de admiração. Galliéni era um lutador e não deixaria que tomassem Paris, disse alguém em tom de satisfação. Outros se mostravam mais realistas. O governo nos abandonou, lamentou uma mulher, concluindo que os alemães chegariam a qualquer momento. Um homem com uma maleta contou que havia mandado a esposa e os filhos para a casa do irmão no interior. Uma mulher bem-vestida disse ter estocado 30 quilos de feijão no armário da cozinha.
Fitz, por sua vez, sentiu apenas que a contribuição britânica ao esforço de guerra e sua participação nela haviam se tornado mais importantes do que nunca.
Com uma profunda sensação de mau agouro, conduziu o carro até o Ritz.
Entrou no saguão do hotel e foi até um telefone público. De lá, ligou para a embaixada britânica e deixou um recado para o embaixador, contando-lhe sobre o comunicado de Galliéni, caso a notícia ainda não tivesse chegado à rue du Faubourg Saint-Honoré.
Ao sair da cabine, topou com o ajudante de Sir John, coronel Hervey.
Hervey olhou para o smoking de Fitz e disse:
– Major Fitzherbert! Quer me explicar por que está vestido assim?
– Bom dia, coronel – disse Fitz, fazendo questão de não responder à pergunta. Era evidente que havia passado a noite fora.
– Ora essa, são nove da manhã! Por acaso não sabe que estamos em guerra?
Mais uma pergunta que não precisava de resposta. Calmo, Fitz perguntou:
– Posso fazer alguma coisa pelo senhor?
Hervey era um brigão que detestava aqueles que não conseguia intimidar.
– Deixe de insolência, major – respondeu ele. – Já estamos ocupados demais com esses malditos visitantes de Londres interferindo em tudo.
Fitz arqueou uma das sobrancelhas.
– Lorde Kitchener é o ministro da Guerra.
– Os políticos deveriam nos deixar fazer nosso trabalho. Mas foram atiçados por alguém com amigos importantes. – Ele parecia desconfiar de Fitz, mas não tinha coragem de dizer às claras.
– Não me diga que o senhor ficou surpreso com o fato de o Departamento de Guerra se mostrar preocupado – disse Fitz. – Dez dias de descanso, com os alemães às portas da cidade!
– Os homens estão exaustos!
– Daqui a 10 dias a guerra pode muito bem ter acabado. Para que nós estamos aqui, se não é para salvar Paris?
– Kitchener tirou Sir John de seu quartel-general em um dia de combate crucial – disparou Hervey.
– Pelo que vi, Sir John não estava com tanta pressa assim de voltar para junto de suas tropas – rebateu Fitz. – Na noite em questão, eu o vi jantando aqui mesmo no Ritz. – Sabia que estava sendo desaforado, mas não conseguia se controlar.
– Suma da minha frente – disse Hervey.
Fitz deu meia-volta e subiu a escada.
Não estava tão despreocupado quanto fingira estar. Nada o faria baixar a crista para idiotas como Hervey, mas era importante para ele ter uma carreira militar bem-sucedida. Detestava a ideia de que as pessoas talvez comentassem que ele não era um homem da mesma categoria do pai. Hervey não tinha grande serventia para o Exército porque gastava todo o seu tempo e energia favorecendo seus protegidos e sabotando seus rivais, mas, por outro lado, tinha o poder de arruinar as carreiras dos homens que estivessem concentrados em outros assuntos, tais como ganhar a guerra.
Fitz ficou remoendo aquilo enquanto tomava banho, fazia a barba e vestia seu uniforme cáqui de major dos Fuzileiros Galeses. Sabendo que provavelmente não comeria nada até a hora do jantar, ligou para o serviço de quarto e pediu uma omelete acompanhada de mais café.
Às dez em ponto, seu dia de trabalho começou e ele tirou da cabeça o odioso Hervey. O tenente Murray, um escocês jovem e sagaz, chegou do quartel-general da Grã-Bretanha, trazendo para a suíte de Fitz a poeira da rua e o relatório de reconhecimento aéreo daquela manhã.
Fitz traduziu o documento para o francês rapidamente e o redigiu com sua caligrafia clara e bem desenhada no papel de carta azul-claro do Ritz. Todas as manhãs aviões britânicos sobrevoavam as posições alemãs e registravam a direção em que as forças inimigas estavam se movendo. Cabia a Fitz transmitir essa informação ao general Galliéni o mais depressa possível.
Quando estava atravessando o saguão do hotel, foi chamado pelo porteiro-chefe para atender a um telefonema.
A voz que perguntou “É você, Fitz?” soou distante e distorcida, mas, para seu espanto, era a inconfundível voz de sua irmã Maud.
– Como você conseguiu ligar para cá? – perguntou ele. Somente o governo e os militares podiam telefonar de Londres para Paris.
– Estou na sala de Johnny Remarc, no Departamento de Guerra.
– Que bom ouvir sua voz – disse Fitz. – Como você está?
– Estão todos muito preocupados por aqui – respondeu ela. – No início, os jornais publicavam apenas notícias boas. Só quem conhecesse um pouco de geografia entendia que, depois de cada vitória honrosa dos franceses, os alemães pareciam ter avançado mais 80 quilômetros pelo território da França. Mas, no domingo, o Times publicou uma edição especial. Não é curioso? O jornal diário é tão cheio de mentiras que, quando resolvem dizer a verdade, eles precisam circular uma edição extra.
Ela estava tentando ser espirituosa e cínica, mas Fitz conseguia detectar o medo e a raiva ocultos.
– O que a edição especial dizia?
– Ela mencionava o nosso “exército enfraquecido e em franca retirada”. Asquith está uma fera. Agora todos imaginam que Paris vá cair a qualquer momento. – Então, perdendo a fachada de tranquilidade, Maud deixou escapar um soluço ao perguntar: – Fitz, você vai ficar bem?
Ele não podia mentir para a irmã.
– Não sei. O governo se transferiu para Bordeaux. Sir John French levou uma bronca feia, mas continua aqui.
– Sir John deu queixa ao Departamento de Guerra de que Kitchener foi a Paris vestido com um uniforme de marechal de campo, o que foi uma quebra de etiqueta porque ele agora é ministro do governo e, portanto, civil.
– Meu Deus. Em uma hora dessas, ele fica pensando em etiqueta! Por que não o demitiram?
– Segundo Johnny, as pessoas veriam isso como um reconhecimento de que fracassamos.
– E se Paris for tomada pelos alemães? Como as pessoas verão isso?
– Ai, Fitz! – Maud começou a chorar. – E o bebê que Bea está esperando... o seu filho?
– Como vai Bea? – perguntou Fitz, sentindo-se culpado ao recordar onde havia passado a noite.
Maud fungou e engoliu em seco. Mais calma, falou:
– Bea está passando bem e parou de ter aqueles enjoos matinais desagradáveis.
– Diga a ela que estou com saudades.
Houve um chiado de interferência e outra voz entrou na linha por alguns segundos, desaparecendo em seguida. Isso significava que a ligação poderia cair a qualquer momento. Quando Maud tornou a falar, sua voz estava chorosa:
– Fitz, quando isso vai terminar?
– Nos próximos dias – respondeu Fitz. – De uma forma ou de outra.
– Por favor, cuide-se bem!
– Não se preocupe.
O telefone ficou mudo.
Fitz pôs o fone no gancho, deu uma gorjeta ao porteiro-chefe e saiu em direção à Place Vendôme.
Ele entrou no carro e saiu da praça. Maud o deixara perturbado ao mencionar a gravidez de Bea. Fitz estava disposto a morrer por seu país e esperava morrer com bravura, mas queria conhecer seu bebê. Era um pai de primeira viagem e estava ansioso para conhecer o filho, vê-lo aprender e crescer, ajudá-lo a se tornar adulto. Não queria que seu filho ou filha fosse criado sem pai.
Ele atravessou o rio Sena até o complexo de edifícios militares conhecido como Les Invalides. Galliéni havia estabelecido seu quartel-general em uma escola das cercanias chamada Lycée Victor-Duruy, que ficava atrás de um bosque. A entrada era muito bem vigiada por sentinelas vestidos com dólmãs de um azul vivo e calças e barretes vermelhos, uma roupa muito mais elegante do que o uniforme cáqui cor de lama do Exército britânico. Os franceses ainda não haviam percebido que a precisão dos fuzis modernos fazia com que os soldados de hoje em dia precisassem desaparecer em meio à paisagem.
Os guardas já conheciam Fitz, de modo que ele entrou direto no prédio. Era uma escola para meninas, com desenhos de animais de estimação e flores e verbos latinos conjugados em quadros-negros que haviam sido afastados do caminho. Os fuzis das sentinelas e as botas dos oficiais pareciam uma ofensa à delicadeza que antes reinava ali.
Fitz foi imediatamente para a sala de reuniões. Logo que entrou, sentiu o clima de entusiasmo. Na parede, havia um grande mapa da região metropolitana da França, no qual as posições dos exércitos haviam sido marcadas com alfinetes. Galliéni era um homem alto, magro e aprumado, apesar do câncer de próstata que o levara a se aposentar em fevereiro. De volta à sua farda, ele examinava o mapa com uma expressão agressiva através do pincenê.
Fitz bateu continência e cumprimentou com um aperto de mão, ao estilo francês, o major Dupuys, seu equivalente no Exército aliado. Em seguida, perguntou-lhe num sussurro o que estava acontecendo.
– Nós estamos seguindo Von Kluck – falou Dupuys.
Galliéni tinha uma esquadrilha de nove aeronaves velhas que vinha usando para monitorar os movimentos do exército invasor. O general Von Kluck comandava o Primeiro Exército, que era a força terrestre alemã mais próxima de Paris.
– O que vocês descobriram? – perguntou Fitz.
– Recebemos dois relatórios. – Dupuys apontou para o mapa. – Nosso reconhecimento aéreo indica que Von Kluck está indo para sudeste, em direção ao rio Marne.
Isso confirmava o relatório dos britânicos. Caso mantivesse essa trajetória, o Primeiro Exército passaria a leste de Paris. E, como Von Kluck comandava a ala direita dos alemães, isso significava que todas as suas tropas iriam passar ao largo da cidade. Será que Paris seria poupada afinal?
– Temos também um relatório de um batedor da cavalaria que sugere o mesmo – continuou Dupuys.
Fitz assentiu, pensativo.
– Na teoria militar alemã, é preciso antes destruir o exército inimigo, para só depois invadir as cidades.
– Mas você não está vendo? – indagou Dupuys com animação. – Eles estão deixando o flanco exposto!
Fitz estava preocupado demais com o destino de Paris para pensar nisso. Agora percebia que Dupuys estava certo e que esse era o motivo do clima de entusiasmo. Se as informações da inteligência estivessem corretas, Von Kluck havia cometido um erro militar clássico. O flanco de um exército era mais vulnerável do que a sua frente. Atacá-lo por ali era como lhe dar uma punhalada nas costas.
O que levara Von Kluck a cometer aquele erro? Ele deveria pensar que os franceses estavam tão enfraquecidos que seriam incapazes de contra-atacar.
De qualquer forma, estava enganado.
Fitz dirigiu a palavra ao general.
– Creio que isto aqui vai interessá-lo bastante, senhor – falou, entregando-lhe um envelope. – É o nosso reconhecimento aéreo de hoje pela manhã.
– Ah! – exclamou Galliéni, empolgado.
Fitz se aproximou do mapa.
– O senhor me permite, meu general?
O general meneou a cabeça, aquiescendo. Os britânicos não eram muito queridos, mas qualquer informação era bem-vinda.
Após consultar o original em inglês, Fitz disse:
– Segundo as nossas informações, o exército de Von Kluck está aqui. – Ele pregou outro alfinete no mapa. – E está se movendo para cá. – Aquilo confirmava o que os franceses já estavam pensando.
A sala ficou em silêncio por alguns instantes.
– Então é verdade – falou Dupuys em voz baixa. – Eles expuseram seu flanco.
Os olhos do general Galliéni cintilavam por trás do pincenê.
– Então – disse ele –, esta é a nossa hora de atacar.
O auge do pessimismo de Fitz foi às três da manhã, deitado ao lado do corpo esbelto de Gini, quando o sexo já havia terminado e ele se viu sentindo saudades da esposa. Naquela hora, pensou, desanimado, que Von Kluck com certeza iria se dar conta do próprio erro e reverter a trajetória de seu exército.
Na manhã seguinte, contudo, sexta-feira, 4 de setembro, para alegria da resistência francesa, Von Kluck prosseguiu rumo ao sudeste. Isso bastou para o general Joffre. Ele deu ordens para o Sexto Exército francês sair de Paris na manhã seguinte e atacar a retaguarda dos alemães.
Os britânicos, no entanto, continuaram a recuar.
À noite, quando Fitz encontrou Gini no Clube Albert, ele estava desesperado.
– Esta é a nossa última oportunidade – explicou ele enquanto tomava um coquetel de champanhe que não melhorava em nada seu humor. – Se conseguirmos abalar os alemães seriamente agora que eles estão exaustos e que suas linhas de abastecimento estão mais distantes do que nunca, podemos deter seu avanço. Mas, se este contra-ataque fracassar, Paris vai cair.
Sentada em um dos bancos do bar, ela cruzou as pernas compridas com um leve roçar das meias de seda.
– Mas por que você está tão abatido?
– Porque, numa hora destas, os britânicos estão recuando. Se Paris cair agora, nós nunca superaremos tanta vergonha.
– O general Joffre precisa enfrentar Sir John e exigir que os britânicos lutem! Você precisa falar com Joffre pessoalmente!
– Ele não recebe majores britânicos. Além do mais, é bem provável que achasse que é algum truque de Sir John. O que me deixaria encrencado, por mais que eu esteja me lixando para isso.
– Então fale com um dos conselheiros dele.
– O problema é o mesmo. Eu não posso entrar no quartel-general do Exército francês e anunciar que eles estão sendo traídos pelos britânicos.
– Mas poderia ter uma conversa discreta com o general Lourceau, sem que ninguém ficasse sabendo.
– Como?
– Ele está sentado bem ali.
Fitz acompanhou o olhar de Gini e viu um francês de cerca de 60 anos, à paisana, sentado à mesa com uma moça de vestido vermelho.
– Ele é muito simpático – acrescentou Gini.
– Você o conhece?
– Nós fomos amigos durante algum tempo, mas ele preferiu Lizette.
Fitz hesitou. Mais uma vez, estava cogitando passar por cima de seus superiores. Porém aquela não era hora para sutilezas. Paris estava em jogo. Ele precisava fazer tudo ao seu alcance.
– Apresente-me a ele – falou.
– Me dê só um minuto. – Com elegância, Gini desceu do banco e atravessou o salão, rebolando de leve ao som do piano que tocava um ragtime, até chegar à mesa do general. Deu-lhe um beijo nos lábios, sorriu para a moça que o acompanhava e sentou-se. Após alguns instantes de conversa animada, ela acenou para Fitz.
Lourceau se levantou e os dois homens trocaram um aperto de mãos.
– É uma honra conhecê-lo, senhor – disse Fitz.
– Este não é um lugar para conversas sérias – falou o general. – Mas Gini me garantiu que o senhor tem algo urgentíssimo para me dizer.
– Não tenha dúvidas – respondeu Fitz, sentando-se.
No dia seguinte, Fitz foi ao acampamento britânico na comuna de Melun, 40 quilômetros a sudeste de Paris, onde ficou sabendo, para sua consternação, que a Força Expedicionária continuava a recuar.
Talvez sua mensagem não tivesse chegado aos ouvidos do general Joffre. Ou talvez sim e Joffre simplesmente achasse que não havia nada a fazer.
Fitz entrou em Vaux-le-Pénil, o magnífico castelo em estilo Luís XV que Sir John vinha usando como quartel-general, e topou com o coronel Hervey no saguão.
– Senhor, posso perguntar por que estamos recuando quando nossos aliados estão lançando um contra-ataque? – disse ele com a maior educação possível.
– Não, não pode – respondeu Hervey.
Fitz insistiu, engolindo a raiva:
– Os franceses acham que eles e os alemães estão em pé de igualdade, e que mesmo o nosso pequeno contingente pode fazer a diferença.
Hervey soltou uma risada sarcástica.
– Tenho certeza de que eles acham isso. – Ele falava como se os franceses não tivessem o direito de exigir a ajuda de seus aliados.
Fitz sentiu que estava perdendo o autocontrole.
– Paris pode cair por causa da nossa covardia!
– Não se atreva a usar essa palavra, major.
– Nós fomos mandados para cá para defender a França. Esta pode ser a batalha decisiva. – Fitz não pôde deixar de erguer a voz. – Se Paris for perdida, e com ela a França inteira, como iremos explicar, quando voltarmos para casa, que estávamos descansando na ocasião?
Em vez de responder, Hervey olhou por cima do ombro de Fitz. Este se virou e viu uma silhueta pesada, vagarosa, usando o uniforme francês: um dólmã preto desabotoado na cintura grossa, uma calça vermelha mal ajustada na altura dos joelhos e um quepe vermelho e dourado de general bem enterrado na cabeça. Olhos sem cor encimados por sobrancelhas grisalhas se voltaram por um instante para os dois. Fitz reconheceu o general Joffre.
Depois que o general passou com lentidão por eles, acompanhado por seu séquito, Hervey perguntou:
– O senhor é responsável por isso?
Fitz sentia-se orgulhoso demais para mentir.
– Provavelmente – falou.
– Isto não vai ficar assim – disse Hervey, dando meia-volta e saindo apressado atrás de Joffre.
Sir John recebeu Joffre em uma pequena sala na presença de apenas alguns oficiais, sendo que Fitz não estava entre eles. Ele ficou esperando no refeitório dos oficiais, perguntando-se o que o general francês estaria dizendo e se ele conseguiria convencer Sir John a pôr fim à vergonhosa debandada britânica e participar do ataque.
Foi informado do resultado duas horas depois pelo tenente Murray.
– Parece que Joffre tentou de tudo – relatou Murray. – Ele implorou, chorou e até insinuou que a honra britânica corria o risco de ser maculada para sempre. E conseguiu o que queria. Amanhã nos deslocaremos para o norte.
Fitz sorriu de orelha a orelha.
– Aleluia! – bradou.
No minuto seguinte, o coronel Hervey se aproximou deles. Fitz se levantou em cortesia.
– O senhor foi longe demais – falou Hervey. – O general Lourceau me contou tudo. Ele achou que estava lhe fazendo um elogio.
– E eu o aceito de bom grado – disse Fitz. – O desfecho da situação indica que foi a coisa certa a fazer.
– Escute aqui, Fitzherbert – retrucou Hervey, baixando a voz. – Seus dias estão contados, seu merda. Você foi desleal para com um oficial superior. Seu nome agora carrega uma mancha negra que nunca será apagada. Jamais será promovido, nem que esta guerra dure um ano. É major hoje e o será para o resto da vida.
– Obrigado por sua franqueza, coronel – disse Fitz. – Mas eu entrei para o Exército para ganhar batalhas, não promoções.
Aos olhos de Fitz, a mobilização organizada por Sir John no domingo foi constrangedora de tão cautelosa, mas, para seu alívio, bastou para forçar Von Kluck a reagir enviando tropas das quais não poderia abrir mão com facilidade. Os alemães agora estavam lutando em duas frentes, oeste e sul: o pesadelo de qualquer comandante.
Fitz acordou otimista na segunda-feira, após uma noite dormida sobre um cobertor no chão do castelo. Tomou o café da manhã no refeitório dos oficiais e ficou esperando ansiosamente os aviões de reconhecimento voltarem de sua incursão matinal. A guerra alternava momentos de correria enlouquecida com outros de um marasmo inútil. No terreno do castelo havia uma igreja supostamente construída no ano 1000, de modo que ele foi até lá dar uma olhada, embora nunca houvesse entendido direito que graça as pessoas viam em igrejas antigas.
O relatório do reconhecimento foi apresentado no magnífico salão com vista para o parque e para o rio. Sentados em cadeiras dobráveis diante de uma mesa de tábua improvisada, os oficiais estavam cercados por decorações luxuosas do século XVIII. Sir John tinha um queixo proeminente e uma boca que, por baixo do bigode branco e cheio, parecia estar o tempo todo contorcida em uma expressão de orgulho ferido.
Os aviadores relataram haver um vazio diante da força britânica, pois as colunas alemãs estavam se afastando em direção ao norte.
Fitz ficou exultante. O contra-ataque aliado fora inesperado e, ao que tudo indicava, os alemães tinham sido pegos desprevenidos. É claro que logo estariam reorganizados, mas por ora pareciam estar em apuros.
Ele esperava que Sir John fosse ordenar um avanço rápido, mas, para sua decepção, o comandante se limitou a reiterar os objetivos modestos estabelecidos anteriormente.
Fitz escreveu seu relatório em francês e depois pegou o carro. Percorreu os 40 quilômetros até Paris o mais rápido que pôde, no contrafluxo dos caminhões, carros e veículos puxados a cavalo que saíam da cidade, todos abarrotados de gente e transportando pilhas de bagagens, fugindo rumo ao sul para escapar dos alemães.
Em Paris, foi atrasado por uma tropa de soldados argelinos de pele escura que atravessava a cidade, marchando de uma estação de trem para outra. Seus oficiais seguiam montados em mulas e usavam capas vermelhas vistosas. À medida que os soldados passavam, mulheres entregavam-lhes flores e frutas e donos de cafés traziam-lhes bebidas geladas.
Quando a tropa acabou de passar, Fitz foi até Les Invalides e entrou na escola carregando seu relatório.
Mais uma vez, a equipe de reconhecimento britânica confirmou os relatórios franceses. Algumas forças alemãs estavam recuando.
– Precisamos intensificar o ataque! – disse o velho general. – Onde estão os britânicos?
Fitz se encaminhou para o mapa, indicando a posição britânica e aonde a marcha deveria chegar ao fim do dia, segundo as ordens de Sir John.
– Não é suficiente! – disse Galliéni, possesso. – Vocês têm que ser mais agressivos! Precisamos que ataquem para que Von Kluck fique ocupado demais e não consiga reforçar o flanco. Quando vocês vão atravessar o rio Marne?
Fitz não sabia dizer. Sentiu vergonha. Concordava com cada uma das palavras mordazes que Galliéni dizia, mas, como não podia admitir isso, falou apenas:
– Vou enfatizar isso com toda a firmeza para Sir John, meu general.
Galliéni, no entanto, já estava pensando em como compensar a inoperância britânica.
– Nós enviaremos a Divisão 7 da Unidade 4 para reforçar o exército de Manoury no rio Ourcq hoje à tarde – falou com determinação.
Na mesma hora, seus ajudantes começaram a redigir ordens.
Então o coronel Dupuys falou:
– Meu general, nós não temos trens suficientes para levar todos para lá até o final do dia.
– Então usem carros – disse Galliéni.
– Carros? – Dupuys parecia perplexo. – Onde vamos arranjar tantos carros assim?
– Aluguem táxis!
Todos na sala o encararam. Será que o general tinha enlouquecido?
– Telefonem para o chefe de polícia – disse Galliéni. – Peçam para ele mandar seus homens pararem todos os táxis da cidade, expulsarem os passageiros de dentro deles e instruírem os motoristas a virem para cá. Nós vamos encher os táxis de soldados e mandá-los para o campo de batalha.
Ao ver que Galliéni estava falando sério, Fitz sorriu. Era desse tipo de atitude que ele gostava. Vamos fazer o que for preciso, contanto que obtenhamos a vitória.
Dupuys encolheu os ombros e pegou um telefone.
– Por favor, ligue para o chefe de polícia imediatamente – disse ele.
Preciso ver isso, pensou Fitz.
Ele saiu da escola e acendeu um charuto. Não precisou esperar muito. Em questão de minutos, um táxi Renault vermelho atravessou a ponte Alexandre III, contornou o amplo gramado ornamental e parou em frente ao prédio principal. Ele foi seguido por mais dois outros, depois por mais uma dúzia, e então por mais cem.
Em duas horas, várias centenas de táxis vermelhos idênticos estavam parados em frente aos Invalides. Fitz nunca tinha visto coisa parecida.
Recostados em seus carros, os taxistas fumavam cachimbo e conversavam animadamente, aguardando instruções. Cada motorista tinha uma teoria diferente sobre o motivo que os trouxera até ali.
Algum tempo depois, Dupuys saiu da escola e atravessou a rua com um megafone em uma das mãos e um maço de formulários de requisição do Exército na outra. Ele subiu em cima do capô de um táxi e todos os motoristas se calaram.
– O comandante militar de Paris precisa de 500 táxis para irem daqui até Blagny – gritou ele pelo megafone.
Os motoristas o encararam em meio a um silêncio incrédulo.
– Lá cada carro deverá apanhar cinco soldados e transportá-los até Nanteuil.
A comuna de Nanteuil ficava cerca de 50 quilômetros a leste de Paris, colada à frente de combate. Os taxistas começaram a entender. Entreolharam-se, meneando as cabeças e sorrindo. Fitz sentiu que eles estavam contentes por participar do esforço de guerra, sobretudo de forma tão incomum.
– Por favor, antes de partirem, peguem um destes formulários aqui e preencham para solicitar seu pagamento na volta.
Aquilo causou um burburinho entre os motoristas. Eles ainda seriam pagos! Era o que faltava para garantir a colaboração de todos.
– Quando 500 carros tiverem partido, darei as instruções para os próximos 500. Vive Paris! Vive la France!
Os taxistas começaram a vibrar com animação e cercaram Dupuys para apanhar seus formulários. Encantado, Fitz ajudou a distribuir os documentos.
Logo os pequenos carros começaram a partir, manobrando em frente ao grande prédio e tomando a direção da ponte sob a luz do sol, buzinando entusiasmados, como uma longa e reluzente corda salva-vidas vermelha para as forças na frente de batalha.
Os britânicos levaram três dias para marchar 40 quilômetros. Fitz ficou envergonhado. As tropas avançavam praticamente sem resistência: se tivessem andado mais depressa, poderiam ter desferido um golpe decisivo.
Na manhã da quarta-feira, dia 9, porém, ele encontrou os homens de Galliéni em clima de otimismo. Von Kluck estava recuando.
– Os alemães estão com medo! – disse o coronel Dupuys.
Fitz não acreditava que os alemães estivessem com medo, e o mapa proporcionava uma explicação mais plausível. Os britânicos, por mais lentos e tímidos que fossem, haviam marchado até uma brecha que se abrira entre o Primeiro e o Segundo Exército alemães, quando Von Kluck havia deslocado suas tropas para oeste para resistir ao ataque vindo de Paris.
– Nós encontramos um ponto fraco e estamos tentando expandi-lo – disse Fitz com um frêmito de esperança na voz.
Ele disse a si mesmo para se acalmar. Os alemães tinham vencido todas as batalhas até ali. Por outro lado, suas linhas de abastecimento estavam distantes, seus homens, exaustos e seu contingente havia sido reduzido pela necessidade de enviar reforços à Prússia Oriental. Em contraste, os franceses daquela zona haviam recebido pesados reforços e praticamente não precisavam se preocupar com linhas de abastecimento, uma vez que estavam em seu próprio território.
As esperanças de Fitz andaram para trás quando os britânicos pararam a 8 quilômetros do rio Marne. Por que Sir John estava parando? Mal havia encontrado resistência!
Os alemães, no entanto, pareceram não notar a timidez dos britânicos, pois continuavam a recuar, de modo que as esperanças se renovaram no Lycée.
Conforme as sombras das árvores se alongavam do lado de fora das janelas da escola e os últimos relatórios do dia chegavam, uma sensação de júbilo contido começou a tomar conta dos ajudantes de Galliéni. Ao fim do dia, os alemães estavam em franca retirada.
Fitz mal conseguia acreditar. O desespero da semana anterior havia se transformado em esperança. Ele se sentou em uma cadeira pequena demais para o seu corpo e ficou encarando o mapa pregado na parede. Sete dias antes, a linha alemã parecia um trampolim para o ataque que decidiria o conflito; agora, parecia uma parede diante da qual eles haviam sido obrigados a recuar.
Quando o sol se pôs por trás da Torre Eiffel, os Aliados não haviam obtido exatamente uma vitória, mas pela primeira vez em semanas o avanço alemão havia cessado.
Dupuys abraçou Fitz, beijando-o em seguida nas duas faces, e pela primeira vez Fitz não se importou nem um pouco com isso.
– Nós conseguimos detê-los – disse Galliéni, e, para surpresa de Fitz, lágrimas reluziram por trás do pincenê do general. – Conseguimos detê-los.
Logo após a batalha do Marne, ambos os lados começaram a cavar trincheiras.
O calor de setembro deu lugar à chuva fria e deprimente de outubro. O impasse na extremidade oriental da linha de batalha se alastrou irremediavelmente para oeste, como uma paralisia que toma conta do corpo de um moribundo.
A batalha decisiva do outono foi travada pelo domínio da cidade belga de Ypres, no extremo oeste da linha, a pouco mais de 30 quilômetros do mar. O ataque alemão foi feroz, uma tentativa radical de obrigar o flanco das forças britânicas a desviar sua rota. O combate durou quatro semanas. Ao contrário de todas as batalhas anteriores, esta foi estática, com os oponentes entrincheirados contra a artilharia inimiga e saindo apenas para incursões suicidas contra as metralhadoras do adversário. No fim das contas, os britânicos foram salvos por reforços, incluindo uma unidade de indianos que tremiam de frio em seus uniformes tropicais. Quando a batalha terminou, 75 mil soldados britânicos haviam morrido e a Força Expedicionária estava arrasada; mas os Aliados haviam conseguido fechar uma barricada defensiva que ia da fronteira suíça ao canal da Mancha e os invasores alemães haviam sido detidos.
No dia 24 de dezembro, um Fitz sorumbático se encontrava no quartel-general britânico na cidade de Saint-Omer, não muito longe de Calais. Lembrou-se da loquacidade com que ele e outros haviam garantido a seus homens que todos estariam em casa para o Natal. Agora, parecia que a guerra poderia durar um ano, ou até mais. Ambos os exércitos passavam dia após dia enfurnados em suas trincheiras, comendo comida ruim, acometidos por disenteria, gangrena nos pés e piolhos, e matando inutilmente os ratos que engordavam à custa dos cadáveres espalhados pelo território que separava as frentes inimigas, chamado de terra de ninguém. Fitz já não conseguia se lembrar dos motivos, antes tão claros para ele, que haviam levado a Grã-Bretanha a entrar em guerra.
Naquele dia, a chuva deu trégua e o tempo esfriou. Sir John mandou um alerta para todas as unidades de que o inimigo estava cogitando um ataque natalino. Fitz sabia que o alerta era totalmente inventado: não havia qualquer informação de inteligência para sustentá-lo. A verdade era que Sir John não queria que os homens relaxassem a vigilância no dia de Natal.
Cada soldado iria receber um presente da princesa Maria, filha de 17 anos do rei e da rainha britânicos. Ele consistia em uma caixa de latão gravada contendo fumo e cigarros, um retrato da princesa e um cartão de Natal do rei. Os não fumantes, sikhs e enfermeiras, por sua vez, receberiam como presente chocolate ou balas em vez de tabaco. Fitz ajudou a distribuir as caixas para os Fuzileiros Galeses. No final do dia, como já era tarde demais para retornar ao relativo conforto de Saint-Omer, ele teve de passar a noite no quartel-general do Quarto Batalhão, um abrigo subterrâneo úmido cerca de meio quilômetro atrás da frente de combate, lendo uma história de Sherlock Holmes e fumando os charutos pequenos e finos que preferia atualmente. Não eram tão bons quanto seus Panatelas, mas ele quase não tinha mais tempo de fumar os charutos maiores inteiros. Estava acompanhado de Murray, que fora promovido a capitão depois da batalha de Ypres. Fitz continuava com a mesma patente: Hervey vinha mantendo sua promessa.
Assim que a noite caiu, ele ficou surpreso ao escutar tiros esparsos de fuzil. Mais tarde, constatou-se que os homens tinham visto luzes e pensado que o inimigo estivesse tentando realizar um ataque surpresa. Na verdade, as luzes eram lanternas coloridas que os alemães estavam usando para decorar o parapeito de suas trincheiras.
Murray, que passara algum tempo na frente de combate, estava falando sobre os soldados indianos que defendiam o setor mais próximo.
– Coitados, eles chegaram aqui com seus uniformes de verão, porque alguém lhes disse que a guerra terminaria antes de o tempo esfriar – disse ele. – Mas vou lhe contar uma coisa, Fitz: esses soldados crioulinhos são danados de engenhosos. Você sabe que temos pedido ao Departamento de Guerra para nos dar morteiros como os que os alemães têm, daqueles que lançam granadas por cima do parapeito da trincheira? Pois bem, os indianos fabricaram seus próprios morteiros com sobras de canos de ferro fundido. Parecem aqueles pedaços de encanamento remendado que você vê nos banheiros dos pubs, mas funciona!
Pela manhã, a névoa estava gelada e o chão duro feito pedra. Fitz e Murray distribuíram os presentes da princesa ao raiar do dia. Alguns homens estavam reunidos em volta do fogo para se aquecer, mas disseram estar gratos pelo gelo, que era melhor do que a lama, sobretudo para os que tinham os pés gangrenados. Fitz percebeu que alguns conversavam em galês entre si, embora sempre se dirigissem aos oficiais em inglês.
A linha alemã, a uns 400 metros de distância, estava escondida por uma bruma matinal da mesma cor que os uniformes germânicos: um azul desbotado puxado para o prateado, conhecido como “cinza de campanha”. Fitz ouviu música ao longe: os alemães estavam cantando hinos natalinos. Fitz não tinha muito ouvido para música, mas pensou reconhecer “Noite feliz”.
Ele voltou ao abrigo subterrâneo para tomar um café da manhã horroroso, composto de pão dormido e presunto enlatado, na companhia dos outros oficiais. Depois de comer, saiu para fumar do lado de fora. Nunca havia se sentido tão deprimido na vida. Pensou no desjejum que estaria sendo servido em Tŷ Gwyn naquele momento: linguiças quentes, ovos frescos, rins de porco ao molho picante, peixe defumado, torradas amanteigadas e um café bem cheiroso com creme. Ele ansiava por roupas de baixo limpas, por uma camisa bem passada e por um terno de lã macia. Queria se sentar ao lado da lareira acesa da sala de estar matinal sem nada melhor para fazer que ler as piadas idiotas da revista Punch.
Murray veio se juntar a ele do lado de fora do abrigo e disse:
– Telefone, major. É do quartel-general.
Fitz ficou surpreso. Alguém havia se esforçado bastante para localizá-lo. Esperava que não fosse por causa de alguma briga surgida entre os franceses e os britânicos enquanto ele estava distribuindo presentes de Natal. Com o rosto fechado de preocupação, abaixou a cabeça para entrar no abrigo e empunhou o telefone de campanha.
– Fitzherbert falando.
– Bom dia, major – disse uma voz que ele não reconheceu. – Aqui é o capitão Davies. O senhor não me conhece, mas me pediram para lhe transmitir um recado de casa.
De casa? Fitz torceu para não serem más notícias.
– É muita gentileza sua, capitão – disse ele. – Qual o recado?
– Sua mulher deu à luz um menino muito saudável, senhor. Mãe e filho passam bem.
– Oh! – Fitz sentou-se de pronto em uma caixa. Ainda era cedo para o bebê nascer; estava uma ou duas semanas adiantado. Bebês prematuros eram vulneráveis. Mas o recado dizia que o menino estava bem de saúde. E Bea também.
Fitz tivera um filho homem, e o condado havia ganhado um herdeiro.
– Major, o senhor está na linha? – perguntou o capitão Davies.
– Estou, estou – respondeu Fitz. – Só estou um pouco chocado. Ainda era cedo.
– Como hoje é Natal, senhor, achamos que a notícia poderia alegrá-lo.
– E me alegra mesmo, pode ter certeza!
– Permita-me ser o primeiro a lhe dar os parabéns.
– Muito gentil da sua parte – disse Fitz. – Obrigado. – Mas o capitão Davies já havia desligado.
Depois de alguns instantes, Fitz percebeu que os outros oficiais presentes o encaravam sem dizer nada. Por fim, um deles perguntou:
– Notícia boa ou ruim?
– Boa! – respondeu Fitz. – Maravilhosa, para falar a verdade. Eu sou pai.
Todos apertaram sua mão e lhe deram tapinhas nas costas. Embora ainda fosse cedo, Murray apanhou a garrafa de uísque e todos beberam à saúde do bebê.
– Como vai se chamar o menino? – perguntou Murray.
– Visconde de Aberowen, enquanto eu estiver vivo – respondeu Fitz, e então se deu conta de que Murray não estava perguntando sobre o título de nobreza do bebê, mas sim sobre seu nome de batismo. – George, em homenagem ao meu pai, e William em homenagem ao meu avô. O pai de Bea se chamava Petr Nikolaevich, então talvez ponhamos esses nomes também.
Murray pareceu achar graça.
– George William Peter Nicholas Fitzherbert, visconde de Aberowen – disse ele. – É nome para dar e vender!
Fitz aquiesceu, bem-humorado.
– Mais ainda se você pensar que ele deve ter só uns três quilos e meio.
Ele estava explodindo de orgulho e felicidade, e sentiu o impulso de compartilhar a notícia.
– Acho que vou até a frente de batalha – falou, quando finalmente terminaram o uísque. – Distribuir uns charutos para os soldados.
Ele saiu do abrigo e percorreu a trincheira de comunicação. Sentia-se eufórico. Não havia tiroteio e o ar estava gelado e limpo, exceto quando ele passou pela latrina. Foi então que se viu pensando não em Bea, mas em Ethel. Será que ela já havia tido o bebê? Estaria feliz na casa que comprara depois de extorquir o dinheiro de Fitz? Embora continuasse abismado com a forma dura como Ethel havia negociado com ele, não conseguia se esquecer de que era o seu filho que ela carregava no ventre. Torceu para que tivesse um parto seguro, como Bea.
Todos esses pensamentos desapareceram de sua mente quando ele chegou ao front. Ao fazer a curva para entrar na trincheira da linha de frente, teve um choque.
Não havia ninguém ali.
Ele percorreu a trincheira, contornando um dos recessos, depois o próximo, e não encontrou vivalma. Parecia uma história de fantasmas, ou um daqueles navios encontrados à deriva, intactos, porém sem nenhum tripulante.
Tinha de haver alguma explicação. Será que ocorrera algum ataque sobre o qual Fitz de alguma forma não tinha sido informado?
Ocorreu-lhe então olhar por sobre o parapeito.
Isso não era algo a se fazer de forma impensada. Muitos homens eram mortos em seu primeiro dia na linha de frente porque resolviam dar uma olhadinha por sobre o parapeito.
Fitz apanhou uma das pás de cabo curto usadas para cavar as trincheiras. Foi empurrando a pá para cima aos poucos, até ela passar pela borda. Então subiu no degrau de tiro e ergueu a cabeça devagar, até conseguir olhar pela brecha estreita entre o parapeito e a pá.
Ficou pasmo com o que viu.
Os homens estavam todos no deserto esburacado que compreendia a terra de ninguém. Mas não estavam lutando. Estavam reunidos em grupos, conversando.
Fitz achou que havia algo de estranho neles e, depois de alguns instantes, percebeu que alguns dos uniformes eram cáqui, enquanto os outros eram cinza de campanha.
Os homens estavam conversando com o inimigo.
Fitz largou a pá, ergueu a cabeça totalmente por sobre o parapeito e ficou olhando a cena. A terra de ninguém estava ocupada por centenas de soldados, britânicos e alemães, todos misturados, espalhando-se até onde sua vista alcançava, tanto para a esquerda quanto para a direita.
Aquilo não fazia o menor sentido.
Ele encontrou uma escada e atravessou o parapeito. Saiu marchando pela terra revirada. Os homens estavam mostrando fotografias de seus parentes e namoradas, oferecendo cigarros e tentando se comunicar uns com os outros com frases do tipo: “Eu, Robert, e você?”
Ele reconheceu dois sargentos, um britânico e outro alemão, muito entretidos em uma conversa. Cutucou o ombro do britânico.
– Ei, você! – falou. – O que acha que está fazendo?
O homem lhe respondeu com o sotaque monocórdio e gutural da região do cais do porto de Cardiff.
– Não sei como aconteceu exatamente, senhor. Alguns dos chucrutes subiram até o parapeito deles, desarmados, e gritaram “Feliz Natal”, e então um dos nossos rapazes fez a mesma coisa, daí eles foram andando uns na direção dos outros e, quando a gente se deu conta, todos estavam fazendo a mesma coisa.
– Mas não tem ninguém nas trincheiras! – disse Fitz, irado. – Não está vendo que isso pode ser um truque?
O sargento olhou para um lado da frente de batalha e depois para o outro.
– Não, senhor, para ser sincero, não vejo esse perigo – respondeu ele, despreocupado.
Fitz percebeu que ele tampouco. Como o inimigo poderia tirar vantagem do fato de as duas linhas de frente adversárias terem ficado amigas?
O sargento apontou para o alemão.
– Este é Hans Braun, senhor – disse ele. – Ele era garçom no Hotel Savoy de Londres. E fala inglês!
O sargento alemão bateu continência para Fitz.
– É um prazer conhecê-lo, major – disse ele. – Feliz Natal. – O homem tinha menos sotaque do que o sargento de Cardiff. Ele estendeu um cantil.
– Aceita um gole de schnapps?
– Meu Deus do céu – disse Fitz, afastando-se dali.
Não havia nada que ele pudesse fazer. Mesmo com a ajuda dos suboficiais, como aquele sargento galês, seria difícil dar fim àquilo. Sem ela, era impossível. Ele decidiu que era melhor relatar a situação a um superior e transferir o problema para outra pessoa.
No entanto, antes de conseguir ir embora, ouviu alguém chamar seu nome.
– Fitz! Fitz! É você mesmo?
A voz era conhecida. Ele se virou e viu um alemão se aproximando. Quando ele chegou perto, Fitz o reconheceu.
– Von Ulrich? – falou, assombrado.
– Em carne e osso! – Walter abriu um grande sorriso e estendeu a mão. Fitz a segurou sem pensar. Walter o cumprimentou vigorosamente. Ele estava mais magro, pensou Fitz, e sua pele clara estava castigada pelas intempéries. Imagino que eu também tenha mudado, pensou Fitz.
– Mas isso é incrível... – disse Walter. – Que coincidência!
– Fico feliz em ver você bem, com saúde – disse Fitz. – Embora imagine que não devesse ficar.
– Eu digo o mesmo!
– O que nós vamos fazer em relação a isso? – Fitz gesticulou na direção dos soldados que confraternizavam. – Acho preocupante.
– Eu concordo. Quando chegar amanhã, talvez não queiram atirar nos novos amigos.
– E o que faríamos se isso acontecesse?
– Precisamos urgentemente de uma batalha para que eles voltem ao normal. Se ambos os lados começarem a atacar pela manhã, logo os homens vão começar a se detestar de novo.
– Espero que tenha razão.
– E você, como está, velho amigo?
Fitz se lembrou da boa notícia que havia recebido e seu rosto se iluminou.
– Acabo de ser pai – disse. – Bea deu à luz um menino. Tome aqui um charuto.
Ambos acenderam seus charutos. Walter contou que estivera na frente oriental.
– Os russos são uns corruptos – disse ele com repulsa. – Os oficiais vendem suprimentos no mercado negro e deixam a infantaria passar fome e frio. Metade da população da Prússia Oriental está calçando botas do Exército russo compradas a preço de banana, enquanto os próprios soldados andam descalços.
Fitz falou de sua estadia em Paris.
– Seu restaurante preferido continua aberto, o Voisin – disse.
Os soldados deram início a uma partida de futebol, Grã-Bretanha contra Alemanha, empilhando as boinas de seus uniformes para marcar as traves dos gols.
– Preciso ir relatar o que está acontecendo – disse Fitz.
– Eu também – falou Walter. – Mas antes me diga uma coisa: como vai lady Maud?
– Bem, imagino.
– Ficaria muito feliz se você pudesse lhe transmitir as minhas lembranças.
Fitz ficou intrigado com a ênfase que Walter deu àquele comentário que, caso contrário, soaria tão banal.
– Naturalmente – respondeu. – Algum motivo especial?
Walter desviou o olhar.
– Logo antes de sair de Londres... eu dancei com ela no baile de lady Westhampton. Foi a última coisa civilizada que fiz antes desta verdammten guerra.
Walter parecia muito emocionado. Sua voz tremia, e era raríssimo ele resvalar para o alemão ao falar em outra língua. Talvez também houvesse sido contagiado pelo espírito natalino.
– Gostaria muito que ela soubesse que eu estava pensando nela no dia de Natal – prosseguiu Walter. Ele encarou Fitz com os olhos marejados. – Posso contar com você para dizer isso a ela, meu velho amigo?
– Pode, sim – respondeu Fitz. – Tenho certeza de que ela ficará muito contente.
Fevereiro de 1915
– Eu fui ao médico – falou a mulher ao lado de Ethel. – E disse a ele: “Minha xereca está coçando.”
Uma onda de risadas varreu o aposento. Ele ficava no andar de cima de uma pequena casa na região leste de Londres, perto de Aldgate. Vinte mulheres estavam sentadas diante de máquinas de costura em fileiras compactas, que se estendiam pelos dois lados de uma mesa de trabalho comprida. Não havia lareira e a única janela estava bem fechada para não deixar entrar o frio de fevereiro. As tábuas do piso estavam nuas. O reboco caiado das paredes se esfarelava de tão antigo e dava para ver as ripas atrás dele em alguns pontos. Com vinte mulheres respirando o mesmo ar, o cômodo ficava abafado, mas nunca parecia se aquecer, de modo que todas usavam chapéus e sobretudos.
Haviam acabado de fazer um intervalo, e os pedais sob seus pés estavam momentaneamente em silêncio. A mulher ao lado de Ethel era Mildred Perkins, uma londrina do East End que tinha a mesma idade que ela. Mildred era também a inquilina de Ethel. Teria sido uma moça bonita, não fossem os dentes da frente proeminentes. As piadas sujas eram sua especialidade. Ela prosseguiu:
– O médico então me disse: “Você não deveria dizer isso, é uma palavra feia.”
Ethel sorriu. Mildred sempre conseguia criar momentos de alegria na árdua jornada de trabalho de 12 horas. Ethel nunca tinha escutado esse tipo de conversa antes. Em Tŷ Gwyn, todos os empregados eram bem-educados. Aquelas londrinas eram capazes de dizer qualquer coisa. Ali havia mulheres de todas as idades e nacionalidades, sendo que algumas mal falavam inglês – incluindo duas refugiadas da Bélgica ocupada pelos alemães. A única coisa que todas tinham em comum era o fato de estarem desesperadas o suficiente para aceitar aquele tipo de emprego.
– Eu falei para ele: “O que eu deveria dizer então, doutor?” E ele me respondeu: “Diga que o seu dedo está coçando.”
Elas estavam costurando uniformes do Exército britânico, milhares de uniformes, túnicas e calças. Dia após dia, as peças de tecido cáqui grosso chegavam de uma fábrica na rua ao lado, grandes caixas de papelão cheias de mangas, costas e pernas, e as mulheres ali as costuravam antes de mandá-las para outra pequena fábrica, onde as roupas recebiam botões e casas. O pagamento era de acordo com o número de peças que terminavam.
– Então ele me perguntou: “O seu dedo coça o tempo todo, Sra. Perkins, ou só de vez em quando?”
Mildred fez uma pausa e as mulheres ficaram caladas, esperando o fim da piada.
– E eu falei: “Não, doutor, só quando eu mijo com ele.”
Todas explodiram em risos e exclamações.
Uma menina magra de 12 anos entrou pela porta com uma vara de madeira em cima do ombro. Nela, havia 20 canecas de diferentes tamanhos penduradas. A menina, que se chamava Allie, pousou a vara com cuidado sobre a mesa de trabalho. As canecas continham chá, chocolate quente, caldos ou café aguado. Cada mulher tinha a sua. Duas vezes por dia, no meio da manhã e no meio da tarde, entregavam seus trocados a Allie, e ela ia enchê-las no café ao lado da fábrica.
As mulheres tomaram pequenos goles de suas bebidas, esticaram os braços e pernas e esfregaram os olhos. O trabalho não era tão árduo quanto a mineração de carvão, pensou Ethel, mas era cansativo: ficar horas e horas curvada sobre a máquina, vigiando a costura com atenção. E tudo precisava ficar perfeito. O patrão, Mannie Litov, verificava cada peça e, se a costura estivesse errada, você não recebia – embora Ethel desconfiasse que ele despachava os uniformes defeituosos de qualquer maneira.
Dali a cinco minutos, Mannie entrou na oficina, batendo palmas e dizendo:
– Vamos, de volta ao trabalho. – As mulheres terminaram suas bebidas e tornaram a se virar para a mesa de trabalho.
Mannie era um verdadeiro feitor de escravos, mas, segundo as mulheres, não era dos piores. Pelo menos não apalpava as garotas ou exigia favores sexuais. Tinha cerca de 30 anos, olhos escuros e uma barba preta. Seu pai era um alfaiate que viera da Rússia para abrir uma fábrica na Mile End Road, onde fazia ternos baratos para funcionários de banco e mensageiros da Bolsa de Valores. Mannie havia aprendido o ofício com o pai e depois iniciara um empreendimento mais ambicioso.
A guerra era boa para os negócios. Um milhão de homens haviam se alistado voluntariamente no Exército entre agosto e o Natal, e todos precisavam de uniformes. Mannie estava contratando todas as costureiras que conseguisse encontrar. Felizmente, Ethel havia aprendido a manejar a máquina de costura em Tŷ Gwyn.
Ela precisava de um emprego. Embora sua casa estivesse paga e ela cobrasse aluguel de Mildred, tinha de economizar dinheiro para quando o bebê chegasse. Contudo, a experiência de procurar trabalho havia lhe causado frustração e aborrecimento.
Estavam surgindo muitos empregos novos para mulheres, mas Ethel não tardou a descobrir que homens e mulheres ainda eram desiguais. Trabalhos que pagavam três ou quatro libras por semana aos homens estavam sendo oferecidos a mulheres por uma libra. E, além disso, as mulheres tinham que aturar hostilidade e perseguição. Passageiros de ônibus homens se recusavam a mostrar as passagens a uma condutora mulher; mecânicos derramavam óleo dentro da caixa de ferramentas de suas colegas do sexo feminino; e as operárias eram proibidas de entrar no pub junto ao portão da fábrica. O que deixava Ethel ainda mais furiosa era que esses mesmos homens eram capazes de chamar uma mulher de preguiçosa e incompetente caso seus filhos andassem maltrapilhos.
No fim das contas, com relutância e raiva, ela havia escolhido um ramo de trabalho no qual as mulheres eram empregadas tradicionalmente, jurando que iria mudar esse sistema injusto antes de morrer.
Ela esfregou as costas. O bebê iria nascer dali a uma ou duas semanas e Ethel teria que parar de trabalhar a qualquer momento. Costurar era complicado com aquela barriga imensa, mas o que ela achava pior era o cansaço que ameaçava tomar todo o seu corpo.
Duas outras mulheres entraram pela porta, uma delas com a mão coberta por uma atadura. As costureiras muitas vezes se espetavam com as agulhas ou se cortavam com as tesouras afiadas que usavam para acertar as roupas.
– Está vendo, Mannie, você deveria ter um kit de primeiros socorros aqui, uma lata com ataduras, um frasco de iodo e mais uma coisa ou outra – disse Ethel.
– Você acha que sou feito de dinheiro? – devolveu ele. Era sua resposta-padrão para qualquer exigência de suas funcionárias.
– Mas você perde dinheiro toda vez que uma de nós se machuca – falou Ethel com um tom de sensatez ponderada. – Como tiveram que ir à farmácia cuidar de um corte, essas duas mulheres passaram quase uma hora fora da máquina.
A mulher da atadura sorriu.
– Além disso, tive que passar no Dog and Duck para acalmar os nervos – disse ela, referindo-se a um pub das redondezas.
Falando com sarcasmo, Mannie disse a Ethel:
– Imagino que você vá querer que eu também ponha uma garrafa de gim no kit de primeiros socorros.
Ethel ignorou o comentário.
– Vou fazer uma lista para descobrir quanto vai custar tudo e então você decide. Que tal?
– Não prometo nada – disse Mannie, e isso era o mais próximo que ele jamais chegava de se comprometer com qualquer coisa.
– Então está certo. – Ethel tornou a se virar para a máquina.
Era sempre ela quem solicitava a Mannie pequenas melhorias no local de trabalho, ou que protestava quando ele fazia mudanças desfavoráveis, como estabelecer que elas deveriam pagar para afiar as próprias tesouras. Sem querer, parecia ter caído no mesmo tipo de papel que o pai desempenhava.
Do lado de fora da janela encardida, a tarde curta já estava escurecendo. Ethel considerava as últimas três horas de trabalho as mais difíceis. Suas costas doíam e o brilho das lâmpadas no teto lhe dava dor de cabeça.
Quando chegava o fim do turno, às sete horas, no entanto, ela não queria voltar para casa. A ideia de passar a noite sozinha era deprimente demais.
Assim que Ethel chegou a Londres, vários rapazes haviam prestado atenção nela. Não tinha sentido atração de verdade por nenhum deles, mas aceitara convites para cinemas, cabarés, recitais e noitadas em pubs. Chegara até a beijar um dos rapazes, mas sem muita paixão. Porém, logo que sua gravidez começou a ficar clara, todos haviam perdido o interesse. Uma garota bonita era uma coisa, mas uma mulher com um bebê era outra muito diferente.
Felizmente, naquela noite haveria uma assembleia do Partido Trabalhista. Ethel havia se inscrito no núcleo de Aldgate do Partido Trabalhista Independente logo depois de comprar a casa. Muitas vezes se perguntava o que seu pai pensaria disso caso soubesse. Será que iria querer expulsá-la do partido dele assim como a expulsara de casa? Ou ficaria feliz em segredo? Ela provavelmente jamais saberia.
A palestrante daquela noite seria Sylvia Pankhurst, uma das líderes das sufragistas, que militavam pelo voto feminino. A guerra havia provocado uma cisão na famosa família Pankhurst. Emmeline, a mãe, renunciara à campanha enquanto durasse o conflito. Uma das filhas, Christabel, apoiava a mãe, mas a outra, Sylvia, havia rompido com as duas e dado continuidade à luta. Ethel estava do lado de Sylvia: as mulheres eram oprimidas tanto em tempos de guerra quanto de paz – e nunca conseguiriam justiça enquanto não tivessem o direito de votar.
Quando chegou à calçada, ela deu boa-noite às colegas. A rua iluminada por lampiões a gás estava cheia de operários voltando para casa, pessoas fazendo compras para o jantar e farristas a caminho de uma noite de diversão. Uma lufada de ar morno e inebriante emanava da porta aberta do Dog and Duck. Ethel entendia as mulheres que passavam a noite inteira em lugares como aquele. Os pubs eram mais aconchegantes do que a casa da maioria das pessoas, e neles havia sempre companhia agradável e a anestesia barata oferecida pelo gim.
Ao lado do pub, ficava uma mercearia chamada Lippmann’s, mas ela estava fechada: havia sido vandalizada por um bando de patriotas por causa do nome alemão e sua fachada estava coberta por tábuas. Por ironia, o dono do estabelecimento era um judeu de Glasgow, cujo filho combatia na Infantaria Leve das Terras Altas escocesas.
Ethel pegou um ônibus. Eram só duas paradas, mas ela estava cansada demais para andar.
A reunião era no Salão do Evangelho do Calvário, o mesmo lugar onde funcionava a clínica de lady Maud. Ethel fora morar em Aldgate porque era o único bairro de Londres de que tinha ouvido falar, pois Maud costumava mencioná-lo com frequência.
O salão estava claro por conta das belas luminárias a gás espalhadas pelas paredes e um braseiro de carvão no meio do aposento deixava o ar menos frio. Cadeiras dobráveis baratas haviam sido dispostas em fileiras diante de uma mesa e de um púlpito. Ethel foi recebida pelo secretário do núcleo, Bernie Leckwith, homem estudioso e pedante, mas de bom coração. Ele estava com um ar preocupado.
– Nossa palestrante não vem mais – disse.
Ethel ficou decepcionada.
– O que nós vamos fazer? – perguntou ela, correndo os olhos pelo salão. – Já tem mais de 50 pessoas aqui.
– Eles vão mandar uma substituta, mas ela ainda não chegou e não sei se vai ser boa. Ela nem é do partido.
– Quem é?
– O nome dela é lady Maud Fitzherbert. – disse Bernie. – Pelo que entendi, a família é dona de minas de carvão – acrescentou em tom de reprovação.
Ethel riu.
– Quem diria! – exclamou. – Eu já trabalhei para ela.
– Ela fala bem?
– Não faço a menor ideia.
Ethel estava intrigada. Não via Maud desde aquela fatídica terça-feira em que a ex-patroa se casara com Walter von Ulrich e a Grã-Bretanha declarara guerra à Alemanha. Ethel ainda guardava o vestido que Walter tinha comprado para ela, cuidadosamente envolto em papel de seda e pendurado em seu guarda-roupa. Era feito de seda cor-de-rosa, com uma segunda camada de tecido diáfano por cima – a coisa mais linda que ela já tivera na vida. É claro que não cabia mais naquele vestido. Além do mais, ele era bonito demais para ser usado em uma assembleia do Partido Trabalhista. Ethel conservara o chapéu também, na mesma caixa em que tinha sido embalado na loja da Bond Street.
Ela se sentou, grata pela chance de dar um descanso aos pés, e se acomodou para aguardar o início da assembleia. Jamais se esqueceria de quando fora ao Ritz depois do casamento com o primo bonitão de Walter, Robert von Ulrich. Ao entrar no restaurante, uma ou outra das mulheres presentes a encarou feio, fazendo-a imaginar que, embora estivesse usando um vestido caro, algo em sua aparência entregava o fato de que pertencia à classe operária. Mas Ethel estava pouco se lixando para isso. Robert a fizera rir com comentários venenosos sobre as roupas e joias das outras mulheres, ao passo que ela lhe contara um pouco sobre a vida em uma cidade mineradora do País de Gales – coisa que lhe pareceu mais estranha do que a existência dos esquimós.
Onde estariam eles agora? Tanto Robert quanto Walter tinham ido à guerra, é claro – Walter pelo Exército alemão e Robert pelo austríaco –, e Ethel não tinha como saber se estavam mortos ou vivos. Nunca mais tivera notícias de Fitz. Imaginava que ele houvesse ido para a França com os Fuzileiros Galeses, mas nem disso tinha certeza. Mesmo assim, sempre passava os olhos pela lista de mortos que saía nos jornais, com medo de ler o nome Fitzherbert. Detestava-o pela forma como a havia tratado, mas, de qualquer forma, ficava profundamente aliviada quando não encontrava seu nome.
Ela poderia ter mantido contato com Maud simplesmente indo à clínica em alguma quarta-feira, mas como teria explicado a visita? Com exceção de um pequeno susto em julho – um leve sangramento em sua roupa de baixo que o Dr. Greenward lhe garantiu não ser nada preocupante –, não havia nada de errado com ela.
No entanto, Maud não havia mudado naqueles seis meses. Entrou no salão vestida de forma mais espetacular do que nunca, usando um chapéu de aba larga com uma pena comprida que despontava da fita como o mastro de um iate. De repente, Ethel se sentiu molambenta com seu velho sobretudo marrom.
Maud cruzou olhares com ela e se aproximou.
– Olá, Williams! Quer dizer, Ethel... me perdoe. Que surpresa agradável!
Ethel apertou-lhe a mão.
– Peço desculpas por não me levantar – falou ela, alisando a barriga inchada. – Acho que neste momento eu não conseguiria ficar de pé nem para o rei.
– Imagine! Será que podemos conversar por alguns minutos depois da assembleia?
– Seria ótimo.
Maud foi até a mesa e Bernie deu início à assembleia. Como muitos outros habitantes do East End londrino, Bernie era um judeu russo. Na verdade, poucas pessoas daquela região eram inglesas de fato. Havia muitos galeses, escoceses e irlandeses. Antes da guerra, costumava ser grande o número de alemães; agora, havia milhares de refugiados belgas. Era no East End que eles desembarcavam do navio, então acabavam naturalmente se instalando ali.
Embora estivessem recebendo uma convidada especial, Bernie fez questão de primeiro ler as justificativas dos que não puderam vir, seguidas pela ata da reunião anterior e por outros procedimentos de rotina tediosos. Ele trabalhava como bibliotecário para o conselho do bairro e era obcecado por detalhes.
Por fim, Bernie apresentou Maud. Ela falou com segurança e conhecimento de causa sobre a opressão das mulheres.
– Uma mulher que faça o mesmo trabalho de um homem deveria receber o mesmo salário – falou. – Só que o homem tem que sustentar uma família, é o que muitas vezes ouvimos.
Vários dos homens na plateia menearam a cabeça enfaticamente, concordando: era isso que sempre diziam.
– Mas e quanto à mulher que precisa sustentar uma família?
Isso gerou um burburinho de aprovação entre as mulheres.
– Na semana passada, em Acton, eu conheci uma garota que está tentando alimentar e vestir os cinco filhos com duas libras por semana, enquanto o marido, que a abandonou, ganha quatro libras e dez xelins fabricando hélices de navio em Tottenham e gasta o dinheiro todo em um pub!
– É isso aí! – exclamou uma mulher atrás de Ethel.
– Acabei de conversar com uma mulher em Bermondsey cujo marido foi morto na batalha de Ypres... ela precisa sustentar os quatro filhos dele, mas recebe um salário de mulher.
– Que vergonha! – comentaram várias das ouvintes.
– Se um patrão acha justo pagar a um homem um xelim por peça para fabricar bielas, deveria achar justo pagar o mesmo salário a uma mulher.
Os homens se remexeram nas cadeiras, pouco à vontade.
Maud correu um olhar duro como aço pela plateia.
– Quando ouço homens socialistas defenderem salários iguais para todos, eu lhes pergunto: “Mas vocês permitem que patrões gananciosos tratem as mulheres como mão de obra barata?”
Ethel achava que era preciso muita coragem e independência para uma mulher com as origens de Maud pensar dessa forma. Também sentia inveja dela. De suas lindas roupas e de seu estilo fluente ao falar. E, para completar, Maud ainda era casada com o homem que amava.
Depois da palestra, Maud foi interrogada de forma agressiva pelos homens do Partido Trabalhista. O tesoureiro do núcleo, um escocês de rosto vermelho chamado Jock Reid, perguntou:
– Como vocês podem continuar choramingando pelo voto feminino quando nossos rapazes estão morrendo na França? – Um alarido de aprovação ecoou pelo recinto.
– Que bom que o senhor me perguntou isso, porque é uma questão que incomoda muitos homens e muitas mulheres também – disse Maud. Ethel admirou o tom conciliatório da resposta, que contrastava muito bem com a hostilidade da pergunta. – Seria melhor que as atividades políticas não prosseguissem normalmente durante a guerra? Seria melhor que vocês não estivessem participando de uma reunião do Partido Trabalhista? Seria melhor que os sindicatos parassem de lutar contra a exploração dos trabalhadores? O Partido Conservador por acaso está em recesso durante a guerra? A injustiça e a opressão foram temporariamente suspensas? Minha resposta é não, camarada. Não podemos deixar os inimigos do progresso tirarem vantagem da guerra. Ela não deve servir de desculpa para os tradicionalistas nos impedirem de avançar. Como diz o senhor Lloyd George, temos que continuar tocando o barco.
Após a reunião, um chá foi preparado – pelas mulheres, naturalmente –, e Maud veio se sentar ao lado de Ethel, retirando as luvas para segurar nas mãos macias uma xícara e um pires feitos de uma cerâmica azul grossa. Ethel achou que seria indelicado de sua parte dizer a Maud a verdade sobre o irmão dela, de modo que lhe contou a última versão de sua saga fictícia, falando que “Teddy Williams” tinha sido morto em combate na França.
– Eu digo às pessoas que nós éramos casados – falou ela, tocando o anel barato que usava no dedo. – Não que alguém se importe com isso agora. Antes de os rapazes irem para a guerra, as garotas querem lhes dar prazer, casadas ou não. – Ela baixou a voz. – Imagino que a senhora não tenha notícias de Walter, ou tem?
Maud sorriu.
– Aconteceu uma coisa extraordinária. Você leu nos jornais sobre a trégua de Natal?
– Li, claro... britânicos e alemães trocando presentes e jogando futebol na terra de ninguém. Uma pena eles não terem continuado a trégua e se recusado a lutar.
– Sem dúvida. Mas Fitz encontrou Walter!
– Ora, mas que maravilha!
– Fitz não sabe que estamos casados, é claro, então Walter teve que tomar cuidado com o que disse. Mas mandou um recado dizendo que estava pensando em mim no dia de Natal.
Ethel apertou a mão de Maud.
– Então ele está bem!
– Ele lutou na Prússia Oriental, e agora está na frente de combate na França, mas não foi ferido.
– Graças aos céus. Mas não imagino que a senhora vá ter mais notícias dele. Esse tipo de sorte nunca se repete.
– Não. Minha única esperança é que, por algum motivo, ele seja enviado para um país neutro, como a Suécia ou os Estados Unidos, de onde possa escrever para mim. Caso contrário, terei que esperar o fim da guerra.
– E o conde?
– Fitz está bem. Passou as primeiras semanas da guerra fazendo farra em Paris.
Enquanto eu procurava um emprego em uma oficina exploradora, pensou Ethel com rancor.
– A princesa Bea teve um menino – continuou Maud.
– Fitz deve ter ficado feliz em ganhar um herdeiro.
– Estamos todos muito contentes – disse Maud, o que fez Ethel se lembrar de que, além de rebelde, ela era também uma aristocrata.
A assembleia chegou ao fim. Um táxi aguardava Maud e as duas se despediram. Bernie Leckwith pegou o ônibus com Ethel.
– Ela se saiu melhor do que eu esperava – comentou. – Uma mulher da classe alta, sem dúvida, mas com a cabeça no lugar. E simpática, sobretudo com você. Imagino que uma criada acabe conhecendo muito bem a família para quem trabalha.
Você não sabe da missa a metade, pensou Ethel.
Ela morava em uma rua tranquila de pequenas casas geminadas, antigas mas bem construídas, a maioria ocupada por trabalhadores com melhor condição financeira, artesãos e supervisores, e por suas famílias. Bernie a acompanhou até a porta da frente. Ethel percebeu que ele provavelmente queria lhe dar um beijo de boa-noite. Considerou a possibilidade de permitir que fizesse isso, pelo simples fato de estar grata por ele ser o único homem do mundo que ainda a considerava atraente. Mas o bom senso falou mais alto: não queria lhe dar falsas esperanças.
– Boa noite, camarada! – disse ela alegremente, entrando em casa.
Não havia nenhum barulho ou luz no andar de cima: Mildred e os filhos já estavam dormindo. Ethel tirou a roupa e entrou na cama. Apesar do cansaço, sua mente estava agitada e ela não conseguiu dormir. Depois de algum tempo, levantou-se e foi preparar um chá.
Por fim, decidiu escrever para o irmão. Abriu seu bloco e começou:
Minha irmãzinha Libby, meu amor querido,
Na escrita em código que os dois usavam quando crianças, apenas uma em cada três palavras contava, e os nomes próprios eram embaralhados, de modo que a frase significava simplesmente Billy querido.
Ela se lembrou de que seu método era escrever a mensagem que desejava enviar, para depois preencher os espaços. Então escreveu:
Estou aqui sentada, sozinha e triste.
Em seguida, transformou a frase em código:
Há dias estou neste lugar aqui, à mesa sentada, nem sempre sozinha, ora alegre e às vezes triste.
Quando era pequena, ela adorava essa brincadeira de inventar uma mensagem imaginária para ocultar a verdadeira. Ela e Billy haviam bolado truques para facilitar: as palavras riscadas contavam, enquanto as sublinhadas, não.
Decidiu escrever a carta inteira, para só depois transformá-la em código.
As ruas de Londres não são calçadas de ouro, pelo menos não em Aldgate.
Cogitou escrever uma carta alegre, fazendo seus problemas não parecerem tão graves. Então pensou: Ah, que se dane, posso dizer a verdade ao meu irmão.
Eu costumava achar que fosse especial, não me pergunte por quê. “Ela se acha boa demais para Aberowen”, as pessoas diziam, e tinham razão.
Ela teve de piscar para conter as lágrimas ao pensar naquela época: no seu uniforme bem passado, nas refeições fartas na impecável ala dos criados e, sobretudo, no corpo lindo e esbelto que não tinha mais.
Agora, olhe só para mim. Sou explorada 12 horas por dia na fábrica de Mannie Litov. Tenho enxaquecas todas as noites e sinto uma dor constante nas costas. Vou ter um filho que ninguém quer. E ninguém me quer tampouco, exceto um bibliotecário chato e quatro-olhos.
Ela mordiscou a ponta do lápis por alguns instantes, pensativa, e por fim escreveu:
Daria no mesmo se eu estivesse morta.
No segundo domingo de cada mês, um padre ortodoxo pegava o trem de Cardiff e subia o vale até Aberowen, trazendo uma mala cheia de ícones e castiçais embalados com esmero para celebrar a Divina Liturgia para os russos.
Lev Peshkov detestava padres, mas sempre comparecia à missa – era preciso, se você quisesse ter direito ao jantar gratuito oferecido em seguida. O culto acontecia na sala de leitura da biblioteca pública. Segundo uma placa no saguão, aquela era uma das bibliotecas Carnegie, construída com dinheiro doado pelo filantropo de mesmo nome. Lev sabia ler, mas não entendia direito as pessoas que consideravam a leitura um prazer. Os jornais ali eram afixados a suportes de madeira pesados, para que ninguém os roubasse, e por todo lado havia placas que diziam: SILÊNCIO. Como alguém poderia se divertir em um lugar daqueles?
Quase tudo em Aberowen desagradava Lev.
Os cavalos eram iguais em qualquer parte, mas ele odiava trabalhar debaixo da terra: o ambiente estava sempre mal iluminado e o pó de carvão o fazia tossir. Na superfície, chovia o tempo inteiro. Ele nunca tinha visto tanta chuva. Não eram tempestades nem pancadas repentinas seguidas pelo alívio de um céu claro e de um tempo seco. Pelo contrário, era uma garoa que caía o dia todo, às vezes a semana toda, subindo pelas pernas de sua calça e descendo pelas costas de sua camisa.
A greve havia começado a perder força em agosto, depois de a guerra estourar, e os mineradores aos poucos tinham voltado ao trabalho. A maioria tornara a ser contratada e recebera de volta suas antigas casas. As exceções eram os homens considerados agitadores pela administração da mina, sendo que a maior parte destes tinha ido se juntar aos Fuzileiros Galeses na frente de batalha. As viúvas despejadas tinham encontrado lugares para morar. Os fura-greves já não eram mais marginalizados: com o tempo, os moradores da cidade haviam passado a entender que os estrangeiros também tinham sido manipulados pelo sistema capitalista.
Mas não era para isso que Lev havia fugido de São Petersburgo. A Grã-Bretanha, é claro, era melhor do que a Rússia: os trabalhadores podiam se organizar em sindicatos, a polícia não estava totalmente fora de controle e até mesmo os judeus eram livres. Mesmo assim, ele não iria se contentar com uma vida de trabalho extenuante em uma cidade mineradora no fim do mundo. Não era com isso que ele e Grigori haviam sonhado. Aquilo ali não era a América.
Mesmo que porventura estivesse tentado a continuar ali, teria que seguir em frente: devia isso a Grigori. Sabia ter agido mal com o irmão, mas havia jurado mandar-lhe o dinheiro da passagem. Lev tinha quebrado várias promessas durante sua curta vida, mas aquela ele pretendia cumprir.
Já havia juntado quase o valor inteiro para uma passagem de Cardiff até Nova York. O dinheiro estava escondido sob uma lajota do piso da cozinha de sua casa em Wellington Row, junto com sua arma e o passaporte do irmão. Obviamente, essas economias não vinham de seu salário semanal – que mal bastava para custear sua cerveja e seu tabaco –, mas sim das suas partidas de cartas semanais.
Spirya não era mais seu colaborador. O rapaz tinha ido embora de Aberowen em poucos dias e voltara a Cardiff para procurar um trabalho mais fácil. Contudo, homens gananciosos nunca eram raros de se encontrar, e Lev ficara amigo de um subgerente da mina chamado Rhys Price. Lev garantia as vitórias constantes de Rhys no carteado e, em seguida, os dois dividiam os lucros. Era importante não exagerar na dose: vez por outra, outras pessoas tinham de ganhar. Se os mineradores descobrissem o que estava acontecendo, eles não só dariam um basta no grupo de carteado, mas provavelmente também matariam Lev. Assim, suas economias cresciam devagar, de modo que ele não podia se dar ao luxo de recusar uma boca-livre.
O padre era sempre recebido na estação pelo carro do conde. Em seguida, era conduzido até Tŷ Gwyn, onde lhe ofereciam xerez e bolo. Caso a princesa Bea estivesse em casa, ela o acompanhava até a biblioteca e entrava na sala de leitura alguns segundos antes dele – o que a livrava de ter que esperar na companhia de pessoas comuns.
Naquele dia, o relógio de parede da sala de leitura marcava pouco mais de 11 horas quando ela entrou, usando um casaco de pele branco e um chapéu para se proteger do frio de fevereiro. Lev se esforçou para conter um arrepio: não conseguia olhar para ela sem reviver o terror absoluto de um menino de 6 anos diante do enforcamento do pai.
O padre entrou em seguida, trajando vestes de cor creme com um cinturão dourado. Pela primeira vez, vinha acompanhado de outro homem vestido como um noviço – e Lev ficou chocado e horrorizado ao reconhecer seu antigo comparsa, Spirya.
A mente de Lev rodopiava enquanto os dois clérigos preparavam os cinco pães e punham água no vinho tinto em preparação para a missa. Teria Spirya encontrado Deus e mudado de vida? Ou seria aquela roupa sacerdotal apenas mais um disfarce para roubar e enganar os outros?
O padre mais velho entoou a bênção. Alguns dos homens mais religiosos tinham formado um coral – iniciativa aprovada com entusiasmo por seus vizinhos galeses – e então cantaram o primeiro Amém. Lev imitou os demais quando eles fizeram o sinal da cruz, mas o tempo todo pensava com nervosismo em Spirya. Seria típico de um padre contar a verdade e botar tudo a perder: os jogos de cartas, a passagem para os Estados Unidos, o dinheiro para Grigori.
Lev recordou o último dia a bordo do Anjo Gabriel, quando havia ameaçado jogar Spirya da borda do navio apenas por ele ter aventado a possibilidade de traí-lo. Spirya poderia muito bem se lembrar disso naquele instante. Lev desejou não ter humilhado o outro homem.
Ficou observando Spirya durante a missa, buscando interpretar seu rosto. Quando foi até a frente do grupo para receber a comunhão, tentou cruzar olhares com o antigo amigo, mas ele não parecia sequer reconhecê-lo: Spirya estava, ou fingia estar, totalmente concentrado no culto.
Depois da missa, os dois clérigos foram embora no mesmo carro que a princesa, seguidos a pé pelos cerca de 30 cristãos russos. Lev se perguntou se Spirya iria falar com ele em Tŷ Gwyn, e ficou preocupado com o que o outro poderia dizer. Será que fingiria que o golpe armado pelos dois nunca tinha acontecido? Ou será que daria com a língua nos dentes, fazendo a ira dos mineradores se abater sobre Lev? Ou, em vez disso, cobraria ele um preço pelo seu silêncio?
Lev sentiu-se tentado a deixar a cidade no mesmo instante. Havia trens para Cardiff a cada hora, ou de duas em duas horas. Se ele tivesse mais dinheiro, poderia ter ido embora. Mas, como não tinha o suficiente para comprar a passagem, continuou a subir a colina, afastando-se da cidade em direção ao palácio do conde para a refeição do meio-dia.
Eles foram servidos na ala dos criados, no subsolo da casa. A comida foi farta: carneiro ensopado com pão à vontade e cerveja para acompanhar. Nina, a criada russa da princesa, se juntou a eles para servir de intérprete. Ela tinha uma queda por Lev, então garantiu que ele recebesse mais cerveja que os outros.
O padre almoçou com a princesa, mas Spirya desceu até a ala dos criados e sentou-se ao lado de Lev. Este abriu seu sorriso mais acolhedor.
– Ora, meu velho amigo, mas que surpresa! – falou em russo. – Meus parabéns!
Spirya não se deixou seduzir.
– Você continua jogando cartas, meu filho? – foi sua resposta.
Lev manteve o sorriso, mas abaixou a voz:
– Eu fico de bico calado em relação a isso, se você também ficar. Acha justo?
– Conversamos depois do almoço.
Lev ficou frustrado. Que caminho escolheria Spirya: o da virtude ou o da chantagem?
Quando a refeição terminou, Spirya saiu pela porta dos fundos e Lev foi atrás dele. Sem dizer nada, Spirya o conduziu até uma rotunda branca que parecia um templo grego em miniatura. Como esta ficava um pouco elevada, eles podiam ver qualquer um que se aproximasse. Estava chovendo e a água escorria pelas colunas de mármore. Lev sacudiu a boina para secá-la e depois a pôs de volta.
– Você se lembra de quando lhe perguntei, no navio, o que você faria se eu me recusasse a lhe dar metade do dinheiro? – perguntou Spirya.
Lev havia empurrado metade do corpo dele por cima da balaustrada, ameaçando quebrar seu pescoço e atirá-lo no mar.
– Não, não me lembro – mentiu.
– Pouco importa – disse Spirya. – Eu queria apenas perdoar você.
A virtude, então, pensou Lev com alívio.
– O que nós fizemos foi pecaminoso – disse Spirya. – Eu me confessei e fui absolvido.
– Então não vou chamar seu padre para jogar cartas comigo.
– Pare de brincadeira.
Lev sentiu vontade de agarrar Spirya pelo pescoço, como havia feito no navio, mas o outro homem não parecia mais disposto a se deixar intimidar. Por ironia, o hábito tinha lhe dado colhões.
– Eu deveria revelar seu crime para aqueles que você roubou – prosseguiu Spirya.
– Elas não vão ficar agradecidos. Podem se vingar não só de mim, mas de você também.
– Minhas vestes sacerdotais vão me proteger.
Lev fez que não com a cabeça.
– Quase todas as pessoas que você e eu roubamos eram judeus pobres. Provavelmente têm lembranças de padres assistindo sorridentes enquanto eles levavam surras dos cossacos. Talvez, ao verem seu hábito, eles se mostrem ainda mais dispostos a chutar você até a morte.
Uma sombra de raiva atravessou o rosto jovem de Spirya, mas ele se forçou a dar um sorriso bondoso.
– Estou mais preocupado com você, meu filho. Não gostaria de provocar nenhuma violência contra você.
Lev sabia quando estava sendo ameaçado.
– O que você vai fazer?
– A questão é: o que você vai fazer?
– Se eu parar, você fica de bico calado?
– Se você se confessar, se demonstrar arrependimento genuíno e parar de pecar, Deus o perdoará... e, nesse caso, não caberá a mim puni-lo.
E você também se safa, pensou Lev.
– Está bem, eu aceito – disse. Assim que acabou de falar, percebeu que havia cedido depressa demais.
As palavras seguintes de Spirya confirmaram que ele não se deixaria enganar com tanta facilidade.
– Eu vou ficar de olho – falou ele. – E, se descobrir que você descumpriu a promessa feita para mim e para Deus, revelarei seu crime para suas vítimas.
– E elas me matarão. Bom trabalho, padre.
– Ao que me parece, essa é a melhor saída para um dilema moral. E meu superior concorda. Então, é pegar ou largar.
– Eu não tenho escolha.
– Deus o abençoe, meu filho – disse Spirya.
Lev se afastou.
Deixou o terreno de Tŷ Gwyn e caminhou debaixo da chuva até Aberowen, bufando de raiva. Era típico de um padre – pensou com rancor – tirar de um homem a oportunidade de se tornar uma pessoa melhor. Spirya agora estava confortável, tinha comida, roupas e uma casa para morar, tudo fornecido, para sempre, pela Igreja e pelos fiéis miseráveis que doavam um dinheiro que não tinham. Pelo resto da vida, tudo o que Spirya precisaria fazer era entoar os cânticos da missa e dar golpes nos coroinhas.
O que seria de Lev? Se parasse de jogar cartas, levaria uma eternidade para juntar o dinheiro da sua passagem. Estaria fadado a passar anos cuidando dos pôneis da mina, quase um quilômetro debaixo da terra. E nunca iria se redimir, pois não poderia mandar para Grigori o dinheiro da passagem dele para os Estados Unidos.
Ele nunca havia escolhido o caminho mais fácil.
Tomou a direção do pub Two Crowns. No religioso País de Gales, os pubs não eram autorizados a abrir aos domingos, mas em Aberowen as regras não eram levadas muito a sério. Havia apenas um policial na cidade e, como a maioria das pessoas, ele tirava folga aos domingos. Para manter as aparências, o Two Crowns fechava a porta da frente, mas os clientes assíduos entravam pela cozinha e os negócios prosseguiam normalmente.
Os irmãos Ponti, Joey e Johnny, estavam no balcão. Ambos bebiam uísque, o que não era comum. Mineradores em geral bebiam cerveja. Uísque era para os ricos – e no Two Crowns uma garrafa provavelmente durava o ano inteiro.
Lev pediu uma jarra de cerveja e se dirigiu ao irmão mais velho.
– Olá, Joey.
– Olá, Grigori. – Lev continuava usando o nome do irmão, que constava do passaporte.
– Está a fim de esbanjar hoje, Joey?
– Isso mesmo. Eu e o moleque fomos a Cardiff ontem assistir a uma luta de boxe.
Os próprios irmãos pareciam lutadores de boxe, pensou Lev: ombros largos, pescoços grossos, mãos imensas.
– E se deram bem? – perguntou Lev.
– Darkie Jenkins contra Roman Tony. Apostamos em Tony, porque ele é italiano como a gente. A aposta pagava 13 para um e ele derrubou Jenkins no terceiro assalto.
Lev às vezes tinha dificuldades com a língua recém-aprendida, mas conhecia o significado de “13 para um”.
– Vocês deveriam vir jogar cartas – falou. – Estão... – Depois de hesitar um pouco, lembrou-se da expressão. – Estão numa maré de sorte.
– Ah, eu não quero perder o dinheiro tão rápido quanto ganhei – disse Joey.
No entanto, quando o grupo de carteado se reuniu no galpão meia hora mais tarde, Joey e Johnny apareceram. Os demais jogadores eram uma mistura de russos e galeses.
Eles jogavam uma versão local do pôquer chamada pôquer de três. Depois das três primeiras cartas, nenhuma outra era dada ou trocada, de modo que o jogo andava rápido. Se um dos jogadores aumentasse a aposta, o próximo tinha que cobri-la imediatamente – não poderia permanecer no jogo apostando o mesmo que antes. Assim, o pote aumentava depressa. As apostas continuavam até restarem apenas dois jogadores e, quando isso acontecia, qualquer um deles poderia encerrar a rodada dobrando a aposta anterior, o que forçava o oponente a mostrar suas cartas. A melhor mão era a que tivesse três cartas iguais, chamada de prial, ou trinca, sendo que a mais alta de todas era a trinca de três.
Lev tinha um instinto natural para probabilidades e, na maioria das vezes, acabaria ganhando mesmo sem trapacear – mas isso era lento demais.
A cada mão, quem dava as cartas era o jogador à esquerda do que as havia distribuído na anterior – assim, não era sempre que Lev podia manipular o jogo. Mas havia mil maneiras de trapacear, e ele inventara um código simples que permitia a Rhys avisar quando tirava uma boa mão. Lev então continuava na mesa, fossem quais fossem as cartas que tivesse, para forçar a aposta a subir e aumentar o pote. Quase sempre, todos os demais abandonavam a partida, ao que Lev perdia para Rhys.
À medida que a primeira mão de cartas era distribuída, Lev decidiu que aquela seria sua última partida. Se limpasse os irmãos Ponti, provavelmente conseguiria comprar sua passagem. No domingo seguinte, Spirya procuraria saber se Lev ainda organizava um grupo de carteado. A essa altura, Lev já queria estar no mar.
Ao longo das duas horas seguintes, Lev viu os ganhos de Rhys aumentarem e disse a si mesmo que cada centavo o deixava mais perto dos Estados Unidos. Em geral, não gostava de limpar ninguém, pois os queria de volta na semana seguinte. Mas aquele era o dia de tentar a sorte grande.
Quando a tarde começava a escurecer lá fora, chegou a sua vez de dar as cartas. Ele distribuiu três ases para Joey Ponti e uma trinca de três para Rhys. Naquele jogo, os três valiam mais do que os ases. Ficou com um par de reis, para justificar suas apostas altas. Continuou apostando até quase limpar Joey – não queria ter que aceitar nenhuma promessa de dívida. Joey usou o último dinheiro que tinha para ver a mão de Rhys. A expressão em seu rosto quando este lhe mostrou um trinca de três foi ao mesmo tempo cômica e deplorável.
Rhys recolheu o dinheiro. Lev se levantou e disse:
– Estou liso. – O jogo acabou, e todos voltaram para o balcão, onde Rhys pagou uma rodada de bebidas para consolar os perdedores. Os irmãos Ponti retornaram para a cerveja, ao que Joey disse:
– Bem, é aquela história: o que vem fácil vai fácil, não é mesmo?
Alguns minutos depois, Lev tornou a sair do pub e Rhys fez o mesmo. Não havia banheiro no Two Crowns, então os homens usavam o beco atrás do galpão. A única luz vinha de um poste de rua distante. Rhys entregou rapidamente a Lev a sua metade dos lucros, parte em moedas e parte nas notas coloridas recém-lançadas: a verde, de uma libra, e a marrom, de dez xelins.
Lev sabia exatamente quanto deveria receber. A aritmética era algo tão natural para ele quanto calcular as probabilidades no carteado. Contaria o dinheiro depois, mas tinha certeza de que Rhys não iria enganá-lo. Ele já havia tentado uma vez. Lev percebera que faltavam cinco xelins na sua parte do dinheiro – quantia que um homem descuidado talvez nem tivesse notado. Tinha ido até a casa de Rhys, enfiado o cano do revólver dentro de sua boca e armado o cão. Rhys borrara as calças de tanto medo. Depois disso, o dinheiro sempre vinha exato, até o último centavo.
Lev guardou o dinheiro no bolso do casaco e os dois voltaram para o bar.
Quando entraram, Lev viu Spirya.
Seu antigo comparsa havia tirado o hábito e vestido o mesmo sobretudo que usara no navio. Estava em pé diante do balcão, mas não bebia – em vez disso, conversava animadamente com um pequeno grupo de russos, incluindo alguns do grupo de carteado.
Seu olhar encontrou o de Lev por um instante.
Lev deu meia-volta e saiu do pub, mas sabia que era tarde demais.
Afastou-se depressa, subindo a colina em direção a Wellington Row. Não tinha dúvidas de que Spirya iria traí-lo. Talvez estivesse explicando naquele exato momento como Lev fazia para trapacear nas cartas e, mesmo assim, dar a impressão de estar perdendo. Os homens ficariam furiosos – e os irmãos Ponti exigiriam seu dinheiro de volta.
Quando ele estava chegando perto de casa, notou um homem vindo na direção oposta, carregando uma mala, e à luz do poste reconheceu um jovem vizinho cujo apelido era Billy com Jesus.
– Olá, Billy – cumprimentou.
– Olá, Grigori.
O rapaz parecia estar saindo da cidade, o que despertou a curiosidade de Lev.
– Vai viajar?
– Estou indo para Londres.
Lev ficou ainda mais interessado.
– Em que trem?
– No das seis horas para Cardiff. – Os passageiros com destino a Londres precisavam trocar de trem em Cardiff.
– Que horas são agora?
– Vinte para as seis.
– Até logo, então. – Lev entrou em casa. Decidiu pegar o mesmo trem que Billy.
Lev acendeu a luz elétrica da cozinha e ergueu a lajota do piso. Recolheu suas economias, o passaporte com o nome e a fotografia do irmão, uma caixa de balas e sua arma, um revólver Nagant M1895 que ganhara nas cartas de um capitão do Exército. Verificou o tambor para se certificar de que havia uma bala nova em cada câmara: as usadas não eram ejetadas automaticamente, precisando ser retiradas manualmente a cada recarga. Enfiou o dinheiro, o passaporte e a arma nos bolsos do sobretudo.
No andar de cima, apanhou a mala de papelão de Grigori furada a bala. Dentro dela, guardou a munição, sua outra camisa, sua roupa de baixo sobressalente e dois baralhos.
Não tinha relógio, mas calculou terem se passado cinco minutos desde o encontro com Billy. Isso lhe dava 15 minutos para andar até a estação – tempo suficiente.
Foi então que ouviu as vozes de vários homens vindas da rua.
Ele não queria confronto. Era durão, mas os mineradores também. Mesmo que ganhasse a briga, perderia o trem. Poderia usar a arma, é claro, mas, naquele país, a polícia se empenhava em capturar assassinos, mesmo quando as vítimas eram zés-ninguém. No mínimo, iriam verificar os passageiros no cais do porto, o que tornaria difícil para ele comprar uma passagem. Sob todos os aspectos, seria melhor se conseguisse deixar a cidade sem violência.
Saiu de casa pela porta dos fundos e atravessou a rua de trás às pressas, fazendo o mínimo de barulho possível com suas botas pesadas. O chão sob seus pés estava enlameado, como de hábito no País de Gales, então felizmente seus passos não fizeram muito barulho.
No final da rua, dobrou em um beco e, descendo-o, emergiu sob as luzes da via principal. Os toaletes localizados no meio da rua o protegiam dos olhares de qualquer um que estivesse em frente à sua casa. Ele se afastou depressa.
Duas ruas mais adiante, percebeu que aquele caminho o faria passar pelo Two Crowns. Parou para pensar por alguns instantes. Conhecia a planta da cidade: sua única alternativa o obrigaria a dar meia-volta. Mas talvez os homens cujas vozes ele havia escutado ainda estivessem perto da sua casa.
Ele tinha que arriscar o Two Crowns. Virou em outro beco e pegou a ruela que passava atrás do pub.
Ao se aproximar do galpão em que havia jogado cartas, ouviu vozes e viu dois homens, talvez mais, delineados pela luz fraca do poste no fim da rua. Seu tempo estava se esgotando, mas mesmo assim ele parou e os esperou tornarem a entrar. Ficou em pé junto a uma cerca de madeira alta, para se tornar menos visível.
Os homens pareceram demorar uma eternidade.
– Vamos logo – sussurrou ele. – Vocês não querem voltar para o quentinho? – A chuva pingava de sua boina e escorria por sua nuca.
Finalmente eles entraram, e Lev emergiu das sombras, seguindo em frente às pressas. Passou pelo galpão sem incidentes, mas, quando estava se afastando, ouviu outras vozes. Soltou um palavrão. Os clientes estavam tomando cerveja desde o meio-dia, de modo que, àquela hora da tarde, precisavam visitar com frequência a rua de trás. Ele ouviu alguém chamá-lo.
– Ei, amigo. – O fato de o estarem chamando assim significava que ele não fora reconhecido.
Ele fingiu não escutar e continuou andando.
Pôde ouvir uma conversa sussurrada. A maioria das palavras era ininteligível, mas ele pensou ter escutado um dos homens dizer: “Parece um russo.” As roupas russas eram diferentes das britânicas, e Lev imaginou que eles talvez conseguissem distinguir o corte do seu sobretudo ou o formato de sua boina à luz do poste de rua, do qual ele se aproximava depressa. Mas, quando um homem saía de um pub para fazer suas necessidades, geralmente não podia esperar, então Lev achou que eles não iriam segui-lo antes de terem aliviado a bexiga.
Dobrou no beco seguinte e sumiu de vista. Infelizmente, duvidava que aqueles homens o tivessem esquecido. Àquela altura, Spirya provavelmente já havia contado sua história – e alguém logo entenderia o significado de um sujeito com roupas russas andando em direção ao centro da cidade, de mala na mão.
Ele precisava embarcar naquele trem.
Começou a correr.
A estrada de ferro passava bem no fundo do vale, e, para chegar à estação, era preciso descer toda a encosta. Lev corria com facilidade, dando passos largos. Por cima dos telhados, conseguia ver as luzes da estação e, quando chegou mais perto, a fumaça de um trem parado na plataforma.
Atravessou correndo a praça e entrou no saguão da bilheteria. Os ponteiros do grande relógio marcavam um minuto para as seis. Ele foi depressa até o guichê e fisgou o dinheiro do bolso.
– Uma passagem, por favor – pediu.
– Para onde o senhor gostaria de ir esta noite? – indagou o bilheteiro, simpático.
Lev apontou para a plataforma com afobação.
– Aquele trem ali!
– Esse trem para em Aberdare, Pontypridd...
– Cardiff! – Lev ergueu os olhos e viu o ponteiro dos minutos se mover com um clique pelo último intervalo e parar, tremendo de leve, na hora redonda.
– Só ida, ou ida e volta? – perguntou o bilheteiro sem pressa.
– Só ida, rápido!
Lev escutou o apito. Desesperado, examinou as moedas que tinha na mão. Sabia o preço da passagem – já havia ido a Cardiff duas vezes nos últimos seis meses –, então depositou o dinheiro sobre o balcão.
O trem começou a andar.
O bilheteiro lhe entregou sua passagem.
Lev a apanhou e virou as costas.
– Não esqueça o seu troco! – disse o bilheteiro.
Lev deu os poucos passos que o separavam da barreira.
– Passagem, por favor – pediu o cobrador, embora tivesse acabado de ver Lev comprar o bilhete.
Ao olhar para além da barreira, Lev viu o trem ganhando velocidade.
O cobrador furou sua passagem e perguntou:
– Não vai querer o troco?
A porta do saguão da bilheteria foi escancarada com violência e os irmãos Ponti entraram correndo.
– Aí está você! – gritou Joey, correndo para cima de Lev.
Para surpresa de Joey, Lev deu um passo na sua direção e lhe acertou um soco na cara. Joey parou onde estava. Johnny trombou contra as costas do irmão mais velho e ambos caíram de joelhos no chão.
Lev arrancou sua passagem da mão do cobrador e correu para a plataforma. O trem já estava andando bem depressa. Por alguns instantes, ele correu ao seu lado. De repente, uma porta se abriu e Lev viu o rosto amigo de Billy com Jesus.
– Pule! – gritou o rapaz.
Lev arriscou um salto e conseguiu pôr um dos pés no degrau do trem. Billy agarrou seu braço. Os dois oscilaram por alguns instantes, enquanto Lev tentava desesperadamente jogar seu peso para dentro do vagão. Por fim, Billy deu um puxão, trazendo Lev a bordo.
Agradecido, o russo se deixou cair em um dos assentos.
Billy fechou a porta e se sentou na sua frente.
– Obrigado – falou Lev.
– Foi por pouco – disse Billy.
– Mas consegui – respondeu Lev com um sorriso. – Isso é tudo o que importa.
Na manhã seguinte, na estação de Paddington, Billy pediu informações sobre como chegar a Aldgate. Um londrino simpático lhe deu uma enxurrada de instruções detalhadas, das quais ele não entendeu patavina. De qualquer forma, agradeceu ao homem e saiu da estação.
Era sua primeira vez em Londres, mas Billy sabia que Paddington ficava a oeste e que os pobres moravam a leste, então seguiu em direção ao sol do meio da manhã. A cidade era ainda maior do que ele imaginara – muito mais movimentada e confusa do que Cardiff –, mas ele adorou o que viu: o barulho, o tráfego veloz, as multidões e, sobretudo, as lojas. Não sabia que era possível haver tantas lojas no mundo. Ficou imaginando quanto dinheiro se gastava por dia nas lojas de Londres. Provavelmente milhares de libras... ou talvez milhões.
Teve uma sensação de liberdade um tanto vertiginosa. Ninguém ali o conhecia. Em Aberowen, ou mesmo quando ia a Cardiff de vez em quando, sempre corria o risco de ser visto por amigos ou parentes. Em Londres, poderia passear pelas ruas de mãos dadas com uma garota bonita e seus pais jamais ficariam sabendo. Não que tivesse a intenção de fazer isso, mas a ideia de que poderia, se quisesse – aliada ao fato de haver tantas garotas bonitas e bem-vestidas por ali –, era inebriante.
Dali a algum tempo, viu um ônibus com “Aldgate” escrito na frente e pulou a bordo. A carta de Ethel havia mencionado Aldgate.
Ao decodificar a carta da irmã, ele ficara muito preocupado. Obviamente, não podia conversar a respeito dela com os pais. Tinha esperado os dois saírem para a missa da noite na Capela de Bethesda – que ele próprio já não frequentava – para então escrever um recado:
Querida Mam,
Estou preocupado com a nossa Eth e fui atrás dela. Desculpe sair assim de fininho, mas não quero briga.
Seu filho que a ama,
Billy
Como era domingo, ele já estava de banho tomado, barbeado e vestido com as melhores roupas que tinha. Seu terno, que havia herdado do pai, estava surrado, mas ele usava uma camisa branca limpa e uma gravata preta de tricô. Em Cardiff, tinha cochilado na sala de espera da estação e pegara o trem leiteiro na madrugada de segunda-feira.
O condutor do ônibus o avisou quando chegaram a Aldgate e ele saltou. O bairro era pobre, com casebres decadentes, barracas vendendo roupas de segunda mão na rua e crianças descalças brincando em escadarias imundas. Ele não sabia onde Ethel morava – sua carta não tinha endereço de remetente. Sua única dica era: “Sou explorada 12 horas por dia na fábrica de Mannie Litov.”
Ele estava louco para dar notícias de Aberowen a Eth. A irmã já deveria ter ficado sabendo pelos jornais do fracasso da greve das viúvas. Billy fervia de raiva ao pensar nisso. Os patrões podiam agir da forma mais imoral porque tinham tudo em suas mãos. Eram donos da mina, das casas e se comportavam como se fossem donos das pessoas também. Por conta de uma série de regras eleitorais complexas, a maioria dos mineradores não tinha direito de voto; assim, o membro do Parlamento que representava Aberowen era um conservador que invariavelmente tomava o partido da empresa. Segundo o pai de Tommy Griffiths, nada jamais mudaria sem uma revolução como a que ocorrera na França. Já o pai de Billy dizia que eles precisavam de um governo trabalhista. Billy não sabia qual dos dois tinha razão.
Abordou um rapaz de aspecto solícito e perguntou:
– O senhor sabe como se chega à fábrica de Mannie Litov?
O homem respondeu em uma língua que parecia russo.
Billy tentou novamente e, desta vez, conseguiu alguém que falava inglês, mas que não conhecia nenhum Mannie Litov. Aldgate não era como Aberowen, onde qualquer pessoa na rua sabia o caminho de todos os estabelecimentos comerciais da cidade. Teria ele vindo de tão longe – e gastado todo aquele dinheiro com a passagem – em vão?
Mas ainda não estava disposto a entregar os pontos. Examinou a rua movimentada em busca de pessoas com aparência britânica e que parecessem estar trabalhando de alguma forma – carregando ferramentas ou empurrando carrinhos de mão. Abordou outras cinco sem sucesso, até topar com um limpador de janelas que carregava uma escada.
– Mannie Litov? – repetiu o homem. Ele fez a proeza de dizer “Litov” sem pronunciar o “t”, emitindo em vez disso um som gutural que mais parecia um pequeno tossido. – Fábic di rupas? – Seu sotaque era fortíssimo.
– Desculpe – disse Billy com educação. – Pode repetir?
– Fábic di rupas... Lugar qui se faz rupas... casacu, calça, colsas – falou o homem, ainda com aquele sotaque incompreensível.
– Hum... é, deve ser – disse Billy, já perdendo as esperanças.
O limpador de janelas aquiesceu.
– Reto, 400 metros, direita, Ark Rav Rahd.
– Seguir reto? – repetiu Billy. – Uns 400 metros?
– Esso, dipois direita.
– À direita?
– Ark Rav Rahd.
– Ark Rav Road?
– Não erro.
O nome da rua acabou se revelando Oak Grove Road. Embora Oak Grove significasse bosque dos carvalhos, não havia bosque nenhum ali – e muito menos carvalhos. Era uma rua estreita, sinuosa, cheia de prédios de tijolo em mau estado e de pessoas, cavalos e carrinhos de mão. Depois de pedir informação mais duas vezes, Billy chegou até uma casa espremida entre o pub Dog and Duck e uma loja interditada chamada Lippmann’s. A porta da frente estava aberta. Billy subiu a escada até o último andar e se viu em uma sala onde cerca de 20 mulheres costuravam uniformes do Exército britânico.
As mulheres continuaram a trabalhar, operando seus pedais, parecendo não reparar nele, até que por fim uma delas falou:
– Entre, querido, nós não vamos comer você... se bem que, pensando bem, talvez eu queira uma provinha. – Todas caíram na gargalhada.
– Estou procurando por Ethel Williams – disse ele.
– Ela não veio – falou a mulher.
– Por que não? – perguntou ele, aflito. – Ela está doente?
– O que você tem com isso? – A mulher se levantou de sua máquina. – Eu sou Mildred... e você, quem é?
Billy a encarou. Ela era bonita, embora dentuça. Usava um batom vermelho vivo e cachos louros despontavam de sua touca. Vestia um sobretudo cinza, grosso e disforme, mas, apesar disso, ele pôde notar o gingado de seus quadris quando ela veio em sua direção. Estava impressionado demais com aquela mulher para responder.
– Você não é o patife que embuchou Ethel e depois picou a mula, é?
Ele encontrou a própria voz:
– Sou o irmão dela.
– Ah! – exclamou a mulher. – Puta merda, você é o Billy?
Billy ficou de queixo caído. Nunca tinha escutado uma mulher falar daquele jeito.
Ela o examinou com olhar destemido.
– Está na cara que você é irmão dela, só que parece ter mais de 16 anos. – Ela abrandou o tom de voz de um jeito que o fez sentir um forte calor por dentro. – Você tem os mesmos olhos escuros e os mesmos cabelos encaracolados que sua irmã.
– Onde posso encontrá-la? – perguntou ele.
Ela o fitou com um olhar desafiador.
– Eu sei que ela não quer que a família descubra onde está morando.
– É por medo do meu pai – disse Billy. – Mas ela me escreveu uma carta. Fiquei preocupado, então vim até aqui de trem.
– Desde aquele buraco lá em Gales onde ela nasceu?
– Lá não é um buraco – retrucou Billy, indignado. Então deu de ombros e concordou: – Bom, na verdade, acho que é, sim.
– Adorei seu sotaque – disse Mildred. – Para mim, é como se você estivesse cantando.
– Você sabe onde ela mora?
– Como foi que você chegou até aqui?
– Ela disse que trabalhava na fábrica de Mannie Litov, em Aldgate.
– Ora, mas você é um belo de um Sherlock Holmes, hein? – comentou ela, não sem um quê de admiração relutante.
– Se você não me disser onde ela está, alguma outra pessoa vai dizer – falou ele, com mais segurança do que de fato sentia. – Eu não volto para casa sem vê-la.
– Ela vai me matar, mas tudo bem – respondeu Mildred. – Nutley Street, 23.
Billy perguntou como chegar lá, pedindo que ela falasse devagar.
– Não precisa me agradecer – disse Mildred quando ele se despediu. – Só me proteja se Ethel tentar me matar.
– Combinado – respondeu Billy, pensando em como seria emocionante protegê-la de alguma coisa.
As outras mulheres gritaram despedidas e jogaram beijos quando ele saiu, deixando-o encabulado.
A Nutley Street era um oásis de calmaria. As casas geminadas haviam sido construídas em um arranjo que, depois de apenas um dia em Londres, Billy já considerava familiar. Eram bem maiores do que as casas dos mineradores, com pequenos quintais na frente em vez de uma porta que se abria para a rua. O efeito de ordem e simetria era criado por janelas de guilhotina idênticas, cada qual com 12 vidraças, dispostas em fila por toda a fachada.
Ele bateu à porta do número 23, mas ninguém atendeu.
Estava preocupado. Por que ela não fora trabalhar? Será que estava doente? Se não fosse o caso, por que não estava em casa?
Billy espiou pela fresta da caixa de correio e viu um hall com piso de tábuas enceradas e uma chapeleira da qual pendia um velho sobretudo marrom que ele reconheceu. O dia estava frio. Ethel não teria saído sem o agasalho.
Ele chegou mais perto da janela e tentou olhar lá para dentro, mas não conseguiu ver através da cortina rendada.
Voltou à porta e tornou a olhar pela fresta. A cena lá dentro continuava a mesma, mas, desta vez, ele ouviu um barulho. Foi um gemido longo e angustiado. Ele aproximou a boca da fresta e gritou:
– Eth! É você? Sou eu aqui fora, Billy.
Houve um longo silêncio, e então o gemido se repetiu.
– Ai, cacete – praguejou ele.
A porta tinha uma fechadura de tambor. Isso significava que o trinco estava provavelmente preso ao batente por dois parafusos. Bateu na porta com a base da mão. Não lhe pareceu especialmente sólida – e ele imaginou que a madeira fosse um pinho vagabundo, já bem antigo. Então, inclinou-se para trás, levantou a perna direita e deu um chute na porta com o calcanhar da pesada bota de minerador. Pelo barulho, a madeira pareceu estar se despedaçando. Ele deu vários outros chutes, mas a porta não abriu.
Quem dera tivesse um martelo.
Olhou para ambos os lados da rua, torcendo para ver algum operário com ferramentas, mas não havia ninguém ali, exceto dois meninos de rosto encardido que o observavam com interesse.
Ele percorreu o curto caminho do jardim até o portão, deu meia-volta e correu em direção à porta, atingindo-a com o ombro direito. Ela se escancarou e ele caiu dentro da casa.
Billy se levantou, esfregando o ombro dolorido, e tirou a porta arrombada do caminho. A casa parecia silenciosa.
– Eth? – chamou ele. – Cadê você?
Então ouviu outro gemido e seguiu o barulho até o quarto da frente, no térreo. Era um quarto de mulher, com bibelôs de porcelana sobre o consolo da lareira e cortinas floridas na janela. Ethel estava na cama, usando um vestido cinzento que a cobria feito uma barraca. Não estava deitada, mas sim apoiada sobre os joelhos e as mãos, gemendo.
– O que há com você, Eth? – perguntou Billy, sua voz um ganido aterrorizado.
Ela recuperou o fôlego.
– O bebê vai nascer.
– Ah, droga! É melhor eu chamar um médico.
– Não dá mais tempo, Billy. Meu Deus, como dói.
– Parece que você está morrendo!
– Não, Billy, parir uma criança é assim mesmo. Venha aqui e me dê a mão.
Billy se ajoelhou ao lado da cama e Ethel segurou sua mão. Ela apertou com mais força e grunhiu. O som foi mais longo e angustiado do que antes, e ela apertou a mão de Billy com tanta força que ele pensou que fosse quebrar algum osso. O gemido terminou com um grito agudo, e ela então começou a ofegar como se tivesse corrido uns dois quilômetros.
Dali a um minuto, falou:
– Sinto muito, Billy, mas você vai ter que olhar por baixo da minha saia.
– Ah! – disse ele. – Está bem. – Não entendeu muito bem, mas achou melhor obedecer assim mesmo. Ergueu a barra do vestido de Ethel. – Oh, meu Deus! – exclamou. O lençol debaixo dela estava ensopado de sangue. E ali, bem no meio, havia uma coisinha cor-de-rosa coberta de muco. Ele distinguiu uma cabeçorra redonda com olhos fechados, dois braços minúsculos e duas pernas. – É um bebê! – falou.
– Pegue-o, Billy – disse Ethel.
– Eu? – falou ele. – Ah, claro, está bem. – Ele se inclinou sobre a cama. Pôs uma das mãos debaixo da cabeça do bebê e a outra debaixo do seu bumbum. Viu que era um menino. O bebê estava escorregadio e pegajoso, mas Billy conseguiu apanhá-lo. Um cordão ainda o prendia a Ethel.
– Pegou? – perguntou ela.
– Peguei – respondeu ele. – Peguei, sim. É um menino.
– Ele está respirando?
– Não sei. Como é que se vê isso? – Billy tentou conter o pânico. – Não, ele não está respirando. Acho que não.
– Dê um tapa no bumbum dele, sem muita força.
Billy virou o bebê, segurando-o facilmente com uma só mão, e deu-lhe um belo tapa no traseiro. A criança abriu a boca na mesma hora, sorveu o ar e deu um grito de protesto. Billy ficou encantado.
– Ouça só isso! – disse ele.
– Segure-o um instantinho enquanto eu me viro. – Ethel se sentou na cama e ajeitou o vestido. – Me dê ele aqui.
Billy entregou-lhe o bebê com cuidado. Ethel segurou-o na dobra do braço e limpou seu rostinho com a manga do vestido.
– Ele é lindo – disse ela.
Billy tinha lá suas dúvidas.
O cordão preso ao umbigo do bebê, antes azul e retesado, agora estava esbranquiçado e murcho. Ethel falou:
– Abra aquela gaveta ali e me dê a tesoura e um rolo de barbante de algodão.
Ethel amarrou dois nós no cordão, cortando-o em seguida entre eles.
– Pronto – falou. Então desabotoou a frente do vestido. – Não acho que você vá ficar encabulado, depois do que já viu – disse ela, puxando um dos seios para fora e levando o mamilo à boca do bebê, que começou a mamar.
Ethel tinha razão: Billy não ficou encabulado. Uma hora antes, teria morrido de vergonha se visse o peito nu da irmã, mas, àquela altura, seria tolice. Tudo o que sentia era um enorme alívio pelo fato de o bebê estar bem. Ficou encarando a cena, vendo-o mamar, maravilhado com seus dedos minúsculos. Tinha a sensação de ter testemunhado um milagre. Seu rosto estava molhado de lágrimas e ele se perguntou quando havia chorado antes: não conseguia se lembrar.
O bebê logo adormeceu. Ethel abotoou o vestido.
– Daqui a pouco nós damos banho nele – disse ela. Então fechou os olhos. – Meu Deus – falou. – Não imaginei que fosse doer tanto.
– Quem é o pai, Eth? – perguntou Billy.
– O conde Fitzherbert – respondeu ela, abrindo os olhos logo em seguida. – Ah, droga, não era para eu ter contado isso a você.
– Mas que desgraçado! – disse Billy. – Vou matar aquele sujeito!
De junho a setembro de 1915
À medida que o navio adentrava o porto de Nova York, ocorreu a Lev Peshkov que os Estados Unidos talvez não fossem tão maravilhosos quanto seu irmão Grigori tinha dito. Ele se preparou para uma terrível decepção. Mas não havia necessidade disso. Os Estados Unidos eram tudo o que ele imaginava: um país rico, agitado, empolgante e livre.
Três meses depois, em uma tarde quente de junho, ele estava trabalhando em um hotel de Buffalo, nas estrebarias, escovando o cavalo de um dos hóspedes. O dono do hotel era Josef Vyalov, que pusera uma cúpula em forma de cebola no alto da antiga Taberna Central e a rebatizara de Hotel São Petersburgo, talvez por nostalgia da cidade que havia deixado para trás ainda criança.
Lev trabalhava para Vyalov, assim como a maioria dos imigrantes russos de Buffalo, mas nunca o havia encontrado. Caso um dia viesse a fazê-lo, não sabia muito bem o que diria. Na Rússia, a família Vyalov havia enganado Lev, abandonando-o em Cardiff, e ele se ressentia disso. Por outro lado, os documentos fornecidos pelos Vyalov de São Petersburgo tinham permitido que Lev passasse pelo serviço de imigração dos Estados Unidos sem o menor problema. E bastara mencionar o nome Vyalov em um bar da Canal Street para conseguir um emprego na mesma hora.
Já fazia um ano que ele falava inglês todos os dias, desde que desembarcara em Cardiff, e estava ficando fluente. Os americanos diziam que ele tinha sotaque britânico e não conheciam algumas das expressões típicas do Reino Unido que ele havia aprendido em Aberowen. Mas Lev era capaz de dizer praticamente tudo o que precisava – e as garotas ficavam caidinhas quando ele usava my lovely para dizer que eram lindas.
Faltando alguns minutos para as seis, pouco antes de terminar o expediente, seu amigo Nick entrou na estrebaria com um cigarro na boca.
– É da marca Fatima – informou ele. Tragou a fumaça com uma satisfação exagerada. – Tabaco turco. Excelente.
O nome completo de Nick era Nicolai Davidovich Fomek, mas ali ele se chamava Nick Forman. De vez em quando, desempenhava o papel que já havia pertencido a Spirya e a Rhys Price nas partidas de cartas de Lev, embora fosse, sobretudo, um ladrão.
– Quanto custam? – quis saber Lev.
– Nas lojas, uma latinha de 100 cigarros sai por 50 centavos. Para você, faço por 10 centavos. Você pode vender por 25.
Lev sabia que os cigarros Fatima eram populares. Seria fácil vendê-los pela metade do preço. Correu os olhos pelo pátio. O patrão não estava por ali.
– Está bem.
– Quantos você vai querer? Tenho um porta-malas cheio.
Lev tinha um dólar no bolso.
– Vinte latas – respondeu. – Posso pagar um dólar agora e um dólar depois.
– Não vendo fiado.
Lev sorriu e levou a mão ao ombro de Nick.
– Ora, meu caro, você pode confiar em mim. Nós somos camaradas ou não somos?
– Vinte, então. Já volto.
Lev encontrou um saco de ração velho em um canto. Nick voltou com 20 latas verdes compridas, todas com o desenho de uma mulher de véu na tampa. Lev pôs as latas no saco e entregou um dólar a Nick.
– É sempre bom poder ajudar um compatriota – disse Nick antes de ir embora caminhando alegremente.
Lev limpou a rascadeira e o renete que usava para fazer a higiene dos cavalos. Às seis e cinco, despediu-se do chefe dos cavalariços e tomou a direção do First Ward, um dos distritos de Buffalo. Sentiu que estava chamando um pouco de atenção, carregando um saco de ração pelas ruas, e perguntou-se o que iria dizer caso algum policial o parasse e pedisse para ver o que havia dentro dele. Mas não estava muito preocupado: era capaz de se safar de praticamente qualquer situação usando a lábia.
Foi até um bar grande e concorrido chamado Irish Rover. Sedento, abriu caminho por entre a multidão, pediu um canecão de cerveja e tomou metade de uma golada só. Então foi se sentar próximo a um grupo de trabalhadores que falavam uma mistura de polonês e inglês. Depois de alguns instantes, perguntou:
– Alguém aqui fuma cigarros Fatima?
Um careca de avental de couro respondeu:
– Sim, eu fumo um Fatima de vez em quando.
– Quer comprar uma lata por metade do preço? Cem cigarros por 25 centavos.
– Qual é o problema com os cigarros?
– Eles se perderam. Alguém encontrou.
– Parece meio arriscado.
– Por que não fazemos assim? Ponha o dinheiro na mesa. Eu só pego quando você me autorizar.
Isso fez os homens se interessarem. O careca levou a mão ao bolso e sacou uma moeda de 25 centavos. Lev pegou uma lata no saco e a entregou ao homem, que a abriu. Ele retirou um pequeno retângulo de papel lá de dentro e o desdobrou, revelando uma fotografia.
– Olhem, tem até uma figurinha de beisebol! – falou. Levou um dos cigarros à boca e o acendeu. – Está certo – disse a Lev. – Pode pegar os seus 25 centavos.
Outro homem espiava por cima do ombro de Lev.
– Quanto é? – quis saber. Lev respondeu e ele comprou duas latas.
Dali a meia-hora, Lev tinha vendido todos os cigarros. Ficou satisfeito: havia transformado dois dólares em cinco em menos de uma hora. No trabalho, precisava de um dia e meio para ganhar três dólares. Talvez comprasse mais latas roubadas de Nick no dia seguinte.
Ele pediu outra cerveja, bebeu e saiu do bar, deixando o saco vazio no chão. Uma vez lá fora, tomou o rumo do distrito de Lovejoy, uma região pobre de Buffalo onde morava a maioria dos russos, além de muitos italianos e poloneses. Poderia comprar um bife no caminho de casa e fritá-lo com batatas. Ou poderia apanhar Marga e levá-la para dançar. Ou quem sabe comprar um terno novo.
Deveria guardar o dinheiro para a passagem de Grigori até os Estados Unidos, pensou, sabendo, com uma pontada de culpa, que jamais faria isso. Três dólares eram uma gota no oceano. Ele precisava mesmo era ganhar uma bolada. Então poderia mandar a grana para o irmão de uma só vez, antes de ficar tentado a gastá-la.
Ele foi despertado de seus devaneios por um tapinha no ombro.
Seu coração saltou, culpado, dentro do peito. Ele se virou, quase esperando ver um uniforme da polícia. Mas a pessoa que o havia abordado não era um policial. Era um sujeito corpulento de macacão, com um nariz quebrado e uma carranca agressiva. Lev ficou tenso: um homem daqueles só podia ter uma função.
– Quem mandou você vender cigarros no Irish Rover?
– Só estou tentando ganhar uns trocados – respondeu Lev com um sorriso. – Espero não ter ofendido ninguém.
– Foi Nick Forman? Ouvi dizer que ele roubou um carregamento de cigarros.
Lev não iria dar essa informação a um desconhecido.
– Não conheço ninguém com esse nome – disse, mantendo um tom de voz agradável.
– Você não sabe que o Irish Rover pertence ao Sr. V?
Lev sentiu uma onda de raiva. O Sr. V não podia ser outro senão Josef Vyalov. Deixou de lado o tom conciliatório.
– Nesse caso, ponham uma placa.
– Ninguém vende nada nos bares do Sr. V a não ser que ele mande.
Lev deu de ombros.
– Não sabia.
– Então tome aqui uma coisa para ajudar você a se lembrar – disse o homem, girando o punho no ar.
Lev estava esperando o golpe e recuou com rapidez. O braço do capanga descreveu um arco no vazio e ele cambaleou, perdendo o equilíbrio. Lev deu um passo à frente e chutou-lhe a canela. O punho em geral era uma arma ruim, nem de perto tão dura quanto um pé calçado com bota. Lev desferiu o chute com toda a força, mas não foi o suficiente para quebrar um osso. O homem soltou um rugido irado e desferiu outro soco, mas tornou a errar.
De nada adiantava bater no rosto de um homem daqueles – ele provavelmente havia perdido toda a sensibilidade ali. Lev deu um bico na sua virilha. O homem levou as duas mãos ao sexo e arquejou, sem fôlego, enquanto dobrava o corpo para a frente. Lev chutou-lhe a barriga. O homem abria e fechava a boca como um peixe dourado, incapaz de respirar. Dando um passo de lado, Lev chutou as pernas do homem para derrubá-lo. O capanga caiu de costas no chão. Lev mirou com cuidado e deu-lhe um pontapé no joelho, para que não conseguisse andar depressa quando levantasse.
Então, ofegando de cansaço, falou:
– Diga ao Sr. V que ele deveria ser mais educado.
Ele se afastou, respirando com dificuldade. Às suas costas, ouviu alguém perguntar:
– Ei, Ilya, que porra é essa? O que aconteceu?
Duas ruas mais adiante, sua respiração se acalmou e as batidas de seu coração desaceleraram. Josef Vyalov que fosse para o inferno, pensou. O desgraçado me enganou e não vou me deixar intimidar.
Vyalov não ficaria sabendo quem dera a surra em Ilya. Ninguém no Irish Rover conhecia Lev. Poderia até ficar puto da vida, mas não teria como fazer nada a respeito.
Lev começou a se sentir eufórico. Levei Ilya à lona, pensou, e saí sem um arranhão!
Ainda estava cheio de dinheiro no bolso. Parou para comprar dois bifes e uma garrafa de gim.
Lev morava em uma rua de casas de tijolo decadentes, subdivididas em pequenos apartamentos. Em frente à casa que ficava ao lado da sua, Marga estava sentada na soleira, lixando as unhas. Era uma russa bonita de uns 19 anos, morena e com um sorriso sensual. Trabalhava como garçonete, mas queria fazer carreira como cantora. Lev já havia lhe pagado um ou outro drinque e chegara a beijá-la uma vez. Ela retribuíra o beijo ardorosamente.
– Oi, garota! – gritou ele.
– Quem você está chamando de garota?
– O que vai fazer hoje à noite?
– Eu tenho um encontro – respondeu ela.
Lev não necessariamente acreditou nela. Marga jamais admitiria não ter nada para fazer.
– Dispense o sujeito – falou. – Ele tem mau hálito.
Ela sorriu.
– Você nem sabe quem é!
– Venha me visitar. – Ele ergueu o saco de papel. – Vou fazer bifes.
– Vou pensar no seu caso.
– Traga gelo. – Ele entrou na casa onde morava.
Seu apartamento era barato pelos padrões americanos, mas aos olhos de Lev parecia espaçoso e luxuoso. Havia um cômodo que servia de quarto e sala ao mesmo tempo e uma cozinha com água corrente e luz elétrica – e tudo só para ele! Em São Petersburgo, um apartamento como aquele abrigaria dez pessoas ou mais.
Ele tirou o paletó, arregaçou as mangas e lavou as mãos e o rosto na pia da cozinha. Esperava que Marga aparecesse. Ela era bem o seu tipo de garota, sempre disposta a rir, dançar ou cair na farra, sem nunca se preocupar muito com o futuro. Ele descascou e fatiou algumas batatas, pôs uma frigideira sobre o fogão elétrico e derreteu nela um pedaço de banha. Enquanto as batatas fritavam, Marga chegou trazendo uma jarra de gelo picado. Ela preparou bebidas com gim e açúcar.
Lev bebericou seu drinque, beijando-a de leve na boca em seguida.
– Está gostoso! – falou.
– Seu atrevido – disse ela, mas não foi um protesto sério. Ele começou a imaginar se conseguiria levá-la para a cama mais tarde.
Então, pôs-se a fritar os bifes.
– Estou impressionada – disse ela. – É raro um homem saber cozinhar.
– Meu pai morreu quando eu tinha 6 anos, e minha mãe quando eu tinha 11 – explicou Lev. – Fui criado pelo meu irmão. Nós aprendemos a fazer tudo sozinhos. Mas é claro que nunca tivemos bife para comer na Rússia.
Ela lhe perguntou sobre o irmão e, durante o jantar, ele lhe contou a história de sua vida. A maioria das moças ficava comovida com a saga de dois meninos sem mãe lutando para sobreviver, trabalhando em uma imensa fábrica de locomotivas e alugando um pedaço de cama para dormir. Sentindo uma pontada de culpa, ele omitiu o fato de ter abandonado a namorada grávida.
Eles tomaram o segundo drinque no cômodo que servia de quarto e sala. Quando começaram o terceiro, já escurecia do lado de fora e ela estava sentada em seu colo. Entre um gole e outro, Lev a beijava. Quando Marga abriu a boca para que sua língua entrasse, ele levou a mão ao seu seio.
Nessa hora, a porta foi escancarada com violência.
A moça soltou um grito.
Três homens entraram na casa. Marga, ainda aos berros, pulou do colo de Lev. Um dos homens lhe deu um tapa na boca com as costas da mão e disse:
– Cale a boca, piranha. – Ela correu em direção à porta, segurando os lábios ensanguentados com as duas mãos. Os homens a deixaram ir.
Lev se levantou com um salto e partiu para cima do homem que havia batido em Marga. Conseguiu encaixar um bom soco, acertando-o logo acima do olho. Então os outros dois agarraram seus braços. Eles eram fortes, de modo que ele não conseguiu se soltar. Enquanto o seguravam, o primeiro homem, que parecia ser o líder, deu-lhe um soco na boca e depois vários na barriga. Lev cuspiu sangue e vomitou o bife que tinha comido.
Quando já estava sem forças e sofrendo de dor, eles o carregaram escada abaixo, para fora da casa. Um Hudson azul estava parado no acostamento com o motor ligado. Eles o jogaram no chão diante do banco de trás. Dois dos homens se sentaram com os pés em cima dele, enquanto o outro entrou na frente e saiu dirigindo.
A dor era tanta que Lev nem sequer conseguia pensar em para onde estavam indo. Imaginou que aqueles homens trabalhassem para Vyalov, mas como foi que o haviam encontrado? E o que iriam fazer com ele? Tentou não se deixar dominar pelo medo.
Depois de alguns minutos, o carro parou e ele foi arrastado para fora. Estavam em frente a um depósito. A rua estava deserta e às escuras. Ao sentir o cheiro do lago, ele se deu conta de que estavam perto da água. Pensou com um fatalismo sinistro que aquele era um bom lugar para matar alguém. Não haveria testemunhas e o corpo poderia ser jogado no lago Erie, amarrado dentro de um saco, com alguns tijolos para garantir que afundasse.
Eles o arrastaram para dentro do depósito. Ele tentou se recompor. Aquela era a pior enrascada em que havia se metido na vida. Não sabia bem se conseguiria se safar dela na base da conversa. “Por que eu tenho que fazer essas coisas?”, perguntou a si mesmo.
O depósito estava cheio de pneus novos, dispostos em pilhas de 15 ou 20. Eles o carregaram pelo meio das pilhas até os fundos e pararam em frente a uma porta vigiada por outro homem corpulento, que ergueu um braço para detê-los.
Ninguém falou palavra.
Passado um minuto, Lev disse:
– Parece que vamos ter que esperar um tempinho. Alguém tem um baralho?
Ninguém ao menos sorriu.
Por fim, a porta se abriu e Nick Forman saiu por ela. Seu lábio superior estava inchado e ele não conseguia abrir um dos olhos. Assim que viu Lev, disse:
– Eu tive que contar. Senão eles teriam me matado.
Então foi por intermédio de Nick que eles me encontraram, pensou Lev.
Um homem magro de óculos apareceu na porta do escritório. Não é possível que este seja Vyalov, pensou Lev – era franzino demais.
– Traga-o para dentro, Theo – disse ele.
– Certo, Sr. Niall – falou o líder dos capangas.
O escritório fez Lev pensar no casebre de camponeses em que havia nascido. Fazia calor demais lá dentro e o ar estava cheio de fumaça. Em um dos cantos, havia uma mesinha com ícones de santos.
Sentado atrás de uma mesa de aço, via-se um homem de meia-idade com os ombros mais largos do que o comum. Ele vestia um terno de passeio que parecia caro, com colarinho e gravata, e a mão que segurava o cigarro exibia dois anéis.
– Que porra de cheiro é esse? – perguntou o homem.
– Desculpe, Sr. V, é vômito – respondeu Theo. – Ele reagiu e nós tivemos que acalmá-lo um pouco, então ele devolveu a janta.
– Soltem-no.
Os homens soltaram os braços de Lev, mas continuaram por perto.
O Sr. V o encarou.
– Eu recebi seu recado – disse ele. – Dizendo que eu deveria ser mais educado.
Lev tomou coragem. Não iria morrer choramingando.
– O senhor é Josef Vyalov? – perguntou.
– Meu Deus, você é mesmo atrevido – disse o homem. – Perguntar quem eu sou...
– Eu estava procurando pelo senhor.
– Você estava procurando por mim?
– A família Vyalov me vendeu uma passagem de São Petersburgo para Nova York e me largou em Cardiff – falou Lev.
– E daí?
– Quero meu dinheiro de volta.
Vyalov o encarou por um bom tempo e então riu.
– É mais forte do que eu – falou. – Gostei de você.
Lev prendeu a respiração. Isso por acaso significava que Vyalov não iria matá-lo?
– Você tem emprego? – perguntou Vyalov.
– Eu trabalho para o senhor.
– Onde?
– No Hotel São Petersburgo, nas estrebarias.
Vyalov aquiesceu.
– Acho que podemos lhe oferecer algo melhor do que isso – disse ele.
Em junho de 1915, os Estados Unidos deram um passo em direção à guerra.
Gus Dewar ficou chocado. Não achava que seu país devesse entrar naquele conflito europeu. O povo americano concordava com ele, bem como o presidente Woodrow Wilson. No entanto, de alguma forma, o perigo se aproximava.
A crise ocorrera em maio, quando um submarino alemão torpedeou o Lusitania, navio britânico que transportava 173 toneladas de fuzis, munição e explosivos. O transatlântico também transportava dois mil passageiros, incluindo 128 cidadãos norte-americanos.
Os americanos ficaram tão chocados quanto se houvesse ocorrido um assassinato. Os jornais entraram em um frenesi de indignação.
– As pessoas estão pedindo que o senhor faça o impossível! – disse Gus ao presidente no Salão Oval, ultrajado. – Querem que seja duro com os alemães, mas sem que haja risco de entrar na guerra.
Wilson fez que sim com a cabeça. Ergueu os olhos da máquina de escrever e falou:
– Não existe nenhuma regra dizendo que a opinião pública deve ser coerente.
Gus achava a calma de seu chefe admirável, mas um pouco frustrante.
– E como se lida com um absurdo desses?
Wilson sorriu, mostrando os dentes ruins.
– Gus, quem disse que política é uma coisa fácil?
No fim das contas, Wilson mandou um recado duro para o governo alemão, exigindo o fim dos ataques às embarcações. Ele e seus conselheiros, incluindo Gus, estavam torcendo para que os alemães aceitassem algum tipo de acordo. Contudo, caso resolvessem desafiar os Estados Unidos, Gus não via como Wilson poderia impedir que a situação degringolasse. Aquele era um jogo perigoso, e Gus constatou ser incapaz de manter a calma e a tranquilidade que Wilson parecia demonstrar diante de tamanho risco.
Enquanto os telegramas diplomáticos atravessavam o Atlântico, Wilson foi para sua casa de verão em New Hampshire e Gus para Buffalo, onde ficou hospedado na mansão dos pais na Avenida Delaware. Seu pai tinha uma casa em Washington, mas Gus morava em seu próprio apartamento na capital, de modo que, quando voltava para Buffalo, sua cidade natal, aproveitava o conforto de uma casa administrada pela mãe: a tigela de prata com pétalas de rosas sobre a mesa de cabeceira; os brioches quentes no café da manhã; a tolha de mesa de linho branco engomada, trocada a cada refeição; e a forma como um terno sempre aparecia em seu armário, limpo e passado a ferro, sem que ele sequer tivesse notado sua ausência.
A casa era mobiliada com uma simplicidade proposital, uma reação de sua mãe à ornamentação excessiva típica da geração de seus pais. A maior parte dos móveis era Biedermeier, estilo alemão utilitário que estava voltando à moda. A sala de jantar tinha um quadro de boa qualidade em cada uma das quatro paredes e um único castiçal de três braços sobre a mesa. No primeiro dia, durante o almoço, sua mãe disse:
– Imagino que você pretenda ir ao bairro pobre assistir a alguma luta de boxe, não?
– Não há nada de errado com o boxe – respondeu Gus. O esporte era sua grande paixão. Chegara a tentar lutar quando era um rapaz destemido de 18 anos: seus braços compridos tinham lhe rendido algumas vitórias, mas faltava-lhe o instinto assassino.
– Boxe é tão canaille – falou sua mãe com desdém. Era uma expressão esnobe que ela havia aprendido na Europa e que significava algo como “vulgar”.
– Eu gostaria da oportunidade de me distrair da política internacional.
– Hoje à tarde vai haver uma palestra sobre Ticiano na Albright, com projeções de lanterna mágica – disse ela.
A Galeria de Arte Albright, prédio branco neoclássico que ficava no Delaware Park, era uma das instituições culturais mais importantes de Buffalo.
Gus crescera rodeado por quadros renascentistas e tinha um carinho especial pelos retratos de Ticiano, mas não estava muito interessado em assistir a uma palestra. No entanto, aquele era justamente o tipo de evento ao qual compareceriam os rapazes e moças ricos da cidade, então seria uma boa chance de retomar antigas amizades.
A Albright ficava a poucos minutos de carro, subindo a Avenida Delaware. Lá chegando, ele atravessou o átrio cercado por colunas, escolheu um lugar e sentou-se. Conforme havia imaginado, conhecia vários dos presentes. Viu que estava sentado ao lado de uma moça incrivelmente bonita que não lhe era estranha.
Abriu um sorriso indeciso para ela, que falou com animação:
– Não está lembrado de mim, não é, Sr. Dewar?
Ele se sentiu bobo.
– Ééé... eu passei algum tempo fora da cidade.
– Olga Vyalov. – Ela estendeu uma das mãos. Usava luvas brancas.
– Claro – respondeu Gus. Ela era filha de um imigrante russo cujo primeiro emprego fora expulsar bêbados de um bar na Canal Street. Agora, era o dono da rua. Era também membro da Câmara Municipal e um dos sustentáculos da Igreja Ortodoxa Russa. Gus havia encontrado Olga várias vezes, embora não se lembrasse que ela fosse tão encantadora; talvez houvesse crescido de repente, ou algo desse tipo. Avaliou que tivesse uns 20 anos. Sua pele era clara e seus olhos eram azuis. Ela vestia um casaco cor-de-rosa de gola alta e um chapéu tipo cloche, enfeitado com flores de seda também cor-de-rosa.
– Ouvi dizer que o senhor está trabalhando com o presidente – disse ela. – O que acha do Sr. Wilson?
– Eu o admiro muito – respondeu Gus. – Ele é um político pragmático, mas que não abandonou seus ideais.
– Que empolgante estar no centro do poder!
– É, sim, mas, por estranho que pareça, tenho a sensação de que não é o centro do poder. Em uma democracia, o presidente está subordinado aos eleitores.
– Mas ele com certeza não faz apenas o que o povo quer.
– Não, não exatamente. Segundo o presidente Wilson, um líder deve lidar com a opinião pública da mesma forma que um marinheiro lida com o vento, usando-a para conduzir o navio em uma determinada direção, mas nunca tentando ir contra ela por completo.
Ela deu um suspiro.
– Eu adoraria estudar essas coisas, mas meu pai não me deixa entrar para a universidade.
Gus sorriu.
– Ele deve achar que a senhorita iria aprender a fumar cigarros e beber gim.
– E coisa pior, sem dúvida – respondeu ela. Era um comentário ousado para uma mulher solteira, e a surpresa deve ter transparecido no rosto de Gus, pois ela emendou: – Desculpe se choquei o senhor.
– De forma alguma. – Na verdade, ele estava encantado. Para fazê-la continuar falando, perguntou: – O que a senhorita estudaria se pudesse entrar para a universidade?
– História, acho.
– Eu adoro história. Algum período específico?
– Eu gostaria de entender meu próprio passado. Por que meu pai teve que sair da Rússia? Por que é tão melhor aqui nos Estados Unidos? Deve haver motivos para essas coisas.
– Exatamente!
Gus estava fascinado que uma moça tão bonita também compartilhasse de sua curiosidade intelectual. Vislumbrou de repente os dois casados, conversando sobre os acontecimentos do mundo no toucador dela, depois de alguma festa, enquanto se preparavam para dormir: ele sentado, de pijama, observando-a tirar sem pressa as joias e as roupas... Então, ao cruzar olhares com ela, teve a sensação de que Olga havia adivinhado seus pensamentos e ficou constrangido. Tentou encontrar alguma coisa para dizer, mas descobriu que sua língua estava presa.
Foi então que o palestrante chegou e a plateia parou de falar.
Ele gostou mais da palestra do que esperava. O palestrante havia preparado slides de algumas das telas de Ticiano, projetando-os em uma grande tela branca com sua lanterna mágica.
Quando a palestra terminou, ele quis conversar um pouco mais com Olga, mas foi impedido. Chuck Dixon, um conhecido dos tempos da escola, aproximou-se deles. Chuck possuía um charme natural que Gus invejava. Os dois tinham a mesma idade, 25 anos, mas Chuck fazia Gus se sentir um colegial desengonçado.
– Olga, você precisa conhecer meu primo – disse o rapaz alegremente. – Ele ficou olhando o tempo todo para você do outro lado do salão. – Chuck sorriu com simpatia para Gus. – Desculpe-me por privá-lo desta companhia tão fascinante, Dewar, mas você também não pode ficar com ela a tarde inteira, não é? – Ele passou um braço possessivo pela cintura de Olga e a levou embora.
Gus ficou desolado. Tinha a sensação de estar se dando tão bem com ela... Para ele, aquelas primeiras interações com uma garota eram sempre as mais difíceis, mas com Olga não sentira a menor dificuldade. E agora Chuck Dixon, que sempre fora o pior aluno da turma, acabara de levá-la embora com toda a facilidade, como se tivesse apanhado uma bebida na bandeja de um garçom.
Enquanto Gus olhava em volta à procura de algum outro conhecido, foi abordado por uma moça caolha.
Na primeira vez em que havia encontrado Rosa Hellman – em um jantar beneficente em prol da Orquestra Sinfônica de Buffalo, na qual o irmão dela tocava –, pensou que a moça estivesse lhe dando uma piscadela. Na verdade, um de seus olhos vivia permanentemente fechado. Tirando isso, seu rosto era bonito, o que tornava aquela deformidade ainda mais evidente. Além disso, ela sempre se vestia com elegância, numa atitude desafiadora. Desta vez, com um chapéu de palha enviesado sobre a cabeça, havia conseguido ficar interessante.
Da última vez em que a vira, ela era editora de um jornal radical de pequena circulação chamado Buffalo Anarchist, de modo que Gus perguntou:
– Os anarquistas se interessam por arte?
– Eu agora trabalho para o Evening Advertiser – respondeu ela.
Gus ficou surpreso.
– O editor sabe das suas opiniões políticas?
– Já não tenho opiniões tão extremadas quanto antes, mas ele conhece a minha história.
– Ele deve ter pensado que, se você consegue transformar um jornal anarquista em um sucesso, só pode ser boa.
– Ele diz que me deu o emprego porque tenho mais colhões do que dois de seus repórteres homens juntos.
Gus sabia que ela gostava de chocar, mas, mesmo assim, ficou boquiaberto.
Rosa soltou uma risada.
– Mas ele continua me mandando cobrir exposições de arte e desfiles de moda. – Ela mudou de assunto. – E você, como é trabalhar na Casa Branca?
Gus tinha consciência de que qualquer coisa que dissesse poderia sair no jornal.
– Muito emocionante – respondeu. – Eu acho Wilson um grande presidente, talvez o melhor de todos os tempos.
– Como você pode dizer uma coisa dessas? Ele está a um passo de nos fazer entrar em uma guerra na Europa.
A atitude de Rosa era comum entre as pessoas de origem germânica, que naturalmente viam o lado alemão da história, e entre os esquerdistas, que desejavam a derrota do czar. No entanto, muitos que não eram nem alemães nem de esquerda pensavam a mesma coisa. Gus respondeu com cautela:
– Quando submarinos alemães matam cidadãos americanos, o presidente não pode... – Ele estava prestes a dizer se fingir de cego. Hesitou, enrubesceu e acabou dizendo: – ...não pode ignorar o fato.
Ela não pareceu notar seu constrangimento.
– Mas os britânicos estão bloqueando portos alemães, o que é uma violação do direito internacional, e, consequentemente, mulheres e crianças estão morrendo de fome na Alemanha. Enquanto isso, a guerra na França está em um impasse: há seis meses que nenhum dos dois lados modifica sua posição em mais de alguns metros. Os alemães precisam afundar navios britânicos, de outra forma vão perder a guerra.
A clareza com que Rosa entendia a complexidade das coisas era impressionante: era por isso que Gus sempre gostava de conversar com ela.
– Eu estudei direito internacional – disse ele. – Estritamente falando, os britânicos não estão agindo de forma ilegal. Os bloqueios navais foram proibidos pela Declaração de Londres de 1909, mas ela nunca chegou a ser ratificada.
Rosa não se deixaria ludibriar com tanta facilidade.
– Esqueçamos os aspectos legais. Os alemães avisaram os americanos para não viajarem em navios britânicos. Pelo amor de Deus, eles chegaram a pôr um anúncio no jornal! O que mais podem fazer? Imagine que estivéssemos em guerra contra o México e que o Lusitania fosse um navio mexicano cheio de armamentos destinados a matar soldados americanos. Nós o deixaríamos passar?
Era uma boa pergunta, para a qual Gus não tinha nenhuma resposta aceitável.
– Bem, o secretário de Estado Bryan concorda com você – disse ele. William Jennings Bryan havia renunciado após o comunicado emitido por Wilson aos alemães. – Segundo ele, bastaria avisarmos os americanos para não viajarem em navios das nações em conflito.
Ela, no entanto, não estava interessada em deixá-lo escapar.
– Bryan entende que Wilson assumiu um grande risco – disse ela. – Se os alemães não recuarem agora, dificilmente conseguiremos evitar entrar em guerra contra eles.
Gus não iria admitir a uma jornalista que temia o mesmo. Wilson havia exigido que o governo alemão repudiasse os ataques a navios mercantes, pagasse uma indenização e tomasse medidas para evitar que eles se repetissem – em outras palavras, que desse aos britânicos liberdade para navegar os mares ao mesmo tempo que aceitava que seus próprios navios ficassem presos nos portos por causa do bloqueio. Era difícil pensar que algum governo fosse concordar com tais exigências.
– Porém a opinião pública aprova o que o presidente fez.
– A opinião pública pode estar errada.
– Mas o presidente não pode ignorá-la. Wilson está numa corda bamba, entende? Ele quer nos manter fora da guerra, mas não quer que os Estados Unidos demonstrem fraqueza no âmbito da diplomacia internacional. Por enquanto, me parece que ele encontrou um bom equilíbrio.
– Mas e no futuro?
Era essa a pergunta preocupante.
– Ninguém pode prever o futuro – respondeu Gus. – Nem mesmo Woodrow Wilson.
Ela riu.
– Uma resposta digna de um político. Você ainda vai longe em Washington. – Alguém a abordou e ela se virou para o outro lado.
Gus se afastou, com a leve impressão de ter participado de uma luta de boxe que houvesse terminado empatada.
Alguns membros da plateia foram convidados a tomar chá com o palestrante. Gus foi um dos privilegiados, porque sua mãe contribuía financeiramente para o museu. Ele se despediu de Rosa e foi até uma sala privativa. Ao entrar, ficou encantado em ver Olga ali. Sem dúvida o pai dela também estava entre os doadores.
Ele pegou uma xícara de chá e se aproximou dela.
– Se algum dia a senhorita for a Washington, eu adoraria lhe mostrar a Casa Branca – disse.
– Ah! Será que o senhor poderia me apresentar ao presidente?
Ele queria responder: Sim, o que você quiser! Mas hesitava em fazer promessas que talvez não conseguisse cumprir.
– Pode ser que sim – respondeu. – Desde que o presidente não esteja muito ocupado. Quando ele se senta atrás daquela máquina e começa a escrever discursos ou comunicados à imprensa, ninguém pode incomodá-lo.
– Fiquei muito triste quando a esposa dele faleceu – disse Olga. Ellen Wilson havia morrido quase um ano antes, pouco depois de a guerra na Europa estourar.
Gus aquiesceu.
– Ele ficou arrasado.
– Mas ouvi dizer que ele já está envolvido com uma viúva rica.
Gus ficou perplexo. Em Washington, o fato de Wilson ter se apaixonado perdidamente, feito um colegial, pela voluptuosa Sra. Edith Galt apenas oito meses após a morte da mulher não era segredo para ninguém. O presidente tinha 58 anos e sua escolhida, 41. Naquele exato momento, os dois estavam juntos em New Hampshire. Gus fazia parte de um grupo muito seleto que sabia também que Wilson a havia pedido em casamento um mês antes, mas a Sra. Galt ainda não lhe dera uma resposta.
– Quem lhe contou isso? – perguntou ele a Olga.
– É verdade?
Ele estava louco para impressioná-la com suas informações privilegiadas, mas conseguiu resistir à tentação.
– Não posso conversar sobre esse tipo de coisa – respondeu com relutância.
– Ah, que decepção. Estava torcendo para que o senhor pudesse me contar alguma fofoca secreta.
– Sinto muito por desapontá-la.
– Não seja bobo. – Olga tocou o braço dele, causando-lhe um arrepio que mais pareceu um choque elétrico. – Convidei algumas pessoas para jogar tênis amanhã à tarde – disse ela. – O senhor joga?
Gus, com seus braços e pernas compridos, era um ótimo tenista.
– Jogo, sim – respondeu ele. – Adoro tênis.
– Então o senhor aceita o convite?
– Com muito prazer.
Lev aprendeu a dirigir em um dia. Bastaram algumas horas para ele dominar a segunda função mais importante de um chofer: trocar pneus furados. Ao final de uma semana, já sabia também encher o tanque, trocar o óleo e ajustar os freios. Se o carro não andasse, aprendeu a verificar se a bateria estava arriada ou se algum duto de combustível estava entupido.
Cavalos eram o transporte do passado, dissera-lhe Josef Vyalov. Cavalariços ganhavam mal: eram numerosos demais. Já os motoristas eram poucos, por isso recebiam salários altos.
Além disso, Vyalov gostava de ter um chofer durão o suficiente para servir também de guarda-costas.
O carro de Vyalov era um Packard Twin Six novinho em folha, uma limusine para sete passageiros. Os outros motoristas ficaram impressionados. O modelo fora lançado poucas semanas antes, e seu motor de 12 cilindros causava inveja até aos que dirigiam um Cadillac V8.
Lev não ficou tão admirado assim com a mansão ultramoderna de Vyalov. Para ele, parecia o maior curral de vacas do mundo. Era comprida e baixa, com as abas do telhado largas e salientes. O jardineiro-chefe lhe disse que aquele estilo era chamado de “Prairie House”, a última moda em construção.
– Se eu tivesse uma casa grande assim, iria querer que ela parecesse um palácio – disse Lev.
Ele pensou em escrever para Grigori e lhe contar sobre Buffalo, o emprego e o carro, mas hesitou. Sentiria vontade de dizer que havia guardado algum dinheiro para a passagem do irmão, quando, na verdade, não economizara nada. Prometeu a si mesmo que, assim que tivesse uma pequena quantia guardada, iria escrever. Enquanto isso, Grigori não podia escrever, pois não tinha o endereço de Lev.
A família Vyalov era composta por três pessoas: o próprio Josef, sua mulher, Lena, que raramente abria a boca, e Olga, a filha bonita e de olhar atrevido, mais ou menos da idade de Lev. Josef era atencioso e gentil com a mulher, embora passasse a maioria das noites fora com os amigos. Já com a filha, era afetuoso, porém rígido. Muitas vezes voltava para casa de carro no meio do dia para almoçar com Lena e Olga. Depois do almoço, ele e Lena tiravam um cochilo.
Enquanto Lev esperava para levar Josef de volta ao centro da cidade, às vezes conversava com Olga.
Ela gostava de fumar cigarros – coisa que seu pai proibia, pois estava determinado a torná-la uma moça respeitável e fazê-la entrar para a elite de Buffalo por meio de um bom casamento. Havia alguns lugares na propriedade aos quais Josef nunca ia, e a garagem era um deles, então Olga se refugiava lá para fumar. Sentava-se no banco de trás do Packard – seu vestido de seda sobre o couro novo –, enquanto Lev ficava recostado na porta, com o pé apoiado no estribo, conversando com ela.
Ele sabia que ficava bonito com o uniforme de chofer e usava o quepe inclinado para trás de um jeito charmoso. Logo descobriu que a forma de agradar Olga era elogiá-la por pertencer à classe alta. Ela adorava ouvir que caminhava como uma princesa, conversava como uma primeira-dama e se vestia como uma socialite de Paris. Era uma esnobe – e seu pai também. Durante a maior parte do tempo, Josef era agressivo e violento, mas Lev já havia reparado que ele se tornava educado, quase deferente, ao conversar com homens importantes, como presidentes de banco e congressistas.
Lev tinha uma intuição rápida, de modo que não tardou a entender como Olga funcionava. Ela era uma menina rica e superprotegida que não tinha como dar vazão a seus impulsos românticos e sexuais. Ao contrário das garotas que Lev conhecera nos bairros pobres de São Petersburgo, Olga não podia escapulir para encontrar um rapaz ao anoitecer e deixar que ele a apalpasse na escuridão da soleira de alguma loja. Aos 20 anos, ainda era virgem. Talvez até nunca tivesse sido beijada.
De longe, Lev ficou observando a partida de tênis, embriagando-se com a visão do corpo forte e esbelto de Olga e com a forma como seus seios se moviam sob o algodão leve do vestido quando corria pela quadra. Ela estava jogando contra um homem muito alto, que usava uma calça de flanela branca. Lev tomou um susto ao reconhecê-lo. Depois de observá-lo por um tempo, recordou onde o vira antes. Tinha sido na Metalúrgica Putilov. Lev havia arrancado um dólar dele com um truque e Grigori lhe perguntara se Josef Vyalov era mesmo um figurão em Buffalo. Qual era mesmo o nome daquele sujeito? Era igual ao de uma marca de uísque. Dewar, era isso. Gus Dewar.
Um grupo de meia dúzia de jovens assistia à partida, as moças trajando vestidos de verão de cores alegres e os rapazes de chapéu de palha. A Sra. Vyalov assistia a tudo com um sorriso contente debaixo de sua sombrinha. Uma criada de uniforme servia limonada.
Gus Dewar ganhou de Olga e os dois deixaram a quadra. Foram imediatamente substituídos por outro casal. Ousada, Olga aceitou um cigarro de seu adversário. Lev o viu acendê-lo para ela. Ansiava por ser um daqueles jovens que jogavam tênis com roupas bonitas e tomavam limonada.
Uma raquetada mal dada lançou a bola em sua direção. Ele a pegou e, em vez de jogá-la de volta, decidiu levá-la até a quadra, entregando-a a um dos jogadores. Olhou para Olga. Ela estava entretida em uma conversa com Dewar, flertando com ele sedutoramente, assim como fazia com Lev na garagem. Sentindo uma pontada de ciúme, teve vontade de dar um soco na boca daquele varapau. Cruzou olhares com Olga e lançou-lhe seu sorriso mais charmoso, mas ela desviou os olhos sem cumprimentá-lo. Os outros jovens o ignoraram totalmente.
Aquilo era mais que natural, pensou com seus botões: uma garota podia ser simpática com o chofer enquanto estivesse fumando na garagem e depois tratá-lo como se não existisse quando estava acompanhada pelos amigos. Ainda assim, seu orgulho ficou ferido.
Ele deu as costas para o grupo – e viu o pai de Olga descendo o caminho de cascalho em direção à quadra de tênis. Vyalov usava roupas de trabalho, um terno informal com colete. Vinha cumprimentar os convidados da filha antes de voltar para o centro, imaginou Lev.
A qualquer instante, veria a filha fumando – e ela estaria em apuros.
Inspirado, Lev deu dois passos e chegou até onde Olga estava sentada. Com um movimento rápido, arrancou o cigarro aceso de seus dedos.
– Ei! – protestou ela.
Gus Dewar fechou o rosto e perguntou:
– O que você acha que está fazendo?
Lev virou-lhes as costas, levando o cigarro à boca. Logo em seguida, foi visto por Vyalov.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou, contrariado. – Vá pegar o carro.
– Sim, senhor – respondeu Lev.
– E apague esse raio de cigarro quando estiver falando comigo.
Lev apagou a brasa e guardou a guimba no bolso.
– Desculpe, Sr. Vyalov, eu me distraí.
– Que isso não se repita.
– Sim, senhor.
– Agora saia daqui.
Lev se afastou a passos largos, então olhou por cima do ombro. Os rapazes haviam se levantado com um pulo e Vyalov apertava alegremente a mão de todos. Olga, com ar culpado, apresentava os amigos ao pai. Quase havia sido apanhada. Cruzou olhares com Lev, fitando-o com uma expressão agradecida.
Lev retribuiu com uma piscadela e continuou andando.
A sala de estar de Ursula Dewar tinha alguns enfeites, cada qual precioso à sua maneira: um busto de mármore de Elie Nadelman, uma primeira edição da Bíblia de Genebra, uma rosa solitária em um vaso de vidro lapidado e um retrato emoldurado de seu avô, que abrira uma das primeiras lojas de departamentos dos Estados Unidos. Quando Gus entrou na sala, às seis da tarde, ela estava sentada ali, com um vestido de noite de seda, lendo um romance chamado O bom soldado.
– Que tal o livro? – perguntou ele.
– Extraordinário, mas, paradoxalmente, ouvi dizer que o autor é um canalha da pior espécie.
Ele preparou-lhe um coquetel de uísque com angustura, bem do jeito que ela gostava, sem açúcar. Estava nervoso. Na minha idade, já não deveria ter medo da minha mãe, pensou. Mas ela podia ser extremamente mordaz. Entregou-lhe o drinque.
– Obrigada – agradeceu ela. – Está gostando das suas férias de verão?
– Muito.
– Achei que a esta altura você já fosse estar ansioso para retornar ao burburinho de Washington e da Casa Branca.
Gus tinha imaginado o mesmo, mas as férias haviam trazido prazeres inesperados.
– Eu voltarei assim que o presidente voltar, mas, por enquanto, estou me divertindo bastante.
– Você acha que Woodrow vai declarar guerra à Alemanha?
– Espero que não. Os alemães estão dispostos a recuar, mas querem que os americanos parem de vender armas aos Aliados.
– E nós vamos parar? – Ursula era descendente de alemães, assim como cerca de metade da população de Buffalo, mas, quando dizia “nós”, referia-se aos Estados Unidos.
– De jeito nenhum. Nossas fábricas estão ganhando dinheiro demais com as encomendas britânicas.
– Então é um impasse?
– Ainda não. Por ora, estamos pisando em ovos. Enquanto isso, como se quisesse nos lembrar de que os países neutros estão sob pressão, a Itália se uniu aos Aliados.
– Isso vai fazer alguma diferença?
– Não o suficiente. – Gus respirou fundo. – Eu fui jogar tênis na casa dos Vyalov hoje à tarde – disse. Sua voz não soou tão despreocupada quanto ele esperava.
– Você ganhou, querido?
– Ganhei. Eles têm uma Prairie House. É impressionante..
– Que coisa mais nouveau riche.
– Se não me engano, nós também já fomos nouveaux riches um dia, não? Quando seu avô abriu a loja, talvez?
– Acho uma chatice quando você começa a falar como um socialista, Angus, mesmo sabendo que não é a sério. – Ela tomou um gole da bebida. – Hum, está perfeito!
Ele tornou a respirar fundo.
– Mãe, você faria uma coisa para mim?
– É claro, querido, se eu puder.
– Você não vai gostar.
– O que é?
– Quero que convide a Sra. Vyalov para um chá.
Sua mãe pousou a bebida com um gesto lento e deliberado.
– Entendo – disse ela.
– Não vai me perguntar por quê?
– Eu sei por quê – respondeu ela. – Só existe um motivo possível. Eu conheci a filha deslumbrante deles.
– A senhora não deveria ficar zangada. Vyalov é um homem importante nesta cidade, além de muito rico. E Olga é um anjo.
– Ou, se não for um anjo, pelo menos que seja cristã.
– Os Vyalov são da Igreja Ortodoxa Russa – disse Gus. Era melhor dar logo todas as notícias ruins, pensou. – Frequentam a Igreja de São Pedro e São Paulo na Ideal Street. – Os Dewar pertenciam à Igreja Episcopal.
– Mas não são judeus, graças a Deus. – Sua mãe já tivera medo de que Gus se casasse com Rachel Abramov, de quem ele gostara muito, mas que nunca chegara a amar. – E imagino que podemos ficar gratos pelo fato de Olga não ser uma caçadora de fortunas.
– Podemos mesmo. Tenho a impressão de que Vyalov é mais rico do que papai.
– Não faço a menor ideia. – Não ficava bem que mulheres como Ursula entendessem de dinheiro. Gus desconfiava que elas soubessem o valor da fortuna dos seus maridos e dos maridos das amigas até o último centavo, mas tinham que fingir ignorância.
Ela não ficou tão zangada quanto ele temera.
– Então a senhora faria isso? – perguntou, ansioso.
– É claro. Vou mandar um convite para a Sra. Vyalov.
Apesar de eufórico, Gus foi invadido por um novo temor.
– Veja bem, não vá convidar suas amigas esnobes para fazer a Sra. Vyalov se sentir inferior.
– Eu não tenho nenhuma amiga esnobe.
O comentário foi tão absurdo que ele nem o levou em consideração.
– Convide a Sra. Fischer, ela é simpática. E tia Gertrude.
– Está certo.
– Obrigado, mãe. – Gus sentiu um grande alívio, como se tivesse sobrevivido a um calvário. – Eu sei que Olga não é a noiva que você teria sonhado para mim, mas estou certo de que em pouquíssimo tempo irá gostar muito dela.
– Meu filho querido, você já está com quase 26 anos. Cinco anos atrás, eu poderia ter tentado convencê-lo a não se casar com a filha de um empresário de reputação duvidosa. Mas, ultimamente, o que tenho pensado é se algum dia terei netos. A esta altura, se você me dissesse que quer se casar com uma garçonete polonesa divorciada, minha primeira preocupação seria se ela é jovem o suficiente para ter filhos.
– Não apresse as coisas... Olga não aceitou se casar comigo. Eu nem mesmo pedi a mão dela.
– Mas como ela poderia resistir a você? – Ela se levantou e o beijou. – Agora, prepare outro drinque para mim.
– Você salvou a minha vida! – disse Olga a Lev. – Papai teria me matado.
Lev sorriu.
– Eu o vi chegando. Tive que agir depressa.
– Estou tão agradecida! – disse Olga, dando-lhe um beijo na boca.
Lev ficou espantado. Ela se afastou antes que ele pudesse se aproveitar do momento, mas ele sentiu de imediato que havia chegado a um nível totalmente diferente em sua relação com Olga. Nervoso, correu os olhos pela garagem, mas os dois estavam sozinhos.
A jovem sacou um maço e levou um cigarro à boca. Ele o acendeu, imitando Gus Dewar na véspera. Era um gesto íntimo, que obrigava a mulher a inclinar a cabeça e permitia que o homem observasse seus lábios. Era um tanto romântico.
Olga se reclinou no banco traseiro do Packard e soprou a fumaça. Lev entrou no carro e sentou-se ao seu lado. Ela não reclamou. Ele também acendeu um cigarro. Os dois passaram algum tempo sentados na penumbra, a fumaça de seus cigarros se misturando ao cheiro de óleo, de couro e do perfume floral que Olga usava.
Para quebrar o silêncio, Lev disse:
– Espero que tenha gostado da sua festa na quadra de tênis.
Ela deu um suspiro.
– Todos os rapazes da cidade têm medo do meu pai – disse ela. – Acham que ele vai lhes dar um tiro se me beijarem.
– E ele vai mesmo?
Ela riu.
– É provável.
– Eu não tenho medo dele. – Isso era quase verdade. A questão não era que Lev não sentisse medo, mas sim que o ignorava, sempre contando com sua lábia para escapar de qualquer problema.
Mas ela não pareceu acreditar.
– Tem certeza?
– Foi por isso que ele me contratou. – Isso também estava algo distante da realidade, mas não muito. – Pergunte a ele.
– Talvez eu pergunte mesmo.
– Gus Dewar gosta bastante da senhorita.
– Meu pai adoraria que eu me casasse com ele.
– Por quê?
– Ele é rico, sua família pertence à velha aristocracia de Buffalo e o pai dele é senador.
– Você sempre faz o que o seu pai quer?
Ela tragou o cigarro, pensativa.
– Sempre – respondeu, soprando a fumaça.
– Adoro olhar para a sua boca quando você fuma – disse Lev.
Ela ficou calada, mas lançou-lhe um olhar curioso.
Isso foi um convite suficiente para Lev, e ele a beijou.
Ela soltou um pequeno gemido no fundo da garganta e empurrou seu peito de leve com a mão, mas nenhum dos dois protestos foi muito sério. Ele jogou o cigarro para fora do carro e pôs a mão em seu seio. Ela agarrou-lhe o pulso como se fosse empurrar sua mão para longe, mas, em vez disso, apertou-a com mais força contra a carne macia.
Lev tocou seus lábios fechados com a língua. Ela se afastou para encará-lo, assustada. Ele percebeu que Olga não sabia que as pessoas se beijavam daquele jeito. Era mesmo inexperiente.
– Está tudo bem – disse ele. – Confie em mim.
Ela atirou o cigarro longe, puxou-o para mais perto, fechou os olhos e o beijou com a boca aberta.
Depois disso, tudo aconteceu muito depressa. O desejo de Olga tinha uma urgência desesperada. Lev, que já estivera com várias mulheres, achava mais sensato deixar que elas determinassem o ritmo. Não se podia apressar uma mulher titubeante, enquanto uma mulher impaciente não devia ser contida. Quando conseguiu pôr a mão sob a roupa de baixo de Olga e acariciou o relevo macio de seu sexo, ela ficou tão excitada que soluçou de paixão. Se ela havia de fato chegado aos 20 anos sem ser beijada por nenhum dos rapazes tímidos de Buffalo, provavelmente estava cheia de frustração contida, imaginou. Ela ergueu os quadris com sofreguidão para que Lev tirasse sua calcinha. Quando ele a beijou entre as pernas, ela soltou um grito de espanto e prazer. Com certeza era virgem, mas ele estava excitado demais para que essa constatação o fizesse parar.
Ela se deitou com um dos pés em cima do banco e o outro no chão, com a saia embolada em volta da cintura e as coxas separadas, pronta para recebê-lo. Tinha a boca aberta e a respiração ofegante. Ficou observando com os olhos arregalados enquanto ele desabotoava a calça. Ele a penetrou com cautela, sabendo como era fácil machucar uma garota ali, mas Olga agarrou-lhe os quadris e o puxou para dentro de si com impaciência, como se temesse que, no último instante, fossem lhe tirar o que queria. Ele sentiu a membrana de sua virgindade resistir por um instante, rompendo-se com facilidade em seguida – o que provocou nela apenas um leve arquejo, como numa pontada de dor que tivesse desaparecido tão rápido quanto surgira. Ela se moveu contra o corpo de Lev, estabelecendo seu próprio ritmo, e novamente ele a deixou conduzir a situação, sentindo que ela estava cedendo a um impulso irresistível.
Para ele, fazer amor nunca tinha sido tão excitante. Algumas garotas eram experientes; outras, inocentes mas dispostas a agradar o parceiro; outras ainda faziam questão de satisfazer o homem antes de buscar o próprio prazer. Mas Lev nunca havia encontrado um desejo em estado tão bruto quanto o de Olga, o que, por sua vez, o deixou mais excitado do que nunca.
Ele se conteve. Olga deu um grito e ele tapou-lhe a boca com a mão para abafar o som. Empinando feito um pônei, ela enterrou o rosto em seu ombro. Com uma exclamação contida, chegou ao orgasmo e, logo em seguida, ele também.
Lev saiu de cima dela e sentou-se no chão. Ela continuou deitada, ofegante. Durante um minuto inteiro, ficaram os dois calados. Depois de algum tempo, ela se sentou.
– Meu Deus! – falou. – Eu não sabia que seria assim.
– Geralmente não é – respondeu ele.
Houve uma pausa longa, introspectiva, e então ela perguntou em voz baixa:
– O que foi que eu fiz?
Ele não respondeu.
Olga pegou a calcinha no chão do carro e a vestiu. Ainda ficou mais alguns instantes sentada, recuperando o fôlego, então saiu do carro.
Lev ficou olhando para ela, esperando que dissesse alguma coisa, mas ela não falou nada. Caminhou até a porta dos fundos da garagem, abriu-a e foi embora.
Mas voltou no dia seguinte.
Edith Galt aceitou o pedido de casamento do presidente Wilson no dia 29 de junho. Em julho, o presidente voltou temporariamente à Casa Branca.
– Preciso voltar para Washington por alguns dias – disse Gus a Olga, enquanto os dois passeavam pelo Jardim Zoológico de Buffalo.
– Quantos?
– Enquanto o presidente precisar de mim.
– Que emocionante!
Gus aquiesceu.
– É o melhor emprego do mundo. Mas também significa que não tenho controle sobre a minha vida. Se a crise com a Alemanha piorar, posso demorar bastante para voltar a Buffalo.
– Vamos sentir sua falta.
– E eu vou sentir a sua. Ficamos tão amigos desde que voltei para cá. – Os dois tinham ido passear de barco no lago do Delaware Park e tomar banho em Crystal Beach; tinham subido o rio num vapor até Niagara Falls e atravessado o lago até o Canadá; e também jogado tênis dia sim, dia não, sempre com um grupo de jovens amigos e observados no mínimo por uma mãe atenta. Naquele dia, a Sra. Vyalov os acompanhava, andando alguns passos mais atrás e conversando com Chuck Dixon. – Você nem faz ideia de quanto vou sentir saudades suas.
Olga sorriu, mas não respondeu nada.
– Este foi o verão mais feliz da minha vida – disse Gus.
– Da minha também! – falou ela, girando a sombrinha vermelha e branca de bolinhas.
Gus ficou encantado ao ouvir aquilo, embora não tivesse certeza de que era a sua companhia a causa da felicidade dela. Ainda não conseguia entendê-la por completo. Olga sempre parecia gostar de encontrá-lo e conversava de bom grado com ele por horas a fio. Mas Gus não conseguia ver nenhuma emoção, nenhum sinal de que seus sentimentos por ele pudessem ser de paixão, e não só de amizade. É claro que uma moça respeitável jamais deveria deixar transparecer esse tipo de coisa, pelo menos não até ficar noiva – mas, mesmo assim, Gus estava confuso. Talvez esse fosse um dos seus atrativos.
Ele não se esquecia de como Caroline Wigmore costumava lhe dizer o que queria com uma clareza inconfundível. Pegava-se pensando muito nela, a única mulher, além de Olga, que já havia amado. Se ela era capaz de deixar claros os seus desejos, por que Olga não conseguia? Caroline, no entanto, era uma mulher casada, enquanto Olga era uma moça virgem criada em um ambiente protegido.
Gus parou em frente à jaula do urso-pardo e eles ficaram olhando por entre as barras de aço para o pequeno urso que os encarava de volta.
– Fico pensando se todos os nossos dias poderiam ser felizes assim – disse Gus.
– Por que não? – indagou ela.
Seria essa resposta um incentivo? Gus lançou-lhe um olhar. Ela não o retribuiu, continuando a fitar o urso. Ele examinou seus olhos azuis, a curva suave de sua bochecha rosada, a pele delicada de seu pescoço.
– Quem me dera ser Ticiano – falou. – Eu pintaria você.
A mãe dela e Chuck passaram pelos dois e continuaram andando, deixando Gus e Olga para trás. Os dois estavam mais a sós do que jamais ficariam.
Ela finalmente o encarou e Gus pensou ver em seu olhar algo semelhante a ternura. Isso lhe deu coragem. Ele pensou: se um presidente que ficou viúvo há menos de um ano consegue fazer isso, por que eu não conseguiria?
– Eu amo você, Olga – disse ele.
Ela ficou calada, mas continuou a encará-lo.
Ele engoliu em seco. Mais uma vez, não conseguia desvendá-la.
– Será que existe alguma chance... – começou. – Será que eu posso ter esperanças de que um dia você me ame também? – Ele a fitou nos olhos, com a respiração presa. Ali, naquele instante, sua vida estava nas mãos dela.
Houve uma pausa demorada. Será que ela estava pensando? Pesando os prós e os contras? Ou apenas hesitando antes de uma decisão que mudaria sua vida?
Por fim, Olga sorriu e disse:
– Ah, sim.
Ele mal conseguiu acreditar.
– Sério?
Ela riu com alegria.
– Sério.
Ele apanhou sua mão.
– Você me ama?
Ela aquiesceu.
– Você tem que falar.
– Sim, Gus, eu amo você.
Ele beijou-lhe a mão.
– Vou falar com seu pai antes de voltar para Washington.
Ela sorriu.
– Acho que eu sei o que ele vai dizer.
– Depois disso, podemos contar para todo mundo.
– Sim.
– Obrigado – disse ele com fervor. – Você me fez muito feliz.
Gus foi até o escritório de Josef Vyalov pela manhã para lhe pedir formalmente a mão de sua filha em casamento. Vyalov se disse encantado. Por mais que já esperasse essa resposta, o rapaz ficou com as pernas bambas de tanto alívio.
Como Gus estava a caminho da estação para pegar um trem rumo a Washington, concordaram em adiar a comemoração para quando ele conseguisse voltar, deixando os preparativos a cargo da mãe de Olga e da sua.
Ao entrar saltitante na Central Station, na Exchange Street, ele topou com Rosa Hellman, que vinha saindo com um chapéu vermelho, carregando uma pequena valise.
– Olá – cumprimentou ele. – Posso ajudá-la com a sua bagagem?
– Não, obrigada, está leve – respondeu ela. – Passei só uma noite fora. Fui fazer uma entrevista numa agência de notícias.
Ele arqueou as sobrancelhas.
– Para uma vaga de repórter?
– Sim. E consegui.
– Meus parabéns! Perdoe-me se pareci surpreso... Achava que as agências não contratassem repórteres do sexo feminino.
– É raro, mas já aconteceu. O New York Times contratou sua primeira repórter mulher em 1869. O nome dela era Maria Morgan.
– E o que você vai fazer?
– Vou ser assistente do correspondente em Washington. A verdade é que a vida amorosa do presidente os fez pensar que eles precisam de uma mulher lá. Os homens costumam deixar passar as matérias românticas.
Gus ficou imaginando se ela teria mencionado ser amiga de um dos assessores mais próximos de Wilson. Achou que sim: repórteres nunca tinham esse tipo de prurido. Sem dúvida a havia ajudado a conseguir o emprego.
– Eu estou voltando – disse ele. – Pelo jeito, nos vemos lá.
– Espero que sim.
– Também tenho boas notícias – disse ele, cheio de alegria. – Pedi Olga Vyalov em casamento e ela disse sim. Nós vamos nos casar.
Ela o olhou demoradamente, então disse:
– Seu idiota.
Gus teria ficado menos chocado se ela houvesse lhe dado um tapa. Ficou olhando para ela, boquiaberto.
– Seu grandessíssimo idiota! – repetiu ela e saiu andando.
Dois outros americanos morreram no dia 19 de agosto, quando os alemães torpedearam outro grande navio britânico, o Arabic.
Gus sentiu pena das vítimas, mas ficou ainda mais consternado com o fato de os Estados Unidos estarem sendo arrastados, de forma inexorável, em direção ao conflito europeu. Sentia que o presidente estava a um passo de dar início às hostilidades. Gus queria se casar em um mundo de paz e felicidade; causava-lhe horror pensar em um futuro conspurcado pelo caos, pela crueldade e pela destruição da guerra.
Conforme as instruções de Wilson, Gus disse a alguns repórteres, em off, que o presidente estava prestes a romper relações diplomáticas com a Alemanha. Enquanto isso, o novo secretário de Estado, Robert Lansing, tentava fazer algum tipo de acordo com o embaixador alemão, conde Johann von Bernstorff.
Aquilo poderia sair terrivelmente errado, pensou Gus. Os alemães poderiam denunciar o blefe de Wilson e confrontá-lo. O que ele faria então? Se ficasse de braços cruzados, passaria por idiota. O presidente disse a Gus que o rompimento das relações diplomáticas não necessariamente levaria à guerra. Gus ficou com a sensação apavorante de que a crise estava fora de controle.
O Kaiser, no entanto, não queria uma guerra contra os Estados Unidos, e, para imenso alívio de Gus, a aposta de Wilson deu certo. No final de agosto, os alemães prometeram não atacar navios de passageiros sem aviso prévio. Não era uma garantia totalmente satisfatória, mas pelo menos pôs fim ao impasse.
Os jornais norte-americanos, que não pescaram nenhuma das sutilezas envolvidas, mostraram-se exultantes. No dia 2 de setembro, Gus leu em voz alta para Wilson, em tom triunfal, um parágrafo de um artigo elogioso publicado no New York Evening Post daquele dia:
– “Sem mobilizar regimento algum nem reunir uma frota sequer, graças à simples, tenaz e incansável persistência na defesa do que é certo, ele forçou à rendição a mais orgulhosa, arrogante e bem armada de todas as nações.”
– Eles ainda não se renderam – comentou o presidente.
Em uma noite no final de setembro, Lev foi levado até o depósito, despido de todas as roupas e teve as mãos amarradas nas costas. Então Vyalov saiu de seu escritório.
– Seu cachorro! – disse ele. – Seu cachorro louco!
– O que eu fiz? – implorou Lev.
– Você sabe muito bem, seu vira-lata imundo – respondeu Vyalov.
Lev estava aterrorizado. Não conseguiria se safar na base da lábia caso Vyalov se recusasse a escutá-lo.
Vyalov tirou o paletó e arregaçou as mangas da camisa.
– Vá buscar – ordenou.
Norman Niall, seu contador franzino, entrou no escritório e voltou trazendo um cnute.
Lev olhou para o instrumento. Era um açoite do tipo russo, usado tradicionalmente para punir criminosos. Tinha um cabo de madeira comprido e três correias de couro reforçado, cada qual com uma bola de chumbo na ponta. Lev nunca havia sido açoitado na vida, mas já vira o castigo ser aplicado. Na zona rural, era uma punição corriqueira para pequenos roubos ou adultério. Em São Petersburgo, o cnute era reservado, em geral, para criminosos políticos. Vinte chibatadas poderiam deixar um homem aleijado; cem o mandavam para a cova.
Ainda usando o colete transpassado pela corrente de seu relógio de ouro, Vyalov ergueu o cnute. Niall deu uma risadinha. Ilya e Theo observavam com interesse.
Amedrontado, Lev tentou fugir, virando-se de costas e indo se encolher junto a uma pilha de pneus. O açoite varou o ar com um sibilo cruel, acertando-lhe o pescoço e os ombros, e ele soltou um grito de dor.
Vyalov o golpeou novamente com o cnute. Desta vez, a dor foi maior.
Lev não conseguia acreditar no tamanho de sua idiotice. Havia trepado com a filha virgem de um homem poderoso e violento. Onde é que estava com a cabeça? Por que nunca conseguia resistir à tentação?
Vyalov tornou a bater. Desta vez, Lev se esquivou do cnute, tentando evitar o golpe. Apenas as pontas das correias o atingiram, mas, ainda assim, cravaram-se em sua carne, causando uma dor excruciante e fazendo-o gritar novamente. Tentou se afastar, mas os homens de Vyalov o empurraram de volta, rindo.
Vyalov voltou a erguer o açoite, começou a descê-lo, interrompeu o movimento enquanto Lev se esquivava e por fim desferiu o golpe. As pernas de Lev foram cortadas e ele viu sangue escorrendo das feridas. Quando Vyalov golpeou mais uma vez, ele começou a correr para longe, desesperado, então tropeçou e caiu no chão de concreto. Enquanto ficava deitado de costas, perdendo as forças com rapidez, Vyalov o açoitou na parte da frente, atingindo sua barriga e suas coxas. Lev se virou de bruços, ferido e amedrontado demais para se levantar, mas o cnute não dava trégua. Ele reuniu energia suficiente para engatinhar um pouco, feito um bebê, mas escorregou no próprio sangue e o açoite tornou a castigá-lo. Ele parou de gritar: não tinha mais fôlego. Concluiu que Vyalov iria açoitá-lo até a morte. Tudo o que queria era perder os sentidos.
Vyalov, contudo, negou-lhe esse alívio. Ofegante por conta do esforço, ele deixou cair o cnute.
– Eu deveria matar você – disse ele, após recuperar o fôlego. – Mas não posso.
Lev ficou perplexo. Deitado em uma poça de sangue, voltou-se e encarou seu torturador.
– Ela está grávida – falou Vyalov.
Em meio a uma névoa de medo e dor, Lev tentou raciocinar. Eles haviam usado preservativos. Era possível comprá-los em qualquer grande cidade americana. Ele nunca tinha deixado de colocá-los... exceto naquela primeira vez, é claro, quando imaginava que nada fosse acontecer... e naquela outra em que ela decidira lhe mostrar a casa vazia e os dois haviam transado na cama grande do quarto de hóspedes... além daquela ocasião no jardim, depois do escurecer...
Percebeu que tinham sido várias vezes.
– Ela ia se casar com o filho do senador Dewar – disse Vyalov, e Lev pôde detectar tanto amargura quanto raiva na voz áspera. – O meu neto poderia ter sido presidente.
Lev estava com dificuldade para pensar direito, mas entendeu que o casamento teria de ser cancelado. Gus Dewar jamais se casaria com uma garota grávida de outro homem, por mais que a amasse. A menos que...
Lev conseguiu articular algumas palavras roucas:
– Ela não precisa ter o bebê... existem médicos aqui mesmo na cidade...
Vyalov apanhou de volta o cnute e Lev se encolheu.
– Nem pense numa coisa dessas! – gritou Vyalov. – É contra a vontade de Deus!
Lev ficou pasmo. Conduzia a família Vyalov à igreja todos os domingos, mas sempre havia pensado que, para Josef, a religião fosse uma farsa. O homem levava uma vida de desonestidade e violência. E, mesmo assim, não podia ouvir falar em aborto! Lev teve vontade de perguntar se a Igreja dele não proibia subornos e espancamentos.
– Você tem ideia da humilhação que está me causando? – perguntou Vyalov. – Todos os jornais da cidade anunciaram o noivado. – O rosto dele ficou vermelho e sua voz se transformou em um rugido. – O que vou dizer ao senador Dewar? Eu já reservei a igreja! Já contratei o bufê! Os convites estão na gráfica! Posso até ver a Sra. Dewar, aquela vaca velha e arrogante, rindo de mim por trás daquela mão enrugada. E tudo por causa de uma porra de um chofer!
Ele tornou a erguer o cnute, mas então o atirou longe com um gesto brusco.
– Não posso matar você. – Ele se virou para Theo. – Leve este merda ao médico – ordenou. – Peça para darem um jeito nele. Ele vai se casar com a minha filha.
Junho de 1916
– Podemos ter uma conversinha, rapaz? – perguntou o pai de Billy.
Billy ficou espantado. Há quase dois anos, desde que ele tinha parado de frequentar a Capela de Bethesda, os dois mal se falavam. Havia sempre uma tensão no ar na pequena casa de Wellington Row. Billy quase não se lembrava mais de como era ouvir vozes conversando em tom tranquilo e amigável na cozinha – ou mesmo em tom exaltado, como durante as discussões acaloradas que eles costumavam ter. O clima ruim em casa era metade da razão que levara Billy a se alistar no Exército.
O tom de Da, no entanto, era quase humilde. Billy examinou a expressão do pai com cuidado. Seu rosto estava em sintonia com a voz: nenhuma hostilidade, nenhuma provocação, apenas um pedido.
Mesmo assim, Billy não estava preparado para dançar conforme a música dele.
– Para quê? – perguntou.
Da abriu a boca para retrucar com rispidez, mas se conteve.
– Eu agi com orgulho – disse ele. – Isso é um pecado. Talvez você também tenha sido orgulhoso, mas essa questão é entre você e o Senhor, não serve de desculpa para mim.
– Levou dois anos para o senhor perceber isso?
– Teria levado mais ainda se você não tivesse entrado para o Exército.
Billy e Tommy haviam se alistado voluntariamente no ano anterior, após mentirem a respeito da idade. Entraram para o 8o Batalhão dos Fuzileiros Galeses, conhecido como Aberowen Pals, ou “amigos de Aberowen”. Os batalhões daquele tipo eram uma ideia recente. Homens da mesma cidade eram mantidos juntos para treinar e combater ao lado de pessoas que conheciam desde crianças. Isso era considerado bom para o moral das tropas.
O grupo de Billy havia treinado durante um ano, na maior parte do tempo em um quartel novo perto de Cardiff. Ele havia gostado da experiência. Era mais fácil do que extrair carvão e bem menos perigoso. Além de uma boa quantidade de puro tédio – “treinamento” muitas vezes significava o mesmo que “espera” –, havia esportes, jogos e a camaradagem de um grupo de rapazes aprendendo coisas novas. Durante um longo período sem nada para fazer, ele havia apanhado um livro a esmo e, quando se deu conta, estava lendo a peça Macbeth. Para sua surpresa, ficara empolgado com a história e achara a poesia do texto estranhamente fascinante. A língua de Shakespeare não era difícil para quem tinha passado tantas horas estudando o inglês seiscentista da Bíblia protestante. Desde então, ele tinha lido a obra completa do autor, relendo várias vezes as melhores peças.
Agora o treinamento havia terminado e o batalhão tinha dois dias de folga antes de ir para a França. Da achava que talvez aquela seria a última vez que veria Billy com vida. Devia ser por isso que estava descendo do seu pedestal para conversar.
Billy olhou para o relógio. Fora até lá apenas para se despedir da mãe. Estava planejando passar a folga em Londres, com a irmã Ethel e sua inquilina sensual. O rosto bonito de Mildred, com seus lábios vermelhos e seus dentes de coelho, não lhe havia saído da cabeça desde que ela o chocara ao dizer: Puta merda, você é o Billy? Sua bolsa de soldado estava no chão ao lado da porta, carregada e pronta. As obras completas de Shakespeare faziam parte da bagagem. Tommy o aguardava na estação.
– Tenho um trem para pegar – disse ele.
– Há trens de sobra – falou Da. – Sente-se, Billy... por favor.
O rapaz não se sentia à vontade com o pai daquele jeito. Da podia ser moralista, arrogante e duro, mas pelo menos era forte. Billy não queria vê-lo fraquejar.
Gramper estava sentado em sua cadeira de sempre, escutando a conversa.
– Vamos, Billy, seja um bom garoto – disse, tentando convencer o neto. – Dê uma chance ao seu pai, sim?
– Então está bem. – Billy sentou-se à mesa da cozinha.
Sua mãe entrou vinda da área de serviço.
Houve um instante de silêncio. Billy se deu conta de que poderia nunca mais entrar naquela casa. Ao voltar de um quartel do Exército, percebera pela primeira vez como ela era pequena, os cômodos escuros, o ar carregado de poeira de carvão e cheiro de comida. Acima de tudo, depois de viver no clima descontraído do alojamento militar, entendera que havia sido criado dentro de uma moral religiosa inflexível, em que muito daquilo que era humano e natural fora reprimido. Ainda assim, a ideia de ir embora dali o deixava triste. Não estava deixando para trás apenas aquele lugar, mas aquela vida também. Tudo ali tinha sido simples. Ele havia acreditado em Deus, obedecido ao pai e confiado em seus colegas na mina. Os donos da mineradora eram maus, o sindicato protegia os trabalhadores e o socialismo oferecia um futuro melhor. Mas a vida não era tão simples assim. Ele poderia até voltar a Wellington Row, mas jamais voltaria a ser o menino que havia morado ali.
Da entrelaçou os dedos das mãos, fechou os olhos e disse:
– Ó, Deus, ajude Seu servo a ser humilde e dócil como Jesus. – Então abriu os olhos e perguntou: – Por que você fez isso, Billy? Por que se alistou?
– Porque nós estamos em guerra – respondeu o rapaz. – Quer o senhor goste ou não, temos que lutar.
– Mas você não percebe... – Da se interrompeu e ergueu a mão em um gesto de paz. – Deixe-me começar de novo. Você não acredita no que leu nos jornais sobre os alemães serem homens maus que estupram freiras, acredita?
– Não – respondeu Billy. – Os jornais nunca disseram nada além de mentiras sobre os mineradores, então duvido que estejam falando a verdade em relação aos alemães.
– Para mim, esta é uma guerra capitalista que não tem nada a ver com a classe trabalhadora – falou Da. – Mas talvez você não concorde.
Billy estava impressionado com o esforço do pai para se mostrar diplomático. Era a primeira vez na vida que o ouvia dizer talvez você não concorde.
– Eu não sei grande coisa sobre capitalismo – retrucou –, mas imagino que o senhor tenha razão. Mesmo assim, alguém precisa deter os alemães. Eles se acham no direito de governar o mundo!
– Nós somos britânicos – falou Da. – Nosso império tem sob seu domínio mais de 400 milhões de pessoas. Quase nenhuma delas possui direito de voto. Elas não têm controle sobre seus próprios países. Pergunte ao britânico médio qual é a razão disso e ele responderá que governar povos inferiores é o nosso destino. – Da estendeu as mãos uma para cada lado em um gesto que significava Não é óbvio? – Billy, meu filho, não são os alemães que se acham no direito de governar o mundo... somos nós!
Billy suspirou. Concordava com tudo aquilo.
– Mas nós estamos sendo atacados. Os motivos da guerra podem estar errados, mas precisamos lutar assim mesmo.
– Quantos homens morreram nos últimos dois anos? – perguntou Da. – Milhões! – Sua voz saiu um pouco mais alta, porém ele estava mais triste do que irritado. – Isso vai continuar enquanto houver rapazes dispostos a matar uns aos outros assim mesmo, como você diz.
– Vai continuar até alguém vencer, me parece.
– Imagino que você esteja com medo de ser visto como covarde – disse sua mãe.
– Não é isso – respondeu ele, mas sua mãe tinha razão.
Suas justificativas racionais para o fato de ter se alistado eram só parte da verdade. Como sempre, Mam enxergou dentro do seu coração. Há quase dois anos Billy vinha lendo e ouvindo falar que rapazes saudáveis como ele eram covardes se não lutassem. Era o que saía nos jornais e o que as pessoas diziam nas lojas e nos pubs. No centro de Cardiff, garotas bonitas entregavam penas brancas a qualquer rapaz sem farda, enquanto os sargentos encarregados do recrutamento zombavam dos jovens civis pelas ruas. Billy sabia que não passava de propaganda, mas nem por isso deixava de se abalar. Mal conseguia suportar a ideia de que as pessoas o considerassem um medroso.
Imaginava-se explicando àquelas garotas que distribuíam penas brancas que extrair carvão era mais perigoso do que estar no Exército. Com exceção dos soldados do front, a maioria tinha menos chances de morrer ou se ferir do que os mineradores. E a Grã-Bretanha precisava do carvão. Era ele que abastecia metade da Marinha. Na verdade, o governo havia pedido aos mineradores que não se alistassem. Mas nada disso fazia qualquer diferença. Desde que vestira a túnica e a calça do áspero uniforme cáqui e que calçara as botas novas e pusera o quepe sobre a cabeça, Billy se sentia melhor.
– As pessoas acham que vai haver uma grande ofensiva no final do mês – disse Da.
Billy aquiesceu.
– Os oficiais não dizem nada, mas é o que todos os outros estão falando. Por isso, essa pressa toda em mandar mais homens para o front, imagino.
– Os jornais dizem que essa talvez seja a batalha que vai fazer a maré virar... o início do fim.
– Bem, tomara.
– Graças a Lloyd George, agora não deve mais faltar munição para vocês.
– É verdade. – No ano anterior, houvera uma escassez de projéteis. Os protestos da imprensa sobre o que ficou conhecido como o Escândalo dos Projéteis tinham quase derrubado o primeiro-ministro Asquith. Este havia formado um governo de coalizão, criado o novo cargo de ministro das Munições e confiado o posto ao membro mais popular do gabinete, David Lloyd George. Desde então, a produção havia aumentado vertiginosamente.
– Tente se cuidar – falou Da.
– Não banque o herói – disse Mam. – Deixe isso para quem começou a guerra... os aristocratas, os conservadores, os oficiais. Cumpra suas ordens e pronto.
– Guerra é guerra – disse Gramper. – Não tem como ser segura.
Eles estavam se despedindo. Billy sentiu uma vontade de chorar que reprimiu com dureza.
– Então é isso – falou, levantando-se.
Gramper apertou sua mão. Mam lhe deu um beijo. Da também apertou a mão dele, e então, cedendo a um impulso, o abraçou. Billy não conseguia se lembrar da última vez em que o pai fizera isso.
– Que Deus o abençoe e o proteja, Billy – falou Da. Seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Billy quase perdeu o autocontrole.
– Até a volta, então – disse.
Pegou sua sacola. Ouviu a mãe soluçar. Sem olhar para trás, saiu de casa e fechou a porta às suas costas.
Respirou fundo e se recompôs. Em seguida, começou a descer a rua íngreme em direção à estação.
O rio Somme serpenteava pela França de leste a oeste a caminho do mar. A frente de batalha, que corria de norte a sul, cruzava o rio não muito longe de Amiens. Mais ao sul, a linha de frente dos Aliados era defendida pelas tropas francesas até a Suíça. Ao norte, a maioria dos soldados vinha da Grã-Bretanha e da Commonwealth.
A partir dali, uma série de colinas se estendia a noroeste por cerca de 30 quilômetros. As trincheiras alemãs nessa região haviam sido escavadas na encosta das colinas. De dentro de uma delas, Walter von Ulrich espiava as posições britânicas através de um poderoso binóculo Zeiss Doppelfernrohr.
Era um dia de sol no começo do verão, e ele podia ouvir o canto dos pássaros. Em um pomar próximo que até então conseguira escapar da artilharia, corajosas macieiras floresciam. O homem era o único animal que matava seus semelhantes aos milhões e que transformava a natureza em um deserto de crateras de arame farpado. Talvez a raça humana acabasse se extinguindo por completo, deixando o mundo para os pássaros e árvores, pensou Walter, apocalíptico. Talvez fosse melhor assim.
A localização elevada tinha muitas vantagens, refletiu ele, voltando a pensar em questões práticas. Os britânicos teriam que atacar encosta acima. Ainda mais útil era a capacidade dos alemães de verem tudo o que os inimigos estavam fazendo. E Walter teve certeza de que, naquele exato momento, eles estavam preparando um ataque maciço.
Era praticamente impossível ocultar uma atividade desse tipo. Há meses que os britânicos vinham, de forma preocupante, aprimorando as estradas e ferrovias daquela região antes sossegada do interior da França. Agora, usavam essas linhas de abastecimento para trazer centenas de armas pesadas, milhares de cavalos e dezenas de milhares de homens. Atrás da frente de batalha, fluxos constantes de caminhões e trens descarregavam caixotes de munição, barris de água potável e fardos de feno. Walter focalizou as lentes do binóculo em uma unidade de comunicações, que escavava uma trincheira estreita e desenrolava um rolo imenso, sem dúvida de cabo telefônico.
Eles devem estar sonhando alto, pensou, apreensivo. A mobilização de pessoal, dinheiro e esforços era colossal. A única justificativa para tanto seria os britânicos acharem que aquele ataque decidiria a guerra. Walter torcia para que fosse o caso – independentemente do resultado.
Sempre que olhava para o território inimigo, pensava em Maud. A fotografia que levava na carteira, um recorte da revista Tatler, mostrava-a usando um vestido de baile muito simples no Hotel Savoy, com a legenda Lady Maud Fitzherbert sempre vestida na última moda. Walter imaginou que ela não andasse dançando muito ultimamente. Será que havia encontrado uma maneira de participar do esforço de guerra, a exemplo da irmã de Walter, Greta, que levava pequenos agrados para os feridos nos hospitais de campanha de Berlim? Ou teria se refugiado no campo, como a mãe de Walter, que passara a plantar batatas nos canteiros de flores por causa da escassez de comida?
Ele não sabia se havia falta de alimentos na Grã-Bretanha. A Marinha alemã estava presa nos portos por conta do bloqueio britânico, de modo que as importações marítimas continuavam paralisadas há quase dois anos. Mas os ingleses recebiam mantimentos dos Estados Unidos. Submarinos alemães atacavam transatlânticos de forma intermitente, mas o alto-comando ainda não deslanchara um ataque total – conhecido como guerra submarina irrestrita – por medo de que isso fizesse os Estados Unidos entrarem na guerra. Portanto, Walter imaginava que Maud não deveria estar passando tanta fome quanto ele. Ainda assim, ele estava em melhor situação do que os civis alemães. Em algumas cidades, eclodiram greves e protestos contra a escassez de comida.
Ele não lhe escrevera, e ela tampouco. Não havia serviço postal entre a Alemanha e a Grã-Bretanha. A única chance seria se um deles viajasse até um país neutro – para os Estados Unidos ou a Suécia, talvez – e enviasse a carta de lá. Porém, ele ainda não tivera essa oportunidade – e, ao que tudo indicava, ela também não.
Era um suplício não saber nada a seu respeito. Walter vivia atormentado pelo temor de que ela pudesse estar no hospital, doente, sem ele saber. Ansiava pelo fim da guerra para poder ficar ao seu lado. Queria desesperadamente que a Alemanha vencesse, é claro, mas às vezes tinha a sensação de que não se importaria em perder, contanto que Maud ficasse bem. Seu maior pesadelo era, quando terminasse a guerra, voltar a Londres para encontrá-la e descobrir que estava morta.
Empurrou esse pensamento assustador para os confins de sua mente. Abaixou o binóculo, focalizou as lentes em um ponto mais próximo e examinou as defesas de arame farpado, do lado alemão da terra de ninguém. Eram dois cinturões, cada qual com uns cinco metros de largura. O arame farpado era preso ao chão com firmeza por estacas de ferro, o que tornava difícil movê-lo. Isso criava uma barreira formidável, tranquilizadora.
Ele saiu do parapeito da trincheira e depois desceu um longo lance de degraus de madeira, até um abrigo profundo. A desvantagem da posição na colina era que as trincheiras ficavam mais visíveis para a artilharia inimiga, então, para compensar, os abrigos naquele setor haviam sido escavados bem fundo no terreno, de modo a garantir proteção contra qualquer ataque – com a exceção de um disparo certeiro do maior tipo de projétil. Havia espaço para abrigar todos os homens da guarnição da trincheira durante um bombardeio. Alguns abrigos eram interligados, proporcionando uma saída alternativa caso o ataque bloqueasse a entrada.
Walter sentou-se em um banco de madeira e sacou seu bloco de anotações. Passou alguns minutos escrevendo lembretes resumidos sobre tudo o que tinha visto. Seu relatório confirmaria as informações de outras fontes da inteligência. Os agentes secretos já vinham alertando o alto-comando sobre o que os britânicos chamavam de “grande ofensiva”.
Ele percorreu o labirinto de trincheiras até a retaguarda. Os alemães haviam construído três linhas de trincheiras a dois ou três quilômetros de distância uma da outra, de modo que, se fossem rechaçados da linha de frente, poderiam se refugiar em uma segunda linha, e, caso isso também fracassasse, em uma terceira. Fosse qual fosse o resultado, pensou com uma satisfação considerável, os britânicos não teriam uma vitória fácil.
Walter pegou seu cavalo e foi até o quartel-general do Segundo Exército, chegando na hora do almoço. No refeitório dos oficiais, ficou surpreso ao encontrar o pai. Como oficial superior do Estado-Maior, Otto passara a ir de um campo de batalha a outro da mesma forma que, em tempos de paz, viajava entre as várias capitais europeias.
Otto estava com uma aparência envelhecida. Havia emagrecido – assim como todos os alemães. Sua franja de monge estava cortada tão curta que ele parecia careca. Mas também parecia lépido e alegre. A guerra lhe fazia bem. Ele gostava da agitação, da correria, das decisões rápidas e da sensação de emergência constante.
Seu pai nunca falava de Maud.
– O que você viu? – perguntou ele a Walter.
– Vai haver um ataque maciço aqui nesta região nas próximas semanas.
Otto sacudiu a cabeça com ceticismo.
– O setor do rio Somme é a parte mais bem defendida do nosso front. Nós temos a vantagem de uma posição elevada e três linhas de trincheiras. Em uma guerra, deve-se atacar o inimigo no ponto mais fraco, não no mais forte... até os britânicos sabem disso.
Walter relatou o que acabara de ver: os caminhões, os trens e a unidade de comunicações instalando linhas telefônicas.
– Acho que é um blefe – disse Otto. – Se este fosse o verdadeiro local do ataque, eles estariam mais preocupados em ocultar suas atividades. Haverá um ataque simulado aqui, seguido pela ofensiva de verdade mais ao norte, em Flandres.
– O que Von Falkenhayn pensa a respeito? – indagou Walter. Fazia quase dois anos que Erich von Falkenhayn era chefe do Estado-Maior.
Seu pai sorriu.
– Ele pensa o que eu digo para ele pensar.
Depois do almoço, enquanto o café era servido, lady Maud perguntou a lady Hermia:
– Tia, em caso de emergência, você saberia como entrar em contato com o advogado de Fitz?
Tia Herm pareceu ligeiramente chocada.
– Querida, por que eu iria me meter com advogados?
– Nunca se sabe. – Maud se virou para o mordomo, que pousava o bule de café sobre uma trempe de prata. – Grout, você me traria, por gentileza, uma folha de papel e um lápis? – Grout se retirou, voltando em seguida com o pedido. Maud escreveu o nome e o endereço do advogado da família.
– Por que eu precisaria disso? – perguntou tia Herm.
– Talvez eu seja presa hoje à tarde – disse Maud com animação. – Se for o caso, por favor, peça a ele para me tirar da cadeia.
– Ah! – exclamou tia Herm. – Você não pode estar falando sério!
– Não se preocupe, tenho certeza de que não vai chegar a tanto – falou Maud. – Mas é sempre bom se precaver, não é? – Ela deu um beijo na tia e saiu.
A atitude de tia Herm enfurecia Maud, mas era assim que a maioria das mulheres se comportava. Era impróprio para uma dama sequer saber o nome do seu próprio advogado, quanto mais compreender seus direitos legais. Não era de espantar que elas fossem exploradas sem dó.
Maud vestiu o chapéu, as luvas e um casaco leve de verão. Em seguida, saiu de casa e pegou um ônibus para Aldgate.
Estava sozinha. As regras quanto a acompanhantes haviam ficado menos rígidas desde o início da guerra. Já não era um escândalo uma mulher solteira sair desacompanhada durante o dia. Tia Herm reprovava essa mudança, mas não podia trancar Maud em casa – tampouco podia recorrer a Fitz, que estava na França, de modo que era obrigada a aceitar a situação, por mais emburrada que ficasse.
Maud era editora do jornal The Soldier’s Wife, “a esposa do soldado”, um periódico de baixa circulação que militava em prol de um tratamento mais justo aos dependentes dos militares. Um membro conservador do Parlamento havia descrito o jornal como “um estorvo pernicioso para o governo” – frase que desde então enfeitava o cabeçalho da primeira página de cada edição. A militância obstinada de Maud era movida por sua indignação perante a repressão contra as mulheres, bem como pelo horror que o massacre despropositado da guerra lhe causava. Usando sua pequena herança, ela subsidiava o jornal. Afinal, nem precisava daquele dinheiro: Fitz sempre arcava com todas as suas despesas.
Ethel Williams era gerente do jornal. Ficara feliz em trocar a fábrica de roupas por um salário melhor e por um papel na militância. Ethel compartilhava da indignação de Maud, mas suas habilidades eram outras. Maud entendia a política em seus níveis mais elevados: encontrava-se socialmente com ministros e conversava com eles sobre as questões da atualidade. Ethel conhecia um mundo político diferente: o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Têxtil, o Partido Trabalhista Independente, as greves, lockouts e passeatas.
Conforme o combinado, Maud encontrou Ethel em frente ao escritório de Aldgate da Associação das Famílias de Soldados e Marinheiros, só que do outro lado da rua.
Antes da guerra, essa bem-intencionada instituição de caridade permitia que senhoras ricas proporcionassem, generosamente, auxílio e conselhos às necessitadas mulheres dos militares. Agora seu papel era outro. O governo pagava uma libra e um xelim para cada mulher de soldado com dois filhos que estivesse separada do marido por causa da guerra. O benefício era conhecido como auxílio-separação. Não era grande coisa – cerca de metade do salário de um minerador –, mas bastava para tirar da miséria milhões de mulheres e crianças. A Associação das Famílias de Soldados e Marinheiros administrava essa pensão.
O dinheiro, no entanto, só era pago às mulheres que apresentassem “bom comportamento”, de modo que as administradoras da instituição às vezes não repassavam o benefício do governo àquelas que recusassem seus conselhos sobre criação dos filhos, administração da casa e os perigos de se frequentar cabarés e beber gim.
Maud também achava que seria melhor para aquelas mulheres ficarem longe do gim, mas isso não dava a ninguém o direito de jogá-las na miséria. Ficava possessa de indignação quando via gente de classe média e vida confortável dando lições de moral às esposas dos soldados e privando-as da oportunidade de alimentar os filhos. O Parlamento não permitiria um abuso desses, pensou, se as mulheres pudessem votar.
Junto com Ethel, havia uma dúzia de mulheres de classe operária e um homem, Bernie Leckwith, secretário do núcleo de Aldgate do Partido Trabalhista Independente. O partido aprovava o jornal de Maud e apoiava suas campanhas.
Quando Maud se juntou ao grupo reunido na calçada, Ethel estava conversando com um rapaz que segurava um bloco de anotações.
– O auxílio-separação não é uma esmola – dizia ela. – As mulheres dos soldados têm direito a esse dinheiro. O senhor por acaso precisa passar por um teste de boa conduta para receber seu salário de repórter? Alguém pergunta ao Sr. Asquith quanto vinho Madeira ele bebe antes de poder receber seus honorários de membro do Parlamento? Essas mulheres têm direito ao benefício exatamente como se ele fosse um salário.
Ethel havia desenvolvido um estilo próprio, pensou Maud. Expressava-se de forma simples e incisiva. Talvez tivesse herdado o talento do pai pregador.
O repórter olhava para Ethel com admiração. Parecia a meio caminho de se apaixonar por ela. Quase como se pedisse desculpas, falou:
– Seus opositores dizem que uma mulher não deveria receber o auxílio caso estivesse sendo infiel ao marido soldado.
– E quem está de olho nos maridos? – perguntou Ethel, indignada. – Imagino que existam casas de tolerância na França e onde quer que nossos homens estejam servindo. Por acaso o Exército anota os nomes dos homens casados que frequentam essas casas e corta seus salários? Adultério é pecado, mas não serve de motivo para empobrecer a pecadora e fazer seus filhos morrerem de fome.
Ethel carregava o filho Lloyd no colo. O menino estava com um ano e quatro meses e já sabia andar, ou melhor, cambalear. Tinha cabelos escuros finos e olhos verdes e era bonito como a mãe. Maud estendeu as mãos para pegá-lo e o bebê foi todo feliz para o seu colo. Ela sentiu uma pontada de tristeza: quase desejava ter engravidado na única noite que passara com Walter, apesar de todos os problemas que isso teria acarretado.
Não tinha notícia nenhuma dele desde o Natal retrasado. Nem mesmo sabia se ele estava vivo ou morto. Talvez já fosse viúva. Tentava não ficar remoendo aquilo, mas às vezes era assolada por pensamentos terríveis e tinha de segurar o choro.
Depois de falar com o repórter, Ethel apresentou Maud a uma mulher com duas crianças agarradas à barra da saia.
– Esta é Jayne McCulley, de quem lhe falei. – Jayne tinha um rosto bonito e uma expressão determinada.
Maud a cumprimentou com um aperto de mão e disse:
– Espero que consigamos justiça para a senhora hoje.
– É muita bondade sua, senhora, de verdade. – A deferência era um hábito difícil de perder, mesmo nos movimentos políticos igualitários.
– Estamos todos prontos? – perguntou Ethel.
Maud devolveu Lloyd à mãe e o grupo atravessou junto a rua, entrando pela porta da frente do escritório da instituição. Havia uma área de recepção, com uma mulher de meia-idade sentada atrás de uma escrivaninha. Ela pareceu assustada ao ver tanta gente.
– Não há motivo para preocupação – disse-lhe Maud. – A Sra. Williams e eu viemos falar com sua gerente, a Sra. Hargreaves.
A recepcionista se levantou.
– Vou ver se ela está – respondeu com nervosismo.
– Eu sei que ela está – disse Ethel. – Acabei de vê-la entrar pela porta meia hora atrás.
A recepcionista se retirou às pressas.
A mulher que voltou em sua companhia não se deixava intimidar com tanta facilidade. A Sra. Hargreaves era uma quarentona roliça, que usava saia e casaco franceses e um chapéu da moda, enfeitado por um grande laço plissado. Em seu corpo atarracado, o traje perdia toda a elegância, pensou Maud venenosamente, mas a mulher tinha a confiança que costuma andar de braços dados com a riqueza. Além de um nariz enorme.
– Pois não? – perguntou ela com rispidez.
Na luta pela igualdade feminina, pensou Maud, às vezes era preciso combater não apenas homens, mas mulheres também.
– Vim até aqui porque estou preocupada com a forma como a senhora vem tratando a Sra. McCulley.
A Sra. Hargreaves fez cara de surpresa, sem dúvida por causa do sotaque aristocrático de Maud. Analisou-a de cima a baixo. Provavelmente tinha percebido que as roupas de Maud eram tão caras quanto as suas. Quando tornou a falar, seu tom foi menos arrogante:
– Infelizmente não posso discutir casos individuais.
– Mas a Sra. McCulley me pediu para falar com a senhora. E está aqui para provar isso.
– Não se lembra de mim, Sra. Hargreaves? – perguntou Jayne McCulley.
– Para dizer a verdade, lembro sim. A senhora foi muito descortês comigo.
Jayne se virou para Maud:
– Eu disse para ela meter o nariz na vida de outra pessoa.
A referência ao nariz causou risadinhas entre as mulheres, o que fez a Sra. Hargreaves enrubescer.
– Mas a senhora não pode recusar um pedido de pensão sob o pretexto de que foi destratada pela solicitante – disse Maud. Controlando a própria raiva, ela tentou falar em um tom de fria reprovação. – Com certeza sabe disso, não?
Na defensiva, a Sra. Hargreaves empinou o queixo.
– A Sra. McCulley foi vista no pub Dog and Duck e no cabaré de Stepney, em ambas as ocasiões acompanhada de um rapaz. A pensão é para esposas de boa conduta. O governo não está interessado em financiar libertinagens.
Maud sentiu vontade de estrangular a mulher.
– A senhora não me parece estar entendendo muito bem a sua função – falou. – Não é de sua alçada recusar pagamentos com base em suspeitas.
A Sra. Hargreaves pareceu um pouco menos segura de si.
– Imagino que o Sr. Hargreaves esteja bem seguro em casa, não está? – atalhou Ethel.
– Não, não está – apressou-se a responder a mulher. – Ele está com o Exército no Egito.
– Ah! – disse Ethel. – Nesse caso, a senhora também está recebendo o auxílio-separação.
– Isso não vem ao caso.
– Por acaso alguém vai à sua casa verificar a sua conduta, Sra. Hargreaves? Eles medem o nível do xerez no decantador em cima do seu aparador? Fazem perguntas sobre a sua amizade com o entregador da mercearia?
– Como a senhora se atreve!?
– A sua indignação é compreensível – disse Maud. – Mas talvez agora entenda melhor por que a Sra. McCulley reagiu daquela forma ao seu questionamento.
A Sra. Hargreaves ergueu a voz:
– Isso é ridículo! Não há a menor comparação!
– Não há a menor comparação? – rebateu Maud, furiosa. – O marido dela, assim como o seu, está arriscando a vida pelo país. Tanto a senhora quanto ela solicitam a pensão do governo. Mas a senhora tem o direito de julgar o comportamento dela e de confiscar seu dinheiro, enquanto ninguém pode julgá-la. Por quê? As mulheres de oficiais às vezes exageram na bebida.
– E também cometem adultério – acrescentou Ethel.
– Agora chega! – gritou a Sra. Hargreaves. – Eu me recuso a ser insultada.
– Janey McCulley diz o mesmo – falou Ethel.
– O homem que a senhora viu com a Sra. McCulley é irmão dela – disse Maud. – Ele tinha vindo da França de licença. Ficaria apenas dois dias na cidade e ela quis que o irmão se divertisse antes de voltar para as trincheiras. Foi por isso que o levou ao pub e ao cabaré.
A Sra. Hargreaves pareceu envergonhada, mas então assumiu um ar desafiador:
– Se é assim, ela deveria ter me explicado isso quando eu a questionei. Por favor, preciso pedir a vocês que saiam daqui.
– Agora que a senhora conhece a verdade, imagino que vá aprovar o pedido da Sra. McCulley.
– Veremos.
– Insisto para que faça isso agora mesmo.
– Impossível.
– Nós não vamos sair enquanto a senhora não aprovar esse pedido.
– Nesse caso, vou chamar a polícia.
– Como quiser.
A Sra. Hargreaves foi embora.
Ethel se virou para o repórter que a admirava.
– Onde está seu fotógrafo?
– Esperando lá fora.
Minutos depois, um policial corpulento de meia-idade chegou.
– Vamos lá, minhas senhoras – disse ele. – Sem confusão, por favor. Saiam sem fazer alarde e pronto.
Maud deu um passo à frente.
– Eu me recuso a sair – disse ela. – Não precisa se preocupar com os outros.
– E posso saber quem é a senhora?
– Eu me chamo lady Maud Fitzherbert e, se o senhor quiser que eu saia, vai ter que me carregar para fora.
– Se a senhora insiste – disse o policial, levantando-a do chão.
Quando os dois saíram do prédio, o fotógrafo bateu uma foto.
– Você não está com medo? – perguntou Mildred.
– Estou – reconheceu Billy. – Um pouco.
Ele conseguia se abrir com Mildred. De toda forma, ela parecia saber tudo a seu respeito. Há dois anos que vivia com sua irmã, e as mulheres sempre contavam tudo umas às outras. No entanto, havia outra coisa em Mildred que o deixava à vontade. As garotas de Aberowen viviam tentando impressionar os rapazes, dizendo frases de efeito e se olhando no espelho, mas Mildred era simplesmente ela mesma. Às vezes dizia coisas chocantes e fazia Billy rir. Ele tinha a sensação de que podia lhe contar tudo.
Quase não conseguia acreditar quanto ela era atraente. O que o fascinava não eram seus cabelos claros encaracolados ou seus olhos azuis, mas sim sua atitude de quem não ligava para o que os outros estavam pensando. Havia também a diferença de idade. Mildred tinha 23 anos, enquanto ele ainda não completara 18. Ela parecia muito experiente, mas apesar disso estava claramente interessada nele, o que era muito lisonjeiro. Do outro lado do aposento, ele a encarava com desejo no olhar, torcendo por uma chance de conversar com ela a sós, imaginando se teria coragem de tocar sua mão, passar o braço ao seu redor e beijá-la.
Estavam todos sentados na cozinha de Ethel em volta da mesa quadrada: Billy, Tommy, Ethel e Mildred. Era uma noite quente e a porta do quintal dos fundos estava aberta. No chão de pedra, as duas filhas pequenas de Mildred brincavam com Lloyd. Enid e Lillian tinham três e quatro anos respectivamente, porém Billy ainda não sabia dizer qual era qual. Por causa das crianças, as mulheres tinham preferido não sair, então Billy e Tommy trouxeram algumas garrafas de cerveja do pub.
– Você vai ficar bem – disse Mildred a Billy. – Foi treinado para isso.
– Sim, fui. – Não que o treinamento tivesse aumentado grande coisa a confiança de Billy. Eles passaram um bom tempo marchando de um lado para outro, batendo continência e praticando golpes de baioneta. Mas ele não tinha a sensação de ter aprendido a sobreviver.
– Se, chegando lá, todos os alemães forem bonecos recheados de estopa amarrados em postes, nós vamos saber enfiar as baionetas neles – disse Tommy.
– Mas vocês sabem disparar as armas, não sabem? – perguntou Mildred.
Durante algum tempo, eles haviam treinado com fuzis enferrujados e defeituosos marcados com as iniciais “F.T.”, ou seja, para “Fins de Treinamento”, o que significava que não podiam ser disparados sob hipótese alguma. Mas depois cada um deles havia recebido um fuzil de ferrolho manual Lee Enfield, com um cartucho removível contendo dez balas calibre 303. Billy acabou descobrindo que atirava bem, conseguindo esvaziar o cartucho em menos de um minuto e mesmo assim acertar um alvo do tamanho de um homem a 300 metros de distância. Os recrutas haviam sido informados que o Lee Enfield era famoso pela sua cadência de tiro rápida: o recorde mundial era de 38 disparos por minuto.
– O problema não é o armamento – respondeu Billy a Mildred. – O que me preocupa são os oficiais. Até hoje, não conheci nenhum em quem pudesse confiar se estivéssemos em uma emergência na mina.
– Os bons oficiais estão todos na França, imagino – disse Mildred, otimista. – Eles deixam os babacas aqui para conduzir os treinamentos.
Billy riu de sua escolha de palavras. Mildred não tinha o menor pudor.
– Espero que você esteja certa.
Na verdade, ele tinha medo mesmo era de sair correndo quando os alemães começassem a atirar nele. Esse era o seu maior temor. Para ele, a humilhação seria pior do que um ferimento. Às vezes ficava tão atormentado com isso que ansiava pela chegada daquele momento terrível, só para saber de uma vez como iria reagir.
– Seja como for, estou contente por você estar indo meter bala naqueles alemães malvados – disse Mildred. – São todos uns estupradores.
– Se eu fosse você, não acreditaria em tudo o que sai no Daily Mail – falou Tommy. – Eles quererem colocar na sua cabeça que todos os sindicalistas são traidores. Eu sei que isso não é verdade. Quase todos os membros da minha seção do sindicato se alistaram voluntariamente. Então talvez os alemães não sejam tão maus quanto o Mail anda pintando.
– É, você deve ter razão. – Mildred tornou a se virar para Billy. – Você já viu O vagabundo?
– Vi, adoro Charlie Chaplin.
Ethel pegou o filho no colo.
– Dê boa-noite ao tio Billy. – O menino se contorceu no seu colo, sem querer ir para a cama.
Billy se lembrou de quando o sobrinho era recém-nascido e de como havia aberto a boca para chorar então. Parecia tão grande e forte agora.
– Boa noite, Lloyd – disse ele.
Ethel batizara o filho em homenagem a Lloyd George. Billy era o único a saber que ele também tinha um nome do meio: Fitzherbert. Estava registrado em sua certidão de nascimento, mas Ethel não tinha contado a mais ninguém.
Billy bem que gostaria de ter o conde Fitzherbert na mira de seu Lee Enfield.
– Ele se parece com Gramper, você não acha? – perguntou Ethel.
Billy não conseguia ver a semelhança.
– Quando ele tiver bigode eu respondo.
Mildred pôs as duas filhas na cama ao mesmo tempo. As mulheres então anunciaram que queriam jantar. Ethel e Tommy saíram para comprar ostras, deixando Billy e Mildred sozinhos.
Assim que eles se foram, Billy falou:
– Eu gosto muito de você, Mildred.
– Também gosto de você – respondeu ela. Billy então puxou sua cadeira para perto dela e a beijou.
Ela retribuiu o beijo com entusiasmo.
Ele já havia feito isso antes. Beijara várias garotas na fila de trás do cinema Majestic, na Cwm Street. Elas sempre abriam a boca sem demora, de modo que ele fez o mesmo.
Mildred o afastou com delicadeza.
– Não tão depressa – falou. – Faça assim. – Então ela o beijou com a boca fechada, roçando os lábios em suas bochechas, pálpebras e pescoço, e, por fim, em sua boca. Foi estranho, mas ele gostou.
– Faça a mesma coisa comigo – disse ela. Billy seguiu suas instruções. – Agora assim – falou ela, e ele sentiu a ponta de sua língua nos lábios, tocando-os com a maior delicadeza possível. Novamente a imitou. Ela então lhe mostrou ainda mais uma forma de beijar, mordiscando-lhe o pescoço e o lóbulo das orelhas. Ele teve a sensação de que poderia ficar fazendo aquilo para sempre.
Quando os dois pararam para respirar, ela acariciou sua bochecha e disse:
– Você aprende depressa.
– Você é linda – disse ele.
Tornou a beijá-la e apertou seu seio. Ela o deixou fazer isso por algum tempo, mas, quando Billy começou a ficar ofegante, afastou-lhe a mão.
– Não se empolgue demais – falou. – Eles vão voltar a qualquer momento.
Logo em seguida, ele ouviu o barulho da porta da frente.
– Ah, droga! – disse.
– Tenha paciência – sussurrou ela.
– Paciência? – respondeu ele. – Eu vou para a França amanhã.
– Bom, amanhã ainda não chegou, certo?
Billy ainda estava se perguntando o que ela queria dizer quando Ethel e Tommy entraram na sala.
Os quatro jantaram e terminaram a cerveja. Ethel lhes contou a história de Janey McCulley e de como lady Maud havia sido carregada para fora da instituição de caridade por um policial. Fez a história parecer cômica, porém Billy mal se continha de orgulho da irmã e da forma como ela lutava pelos direitos das mulheres pobres. E ela era a gerente de um jornal e amiga de lady Maud! Ele estava decidido a um dia também ser um defensor das pessoas comuns. Era isso que admirava no pai. Da podia ser tacanho e cabeça-dura, mas havia passado a vida inteira lutando pelos trabalhadores.
A noite caiu e Ethel anunciou que era hora de dormir. Usou almofadas para improvisar camas no chão da cozinha para Billy e Tommy. Todos se recolheram.
Billy ficou deitado ali, acordado, perguntando-se o que Mildred quisera dizer com Amanhã ainda não chegou. Talvez estivesse apenas prometendo beijá-lo de novo pela manhã, quando ele estivesse saindo para pegar o trem rumo a Southampton. Mas parecia ter sugerido mais do que isso. Seria mesmo possível que quisesse revê-lo ainda naquela noite?
A ideia de ir ao quarto dela o deixou tão agitado que ele não conseguiu dormir. Ela estaria de camisola e, sob os lençóis, seu corpo estaria quente, pensou ele. Imaginou seu rosto sobre o travesseiro, sentindo ciúme da fronha por ela estar tocando sua face.
Quando a respiração de Tommy lhe pareceu regular, Billy escapuliu dos lençóis.
– Aonde você vai? – perguntou Tommy, que não estava tão ferrado no sono quanto Billy pensara.
– Ao banheiro – sussurrou Billy. – Cerveja demais.
Tommy deu um grunhido e se virou para o outro lado.
Só de cueca, Billy subiu a escada. Três portas davam para o patamar. Ele hesitou. E se tivesse entendido Mildred errado? Ela poderia soltar um grito ao vê-lo. Seria um constrangimento só.
Não, ela não é do tipo que grita, pensou.
Ele abriu a primeira das portas. Uma luz fraca vinha da rua e ele pôde ver uma cama estreita com as cabeças louras das duas meninas sobre o travesseiro. Fechou a porta sem fazer barulho. Sentia-se um ladrão.
Tentou a porta seguinte. Nesse quarto, havia uma vela acesa, e seus olhos levaram alguns instantes para se adaptarem à sua luz trêmula. Viu uma cama maior, com apenas uma cabeça sobre o travesseiro. O rosto de Mildred estava virado na sua direção, mas ele não conseguia ver se seus olhos estavam abertos. Esperou um protesto, mas ela continuou calada.
Então entrou no quarto e fechou a porta às suas costas.
– Mildred? – sussurrou, hesitante.
Com uma voz muito clara, ela disse:
– Já não era sem tempo, Billy. Deite na cama, rápido.
Ele se enfiou entre os lençóis e a abraçou. Ao contrário do que havia esperado, Mildred não estava usando camisola. Na verdade, percebeu, chocado, ela estava nua.
De repente, ficou nervoso.
– Eu nunca... – começou a falar.
– Eu sei – disse ela. – Você vai ser o meu primeiro virgem.
Em junho de 1916, o major conde Fitzherbert foi lotado no 8o Batalhão dos Fuzileiros Galeses, ficando responsável pela Companhia B, composta por 128 soldados e quatro tenentes. Nunca havia comandado homens durante uma batalha e, no seu íntimo, estava dominado pela ansiedade.
Ele estava na França, mas o batalhão continuava na Inglaterra. Eram recrutas que haviam acabado de concluir seu treinamento. Conforme o brigadeiro explicou para Fitz, aqueles novatos seriam endurecidos por um punhado de veteranos. O exército profissional que fora mandado para a França em 1914 já não existia – mais da metade dos homens morrera –, e aquele era o Novo Exército de Kitchener. O batalhão de Fitz chamava-se Aberowen Pals.
– O senhor deve conhecer a maioria deles – falou o brigadeiro, que não parecia ter noção da largura do abismo que separava condes e mineradores de carvão.
Fitz recebeu suas ordens junto com meia dúzia de outros oficiais, então pagou uma rodada de bebidas no refeitório para comemorar. O capitão que ficara responsável pela Companhia A ergueu o copo de uísque e disse:
– Fitzherbert? O senhor deve ser o dono da mina de carvão. Meu nome é Gwyn Evans, eu sou lojista. O senhor provavelmente compra todos os seus lençóis e toalhas comigo.
Agora havia um monte de comerciantes metidos a besta como aquele no Exército. Era típico de um homem dessa laia falar como se ele e Fitz fossem iguais e apenas se dedicassem a ramos profissionais diferentes. Fitz, no entanto, também sabia que as habilidades de organização dos comerciantes eram valorizadas pelas Forças Armadas. Ao se apresentar como lojista, o capitão estava demonstrando uma certa falsa modéstia. O nome Gwyn Evans cobria as fachadas de lojas de departamentos em todas as maiores cidades de Gales do Sul. Havia muito mais pessoas em sua folha de pagamento do que na Companhia A. Quanto a Fitz, ele jamais havia organizado nada mais complexo do que um time de críquete e, além disso, a complexidade assustadora da máquina de guerra o tornava mais do que ciente da própria inexperiência.
– Imagino que este seja o ataque combinado em Chantilly – disse Evans.
Fitz sabia do que ele estava falando. Em dezembro do ano anterior, Sir John French finalmente havia sido demitido e Sir Douglas Haig assumira o posto de chefe do Estado-Maior do Exército britânico na França. Poucos dias depois, Fitz – que ainda trabalhava como agente de comunicação – havia assistido a uma conferência dos Aliados em Chantilly. Nela, os franceses propuseram uma ofensiva maciça na frente ocidental durante o ano de 1916, enquanto os russos concordaram em realizar uma operação semelhante na frente oriental.
– O que eu ouvi dizer na época – prosseguiu Evans – foi que os franceses iriam atacar com 40 divisões, e nós com 25. Agora, isso é impossível.
Fitz não gostava daquele tipo de conversa pessimista – já estava apreensivo o suficiente –, mas infelizmente Evans tinha razão.
– Tudo por causa de Verdun – falou. Desde o acordo em dezembro, os franceses haviam perdido 250 mil homens defendendo a cidade fortificada de Verdun, o que os deixava com poucos soldados disponíveis para enviar ao Somme.
– Seja qual for o motivo, estamos praticamente sozinhos – disse Evans.
– Não me parece que vá fazer diferença – disse Fitz com uma despreocupação que não sentia de forma alguma. – Nós vamos atacar no nosso trecho do front, independentemente do que eles façam.
– Discordo – disse Evans, com uma confiança que por pouco não era insolente. – O recuo dos franceses libera muitos soldados da reserva alemã. Eles podem ser enviados em massa para o nosso setor como reforços.
– Creio que iremos avançar rápido demais para isso.
– Tem certeza, senhor? – indagou Evans com a voz tranquila, outra vez beirando o desrespeito. – Se passarmos pela primeira linha de arame farpado alemã, ainda teremos que passar pela segunda e pela terceira.
Evans estava começando a dar nos nervos de Fitz. Aquele tipo de conversa era ruim para o moral.
– O arame farpado vai ser destruído pela nossa artilharia – disse ele.
– Até onde sei, a artilharia não é muito eficiente contra arame farpado. Uma bomba de metralha dispara bolas de aço para baixo e para a frente...
– Eu sei como funciona esse tipo de bomba, obrigado.
Evans ignorou o comentário.
– ... de modo que precisa estourar poucos metros acima e diante do alvo, senão é inútil. A questão é que nossas armas não têm essa precisão toda. E uma bomba de alta potência detona ao atingir o solo, então mesmo um tiro certeiro às vezes apenas joga para cima o arame, que cai de volta sem ser danificado de verdade.
– O senhor está subestimando a magnitude da nossa barragem de artilharia. – A irritação de Fitz com Evans era intensificada pela incômoda desconfiança de que o outro talvez tivesse razão. E, para piorar, essa mesma desconfiança aumentava o nervosismo de Fitz. – Não vai sobrar nada depois do ataque. As trincheiras alemãs ficarão arrasadas.
– Espero que o senhor esteja certo. Se eles se esconderem nos abrigos durante o bombardeio e depois saírem com suas metralhadoras, nossos homens serão massacrados.
– Acho que o senhor não está entendendo – disse Fitz, zangado. – Nunca houve um bombardeio tão intenso quanto este em toda a história da guerra. Nós temos uma arma de artilharia para cada 18 metros de front. Nosso plano é disparar mais de um milhão de projéteis! Não vai sobrar nada vivo do outro lado.
– Bom, pelo menos em um ponto nós concordamos – disse o capitão Evans. – Como o senhor diz, isso nunca foi feito antes, então nenhum de nós pode ter certeza de qual será o desfecho.
Lady Maud compareceu diante do Tribunal de Primeira Instância de Aldgate usando um grande chapéu vermelho com fitas e penas de avestruz e levou uma multa de um guinéu por perturbação da paz.
– Espero que o primeiro-ministro Asquith fique sabendo disso – disse ela a Ethel enquanto as duas deixavam o tribunal.
Ethel não estava otimista.
– Nós não temos como forçá-lo a agir – falou, irritada. – Esse tipo de coisa só vai parar quando as mulheres tiverem o poder de derrubar um governo pelo voto. – O movimento das sufragistas havia planejado transformar o voto feminino na grande questão das eleições gerais de 1915, mas, por conta da guerra, o Parlamento havia adiado o pleito. – Talvez tenhamos que esperar o fim do conflito.
– Não necessariamente – disse Maud. Depois de posarem para uma fotografia nos degraus do tribunal, as duas seguiram rumo à redação do The Soldier’s Wife. – Asquith está lutando para manter a coalizão entre liberais e conservadores. Se ela cair por terra, terá de haver uma eleição. E essa é a nossa chance.
Ethel ficou surpresa. Achava que a questão do voto feminino estivesse com os dias contados.
– Por quê? – quis saber ela.
– O governo tem um problema. No atual sistema, os soldados que estão em serviço não podem votar porque não têm domicílio fixo. Isso não tinha muita importância antes da guerra, quando havia apenas 100 mil homens no Exército. Mas agora eles são mais de um milhão. O governo não se atreveria a realizar uma eleição e deixá-los de fora. Estamos falando de homens que estão morrendo pelo país. Haveria um motim – explicou Maud.
– E, se eles reformarem o sistema, como poderão deixar as mulheres de fora?
– Asquith, aquele covarde, está buscando uma forma de fazer isso neste exato momento.
– Mas ele não pode! As mulheres são tão importantes para o esforço de guerra quanto os homens: fabricam munição, cuidam dos soldados feridos na França e realizam inúmeros trabalhos que antigamente só os homens faziam.
– Asquith espera conseguir se esquivar desse debate.
– Então precisamos garantir que ele não consiga – disse Ethel.
Maud sorriu.
– Exato – disse ela. – Acho que essa será a nossa próxima campanha.
– Eu me alistei para escapar do reformatório – disse George Barrow, recostado na amurada do navio a vapor que zarpava de Southampton transportando os soldados. – Fui condenado por invasão de propriedade quando tinha 16 anos e peguei três anos de cadeia. Depois de um ano lá dentro, cansei de chupar o pau do carcereiro e falei que queria me alistar. Ele me levou até o posto de recrutamento, e aqui estou eu.
Billy olhou para ele. Barrow tinha um nariz torto, uma orelha deformada e uma cicatriz na testa. Parecia um lutador de boxe aposentado.
– E quantos anos você tem agora? – perguntou.
– Dezessete.
Os rapazes com menos de 18 anos não podiam entrar para o Exército e, oficialmente, precisavam completar 19 antes de serem mandados para o estrangeiro. As Forças Armadas, no entanto, violavam ambas as leis a todo momento. Os sargentos e os oficiais médicos responsáveis pelo recrutamento recebiam meia coroa cada por recruta aprovado, de modo que quase nunca questionavam aqueles que se diziam mais velhos do que aparentavam. Havia um rapaz no batalhão chamado Owen Bevin que parecia ter uns 15 anos.
– Foi por uma ilha que nós acabamos de passar? – perguntou George.
– Foi – respondeu Billy. – A ilha de Wight.
– Ah – disse George. – Pensei que fosse a França.
– Não, a França fica bem mais longe.
A viagem durou até a manhãzinha do dia seguinte, quando todos desembarcaram em Le Havre. Billy desceu da prancha e pisou em solo estrangeiro pela primeira vez na vida. Na verdade, não era solo de fato, e sim paralelepípedos, sobre os quais era difícil marchar calçando botas com travas nas solas. Eles atravessaram a cidade, observados com indiferença pela população francesa. Billy tinha ouvido falar sobre garotas francesas bonitas que abraçavam agradecidas os soldados britânicos recém-chegados, mas tudo o que viu foi um monte de mulheres de meia-idade apáticas com lenços na cabeça.
Eles marcharam até um quartel onde passaram a noite. Na manhã seguinte, embarcaram em um trem. Estar no estrangeiro era menos empolgante do que Billy havia imaginado. Tudo era diferente, mas só um pouco. Assim como a Grã-Bretanha, a França era composta, sobretudo, por campos e vilarejos, estradas e ferrovias. Os campos eram delimitados por cercas no lugar de sebes e os chalés pareciam maiores e mais bem construídos, mas essas eram as únicas diferenças. Era frustrante. No final do dia, eles chegaram ao seu destino – um imenso quartel novo, formado por alojamentos erguidos às pressas.
Billy tinha sido promovido a cabo, de modo que era responsável pela sua seção: oito homens, incluindo Tommy, o jovem Owen Bevin e George Barrow, o rapaz do reformatório. Havia ainda o misterioso Robin Mortimer, que era soldado raso embora aparentasse 30 anos. Quando eles se sentaram para tomar chá com pão e geleia em um refeitório comprido que comportava cerca de mil homens, Billy falou:
– Então, Robin, nós aqui somos todos novatos, mas você parece mais experiente. Qual é a sua história?
Mortimer respondeu com o leve sotaque de um galês instruído, mas a linguagem que usou foi a da mina.
– Não é da sua conta, seu galesinho de merda – respondeu ele, indo se sentar em outro lugar.
Billy deu de ombros. “Galesinho” não era um xingamento tão ofensivo assim, sobretudo vindo de outro galês.
Quatro seções formavam um pelotão, e o sargento do pelotão deles era Elijah Jones, de 20 anos, filho de John Jones da Loja. Como já fazia um ano que estava no front, ele era considerado um veterano empedernido. Jones frequentava a Capela de Bethesda e Billy o conhecia desde os tempos de escola, onde ele recebera o apelido de Profeta Jones por conta do nome de batismo tirado do Antigo Testamento.
Profeta tinha escutado a conversa com Mortimer.
– Vou dar uma palavrinha com ele, Billy – falou. – Ele é um baita de um convencido, mas não pode falar desse jeito com um cabo.
– E por que está tão mal-humorado?
– Ele era major. Não sei o que fez, mas foi levado à corte marcial e destituído, ou seja, perdeu a patente de oficial. Então, como ainda estava apto a servir, foi imediatamente recrutado como soldado raso. É isso que eles fazem com os oficiais insubordinados.
Depois do chá, eles conheceram o líder de seu pelotão, o segundo-tenente James Carlton-Smith, um rapaz da mesma idade de Billy. Tenso e encabulado, parecia jovem demais para comandar quem quer que fosse.
– Homens – disse ele, com um sotaque aristocrático contido –, é uma honra para mim liderar vocês. Tenho certeza de que serão verdadeiros leões na batalha que está por vir.
– Verme desgraçado – murmurou Mortimer.
Billy sabia que os segundos-tenentes eram chamados de “vermes”, mas só pelos outros oficiais.
Carlton-Smith então apresentou o comandante da Companhia B, major conde Fitzherbert.
– Maldição! – exclamou Billy.
Ficou olhando, boquiaberto, enquanto o homem que mais odiava no mundo subia em cima de uma cadeira para se dirigir à companhia. Fitz usava um uniforme cáqui bem cortado e carregava a bengala de madeira de freixo ostentada por alguns dos oficiais. Falava com o mesmo sotaque de Carlton-Smith e disse os mesmos lugares-comuns. Billy mal conseguia acreditar na própria falta de sorte. O que Fitz estava fazendo ali? Engravidando criadas francesas? Era difícil de engolir que aquele cretino fosse seu comandante.
Assim que os oficiais saíram, Profeta se dirigiu em voz baixa a Billy e Mortimer.
– Ano passado mesmo, o tenente Carlton-Smith ainda estava em Eton – falou. Eton era uma escola esnobe da classe alta. Fitz também tinha estudado lá.
– Mas então por que ele é oficial? – perguntou Billy.
– Ele era monitor lá em Eton.
– Ah, maravilha! – disse Billy com sarcasmo. – Agora eu fiquei tranquilo.
– Ele pode não saber muita coisa sobre guerra, mas tem o bom senso de não abusar da autoridade, então, contanto que fiquemos de olho nele, não acho que vá criar problemas. Se você notar que ele está prestes a fazer alguma idiotice muito grande, fale comigo. – Encarando Mortimer, Profeta acrescentou: – Você sabe como é, não sabe?
Mortimer concordou com a cabeça, emburrado.
– Veja bem, estou contando com você.
Alguns minutos depois, as luzes foram apagadas. Não havia camas de campanha, apenas esteiras de palha enfileiradas no chão. Deitado sem conseguir dormir, Billy pensou com admiração no que Profeta tinha feito com Mortimer. Ao se deparar com um subordinado difícil, ele o transformara em um aliado. Era como Da teria lidado com um encrenqueiro.
O recado que o sargento havia transmitido a Mortimer também valia para Billy. Será que identificara Billy como um rebelde? Ele se lembrou de que Profeta estava presente na capela no dia em que Billy lera a história da mulher adúltera. Faz sentido, pensou. Eu sou mesmo um encrenqueiro.
Ainda havia luz lá fora e Billy não estava com sono, mas adormeceu imediatamente. Foi acordado por um barulho terrível, como se estivesse caindo um temporal com trovoada. Sentou-se na esteira. A luz baça da aurora entrava pelas janelas riscadas de chuva, mas não estava chovendo.
Os outros homens também ficaram espantados.
– Meu Jesus do céu, o que foi isso? – perguntou Tommy.
Mortimer estava acendendo um cigarro.
– Fogo de artilharia – disse ele. – Somos nós que estamos atirando. Bem-vindo à França, galesinho.
Billy não estava escutando. Tinha os olhos fixos em Owen Bevin, na esteira em frente à sua. O rapaz estava sentado, mordendo, aos prantos, uma das beiradas do lençol.
Maud sonhou que Lloyd George punha a mão por baixo de sua saia e ela lhe dizia que era casada com um alemão. Então ele a delatava para a polícia, que vinha prendê-la, batendo na janela de seu quarto.
Sentou-se na cama, confusa. Em um instante, percebeu como era improvável a polícia vir bater na janela de um quarto no segundo andar, mesmo que quisessem de fato levá-la para a prisão. O sonho se dissipou, mas o barulho prosseguiu. Havia também um ronco grave, como o de um trem distante.
Ela acendeu a luz da cabeceira. O relógio de prata art nouveau no console da lareira lhe informou que eram quatro da manhã. Teria sido um terremoto? Uma explosão em uma fábrica de munições? Um acidente ferroviário? Ela afastou para o lado a colcha bordada e se levantou.
Abriu a cortina pesada de listras verdes e azuis e olhou pela janela para a rua tranquila de Mayfair. À luz da aurora, viu uma jovem de vestido vermelho, decerto uma prostituta a caminho de casa, conversando agitada com o condutor de uma carroça de leite. Não havia mais ninguém à vista. A janela de Maud continuava a tremer sem motivo aparente. Não estava sequer ventando.
Ela vestiu um roupão de seda moiré por cima da camisola e olhou-se de relance no espelho de pé. Seus cabelos estavam desgrenhados, mas, tirando isso, parecia respeitável o suficiente. Saiu para o corredor.
Tia Herm estava parada ali, usando uma touca de dormir e ladeada por Sanderson, a criada de Maud, cujo rosto redondo estava pálido de medo. Então, Grout apareceu na escada.
– Bom dia, lady Maud. Bom dia, lady Hermia – disse ele com uma formalidade imperturbável. – Não há com o que se preocupar. É a artilharia.
– Que artilharia? – perguntou Maud.
– Na França, minha senhora – respondeu o mordomo.
A barragem de artilharia britânica durou uma semana.
A princípio, duraria apenas cinco dias, mas, para consternação de Fitz, apenas um deles foi de tempo bom. Embora estivessem no verão, todos os outros dias foram de nuvens baixas e chuva. Isso tornava difícil para os artilheiros fazerem disparos precisos. Significava também que os aviões de reconhecimento não conseguiam avaliar os resultados e ajudá-los a ajustar a mira. A situação era mais difícil ainda para os encarregados da contrabateria – ou seja, de destruir a artilharia alemã –, pois o adversário, espertamente, não parava de mudar as armas de lugar, fazendo os projéteis britânicos caírem em posições vazias, sem causar nenhum dano.
Fitz estava sentado no abrigo úmido que servia de quartel-general ao batalhão, fumando charutos com desânimo e tentando ignorar o estrondo incessante. Na falta de fotografias aéreas, ele e os outros comandantes de companhia organizaram ataques-surpresa contra as trincheiras. Assim, pelo menos conseguiam observar diretamente o inimigo. Essa, no entanto, era uma tática arriscada – e as equipes de ataque que passavam muito tempo fora nunca retornavam. Dessa forma, os homens precisavam observar às pressas um pequeno trecho da linha inimiga e voltar correndo em seguida.
Para grande irritação de Fitz, os relatórios trazidos pelas equipes de observação eram contraditórios. Algumas trincheiras alemãs haviam sido destruídas, enquanto outras continuavam intactas. Parte do arame farpado havia sido cortada, mas nem de longe todo ele. O mais preocupante era que algumas patrulhas eram empurradas de volta pelo fogo inimigo. Se os alemães ainda eram capazes de atirar, era óbvio que a artilharia britânica não tinha conseguido destruir suas posições.
Fitz sabia que exatos 12 prisioneiros alemães haviam sido capturados pelo quarto Exército durante a barragem. Todos tinham sido interrogados, mas fornecido informações discrepantes, o que era enfurecedor. Alguns diziam que seus abrigos tinham sido destruídos, outros que os alemães estavam sãos e salvos debaixo da terra, enquanto os britânicos desperdiçavam sua munição na superfície.
Os britânicos tinham tantas dúvidas quanto aos resultados de seu bombardeio que Haig adiou o ataque, programado para 29 de junho. O tempo, no entanto, continuou ruim.
– Teremos que cancelar o ataque – disse o capitão Evans durante o café da manhã do dia 30 de junho.
– Acho difícil – comentou Fitz.
– Nós só vamos atacar após a confirmação de que as defesas inimigas foram destruídas – disse Evans. – É uma regra básica da guerra de sítio.
Fitz sabia que esse princípio havia sido acordado no início do planejamento, mas depois descartado.
– Seja realista – disse ele a Evans. – Há seis meses que estamos preparando essa ofensiva. É nossa principal ação no ano de 1916. Concentramos todos os nossos esforços nela. Como poderia ser cancelada? Haig teria de renunciar. Uma coisa dessas poderia até derrubar o governo de Asquith.
Evans pareceu se irritar com o comentário. Ficou com o rosto vermelho e levantou um pouco a voz:
– Seria melhor o governo cair do que nós mandarmos nossos homens para cima de trincheiras cheias de metralhadoras.
Fitz balançou a cabeça.
– Veja os milhões de toneladas de suprimentos trazidos para cá de navio, as estradas e ferrovias que construímos para transportá-los, as centenas de milhares de homens treinados, armados e deslocados para cá de toda a Grã-Bretanha. O que faríamos com eles? Mandaríamos todos para casa?
Após um longo silêncio, Evans falou:
– O senhor tem razão, major, é claro. – Suas palavras eram conciliatórias, mas seu tom era de raiva mal contida. – Nós não vamos mandá-los para casa – disse ele entredentes. – Vamos enterrá-los aqui mesmo.
Ao meio-dia parou de chover e o sol saiu. Pouco depois, veio a confirmação: “Atacamos amanhã.”
1o de julho de 1916
Walter von Ulrich estava no inferno.
O bombardeio britânico já durava sete dias e sete noites. Cada homem dentro das trincheiras alemãs parecia dez anos mais velho do que na semana anterior. Eles se amontoavam em seus abrigos – cavernas que haviam escavado nas profundezas do terreno atrás das trincheiras –, mesmo assim o barulho era ensurdecedor e a terra sob seus pés tremia o tempo todo. O pior de tudo era saber que um disparo certeiro do projétil de maior calibre era capaz de aniquilar até mesmo o mais sólido dos abrigos.
Sempre que o bombardeio cessava, eles saíam do abrigo para as trincheiras, prontos para repelir o grande ataque aguardado por todos. Uma vez convencidos de que os britânicos ainda não estavam avançando, punham-se a avaliar os estragos. Encontravam uma trincheira desmoronada, a entrada de um abrigo sepultada sob uma pilha de terra e – em uma tarde triste – uma cantina devastada, cheia de louça quebrada, vidros de geleia espatifados e sabão líquido derramado. Exaustos, retiravam a terra caída com pás, remendavam o revestimento das trincheiras com novas tábuas de madeira e solicitavam mais provisões.
As encomendas não chegavam. Pouquíssima coisa alcançava o front. O bombardeio tornava perigosa qualquer aproximação. Os homens estavam famintos e sedentos. Mais de uma vez, Walter ficara grato por poder beber a água da chuva acumulada na cratera feita por uma bomba.
No intervalo entre os bombardeios, os homens não podiam permanecer nos abrigos. Tinham que ficar nas trincheiras, preparados para os britânicos. Sentinelas mantinham uma vigilância constante. Os demais soldados ficavam sentados nas entradas dos abrigos, ou perto delas, prontos para descer correndo os degraus e se refugiar debaixo da terra quando as grandes peças de artilharia abrissem fogo, ou então subir correndo até o parapeito e defender sua posição caso o ataque começasse. A cada vez, as metralhadoras tinham que ser levadas para os abrigos, para depois serem trazidas de volta e recolocadas em seus lugares.
Entre uma barragem de artilharia e outra, os britânicos atacavam com morteiros de trincheira. Embora essas bombas pequenas fizessem pouco barulho ao serem disparadas, tinham potência suficiente para estilhaçar a madeira do revestimento das trincheiras. No entanto, elas atravessavam a terra de ninguém em um arco lento, de modo que era possível vê-las chegando e se proteger. Walter já havia se esquivado de uma dessas bombas, afastando-se o suficiente para não ser ferido, embora o disparo houvesse espirrado terra em cima de todo o seu jantar, obrigando-o a jogar fora uma boa tigela de um encorpado guisado de porco. Essa havia sido sua última refeição quente e, se a tivesse em mãos agora, iria comê-la, pensou – com ou sem terra.
Mas os projéteis não eram tudo. Aquele setor havia sido alvo de um ataque com gás. Os homens tinham máscaras, porém o fundo da trincheira estava coalhado de cadáveres de ratos, camundongos e outros pequenos animais mortos pelo gás de cloro. Os canos dos fuzis tinham adquirido um tom preto esverdeado.
Logo depois da meia-noite na sétima noite de bombardeio, a chuva de projéteis arrefeceu, e Walter decidiu sair em patrulha.
Vestiu um gorro de lã e esfregou terra no rosto para escurecê-lo. Sacou sua pistola, a Luger 9mm padrão dos oficiais alemães. Ejetou o cartucho da câmara e verificou o carregador. A arma estava totalmente carregada.
Ele subiu uma escada de mão e passou por cima do parapeito, um ato que à luz do dia seria um desafio à morte, mas que no escuro era relativamente seguro. Abaixado, desceu correndo a encosta pouco íngreme até a barreira de arame farpado alemã. Havia uma brecha no arame, posicionada de forma intencional, bem em frente a um ninho de metralhadora alemão. Ele passou engatinhando por ela.
Aquilo lhe trouxe à memória as histórias de aventura que costumava ler nos tempos de escola. Geralmente eram protagonizadas por jovens alemães de queixo quadrado, ameaçados por peles-vermelhas, pigmeus com zarabatanas ou espiões ingleses ardilosos. Ele se lembrava de muitas cenas em que os personagens engatinhavam pela vegetação rasteira, pela selva ou pela grama alta das pradarias.
Ali não havia muita vegetação. Dezoito meses de guerra tinham deixado apenas uns poucos tufos de grama e arbustos, além de uma ou outra árvore pequena perdida no meio de um deserto de lama e crateras de bombas.
Isso piorava ainda mais as coisas, pois não havia como se proteger. A noite estava sem lua, mas a paisagem era iluminada de quando em quando pelo clarão de uma explosão, ou pela luz intensa de um sinalizador. Quando era assim, tudo o que Walter podia fazer era se jogar rente ao chão e ficar imóvel. Se estivesse dentro de uma cratera, seria mais difícil vê-lo. Caso contrário, restava-lhe apenas torcer para que ninguém estivesse olhando na sua direção.
Havia muitos projéteis britânicos não detonados espalhados pelo terreno. Walter calculava que cerca de um terço da munição do inimigo estivesse com defeito. Sabia que Lloyd George fora encarregado da munição – e imaginava que o demagogo sedutor de multidões houvesse privilegiado a quantidade em detrimento da qualidade. Os alemães jamais cometeriam um erro desses, pensou.
Ele chegou ao arame farpado britânico, engatinhou ao longo dele até achar uma brecha e passou para o outro lado.
Quando a linha de frente britânica começou a ficar visível, como uma pincelada de tinta preta contra o cinza-chumbo que cobria o céu, ele se jogou de bruços no chão e tentou avançar sem fazer barulho. Precisava chegar mais perto: era esse o objetivo. Queria ouvir o que os homens estavam dizendo nas trincheiras.
Ambos os lados despachavam patrulhas todas as noites. Walter em geral enviava um ou dois soldados que parecessem espertos e estivessem entediados o suficiente para topar uma aventura, por mais perigosa que fosse. Às vezes, no entanto, ele próprio ia – em parte para mostrar que estava disposto a arriscar a própria vida e também porque suas observações em geral eram mais detalhadas.
Apurou os ouvidos, esforçando-se para escutar um tossido, algumas palavras murmuradas, ou quem sabe um peido seguido por um suspiro de alívio. Parecia estar diante de um setor tranquilo. Virou à esquerda, rastejou por cerca de 50 metros e parou. Então ouviu um som desconhecido, semelhante ao ronco distante de uma máquina.
Seguiu rastejando, esforçando-se para manter o senso de direção. Era fácil se perder totalmente no escuro. Certa noite, depois de rastejar por um bom tempo, havia se deparado com o mesmo arame farpado pelo qual passara meia hora antes, percebendo que estava se movendo em círculos.
Walter ouviu uma voz dizer bem baixinho:
– Por aqui.
Ele se deteve. Uma lanterna camuflada entrou em seu campo de visão, como um vaga-lume. Sob a luz fraca que ela emitia, Walter distinguiu três soldados a uns 30 metros de distância, usando capacetes de aço ao estilo britânico. Ficou tentado a rolar para longe deles, mas decidiu que o movimento provavelmente acabaria por delatá-lo. Sacou a pistola: se fosse morrer, levaria junto alguns dos inimigos. A trava de segurança ficava do lado esquerdo da arma, logo acima da empunhadura. Usando o polegar, ele a empurrou para cima e para a frente. A trava emitiu um clique que lhe pareceu uma trovoada, mas os soldados britânicos não pareceram escutá-lo.
Dois deles carregavam um rolo de arame farpado. Walter imaginou que estivessem ali para consertar um trecho danificado pela artilharia alemã durante o dia. Talvez eu devesse abatê-los rapidamente, pensou, um-dois-três. Amanhã eles tentarão me matar. Porém tinha um trabalho mais importante a fazer, por isso se conteve e não puxou o gatilho ao vê-los passar afastando-se na escuridão.
Tornou a armar a trava de segurança, guardou a pistola no coldre e rastejou mais para perto da trincheira britânica.
O barulho ali estava mais alto. Passou alguns segundos deitado, concentrando-se. Era o ruído de uma multidão. Eles estavam tentando fazer silêncio, mas era impossível deixar de ouvir um aglomerado de homens. O som era constituído pelo arrastar de pés, pelo farfalhar de roupas, por fungadas, bocejos e arrotos. Acima disso, erguia-se de vez em quando uma palavra em voz baixa, pronunciada em tom de autoridade.
Mas o que deixou Walter intrigado e surpreso foi que parecia haver de fato muitos soldados ali. Não conseguia estimar quantos. Ultimamente, os britânicos vinham escavando trincheiras novas, mais largas, como se almejassem comportar grandes quantidades de provisões ou peças de artilharia muito grandes. Mas talvez essas trincheiras fossem para uma quantidade maciça de homens.
Walter precisava olhar.
Rastejou mais para a frente. O barulho ficou mais alto. Tinha que olhar para dentro da trincheira, mas como poderia fazer isso sem ser visto também?
Ouviu uma voz atrás de si, e seu coração parou.
Ele se virou e viu a lanterna parecida com um vaga-lume. O destacamento do arame farpado estava voltando. Jogou-se em direção à lama e então sacou a pistola devagar.
Os homens andavam depressa, sem se importarem com o barulho que faziam – apenas satisfeitos por terem cumprido sua tarefa e ansiosos por retornarem à segurança da trincheira. Chegaram perto de Walter, mas não olharam para onde ele estava.
Quando passaram, ele teve uma ideia e levantou-se com um pulo.
Agora, se alguém apontasse uma lanterna em sua direção e o visse, ele pareceria fazer parte do grupo.
Seguiu os soldados. Não achava que fossem ouvir seus passos com clareza suficiente para distingui-los dos seus próprios. Nenhum dos homens olhou para trás.
Ele lançou um olhar para o lugar de onde vinha o barulho. Agora conseguia ver dentro da trincheira, mas, a princípio, divisou apenas alguns pontinhos de luz, provavelmente lanternas. Aos poucos, porém, seus olhos se ajustaram à penumbra e, quando por fim entendeu o que estava vendo, ficou perplexo.
Estava olhando para milhares de homens.
Parou de avançar. A trincheira larga, cujo objetivo antes não ficara claro, agora havia se revelado uma trincheira de agrupamento. Os britânicos estavam reunindo suas tropas para a grande ofensiva. Todos os homens aguardavam, indóceis, enquanto a luz das lanternas dos oficiais refletia nas baionetas e capacetes de aço – eram fileiras e mais fileiras deles. Walter tentou contar: 10 fileiras de 10 davam 100 homens, vezes dois eram 200, então 400, 800... Havia 1.600 homens em seu campo de visão, depois a escuridão ocultava os outros.
A ofensiva dos britânicos era iminente.
Ele precisava voltar o mais rápido possível com essa notícia. Se a artilharia alemã abrisse fogo naquele momento, eles poderiam matar milhares de inimigos ali mesmo, atrás das linhas britânicas, antes de o ataque começar. Era uma oportunidade enviada pelos céus, ou talvez pelos demônios que lançavam os dados cruéis da guerra. Assim que chegasse ao front, ligaria para o quartel-general.
Um sinalizador foi disparado para cima. O clarão lhe possibilitou ver um vigia britânico, que espiava por cima do parapeito com o fuzil apontado, olhando direto para ele.
Walter se jogou no chão e enterrou o rosto na lama.
Um tiro ecoou. Então um dos homens do destacamento do arame farpado gritou:
– Não atire, seu maluco, somos nós! – O sotaque trouxe à mente de Walter os empregados da casa de Fitz no País de Gales, e ele imaginou que aquele deveria ser um regimento galês.
O sinalizador morreu. Walter se levantou e saiu correndo em direção ao lado alemão. O vigia passaria alguns segundos sem conseguir enxergar nada, com os olhos ofuscados pelo clarão. Walter nunca havia corrido tão depressa na vida, esperando ouvir o disparo do fuzil a qualquer momento. Em meio minuto, chegou ao arame farpado britânico e caiu de joelhos, cheio de gratidão. Engatinhou depressa para o outro lado por uma brecha. Mais um sinalizador foi lançado. Ele ainda estava ao alcance de um tiro de fuzil, mas já não era tão fácil vê-lo. Jogou-se no chão. O sinalizador estava logo acima dele, e um bolo perigoso de magnésio incandescente caiu a um metro da sua mão, mas não houve mais tiros.
Quando o sinalizador se apagou, ele se levantou e saiu correndo até a linha de frente alemã.
Cerca de três quilômetros atrás da linha de frente britânica, Fitz observava, ansioso, o 8o Batalhão se formar pouco depois das duas da manhã. Temia que aqueles homens recém-treinados fossem lhe causar vergonha, mas não foi o caso. Os soldados estavam dóceis e obedeceram às ordens prontamente.
O brigadeiro, montado em seu cavalo, dirigiu-se rapidamente à tropa. Um sargento o iluminava de baixo com sua lanterna, fazendo-o parecer o vilão de um filme americano.
– A nossa artilharia dizimou as defesas inimigas – falou ele. – Quando vocês chegarem ao outro lado, encontrarão apenas alemães mortos.
Próximo dali, uma voz galesa murmurou:
– Não é espantoso como esses putos desses alemães conseguem atirar em nós mesmo depois de mortos?
Fitz correu os olhos pela fileira para identificar quem havia falado, mas foi impossível naquela escuridão.
O brigadeiro prosseguiu:
– Invadam e ocupem suas trincheiras, que logo em seguida as cozinhas de campanha virão lhes dar um jantar quente.
A Companhia B marchou rumo ao front, conduzida pelos sargentos de pelotão. Atravessaram os campos, deixando as estradas desimpedidas para os veículos. Enquanto partiam, começaram a cantar “Guiai meus passos, ó Grande Jeová”. Suas vozes pairaram no ar noturno por alguns minutos antes de eles sumirem no escuro.
Fitz voltou para o quartel-general do batalhão. Um caminhão aberto aguardava para levar os oficiais até a frente de batalha. Fitz sentou-se ao lado do tenente Roland Morgan, filho do gerente da mina de carvão de Aberowen.
Estava fazendo todo o possível para desencorajar as conversas derrotistas, mas não conseguia deixar de imaginar se o brigadeiro não teria exagerado demais no otimismo. Nenhum exército jamais havia montado uma ofensiva daquele porte – e ninguém poderia prever o seu desfecho. Sete dias de bombardeio não haviam dizimado as defesas inimigas: os alemães continuavam atirando de volta, como aquele soldado anônimo havia observado com sarcasmo. Na verdade, Fitz tinha dito a mesma coisa em um relatório, levando o coronel Hervey a perguntar se ele estava com medo.
Fitz estava preocupado. Quando o Estado-Maior fazia vista grossa às más notícias, homens morriam.
Como para provar que ele tinha razão, uma bomba explodiu na estrada atrás deles. Fitz olhou para trás e viu partes de um caminhão igual àquele que o transportava voando pelos ares. Um carro que vinha logo depois desviou para dentro de uma vala e, por sua vez, foi atingido por outro caminhão. Foi uma cena de massacre, porém o motorista do caminhão de Fitz agiu corretamente e não parou para ajudar. Os feridos eram de responsabilidade das equipes médicas.
Outras bombas atingiam os campos à esquerda e à direita da estrada. Os alemães estavam mirando nos soldados que se encaminhavam para o front, não no front em si. Eles provavelmente haviam entendido que a grande ofensiva estava prestes a começar – era quase impossível ocultar um movimento de tropas daquela magnitude do seu setor de inteligência – e, com uma eficiência mortífera, estavam matando homens que nem sequer tinham chegado às trincheiras. Fitz reprimiu um sentimento de pânico, mas seu medo perdurou. A Companhia B talvez nem chegasse à frente de batalha.
Ele chegou à área de formação das tropas sem novos incidentes. Já havia vários milhares de homens ali, apoiados nos fuzis e conversando em voz baixa. Fitz ouviu dizer que alguns grupos já haviam sido dizimados pelo bombardeio. Aguardou, perguntando-se com pessimismo se a sua companhia ainda existia. Dali a algum tempo, contudo, os Aberowen Pals chegaram intactos, para seu alívio, e entraram em formação. Fitz os conduziu pelas últimas centenas de metros até a trincheira de agrupamento do front.
A partir daí, restava-lhes apenas aguardar o momento do ataque. A trincheira estava cheia d’água, e as perneiras de Fitz logo ficaram encharcadas. Já não era mais permitido cantar: os inimigos poderiam ouvi-los de suas trincheiras. Também era proibido fumar. Alguns dos homens rezavam. Um soldado alto sacou seu livro de soldo e começou a preencher a página reservada ao “Testamento” sob o estreito facho da lanterna do sargento Elijah Jones. Quando Fitz viu que o soldado escrevia com a mão esquerda, percebeu que se tratava de Morrison, ex-lacaio de Tŷ Gwyn e lançador canhoto do time de críquete.
O dia raiou cedo – o auge do verão acabara de passar. Com a luz, alguns dos homens apanharam as fotos que traziam consigo, pondo-se a olhá-las ou cobri-las de beijos. Aquilo pareceu piegas, de modo que Fitz hesitou em imitá-los, mas, depois de algum tempo, foi o que acabou fazendo. Era uma foto de seu filho, George, que todos chamavam de Boy. Àquela altura, ele já estava com um ano e meio, mas a foto fora tirada em seu primeiro aniversário. Parecia que Bea o levara ao estúdio de um fotógrafo, pois atrás dele havia um fundo de mau gosto, mostrando uma clareira florida. Ele não se parecia muito com um menino, pois usava uma espécie de camisola branca e uma touca, mas era perfeito e saudável – e herdaria o condado caso Fitz morresse ali.
Bea e Boy deviam estar em Londres naquele instante, imaginou Fitz. Era julho, e a temporada de eventos sociais prosseguia, embora de forma discreta: as moças precisavam debutar, caso contrário, como poderiam conhecer maridos adequados?
A luz ficou mais forte e, logo em seguida, o sol apareceu. Os capacetes de aço dos Aberowen Pals brilharam e suas baionetas lançaram reflexos do dia recém-nascido. Para a maioria dos homens, aquela era a primeira batalha. Que batismo de fogo os aguardava – a vitória ou a derrota total.
Com o raiar do dia, os britânicos lançaram uma barragem de artilharia colossal. Os artilheiros estavam dando o melhor de si. Talvez esse último esforço finalmente destruísse as posições alemãs. Devia ser isso que o general Haig estava pedindo a Deus.
Os Aberowen Pals não participaram da primeira leva do ataque, mas Fitz se adiantou para olhar para o campo de batalha, deixando os tenentes no comando da Companhia B. Atravessou aos empurrões a multidão de homens que aguardavam e foi até a trincheira da linha de frente, onde subiu no degrau de tiro e espiou por um buraco aberto no parapeito feito de sacos de areia.
A névoa matinal se dispersava, afugentada pelos raios do sol nascente. O céu azul estava manchado pela fumaça escura das bombas. O clima ficaria agradável, pensou Fitz, um lindo dia de verão francês.
– Que tempo bom para matar alemães – falou, para ninguém em especial.
A hora do ataque se aproximava, e ele continuou no front. Queria ver o que acontecia com a primeira leva. Talvez houvesse alguma lição a aprender. Embora já fizesse quase dois anos que era oficial na França, aquela seria a primeira vez que comandaria homens em uma batalha – e estava mais preocupado com isso do que com a própria morte.
Cada um dos homens recebeu uma dose de rum. Fitz bebeu um pouco. Apesar da quentura da bebida em seu estômago, sentiu sua tensão aumentar. O ataque estava marcado para as sete e meia. Quando deu sete horas, os homens ficaram imóveis.
Às sete e vinte, a artilharia britânica se calou.
– Não! – disse Fitz em voz alta. – Ainda não... é cedo demais! – É claro que ninguém estava escutando. Mas ele ficou horrorizado. Aquilo avisaria aos alemães que um ataque estava por vir. Agora, seus soldados deviam estar saindo dos abrigos, trazendo as metralhadoras para a superfície e assumindo suas posições. Nossos artilheiros tinham dado ao inimigo 10 minutos inteiros para se preparar! Eles deveriam ter continuado a atirar até o último instante possível, até as sete horas, 29 minutos e 59 segundos.
Mas já não havia mais nada a fazer.
Fitz se perguntou com pesar quantos homens morreriam só por causa daquele erro estúpido.
Sargentos gritaram ordens e os homens em volta de Fitz subiram pelas escadas, passando por cima do parapeito. Entraram em formação junto ao arame farpado britânico, sem atravessá-lo. Estavam a cerca de 400 metros da linha alemã, porém nenhum inimigo havia disparado contra eles. Para surpresa de Fitz, os sargentos bradaram:
– Direita, coluna por um... cobrir! – Os homens começaram a se enfileirar como se estivessem em um campo de treinamento, ajustando cuidadosamente a distância que os separava até ficarem alinhados à perfeição, como pinos em um jogo de boliche. Fitz achou aquilo uma loucura: apenas dava mais tempo para os alemães se prepararem.
Às sete e meia, um apito soou, todos os sinaleiros abaixaram suas bandeiras e a primeira linha avançou.
Os soldados não saíram correndo, por conta do peso do equipamento que carregavam: munição extra, uma lona impermeável, comida e água e duas granadas de mão de quase um quilo cada uma. Avançaram em ritmo de trote, chapinhando nas crateras das bombas, e passaram pelas brechas do arame farpado britânico. Conforme as instruções, tornaram a formar fileiras e seguiram em frente, ombro a ombro, pela terra de ninguém.
Quando estavam na metade do caminho, as metralhadoras alemãs abriram fogo.
Fitz viu os homens começarem a cair um segundo antes de seus ouvidos escutarem o conhecido matraquear. Um deles caiu, depois uma dúzia, depois 20, depois mais.
– Meu Deus – disse Fitz enquanto eles tombavam: 50, 100 homens. Consternado, ficou assistindo ao massacre. Alguns jogavam as mãos para cima ao serem atingidos; outros gritavam ou se debatiam; outros apenas se desmilinguiam, caindo no chão feito uma bolsa largada.
Aquilo era pior do que as previsões pessimistas de Gwyn Evans – pior do que os temores mais terríveis de Fitz.
Antes de chegarem ao arame farpado alemão, a maioria dos homens já havia sido abatida.
Outro apito soou, e a segunda linha começou a avançar.
O soldado raso Robin Mortimer estava furioso.
– Mas que estupidez do caralho – disse ele quando o matraquear das metralhadoras se fez ouvir. – Nós deveríamos ter atacado no escuro. Não dá para atravessar a terra de ninguém em plena luz do dia. Eles não estão nem produzindo uma cortina de fumaça. Isso é suicídio, cacete.
Os homens reunidos na trincheira de agrupamento estavam aflitos. O moral baixo dos Aberowen Pals deixava Billy preocupado. Durante a marcha do quartel até o front, eles haviam sido submetidos ao seu primeiro ataque de artilharia. Embora não tivessem sofrido um impacto direto, grupos que estavam mais à frente e atrás deles haviam sido massacrados. Quase tão ruim quanto isso era o fato de terem marchado por uma série de fossas recém-escavadas, todas com exatos 1,80m de profundidade, e concluído que eram valas comuns, prontas para receber os mortos do dia.
– A direção do vento não está boa para uma cortina de fumaça – disse Profeta Jones com brandura. – É por isso que eles também não estão usando gás.
– Porra, que loucura – murmurou Mortimer.
Animado, George Barrow falou:
– Os mandachuvas sabem o que é melhor. Foram criados para governar. Acho que devemos confiar neles.
Tommy Griffiths não podia deixar aquilo passar.
– Como você pode achar uma coisa dessas quando eles o mandaram para o reformatório?
– Eles precisam colocar gente como eu na cadeia – falou George com determinação. – Senão todo mundo seria bandido. Eu mesmo poderia ser roubado!
Todos riram, exceto o carrancudo Mortimer.
O major Fitzherbert reapareceu, com uma expressão carregada, trazendo uma jarra de rum. O tenente distribuiu a bebida, servindo-a nas latas que os soldados estendiam. Billy tomou a sua sem prazer algum. O álcool alegrou os homens, mas não por muito tempo.
A única vez em que Billy se sentira daquela maneira fora em seu primeiro dia na mina, quando Rhys Price o deixara sozinho e sua lamparina se apagara. Naquela ocasião, uma visão viera em seu auxílio. Infelizmente, Jesus só aparecia para meninos de imaginação fértil, não para homens sensatos e racionais. Desta vez, Billy estava sozinho.
Faltava pouco para o teste supremo, talvez apenas alguns minutos. Será que ele conseguiria manter sua coragem? Caso fracassasse – encolhendo-se no chão em posição fetal e fechando os olhos, desatando a chorar, ou então saindo correndo –, sentiria vergonha pelo resto da vida. Prefiro morrer, pensou, mas será que ainda vou me sentir assim quando a fuzilaria começar?
Todos avançaram alguns passos.
Ele sacou a carteira. Mildred lhe dera uma foto sua. Nela, estava de sobretudo e chapéu. Billy, no entanto, teria preferido se lembrar dela da maneira que a havia encontrado na noite em que fora ao seu quarto.
Perguntou-se o que ela estaria fazendo naquele momento. Era sábado, então provavelmente estava na fábrica de Mannie Litov, costurando uniformes. Como a manhã estava no meio, as mulheres deveriam estar parando para um intervalo. Talvez Mildred lhes contasse uma história engraçada.
Billy pensava nela o tempo todo. A noite que passaram juntos havia sido uma extensão da aula de beijo. Ela o impedira de agir como um touro tentando derrubar uma porteira e ensinara-lhe formas mais lentas, mais lúdicas, carícias que haviam lhe provocado um prazer intenso, maior do que ele poderia ter imaginado. Ela havia beijado seu pênis e depois lhe pedido que fizesse o equivalente com ela. Melhor ainda, mostrara-lhe como fazer, o que a levara a gritar de prazer. No final, havia retirado um preservativo da gaveta do criado-mudo. Era a primeira vez que Billy via um, embora os rapazes falassem a respeito, chamando-os de camisinhas. Ela havia colocado o preservativo nele – e até isso tinha sido incrível.
Mais parecera um sonho, e ele precisava ficar lembrando a si mesmo de que havia realmente acontecido. Nada em sua criação o havia preparado para a atitude despreocupada e ávida de Mildred em relação ao sexo – e fora uma revelação para ele. Seus pais, assim como a maioria das pessoas de Aberowen, a tachariam de “inadequada”, por ter dois filhos e nem sinal de marido. Billy, no entanto, pouco teria ligado se ela tivesse seis filhos. Ela lhe abrira as portas do paraíso, e tudo o que ele queria era voltar para lá. Mais do que qualquer outra coisa, queria sobreviver àquele dia para poder tornar a ver Mildred e passar outra noite com ela.
Enquanto os Pals avançavam, aproximando-se devagar da trincheira da linha de frente, Billy percebeu que estava suando.
Owen Bevin começou a chorar. Billy, então, falou com rispidez:
– Controle-se, soldado Bevin. Chorar não adianta nada, adianta?
– Eu quero ir para casa – disse o menino.
– Eu também, garoto, eu também.
– Por favor, cabo, eu não imaginava que fosse ser assim.
– Quantos anos você tem, afinal?
– Dezesseis.
– Maldição! – exclamou Billy. – Como você foi recrutado?
– Eu disse ao médico quantos anos tinha e ele falou: “Vá embora e volte amanhã de manhã. Você é alto para a sua idade, pode ser que amanhã já tenha 18 anos.” Daí ele piscou para mim, entende, e eu soube que precisava mentir.
– Filho da mãe – disse Billy. Ele olhou para Owen. O menino seria inútil no campo de batalha. Estava tremendo e soluçando.
Billy foi falar com o tenente Carlton-Smith.
– Bevin tem só 16 anos, senhor.
– Meu Deus! – reagiu o tenente.
– Ele deveria ser mandado de volta. Vai nos atrapalhar.
– Isso eu já não sei. – Carlton-Smith parecia atônito e impotente.
Billy recordou como Profeta Jones havia tentado transformar Mortimer em aliado. Profeta era um bom líder, que planejava o futuro e agia para evitar problemas. Carlton-Smith, por sua vez, parecia não ter serventia nenhuma, mas mesmo assim era o oficial superior. Não é à toa que se fala em sistema de classes, teria dito Da.
Dali a um minuto, Carlton-Smith se aproximou de Fitzherbert e disse algo em voz baixa. O major fez que não com a cabeça, ao que Carlton-Smith deu de ombros como quem não pode fazer nada.
Billy não havia sido criado para ficar calado diante de uma crueldade.
– O menino tem só 16 anos, senhor!
– Agora é tarde para dizer isso – respondeu Fitzherbert. – E não fale a menos que alguém lhe dirija a palavra, cabo.
Billy sabia que Fitzherbert não o havia reconhecido. Ele era apenas um das centenas de homens que trabalhavam nas minas do conde. Fitzherbert não sabia que ele era irmão de Ethel. De qualquer forma, todo aquele desdém deixou Billy com raiva.
– É contra a lei – disse ele com teimosia. Em outras circunstâncias, Fitzherbert teria sido o primeiro a dar sermão quanto à necessidade de se respeitar as leis.
– Isso quem decide sou eu – respondeu Fitz, irritado. – É por isso que sou oficial.
O sangue de Billy começou a ferver. Ali estavam Fitzherbert e Carlton-Smith, com seus uniformes de alfaiataria, olhando com hostilidade para Billy – que se coçava inteiro em seu uniforme cáqui – e pensando que podiam fazer o que quisessem.
– A lei é uma só – disse Billy.
Profeta falou em voz baixa:
– Estou vendo que o senhor esqueceu sua bengala hoje, major Fitzherbert. Quer que eu mande Bevin buscá-la para o senhor no quartel-general?
Era um meio-termo que permitia a Fitz não perder a autoridade, pensou Billy. Muito bem, Profeta.
Fitzherbert, no entanto, não deu o braço a torcer.
– Deixe de ser ridículo – falou ele.
De repente, Bevin saiu correndo. Embrenhou-se na multidão de homens às suas costas e sumiu de vista num piscar de olhos. Aquilo foi tão surpreendente que alguns dos homens riram.
– Ele não vai muito longe – disse Fitzherbert. – E, quando o apanharem, não vai ter graça nenhuma.
– Ele é uma criança!
Fitzherbet o encarou.
– Qual é o seu nome? – quis saber.
– Williams, senhor.
Fitzherbert pareceu surpreso, mas se recompôs depressa.
– Temos centenas de Williams – disse. – Qual é o seu nome de batismo?
– William, senhor. Meu apelido é Billy Duplo.
Fitzherbert olhou firme para ele.
Ele sabe, pensou Billy. Sabe que Ethel tem um irmão chamado Billy Williams. Devolveu o olhar de Fitz sem hesitar.
– Mais uma palavra da sua boca, cabo William Williams, e será punido – disse Fitzherbert.
Ouviu-se um assobio mais acima. Billy se abaixou. De trás dele, veio um estrondo ensurdecedor. Um furacão soprou à sua volta: torrões de terra e fragmentos de tábuas passaram voando. Ele ouviu gritos. De súbito, viu-se deitado rente ao chão, sem saber ao certo se havia sido derrubado ou se tinha se jogado por conta própria. Algo pesado atingiu sua cabeça e ele soltou um palavrão. Então uma bota pisou o chão ao lado de seu rosto. Presa a ela havia uma perna e nada mais.
– Deus do céu! – exclamou ele.
Levantou-se. Não estava ferido. Olhou ao redor para os homens da sua seção: Tommy, George Barrow, Mortimer... estavam todos de pé. Então começaram a avançar, pois de repente o front lhes parecia uma rota de fuga.
– Homens, mantenham a posição! – gritou o major Fitzherbert.
– Última forma, última forma – ordenou Profeta Jones.
O impulso para a frente foi interrompido. Billy tentou limpar a lama do uniforme. Então outro projétil aterrissou atrás deles. Desta vez, na verdade, o impacto foi mais atrás, mas isso fez pouca diferença. Houve um estrondo, um furacão e uma chuva de detritos e partes de corpos. Os homens começaram a escalar aos trancos a trincheira de agrupamento pela frente e pelos dois lados. Billy e sua seção fizeram o mesmo. Fitzherbert, Carlton-Smith e Roland Morgan gritavam para os homens ficarem onde estavam, mas ninguém os ouvia.
Todos correram para a frente, tentando chegar a uma distância segura do bombardeio. Ao se aproximarem do arame farpado britânico, diminuíram o passo e pararam à beira da terra de ninguém, percebendo que mais adiante havia um perigo tão grande quanto aquele de que estavam fugindo.
Os oficiais, tentando aproveitar aquela situação, juntaram-se aos soldados.
– Formem uma linha! – gritou Fitzherbert.
Billy olhou para Profeta. Depois de hesitar, o sargento acatou a ordem.
– Em linha, em linha! – ordenou.
– Olhe só aquilo – falou Tommy para Billy.
– O quê?
– Depois do arame.
Billy olhou.
– Os corpos – disse Tommy.
Billy viu do que ele estava falando. O solo estava abarrotado de corpos vestidos de cáqui, alguns terrivelmente mutilados, outros deitados com um ar tranquilo, como se estivessem dormindo, e outros ainda enlaçados como dois amantes.
Havia milhares deles.
– Jesus nos ajude – sussurrou Billy.
Ele ficou enojado. Que tipo de mundo era aquele? Por que motivo Deus deixaria uma coisa como aquela acontecer?
A Companhia A se alinhou e Billy e o restante da Companhia B assumiram suas posições atrás deles.
O horror de Billy se transformou em raiva. O conde Fitzherbert e outros de sua laia haviam planejado aquilo. Estavam no comando, de modo que a culpa por aquele massacre era deles. Deveriam ser fuzilados, pensou, enfurecido – toda aquela corja desgraçada.
O tenente Morgan soprou um apito e a Companhia A saiu correndo para a frente como atacantes de rúgbi. Carlton-Smith imitou Morgan, e Billy também começou a correr em um ritmo mais lento.
Então as metralhadoras alemãs abriram fogo.
Os homens da Companhia A começaram a cair – e Morgan foi o primeiro. Nem sequer haviam disparado suas armas. Aquilo não era uma batalha, era um massacre. Billy olhou para os homens à sua volta. Sentiu vontade de se rebelar. Os oficiais haviam fracassado. Os homens tinham que tomar suas próprias decisões. As ordens que fossem para o inferno.
– Que se dane! – gritou ele. – Protejam-se! – Dito isso, jogou-se para dentro de uma cratera de bomba.
As laterais do buraco estavam enlameadas, e o fundo, coberto por uma água fétida, mas ele se sentiu grato ao pressionar o corpo contra a terra fria e úmida enquanto as balas zuniam por cima de sua cabeça. Logo em seguida, Tommy aterrissou ao seu lado, seguido pelo resto da seção. Homens de outras seções começaram a imitar a de Billy.
Fitzherbert passou correndo pela cratera onde estavam.
– Homens, continuem avançando! – gritou ele.
– Se ele continuar insistindo, vou dar um tiro nesse filho da mãe – disse Billy.
Então Fitzherbert foi atingido por tiros de metralhadora. O sangue jorrou de sua bochecha e uma de suas pernas cedeu sob o peso do corpo. Ele foi ao chão.
Oficiais corriam tanto perigo quanto seus homens. Billy deixou de sentir raiva. Sentia, isso sim, vergonha do Exército britânico. Como ele poderia ser tão incompetente assim? Depois de todo o esforço despendido, de todo o dinheiro gasto, dos meses de planejamento... a grande investida terminara em fiasco. Era humilhante.
Billy olhou em volta. Fitz estava no chão, inconsciente. Nem o tenente Carlton-Smith, nem o sargento Jones estavam à vista. Os outros homens da seção olhavam para Billy. Ele não passava de um cabo, mas todos esperavam que lhes dissesse o que fazer.
Ele se virou para Mortimer, que já fora oficial:
– O que você acha...
– Não olhe para mim, galesinho – disse Mortimer em tom azedo. – A porra do cabo é você.
Billy precisava bolar um plano.
Não iria conduzi-los de volta. Mal cogitou essa possibilidade. Isso seria desperdiçar a vida dos homens que já haviam morrido. Precisamos tirar algum proveito disso tudo, pensou; precisamos dar um jeito de mostrar a que viemos.
Por outro lado, ele não iria correr em direção ao fogo das metralhadoras.
A primeira coisa que precisava fazer era avaliar a situação.
Tirou o capacete de aço e o segurou com o braço esticado, erguendo-o acima da borda da cratera para servir de isca – caso algum alemão estivesse mirando ali. Mas nada aconteceu.
Então ergueu a cabeça por cima da borda, esperando ter o crânio varado por um tiro a qualquer momento. Mas também não foi o caso.
Ele olhou para o espaço que separava as duas frentes e, então, colina acima, para além do arame farpado alemão, até a linha inimiga escavada na encosta. Pôde ver canos de fuzis despontando de brechas no parapeito da trincheira.
– Onde está a porra da metralhadora? – perguntou a Tommy.
– Não sei bem.
A Companhia C passou correndo. Alguns homens se abrigaram, enquanto outros mantiveram a formação. A metralhadora tornou a abrir fogo, varrendo à bala a linha de homens, que caíram como pinos de boliche. Desta vez, Billy não ficou chocado. Estava procurando a origem dos tiros.
– Descobri – disse Tommy.
– Onde?
– Trace uma linha reta daqui até aquele monte de arbustos no alto da colina.
– Certo.
– Veja onde essa reta cruza a trincheira alemã.
– Pronto.
– Agora vá um pouco para a direita.
– Até onde... esqueça, estou vendo os desgraçados. – Logo à frente e um pouco à direita de onde Billy estava, algo que poderia ser um escudo protetor de ferro se erguia sobre o parapeito da trincheira – e o cano inconfundível de uma metralhadora se projetava acima dele. Billy pensou distinguir três capacetes alemães em volta do escudo, mas era difícil ter certeza.
Eles deviam estar concentrando os tiros na brecha do arame britânico, pensou Billy. Estavam atirando repetidamente nos homens que corriam para a frente a partir dali. Talvez a saída fosse atacá-los de outro ângulo. Se a sua seção conseguisse atravessar a terra de ninguém na diagonal, talvez pudesse alcançar a metralhadora pela esquerda dos alemães, que estariam olhando para a direita.
Ele planejou uma rota usando três crateras grandes, a terceira logo após um trecho derrubado de arame farpado alemão.
Não fazia a menor ideia se essa era uma tática militar correta. Mas a tática correta havia custado a vida de milhares de homens naquela manhã, então ela que fosse para o inferno.
Ele tornou a se abaixar e olhou para os homens à sua volta. Apesar da pouca idade, George Barrow tinha uma boa pontaria com o fuzil.
– Da próxima vez que aquela metralhadora abrir fogo, prepare-se para atirar. Assim que ela parar, você começa. Com um pouco de sorte, eles vão se proteger. Eu vou correr até aquela cratera ali. Continue atirando até esvaziar o cartucho. Você tem dez tiros... faça com que eles durem meio minuto. Quando os alemães levantarem a cabeça, eu já estarei na outra cratera. – Ele olhou para os outros. – Aguardem outro intervalo e então corram todos ao mesmo tempo, enquanto Tommy lhes dá cobertura. Na terceira vez, eu dou cobertura enquanto Tommy corre.
A Companhia D correu em direção à terra de ninguém. A metralhadora abriu fogo. Fuzis e morteiros de trincheira foram disparados ao mesmo tempo. Mas a carnificina foi menor, porque mais homens se abrigavam nas crateras em vez de correr para o meio da chuva de tiros.
Falta pouco, pensou Billy. Ele tinha dito aos homens o que iria fazer, de modo que seria vergonhoso demais voltar atrás. Cerrou os dentes. Melhor morrer do que ser um covarde, tornou a dizer a si mesmo.
Os tiros de metralhadora cessaram.
No mesmo instante, Billy se levantou com um pulo. Agora era um alvo fácil. Abaixou-se e saiu correndo.
Às suas costas, ouviu Barrow atirar. Sua vida estava nas mãos de um delinquente juvenil de 17 anos. George atirava em ritmo constante: bangue, dois, três, bangue, dois, três, exatamente como ele havia mandado.
Billy disparou pela terra de ninguém o mais rápido que pôde, apesar de todo o peso do seu equipamento. Suas botas grudavam na lama, sua respiração era uma série de arquejos irregulares, seu peito doía, mas não havia nada em sua mente a não ser o desejo de correr mais depressa. Nunca havia chegado tão perto da morte quanto naquele instante.
Quando estava a alguns metros da cratera, arremessou o fuzil lá dentro e mergulhou como se estivesse tentando deter um adversário no rúgbi. Aterrissou na borda da cratera e, rolando para a frente, foi parar dentro da lama. Mal conseguiu acreditar que ainda estava vivo.
Ouviu uma vibração entrecortada. A seção de Billy estava aplaudindo sua corrida. Achou incrível que eles conseguissem ficar tão alegres em meio a uma carnificina daquelas. Que criaturas estranhas eram os homens.
Depois de recuperar o fôlego, olhou com cautela por cima da borda. Havia corrido uns 100 metros. Nesse ritmo, demoraria algum tempo para atravessar a terra de ninguém. Mas a alternativa era suicídio.
A metralhadora tornou a abrir fogo. Quando os tiros cessaram, Tommy começou a atirar. Seguindo o exemplo de George, fez uma pausa entre cada tiro. Como aprendemos depressa quando nossa vida está em perigo, pensou Billy. Quando Tommy disparou a décima e última bala de seu cartucho, o resto da seção mergulhou dentro da cratera ao lado de Billy.
– Venham para a frente – gritou ele. A posição alemã ficava colina acima, e Billy temia que o inimigo pudesse ver a metade de trás da cratera.
Ele descansou o fuzil na borda e mirou na metralhadora. Depois de algum tempo, os alemães abriram fogo outra vez. Quando pararam, Billy começou a atirar. Torceu para que Tommy corresse depressa. Preocupava-se mais com ele do que com todos os outros homens da seção somados. Segurou o fuzil com a mão firme e disparou a intervalos de aproximadamente cinco segundos. Pouco importava que acertasse alguém ou não, contanto que obrigasse os alemães a ficarem abaixados enquanto Tommy corria.
Sua munição acabou e Tommy aterrissou ao seu lado.
– Cacete – disse Tommy. – Nós temos que fazer isso mais quantas vezes?
– Mais duas, eu acho – respondeu Billy enquanto recarregava. – Então vamos estar ou perto o suficiente para lançar uma granada de mão, ou todos mortos nesta porra de lugar.
– Sem palavrões, Billy, por favor – disse Tommy com uma expressão muito séria. – Você sabe que eu acho desagradável.
Billy deu uma risadinha. Então se perguntou como podia rir. Estou dentro de uma cratera de bomba, com o exército alemão atirando em mim, e estou rindo, pensou. Que Deus me ajude.
Eles passaram para a cratera seguinte da mesma forma, porém, como ela ficava a uma distância maior, desta vez eles perderam um homem. Joey Ponti foi atingido na cabeça enquanto corria. George Barrow o levantou do chão, carregando-o pelo caminho, mas ele estava morto, com um buraco sangrento aberto no crânio. Billy tentou imaginar onde estaria seu irmão caçula, Johnny: não o via desde que deixara a trincheira de agrupamento. Vou ter que ser eu a lhe dar a notícia, pensou Billy. Johnny idolatrava o irmão mais velho.
Havia outros homens mortos naquela cratera. Três corpos vestidos de cáqui flutuavam na água suja. Deviam ter estado entre os primeiros a avançar. Billy se perguntou como tinham chegado tão longe. Talvez fosse apenas sorte. As metralhadoras estavam fadadas a errar alguns alvos na primeira rajada, para então dizimá-los na segunda.
Àquela altura, outros grupos estavam se aproximando da linha alemã, seguindo uma tática parecida. Ou estavam imitando o grupo de Billy ou – o que era mais provável – haviam tido o mesmo raciocínio, abandonando o ridículo ataque em formação ordenado pelos oficiais e bolando sua própria tática, mais sensata. O resultado era que os alemães não tinham mais tudo a seu favor. Como eles próprios estavam sob fogo, não podiam manter o mesmo ritmo incessante de tiros. Talvez, por esse motivo, o grupo de Billy tivesse conseguido chegar à última cratera sem nenhuma outra baixa.
Na verdade, eles ganharam um companheiro. Ao lado de Billy, estava deitado um desconhecido.
– De onde você surgiu? – perguntou Billy.
– Perdi meu grupo – respondeu o homem. – Vocês pareciam saber o que estavam fazendo, então eu os segui. Espero que não se importem.
Ele falava com um sotaque que Billy imaginou ser do Canadá.
– Você é bom lançador? – perguntou Billy.
– Eu jogava no time de beisebol da minha escola.
– Certo. Quando eu der a ordem, veja se consegue atingir aquele ninho de metralhadora com uma granada de mão.
Billy mandou Llewellyn Espinhento e Alun Pritchard lançarem suas granadas enquanto o resto da seção lhes dava cobertura com tiros de fuzil. Mais uma vez, eles aguardaram até a metralhadora cessar fogo.
– Agora! – gritou Billy, levantando-se.
Uma rajada esparsa de tiros de fuzil veio da trincheira alemã. Espinhento e Alun, assustados pelos disparos, lançaram as granadas de qualquer jeito. Nenhuma delas atingiu a trincheira, a pouco menos de 50 metros de distância; caíram perto demais e explodiram sem causar nenhum dano. Billy praguejou: eles haviam simplesmente deixado a metralhadora intacta. Como era de se esperar, ela tornou a abrir fogo e, logo em seguida, Espinhento se debateu terrivelmente enquanto uma saraivada de balas rasgava seu corpo.
Billy sentia uma calma estranha. Dedicou alguns segundos a se concentrar no alvo e recuou o braço o máximo que conseguiu. Calculou a distância como se estivesse arremessando uma bola de rúgbi. Tinha a leve impressão de que o canadense, bem ao seu lado, estava tão calmo quanto ele. A metralhadora rugiu, cuspindo suas balas, e virou-se na sua direção.
Os dois lançaram ao mesmo tempo.
Ambas as granadas foram parar dentro da trincheira próxima ao ninho da metralhadora. Houve uma dupla explosão. Billy viu o cano da metralhadora sair voando pelos ares e soltou um grito triunfante. Tirou o pino de sua segunda granada e disparou colina acima aos gritos de “Atacar!”
O entusiasmo corria por suas veias como uma droga. Ele mal percebia estar correndo perigo. Não fazia ideia de quantos alemães poderia haver dentro daquela trincheira, apontando para ele os seus fuzis. Os outros o seguiram. Ele lançou a segunda granada e os homens o imitaram. Algumas erraram o alvo, enquanto outras caíram na trincheira e explodiram.
Billy chegou à trincheira. Foi então que notou ainda estar carregando o fuzil no ombro. No tempo que levaria para colocar a arma em posição de tiro, um alemão poderia abatê-lo.
Porém não havia mais nenhum alemão vivo.
As granadas haviam feito um estrago terrível. O chão da trincheira estava entulhado de cadáveres e – o que era ainda pior de se ver – partes de corpos. Mesmo que algum alemão houvesse sobrevivido ao ataque, tinha batido em retirada. Billy pulou para dentro da trincheira, finalmente empunhando o fuzil com as duas mãos, em posição de tiro. Mas não precisava da arma. Não havia mais em quem atirar.
Tommy pulou, aterrissando ao seu lado.
– Conseguimos! – gritou, esfuziante. – Tomamos uma trincheira alemã!
Billy sentia uma alegria cruel. Eles haviam tentado matá-lo, mas em vez disso quem os havia matado era ele. Era um sentimento de profunda satisfação, diferente de tudo o que já experimentara.
– Tem razão – disse ele a Tommy. – Conseguimos.
Billy ficou surpreso com a qualidade das fortificações alemãs. Tinha olhos de minerador para avaliar a segurança de uma estrutura. As paredes eram sustentadas por tábuas de madeira, os recessos eram quadrados e os abrigos, espantosamente profundos, descendo seis, às vezes nove metros terra adentro, com portais bem construídos e degraus de madeira. Isso explicava como tantos alemães haviam sobrevivido a sete dias de bombardeio contínuo.
As trincheiras alemãs provavelmente haviam sido escavadas em rede, com trincheiras de comunicação conectando o front a áreas de armazenagem e manutenção na retaguarda. Billy precisava ter certeza de que não havia nenhum grupo de soldados de tocaia. Ele conduziu os demais em uma patrulha, com os fuzis em ponto de bala, mas não encontraram ninguém.
A rede de trincheiras terminava no alto da colina. Lá de cima, Billy olhou em volta. À esquerda de onde estavam, depois de uma área castigada pelas bombas, outros soldados britânicos haviam conquistado o setor seguinte; à sua direita, a trincheira acabava e o solo descia rumo a um pequeno vale, no qual corria um riacho.
Ele olhou para o leste, em direção ao território inimigo. Sabia que, a uns dois ou três quilômetros de distância, havia outro sistema de trincheiras, a segunda linha defensiva alemã. Estava pronto para conduzir seu pequeno grupo adiante, mas então hesitou. Não via nenhum outro destacamento britânico avançando e imaginava que seus homens já estivessem quase sem munição. Supunha que, a qualquer momento, caminhões de abastecimento viessem chacoalhando pelas crateras abertas trazendo mais munição e ordens para a fase seguinte.
Ergueu os olhos para o céu. Era meio-dia. Os homens não comiam desde a noite anterior.
– Vamos ver se os alemães deixaram alguma comida para trás – falou. Mandou Seboso Hewitt ficar de sentinela no alto da colina, para o caso de os alemães contra-atacarem.
Quase não havia provisões ali. Parecia que os alemães não estavam se alimentando muito bem. Eles encontraram um pão preto bolorento e um salame já duro. Não havia sequer cerveja. Os alemães não eram famosos pela sua cerveja?
O brigadeiro havia prometido que cozinhas de campanha seguiriam o avanço das tropas, mas, sempre que Billy olhava com impaciência para a terra de ninguém, não via nem sinal de mantimentos.
Eles se acomodaram para comer suas rações de biscoitos duros e carne enlatada.
Billy deveria mandar alguém de volta para relatar o ocorrido. Antes que pudesse fazer isso, no entanto, a artilharia alemã mudou de alvo. No começo, haviam bombardeado a retaguarda britânica, mas agora estavam se concentrando na terra de ninguém. Vulcões de terra explodiam entre as linhas inimigas. O bombardeio era tão intenso que ninguém teria conseguido retornar com vida.
Por sorte, os artilheiros estavam evitando a própria linha de frente. Provavelmente não sabiam quais setores haviam sido tomados pelos britânicos e quais continuavam em mãos alemãs.
O grupo de Billy estava preso. Não podiam nem avançar sem munição, nem recuar por causa do bombardeio. Mas Billy parecia ser o único preocupado com aquilo. Os outros começaram a procurar suvenires. Recolheram capacetes pontudos, insígnias de quepes e canivetes. George Barrow examinou todos os alemães mortos, tomando seus relógios e anéis. Tommy pegou a Luger 9mm de um oficial e uma caixa de munição.
Eles começaram a ficar letárgicos. Não era de espantar: haviam passado a noite em claro. Billy postou duas sentinelas e deixou o restante tirar um cochilo. Estava decepcionado. Havia conquistado uma pequena vitória em seu primeiro dia de batalha – e queria contar isso a alguém.
No fim da tarde, a barragem de artilharia arrefeceu. Billy ponderou se deveria recuar. Era a única coisa que parecia fazer sentido, mas ele tinha medo de ser acusado de deserção frente ao inimigo. Não havia como saber do que os oficiais seriam capazes.
Contudo, os alemães tomaram a decisão por ele. Seboso Hewitt, que estava de sentinela no topo da colina, viu que o inimigo avançava pelo leste. Billy divisou uma tropa numerosa – 50 a 100 homens – atravessar o vale correndo em sua direção. Seus homens não tinham como defender a posição conquistada sem munição nova.
Por outro lado, se recuassem poderiam ser repreendidos.
Ele reuniu seu punhado de homens.
– Certo, rapazes – falou. – Atirem à vontade e, quando a munição de vocês acabar, recuem. – Ele esvaziou o fuzil contra os soldados que avançavam, ainda a quase um quilômetro de distância, então deu meia-volta e saiu correndo. Os outros fizeram o mesmo.
O grupo atravessou aos trancos e barrancos as trincheiras alemãs e a terra de ninguém rumo ao sol poente, pulando por cima dos mortos e esquivando-se das equipes com padiolas que recolhiam os feridos. Mas ninguém atirou neles.
Quando chegou ao lado britânico, Billy saltou para dentro de uma trincheira cheia de cadáveres, feridos e sobreviventes exaustos como ele. Viu o major Fitzherbert deitado em uma maca, com o rosto ensanguentado, mas com os olhos abertos, vivo e respirando. Esse aí eu não teria me importado em perder, pensou. Muitos homens estavam apenas sentados ou deitados na lama, com o olhar perdido, em estado de choque e paralisados pelo cansaço. Os oficiais tentavam organizar a volta dos homens e dos cadáveres para as seções da retaguarda. O clima não era de triunfo, ninguém avançava e os oficiais nem sequer olhavam para o campo de batalha. A grande ofensiva havia sido um fracasso.
Os homens da seção de Billy que restavam seguiram-no para dentro da trincheira.
– Que cagada – disse ele. – Que baita cagada!
Uma semana depois, Owen Bevin foi submetido à corte marcial, acusado de covardia e deserção.
No julgamento, teve a opção de ser defendido por um oficial nomeado para agir como “amigo do prisioneiro”, mas recusou. Como seu crime era passível de pena de morte, a defesa entrou automaticamente com um pedido de inocência. Bevin, no entanto, não disse nada em defesa própria. O julgamento levou menos de uma hora. Bevin foi condenado.
Recebeu a pena capital.
Os documentos foram enviados para a sede do Estado-Maior para serem sancionados. O comandante em chefe aprovou a pena de morte. Duas semanas mais tarde, em um pasto francês enlameado, Bevin estava diante de um pelotão de fuzilamento, com os olhos vendados.
Alguns dos homens devem ter errado de propósito, pois, depois de atirarem, Bevin, embora sangrasse, continuava vivo. O oficial que liderava o pelotão de fuzilamento então se aproximou dele, sacou a pistola e disparou dois tiros à queima-roupa na testa do menino.
Só então, finalmente, Owen Bevin morreu.
Final de julho de 1916
Depois de Billy partir para a França, Ethel começou a pensar muito na vida e na morte. Sabia que talvez nunca mais o visse. Estava contente por ele ter perdido a virgindade com Mildred.
– Eu deixei seu irmãozinho se aproveitar de mim – disse Mildred em tom descontraído assim que Billy foi embora. – Ele é um doce. Tem mais desse tipo lá no País de Gales? – Ethel, no entanto, desconfiava que os sentimentos de Mildred não fossem tão superficiais quanto ela queria demonstrar, pois, em suas orações antes de dormir, Enid e Lillian agora pediam a Deus para cuidar do tio Billy na França e trazê-lo são e salvo para casa.
Alguns dias depois, Lloyd teve uma infecção pulmonar feia e, desesperada de angústia, Ethel o ninou nos braços enquanto ele lutava para respirar. Com medo de que o filho morresse, arrependeu-se amargamente de que seus pais nunca tivessem visto o neto. Quando o menino melhorasse, decidiu, ela o levaria até Aberowen.
Voltou à cidade exatamente dois anos depois de ter ido embora. Estava chovendo.
Aberowen não havia mudado muito, mas lhe pareceu deprimente. Durante os primeiros 21 anos de sua vida, ela não a vira dessa forma, mas agora, depois de morar em Londres, reparou que a cidade tinha apenas uma cor. Tudo era cinza: as casas, as ruas, as pilhas de refugo da mina e as nuvens baixas de chuva que flutuavam desconsoladas pelo cume da montanha.
Ao sair da estação, no meio da tarde, estava cansada. Não era nada fácil fazer uma viagem de um dia inteiro com uma criança de um ano e meio. Lloyd havia se comportado bem, encantando os outros passageiros com seu sorriso cheio de dentes. Mesmo assim, Ethel tivera de lhe dar de comer em um vagão chacoalhante, trocá-lo em um banheiro fétido e niná-lo quando ele começou a ficar irrequieto – o que era uma tensão, com tantos desconhecidos olhando.
Com Lloyd apoiado em um dos quadris e uma pequena mala na mão, ela atravessou a praça da estação e começou a subir a ladeira da Clive Street. Não demorou a ficar ofegante. Aquela era outra coisa de que havia se esquecido. Londres era quase toda plana, enquanto em Aberowen não se ia a lugar nenhum sem subir ou descer uma encosta íngreme.
Ela não sabia o que havia acontecido ali desde que fora embora. Sua única fonte de informações era Billy e os homens não sabiam fofocar. Sem dúvida, ela própria havia sido o assunto preferido de todos durante algum tempo. No entanto, novos escândalos deveriam ter surgido desde então.
Sua volta seria uma novidade e tanto. Várias mulheres a olharam descaradamente enquanto ela subia a rua com o filho. Ela sabia o que estavam pensando. Se não é Ethel Williams, que se achava melhor do que nós, voltando com um vestido marrom velho, um bebê no colo e sem marido. O orgulho precede a queda, diriam elas, com uma malícia mal disfarçada de compaixão.
Ela chegou à Wellington Row, mas não foi à casa dos pais. Da tinha lhe dito para nunca mais voltar. Havia escrito para a mãe de Tommy Griffiths, conhecida como Sra. Griffiths Socialista por conta das crenças políticas fervorosas de seu marido. (Na mesma rua, morava uma Sra. Griffiths da Igreja.) Os Griffiths não iam à missa e discordavam do estilo linha-dura do pai de Ethel. Como ela havia deixado Tommy pernoitar em sua casa em Londres, a Sra. Griffiths teve prazer em retribuir o favor. Tommy era filho único, assim, enquanto ele estivesse no Exército, sobrava uma cama na casa.
Da e Mam não sabiam da vinda de Ethel.
A Sra. Griffiths a recebeu calorosamente e mostrou-se encantada com Lloyd. Ela tivera uma filha que hoje estaria com a mesma idade de Ethel, mas que morrera de coqueluche. Ethel tinha uma vaga lembrança da menina, uma lourinha chamada Gwenny.
Depois de amamentar e trocar Lloyd, Ethel foi se sentar na cozinha para uma xícara de chá. A Sra. Griffiths reparou em sua aliança.
– Você está casada? – perguntou.
– Sou viúva – respondeu Ethel. – Ele morreu em Ypres.
– Ah, meus pêsames.
– O nome dele era Williams também, então não precisei mudar o meu.
Essa história iria se espalhar pela cidade. Alguns questionariam se teria realmente havido um Sr. Williams – e, mesmo que sim, se ele de fato desposara Ethel. Pouco lhe importava que acreditassem nela ou não. Uma mulher que fingisse ser casada era aceitável; já uma mãe que se admitisse solteira era uma sem-vergonha. O povo de Aberowen tinha seus princípios.
– Quando você vai ver sua Mam? – quis saber a Sra. Griffiths.
Ethel não sabia como os pais reagiriam à sua visita. Talvez tornassem a expulsá-la de casa, ou então perdoassem tudo, ou quem sabe até encontrassem alguma forma de condenar seu pecado sem obrigá-la a sumir de vista.
– Não sei – respondeu ela. – Estou nervosa.
A Sra. Griffiths assumiu uma expressão compreensiva.
– É, o seu Da pode ser mesmo muito duro. Mas ele ama você.
– As pessoas sempre pensam assim. Ficam dizendo: o seu pai na verdade ama você. Mas, se ele pôde me expulsar de casa, não sei por que chamam isso de amor.
– As pessoas fazem coisas sem pensar quando o orgulho delas é ferido – disse a Sra. Griffiths em tom apaziguador. – Sobretudo os homens.
Ethel se levantou.
– Bom, acho que não adianta ficar adiando. – Ela pegou Lloyd do chão. – Vamos, meu amor. Já está na hora de você descobrir que tem avós.
– Boa sorte – disse a Sra. Griffiths.
A casa dos Williams ficava a poucas portas de distância. Ethel torceu para que o pai não estivesse. Assim, pelo menos poderia passar algum tempo com a mãe, que não era tão severa.
Pensou em bater na porta, mas achou que seria ridículo, de modo que entrou sem se anunciar.
Deparou-se com a cozinha na qual tinha passado tantos dias da sua vida. Nem seu pai nem sua mãe estavam, mas Gramper cochilava em sua cadeira. O velho abriu os olhos, fez uma cara de espanto e então falou, caloroso:
– Mas se não é a nossa Eth!
– Oi, Gramper.
Ele se levantou e aproximou-se da neta. Havia se tornado mais frágil: apoiou-se na mesa para atravessar o pequeno aposento. Beijou-a na bochecha e voltou sua atenção para o bebê.
– Ora, ora, quem é este aqui? – perguntou, encantado. – Seria por acaso o meu primeiro bisneto?
– Este é Lloyd – disse Ethel.
– Que nome mais bonito!
Lloyd escondeu o rosto no ombro de Ethel.
– Ele é tímido – explicou ela.
– Ah, ele está é com medo deste velho de bigode branco. Mas vai se acostumar comigo. Sente-se, minha linda, e conte-me tudo.
– Onde está nossa Mam?
– Foi à colperativa comprar um vidro de geleia. – A mercearia da região era uma cooperativa que dividia o lucro entre os clientes. Esse tipo de loja era popular em Gales do Sul, embora ninguém soubesse pronunciar o termo direito. – Já deve estar voltando.
Ethel pôs Lloyd no chão. O menino começou a explorar a cozinha com passos hesitantes, passando de um apoio a outro, um pouco como Gramper. Ethel falou do emprego de gerente no The Soldier’s Wife: sobre como trabalhava com o tipógrafo, distribuía as pilhas de jornal, recolhia os exemplares não vendidos e conseguia anunciantes. Gramper se perguntou como a neta sabia o que fazer, e Ethel admitiu que tanto ela quanto Maud foram descobrindo na prática. Achava difícil trabalhar com o tipógrafo, que não gostava de receber ordens de mulheres, mas era boa em vender espaços publicitários. Enquanto os dois conversavam, Gramper sacou seu relógio de bolso e o suspendeu pela corrente com a mão, sem olhar para Lloyd. O menino pregou os olhos na corrente brilhante e então tentou agarrá-la. Gramper deixou. Em pouco tempo, Lloyd estava se apoiando nos joelhos do bisavô enquanto examinava o relógio.
Ethel sentiu-se estranha na velha casa. Havia pensado que ela lhe pareceria confortável, conhecida, como um par de botas que, com o passar dos anos, adquire a forma dos pés de quem as calça. Mas, na verdade, estava um pouco constrangida. Parecia que estava na casa de algum antigo vizinho. Ela não parava de olhar para os bordados gastos, com aqueles mesmos versículos da Bíblia, perguntando-se por que a mãe não os trocava há décadas. Não sentia que ali fosse o seu lugar.
– Vocês tiveram alguma notícia do nosso Billy? – perguntou a Gramper.
– Não, e você?
– Não desde que ele foi para a França.
– Imagino que esteja nessa grande batalha do rio Somme.
– Espero que não. Dizem que a situação está ruim.
– Sim, péssima, a tirar pelos boatos.
As pessoas só podiam se fiar em boatos, pois os jornais eram festivamente vagos em suas notícias. No entanto, muitos dos feridos já estavam de volta, internados nos hospitais britânicos, e seus relatos sinistros de incompetência e massacre eram espalhados no boca a boca.
Mam entrou em casa.
– Eles ficam batendo papo lá naquela loja como se não tivessem mais nada para fazer... Ah! – Ela estacou. – Meu Deus do céu, é você, Eth? – Então, começou a chorar.
Ethel abraçou a mãe.
– Olhe só, Cara, este aqui é seu neto, Lloyd – disse Gramper.
Mam enxugou os olhos e apanhou o bebê do chão.
– Mas que lindo! – exclamou. – Que cabelos mais encaracolados! Igualzinho ao Billy quando tinha essa idade. – Lloyd ficou um bom tempo encarando Mam com um olhar amedrontado, para depois abrir o berreiro.
Ethel o pegou no colo.
– Ele está um grude comigo ultimamente – disse, em tom de desculpas.
– Eles ficam todos assim nessa idade – falou Mam. – Aproveite bastante, daqui a pouco ele vai mudar.
– Onde está Da? – perguntou Ethel, tentando não parecer ansiosa demais.
Mam fechou o rosto, tensa.
– Foi a uma reunião do sindicato em Caerphilly. – Ela olhou para o relógio. – Deve chegar para o chá a qualquer momento, a menos que tenha perdido o trem.
Ethel sentiu que Mam estava torcendo para ele se atrasar. Ela também. Queria passar mais tempo com a mãe antes de a crise estourar.
Mam preparou o chá e pôs na mesa um prato de bolinhos galeses polvilhados de açúcar. Ethel pegou um.
– Há dois anos não como um destes – falou. – São uma delícia.
– Que coisa boa – disse Gramper, feliz. – Eu, minha filha, minha neta e meu bisneto, todos debaixo do mesmo teto. O que mais um homem poderia pedir da vida? – Ele pegou um bolinho.
Ethel refletiu que alguns poderiam achar a vida de Gramper lamentável: passar o dia inteiro sentado em uma cozinha enfumaçada, vestindo seu único terno. Mas ele era grato pelo que tinha – e ela o deixara feliz, nem que fosse só por aquele dia.
Então seu pai entrou em casa.
Mam estava no meio de uma frase:
– Eu tive a oportunidade de ir a Londres uma vez, quando tinha a sua idade, mas o seu Gramper falou... – A porta se abriu e ela se interrompeu no ato. Todos olharam para Da enquanto ele chegava da rua, vestindo o terno que usava nas assembleias e uma boina achatada de mineiro, suando por causa da subida. Ele deu um passo para dentro da cozinha e parou, encarando a cena.
– Olhe só quem está aqui – disse Mam com uma alegria forçada. – Ethel e o seu neto. – Seu rosto estava pálido de tensão.
Da não falou nada. Nem tirou a boina.
– Oi, Da – disse Ethel. – Este aqui é Lloyd.
Ele não olhou para a filha.
– O pequeno se parece com você, Dai... ao redor da boca, está vendo? – disse Gramper.
Lloyd sentiu o clima de hostilidade e começou a chorar.
Da permaneceu calado. Foi então que Ethel soube ter cometido um erro ao aparecer na casa do pai sem avisar. Não queria lhe dar a chance de proibir sua vinda. Mas agora via que a surpresa o colocara na defensiva. Ele parecia acuado. E ela se lembrou de que colocar Da contra a parede era sempre um erro.
O semblante dele se fechou, inflexível. Olhou para a mulher e disse:
– Eu não tenho neto.
– Ora, não fale assim... – disse Mam, em tom de súplica.
A expressão dele continuou rígida. Da ficou imóvel, olhando para Mam, sem dizer nada. Estava esperando alguma coisa, e Ethel percebeu que seu pai não iria se mover antes de ela sair da casa. Começou a chorar.
– Ah, droga! – disse Gramper.
Ethel pegou Lloyd.
– Desculpe, Mam – falou, soluçando. – Eu pensei que talvez... – Ela engasgou e não conseguiu terminar a frase. Com Lloyd no colo, passou pelo pai, esbarrando em seu corpo. Ele não a encarou nos olhos.
Ethel saiu e bateu a porta.
Pela manhã, depois de os homens terem descido para trabalhar na mina e de as crianças terem ido para a escola, as mulheres geralmente saíam para cuidar de seus afazeres ao ar livre. Lavavam a calçada, enceravam a soleira de casa ou então limpavam as janelas. Algumas iam fazer compras ou resolver outros assuntos na rua. Precisavam ver o mundo que havia além de suas casinhas, pensou Ethel, algo que lembrasse a elas que a vida não se limitava a quatro paredes mambembes.
Ela estava recostada no muro da casa da Sra. Griffiths Socialista, ao lado da porta de entrada, aproveitando o sol. De ambos os lados da rua, as mulheres haviam encontrado motivos para fazer o mesmo. Lloyd brincava com uma bola. Tinha visto outras crianças atirando bolas e tentava imitá-las, mas sem conseguir. Como lançar qualquer coisa era complicado, refletiu Ethel – um ato que usava o ombro e o braço, o pulso e a mão ao mesmo tempo. Os dedos tinham que soltar o objeto logo antes de o braço atingir sua extensão máxima. Como Lloyd ainda não havia dominado a técnica, soltava a bola cedo demais, deixando-a cair atrás do ombro, ou tarde demais, perdendo o impulso. Mas ele continuava tentando. Com o tempo, acabaria conseguindo, pensou Ethel, e depois nunca mais esqueceria. Só depois de ter um filho é que você entendia quanto uma criança precisava aprender.
Ela não conseguia compreender como seu pai era capaz de rejeitar aquele menininho. Lloyd não tinha feito nada de errado. Ethel havia pecado, mas o mesmo valia para a maioria das pessoas. Deus perdoava seus pecados, então quem era Da para julgar os outros? Aquilo a deixava ao mesmo tempo zangada e triste.
O rapaz do correio veio subindo a rua montado em seu pônei, amarrando-o em seguida junto ao banheiro público. Ele se chamava Geraint Jones. Seu trabalho era entregar encomendas e telegramas, mas desta vez não parecia estar carregando pacote nenhum. De repente, Ethel sentiu um calafrio, como se uma nuvem tivesse escondido o sol. Quase ninguém recebia telegramas na Wellington Row e, quando chegava algum, geralmente trazia más notícias.
Geraint desceu a ladeira, afastando-se de Ethel. Ela ficou aliviada: a notícia não era para a sua família.
Lembrou-se então de uma carta que havia recebido de lady Maud. Ethel, Maud e outras mulheres haviam organizado uma campanha para garantir que o voto feminino fizesse parte de qualquer debate sobre uma reforma eleitoral referente aos soldados. Haviam conseguido publicidade suficiente para impedir que o primeiro-ministro Asquith pudesse se esquivar do problema.
Maud contava na carta que ainda assim ele havia tirado o corpo fora, deixando o problema nas mãos de uma comissão liderada pelo presidente da Câmara dos Comuns, batizada de Speaker’s Conference. Mas isso era bom, segundo Maud. Em vez de discursos histriônicos na própria câmara baixa do Parlamento, haveria um debate tranquilo e reservado. Talvez o bom senso prevalecesse. De qualquer forma, ela estava tentando descobrir quem Asquith iria pôr na comissão.
Algumas portas mais adiante na rua, Gramper saiu de dentro de casa, sentou-se no peitoril baixo da janela e acendeu seu primeiro cachimbo do dia. Ao ver Ethel, sorriu e acenou.
Do outro lado, Minnie Ponti, mãe de Joey e Johnny, começou a bater em um tapete com uma vara, soltando a poeira presa nele e tossindo durante o processo.
A Sra. Griffiths saiu de casa com uma pá cheia de cinzas do fogão da cozinha, despejando-a em um buraco na rua de terra batida.
– Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou-lhe Ethel. – Eu poderia ir à colperativa para a senhora, se quiser. – Ela já havia feito as camas e lavado a louça do café da manhã.
– Está bem – respondeu a Sra. Griffiths. – Vou fazer a lista para você já, já. – Ela se apoiou na parede, ofegante. Era uma mulher pesada, e qualquer atividade a deixava sem ar.
Ethel se deu conta de que havia uma comoção na extremidade mais baixa da rua. Várias vozes se ergueram. Em seguida, ela escutou um grito.
Ela e a Sra. Griffiths se entreolharam, então Ethel apanhou Lloyd e as duas correram para descobrir o que estava acontecendo do outro lado dos banheiros.
A primeira coisa que Ethel viu foi um grupo de mulheres amontoadas em volta da Sra. Pritchard, que berrava a plenos pulmões. As outras mulheres tentavam acalmá-la. Mas ela não era a única. Cotoco Pugh, ex-minerador que havia perdido uma perna em um desabamento, estava sentado no meio da rua como se houvesse sido nocauteado, ladeado por dois vizinhos. Na outra calçada, a Sra. John Jones da Loja estava em pé na soleira de sua porta, aos soluços, segurando uma folha de papel.
Ethel viu Geraint, o rapaz do correio, muito pálido e à beira das lágrimas, atravessar a rua para bater à porta de outra casa.
– São os telegramas do Departamento de Guerra... – disse a Sra. Griffiths. – Ai, que Deus nos ajude.
– A batalha do Somme – disse Ethel. – Os Aberowen Pals devem ter participado dela.
– Alun Pritchard deve ter morrido, e Clive Pugh, e Profeta Jones... ele era sargento, seus pais estavam tão orgulhosos...
– Coitada da Sra. Jones da Loja, o outro filho dela morreu na explosão da mina.
– Por favor, Deus, permita que meu Tommy esteja bem – rezou a Sra. Griffiths, embora seu marido fosse um ateu notório. – Ai, poupe Tommy.
– E Billy – disse Ethel. Depois, sussurrando no ouvido pequenino de Lloyd, acrescentou: – E o seu pai.
Geraint carregava uma bolsa de lona a tiracolo. Assustada, Ethel se perguntou quantos outros telegramas haveria lá dentro. O menino percorria a rua em ziguezague, um anjo da morte usando uma boina do correio.
Quando ele passou pelos banheiros e chegou à metade superior da rua, todos já estavam na calçada. As mulheres haviam interrompido qualquer trabalho que estivessem fazendo e aguardavam. Os pais de Ethel tinham saído também – Da ainda não fora para o trabalho. Estavam em pé junto a Gramper, calados e temerosos.
Geraint se aproximou da Sra. Llewellyn. Seu filho Arthur deveria ter morrido. O apelido dele era Espinhento, recordou Ethel. O pobre rapaz já não precisaria mais se preocupar com a pele.
A Sra. Llewellyn ergueu as mãos como se quisesse manter Geraint afastado.
– Não! – gritou ela. – Não, por favor!
Ele estendeu o telegrama.
– Não posso fazer nada, Sra. Llewellyn – disse ele. Tinha apenas 17 anos. – Seu endereço está escrito na frente, está vendo?
Ainda assim, ela não quis pegar o envelope.
– Não! – repetiu, virando as costas e enterrando o rosto nas mãos.
Os lábios do rapaz tremiam.
– Por favor, pegue – falou ele. – Ainda tenho este montão aqui para entregar. E tem mais lá na agência, centenas deles! São dez da manhã e eu não sei como vou fazer para entregar tudo até a noite. Por favor.
A Sra. Parry Price, sua vizinha de porta, disse:
– Eu pego para ela. Não tenho filhos.
– Muito obrigado, Sra. Price – disse Geraint antes de continuar seu caminho.
Tirou mais um telegrama da sacola, conferiu o endereço e passou direto pela casa dos Griffiths.
– Ai, graças a Deus – falou a Sra. Griffiths. – Meu Tommy está bem, graças a Deus. – Ela começou a chorar de alívio. Ethel trocou Lloyd de quadril e passou um braço à sua volta.
O menino se aproximou de Minnie Ponti. Ela não gritou, mas lágrimas escorriam de seu rosto.
– Qual dos dois? – perguntou com a voz embargada. – Joey ou Johnny?
– Não sei, Sra. Ponti – respondeu Geraint. – A senhora tem que ler o que está escrito.
Ela rasgou o envelope para abri-lo.
– Não estou vendo nada! – gritou. Então esfregou os olhos, tentando se livrar das lágrimas, e tornou a olhar. – Giuseppe! – falou. – Meu Joey morreu. Ah, coitadinho do meu menino!
A Sra. Ponti morava quase no final da rua. Ethel aguardou, com o coração aos pulos, para ver se Geraint iria à casa dos Williams. Estaria Billy vivo ou morto?
O rapaz deu as costas à chorosa Sra. Ponti. Olhou para o outro lado da rua e viu Da, Mam e Gramper a encará-lo com uma expectativa pavorosa. Verificou a bolsa, erguendo os olhos em seguida.
– Não tem mais nenhum para Wellington Row – disse ele.
Ethel quase desabou. Billy estava vivo.
Olhou para os pais. Mam chorava. Gramper tentava acender seu cachimbo, mas suas mãos tremiam.
Da a encarava. Ela não conseguia interpretar a expressão em seu rosto. Seu pai estava tomado por alguma emoção, mas ela não sabia dizer qual.
Ele deu um passo em sua direção.
Não foi grande coisa, mas foi o suficiente. Com Lloyd no colo, ela correu até Da.
Seu pai abraçou os dois.
– Billy está vivo – disse ele. – E você também.
– Ai, Da – disse ela. – Eu sinto tanto por ter decepcionado o senhor.
– Esqueça isso – falou ele. – Esqueça isso agora. – Então afagou suas costas como quando ela era pequena e caía e ralava os joelhos. – Não foi nada, não foi nada – disse ele. – Já passou.
Ethel sabia que um culto ecumênico era um acontecimento raro entre os cristãos de Aberowen. Para os galeses, as diferenças doutrinárias nunca eram pequenas. Um grupo se recusava a celebrar o Natal, alegando não haver nada na Bíblia que provasse a data do nascimento de Cristo. Outro era contra votar nas eleições, pois o apóstolo Paulo havia escrito: “Nossa cidadania está nos céus.” Nenhum dos grupos gostava de celebrar seu culto ao lado de pessoas que discordassem dele.
Depois da Quarta-feira dos Telegramas, porém, essas diferenças se tornaram, durante um curto intervalo, insignificantes.
O pároco de Aberowen, reverendo Thomas Ellis-Thomas, propôs um culto coletivo em homenagem aos mortos. Os telegramas entregues totalizavam 211 – e, como a batalha ainda não havia terminado, a cada dia chegava mais uma ou outra triste notificação. Todas as ruas da cidade haviam perdido alguém e, nas fileiras cerradas dos casebres dos mineradores, a cada poucos metros havia uma família de luto.
Metodistas, batistas e católicos aceitaram a sugestão do pároco anglicano. Os grupos menores talvez tivessem preferido não participar: batistas do Evangelho Pleno, testemunhas de Jeová, adventistas e a Capela de Bethesda. Ethel viu o pai travar uma luta com a própria consciência. Contudo, ninguém queria ficar de fora daquele que prometia ser o maior culto religioso da história da cidade, de modo que, no fim das contas, todos acabaram aderindo. Aberowen não tinha sinagoga, mas, como o jovem Jonathan Goldman era um dos mortos, os poucos judeus praticantes da cidade resolveram participar da cerimônia, embora nenhuma concessão fosse ser feita à sua religião.
O serviço religioso ocorreu no domingo à tarde, às duas e meia, em um parque municipal conhecido como Reck, contração de “Recreation Ground”, ou espaço recreativo. A prefeitura ergueu um tablado temporário para os sacerdotes no local. O dia estava bonito e ensolarado e três mil pessoas compareceram.
Ethel correu os olhos pela multidão. Perceval Jones estava presente, de cartola. Além de prefeito de Aberowen, ele passara a ser o representante da cidade na Câmara dos Comuns do Parlamento. Era também o comandante militar honorário dos Aberowen Pals e havia liderado o recrutamento. Estava acompanhado de vários diretores da Celtic Minerals – como se eles tivessem alguma coisa a ver com o heroísmo dos mortos, pensou Ethel com amargura. Maldwyn Morgan-foi-a-Merthyr também apareceu com a mulher, mas eles tinham o direito de estar ali, pois haviam perdido o filho Roland.
Foi então que ela viu Fitz.
A princípio, não o reconheceu. Divisou também a princesa Bea, de vestido e chapéu pretos, seguida por uma ama-seca que carregava o pequeno visconde de Aberowen, um menino da mesma idade de Lloyd. Ao lado de Bea havia um homem de muletas, com a perna esquerda engessada e uma atadura sobre um dos lados do rosto, tapando-lhe o olho esquerdo. Ethel precisou de um bom tempo para entender que aquele era Fitz, e o choque a fez soltar um grito.
– O que foi? – perguntou-lhe Mam.
– Olhe só para o conde!
– Aquele é o conde? Nossa mãe, coitado!
Ethel não desgrudava os olhos de Fitz. Não estava mais apaixonada – ele tinha sido cruel demais. Ainda assim, não conseguia ficar indiferente. Havia beijado o rosto sob aquela atadura um dia e acariciara o corpo esguio e forte agora tão terrivelmente mutilado. Ele era um homem vaidoso – esse era o mais perdoável de seus defeitos –, e Ethel sabia que a sua humilhação ao se olhar no espelho devia lhe causar mais dor do que os próprios ferimentos.
– Por que será que ele não ficou em casa? – perguntou Mam. – Todos teriam entendido.
Ethel sacudiu a cabeça.
– Ele é orgulhoso demais – falou. – Foi ele quem conduziu os homens à morte. Tinha que vir.
– Você o conhece bem – comentou Mam, com um olhar que fez Ethel se perguntar se ela desconfiava da verdade. – Mas imagino que, além disso, ele queira que as pessoas vejam que a classe dominante também sofreu.
Ethel assentiu. Mam tinha razão. Fitz era arrogante e dominador, mas, paradoxalmente, também ansiava pelo respeito das pessoas comuns.
Dai Costeletas, filho do açougueiro, aproximou-se das duas.
– Fico feliz em vê-la de volta a Aberowen – disse ele.
Ele era baixinho e vestia um terno elegante.
– Como vai, Dai? – cumprimentou-o Ethel.
– Muito bem, obrigado. Amanhã vai estrear um filme novo de Charlie Chaplin. Você gosta dele?
– Não tenho tempo para ir ao cinema.
– Por que não deixa o menino com sua mãe amanhã à noite e vem comigo?
Dai havia enfiado a mão debaixo da saia dela no cinema Palace de Cardiff. Fazia cinco anos, mas, pela expressão nos olhos dele, Ethel percebia que Dai não se esquecera.
– Não, obrigada – respondeu com firmeza.
Ele ainda não estava disposto a desistir:
– Agora estou trabalhando na mina, mas vou assumir a loja quando meu pai se aposentar.
– Tenho certeza de que vai fazer um ótimo trabalho.
– Alguns homens nem sequer olhariam para uma garota com um filho – disse ele. – Mas não eu.
Havia um quê de arrogância naquele comentário, mas Ethel decidiu não se ofender.
– Até logo, Dai. Foi muita gentileza sua me convidar.
Ele abriu um sorriso desapontado.
– Você continua sendo a garota mais bonita que eu já conheci. – Tocou a boina e se afastou.
– Qual é o problema com ele? – quis saber Mam, indignada. – Você precisa de um marido e ele é um partido e tanto!
De fato, qual era o problema com ele? Era meio baixinho, mas seu charme compensava isso. Tinha um bom futuro pela frente e estava disposto a aceitar o filho de outro homem. Ethel se perguntou por que estava tão segura de que não queria ir ao cinema com ele. Será que, bem lá no fundo, ainda se achava boa demais para Aberowen?
Bem em frente ao tablado, havia uma fila de cadeiras reservadas à elite. Fitz e Bea se acomodaram ao lado de Perceval Jones e Maldwyn Morgan e o culto começou.
Ethel era uma cristã não muito convicta. Imaginava que devesse existir um Deus, mas desconfiava que Ele fosse mais razoável do que seu pai pensava. As desavenças fervorosas de Da com as igrejas oficiais não passavam, para Ethel, de uma leve antipatia pelos ídolos, pelo incenso e pela língua latina. Em Londres, às vezes ia ao Salão do Evangelho do Calvário aos domingos de manhã, sobretudo porque o pastor de lá era um socialista ferrenho e permitia que sua igreja fosse usada para a clínica de Maud e para reuniões do Partido Trabalhista.
Obviamente, não havia órgão no Reck, de modo que os puritanos não tiveram que engolir sua objeção aos instrumentos musicais. Da contara a Ethel que houvera discórdia em relação a quem conduziria os hinos – papel que, em Aberowen, era mais importante do que o de pregador. Por fim, o Coral Masculino de Aberowen foi posicionado na frente e seu regente, que não pertencia a nenhuma igreja em especial, ficou encarregado da música.
Eles começaram com um hino muito popular de Händel, “Como pastor Ele cuida de Seu rebanho”, uma harmonia vocal complexa que a congregação executou à perfeição. Enquanto centenas de tenores se erguiam pelo parque entoando a estrofe “Com o braço ajunta os cordeiros”, Ethel percebeu que sentira falta dessa música emocionante quando estava em Londres.
O padre católico recitou o Salmo 129, De Profundis, em latim. Ele gritou o mais alto que pôde, porém os que estavam mais afastados do tablado mal conseguiram escutar. O pároco anglicano leu a Oração do Dia para o Sepultamento dos Mortos do Livro de Orações. Dilys Jones, um jovem metodista, cantou o hino “Amor divino que a todos excede”, de autoria de Charles Wesley. O pastor batista leu o capítulo 15 de I Coríntios do versículo 20 até o final.
Era preciso um pregador para representar os grupos independentes, e Da fora o escolhido.
Ele começou lendo um versículo do capítulo 8 da Epístola aos Romanos: “E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos também dará vida a seus corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vocês.” Da tinha uma voz potente, que ecoou vigorosa por todo o parque.
Ethel sentiu orgulho do pai. Aquela honra confirmava seu status de um dos homens mais importantes da cidade, um líder espiritual e político. E ele também estava muito elegante: Mam havia lhe comprado uma gravata preta nova, de seda, na loja de departamentos Gwyn Evans, em Merthyr.
Quando Da começou a falar sobre ressurreição e vida após a morte a atenção de Ethel se dispersou: ela já ouvira tudo aquilo antes. Imaginava que de fato houvesse vida após a morte, mas não tinha certeza, e, de toda forma, não tardaria a descobrir.
Uma agitação na plateia a alertou de que Da talvez houvesse se afastado dos temas habituais. Ela o ouviu dizer:
– Quando este país decidiu ir à guerra, espero que cada membro do Parlamento tenha posto a mão na consciência, com sinceridade e fé, e buscado os conselhos de Deus. Mas quem colocou esses homens no Parlamento?
Ele vai partir para a política, pensou Ethel. Muito bem, Da. Isso vai tirar a expressão de superioridade do rosto do pároco.
– Em princípio, todos os homens deste país estão aptos ao serviço militar. Mas nem todos os homens podem participar da decisão de ir à guerra.
A multidão soltou gritos de aprovação.
– As regras eleitorais excluem mais da metade dos homens deste país!
– E todas as mulheres! – gritou Ethel.
– Shh! – disse Mam. – Quem está fazendo o sermão é o seu pai, não você.
– Mais de 200 homens de Aberowen perderam a vida no primeiro dia de julho, lá nas margens do rio Somme. Fui informado de que as baixas britânicas ultrapassam 50 mil!
A multidão arfou, horrorizada. Poucos tinham noção desse número. Da ficara sabendo por Ethel. Maud conseguira a informação de seus amigos no Departamento de Guerra.
– Cinquenta mil baixas, que incluem 20 mil mortos – prosseguiu Da. – E a batalha continua. Dia após dia, mais rapazes estão sendo massacrados. – Alguns murmúrios de discórdia se ergueram na multidão, mas foram em grande parte abafados pelos gritos de aprovação. Da ergueu a mão, pedindo silêncio. – Não estou pondo a culpa em ninguém. Mas digo apenas o seguinte: um massacre dessas propoções não pode estar certo quando tantos homens foram impedidos de opinar na decisão de ir à guerra.
O pároco de Aberowen deu um passo à frente para tentar interromper Da, enquanto Perceval Jones tentava subir no palanque sem sucesso.
Da, no entanto, estava quase terminando:
– Se algum dia nos pedirem para ir à guerra novamente, não devemos permitir que isso aconteça sem a aprovação de todo o povo.
– E não só dos homens, das mulheres também! – gritou Ethel, mas sua voz se perdeu em meio às exclamações de apoio dos mineradores.
Àquela altura, vários homens estavam em pé na frente de Da, protestando com ele, mas sua voz se ergueu acima da algazarra.
– Nunca mais iremos à guerra por decisão de uma minoria! – rugiu ele. – Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!
Ele se sentou e os vivas ecoaram como um trovão.
De julho a outubro de 1916
Kovel era um entroncamento ferroviário na região da Rússia que já havia pertencido à Polônia, perto da antiga fronteira com a Áustria-Hungria. O exército russo se reuniu pouco mais de 30 quilômetros a leste da cidade, às margens do rio Stokhod. A região toda era pantanosa, centenas de quilômetros quadrados de brejos entrecortados por caminhos de terra. Grigori encontrou um trecho de solo mais seco e ordenou a seu pelotão que montasse acampamento. Eles não tinham barracas: o major Azov vendera todas fazia três meses para uma fábrica de roupas em Pinsk. Segundo ele, os homens não precisavam de barracas no verão e, quando chegasse o inverno, já estariam todos mortos.
Por algum milagre, Grigori continuava vivo. Era agora sargento, enquanto seu amigo Isaak era cabo. Os poucos sobreviventes dentre os homens recrutados em 1914 haviam quase todos se tornado suboficiais. O batalhão de Grigori tinha sido dizimado, transferido, recebido reforços e sido dizimado outra vez. Foram mandados para toda parte, menos de volta para casa.
Grigori matara muitos homens nos últimos dois anos, usando o fuzil, a baioneta ou uma granada de mão, na maior parte das vezes de perto o suficiente para vê-los morrer. Isso fazia alguns de seus companheiros terem pesadelos, sobretudo os mais instruídos, mas não Grigori. Ele havia nascido no ambiente brutal de uma aldeia de camponeses e sobrevivera como órfão nas ruas de São Petersburgo: a violência não perturbava seu sono.
O que o deixava chocado era a estupidez, a insensibilidade e a corrupção dos oficiais. Viver e combater lado a lado com a classe dominante o tornara um revolucionário.
Precisava continuar vivo. Não havia mais ninguém para cuidar de Katerina.
Escrevia regularmente para ela e, de vez em quando, recebia uma carta com uma caligrafia caprichada de colegial e cheia de erros e palavras riscadas. Havia guardado todas elas em um maço bem amarrado dentro de sua bolsa de soldado – e, quando ficava um bom tempo sem receber nada, lia as correspondências antigas.
Na primeira, ela lhe contara ter dado à luz um menino, Vladimir, que já estava com um ano e meio – o filho de Lev. Grigori ansiava por conhecê-lo. Lembrava-se perfeitamente do irmão quando era bebê. Teria Vladimir o mesmo sorriso desdentado irresistível? Se bem que o menino já deveria ter dentes – e inclusive estar andando e dizendo suas primeiras palavras. Grigori queria que ele aprendesse a dizer “tio Grishka”.
Não parava de pensar na noite em que Katerina viera se deitar em sua cama. Quando sonhava acordado, às vezes modificava os acontecimentos de modo que, em vez de expulsá-la, ele a tomava nos braços, beijava sua boca carnuda e fazia amor com ela. Na vida real, contudo, sabia que o coração de Katerina pertencia a seu irmão.
Grigori não tivera notícia alguma de Lev, que partira da Rússia havia mais de dois anos. Temia que alguma tragédia houvesse acometido o irmão nos Estados Unidos. Os vícios de Lev muitas vezes o metiam em encrencas, embora ele sempre desse um jeito de se safar. A origem de seus problemas estava na maneira como ele fora criado, sempre passando dificuldades, sem nenhuma disciplina de verdade e tendo apenas Grigori como parco substituto de pai e mãe. Grigori queria ter feito um trabalho melhor, mas ele próprio não passava de um garoto.
A parte boa era que Katerina não tinha ninguém para cuidar dela e do bebê a não ser Grigori. Ele estava determinadíssimo a continuar vivo, apesar da incompetência caótica do Exército russo, para um dia poder voltar para junto deles.
O comandante daquela zona, general Brusilov, era soldado profissional – ao contrário de tantos generais que não passavam de cortesãos. Sob as ordens de Brusilov, os russos haviam conquistado vitórias em junho, obrigando os austríacos a recuarem, aturdidos. Quando as ordens faziam algum sentido, Grigori e seus homens lutavam com afinco. Caso contrário, usavam suas energias para se manterem fora da linha de tiro. Grigori havia ficado bom nisso e, consequentemente, ganhara a confiança de seu pelotão.
Em julho, o avanço russo havia desacelerado, prejudicado, como sempre, pela falta de mantimentos. Mas agora o Exército da Guarda tinha chegado para reforçar o contingente. A Guarda era um grupo de elite, composto pelos soldados mais altos e mais bem preparados fisicamente da Rússia. Ao contrário do restante da tropa, tinham belos uniformes – verde-escuros com galões dourados – e botas novas. Porém seu comandante, general Bezobrazov, outro cortesão do czar, era fraco. Grigori achava que Bezobrazov não conseguiria tomar Kovel, por mais altos que fossem seus soldados.
Quem trouxe as ordens ao raiar do dia foi o major Azov, um homem alto e pesado, vestido com um uniforme justo, e, como sempre, com os olhos vermelhos àquela hora da manhã. O tenente Kirillov o acompanhava. O tenente convocou os sargentos e Azov mandou que eles cruzassem o rio e atravessassem o brejo pelos caminhos de terra batida em direção ao oeste. Os austríacos estavam a postos no brejo, mas não tinham escavado trincheiras: o solo era úmido demais para isso.
Grigori previa um desastre. Os austríacos estariam à espera, protegidos, em posições que tinham podido escolher com cuidado. Os russos estariam concentrados em seguir as trilhas e não conseguiriam se mover depressa pelo terreno pantanoso. Seriam massacrados.
Para piorar, tinham poucas balas.
– Alteza, temos um problema de munição – disse Grigori.
Azov se movimentava depressa para um homem gordo. Sem aviso, desferiu um soco na boca de Grigori. Uma dor lancinante explodiu em seus lábios e ele caiu para trás.
– Isso vai manter você calado por algum tempo – disse Azov. – Vocês receberão munição quando seus oficiais resolverem que é preciso – Ele se virou para os outros. – Formem fileiras e avancem quando ouvirem o sinal.
Grigori se levantou do chão, sentindo gosto de sangue na boca. Tocando o rosto com delicadeza, descobriu que havia perdido um dos dentes da frente. Amaldiçoou a própria displicência. Em um instante de distração, havia chegado perto demais de um oficial. Já deveria estar cansado de saber: eles partiam para cima à menor provocação. Por sorte Azov não estava segurando um fuzil, ou teria sido a coronha da arma a atingir o seu rosto.
Ele reuniu seu pelotão e o dispôs em uma linha irregular. Seu plano era ficar para trás e deixar que outros fossem na frente, mas, para sua decepção, Azov despachou sua companhia com antecedência e o pelotão de Grigori foi um dos primeiros.
Ele teria que pensar em alguma outra solução.
Entrou na água do rio, seguido pelos 35 homens de seu pelotão. A água estava fria, mas, como fazia sol e calor, os homens não se incomodaram muito em se molharem. Grigori avançava devagar e seus homens o imitavam, mantendo-se logo atrás dele, esperando para ver o que seu líder faria.
O rio Stokhod era largo e raso, e os homens chegaram ao outro lado sem que a água passasse da altura de suas coxas. Já haviam sido ultrapassados por outros soldados mais dispostos, constatou Grigori com satisfação.
Uma vez na trilha estreita que cortava o brejo, o pelotão de Grigori teve que entrar no mesmo ritmo dos outros e ele não pôde executar seu plano de ficar para trás. Começou a ficar preocupado. Não queria que seus homens estivessem naquele grupo quando os austríacos abrissem fogo.
Depois de avançarem cerca de dois quilômetros, a trilha tornou a se estreitar, obrigando os homens a formarem uma fila indiana e fazendo-os diminuir o ritmo. Grigori viu uma oportunidade. Fingindo estar impaciente com a demora, saiu da trilha e passou a andar pela água lamacenta. O restante de seus homens logo o imitou. O pelotão que vinha logo atrás acelerou e fechou a brecha.
A água batia no peito de Grigori e a lama era viscosa. Caminhar pelo brejo era muito lento, e – como ele havia planejado – seu pelotão ficou para trás.
O tenente Kirillov viu o que estava acontecendo e, irado, gritou:
– Ei, vocês aí! Voltem para a trilha!
Grigori gritou de volta.
– Sim, Excelência. – Porém conduziu seus homens para mais longe ainda, fingindo procurar solo mais firme.
O tenente soltou um palavrão e desistiu.
Grigori examinava o terreno à sua frente com a mesma atenção que os oficiais, embora por motivos diferentes. Enquanto os oficiais procuravam o exército austríaco, ele procurava um lugar para se esconder.
Continuou avançando enquanto deixava centenas de soldados o ultrapassarem. Já que a Guarda é tão cheia de si, pensou, ela que trave o combate.
Por volta do meio da manhã, ouviu os primeiros tiros vindos lá da frente. A vanguarda havia entrado em combate com o inimigo. Estava na hora de buscar abrigo.
Grigori chegou a um pequeno aclive onde o solo estava mais seco. O restante da companhia do major Azov já estava fora de seu campo de visão, bem mais à frente. Do alto da subida, Grigori gritou:
– Protejam-se! Posição inimiga à frente e à esquerda!
Não havia posição inimiga nenhuma, e seus homens sabiam disso, mas todos se jogaram no chão atrás de arbustos e árvores e miraram os fuzis encosta abaixo. Grigori disparou um tiro exploratório em um tufo de vegetação cerca de 500 metros mais adiante, só para confirmar que não havia dado o azar de escolher um local de fato ocupado por austríacos; mas ninguém atirou de volta.
Contanto que ficassem ali, estariam seguros, pensou Grigori com satisfação. Com o passar do dia, duas coisas poderiam acontecer. O mais provável era que, dali a poucas horas, soldados russos voltassem cambaleando pelo brejo carregando seus feridos e perseguidos pelo inimigo – nesse caso, o pelotão de Grigori se juntaria à debandada. Ou então, por volta do anoitecer, Grigori concluiria que os russos tinham saído vitoriosos e faria seu grupo avançar rumo à comemoração.
Enquanto isso, o único problema era obrigar os homens a continuarem fingindo que estavam combatendo uma posição austríaca. Era tedioso passar horas e horas deitado no chão olhando para a frente, como quem vasculha o terreno em busca de soldados inimigos. Os homens tendiam a começar a comer e beber, a fumar, a jogar cartas ou então a cochilar, o que estragava a encenação.
No entanto, antes que eles pudessem se acomodar, o tenente Kirillov apareceu uns 200 metros à direita de Grigori, do outro lado de uma lagoa. Grigori resmungou: aquilo poderia estragar tudo.
– Homens, o que estão fazendo? – gritou Kirillov.
– Abaixe-se, Excelência! – gritou Grigori de volta.
Isaak deu um tiro para o alto com seu rifle e Grigori se agachou. Kirillov fez o mesmo e então voltou pelo caminho por onde tinha vindo.
Isaak deu uma risadinha.
– Nunca falha.
Grigori já não tinha tanta certeza. Kirillov lhe pareceu irritado, contrariado, como se soubesse que estava sendo passado para trás mas não conseguisse decidir o que fazer a respeito.
Grigori ficou escutando a profusão de estrondos da batalha mais à frente. Calculou que ela estivesse acontecendo a menos de dois quilômetros dali e que não se movia em nenhuma direção.
O sol subiu mais alto no céu e secou suas roupas molhadas. Ele começou a ficar com fome e pôs-se a roer um pedaço de biscoito duro de sua marmita, evitando o local dolorido em que Azov tinha quebrado seu dente.
Assim que a névoa se dispersou, ele viu aviões alemães voando baixo, cerca de um quilômetro e meio mais adiante. A julgar pelo barulho, estavam atirando com metralhadoras contra as tropas terrestres. A Guarda, amontoada em trilhas estreitas ou chapinhando na lama, deveria ser um alvo terrivelmente fácil. Grigori sentiu-se duplamente grato por ter garantido que nem ele nem seus homens estivessem lá.
Pelo meio da tarde, o som da batalha pareceu se aproximar. Os russos estavam sendo empurrados de volta. Ele se preparou para ordenar que seus homens se juntassem às tropas em fuga – mas ainda não era o momento. Não queria chamar atenção. Bater em retirada devagar era quase tão importante quanto avançar devagar.
Viu alguns soldados dispersos à sua esquerda e à sua direita, voltando pelo brejo em direção ao rio, alguns obviamente feridos. O exército já havia começado a retroceder, mas ainda não estava em franca retirada.
De algum lugar ali perto, ouviu um relincho. Onde havia um cavalo, havia um oficial. Grigori disparou na mesma hora contra austríacos imaginários. Seus homens o imitaram, e uma série de estampidos espaçados ecoou pelo ar. Ele olhou em volta e viu o major Azov montado em um grande cavalo de caça cinzento que chapinhava pela lama. Azov gritava para um grupo de soldados que recuava, dizendo-lhes para voltar ao combate. Os soldados discutiram com ele até o verem sacar um revólver Nagant – idêntico ao de Lev, pensou Grigori – e apontá-lo na direção deles. Então deram meia-volta e retornaram com relutância por onde tinham vindo.
Azov guardou a arma no coldre e trotou até a posição de Grigori.
– O que estão fazendo aqui, seus idiotas? – perguntou.
Grigori continuou deitado no chão, mas rolou de barriga para cima e recarregou o fuzil, enfiando seu último cartucho de cinco tiros no lugar e fingindo pressa.
– Tem uma posição inimiga no meio daquelas árvores ali na frente, Alteza – disse ele. – É melhor o senhor desmontar, eles podem vê-lo.
Azov continuou montado.
– Então o que vocês estão fazendo... escondendo-se deles?
– Sua Excelência, o tenente Kirillov, nos disse para abatê-los. Mandei uma patrulha atacá-los pelo flanco enquanto nós damos cobertura.
Azov não era totalmente idiota.
– Eles não parecem estar revidando o fogo.
– Nós os acuamos.
Ele sacudiu a cabeça.
– Eles já bateram em retirada... se é que algum dia estiveram ali.
– Acho que não, Alteza. Agora mesmo estavam disparando contra nós.
– Não tem ninguém ali. – Azov ergueu a voz. – Cessar fogo! Homens, cessar fogo!
O pelotão de Grigori parou de atirar e olhou para o major.
– Ao meu sinal, ataquem! – disse o oficial, sacando o revólver.
Grigori não soube muito bem o que fazer. Estava claro que a batalha havia sido o desastre que ele previra. Depois de passar o dia inteiro evitando-a, não queria arriscar vidas quando era evidente que ela já havia terminado. Mas era temerário entrar em conflito direto com oficiais.
Foi quando um grupo de soldados saiu do meio da vegetação, bem de onde Grigori vinha fingindo haver uma posição inimiga. Ele os encarou com surpresa. Mas os soldados não eram austríacos, notou ele assim que conseguiu distinguir seus uniformes: eram russos em fuga.
Azov, no entanto, não mudou de atitude.
– Esses homens são desertores covardes! – berrou ele. – Ataquem-nos! – E disparou o revólver contra os russos que se aproximavam.
Os homens do pelotão ficaram estupefatos. Oficiais muitas vezes ameaçavam atirar em soldados que parecessem relutantes em combater, mas era a primeira vez que os homens de Grigori recebiam ordem de atacar os próprios companheiros. Todos olharam para ele, esperando instruções.
Azov apontou a arma para Grigori.
– Atacar! – gritou ele. – Fuzilem esses traidores!
Grigori tomou uma decisão.
– Certo, homens! – bradou. Levantou-se com alguma dificuldade. Virando as costas para os russos que se aproximavam, ele olhou para os dois lados e ergueu o fuzil. – Vocês ouviram o que o major disse! – Ele manejou a arma como se fosse virá-la, mas então apontou-a para Azov.
Se fosse para atirar em seus compatriotas, preferiria matar um oficial a um soldado.
Azov o encarou por um instante, petrificado, e nesse mesmo segundo Grigori puxou o gatilho.
O primeiro tiro atingiu o cavalo de Azov, fazendo-o titubear. Isso salvou a vida de Grigori, pois Azov atirou nele, mas o movimento súbito de sua montaria o fez errar o tiro. Com um gesto automático, Grigori acionou o ferrolho da arma e tornou a disparar.
Errou também o segundo tiro. Grigori soltou um palavrão. Agora estava correndo sério perigo. Mas o major também.
Azov lutava para dominar o cavalo e não conseguia mirar o revólver. Grigori seguiu seus movimentos espasmódicos com a mira do fuzil, disparou um terceiro tiro e acertou Azov no peito. Então ficou olhando o major cair lentamente do cavalo. Sentiu uma onda de satisfação cruel quando o corpo pesado mergulhou em uma poça de lama.
O cavalo se afastou, trôpego, sentando-se de repente sobre a traseira feito um cachorro.
Grigori andou até Azov. Caído de costas na lama, o major olhava para cima, sem se mexer, mas ainda com vida, sangrando pelo lado direito do peito. Grigori olhou em volta. Os soldados em fuga ainda estavam longe demais para ver com clareza o que estava acontecendo. Os homens do seu pelotão eram de total confiança: ele já salvara suas vidas diversas vezes. Encostou o cano do fuzil contra a testa de Azov.
– Isto é por todos os bons russos que você matou, seu cão assassino – disse ele. Fez uma careta, arreganhando os dentes. – E pelo meu dente da frente – acrescentou antes de puxar o gatilho.
O corpo do major ficou mole e ele parou de respirar.
Grigori olhou para seus homens.
– Infelizmente, o major foi morto por fogo inimigo – disse ele. – Recuar!
Os homens vibraram e começaram a correr.
Grigori foi até o cavalo. O animal tentou se levantar, mas Grigori pôde ver que estava com a perna quebrada. Levou o fuzil à orelha dele e disparou seu último tiro. O animal caiu de lado e parou de se mexer.
Grigori sentiu mais pena do cavalo do que do major Azov.
Então foi atrás de seus homens, batendo em retirada.
Quando a ofensiva Brusilov terminou, Grigori foi transferido para a capital, então rebatizada de Petrogrado, porque São Petersburgo soava alemão demais. Aparentemente, havia necessidade de soldados calejados para proteger a família do czar e seus ministros da população irada. O que sobrara de seu batalhão foi integrado à força de elite do Primeiro Regimento de Metralhadoras, de modo que Grigori se mudou para o quartel deles na Sampsonievsky Prospekt, no distrito de Vyborg, um bairro operário composto de fábricas e barracos. O Primeiro Regimento de Metralhadoras era bem alimentado e tinha boas instalações, o que era uma tentativa de mantê-lo satisfeito o bastante para defender o odiado regime.
Ele estava feliz por voltar, mas a ideia de reencontrar Katerina o enchia de apreensão. Ansiava por olhar para ela, ouvir sua voz e segurar o bebê que ela dera à luz, seu sobrinho. Mas o desejo que sentia o deixava nervoso. Ela era sua mulher, mas isso era mera formalidade. Katerina havia escolhido Lev – e Lev era o pai do seu filho. Grigori não tinha o direito de amá-la.
Ele chegou a cogitar a hipótese de não lhe contar que havia voltado. Em uma cidade com mais de dois milhões de habitantes, era bem provável que nunca topassem um com o outro. Mas teria achado isso difícil demais de suportar.
Em seu primeiro dia na capital, ele não teve permissão para sair do quartel. Ficou frustrado por não poder ir ver Katerina. Naquela tarde, ele e Isaak conheceram outros bolcheviques no quartel e Grigori concordou em criar um grupo de discussão.
Na manhã seguinte, seu pelotão tornou-se parte de um esquadrão encarregado de proteger a casa do príncipe Andrei – o antigo senhor absoluto das terras de sua região – durante um banquete. O príncipe morava em um palácio cor-de-rosa e amarelo na avenida às margens do rio Neva, conhecida como English Embankment. Ao meio-dia, os soldados se alinharam nos degraus do palácio. Nuvens baixas de chuva escureciam a cidade, mas todas as janelas da casa estavam iluminadas. Por trás dos vidros, emoldurados por cortinas de veludo como em uma peça de teatro, lacaios e criadas vestidos com uniformes limpos zanzavam de um lado para outro, carregando garrafas de vinho, travessas de canapés e bandejas de prata com pilhas de frutas. No saguão, uma pequena orquestra tocava, e do lado de fora era possível ouvir os acordes de uma sinfonia. Os grandes carros reluzentes paravam em frente aos degraus, lacaios corriam para abrir as portas e os convidados saíam – os homens de casaco preto e cartola, as mulheres envoltas em peles. Uma pequena multidão se reuniu do outro lado da rua para assistir.
Era uma cena conhecida, mas havia uma diferença. Sempre que alguém descia de um carro, a multidão vaiava e gritava zombarias. Antigamente, a polícia teria dispersado as pessoas a golpes de cassetete no mesmo instante. Mas agora já não havia mais polícia – e os convidados subiam o mais rápido possível os degraus entre as duas fileiras de soldados, atravessando às pressas o portal imponente do palácio, visivelmente com medo de passarem muito tempo do lado de fora.
Na opinião de Grigori, aquelas pessoas tinham razão de hostilizar a nobreza que havia tornado aquela guerra um caos. Se houvesse algum problema, ele ficaria tentado a tomar o partido da multidão. Com certeza não pretendia atirar naquela gente, e imaginou que muitos dos soldados também pensassem assim.
Como os nobres podiam dar festas luxuosas em um momento daqueles? Metade da Rússia estava passando fome e até mesmo os soldados no front estavam em regime de racionamento. Homens como Andrei mereciam ser assassinados na própria cama. Se eu o vir, pensou Grigori, vou ter que me controlar para não fuzilá-lo como fiz com o major Azov.
A procissão de carros chegou ao fim sem incidentes, e a multidão se cansou e se dispersou. Grigori passou a tarde olhando bem para os rostos das mulheres que cruzavam a avenida, esperando ansioso pela chance improvável de ver Katerina. Quando os convidados começaram a ir embora, já estava escuro e frio e ninguém mais queria ficar na rua, de modo que não houve mais vaias.
Depois da festa, os soldados foram chamados à porta dos fundos para comer as sobras dispensadas pelos empregados da casa: restos de carne e peixe, vegetais frios, brioches já meio comidos, maçãs e peras. A comida foi jogada em cima de uma mesa de cavalete, misturada de forma desagradável: fatias de presunto sujas de patê de peixe, frutas com molho de carne, pão coberto de cinzas de charuto. Mas os soldados já haviam comido coisa pior nas trincheiras, e fazia tempo desde seu desjejum de mingau com bacalhau salgado, de modo que atacaram a comida, esfomeados.
Em nenhum momento Grigori viu o rosto odiado do príncipe Andrei. Talvez fosse melhor assim.
Depois de marcharem de volta até o quartel e entregarem suas armas, eles receberam a noite de folga. Grigori ficou eufórico: era sua oportunidade de visitar Katerina. Foi até a porta dos fundos da cozinha do quartel e implorou por um pouco de pão e carne para levar para ela: um sargento tinha lá seus privilégios. Então engraxou as botas e partiu.
Vyborg, onde ficava o quartel, estava situado na parte nordeste da cidade, enquanto Katerina morava na outra extremidade, no bairro de Narva, a sudoeste – isso se continuasse ocupando o antigo quarto de Grigori perto da Metalúrgica Putilov.
Ele desceu a Sampsonievsky Prospekt na direção sul, atravessando a ponte Liteiny até o centro da cidade. Algumas das lojas sofisticadas continuavam abertas, com as vitrines iluminadas por luz elétrica, porém muitas estavam fechadas. Nas lojas mais comuns, havia poucas mercadorias à venda. A vitrine de uma padaria exibia um único bolo e um cartaz escrito à mão que dizia: “Pão só amanhã.”
O amplo bulevar da Nevsky Prospekt o fez pensar em quando havia andado por ali com a mãe, naquele dia fatídico de 1905 em que a vira ser morta pelos soldados do czar. Agora ele próprio era um daqueles soldados. Mas não iria atirar em mulheres e crianças. Se o czar tentasse fazer isso agora, teria de enfrentar outro tipo de problema.
Ele viu 10 ou 12 rapazes abrutalhados usando casacos e boinas pretas e carregando um retrato do czar quando jovem, com os cabelos escuros ainda sem entradas e uma barba ruiva cerrada. Um deles gritou:
– Vida longa ao czar! – E todos eles pararam, ergueram as boinas e deram vivas. Vários passantes ergueram os chapéus.
Grigori já havia encontrado grupos como aquele. Eram as Centenas Negras, que faziam parte da União do Povo Russo, um grupo de direita que desejava retornar aos tempos áureos em que o czar era o pai incontestável de seu povo e a Rússia não tinha liberais, socialistas ou judeus. Segundo informações obtidas pelos bolcheviques junto a seus contatos na polícia, os jornais deles eram bancados pelo governo e seus panfletos impressos nos porões das delegacias.
Grigori passou lançando-lhes um olhar de desprezo, mas um dos rapazes o abordou:
– Ei, você aí! Por que está de chapéu?
Grigori continuou andando sem responder, porém outro membro da gangue o segurou pelo braço.
– Você é o quê? Judeu? – perguntou o segundo homem. – Tire a boina!
– Se tocar em mim de novo eu arranco a porra da sua cabeça, seu moleque falastrão – disse Grigori em voz baixa.
O homem recuou, estendendo um panfleto para Grigori.
– Dê uma lida, amigo – falou ele. – Aí está dizendo como os judeus estão traindo vocês, soldados.
– Se você não sair da minha frente, vou enfiar esse panfleto idiota no seu cu – respondeu Grigori.
O homem olhou para os companheiros em busca de apoio, mas os outros já haviam começado a espancar um homem de meia-idade que usava um chapéu de pele. Grigori se afastou.
Enquanto passava diante de uma loja interditada com tábuas, uma mulher lhe dirigiu a palavra.
– Ei, garotão – falou. – Quer dar uma trepada por um rublo? – Ela usava o jargão habitual das prostitutas, mas sua voz o surpreendeu: aquela mulher parecia instruída. Grigori lançou um olhar em sua direção. Ela vestia um casaco comprido e, quando ele a olhou, a mulher o abriu para mostrar que, apesar do frio, estava nua por baixo. Tinha 30 e poucos anos, seios fartos e uma barriga arredondada.
Grigori sentiu uma onda de desejo. Fazia anos que não se deitava com uma mulher. As prostitutas das trincheiras eram asquerosas, sujas e doentes. Mas aquela mulher parecia alguém que ele poderia abraçar.
Ela fechou o casaco.
– Sim ou não?
– Eu não tenho dinheiro – respondeu Grigori.
– O que tem dentro dessa bolsa? – Ela meneou a cabeça para a bolsa que ele carregava.
– Uns restos de comida.
– Eu me deito com você por um pão – disse a mulher. – Meus filhos estão morrendo de fome.
Grigori pensou naqueles seios fartos.
– Onde?
– Na sala dos fundos da loja.
Pelo menos, pensou Grigori, eu não vou estar louco de frustração sexual quando encontrar Katerina.
– Está bem.
Ela abriu a porta e o fez entrar. Em seguida, fechou a porta e passou um trinco nela. Os dois atravessaram a loja vazia até outro cômodo. À luz mortiça do poste de rua, Grigori viu que havia um colchão no chão, com um cobertor por cima.
A mulher se virou para encará-lo, deixando o casaco se abrir novamente. Ele olhou para o tufo de pelos pretos em seu baixo-ventre. Ela estendeu a mão.
– Primeiro o pão, sargento, por favor.
Ele retirou da bolsa um grande pão preto, que lhe entregou.
– Volto em um instante – disse a mulher.
Ela subiu correndo um lance de escada e abriu uma porta. Grigori ouviu uma voz de criança. Então um homem tossiu – uma tosse seca que vinha do fundo do peito. Houve sons abafados de pessoas se movendo e vozes baixas se fizeram ouvir por alguns instantes. Então ele tornou a escutar o barulho da porta e a mulher desceu a escada.
Ela tirou o casaco, deitou-se de costas no colchão e abriu as pernas. Grigori se deitou ao seu lado e a abraçou. A mulher tinha um rosto atraente, inteligente, porém marcado pela angústia.
– Hum, como você é forte! – comentou ela.
Ele acariciou sua pele macia, mas havia perdido todo o desejo. A cena toda era patética demais: a loja vazia, o marido doente, as crianças famintas e a falsa vontade de seduzi-lo da mulher.
Ela desabotoou sua calça e segurou seu pênis flácido.
– Quer que eu chupe?
– Não. – Ele se sentou no colchão e lhe estendeu o casaco. – Pode vestir.
Com uma voz amedrontada, ela disse:
– Eu não posso devolver o pão... já está metade comido.
Ele fez que não com a cabeça.
– O que houve com vocês?
Ela vestiu o casaco e fechou os botões.
– Você tem cigarro?
Ele lhe deu um e pegou outro para fumar.
Ela soprou a fumaça.
– Nós tínhamos uma sapataria... produtos de alta qualidade a preços justos para a classe média. Meu marido é bom negociante e nós vivíamos bem. – Seu tom era de amargura. – Mas, tirando a nobreza, há dois anos que ninguém nesta cidade compra sapatos novos.
– Não havia mais nada que vocês pudessem fazer?
– Sim, havia. – Seus olhos chisparam de raiva. – Não ficamos simplesmente parados e aceitamos nosso destino sem reagir. Meu marido descobriu que podia fornecer botas de primeira para os soldados a metade do preço que o Exército estava pagando. Todas as pequenas fábricas que costumavam ser fornecedoras da loja estavam loucas para receber alguma encomenda. Ele foi ao Comitê de Indústrias de Guerra.
– O que é isso?
– Faz tempo que você saiu da cidade, hein, sargento? Hoje em dia, tudo o que funciona por aqui é administrado por comitês independentes: o governo é incompetente demais para fazer qualquer coisa. O Comitê de Indústrias de Guerra cuida do abastecimento do Exército... ou pelo menos cuidava, quando Polivanov era ministro da Guerra.
– E qual foi o problema?
– Nós recebemos a encomenda, meu marido usou todas as economias para pagar os fabricantes e então o czar demitiu Polivanov.
– Por quê?
– Polivanov permitia que representantes eleitos dos trabalhadores fizessem parte do comitê, por isso a czarina achou que ele fosse um revolucionário. Seja como for, a encomenda foi cancelada... e nós fomos à falência.
Grigori sacudiu a cabeça, enojado.
– E eu que pensei que só os comandantes do front fossem loucos.
– Chegamos a tentar outras coisas. Meu marido estava disposto a fazer qualquer trabalho: ser garçom, motorneiro de bonde, consertar estradas, mas ninguém estava contratando e, de tanta preocupação e falta de comida, ele adoeceu.
– Então agora você faz isso.
– Não sou muito boa. Mas alguns homens são gentis, como você. Já outros... – Ela estremeceu e desviou o olhar.
Grigori terminou o cigarro e se levantou.
– Adeus. Não vou perguntar seu nome.
Ela se pôs de pé.
– Graças a você, minha família ainda está viva. – Sua voz estava embargada. – E eu só preciso voltar às ruas amanhã. – Ela ficou na ponta dos pés e beijou-lhe os lábios de leve. – Obrigada, sargento.
Grigori foi embora.
Estava ficando mais frio. Ele percorreu as ruas depressa até o bairro de Narva. À medida que se afastava da mulher do sapateiro, recuperou a libido e pensou arrependido em seu corpo macio.
Ocorreu-lhe que, assim como ele, Katerina tinha necessidades físicas. Dois anos era tempo demais para uma jovem ficar sem nenhum tipo de romance – ela ainda não passava dos 23 anos. Tinha poucos motivos para ser fiel a Lev ou a Grigori. Uma mulher com um bebê bastava para afugentar muitos homens, mas, por outro lado, ela era muito atraente – pelo menos até dois anos atrás. Talvez não estivesse sozinha naquela noite. Isso sim seria terrível.
Ele foi se aproximando de sua antiga casa pela linha do trem. Seria imaginação sua ou a rua tinha ficado mais miserável naqueles dois anos? Durante todo esse tempo, nada parecia ter sido pintado, consertado, ou mesmo limpo. Ele percebeu haver uma fila em frente à padaria da esquina, embora a loja estivesse fechada.
Ainda tinha sua chave. Entrou na casa.
Subiu a escada, temeroso. Não queria encontrá-la com um homem. Agora que estava ali, desejou ter mandado avisar sobre a sua vinda, para que ela pudesse ter se preparado e o esperasse sozinha.
Bateu na porta.
– Quem é?
O som da voz dela encheu seus olhos de lágrimas.
– Uma visita – respondeu ele com a voz rouca, abrindo a porta.
Ela estava em pé junto à lareira, segurando uma panela. Deixou-a cair no chão, derramando leite, e levou as duas mãos à boca. Soltou um gritinho.
– Sou só eu – disse Grigori.
No chão ao seu lado, um menininho estava sentado, segurando uma colher de metal. Parecia ter acabado de parar de bater em uma lata vazia. Passou alguns instantes olhando para Grigori, espantado, antes de começar a chorar.
Katerina o pegou no colo.
– Não chore, Volodya – disse ela, ninando-o. – Não precisa ter medo. – O menino se acalmou. – É o seu pai – disse Katerina.
Grigori não tinha certeza se queria que Vladimir pensasse que ele era seu pai, mas aquela não era hora para discutir. Ele entrou e fechou a porta às suas costas. Abraçou mãe e filho, beijou o menino e então deu um beijo na testa de Katerina.
Recuou um pouco e olhou para os dois. Ela já não era a menina de rosto jovial que ele havia resgatado do mal-intencionado capitão de polícia Pinsky. Estava mais magra e tinha um ar cansado, tenso.
Estranhamente, o menino não se parecia muito com Lev. Não exibia nenhum sinal de sua beleza, tampouco seu sorriso sedutor. Na verdade, Vladimir tinha o olhar azul intenso que Grigori via quando se olhava no espelho.
Grigori sorriu.
– Ele é lindo.
– O que houve com a sua orelha? – perguntou Katerina.
Grigori tocou o que lhe restava da orelha direita.
– Perdi quase inteira na batalha de Tannenberg.
– E com o dente?
– Eu desagradei a um oficial. Mas agora ele está morto, então no final quem levou a melhor fui eu.
– Você não está mais tão bonito.
Era a primeira vez que ela o chamava de bonito.
– São ferimentos sem importância. Tenho sorte de estar vivo.
Ele correu os olhos por seu antigo quarto. Havia diferenças sutis. Sobre o console da lareira – onde Grigori e Lev costumavam guardar seus cachimbos, sua lata de fumo, seus fósforos e as lascas de madeira para acender o fogo –, Katerina tinha posto um vaso de cerâmica, uma boneca e um cartão-postal colorido de Mary Pickford. A janela exibia uma cortina. Era feita de trapos, como uma colcha de retalhos, mas Grigori nunca havia tido cortina nenhuma. Ele também reparou no cheiro, ou na falta dele, e se deu conta de que antes o ar dali era carregado de fumaça de tabaco, repolho fervido e homens sem banho. Agora, o aroma era de limpeza.
Katerina enxugou o leite derramado.
– Eu desperdicei o jantar de Volodya – falou ela. – Não sei o que vou lhe dar para comer. Não tenho mais leite no peito.
– Não se preocupe. – Grigori sacou da bolsa um pedaço de linguiça, um repolho e uma lata de geleia. Katerina encarou a comida, incrédula. – Peguei da cozinha do quartel – explicou ele.
Ela abriu a geleia e deu um pouco para Vladimir com uma colher. O menino comeu e disse:
– Mais?
Katerina comeu uma colherada ela própria, depois deu mais geleia ao menino.
– Parece um conto de fadas – disse ela. – É tanta comida! Não vou precisar passar a noite em frente à padaria.
Grigori franziu o cenho.
– Como assim?
Ela engoliu mais geleia.
– Nunca tem pão que chegue. Tudo é vendido assim que a padaria abre pela manhã. O único jeito de conseguir pão é fazer fila. E, se você não entrar nela antes da meia-noite, eles acabam antes de chegar a sua vez.
– Meu Deus! – Ele detestava a ideia de ela ter que dormir na calçada. – E Volodya?
– Uma das meninas fica de olho para ver se ele chora enquanto eu estou fora. Mas ele agora já dorme a noite inteira.
Não era de espantar que a mulher do sapateiro estivesse disposta a ir para a cama com Grigori em troca de um pão. Ele provavelmente tinha lhe pagado mais do que o normal.
– E como você está conseguindo se virar?
– Ganho 12 rublos por semana na fábrica.
Ele ficou intrigado.
– Mas isso é o dobro do que você ganhava quando eu fui embora!
– Só que o aluguel deste quarto custava quatro rublos por semana. Agora custa oito. Isso me deixa quatro rublos para todo o resto. E um saco de batatas, que antes custava um rublo, agora custa sete.
– Sete rublos por um saco de batatas! – Grigori estava pasmo. – Como é que as pessoas conseguem viver?
– Todo mundo está passando fome. As crianças adoecem e morrem. Os velhos se apagam como velas. A situação piora a cada dia, e ninguém faz nada.
O coração de Grigori se apertou. Enquanto sofria no Exército, seu consolo era pensar que Katerina e o bebê estavam levando uma vida melhor, com um lugar quentinho para dormir e dinheiro suficiente para comprar comida. Mas tinha se enganado aquele tempo todo. Pensar que ela precisava deixar Vladimir sozinho ali para ir dormir em frente à padaria o enchia de raiva.
Os dois se sentaram à mesa e Grigori cortou a linguiça com sua faca.
– Um chá seria bom – disse ele.
Katerina sorriu.
– Faz um ano que não tomo chá.
– Vou trazer um pouco do quartel.
Katerina comeu a linguiça. Grigori notou que ela teve que se controlar para não devorá-la. Pegou Vladimir no colo e deu-lhe mais geleia. O menino ainda era um pouco novo demais para linguiça.
Um contentamento agradável tomou conta de Grigori. Enquanto estava no front, tinha sonhado com aquela cena: o quartinho, comida na mesa, o bebê, Katerina. Agora o sonho havia se realizado.
– Isso não deveria ser tão difícil de encontrar – falou, pensativo.
– Como assim?
– Você e eu temos boa saúde e trabalhamos duro. Tudo o que eu quero é isto aqui: um quarto, alguma coisa para comer, poder descansar à noite. Deveríamos ter isso todos os dias.
– Nós fomos traídos pelos partidários dos alemães na corte – disse ela.
– É mesmo? Como foi isso?
– Bom, você sabe que a czarina é alemã.
– Sei. – A mulher do czar nascera princesa Alix de Hesse e do Reno, no Império Germânico.
– E Stürmer é alemão, claro.
Grigori deu de ombros. Até onde sabia, o primeiro-ministro Stürmer era russo de nascença. Muitos russos tinham nomes alemães e vice-versa: há séculos que habitantes dos dois países cruzavam a fronteira para lá e para cá.
– E Rasputin é pró-alemão.
– Ah, é? – Grigori desconfiava que o maior interesse do monge louco era seduzir as mulheres da corte e ganhar influência e poder.
– Eles estão todos mancomunados. Stürmer foi pago pelos alemães para fazer os camponeses morrerem de fome. O czar telefona para o primo, o Kaiser Guilherme, para lhe avisar onde os nossos soldados vão estar em seguida. Rasputin quer que a Rússia se renda. E a czarina e sua dama de companhia, Anna Vyrubova, dormem ambas com Rasputin ao mesmo tempo.
Grigori já tinha escutado a maioria desses boatos. Não acreditava que a corte do czar fosse pró-alemã. Eles eram apenas burros e incompetentes. Muitos dos soldados, no entanto, acreditavam nessas histórias – e, a julgar por Katerina, alguns civis também. Cabia aos bolcheviques explicar os verdadeiros motivos que estavam levando os russos a perderem a guerra e morrerem de fome.
Mas não naquela noite. Quando Vladimir bocejou, Grigori se levantou e pôs-se a niná-lo, andando de um lado para outro enquanto Katerina falava. Ela lhe contou sobre a vida na fábrica, sobre os outros inquilinos da casa e sobre pessoas que ele conhecia. O capitão Pinsky se tornara tenente da polícia secreta e perseguia liberais e democratas perigosos. Havia milhares de órfãos nas ruas, vivendo de roubos e prostituição e morrendo de fome e de frio. Konstantin, melhor amigo de Grigori na Metalúrgica Putilov, tinha entrado para o Comitê Bolchevique de Petrogrado. A família Vyalov era a única a estar ficando mais rica: por mais duro que fosse o racionamento, sempre tinham vodca, caviar, cigarros e chocolate para vender. Grigori observava com atenção sua boca larga e seus lábios carnudos. Era um prazer vê-la falar. Katerina tinha um queixo firme e olhos corajosos, mas, para ele, sempre parecia vulnerável.
Ninado pelos movimentos de Grigori e pela voz de Katerina, Vladimir adormeceu. Com cuidado, Grigori deitou-o em uma cama que Katerina improvisara em um canto. Era apenas um saco cheio de trapos forrado com um cobertor, mas o bebê se aninhou ali confortavelmente e levou o polegar à boca.
Quando um relógio de igreja bateu as nove, Katerina falou:
– A que horas você tem que estar de volta?
– Às dez – respondeu Grigori. – É melhor eu ir.
– Espere um pouco. – Ela pôs os braços em volta do seu pescoço e o beijou.
Foi delicioso. Seus lábios sobre os dele eram macios e ágeis. Ele fechou os olhos por um segundo e sorveu o aroma de sua pele. Então se afastou.
– Isto está errado – disse.
– Deixe de ser bobo.
– Você ama Lev.
Ela o encarou nos olhos.
– Eu era uma camponesa de 20 anos, recém-chegada à cidade. Gostei dos ternos elegantes de Lev, dos seus cigarros e de sua vodca, do seu jeito esbanjador. Ele era atraente, bonito, divertido. Mas agora estou com 23 anos e tenho um filho... e onde está Lev?
Grigori deu de ombros.
– Não sabemos.
– Mas você está aqui. – Ela acariciou-lhe a bochecha. Grigori sabia que deveria afastá-la, mas não conseguiu. – Paga o aluguel, traz comida para o meu bebê – disse ela. – Acha que eu não me dou conta de como fui boba por amar Lev e não você? Não percebe que mudei de ideia? Não entende que aprendi a amá-lo?
Grigori a encarava em silêncio, sem conseguir acreditar no que havia escutado.
Aqueles olhos azul-esverdeados o encaravam de volta, sinceros.
– Isso mesmo – disse ela. – Eu amo você.
Com um gemido, ele fechou os olhos, tomou-a nos braços e se rendeu.
De novembro a dezembro de 1916
Ansiosa, Ethel Williams correu os olhos pela lista de baixas no jornal. Havia vários Williams, mas nenhum cabo William Williams dos Fuzileiros Galeses. Com uma prece muda de agradecimento, ela dobrou o jornal, entregou-o a Bernie Leckwith e pôs a chaleira no fogo para preparar um chocolate quente.
Não podia ter certeza de que Billy estava vivo. Ele poderia ter sido morto há poucos dias ou poucas horas. A lembrança da Quarta-feira dos Telegramas em Aberowen a assombrava – os rostos das mulheres contorcidos de medo e dor, semblantes que carregariam para sempre as marcas cruéis das notícias daquele dia. Tinha vergonha da própria alegria por Billy não estar entre os mortos.
Em Aberowen, os telegramas haviam continuado a chegar. A batalha do Somme não terminou naquele primeiro dia. Durante todos os meses de julho, agosto, setembro e outubro, o Exército britânico jogou seus jovens soldados na terra de ninguém para serem massacrados pelas metralhadoras. Os jornais insistiam em anunciar vitória, mas os telegramas contavam uma história diferente.
Como quase todas as noites, Bernie estava na cozinha da casa de Ethel. O pequeno Lloyd gostava do “tio” Bernie. Costumava se sentar no colo dele, que lia o jornal em voz alta para o menino. Lloyd compreendia muito pouco das palavras, mas mesmo assim parecia gostar de ouvi-las. Naquela noite, porém, Bernie estava agitado por algum motivo e não deu atenção a Lloyd.
Mildred desceu do andar de cima trazendo um bule de chá.
– Eth, pode me dar um pouco de chá? – pediu.
– Sirva-se, você sabe onde fica. Não prefere uma xícara de chocolate quente?
– Não, obrigada, chocolate quente me dá gases. Oi, Bernie, como anda a revolução?
Bernie ergueu os olhos do jornal com um sorriso. Gostava de Mildred. Todos gostavam dela.
– A revolução está ligeiramente atrasada – disse ele.
Mildred pôs as folhas de chá dentro do bule.
– Alguma notícia de Billy?
– Nada ultimamente – respondeu Ethel. – E você?
– Já faz algumas semanas.
Era Ethel quem recolhia a correspondência pela manhã no chão do hall, portanto sabia que Mildred recebia cartas frequentes de Billy. Ethel imaginava que fossem cartas de amor: por que outro motivo um rapaz escreveria para a inquilina da irmã? Mildred parecia retribuir os sentimentos de Billy: estava sempre perguntando por notícias suas, esforçando-se para soar casual, mas sem conseguir disfarçar a ansiedade.
Ethel gostava de Mildred, mas tinha suas dúvidas se Billy, aos 18 anos, estaria pronto para assumir uma mulher de 23 e duas enteadas. É bem verdade que seu irmão sempre fora extraordinariamente maduro e responsável para sua idade. E, até a guerra acabar, provavelmente envelheceria mais alguns anos. De toda forma, tudo o que Ethel queria era que ele voltasse vivo. Nada do que acontecesse depois tinha muita importância.
– O nome dele não está na lista de baixas do jornal de hoje, graças a Deus – disse Ethel.
– Quando será que ele vai ter uma licença?
– Faz só cinco meses que ele foi lutar.
Mildred pousou o bule na mesa.
– Ethel, posso lhe perguntar uma coisa?
– Claro.
– Estou pensando em me tornar independente... quer dizer, como costureira.
Ethel ficou surpresa. Mildred tinha sido promovida a supervisora na fábrica de Mannie Litov, de modo que ganhava um salário melhor.
– Tenho uma amiga que pode me arrumar trabalho no arremate de chapéus... – continuou Mildred. – Fixar véus, fitas, penas e contas. É um trabalho especializado, então paga bem mais do que costurar uniformes.
– Parece ótimo.
– O problema é que teria de trabalhar em casa, ao menos no início. Mais para a frente, gostaria de contratar outras garotas e arrumar um lugarzinho para mim.
– Você está mesmo pensando no futuro!
– Tem que ser, não é? Quando a guerra terminar, ninguém mais vai querer uniformes.
– É verdade.
– Então... você se importaria se eu usasse o andar de cima como ateliê por um tempo?
– É claro que não. Boa sorte!
– Obrigada. – Impulsivamente, ela deu um beijo na bochecha de Ethel, então recolheu o bule e saiu da cozinha.
Lloyd bocejou e esfregou os olhos. Ethel o pegou no colo e o pôs na cama do quarto da frente. Passou um ou dois minutos a fitá-lo com ar amoroso enquanto ele adormecia. Como sempre, a vulnerabilidade do filho a comovia. O mundo vai ser melhor quando você crescer, Lloyd, prometeu em silêncio. Nós vamos garantir isso.
Ao voltar para a cozinha, ela tentou melhorar o humor de Bernie.
– Deveria haver mais livros para crianças – falou.
Ele aquiesceu.
– Por mim, toda biblioteca teria uma seção infantil – falou ele, sem tirar os olhos do jornal.
– Talvez, se vocês bibliotecários fizerem isso, os editores se sintam incentivados a publicar mais livros para crianças.
– É o que eu espero.
Ethel pôs mais carvão no braseiro e serviu um chocolate quente para cada um. Era raro Bernie ficar tão introspectivo. Em geral, ela gostava daquelas noites aconchegantes. Eles eram dois forasteiros – uma galesa e um judeu –, por mais que não faltassem galeses e judeus em Londres. Qualquer que fosse o motivo, naqueles dois anos morando na cidade, Bernie se tornara um bom amigo, junto com Mildred e Maud.
Tinha um palpite sobre o que ele estava pensando. Na noite anterior, um palestrante jovem e muito inteligente da Sociedade Fabiana havia falado no núcleo do Partido Trabalhista da região sobre o “socialismo do pós-guerra”. Ethel havia debatido com o convidado, que ficara claramente impressionado com ela. Depois da reunião, embora todos soubessem que ele era casado, o rapaz havia cortejado Ethel. Ela, por sua vez, havia gostado da atenção, mesmo sem levar o flerte a sério. Bernie talvez estivesse com ciúmes.
Resolveu deixá-lo ficar calado, se era isso que ele queria. Sentou-se à mesa da cozinha e abriu um envelope grande, cheio de cartas escritas por homens que estavam lutando no front. As leitoras do The Soldier’s Wife enviavam as cartas dos maridos para o jornal, que pagava um xelim por cada uma que fosse publicada. Elas forneciam um retrato mais fiel da vida na frente de batalha do que qualquer outra coisa divulgada na grande imprensa. A maioria dos textos do jornal era escrita por Maud, porém as cartas tinham sido ideia de Ethel e ela era a editora daquela página, que se tornara a seção mais popular do periódico.
Ela recebera a proposta de trabalhar, por um salário melhor, como representante em tempo integral do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Têxtil, com a função de conseguir mais associados. Contudo, havia recusado, pois queria ficar com Maud e continuar fazendo campanha.
Leu meia dúzia de cartas, deu um suspiro e olhou para Bernie.
– Eu achava que as pessoas fossem ficar contra a guerra – disse.
– Mas não foi o que aconteceu – retrucou ele. – Como vimos pelos resultados da eleição.
No mês anterior, em Ayrshire, houvera uma eleição suplementar – um pleito realizado em um único distrito eleitoral devido à morte do atual membro do Parlamento. O tenente-general Hunter-Weston, um conservador que havia combatido na batalha do Somme, tivera como adversário um candidato antibelicista, o reverendo Chalmers. O oficial do Exército obtivera uma vitória esmagadora, 7.149 votos contra 1.300.
– São os jornais – disse Ethel, frustrada. – O que a nossa pequena publicação pode fazer para promover a paz com toda a propaganda feita pela maldita imprensa de Northcliffe? – Lorde Northcliffe, militarista fervoroso, era dono dos periódicos The Times e Daily Mail.
– Não são apenas os jornais – falou Bernie. – É o dinheiro.
Bernie acompanhava de perto as finanças do governo, o que era estranho para um homem que nunca tivera mais que alguns xelins na vida. Ethel, vendo uma oportunidade para fazê-lo sair de seu mau humor, perguntou:
– Como assim?
– Antes da guerra, nosso governo gastava cerca de meio milhão de libras por dia com tudo: Exército, tribunais e prisões, educação, benefícios, administração das colônias, tudo.
– Quanto dinheiro! – Ela lhe lançou um sorriso afetuoso. – Esse é o tipo de estatística que meu pai sempre tinha na ponta da língua.
Ele tomou um gole do chocolate quente e então disse:
– Adivinhe quanto nós gastamos agora.
– O dobro? Um milhão por dia? Parece impossível.
– Você não chegou nem perto. A guerra custa cinco milhões de libras por dia. Isso é dez vezes o custo normal de governar o país.
Ethel ficou chocada.
– De onde vem esse dinheiro?
– É esse o problema. Nós tomamos emprestado.
– Mas a guerra já dura mais de dois anos. Nós devemos ter pegado... quase quatro bilhões de libras emprestadas!
– Por aí. O equivalente a 25 anos de gastos normais.
– E como vamos conseguir pagar isso?
– Nós nunca conseguiremos pagar. Qualquer governo que tentasse cobrar a quantidade de impostos necessária para quitar essa dívida causaria uma revolução.
– Mas, então, o que vai acontecer?
– Se nós perdermos a guerra, nossos credores, que são quase todos americanos, irão à falência. E, se ganharmos, vamos obrigar os alemães a pagar. O termo que eles usam é “reparação”.
– E como eles vão conseguir esse dinheiro?
– Passando fome. Mas ninguém liga para o que acontece com os perdedores. Além do mais, os alemães fizeram a mesma coisa com os franceses em 1871. – Ele se levantou para colocar a xícara na pia da cozinha. – Está vendo por que não podemos fazer um acordo de paz com os alemães? Quem iria pagar a conta?
Ethel estava horrorizada.
– E por isso temos que continuar mandando rapazes para morrer nas trincheiras. Porque não podemos pagar a conta. Pobre Billy. Como é cruel este nosso mundo.
– Mas nós vamos mudá-lo.
Espero que sim, pensou Ethel. Bernie achava que seria preciso uma revolução. Ela já lera sobre a Revolução Francesa e sabia que esse tipo de coisa nem sempre corria como o povo esperava. Mesmo assim, estava decidida a proporcionar uma vida melhor a Lloyd.
Os dois passaram algum tempo sentados em silêncio, então Bernie se levantou. Foi até a porta como se estivesse de saída, mas mudou de ideia.
– Interessante aquele palestrante de ontem à noite.
– É – respondeu ela.
– E inteligente.
– Sim, ele era inteligente.
Bernie tornou a se sentar.
– Ethel... dois anos atrás, você me disse que queria amizade, não romance.
– Fiquei muito chateada por ferir seus sentimentos.
– Não fique. Nossa amizade é a melhor coisa que já me aconteceu.
– Eu também gosto da nossa amizade.
– Você disse que eu logo iria esquecer aquelas ideias bobas e românticas, e que nós seríamos apenas amigos. Mas você estava enganada. – Ele se inclinou para a frente na cadeira. – À medida que a conheci melhor, só passei a amá-la mais do que nunca.
Ethel podia ver o desejo no olhar dele e ficou arrasada por não poder retribuir seus sentimentos.
– Eu também gosto muito de você – respondeu. – Mas não dessa forma.
– Que sentido faz ficar sozinha? Nós gostamos um do outro. Somos uma dupla tão boa! Temos os mesmos ideais, os mesmos objetivos na vida, opiniões parecidas... nós fomos feitos um para o outro.
– Um casamento é mais do que isso.
– Eu sei. E anseio por abraçar você. – Ele moveu os braços, como se fosse estendê-los para tocá-la, mas ela cruzou as pernas e se virou de lado na cadeira. Ele recolheu as mãos, e um sorriso amargo transfigurou sua expressão normalmente afável. – Entendo que eu não seja o homem mais bonito que você já conheceu. Mas acho que ninguém nunca a amou como eu amo.
Nisso ele tinha razão, pensou ela com tristeza. Muitos homens haviam gostado dela – e um a seduzira –, mas nenhum tinha demonstrado a mesma devoção paciente de Bernie. Se ela o desposasse, poderia ter certeza de que seria para sempre. E, em algum recanto de sua alma, ela ansiava por isso.
Percebendo sua hesitação, Bernie falou:
– Case-se comigo, Ethel. Eu amo você. Vou dedicar minha vida a fazê-la feliz. É tudo o que eu quero.
Mas será que ela precisava mesmo de um homem? Não era infeliz. Lloyd era uma alegria constante, com seus passinhos trôpegos, suas tentativas de falar e sua curiosidade sem limites. Seu filho lhe bastava.
– O pequeno Lloyd precisa de um pai – disse Bernie.
Isso fez Ethel sentir uma pontada de culpa. Bernie já vinha mais ou menos desempenhando esse papel. Será que deveria se casar com ele para o bem da criança? Não era tarde demais para Lloyd começar a chamá-lo de “papai”.
Isso significaria abrir mão da pouca esperança que tinha de reencontrar a paixão arrebatadora que sentira por Fitz. Quando pensava nisso, ela ainda sentia um arroubo de nostalgia. Mas o que esse caso de amor me rendeu?, pensou com seus botões, tentando raciocinar de forma objetiva apesar das emoções que sentia. Fui traída por Fitz, rejeitada pela minha família e exilada para outro país. Por que iria querer passar por isso de novo?
Por mais que se esforçasse, ela não conseguia se obrigar a aceitar o pedido de Bernie.
– Preciso pensar – disse ela.
O rosto dele se iluminou. Estava claro que nem sequer ousara receber uma resposta tão positiva.
– Pense quanto quiser – respondeu ele. – Eu espero.
Ela abriu a porta de casa.
– Boa noite, Bernie.
– Boa noite, Ethel. – Bernie se inclinou para a frente, ao que ela ofereceu a face para ele beijar. Seus lábios se demoraram alguns instantes sobre a sua pele. Ela recuou na mesma hora. Ele segurou seu pulso. – Ethel...
– Durma bem, Bernie – disse ela.
Depois de hesitar, ele aquiesceu.
– Você também – falou, indo embora em seguida.
Na noite da eleição, em novembro de 1916, Gus Dewar pensou que sua carreira política houvesse chegado ao fim.
Estava na Casa Branca, filtrando chamadas telefônicas e transmitindo mensagens para o presidente Wilson, que se encontrava em Shadow Lawn, a nova Casa Branca de verão em Nova Jersey, junto com a segunda esposa, Edith. Diariamente, o serviço postal norte-americano levava documentos de Washington até Shadow Lawn, mas às vezes o presidente precisava receber as notícias mais depressa.
Às nove horas daquela noite, já estava claro que o candidato republicano, um juiz da Suprema Corte chamado Charles Evans Hughes, havia conquistado a vitória em quatro estados decisivos: Nova York, Indiana, Connecticut e Nova Jersey.
No entanto, a ficha só caiu para Gus quando um mensageiro lhe trouxe as primeiras edições dos jornais de Nova York e ele viu a manchete:
HUGHES É ELEITO PRESIDENTE
Ficou chocado. Pensava que Woodrow Wilson estivesse ganhando. Os eleitores não haviam esquecido a eficiência com que ele lidara com a crise do Lusitania: tinha conseguido ao mesmo tempo se mostrar duro com os alemães e permanecer neutro. O slogan da campanha de Wilson era: “Ele nos manteve fora da guerra.”
Hugues havia acusado Wilson de não ter preparado os Estados Unidos para o conflito, mas esse tiro saíra pela culatra. Depois da brutal repressão britânica ao Levante da Páscoa em Dublin, os americanos estavam mais determinados do que nunca a permanecerem neutros. O tratamento dispensado pela Grã-Bretanha aos irlandeses era tão ruim quanto aquele que a Alemanha dispensava à Bélgica, então por que os Estados Unidos deveriam tomar partido?
Depois de ler os jornais, Gus afrouxou a gravata e tirou um cochilo no sofá da sala anexa ao Salão Oval. A perspectiva de ter que abandonar a Casa Branca o atormentava. Trabalhar para Wilson havia se tornado sua razão de ser. Sua vida amorosa era um desastre, mas pelo menos ele sabia que tinha algum valor para o presidente dos Estados Unidos.
Essa não era uma preocupação meramente egoísta. Wilson estava determinado a criar uma ordem internacional em que as guerras pudessem ser evitadas. Assim como os vizinhos de porta já não resolviam suas rixas territoriais a tiros de revólver, era preciso que um dia os países também deixassem suas desavenças serem solucionadas por um mediador independente. Sir Edward Grey, ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, havia utilizado a expressão “liga das nações” em uma carta para Wilson, e o presidente gostara dela. Se Gus pudesse ajudar a concretizar algo assim, sua vida significaria alguma coisa.
Porém, diante dos fatos, esse sonho não parecia mais possível, pensou ele, caindo, frustrado, no sono.
Foi despertado de manhã bem cedo por um telegrama dizendo que Wilson vencera em Ohio – estado operário que havia gostado do posicionamento do presidente em relação à jornada de trabalho de oito horas – e também no Kansas. Wilson estava novamente na disputa. Pouco depois, ele venceu em Minnesota por menos de 1.000 votos de diferença.
A briga ainda não havia terminado, e Gus se animou.
Na quarta-feira à noite, Wilson estava na frente com 264 votos dos delegados de cada estado contra 254 para o adversário – uma vantagem de 10 votos. Porém um dos estados da federação, a Califórnia, ainda não havia declarado seu resultado, e dele dependiam 13 votos de delegados. Quem conquistasse a Califórnia seria presidente.
O telefone de Gus emudeceu. Não havia mais quase nada que ele pudesse fazer. A contagem em Los Angeles era lenta. Cada urna fechada era protegida por democratas armados, que acreditavam que uma fraude havia impedido sua vitória nas eleições de 1876.
O resultado ainda estava indefinido quando a recepção ligou dizendo que Gus tinha uma visita. Para sua surpresa, quem o aguardava era Rosa Hellman, ex-editora do Buffalo Anarchist. Gus ficou contente: as conversas com Rosa eram sempre interessantes. Ele se lembrou de que um anarquista havia assassinado o presidente McKinley em Buffalo, em 1901. Mas o presidente Wilson estava bem longe, em Nova Jersey, de modo que ele a convidou a subir até sua sala e lhe ofereceu uma xícara de café.
Rosa usava um casaco vermelho. Quando Gus a ajudou a tirá-lo, viu como ficava alto ao seu lado. Pôde sentir um leve cheiro de perfume floral.
– A última vez que nos vimos, você me disse que eu era um idiota por ficar noivo de Olga Vyalov – lembrou ele enquanto pendurava o casaco dela na chapeleira.
Ela pareceu constrangida.
– Peço desculpas.
– Ah, mas você estava certa. – Ele mudou de assunto. – Então agora está trabalhando para uma agência de notícias?
– Isso mesmo.
– Como correspondente em Washington.
– Não, eu sou a assistente caolha do correspondente.
Pela primeira vez ela mencionava seu defeito físico. Gus hesitou, então disse:
– Eu costumava me perguntar por que você não usava um tapa-olho. Mas hoje fico contente que não use. Você é apenas uma linda mulher com um dos olhos fechado.
– Obrigada. Você é um homem gentil. Que tipo de coisa faz para o presidente?
– Tirando atender às ligações... eu leio os relatórios cheios de meias palavras do Departamento de Estado e depois digo a verdade a Wilson.
– Como por exemplo...?
– Segundo nossos embaixadores na Europa, a ofensiva do Somme está atingindo alguns de seus objetivos, embora não todos, com baixas severas dos dois lados. É quase impossível provar que essa afirmação é falsa... além de não informar nada ao presidente. Então eu lhe digo que a batalha do Somme é uma tragédia para os britânicos. – Ele deu de ombros. – Ou pelo menos dizia. Talvez eu perca o meu emprego. – Ele estava ocultando seus verdadeiros sentimentos. A ideia de que Wilson pudesse perder o apavorava.
Ela aquiesceu.
– Os votos na Califórnia estão sendo recontados. Quase um milhão de eleitores foram às urnas, e a diferença é de uns cinco mil votos.
– Quanta coisa depende das decisões de um punhado de pessoas mal instruídas...
– Democracia é isso.
Gus sorriu.
– Uma péssima maneira de se governar um país, mas qualquer outro sistema consegue ser pior ainda.
– Se Wilson vencer, qual será a prioridade dele?
– Em off?
– Claro.
– A paz na Europa – respondeu Gus sem hesitar.
– É mesmo?
– O slogan “Ele nos manteve fora da guerra” nunca o deixou lá muito à vontade. A questão não depende só dele. Talvez sejamos arrastados para a guerra mesmo sem querer.
– Mas o que ele pode fazer?
– Pressionar os dois lados para tentar chegar a um meio-termo.
– E será que ele consegue?
– Não sei.
– Uma coisa é certa: eles não podem continuar se massacrando como têm feito no Somme.
– Deus é testemunha que não. – Ele tornou a mudar de assunto: – Conte-me as novas de Buffalo.
Ela o encarou com sinceridade no olhar.
– Você quer saber sobre Olga, ou é embaraçoso demais?
Gus desviou os olhos. O que poderia ser mais embaraçoso? Primeiro, ele havia recebido um recado de Olga anulando o noivado. Ela se desculpara de forma abjeta, mas sem dar nenhuma explicação. Gus não estava disposto a aceitar aquilo e escreveu-lhe de volta exigindo que se encontrassem pessoalmente. Confuso, supôs que ela estivesse sendo pressionada a agir daquela forma. No entanto, mais tarde naquele mesmo dia, sua mãe descobriu, graças à sua rede de amigas fofoqueiras, que Olga estava de casamento marcado com o chofer do pai. “Mas por quê?”, perguntou Gus, angustiado, ao que sua mãe respondeu: “Meu menino querido, por que outro motivo uma moça se casaria com o chofer?” Ele se limitou a olhar para ela, sem entender nada, e sua mãe por fim disse: “Ela só pode estar grávida.” Foi o momento mais humilhante da vida de Gus e, mesmo um ano depois, seu rosto se contorcia de dor sempre que se lembrava daquilo.
Rosa leu sua expressão.
– Eu não deveria ter falado nela. Sinto muito.
Gus pensou que talvez fosse melhor saber o que todos os outros já sabiam. Tocou de leve a mão de Rosa.
– Obrigado por ser franca. Prefiro assim. E sim, estou curioso quanto a Olga.
– Bem, eles se casaram naquela igreja ortodoxa russa da Ideal Street e a recepção foi no Hotel Statler. Seiscentos convidados, sendo que Josef Vyalov alugou o salão de baile e o salão de jantar, além de ter servido caviar para todo mundo. Foi o casamento mais luxuoso da história de Buffalo.
– E como é o marido dela?
– Lev Peshkov é bonito, charmoso e totalmente suspeito. Basta olhar para ele para saber que é um patife. E agora é genro de um dos homens mais ricos de Buffalo.
– E a criança?
– Uma menina, Darya, mas eles a chamam de Daisy. Nasceu em março. E Lev não é mais chofer, é claro. Acho que ele administra uma das boates de Vyalov.
Os dois passaram uma hora conversando, então Gus a acompanhou até o térreo e chamou um táxi para levá-la até em casa.
Na manhã seguinte bem cedo, Gus recebeu por cabo o resultado da Califórnia. Wilson vencera por 3.777 votos. Havia sido reeleito presidente.
Gus ficou eufórico. Mais quatro anos para tentar obter tudo aquilo que eles desejavam. Em quatro anos, poderiam mudar o mundo.
Enquanto ainda olhava para o telegrama, seu telefone tocou.
Ele atendeu e ouviu a telefonista dizer:
– Ligação de Shadow Lawn. O presidente quer falar com o senhor, Sr. Dewar.
– Obrigado.
Logo em seguida, ele ouviu a voz conhecida de Wilson:
– Bom dia, Gus.
– Parabéns, Sr. Presidente.
– Obrigado. Faça as malas. Quero que vá para Berlim.
Quando Walter von Ulrich foi passar a licença em casa, sua mãe deu uma festa.
Não havia muitas festas em Berlim. Mesmo para uma mulher rica e casada com um homem influente, era difícil comprar comida. Suzanne von Ulrich não se encontrava bem de saúde: estava magra e vivia tossindo. No entanto, queria muito fazer alguma coisa para Walter.
Otto tinha uma adega cheia de bons vinhos comprados antes da guerra. Para não precisar oferecer um jantar completo, Suzanne decidiu organizar uma recepção vespertina. Serviu pequenos aperitivos de peixe defumado e torradinhas triangulares com queijo, compensando a pouca comida com champanhe à vontade.
Walter ficou grato pela consideração, mas na verdade não queria festa nenhuma. Tinha duas semanas de licença do campo de batalha, e tudo o que queria era uma cama macia, roupas secas e a oportunidade de passar o dia inteiro sem fazer nada no elegante salão da casa dos pais, olhando pela janela e pensando em Maud – ou então sentado diante do piano de cauda Steinway tocando a canção Frühlingsglaube, de Schubert: “Agora tudo, tudo deve mudar.”
Como ele e Maud haviam sido ingênuos ao dizer, em agosto de 1914, que estariam juntos novamente no Natal! Já fazia mais de dois anos que ele não via seu belo rosto. E a Alemanha provavelmente ainda levaria outros dois anos para ganhar a guerra. A maior esperança de Walter era que a Rússia entrasse em colapso, permitindo aos alemães concentrarem suas forças em um derradeiro avanço maciço na frente ocidental.
Nesse meio-tempo, Walter às vezes tinha dificuldade para visualizar Maud, precisando consultar a fotografia de revista gasta e apagada que levava consigo: Lady Maud Fitzherbert sempre vestida na última moda. Não lhe interessava uma festa sem ela. Enquanto se arrumava, desejou que sua mãe não tivesse se dado ao trabalho.
A casa parecia largada. Não havia criados suficientes para manter o lugar impecável. Uma vez que os homens estavam no Exército e as mulheres tinham virado condutoras de bonde ou carteiras, os empregados mais velhos restantes penavam para manter os padrões de limpeza e lustro exigidos por sua mãe. E, além de suja, a casa estava fria. A cota de carvão não bastava para alimentar a calefação central, de modo que sua mãe havia instalado braseiros portáteis no saguão, na sala de jantar e na sala de estar, mas eles não conseguiam dar conta do frio de novembro em Berlim.
Contudo, Walter se alegrou quando os cômodos gelados se encheram de jovens e uma pequena banda começou a tocar no saguão. Sua irmã caçula, Greta, havia convidado todos os amigos. Ele percebeu quanto sentia falta de uma vida social. Gostava de ver as moças usando seus lindos vestidos e os homens, ternos impecáveis. Apreciava as brincadeiras, os flertes, as fofocas. Havia adorado sua experiência como diplomata – era uma vida que combinava com ele. Tinha facilidade para se mostrar encantador e jogar conversa fora.
A casa dos Von Ulrich não tinha salão de baile, mas as pessoas começaram a dançar no chão de lajotas do hall. Walter dançou várias vezes com a melhor amiga de Greta, Monika von der Helbard, uma ruiva alta e longilínea de cabelos compridos, que o fazia pensar nos quadros daqueles artistas ingleses que se autodenominavam pré-Rafaelitas.
Ele foi lhe buscar uma taça de champanhe e sentou-se ao seu lado. Como todos faziam, ela lhe perguntou como era a vida nas trincheiras. Walter geralmente respondia que era dura, mas que os homens estavam com o moral elevado e que acabariam vencendo. Por algum motivo, porém, disse a verdade para Monika.
– O pior de tudo é que é inútil – falou. – Faz dois anos que estamos nas mesmas posições, com uns poucos metros de diferença, e não vejo como o alto-comando poderá mudar isso com as atitudes que vem tomando... ou com qualquer atitude que possa vir a tomar. Estamos passando frio, fome, sofrendo de doenças respiratórias, pé de trincheira e dores de barriga, além de profundamente entediados... e tudo isso por nada.
– Não é o que temos lido nos jornais – disse ela. – Que tristeza! – Ela apertou seu braço em um gesto de compaixão. O toque foi como um pequeno choque elétrico. Era a primeira vez em dois anos que uma mulher de fora da sua família o tocava. De repente, ele pensou como seria maravilhoso abraçar Monika, apertar aquele corpo quente contra o seu e beijar sua boca. Seus olhos cor de âmbar o fitavam com um olhar sincero e, depois de alguns instantes, Walter percebeu que ela havia lido seus pensamentos. Àquela altura, já sabia que as mulheres muitas vezes de fato sabiam o que passava pela cabeça dos homens. Ficou constrangido, porém estava claro que ela pouco se importava, e pensar isso o deixou ainda mais excitado.
Alguém se aproximou deles e Walter ergueu os olhos com irritação, imaginando que o homem quisesse tirar Monika para dançar. Então identificou um rosto conhecido.
– Meu Deus! – falou. O nome lhe voltou à cabeça: como todo bom diplomata, era um excelente fisionomista. – Gus Dewar, não é? – perguntou, em inglês.
Gus respondeu em alemão:
– Isso mesmo, mas podemos falar alemão. Como vai?
Walter se levantou e apertou a mão de Gus.
– Permita que eu lhe apresente Freiin Monika von der Helbard. Este é Gus Dewar, conselheiro do presidente Woodrow Wilson.
– Encantada em conhecê-lo, Sr. Dewar – disse ela. – Vou deixar os dois cavalheiros conversarem.
Walter a observou ir embora com um misto de arrependimento e culpa. Por alguns instantes, havia se esquecido de que era um homem casado.
Olhou para Gus. Quando os dois haviam se conhecido em Tŷ Gwyn, ele simpatizara com o americano na mesma hora. Gus era um homem esquisito, com uma cabeça grande em um corpo comprido e fino, mas era também muito inteligente. Na época, Gus acabara de sair de Harvard e tinha uma timidez charmosa, mas dois anos de trabalho na Casa Branca lhe haviam proporcionado certa autoconfiança. O estilo de terno casual disforme que os americanos gostavam de usar na verdade ficava elegante em seu corpo.
– É um prazer vê-lo – disse Walter. – Hoje em dia são poucas as pessoas que vêm aqui de férias.
– Na verdade eu não estou de férias – respondeu Gus.
Walter esperou que o outro dissesse algo mais e, quando isso não aconteceu, deu-lhe a deixa:
– Qual o motivo, então?
– Digamos que estou pondo o pé dentro d’água para ver se ela está morna o bastante para o presidente poder nadar.
Então aquela era uma visita oficial.
– Entendo.
– Melhor ir direto ao ponto. – Gus tornou a hesitar, ao que Walter aguardou com paciência. Por fim, o americano falou em voz baixa: – O presidente Wilson quer que os alemães e os Aliados comecem a negociar a paz.
O coração de Walter disparou, mas ele ergueu uma sobrancelha, demonstrando ceticismo.
– Ele mandou você vir dizer isso a mim?
– Você entende. O presidente não pode correr o risco de uma recusa pública, que o faria parecer fraco. Ele poderia, é claro, mandar nosso embaixador aqui em Berlim falar com seu ministro das Relações Exteriores. Mas, nesse caso, a coisa toda se tornaria oficial e, cedo ou tarde, a informação iria vazar. Então ele pediu ao seu conselheiro menos graduado, eu, para vir a Berlim e acionar alguns dos contatos que fiz em 1914.
Walter aquiesceu. Muita coisa era feita dessa forma no mundo diplomático.
– Se nós recusarmos, ninguém precisa saber.
– E, mesmo que a notícia se espalhe, será apenas como se alguns jovens de baixo escalão estivessem agindo por iniciativa própria.
Fazia sentido, e Walter começou a se animar.
– O que o presidente Wilson quer, exatamente?
Gus respirou fundo.
– Se o Kaiser escrevesse para os Aliados propondo uma conferência de paz, o presidente apoiaria publicamente a proposta.
Walter reprimiu uma sensação de júbilo. Aquela conversa particular inesperada poderia ter consequências que abalariam o mundo. Seria mesmo possível pôr fim ao pesadelo das trincheiras? Será que ele teria a chance de rever Maud em questão de meses, em vez de anos? Ele disse a si mesmo para não ficar empolgado demais. Sondagens diplomáticas extraoficiais como aquela geralmente não davam em nada. Mas não pôde deixar de se entusiasmar.
– Isso é da maior importância, Gus – disse ele. – Tem certeza de que Wilson está falando sério?
– Absoluta. Foi a primeira coisa que ele me disse depois de ganhar a eleição.
– Qual é o interesse dele nisso?
– O presidente não quer levar os Estados Unidos à guerra. Mas há um risco de sermos arrastados para ela mesmo assim. Ele quer a paz. E depois um novo sistema internacional para garantir que uma guerra como esta nunca mais aconteça.
– Vocês têm o meu apoio – disse Walter. – O que quer que eu faça?
– Fale com seu pai.
– Ele talvez não goste da proposta.
– Use seus poderes de persuasão.
– Farei o possível. Consigo encontrá-lo na embaixada americana?
– Não. A minha visita é particular. Estou hospedado no Hotel Adlon.
– Naturalmente, Gus – disse Walter com um sorriso. O Adlon era o melhor hotel da cidade e já havia sido chamado de o mais luxuoso do mundo. Ele sentiu saudades daqueles últimos anos de paz. – Será que algum dia voltaremos a ser aqueles dois rapazes cuja maior preocupação era atrair o olhar do garçom para pedir mais uma garrafa de champanhe?
Gus levou a pergunta a sério.
– Não, duvido que essa época vá voltar um dia, pelo menos não durante o nosso tempo de vida.
Greta, a irmã de Walter, apareceu. Tinha cabelos louros encaracolados que se balançavam de forma sedutora quando ela movia a cabeça.
– Por que essas caras tão tristes? – perguntou alegremente. – Sr. Dewar, venha dançar comigo!
Gus se animou.
– Com prazer! – respondeu.
Ela o levou embora.
Walter voltou à festa, mas, enquanto conversava com amigos e parentes, não parava de pensar na proposta de Gus e em qual seria a melhor maneira de promovê-la. Quando fosse falar com o pai, tentaria não demonstrar entusiasmo demais. Ele poderia se posicionar contra. Walter iria desempenhar o papel de mensageiro neutro.
Assim que os convidados foram embora, sua mãe o encurralou no salão. O aposento era decorado no estilo rococó, que continuava sendo o preferido pelos alemães antiquados: espelhos rebuscados, mesas com pernas finas e recurvadas, um grande lustre.
– Que moça agradável essa Monika von der Helbard! – comentou ela.
– Encantadora – concordou Walter.
Sua mãe não estava usando joias. Era presidente do comitê de coleta de ouro e tinha doado seus penduricalhos para que fossem vendidos. Tudo o que lhe restava era a aliança de casamento.
– Tenho que convidá-la de novo, da próxima vez com os pais. O pai dela é o Markgraf von der Helbard.
– Sim, eu sei.
– É uma ótima família. Eles pertencem à Uradel, a nobreza antiga.
Walter andou em direção à porta.
– A que horas a senhora acha que papai estará em casa?
– Daqui a pouco. Walter, sente-se e converse comigo um pouco.
Walter havia deixado óbvio que queria sair dali. O motivo era que precisava de uma hora de sossego para pensar na mensagem de Gus Dewar. Mas havia sido indelicado com a mãe, a quem amava, de modo que começou a tentar se redimir.
– Com prazer, mãe. – Puxou-lhe uma cadeira. – Pensei que a senhora fosse querer descansar, mas, se não quiser, eu adoraria conversar. – Sentou-se de frente para ela. – A festa foi ótima. Muito obrigado por organizá-la.
Ela assentiu com a cabeça, porém mudou de assunto.
– Seu primo Robert está desaparecido – disse ela. – Ele sumiu durante a ofensiva Brusilov.
– Eu sei. Talvez tenha sido preso pelos russos.
– Também pode estar morto. E seu pai está com 60 anos. Você logo poderia se tornar Graf Von Ulrich.
Essa possibilidade não seduzia Walter. Ultimamente, os títulos de nobreza tinham cada vez menos importância. Ele poderia até sentir orgulho de ser conde, mas isso talvez se revelasse uma desvantagem no mundo do pós-guerra.
De toda forma, o título ainda não era seu.
– A morte de Robert não foi confirmada.
– Claro. Mas você precisa se preparar.
– Em que sentido?
– Você deveria se casar.
– Ah! – Walter estava surpreso. Eu deveria ter imaginado, pensou.
– Vai precisar de um herdeiro para assumir o título quando você morrer. E isso pode acontecer em breve, embora eu reze... – Sua voz ficou presa na garganta e ela parou de falar. Fechou os olhos por alguns instantes para recuperar a compostura. – … embora eu reze aos céus todos os dias pela sua proteção. Seria melhor se você fosse pai quanto antes.
Sua mãe tinha medo de perdê-lo, mas ele também tinha medo de perdê-la. Olhou para ela com afeto. Era loura e bonita, como Greta, e talvez um dia houvesse sido tão cheia de vida quanto a filha. De fato, naquele exato momento seus olhos brilhavam e suas bochechas estavam coradas por causa da animação da festa e do champanhe. Contudo, nos últimos tempos, o simples fato de subir a escada a deixava sem ar. Ela precisava de férias, comer bem e bastante e não ter que se preocupar com nada. Por causa da guerra, não poderia ter nenhuma dessas três coisas. Os soldados não eram as únicas vítimas, refletiu Walter, preocupado.
– Por favor, pense em Monika como uma possibilidade – disse sua mãe.
Ele ansiava por lhe falar sobre Maud.
– Monika é uma moça fascinante, mãe, mas eu não a amo. Mal a conheço.
– Não há tempo para isso! Em tempos de guerra, a etiqueta pode ser ignorada. Encontre-a de novo. Você tem mais dez dias de licença. Encontre-se com ela todos os dias. Pode pedi-la em casamento na véspera de partir.
– Mas e os sentimentos dela? Ela pode não querer se casar comigo.
– Ela gosta de você. – Sua mãe desviou o olhar. – E vai fazer o que os pais mandarem.
Walter não sabia se deveria ficar irritado ou achar graça.
– Você e a mãe dela combinaram isso, não foi?
– Estamos vivendo uma época desesperada. Vocês poderiam se casar daqui a três meses. Seu pai pode garantir que você receba uma licença especial para o casamento e a lua de mel.
– Ele disse isso? – Em geral, seu pai demonstrava uma hostilidade ferrenha em relação a privilégios especiais para soldados bem relacionados.
– Ele entende a necessidade de termos um herdeiro para o título.
Seu pai havia sido dobrado. Quanto tempo teria sido preciso? Ele não cedia com facilidade.
Walter tentou não se remexer na cadeira. Estava na pior situação possível. Casado com Maud, não podia sequer fingir interesse em se casar com Monika. Porém, não podia explicar por quê.
– Mãe, eu sinto muito por decepcioná-la, mas não vou pedir Monika von der Helbard em casamento.
– Mas por que não? – exclamou ela.
Ele se sentiu péssimo.
– Tudo o que posso dizer é que gostaria de poder fazer a senhora feliz.
Ela o fitou com um olhar duro.
– Seu primo Robert nunca se casou. No caso dele, nenhum de nós ficou surpreso. Espero que não haja nenhum problema dessa natureza...
Walter ficou constrangido pela referência à homossexualidade de Robert.
– Ah, mãe, faça-me o favor! Eu sei muito bem do que a senhora está falando em relação a Robert, e não sou como ele nesse departamento, de modo que pode ficar descansada.
Ela olhou para o outro lado.
– Desculpe-me por ter falado nisso. Mas o que é, então? Você está com 30 anos!
– É difícil encontrar a moça certa.
– Nem tanto assim.
– Estou procurando alguém como a senhora.
– Agora você está me provocando – disse ela, irritada.
Walter ouviu uma voz de homem do lado de fora da sala. Logo em seguida, seu pai entrou. Usava uniforme e esfregava as mãos frias uma na outra.
– Vai nevar – disse ele. Beijou a mulher e cumprimentou Walter com a cabeça. – Imagino que a festa tenha sido um sucesso, não? Fiquei impossibilitado de vir... uma tarde inteira de reuniões.
– A festa foi esplêndida – respondeu Walter. – Mamãe bolou canapés deliciosos quase do nada, e o Perrier-Jouët estava uma delícia.
– Que safra vocês tomaram?
– A de 1899.
– Deveriam ter escolhido o 1892.
– Não restou muito dessa safra.
– Ah...
– Tive uma conversa intrigante com Gus Dewar.
– Eu me lembro dele... o americano cujo pai é próximo do presidente Wilson.
– O filho agora é mais próximo ainda do presidente. Gus trabalha na Casa Branca.
– O que ele tinha a dizer?
A mãe de Walter se levantou.
– Vou deixar vocês conversarem a sós – falou.
Os dois se levantaram também.
– Por favor, Walter querido, pense sobre o que eu disse – falou ela antes de sair.
Instantes depois, o mordomo entrou com uma bandeja, sobre a qual trazia um cálice com uma dose generosa de conhaque castanho-dourado. Otto pegou o copo.
– Quer um também? – perguntou a Walter.
– Não, obrigado, já tomei bastante champanhe.
Otto bebeu o conhaque e esticou as pernas em direção ao fogo.
– Então o jovem Dewar veio trazendo... algum tipo de recado?
– Estritamente confidencial.
– É claro.
Walter não conseguia sentir muito carinho pelo pai. Suas desavenças eram intensas demais – e a intransigência de Otto muito implacável. Ele era tacanho, antiquado, incapaz de escutar a voz da razão e persistia nesses erros com uma alegre obstinação que Walter considerava repulsiva. A consequência de sua tolice – e da de sua geração em todos os países da Europa – era o massacre do Somme. Walter não conseguia perdoar isso.
Mesmo assim, falou com o pai usando uma voz suave e modos amigáveis. Queria que aquela conversa fosse o mais cordial e sensata possível.
– O presidente norte-americano não quer ser arrastado para a guerra – começou.
– Isso é bom.
– Na verdade, ele gostaria que nós fizéssemos um acordo de paz.
– Rá! – Foi uma exclamação de desdém. – Que forma mais barata de nos derrotar! É muita audácia desse homem.
Walter ficou consternado com aquele desprezo tão imediato, porém insistiu, escolhendo as palavras com cuidado:
– Nossos inimigos alegam que o militarismo e a agressividade dos alemães provocaram esta guerra, mas é claro que isso não é verdade.
– De fato, não é – respondeu Otto. – Nós fomos ameaçados pela mobilização russa em nossa fronteira oriental e pela mobilização francesa a oeste. O Plano Schlieffen era a única solução possível. – Como sempre, Otto falava como se Walter ainda tivesse 12 anos.
Este respondeu com paciência:
– Exatamente. Lembro-me de ouvir o senhor dizer que, para nós, esta era uma guerra defensiva, uma reação a uma ameaça intolerável. Tínhamos que nos proteger.
Se Otto ficou surpreso ao ouvir Walter repetir aqueles clichês para justificar o conflito, não deixou transparecer.
– Está certo – falou.
– E foi o que nós fizemos – continuou Walter, jogando seu trunfo. – Agora já alcançamos nossos objetivos.
Seu pai ficou espantado.
– Como assim?
– Nós eliminamos a ameaça. O Exército russo está destruído e o regime do czar à beira do colapso. Nós conquistamos a Bélgica, invadimos a França e combatemos os franceses e seu aliados britânicos até alcançarmos um impasse. Fizemos o que pretendíamos desde o início. Nós protegemos a Alemanha.
– Um verdadeiro triunfo!
– Então o que mais queremos?
– A vitória total!
Walter se inclinou para a frente na cadeira, fitando o pai com atenção.
– Por quê?
– Nossos inimigos devem pagar pela agressão contra nós! É preciso que haja reparações, talvez ajustes de fronteiras, concessões coloniais.
– Esses não eram nossos objetivos originais para a guerra... ou eram?
Otto, no entanto, não queria abrir mão de nada.
– Não, mas agora que investimos tanto esforço e dinheiro no conflito, isso sem falar nas vidas de tantos jovens alemães valorosos, precisamos ganhar algo em troca.
Era uma argumentação fraca, porém Walter sabia que não adiantava tentar fazer o pai mudar de ideia. Pelo menos tinha conseguido fazê-lo concordar com o fato de que os objetivos da Alemanha com aquela guerra haviam sido alcançados. Então mudou de estratégia.
– Tem certeza de que uma vitória total é possível?
– Tenho!
– Em fevereiro, nós atacamos com todas as nossas forças a fortaleza francesa de Verdun. Não conseguimos tomá-la. Os russos nos atacaram pelo leste e os britânicos deram tudo o que tinham em sua ofensiva no rio Somme. Esses esforços monumentais dos dois lados não conseguiram pôr fim ao impasse. – Ele aguardou uma resposta.
Contrariado, Otto falou:
– Até o momento, não.
– Exato, o nosso próprio alto-comando reconheceu isso. Desde agosto, quando Von Falkenhayn foi demitido e Ludendorff tornou-se chefe do Estado-Maior, nós mudamos de tática, passando do ataque para a defesa em profundidade. Mas como o senhor acha que uma estratégia de defesa em profundidade conduzirá à vitória total?
– Por meio de uma guerra submarina irrestrita! – respondeu Otto. – Os Aliados vêm sendo sustentados por suprimentos norte-americanos, enquanto os nossos portos estão bloqueados pela Marinha britânica. Nós precisamos cortar sua linha de abastecimento... daí eles irão se render.
Walter não queria entrar nesse mérito, mas, agora que tinha começado, precisava continuar. Cerrando os dentes, ele falou, com a voz mais branda possível:
– Isso certamente faria os Estados Unidos entrarem na guerra.
– Você sabe quantos homens tem o Exército dos Estados Unidos?
– No máximo uns 100 mil, mas...
– Isso mesmo. Eles não conseguem nem pacificar o México! Não representam a menor ameaça para nós.
Como a maioria dos homens da sua geração, Otto nunca tinha ido aos Estados Unidos. E, assim como eles, não fazia ideia do que estava falando.
– Os Estados Unidos são um país grande e muito rico – disse Walter, ardendo de frustração, porém mantendo um tom casual, tentando preservar a ilusão de uma conversa amigável. – Eles podem fortalecer seu exército.
– Mas não tão depressa. Precisarão de no mínimo um ano. A essa altura, os britânicos e franceses já terão se rendido.
Walter aquiesceu.
– Nós já tivemos essa conversa antes, pai – disse ele em tom conciliatório. – Assim como todas as pessoas de alguma forma relacionadas à estratégia de guerra. Existem argumentos plausíveis de ambos os lados.
Otto não podia negar isso, de modo que apenas emitiu um grunhido de reprovação.
– Enfim – disse Walter –, estou certo de que não cabe a mim decidir qual será a reação da Alemanha a essa abordagem informal de Washington.
Seu pai mordeu a isca.
– Nem a mim, é claro.
– Wilson está dizendo que, se a Alemanha enviar uma carta formal aos Aliados propondo uma conferência de paz, ele apoiará a proposta publicamente. Imagino que tenhamos o dever de transmitir esse recado ao nosso soberano.
– De fato – respondeu Otto. – Quem deverá decidir é o Kaiser.
Walter escreveu uma carta para Maud em uma folha de papel branco simples, sem cabeçalho.
Meu grande amor,
É inverno na Alemanha e no meu coração também.
Escreveu em inglês. Não pôs seu endereço no alto da folha, tampouco usou o nome de Maud.
Você não pode imaginar quanto eu a amo e como sinto a sua falta.
Era difícil saber o que dizer. A carta talvez fosse lida por policiais curiosos, de modo que ele precisava garantir que nem ele nem Maud pudessem ser identificados.
Eu sou um entre um milhão de homens separados das mulheres que amamos, e o vento do norte fustiga nossas almas.
Sua ideia era que o texto pudesse passar como carta de um soldado qualquer afastado da família pela guerra.
O mundo me parece frio e soturno, como deve parecer a você, mas a parte mais difícil de suportar é a nossa separação.
Desejou poder lhe falar sobre seu trabalho no serviço de inteligência do campo de batalha, sobre a tentativa de sua mãe de fazê-lo se casar com Monika, sobre a escassez de comida em Berlim, ou mesmo sobre o livro que estava lendo, uma saga familiar intitulada Os Buddenbrook, mas tinha medo de que qualquer detalhe pusesse qualquer um dos dois em perigo.
Não posso dizer muita coisa, mas quero que saiba que sou fiel a você...
Ele se deteve, pensando com culpa na vontade que tivera de beijar Monika. Mas não havia cedido.
... e às promessas sagradas que fizemos um ao outro na última vez em que estivemos juntos.
Era o mais perto que ele podia chegar de se referir ao casamento. Não queria correr o risco de que alguém na Grã-Bretanha lesse a carta e descobrisse a verdade.
Penso todos os dias no momento de nosso reencontro, em que nos olharemos nos olhos e diremos: “Olá, meu amor.”
Até lá, lembre-se de mim.
Não assinou seu nome.
Pôs a carta dentro de um envelope e guardou-a no bolso interno da frente do paletó.
O serviço postal entre a Alemanha e o Reino Unido estava interrompido.
Ele saiu do quarto, desceu a escada, pôs um chapéu e um sobretudo grosso com gola de pele e saiu para as ruas geladas de Berlim.
Encontrou Gus Dewar no bar do Adlon. O hotel ainda conservava uma sombra da dignidade que tinha antes da guerra, com garçons em traje de gala e um quarteto de cordas, mas não havia bebidas importadas – nada de uísque, conhaque ou gim inglês –, de modo que os dois pediram schnapps.
– E então? – perguntou Gus, ansioso. – Como a minha mensagem foi recebida?
Walter estava cheio de esperança; porém sabia haver poucos motivos para otimismo e queria dissimular o próprio entusiasmo. A notícia que tinha para dar a Gus era positiva, mas nem tanto.
– O Kaiser vai escrever para o presidente – falou.
– Ótimo! O que ele vai dizer?
– Eu vi um rascunho da mensagem. Infelizmente, o tom não me pareceu muito conciliatório.
– Como assim?
Walter fechou os olhos para se lembrar do texto, então recitou:
– “A guerra mais formidável de toda a história já dura dois anos e meio. Nesse conflito, a Alemanha e seus aliados deram provas de nossa força indestrutível. Nossas linhas inabaláveis seguem resistindo a ataques incessantes. Acontecimentos recentes mostram que a continuidade da guerra não será capaz de assolar nosso poder de resistência...” E assim por diante, sempre nesse tom.
– Entendo por que você diz que não parece muito conciliatório.
– Mas depois de um tempo o texto chega ao que interessa. – Walter recordou o trecho seguinte. – “Conscientes de nosso poderio militar e econômico e dispostos a levar até o fim, caso necessário, a luta que nos foi imposta, porém, ao mesmo tempo animados pelo desejo de estancar o derramamento de sangue e pôr fim aos horrores da guerra...” E agora vem a parte importante: “... propomos iniciar imediatamente negociações de paz.”
Gus ficou extasiado.
– Que maravilha! Ele aceitou!
– Fale baixo, por favor! – Walter olhou em volta com nervosismo, mas ninguém parecia ter dado atenção. A música do quarteto de cordas abafava a conversa dos dois.
– Desculpe – falou Gus.
– Mas você tem razão. – Walter sorriu, deixando transparecer um pouco seu otimismo. – O tom é arrogante, combativo e desdenhoso... mas ele propõe negociações de paz.
– Você não imagina quanto estou grato.
Walter ergueu a mão em um gesto que pedia cautela.
– Deixe-me lhe dizer uma coisa com toda a franqueza. Homens poderosos e próximos ao Kaiser que são contra a paz apoiaram essa proposta com cinismo, apenas para que o presidente norte-americano continuasse a vê-los com bons olhos, certos de que os Aliados irão rejeitá-la de qualquer maneira.
– Vamos torcer para que estejam errados!
– Deus queira.
– Quando eles vão mandar a carta?
– Ainda estão discutindo sobre os termos exatos. Quando chegarem a um consenso, a carta será entregue ao embaixador norte-americano aqui em Berlim, com um pedido para que ele a transmita aos governos Aliados. – Esse jogo diplomático de leva e traz era necessário porque os governos inimigos não dispunham de meios de comunicação oficiais.
– É melhor eu ir para Londres – disse Gus. – Talvez possa fazer algo para preparar a recepção da carta.
– Achei mesmo que você fosse dizer isso. Tenho um pedido a fazer.
– Depois do que você fez para me ajudar? É só pedir!
– É estritamente pessoal.
– Sem problemas.
– Vou ter que lhe revelar um segredo meu.
Gus sorriu.
– Muito intrigante!
– Gostaria que você levasse uma carta minha para lady Maud Fitzherbert.
– Ah... – Gus assumiu uma expressão pensativa. Sabia que só podia haver um motivo para Walter estar escrevendo em segredo para Maud. – Entendo a discrição necessária. Mas pode ficar tranquilo.
– Se os seus pertences forem revistados quando estiver saindo da Alemanha ou entrando na Inglaterra, você terá que dizer que se trata de uma carta de amor de um americano na Alemanha para sua noiva em Londres. Não há nenhum nome ou endereço na correspondência.
– Está certo.
– Obrigado – disse Walter com fervor. – Você não sabe quanto isso significa para mim.
No sábado, 2 de dezembro, houve um encontro de caça em Tŷ Gwyn. O conde Fitzherbert e a princesa Bea se atrasaram em Londres, então Bing Westhampton, amigo de Fitz, fez as vezes de anfitrião e lady Maud de anfitriã.
Antes da guerra, Maud adorava esses eventos. As mulheres não caçavam, é claro, mas ela gostava de ter a casa cheia de hóspedes, do piquenique de almoço em que as senhoras se reuniam aos homens, das grandes fogueiras e da comida farta que todos encontravam à noite ao voltarem para casa. Porém descobriu-se incapaz de aproveitar esses prazeres quando os soldados estavam sofrendo nas trincheiras. Disse a si mesma que não se pode passar a vida inteira infeliz, nem mesmo em tempos de guerra, mas não funcionou. Estampou no rosto o seu melhor sorriso e incentivou todos a comerem e beberem à vontade, no entanto, quando ouvia os tiros de espingarda, tudo em que conseguia pensar era nos campos de batalha. Seu generoso prato de comida permaneceu intocado e as taças contendo os vinhos antigos e inestimáveis de Fitz foram levadas embora ainda cheias.
Ultimamente, ela detestava ficar sem trabalhar, pois tudo o que fazia nessas horas era pensar em Walter. Estaria ele vivo ou morto? A batalha do Somme finalmente havia terminado. Segundo Fitz, os alemães tinham perdido meio milhão de homens. Será que Walter estava entre eles? Ou será que estava deitado em algum hospital, aleijado?
Talvez ele estivesse comemorando a vitória. Os jornais não conseguiam esconder totalmente o fato de que a principal investida militar britânica do ano de 1916 havia conquistado parcos 11 quilômetros de território. Os alemães talvez se sentissem no direito de se congratularem. Até mesmo Fitz dizia, com a voz baixa e somente em particular, que a maior esperança da Grã-Bretanha agora era que os norte-americanos entrassem na guerra. Estaria Walter relaxando em algum bordel de Berlim, segurando uma garrafa de schnapps em uma das mãos e apalpando uma bela fräulein loura com a outra? Antes estivesse ferido, pensou ela, e então sentiu vergonha de si mesma.
Gus Dewar era um dos convidados de Tŷ Gwyn e, na hora do chá, foi ter com Maud. Todos os homens usavam plus fours, calças típicas feitas de tweed e abotoadas abaixo do joelho, e o americano alto ficava especialmente ridículo com elas. Equilibrando uma xícara de chá com dificuldade em uma das mãos, ele atravessou a sala de estar lotada até onde ela estava sentada.
Maud conteve um suspiro. Quando um homem solteiro a abordava, em geral tinha intenções românticas, de modo que ela precisava dispensá-lo sem admitir que já era casada – o que às vezes era complicado. Atualmente, o número de bons partidos da aristocracia mortos na guerra era tão alto que até mesmo os homens menos atraentes tentavam sua chance com ela: filhos caçulas de barões falidos, clérigos magrelos com mau hálito e até mesmo homossexuais em busca de uma mulher que os fizesse parecer respeitáveis.
Não que Gus Dewar fosse um partido tão ruim. Ele não era bonito, tampouco tinha a graça natural de homens como Walter e Fitz, mas possuía uma mente arguta e ideais nobres, além de compartilhar o entusiasmo de Maud pela política internacional. E a combinação de sua deselegância, tanto física quanto social, com uma franqueza um tanto rude lhe dava uma espécie de charme. Se ela fosse solteira, ele poderia até ter tido uma chance.
Gus cruzou as pernas compridas ao seu lado, sobre um sofá de seda amarela.
– Que prazer estar de volta a Tŷ Gwyn – falou.
– O senhor esteve aqui logo antes da guerra – recordou Maud. Jamais se esqueceria daquele fim de semana em janeiro de 1914, quando o rei havia se hospedado ali e acontecera um acidente terrível na mina de Aberowen. Sua lembrança mais vívida, no entanto, era de quando tinha beijado Walter, percebeu ela, envergonhada. Desejou poder beijá-lo naquele instante. Como eles tinham sido tolos em se limitar aos beijos! Quem dera tivessem feito amor e ela houvesse engravidado, para que tivessem sido obrigados a se casar de forma apressada e indigna e acabassem relegados à desgraça social eterna em algum lugar horrível como a Rodésia ou Bengala. Tudo aquilo que os inibira – seus pais, a sociedade, a carreira – parecia desimportante se comparado à possibilidade nefasta de Walter ser morto e de ela nunca mais tornar a vê-lo.
– Como os homens conseguem ser tão burros a ponto de ir à guerra? – perguntou ela a Gus. – E continuar lutando mesmo depois de o custo exorbitante em matéria de vidas humanas ter superado há muito tempo qualquer lucro possível?
– O presidente Wilson acredita que os dois lados deveriam começar a pensar em uma paz sem vitória – respondeu ele.
Ela ficou aliviada por ele não querer lhe dizer como seus olhos eram bonitos, ou alguma bobagem do gênero.
– Eu concordo com o presidente – falou. – O Exército britânico já perdeu um milhão de homens. Só a batalha do Somme nos custou 400 mil baixas.
– Mas o que o povo britânico acha disso?
Maud refletiu sobre a pergunta.
– A maioria dos jornais continua a fingir que a batalha do Somme foi uma grande vitória. Qualquer tentativa de avaliação realista é tachada de antipatriótica. Tenho certeza de que lorde Northcliffe na verdade preferiria viver sob uma ditadura militar. Mas grande parte da população já sabe que não estamos fazendo muitos progressos.
– Os alemães talvez estejam prestes a propor negociações de paz.
– Ai, espero que o senhor tenha razão.
– Creio que uma proposta formal vá ser feita em breve.
Maud o encarou.
– Perdoe-me – disse ela. – Achei que o senhor estivesse apenas puxando conversa para ser educado. Mas não é só isso, certo? – Ela se animou. Negociações de paz? Seria possível?
– Não, eu não estou jogando conversa fora – disse Gus. – Sei que a senhorita tem amigos no governo liberal.
– Na verdade, nosso governo não é mais liberal – falou ela. – É um governo de coalizão, com vários ministros conservadores no gabinete.
– Desculpe, usei o termo errado. Eu já sabia da coalizão. Ainda assim, o primeiro-ministro ainda é Asquith, um liberal. E sei que a senhorita é próxima de muitos liberais importantes.
– Sim, eu sou.
– Então vim pedir sua opinião sobre como a proposta alemã pode vir a ser recebida.
Ela pensou bem. Sabia quem Gus representava. Quem estava lhe fazendo aquela pergunta era o presidente dos Estados Unidos. Era melhor que sua resposta fosse precisa. Por acaso, Maud tinha uma informação valiosíssima.
– Dez dias atrás, o gabinete trouxe à baila um documento redigido por lorde Lansdowne, ex-ministro das Relações Exteriores conservador, afirmando que seria impossível ganharmos a guerra.
O interesse de Gus se aguçou.
– É mesmo? Eu não fazia ideia.
– É claro que não. Era segredo. No entanto, alguns boatos circularam e Northcliffe tem se mostrado violentamente contra o que chama de conversa derrotista sobre negociações de paz.
– E como o documento de Lansdowne foi recebido? – perguntou Gus, animado.
– Eu diria que existem quatro homens inclinados a pensar como ele: o ministro das Relações Exteriores, Sir Edward Grey; o chanceler McKenna; Runciman, presidente da Câmara de Comércio; e o próprio primeiro-ministro.
A expressão de Gus ficou radiante de esperança.
– Um grupo poderoso!
– Sobretudo agora que o agressivo Winston Churchill saiu do governo. Ele nunca se recuperou da catástrofe da expedição aos Dardanelos, projeto que era seu xodó.
– E que membros do gabinete ficaram contra Lansdowne?
– David Lloyd George, ministro da Guerra, o político mais popular do país. Além de lorde Robert Cecil, ministro do Bloqueio Naval; Arthur Henderson, ministro da Pagadoria-Geral, que também é o líder do Partido Trabalhista; e Arthur Balfour, primeiro-lorde do Almirantado.
– Eu li a entrevista que Lloyd George deu aos jornais. Ele disse que queria ver a luta durar até o nocaute.
– Infelizmente, a maior parte do povo concorda com ele. É claro que as pessoas não têm muito acesso a outros pontos de vista. Os opositores da guerra, como o filósofo Bertrand Russell, por exemplo, são constantemente intimidados pelo governo.
– Mas qual foi a conclusão do gabinete?
– Nenhuma. É como terminam muitas das reuniões de Asquith. As pessoas reclamam que ele é indeciso.
– Que frustrante. Mas parece que uma proposta de paz não vai se deparar com ouvidos moucos.
Como era revigorante, pensou Maud, conversar com um homem que a levava totalmente a sério. Até mesmo os que tratavam de assuntos inteligentes com ela tendiam a se mostrar um pouco condescendentes. Na verdade, Walter foi o único outro homem a conversar com ela de igual para igual.
Nesse momento, Fitz entrou na sala. Vestia roupas londrinas, em preto e cinza, e obviamente acabara de saltar do trem. Usava um tapa-olho e andava com o auxílio de uma bengala.
– Queiram me desculpar por tê-los decepcionado – falou ele, dirigindo-se a todos os presentes. – Tive que ficar na cidade ontem à noite. Londres está em polvorosa por conta dos últimos desdobramentos políticos.
– Que desdobramentos? – quis saber Gus. – Ainda não lemos os jornais de hoje.
– Lloyd George escreveu para Asquith ontem à noite exigindo mudanças no modo como estamos conduzindo a guerra. Ele quer criar um Conselho de Guerra todo-poderoso, formado por três ministros e responsável por todas as decisões.
– E Asquith vai concordar? – perguntou Gus.
– É claro que não. Sua resposta foi que, se um conselho desses existisse, o primeiro-ministro teria de ser o presidente.
Bing Westhampton, o irônico amigo de Fitz, estava sentado junto à janela com os pés para cima.
– Isso é um contrassenso – disse ele. – Qualquer conselho presidido por Asquith será tão fraco e indeciso quanto o gabinete. – Ele olhou em volta como quem pede desculpas. – Sem querer ofender os ministros do governo aqui presentes.
– Mas você tem razão – disse Fitz. – A carta é mesmo um desafio à liderança de Asquith, sobretudo considerando que Max Aitken, amigo de Lloyd George, vazou a história para todos os jornais. Agora não há mais nenhuma chance de acordo. Vai ser um combate até o nocaute, como diria Lloyd George. Se ele não conseguir o que quer, terá que sair do gabinete. E, se conseguir, quem terá que renunciar é Asquith... e nós seremos obrigados a escolher um novo primeiro-ministro.
Maud cruzou olhares com Gus. Não tinha dúvidas de que compartilhavam a mesma opinião tácita. Com Asquith em Downing Street, a iniciativa de paz tinha uma chance. Se o beligerante Lloyd George ganhasse aquela disputa, tudo seria diferente.
O gongo do hall soou, avisando aos hóspedes que era hora de trocar de roupa para a noite. O grupo que tomava chá se dispersou. Maud foi para o seu quarto.
Suas roupas já haviam sido separadas. O vestido era o mesmo que ela comprara em Paris para a temporada londrina de 1914. Desde então havia comprado poucas roupas. Tirou o vestido que usara para o chá e pôs um roupão de seda. Ainda não iria tocar a sineta para chamar a criada: tinha alguns minutos para si. Sentou-se diante da penteadeira e olhou para seu rosto no espelho. Tinha 26 anos – e seus traços acusavam a idade. Maud nunca fora bonita, mas as pessoas costumavam dizer que ela era atraente. Com a austeridade dos tempos de guerra, perdera o pouco que tinha de suavidade juvenil, e os ângulos de seu rosto haviam se tornado mais pronunciados. O que Walter pensaria quando a visse – caso algum dia se reencontrassem? Ela tocou os próprios seios. Pelo menos ainda eram firmes. Ele gostaria disso. Pensar em Walter fez seus mamilos endurecerem. Ela se perguntou se teria tempo para...
Alguém bateu à porta, e ela abaixou as mãos, sentindo-se culpada.
– Quem é? – perguntou.
A porta se abriu e Gus Dewar entrou no quarto.
Maud se levantou, apertando o roupão em volta do corpo e falando com o máximo de rispidez possível:
– Sr. Dewar, por favor, saia daqui agora mesmo!
– Não fique alarmada – disse ele. – Preciso falar com a senhorita em particular.
– Não consigo imaginar por que motivo...
– Eu estive com Walter em Berlim.
Maud se calou, chocada. Ficou encarando Gus. Como ele poderia saber sobre os dois?
– Ele me deu uma carta para a senhorita – prosseguiu. Levou a mão ao bolso interno do paletó de tweed e sacou um envelope.
Maud o apanhou com a mão trêmula.
– Ele me disse que evitou usar o próprio nome ou o da senhorita – falou Gus – por medo de a carta ser lida na fronteira, mas, no fim das contas, ninguém revistou minha bagagem.
Maud segurava a carta nas mãos, aflita. Há tempos que ansiava por notícias de Walter, mas agora temia que elas fossem ruins. Talvez ele tivesse arrumado uma amante e a carta implorasse a compreensão de Maud. Ou então se casado com uma garota alemã e estivesse escrevendo para lhe pedir segredo eterno em relação ao casamento anterior. Pior ainda: poderia ter dado início a um processo de divórcio.
Ela rasgou o envelope para abri-lo.
Meu grande amor,
É inverno na Alemanha e no meu coração também. Você não pode imaginar quanto eu a amo e como sinto a sua falta.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
– Oh! – disse ela. – Oh, Sr. Dewar, obrigada por me trazer isto!
Ele deu um passo hesitante em sua direção.
– Pronto, pronto – falou, afagando-lhe o braço.
Ela tentou ler o resto da carta, mas não conseguia enxergar as palavras no papel.
– Estou tão feliz! – disse, aos prantos.
Deixou a cabeça cair sobre o ombro de Gus, que a envolveu com os braços.
– Está tudo bem – disse.
Maud se rendeu aos próprios sentimentos e pôs-se a soluçar.
Dezembro de 1916
Fitz estava trabalhando no Almirantado, em Whitehall. Não era o serviço que queria. Ansiava por voltar para junto dos Fuzileiros Galeses, na França. Por mais que detestasse a sujeira e o desconforto das trincheiras, não conseguia se sentir bem estando seguro em Londres enquanto outros arriscavam a vida. Tinha horror de que o considerassem covarde. Os médicos, no entanto, insistiam que a sua perna ainda não estava forte o bastante, e o Exército não queria deixá-lo voltar.
Como Fitz falava alemão, Smith-Cumming, do Escritório do Serviço Secreto – o homem que se autodenominava “C” –, o havia recomendado para a Inteligência Naval, de modo que ele fora lotado provisoriamente em um departamento conhecido como Sala 40. A última coisa que desejava era um cargo burocrático, mas, para sua própria surpresa, descobriu que aquele trabalho era de suma importância para o esforço de guerra.
No primeiro dia do conflito, um navio do serviço postal chamado CS Alert fora enviado para o mar do Norte, onde levara à tona os resistentes cabos submarinos de telecomunicações alemães e cortara todos eles. Com essa medida astuciosa, os britânicos haviam forçado o inimigo a usar o telégrafo para a maioria de suas mensagens. E sinais telegráficos podiam ser interceptados. Como não eram burros, os alemães codificavam suas mensagens. A Sala 40 era o lugar onde os britânicos tentavam quebrar esses códigos.
Fitz trabalhava com um grupo heterogêneo de pessoas – algumas bem esquisitas, a maioria não muito militar – que se esforçava para decifrar a algaravia captada pelas estações de escuta do litoral. Ele não tinha talento para o desafio de quebrar códigos – nunca conseguira sequer descobrir quem era o assassino em um livro de mistério de Sherlock Holmes –, mas podia traduzir as mensagens decodificadas para o inglês e, o que era mais importante, sua experiência no campo de batalha lhe permitia julgar quais delas eram relevantes.
Não que fizesse muita diferença. No final de 1916, a frente ocidental mal havia saído da posição que ocupava no início do ano, apesar do empenho monumental de ambos os lados – o ataque implacável dos alemães contra Verdun e a ainda mais sacrificante investida britânica no Somme. Os Aliados precisavam urgentemente de ajuda. Se os Estados Unidos entrassem no conflito, a balança poderia pender a favor deles – mas, até então, não havia sinal disso.
Os comandantes de todos os exércitos emitiam suas ordens tarde da noite ou ao raiar do dia, de modo que Fitz começava cedo e trabalhava sem descanso até o meio-dia. Na quarta-feira depois do encontro de caça, saiu do Almirantado ao meio-dia e meia e pegou um táxi para casa. O trecho íngreme da Avenida Whitehall até Mayfair, embora curto, era demais para ele.
As três mulheres com quem vivia – Bea, Maud e tia Herm – estavam se sentando à mesa para almoçar. Ele entregou sua bengala e o quepe do uniforme para Grout e foi se juntar às senhoras. Sempre que voltava do ambiente funcional do escritório, sua casa lhe proporcionava um prazer reconfortante: os móveis refinados, os criados de passo leve, a porcelana francesa sobre a toalha branca como a neve.
Ele perguntou a Maud quais eram as últimas novidades da política. Havia uma batalha em curso entre Asquith e Lloyd George. Na véspera, Asquith havia renunciado teatralmente ao cargo de primeiro-ministro. Fitz estava preocupado: não era um fã do liberal Asquith, mas e se o novo primeiro-ministro se deixasse seduzir pelos argumentos simplórios em defesa da paz?
– O rei encontrou-se com Bonar Law – disse Maud. Andrew Bonar Law era o líder dos conservadores. O último resquício de poder real na política britânica era o direito do monarca de nomear o primeiro-ministro, ainda que seu candidato precisasse obter o apoio do Parlamento.
– E qual foi o resultado? – quis saber Fitz.
– Bonar Law recusou o cargo de primeiro-ministro.
Fitz ficou contrariado.
– Como é que ele pôde dizer não ao rei? – A seu ver, um homem deveria obedecer a seu monarca, sobretudo um conservador.
– Ele acha que Lloyd George deve assumir. Mas o rei não quer Lloyd George.
– Espero que não queira, mesmo – interveio Bea. – Esse homem é praticamente um socialista.
– É verdade – disse Fitz. – Porém ele é mais agressivo do que todos os outros somados. Pelo menos injetaria alguma energia no esforço de guerra.
– Tenho medo de que ele não aproveite uma chance de paz – disse Maud.
– Paz? – repetiu Fitz. – Não acho que você tenha que se preocupar muito com isso. – Tentou não soar exaltado, mas conversas derrotistas sobre paz o faziam pensar em todas as vidas que tinham sido perdidas: o jovem tenente Carlton-Smith, tantos soldados do Aberowen Pals e até mesmo o infeliz Owen Bevin, executado por um pelotão de fuzilamento. Teria o sacrifício deles sido em vão? A ideia lhe parecia uma blasfêmia. Forçando-se a usar um tom de voz normal, tornou a falar: – Não haverá paz antes de um dos lados vencer.
Os olhos de Maud faiscaram de raiva, mas ela também se controlou.
– Talvez nós consigamos o melhor dos dois mundos: Lloyd George como presidente do Conselho de Guerra, para que o conflito seja liderado de forma enérgica, e um primeiro-ministro que seja um verdadeiro estadista para negociar a paz, como Arthur Balfour, se resolvermos que é isso que queremos.
– Hum... – Fitz não gostava nem um pouco dessa ideia, porém Maud tinha um jeito de formular seus argumentos que tornava difícil discordar dela. Fitz mudou de assunto. – Quais são seus planos para hoje à tarde?
– Tia Herm e eu vamos ao East End. Estamos organizando um Clube de Mulheres de Soldados. Nós lhes damos chá e bolo, pagos por você, Fitz, a quem somos muito gratas, e tentamos ajudar com seus problemas.
– Tais como?
Quem respondeu foi tia Herm:
– Arrumar um lugar limpo para morar e encontrar alguém de confiança para cuidar das crianças são os mais frequentes.
Fitz achou graça.
– Tia, estou surpreso. A senhora costumava desaprovar as aventuras de Maud no East End.
– Nós estamos em guerra – disse tia Herm, desafiadora. – Temos que fazer tudo o que pudermos.
Por impulso, Fitz falou:
– Talvez eu vá com vocês. É bom eles verem que os condes levam tiros com a mesma facilidade que os estivadores.
Maud pareceu espantada, mas disse:
– Bom, claro, se quiser.
Ele notou que a irmã não tinha gostado da ideia. Sem dúvida naquele clube devia se falar uma certa dose de bobagens esquerdistas – voto feminino e outras tolices do mesmo naipe. No entanto, como era ele quem pagava tudo, Maud não podia impedi-lo de aparecer.
O almoço terminou e eles foram se aprontar. Fitz foi até o quarto de vestir da mulher. A criada grisalha de Bea, Nina, a ajudava a tirar o vestido do almoço. Bea murmurou alguma coisa em russo e Nina respondeu na mesma língua, o que deixou Fitz irritado, pois a ideia parecia ser excluí-lo. Ele falou em russo, no intuito de deixar as duas pensando que havia entendido tudo, então disse à criada:
– Por favor, deixe-nos a sós. – Ela fez uma mesura e saiu do quarto.
– Não vi Boy hoje – disse Fitz. Ele saíra de casa cedo naquela manhã. – Preciso ir ao quarto das crianças antes que o levem para passear.
– Ele não vai sair agora – disse Bea com nervosismo. – Está tossindo um pouco.
Fitz fechou o rosto.
– Ele precisa de ar puro.
Para sua surpresa, ela de repente adquiriu um ar choroso.
– Estou com medo por ele – falou. – Com você e Andrei arriscando a vida na guerra, Boy pode ser tudo o que me resta.
Seu irmão Andrei era casado, porém não tinha filhos. Se Andrei e Fitz morressem, Boy passaria a ser a única família de Bea. Isso explicava por que ela protegia tanto a criança.
– Mesmo assim, não é bom para o menino ficar sendo tratado a pão de ló.
– Eu não conheço essa expressão – disse ela, emburrada.
– Acho que você sabe do que eu estou falando.
Bea tirou as anáguas. Seu corpo havia ficado mais voluptuoso do que antes. Fitz a observou desatar as fitas que prendiam suas meias. Imaginou-se mordendo a carne macia da parte interna de sua coxa.
Ela percebeu seu olhar.
– Estou cansada – falou. – Preciso dormir uma hora.
– Eu poderia acompanhá-la.
– Pensei que você fosse visitar os pobres com sua irmã.
– Não sou obrigado a ir.
– Preciso mesmo descansar.
Ele se levantou para sair, mas então mudou de ideia. Sentia-se zangado, rejeitado.
– Já faz muito tempo que você não me recebe na sua cama.
– Não tenho contado os dias.
– Eu tenho, e são semanas, não dias.
– Desculpe. Tenho andado tão preocupada com tudo. – Ela voltou a ficar à beira das lágrimas.
Fitz sabia que ela temia pelo irmão – e compreendia sua ansiedade impotente –, porém milhões de mulheres estavam vivendo a mesma agonia, e a nobreza tinha a obrigação de ser estoica.
– Ouvi dizer que você criou o hábito de assistir à missa na embaixada russa enquanto eu estava na França. – Não havia igreja ortodoxa russa em Londres, mas a embaixada tinha uma capela.
– Quem lhe contou isso?
– Não importa. – Tia Herm lhe contara. – Antes de nós nos casarmos, eu lhe pedi que se convertesse ao anglicanismo, e você obedeceu.
Ela evitava seus olhos.
– Não achei que fosse ter problema algum eu assistir a uma ou duas missas – falou baixinho. – Sinto muitíssimo por ter desagradado você.
Fitz não confiava em clérigos estrangeiros.
– O padre de lá anda dizendo a você que é pecado ter prazer ao se deitar com seu marido?
– É claro que não! Mas, quando você está fora, eu me sinto muito sozinha, muito afastada de tudo com que fui criada... É reconfortante ouvir hinos e preces russas que conheço tão bem.
Fitz sentiu pena dela. Devia ser difícil. Ele não conseguia sequer cogitar viver de forma permanente em um país estrangeiro. E sabia, graças a conversas com outros homens casados, que não era incomum uma mulher resistir aos assédios do marido depois de ter tido um filho.
No entanto, obrigou o próprio coração a endurecer. Todo mundo precisava fazer sacrifícios. Bea deveria estar grata por não precisar correr para cima de rajadas de metralhadoras.
– Eu acho que cumpri meu dever para com você – falou. – Quando nos casamos, paguei as dívidas da sua família. Contratei especialistas, russos e ingleses, para planejarem a reorganização das propriedades. – Os especialistas haviam aconselhado Andrei a drenar pântanos para criar mais terra cultivável e explorar o terreno em busca de carvão e outros minerais, mas o irmão de Bea nunca fizera nada disso. – Não é culpa minha se Andrei desperdiçou todas as oportunidades que teve.
– Sim, Fitz – respondeu ela. – Você fez tudo o que prometeu.
– E agora peço a você que cumpra o seu dever. Nós precisamos gerar herdeiros. Se Andrei morrer sem gerar descendentes, o nosso filho herdará duas propriedades imensas. Ele vai ser um dos maiores proprietários de terras do mundo. Precisamos ter mais filhos para o caso de, Deus nos livre, acontecer alguma coisa com Boy.
Ela manteve os olhos abaixados.
– Eu sei do meu dever.
Fitz sentiu-se desonesto. Falava em herdeiros – e tudo o que dissera era verdade –, mas não lhe revelava que estava louco para ver seu corpo macio estirado para ele sobre os lençóis, branco sobre branco, e seus cabelos louros derramando-se sobre o travesseiro. Afastou essa visão da mente.
– Se você sabe do seu dever, por favor, cumpra-o. Da próxima vez que eu entrar no seu quarto, espero ser recebido como o marido amoroso que sou.
– Sim, Fitz.
Ele saiu. Estava contente por ter fincado o pé, mas também tinha uma sensação incômoda de ter feito alguma coisa errada, o que era ridículo. Ele havia deixado claro para Bea quanto seu comportamento estava errado, e ela havia aceitado sua reprimenda. Era assim que deveria ser entre marido e mulher. Fitz, no entanto, não conseguiu ficar tão satisfeito quanto deveria.
Afastou Bea do pensamento ao encontrar Maud e tia Herm no saguão. Pôs o quepe do uniforme e olhou de relance para o espelho, desviando os olhos depressa. Ultimamente, tentava não pensar muito na própria aparência. A bala havia danificado os músculos do lado esquerdo de seu rosto, o que deixava sua pálpebra permanentemente caída. Não era uma desfiguração grave, mas sua vaidade jamais iria se recuperar. Disse a si mesmo para agradecer o fato de a sua visão não ter sido afetada.
O Cadillac azul continuava na França, mas ele conseguira arrumar outro. Seu motorista conhecia o caminho: era óbvio que já havia levado Maud ao East End. Meia hora mais tarde, eles estacionaram diante do Salão do Evangelho do Calvário, uma capela pequenina e miserável com telhado de zinco. A construção poderia muito bem ter sido trazida diretamente de Aberowen. Fitz se perguntou se o pastor era galês.
O chá já havia começado e o lugar estava lotado de mães jovens com seus filhos. O cheiro era pior do que o de um alojamento militar e Fitz teve que resistir à tentação de cobrir o nariz com um lenço.
Maud e Herm começaram a trabalhar na mesma hora, Maud recebendo as mulheres no escritório dos fundos, uma de cada vez, e Herm conduzindo-as até lá. Fitz mancou de mesa em mesa, perguntando às mulheres onde seus maridos estavam servindo e quais tinham sido as suas experiências. Enquanto isso, as crianças rolavam pelo chão. No geral, as moças costumavam dar risadinhas e ficar sem palavras quando Fitz se dirigia a elas, mas aquele grupo não se deixava envergonhar com tanta facilidade. As mulheres lhe perguntaram em que regimento ele havia servido e como tinha sido ferido.
Somente depois de percorrer metade da sala ele viu Ethel.
Havia reparado que dois escritórios ocupavam os fundos do salão, um deles o de Maud, e ele se perguntara distraidamente quem estaria no segundo. Por acaso, ergueu os olhos bem na hora em que a porta se abriu e Ethel saiu da sala.
Fazia dois anos que não a via, mas ela não estava muito diferente. Seus cachos escuros balançavam quando ela andava e seu sorriso parecia um raio de sol. O vestido estava tão desbotado e gasto quanto as roupas de todas as mulheres ali presentes, exceto Maud e Herm, mas ela ainda conservava a mesma silhueta esbelta – e Fitz não pôde deixar de pensar no corpo mignon que tinha conhecido tão bem. Ethel não precisou sequer olhar para ele para enfeitiçá-lo. Era como se o tempo não houvesse passado desde que os dois tinham rolado juntos, aos risos e beijos, sobre a cama da Suíte Gardênia.
Ela se dirigiu ao único outro homem que havia ali, um sujeito encurvado de terno casual cinza-escuro feito de algum material pesado, que tomava notas em um livro-razão sentado diante de uma mesa. O homem usava óculos de lentes grossas, mas mesmo assim Fitz pôde ver a expressão de adoração em seus olhos quando ele os ergueu para Ethel. Ela o abordou com uma amabilidade natural que fez Fitz se perguntar se os dois seriam casados.
Ethel então se virou, deparando-se com o olhar de Fitz. Suas sobrancelhas se arquearam e sua boca formou um O de surpresa. Ela deu um passo para trás, como se estivesse agitada, e esbarrou em uma cadeira. A mulher que a ocupava ergueu o rosto com uma expressão irritada. Ethel articulou um “Desculpe” sem olhar para ela.
Fitz se levantou de onde estava sentado, o que não era fácil com a perna estropiada, sem desgrudar os olhos de Ethel. Ela estava visivelmente indecisa, sem saber se deveria se aproximar dele ou fugir para a segurança de sua sala.
– Olá, Ethel. – Suas palavras não conseguiram atravessar a sala barulhenta, mas ela provavelmente pôde ver seus lábios se moverem e adivinhar o que ele dissera.
Ela se decidiu e foi em sua direção.
– Boa tarde, lorde Fitzherbert – falou, com seu sotaque galês cadenciado fazendo a expressão corriqueira soar melodiosa. Estendeu a mão e os dois se cumprimentaram. A pele dela estava áspera.
Imitando-a, ele passou para um tratamento mais formal:
– Como vai, Sra. Williams?
Ela puxou uma cadeira e se sentou. Enquanto fazia o mesmo, Fitz percebeu que ela havia, com astúcia, colocado os dois em pé de igualdade, sem qualquer intimidade.
– Eu vi o senhor na cerimônia de Aberowen Reck – disse ela. – Fiquei muito triste... – Sua voz engasgou na garganta. Ela baixou os olhos e recomeçou: – Fiquei muito triste quando vi que estava ferido. Espero que esteja melhorando.
– Aos poucos. – Fitz podia ver que a preocupação dela era genuína. Aparentemente, apesar de tudo o que havia acontecido, ela não o odiava. Aquilo o comoveu.
– Como foi que se feriu?
Ele já havia repetido a história tantas vezes que estava cansado de contá-la.
– Foi no primeiro dia da batalha do Somme. Eu praticamente não lutei. Nós saímos da trincheira, passamos pelo arame farpado e começamos a atravessar a terra de ninguém. Então, quando dei por mim, estava sendo levado embora de padiola, sentindo uma dor terrível.
– Meu irmão o viu cair.
Fitz se lembrou do insubordinado cabo William Williams.
– Foi mesmo? O que houve com ele?
– A seção dele capturou uma trincheira alemã, mas depois ficou sem munição e teve que abandoná-la.
Como estava no hospital, Fitz não havia recebido relatório algum sobre o ataque.
– Ele recebeu uma medalha?
– Não. O coronel lhe disse que ele deveria ter defendido a posição até a morte. Billy respondeu “Como assim, igual ao senhor?” e levou uma punição.
Fitz não ficou surpreso. Williams era sinônimo de encrenca.
– Mas o que a senhora está fazendo aqui?
– Eu trabalho com a sua irmã.
– Ela não me disse nada.
Ethel o encarou com olhar firme.
– Ela jamais pensaria que o senhor se interessaria em ter notícias de seus antigos criados.
Era uma provocação, mas ele a ignorou.
– E qual a sua função?
– Sou gerente editorial do jornal The Soldier’s Wife. Organizo a impressão e a distribuição e edito a seção de cartas. Além de administrar o dinheiro.
Ele ficou impressionado. Era um grande passo para uma ex-governanta. Mas ela sempre tivera um talento extraordinário para a organização.
– O meu dinheiro, imagino?
– Creio que não. Maud é cuidadosa. Ela sabe que o senhor não se importa em pagar por chá e bolos, e por cuidados médicos para os filhos dos soldados, mas não usaria seu dinheiro para propaganda contra a guerra.
Ele estava alongando a conversa pelo simples prazer de observar seu rosto enquanto ela falava.
– É isso que o jornal publica? – perguntou. – Propaganda contra a guerra?
– Nós debatemos publicamente o que vocês só mencionam em particular: a possibilidade de paz.
Ela estava certa. Fitz sabia que políticos de alto escalão dos dois partidos vinham conversando sobre a paz, o que o deixava com raiva. Mas não queria discutir com Ethel.
– Seu herói, Lloyd George, é a favor de intensificar os combates.
– O senhor acha que ele será primeiro-ministro?
– Não é o que o rei quer. Mas talvez ele seja o único candidato capaz de unir o Parlamento.
– Temo que ele venha a prolongar a guerra.
Maud saiu de sua sala. O chá estava terminando e as mulheres já recolhiam as xícaras e pires e juntavam seus filhos. Fitz ficou pasmo ao ver tia Herm carregando uma pilha de pratos sujos. Como a guerra mudava as pessoas!
Tornou a olhar para Ethel. Ela ainda era a mulher mais atraente que ele havia conhecido na vida. Cedeu a um impulso e, em voz baixa, perguntou:
– Pode se encontrar comigo amanhã?
Ela pareceu chocada.
– Para quê? – perguntou baixinho.
– Sim ou não?
– Onde?
– Na Victoria Station. À uma da tarde. No acesso à plataforma três.
Antes que ela pudesse responder, o homem de óculos grossos se aproximou e Ethel pôs-se a apresentá-lo:
– Conde Fitzherbert, permita-me lhe apresentar o senhor Bernie Leckwith, presidente do núcleo de Aldgate do Partido Trabalhista Independente.
Fitz o cumprimentou com um aperto de mão. Leckwith tinha 20 e poucos anos. Supôs que a vista ruim o houvesse dispensado das Forças Armadas.
– Sinto muito por vê-lo ferido, lorde Fitzherbert – disse Leckwith com sotaque do East End londrino.
– Fui apenas um entre milhares de outros e tenho sorte de estar vivo.
– Pensando em retrospecto, o senhor acha que nós poderíamos ter feito alguma coisa de diferente na batalha do Somme? Algo que pudesse ter alterado o resultado de forma significativa?
Fitz pensou por alguns instantes. Era uma excelente pergunta.
Enquanto ele pensava, Leckwith acrescentou:
– Será que precisávamos de mais homens e munição, como alegam os generais? Ou de táticas mais flexíveis e de uma comunicação melhor, como dizem os políticos?
– Todas essas coisas teriam ajudado – disse Fitz com ar pensativo –, mas, para falar a verdade, não acho que poderiam ter nos dado a vitória. O ataque já nasceu condenado. Porém não tínhamos como saber disso de antemão. Precisávamos tentar.
Leckwith aquiesceu, como se aquilo confirmasse a própria opinião.
– Obrigado pela sua franqueza – falou, quase como se Fitz houvesse feito uma confissão.
Eles saíram da capela. Fitz levou tia Herm e Maud até o carro que os aguardava, entrou em seguida e o motorista os levou embora dali.
Fitz percebeu que estava ofegante. Havia sofrido um pequeno choque. Três anos antes, Ethel estava contando fronhas em Tŷ Gwyn. Hoje, era gerente editorial de um jornal que, apesar de pequeno, ministros importantes consideravam uma pedra no sapato do governo.
Qual seria o relacionamento dela com Bernie Leckwith, aquele homem de inteligência surpreendente?
– Quem era aquele tal de Leckwith? – perguntou ele a Maud.
– Um político importante da região.
– Ele é marido de Williams?
Maud riu.
– Não, embora todos achem que devesse ser. Ele é um homem brilhante, que compartilha seus ideais e adora o filho dela. Não entendo por que Ethel ainda não se casou com ele.
– Talvez ele não faça o coração dela bater mais depressa.
Maud arqueou as sobrancelhas, e Fitz percebeu que tinha sido perigosamente franco.
– Moças desse tipo querem romance, não é mesmo? – acrescentou depressa. – Ela vai se casar com um herói de guerra, não com um bibliotecário.
– Ethel não é uma moça desse tipo, ou de qualquer outro tipo – disse Maud com a voz um tanto gelada. – Ela é excepcional, isso sim. Não se encontra duas como ela na vida.
Fitz desviou o olhar. Sabia que isso era verdade.
Perguntou-se como seria o menino. Ele deveria ser uma das crianças de cara suja que brincavam no chão da capela. Era provável que tivesse visto o próprio filho naquela tarde. A ideia o deixou estranhamente comovido. Por algum motivo, teve vontade de chorar.
O carro estava passando pela Trafalgar Square. Ele pediu ao motorista que parasse.
– É melhor eu dar um pulo no escritório – explicou a Maud.
Ele entrou mancando no antigo prédio do Almirantado e subiu a escada. Sua mesa ficava na seção diplomática, que ocupava a Sala 45. O subtenente Carver, estudante de latim e grego que viera de Cambridge para ajudar na decodificação dos sinais telegráficos alemães, disse-lhe que, como de hábito, poucas mensagens haviam sido interceptadas durante a tarde, de modo que estava sem nada para fazer. Havia, no entanto, algumas novidades políticas.
– O senhor já soube? – perguntou Carver. – O rei convocou Lloyd George.
Durante toda a manhã seguinte, Ethel disse a si mesma que não iria encontrar Fitz. Como ele se atrevia a sugerir uma coisa dessas? Ela ficara mais de dois anos sem qualquer notícia sua. Então, quando finalmente haviam se encontrado, ele nem lhe perguntara sobre Lloyd – seu próprio filho! Continuava o mesmo enganador egoísta e insensível de sempre.
Ainda assim, ela havia ficado em polvorosa. Fitz a fitara com seus olhos verdes penetrantes e fizera perguntas sobre a sua vida que a deixaram com a sensação de ser importante para ele – apesar de todas as provas em contrário. Não era mais o homem perfeito de antes, quase um deus: seu rosto lindo estava maculado por um olho semicerrado e ele andava curvado sobre a bengala. Porém, aquela debilidade só fazia com que Ethel quisesse cuidar dele. Ela disse a si mesma que era uma boba. O conde tinha todos os cuidados que o dinheiro podia comprar. Não iria encontrá-lo.
Ao meio-dia, ela saiu da redação do The Soldier’s Wife – duas salinhas em cima de uma gráfica, divididas com o Partido Trabalhista Independente – e pegou um ônibus. Maud não estava no jornal naquela manhã, o que poupou Ethel de ter que inventar uma desculpa.
A viagem de ônibus e metrô de Aldgate até a Victoria Station era longa, de modo que Ethel chegou ao encontro alguns minutos depois da uma da tarde. Imaginou que Fitz poderia ter ficado impaciente e ido embora, e a ideia a deixou levemente nauseada; mas ele estava lá, usando um terno de tweed como se estivesse indo para o campo, e ela se sentiu melhor na mesma hora.
Ele sorriu.
– Tive medo de você não vir – falou.
– Não sei por que vim – respondeu ela. – Por que você me chamou aqui?
– Quero lhe mostrar uma coisa. – Ele a tomou pelo braço.
Os dois saíram da estação. Andar de braços dados com ele provocou em Ethel uma satisfação tola. Ficou pasma com a coragem de Fitz. Ele era um homem facilmente reconhecível. E se topassem com algum amigo seu? Ela imaginou que, se fosse o caso, os dois homens fingiriam não ter se visto. Na classe social de Fitz, não se esperava que um homem com alguns anos de casado fosse fiel à esposa.
Eles pegaram um ônibus e, alguns pontos depois, desceram no mal-afamado subúrbio de Chelsea, um bairro de aluguéis baratos ocupado por artistas e escritores. Ethel se perguntou o que ele queria lhe mostrar. Eles percorreram uma rua de casinhas independentes, não geminadas.
– Você já assistiu a um debate no Parlamento? – perguntou Fitz.
– Não – respondeu ela. – Mas adoraria.
– É preciso ser convidado por um membro de uma das câmaras. Quer que eu organize isso?
– Quero, por favor!
Fitz parecia feliz por ela ter aceitado.
– Vou verificar quando haverá algo interessante. Acho que você gostaria de ver Lloyd George em ação.
– Sim!
– Ele hoje está montando seu governo. Imagino que vá beijar a mão do rei como primeiro-ministro ainda esta noite.
Ethel olhou em volta, pensativa. Em alguns trechos, Chelsea ainda se parecia com a aldeia interiorana que havia sido no século anterior. As construções mais antigas eram chalés e casas de fazenda, estruturas baixas com amplos jardins e pomares. Como era dezembro, não havia muito verde, mas, de qualquer forma, o bairro tinha uma agradável atmosfera semirrural.
– A política é uma coisa engraçada – comentou ela. – Desde que aprendi a ler jornal, venho querendo que Lloyd George seja primeiro-ministro, mas, agora que isso aconteceu, estou com medo.
– Por quê?
– Ele é o mais beligerante dos membros do alto escalão do governo. Sua nomeação poderia arruinar qualquer chance de paz. Por outro lado...
Fitz fez uma cara intrigada.
– O quê?
– Ele é o único que pode aceitar discutir a paz sem ser crucificado pelos jornais sensacionalistas de Northcliffe.
– Isso lá é verdade – concordou Fitz, preocupado. – Se qualquer outro fizesse isso, as manchetes iriam bradar: “Fora Asquith... ou Fora Balfour, Fora Bonar Law... e Viva Lloyd George!” Mas, se a imprensa atacar Lloyd George, não vai sobrar mais ninguém.
– Então talvez ainda haja uma esperança de paz.
Ele se permitiu assumir um tom de voz irritado.
– Por que você torce pela paz e não pela vitória?
– Porque foi assim que nós nos metemos nesta encrenca – respondeu ela, sem se alterar. – O que você queria me mostrar?
– Isto aqui. – Ele abriu o trinco de um portão e o segurou para ela passar. Os dois entraram no terreno de uma casa independente de dois andares. O jardim estava abandonado e a casa precisava de pintura, mas era uma residência charmosa, de tamanho médio – o tipo de lugar que poderia pertencer a um músico de sucesso, pensou Ethel, ou talvez a um ator conhecido. Fitz tirou uma chave do bolso e abriu a porta da frente. Ambos entraram, então ele fechou a porta e a beijou.
Ela se deixou levar pelo momento. Fazia muito tempo que ninguém a beijava, e ela se sentiu como um viajante sedento no meio do deserto. Acariciou o pescoço comprido de Fitz e apertou os seios contra o peito dele. Percebeu que ele estava tão ávido quanto ela. Antes de perder o controle, empurrou-o para longe.
– Pare.
– Por quê?
– Da última vez que fizemos isso, eu acabei tendo uma conversa com seu maldito advogado. – Ethel se afastou dele. – Não sou mais tão inocente.
– Desta vez vai ser diferente – disse ele, ofegante. – Fui um tolo por deixar você ir embora. Hoje entendo isso. Eu também era jovem.
Para se acalmar, ela correu os olhos pelos cômodos. Estavam repletos de móveis antigos e fora de moda.
– De quem é esta casa? – perguntou.
– Sua – respondeu ele. – Se você quiser.
Ela o encarou. Aonde ele estava querendo chegar?
– Você poderia morar aqui com a criança – explicou ele. – Durante anos, a casa pertenceu a uma senhora de idade que foi governanta do meu pai. Ela morreu faz alguns meses. Você poderia redecorar tudo e comprar móveis novos.
– Morar aqui? – indagou ela. – Para ser o que sua?
Ele foi incapaz de dizer a palavra.
– Sua amante? – insistiu ela.
– Você pode ter uma babá, uma ou duas criadas e um jardineiro. Até um carro com motorista, se quiser.
A única parte que a seduzia naquilo tudo era ele.
Fitz, no entanto, interpretou mal a expressão pensativa de Ethel.
– A casa é pequena demais? Você preferiria morar em Kensington? Quer um mordomo e uma governanta? Será que não entende que eu lhe darei tudo o que você quiser? A minha vida sem você é vazia.
Ethel viu que ele estava dizendo a verdade. Pelo menos a verdade daquele momento, em que estava excitado e insatisfeito. Porém havia sentido na própria carne a rapidez com que ele podia mudar de ideia.
Mas o problema era que também estava louca por ele.
Fitz deve ter lido isso em seu rosto, pois tornou a abraçá-la. Ela ergueu o rosto para ser beijada. Quero mais disso, pensou.
Mais uma vez, livrou-se do abraço antes de perder o controle.
– E então? – perguntou ele.
Ela não poderia tomar uma decisão sensata com ele a beijando daquela forma.
– Eu preciso ficar sozinha – falou. Forçou-se a se afastar dele antes que fosse tarde demais. – Deixe-me ir para casa – continuou, abrindo a porta. – Preciso de tempo para pensar. – Na soleira, ela hesitou.
– Pense quanto quiser – disse ele. – Eu espero.
Ela fechou a porta e saiu correndo.
Gus Dewar estava na National Gallery, na Trafalgar Square, parado diante do Autorretrato aos 63 anos, de Rembrandt, quando uma mulher ao seu lado falou:
– Que homem mais feio!
Gus se virou e ficou surpreso ao reconhecer Maud Fitzherbert.
– Quem? Eu ou Rembrandt? – perguntou, fazendo-a rir.
Os dois saíram passeando juntos pela galeria.
– Que coincidência agradável encontrá-la aqui – disse ele.
– Na verdade, eu vi o senhor entrar e o segui – confessou ela. Baixou a voz: – Queria lhe perguntar por que os alemães ainda não fizeram a proposta de paz que o senhor me contou ser iminente.
Gus não sabia a resposta.
– Talvez eles tenham mudado de ideia – falou, desanimado. – Na Alemanha, assim como aqui, existe uma facção que defende a paz e outra que defende a guerra. Talvez a facção a favor da guerra tenha levado a melhor e conseguido fazer o Kaiser mudar de ideia.
– Mas não é possível que eles não entendam que batalhas não fazem mais a menor diferença! – disse ela, exasperada. – O senhor leu nos matutinos de hoje que os alemães tomaram Bucareste?
Gus fez que sim com a cabeça. A Romênia havia declarado guerra em agosto e, durante algum tempo, os britânicos tinham alimentado esperanças de que aquela nova aliada pudesse desferir um golpe certeiro – mas a Alemanha invadira o país em setembro, e agora a capital romena havia caído.
– Na verdade, esse desfecho é bom para a Alemanha, que passou a ter nas mãos o petróleo romeno.
– Exatamente – disse Maud. – É a mesma coisa de sempre: um passo para a frente, um passo para trás. Quando nós vamos aprender?
– A nomeação de Lloyd George como primeiro-ministro não é animadora – comentou Gus.
– Ah! Talvez nisso o senhor esteja enganado.
– Será? Ele construiu sua reputação política pelo fato de ser mais agressivo do que todos os outros. Seria difícil para ele conseguir a paz depois disso.
– Não tenha tanta certeza. Lloyd George é imprevisível. Ele poderia mudar de ideia. Isso surpreenderia apenas os que tiveram a ingenuidade de considerá-lo sincero.
– Bem, já é uma esperança.
– Ainda assim, eu gostaria que tivéssemos uma primeira-ministra mulher.
Gus duvidava que isso algum dia fosse acontecer, mas ficou calado.
– Eu queria lhe perguntar mais uma coisa – disse ela, e então se interrompeu.
Gus virou-se de frente para ela. Talvez os quadros houvessem lhe aguçado a sensibilidade, mas ele se pegou admirando seu rosto. Reparou nos contornos bem marcados do nariz e do queixo, nas maçãs do rosto protuberantes, no pescoço comprido. Os traços angulosos eram suavizados pelos lábios carnudos e pelos grandes olhos verdes.
– Fique à vontade – falou ele.
– O que Walter lhe disse?
Gus recordou aquela surpreendente conversa no bar do Hotel Adlon, em Berlim.
– Que precisava me revelar um segredo. Mas depois não me disse qual era ele.
– Ele pensou que o senhor fosse conseguir adivinhar.
– O que adivinhei foi que ele deve estar apaixonado pela senhorita. E, pela sua reação quando lhe entreguei a carta em Tŷ Gwyn, pude ver que o amor dele é correspondido. – Gus sorriu. – Se me permite dizer, ele é um homem de sorte.
Ela aquiesceu e Gus leu em sua expressão algo semelhante a alívio. O segredo não deve ser só esse, percebeu; era por isso que ela precisava descobrir quanto ele sabia. Ele se perguntou o que mais os dois estariam escondendo. Talvez estivessem noivos.
Eles seguiram andando pela galeria. Entendo por que ele a ama, pensou Gus. Eu mesmo poderia me apaixonar por você em um piscar de olhos.
Ela tornou a surpreendê-lo ao perguntar de repente:
– O senhor já se apaixonou, Sr. Dewar?
Era uma pergunta invasiva, mas ele respondeu assim mesmo:
– Já... duas vezes.
– Mas não está mais apaixonado.
Ele sentiu um impulso de se confidenciar com ela.
– No ano que a guerra foi declarada, cometi o deslize de me apaixonar por uma mulher já casada.
– Ela o amava?
– Sim.
– O que aconteceu?
– Eu lhe pedi que deixasse o marido para ficar comigo. Foi muito errado da minha parte, e sei que a senhorita vai ficar chocada. Mas ela era uma pessoa melhor do que eu e recusou minha proposta imoral.
– Eu não me choco com facilidade. E a segunda vez?
– No ano passado, fiquei noivo de uma moça na minha cidade natal, Buffalo; mas ela se casou com outro homem.
– Oh! Eu sinto muito. Talvez eu não devesse ter perguntado. Despertei uma lembrança dolorosa.
– Extremamente dolorosa.
– Espero que me perdoe, mas preciso dizer que isso me deixa mais tranquila. É que, então, o senhor sabe quanto sofrimento o amor pode provocar.
– É, sei mesmo.
– Mas talvez a paz venha, no fim das contas, e meu sofrimento termine em breve.
– Espero muito que sim, lady Maud – disse Gus.
Ethel remoeu por dias a fio a proposta de Fitz. Congelando no quintal dos fundos de sua casa enquanto girava a manivela para torcer a roupa, imaginou-se naquela bela casa de Chelsea, com Lloyd correndo pelo jardim vigiado por uma babá atenta. “Eu lhe darei tudo o que você quiser”, dissera Fitz, e ela sabia que era verdade. Ele poria a casa em seu nome. Viajaria com ela para a Suíça e para o sul da França. Com algum esforço, poderia obrigá-lo a lhe pagar uma pensão anual, de modo que teria uma renda até o dia de sua morte, mesmo que ele se cansasse dela – embora também soubesse que era capaz de garantir que isso nunca acontecesse.
Aquilo era vergonhoso, repugnante, disse ela a si mesma com severidade. Ela seria uma mulher paga para fazer sexo – e o que significava a palavra “prostituta” senão isso? Nunca poderia convidar os pais para visitar seu refúgio em Chelsea: eles saberiam na hora o que aquilo significava.
Mas será que estava ligando para isso? Talvez não, mas precisava levar outras coisas em conta. Ela queria mais da vida além de conforto. Como amante de um milionário, não poderia continuar militando em prol das mulheres da classe trabalhadora. Seria o fim de sua vida política. Perderia o contato com Bernie e Mildred – e até mesmo encontrar Maud seria constrangedor.
Mas quem era ela para pedir tanto da vida? Era Ethel Williams, nascida na casa humilde de um minerador de carvão! Como poderia desdenhar uma vida inteira de conforto? Isso sim é tirar a sorte grande, disse a si mesma, usando um dos jargões de Bernie.
Além disso, havia Lloyd. Ele teria uma governanta e, futuramente, Fitz lhe pagaria uma escola grã-fina. Ele cresceria rodeado pela elite e teria uma vida privilegiada. Será que Ethel tinha o direito de lhe negar isso?
Não estava nem perto de encontrar uma resposta quando abriu o jornal na sala que dividia com Maud e ficou sabendo sobre uma outra proposta dramática. No dia 12 de dezembro, o chanceler alemão Theobald von Bethmann-Hollweg havia proposto negociações de paz com os Aliados.
Ethel ficou radiante. Paz! Seria mesmo possível? Será que Billy voltaria para casa?
Na mesma hora, o premiê francês descreveu a mensagem como um golpe ardiloso, enquanto o ministro das Relações Exteriores russo denunciou as “propostas mentirosas” dos alemães, porém Ethel acreditava que somente a reação da Grã-Bretanha contaria de verdade.
Alegando uma inflamação na garganta, Lloyd George não estava fazendo nenhum tipo de pronunciamento público. Em dezembro, metade dos londrinos tinha tosses e resfriados, mas, mesmo assim, Ethel desconfiou que Lloyd George quisesse apenas tempo para pensar. Interpretou isso como um bom sinal. Uma resposta imediata teria sido negativa; qualquer outra coisa dava margem a esperança. Ele pelo menos estava cogitando a paz, pensou ela com otimismo.
Nesse meio-tempo, o presidente Wilson pôs o peso dos Estados Unidos na balança a favor da paz. Sua sugestão era que, em preparação às negociações, todas as potências em conflito afirmassem seus objetivos, ou seja, o que estavam tentando obter com os combates.
– Isso os deixou constrangidos – disse Bernie Leckwith naquela mesma noite. – Eles já esqueceram por que começaram a guerra. Agora só estão lutando porque querem vencer.
Ethel se lembrou do que a Sra. Dai dos Pôneis tinha dito sobre a greve: Quando os homens entram em uma briga, só pensam em ganhar. Seja qual for o custo, não desistem. Perguntou-se como uma primeira-ministra mulher teria reagido a uma proposta de paz.
Com o passar dos dias, no entanto, percebeu que Bernie tinha razão. A sugestão do presidente Wilson foi recebida com um estranho silêncio. Nenhum dos países respondeu de imediato. Isso deixou Ethel com mais raiva ainda. Como podiam continuar a guerra quando nem sequer sabiam por que estavam lutando?
No final da semana, Bernie organizou uma assembleia geral para debater o comunicado dos alemães. No dia da reunião, Ethel acordou e viu o irmão em pé ao lado de sua cama, vestindo seu uniforme cáqui.
– Billy! – exclamou. – Você está vivo!
– E tenho uma semana de licença – respondeu ele. – Saia já da cama, sua preguiçosa.
Ela se levantou com um salto, vestiu um roupão por cima da camisola e o abraçou.
– Ai, Billy, estou tão feliz em ver você! – Reparou nas listras em sua manga. – Você agora é sargento?
– Sou.
– Como foi que entrou em casa?
– Mildred abriu a porta para mim. Na verdade, eu cheguei ontem à noite.
– Onde você dormiu?
Ele pareceu acanhado.
– Lá em cima.
Ethel sorriu.
– Garoto de sorte.
– Eu gosto muito dela, Eth.
– Eu também – respondeu Ethel. – Mildred é ouro puro. Você vai se casar com ela?
– Se eu sobreviver à guerra, vou.
– Não liga para a diferença de idade?
– Ela tem 23 anos. Não é uma velha de 30 nem nada.
– E as meninas?
Billy deu de ombros.
– Elas são boazinhas, mas, mesmo que não fossem, eu as aturaria pela Mildred.
– Então você a ama mesmo.
– Não é difícil.
– Ela abriu um pequeno negócio, você deve ter visto quanto chapéu tem lá no quarto dela.
– Eu sei. E, pelo que ela diz, está indo bem.
– Muito bem. Ela é trabalhadora. Tommy veio com você?
– Ele pegou o mesmo navio que eu, mas já embarcou no trem para Aberowen.
Lloyd acordou, viu um desconhecido no quarto e começou a chorar. Ethel o pegou no colo para acalmá-lo.
– Venha até a cozinha – disse ela para Billy. – Vou preparar o café da manhã para nós.
Enquanto ela fazia um mingau, Billy se sentou e começou a ler o jornal. Depois de alguns instantes, exclamou:
– Maldição!
– O que foi?
– Estou vendo que o desgraçado do Fitzherbert andou abrindo aquela boca grande. – Ele olhou para Lloyd, quase como se o bebê pudesse ficar ofendido com aquela referência insultuosa ao pai.
Ethel olhou por cima do ombro do irmão e leu:
PAZ: A SÚPLICA DE UM SOLDADO
“Não nos abandonem agora!”
Conde ferido conta sua história
Um discurso comovente contra a atual proposta do chanceler alemão para iniciar negociações de paz foi pronunciado ontem na Câmara dos Lordes. O orador, conde Fitzherbert, major dos Fuzileiros Galeses, está em Londres convalescendo de ferimentos sofridos durante a batalha do Somme.
Segundo lorde Fitzherbert, negociar a paz com os alemães seria uma traição a todos os homens que perderam a vida na guerra. “Nós acreditamos estar vencendo e podemos obter uma vitória total contanto que vocês não nos abandonem agora”, disse ele.
De uniforme, usando um tapa-olho e apoiado em uma bengala, o conde causou forte impressão na Câmara. Foi ouvido em meio a um silêncio absoluto e ovacionado ao se sentar.
O texto prosseguia longamente no mesmo tom. Ethel ficou horrorizada. Aquilo era uma conversa oca sentimentaloide, mas iria funcionar. Fitz não costumava usar o tapa-olho – devia tê-lo posto só para impressionar. Seu discurso faria com que muitos se opusessem ao plano de paz.
Ela tomou o café com Billy, depois vestiu Lloyd, trocou de roupa e saiu de casa. Billy iria passar o dia com Mildred, mas prometeu ir à assembleia daquela noite.
Quando Ethel chegou à redação do The Soldier’s Wife, viu que todos os jornais haviam reproduzido o discurso de Fitz. Vários deles o haviam publicado na manchete. As opiniões diferiam, mas todos concordavam que o conde havia desferido um golpe devastador.
– Como alguém pode ser contra um simples debate sobre a paz? – perguntou ela a Maud.
– Pergunte a ele você mesma – respondeu Maud. – Eu o convidei à assembleia de hoje à noite, e ele aceitou.
Ethel se espantou.
– Ele vai ter uma acolhida calorosa!
– Espero sinceramente que sim.
As duas passaram o dia preparando uma edição especial do jornal com a manchete PEQUENO RISCO DE PAZ. Maud gostou da ironia, mas Ethel a achou sutil demais. No final da tarde, Ethel foi pegar Lloyd na casa da babá, levou-o para casa, deu-lhe comida e o pôs na cama. Deixou-o aos cuidados de Mildred, que não frequentava reuniões políticas.
O Salão do Evangelho do Calvário já estava ficando cheio quando Ethel chegou e, em pouco tempo, só restavam lugares em pé. Na plateia havia muitos soldados e marinheiros de uniforme. Bernie presidia a assembleia. Começou com um discurso próprio que, embora curto, conseguiu ser enfadonho – ele não era bom orador. Então chamou o primeiro palestrante convidado, um filósofo da Universidade de Oxford.
Ethel conhecia os argumentos a favor da paz melhor do que o filósofo e, enquanto ele falava, ficou analisando os dois homens que a estavam cortejando. Fitz era o resultado de centenas de anos de riqueza e cultura. Como sempre, estava lindamente vestido, com os cabelos bem cortados, as mãos brancas e as unhas limpas. Bernie vinha de uma tribo de nômades perseguidos que haviam sobrevivido sendo mais inteligentes do que seus algozes. Usava o único terno que possuía, de sarja pesada cinza-escura. Ethel jamais o vira vestir qualquer outra coisa: quando fazia calor, ele simplesmente tirava o paletó.
A plateia escutava em silêncio. O movimento trabalhista estava cindido quanto à paz. Ramsay MacDonald, que discursara no Parlamento em 3 de agosto de 1914 contra a entrada da Grã-Bretanha no conflito, havia pedido demissão do cargo de líder do Partido Trabalhista quando a guerra foi declarada dois dias depois. Desde então, os membros do partido no Parlamento vinham defendendo a guerra, assim como a maioria de seus eleitores. Contudo, as pessoas que apoiavam os trabalhistas, em geral, eram as mais céticas da classe trabalhadora, de modo que havia uma forte minoria a favor da paz.
Fitz começou falando sobre as valorosas tradições britânicas. Durante centenas de anos, afirmou ele, a Grã-Bretanha havia mantido o equilíbrio de poder na Europa, geralmente tomando o partido das nações mais fracas para que não houvesse tirania por parte de nenhum país.
– O chanceler alemão não disse nada sobre os termos de um acordo de paz, mas qualquer discussão teria de começar pelo status quo – disse ele. – A paz agora significa que a França será humilhada e privada de parte de seu território e que a Bélgica virará um satélite. A Alemanha dominaria o continente por uma simples questão de poderio militar. Não podemos permitir que isso aconteça. Temos que lutar pela vitória.
Quando o debate foi aberto, Bernie disse:
– O conde Fitzherbert está aqui em caráter puramente individual, não como oficial do Exército, e ele me deu sua palavra de honra de que os soldados da ativa que estiverem na plateia não serão punidos por nada do que disserem. Caso contrário, nós não o teríamos convidado a participar da assembleia.
O próprio Bernie fez a primeira pergunta. Como sempre, muito boa.
– Lorde Fitzherbert, segundo a sua análise, se a França for humilhada e perder território, isso irá desestabilizar a Europa.
Fitz aquiesceu.
– Ao passo que, se a Alemanha for humilhada e perder os territórios da Alsácia e da Lorena, como sem dúvida seria o caso, isso traria estabilidade ao continente.
Ethel pôde ver que Fitz ficou momentaneamente sem ação. Não previra ter de lidar com uma oposição tão feroz ali no East End. Em termos intelectuais, o conde não era páreo para Bernie. Ela sentiu um pouco de pena dele.
– Por que a diferença? – concluiu Bernie, ao que se ouviu um murmúrio de aprovação dos defensores da paz na plateia.
Fitz se recuperou depressa.
– A diferença – respondeu ele – é que a Alemanha é o agressor, um agressor brutal, militarista e cruel, de modo que, se nós negociássemos a paz agora, estaríamos recompensando esse comportamento e incentivando que ele se repita no futuro!
Isso provocou vivas da outra parte da plateia, o que preservou a dignidade de Fitz, mas o argumento era fraco, pensou Ethel, e Maud se levantou para dizer isso.
– A guerra não foi culpa de uma só nação! – disse ela. – Culpar a Alemanha se tornou lugar-comum, e os nossos jornais belicistas incentivam esse conto de fadas. Quando recordamos a invasão da Bélgica pela Alemanha, falamos como se ela tivesse ocorrido sem qualquer provocação. Esquecemos a mobilização de seis milhões de soldados russos na fronteira alemã. Esquecemos a recusa francesa em declarar neutralidade. – Alguns homens a vaiaram. Nunca se é ovacionado por dizer às pessoas que a situação não é tão simples quanto elas acham, pensou Ethel. – Não estou dizendo que a Alemanha é inocente! – protestou Maud. – Mas sim que nenhum país é inocente. Que não estamos lutando pela estabilidade na Europa nem para que os belgas tenham justiça, nem muito menos para punir o militarismo alemão. Estamos lutando porque somos orgulhosos demais para admitir que cometemos um erro!
Um soldado uniformizado se levantou para falar e Ethel viu, orgulhosa, que era Billy.
– Eu lutei no Somme – começou ele, ao que a plateia se calou. – Quero contar a vocês por que nós perdemos tantos homens lá. – Ethel ouviu a mesma voz forte e a mesma convicção serena do pai e percebeu que Billy teria dado um ótimo pregador. – Nossos oficiais... – Nessa hora, ele esticou o braço e apontou um dedo acusador para Fitz: – ... nos disseram que o ataque seria moleza.
Ethel viu Fitz se remexer, pouco à vontade, em sua cadeira no tablado.
– Eles nos disseram que nossa artilharia tinha destruído as posições inimigas, arrasado suas trincheiras e demolido seus abrigos e que – prosseguiu Billy –, quando chegássemos ao outro lado, veríamos apenas alemães mortos.
Ethel observou que ele não estava se dirigindo às pessoas sobre o tablado, mas sim olhando em volta, percorrendo a plateia com um olhar intenso para garantir que todos olhassem para ele.
– Por que eles nos disseram isso? – indagou Billy, passando a olhar diretamente para Fitz e falando com uma ênfase calculada. – Esse monte de mentiras. – Um murmúrio de aprovação veio da plateia.
Ethel viu o semblante de Fitz se turvar. Sabia que, para homens da sua classe, ser chamado de mentiroso era o maior de todos os insultos. Billy também sabia disso.
– As posições alemãs não tinham sido destruídas – disse Billy –, como nós descobrimos ao dar de cara com rajadas de metralhadora.
Desta vez, a reação da plateia foi menos discreta. Alguém gritou:
– Vergonhoso!
Fitz se levantou para dizer alguma coisa, mas Bernie falou:
– Um instante, lorde Fitzherbert, por favor, deixe a pessoa que está com a palavra terminar. – Fitz se sentou, balançando a cabeça com força de um lado para outro.
Billy ergueu a voz:
– Por acaso nossos oficiais verificaram, por reconhecimento aéreo e pelo envio de patrulhas, quanto estrago nossa artilharia havia realmente causado às linhas alemãs? Caso contrário, por que não checaram?
Fitz tornou a se levantar, furioso. Alguns dos presentes aplaudiram, outros vaiaram. Ele começou a falar:
– Vocês não entendem! – disse ele.
Mas a voz de Billy foi mais forte.
– Se eles conheciam a verdade – exclamou –, por que nos disseram o contrário?
Fitz começou a gritar, e metade da plateia também estava aos berros, porém Billy conseguiu se fazer ouvir acima de tudo isso.
– Estou fazendo uma pergunta simples! – rugiu ele. – Nossos oficiais são tolos... ou mentirosos?
Ethel recebeu uma carta na caligrafia grande e firme de Fitz, escrita em seu papel timbrado caro, encabeçado pelo brasão da família. Ele não mencionava a assembleia em Aldgate, mas a convidava para ir ao Palácio de Westminster no dia seguinte, terça-feira, 19 de dezembro, sentar-se na galeria da Câmara dos Comuns e ouvir o primeiro discurso de Lloyd George como primeiro-ministro. Ela ficou animada. Nunca tinha pensado que um dia fosse ver o interior do Palácio de Westminster, quanto mais ouvir seu herói falar.
– Por que você acha que ele a convidou? – perguntou Bernie naquela noite, indo, como sempre, ao xis da questão.
Ethel não tinha uma resposta plausível para isso. Gentileza pura e simples nunca fizera parte do temperamento de Fitz. Ele sabia ser altruísta quando isso lhe convinha. Bernie, com toda a sua sagacidade, perguntava-se se o conde queria algo em troca.
Bernie tinha um temperamento mais cerebral do que intuitivo, porém havia notado uma conexão entre Fitz e Ethel e reagira tornando-se levemente amoroso. Nada dramático, pois esse não era seu estilo, mas ele segurava sua mão por alguns instantes a mais do que deveria, aproximava-se dela um pouco mais do que seria confortável, afagava seu ombro ao lhe dirigir a palavra e segurava-lhe o cotovelo quando ela descia algum degrau. Sentindo-se de uma hora para outra inseguro, Bernie tentava dizer, por meio desses gestos instintivos, que Ethel lhe pertencia. Infelizmente, ela achava difícil não se retrair quando ele agia dessa forma. Fitz havia sido um lembrete cruel do que ela não sentia por Bernie.
Maud chegou à redação às dez e meia de terça-feira e as duas passaram a manhã toda trabalhando juntas. Maud não podia redigir a manchete da edição seguinte antes de Lloyd George ter pronunciado seu discurso, mas havia muitas outras coisas no jornal: classificados de empregos, anúncios de babás, conselhos sobre saúde feminina e infantil escritos pelo Dr. Greenward, receitas e cartas.
– Fitz ficou revoltado com aquela assembleia – comentou Maud.
– Eu lhe disse que ele iria passar maus bocados.
– Com isso ele não se importa – respondeu Maud. – Mas Billy o chamou de mentiroso.
– Tem certeza de que não é só porque Billy ganhou a discussão?
Maud deu um sorriso pesaroso.
– Talvez.
– Só espero que ele não faça Billy pagar por isso.
– Não vai fazer – disse Maud com firmeza. – Seria descumprir sua palavra.
– Ótimo.
As duas almoçaram em um café na Mile End Road. “Uma boa parada para motoristas”, dizia a placa do lado de fora, e o lugar estava de fato cheio de caminhoneiros. Maud foi recebida com alegria pelos funcionários do balcão. Elas comeram empadão de carne com ostras, que eram acrescentadas, por serem baratas, para compensar a pouca quantidade de carne.
Depois do almoço, pegaram um ônibus e atravessaram Londres até o West End. Ethel ergueu os olhos para o mostrador gigantesco do Big Ben e viu que eram três e meia. O pronunciamento de Lloyd George estava marcado para as quatro. Ele tinha o poder de pôr fim à guerra e salvar milhões de vidas. Será que iria fazê-lo?
Lloyd George sempre havia lutado pelos trabalhadores. Antes da guerra, enfrentara a Câmara dos Lordes e o rei para instituir as pensões para os idosos. Ethel sabia quanto isso significava para as pessoas pobres de mais idade. No primeiro dia em que o benefício foi pago, tinha visto mineradores aposentados – homens outrora fortes, agora curvados e trêmulos – saírem da agência de correios de Aberowen chorando de alegria por não serem mais miseráveis. Foi então que Lloyd George se tornou um herói da classe operária. Os lordes queriam gastar o dinheiro com a Marinha Real.
Eu poderia escrever seu discurso de hoje, pensou ela. Diria o seguinte: “Há horas na vida de um homem, e na vida de uma nação, em que é correto dizer: eu fiz tudo o que pude e não sou capaz de fazer mais, portanto abandonarei a luta e buscarei outro caminho. Uma hora atrás, eu ordenei um cessar-fogo em toda a linha de combate britânica na França. Senhores, as armas se calaram.”
Era possível. Os franceses ficariam furiosos, mas teriam que acatar o cessar-fogo, ou correr o risco de os britânicos assinarem uma paz em separado e os condenarem a uma derrota certa. O acordo de paz seria duro para França e Bélgica, mas não tanto quanto perder outros milhões de vidas.
Isso seria um ato digno de um grande chefe de Estado. Seria também o fim da carreira política de Lloyd George: nenhum eleitor votaria no homem que havia perdido a guerra. Mas que saída magistral!
Fitz a aguardava no saguão central. Junto com ele estava Gus Dewar. O americano sem dúvida estava tão ansioso quanto todos para descobrir como Lloyd George reagiria à iniciativa de paz.
Os quatro subiram a longa escadaria até a galeria e tomaram seus lugares com vista para a Câmara. Fitz sentou-se à direita de Ethel e Gus à esquerda. Abaixo deles, as fileiras de bancos de couro verde dos dois lados do salão já estavam cheias de membros do Parlamento, com exceção dos poucos lugares na primeira fila, tradicionalmente reservados para o gabinete.
– Não falta um só membro do Parlamento! – disse Maud em voz alta.
Um dos funcionários da Câmara, vestindo libré, composta por uma calça de veludo na altura dos joelhos e meias brancas, disse com diligência:
– Silêncio, por favor!
Um dos parlamentares estava de pé, falando, mas quase ninguém lhe dava atenção. Todos aguardavam o novo primeiro-ministro. Em voz baixa, Fitz disse a Ethel:
– Seu irmão me ofendeu.
– Ah, coitadinho – disse Ethel, irônica. – Você ficou magoado?
– Antigamente, as pessoas duelavam por menos.
– Que ideia mais sensata para o século XX.
O sarcasmo dela não o atingiu.
– Ele sabe quem é o pai de Lloyd?
Ethel hesitou: não queria lhe contar a verdade, tampouco mentir.
A hesitação dela confirmou suas suspeitas.
– Entendo – comentou Fitz. – Isso explica a virulência dele.
– Não me parece haver necessidade de procurar um motivo oculto – disse ela. – Você não acha que o que aconteceu no Somme é suficiente para deixar os soldados com raiva?
– Ele deveria ser levado à corte marcial por insolência.
– Mas você prometeu não...
– É – falou ele, contrariado. – Infelizmente, eu prometi.
Lloyd George adentrou a Câmara.
Era um homem baixo e franzino, vestido de fraque, com os cabelos meio compridos um pouco desgrenhados e o bigode farto já inteiramente branco. Tinha 53 anos, mas havia energia no seu andar – e, quando ele se sentou e disse algo para um dos parlamentares, Ethel viu o conhecido sorriso das fotografias dos jornais.
Ele começou seu discurso às quatro e dez. Com a voz um tanto rouca, disse que estava com a garganta inflamada. Fez uma pausa, então prosseguiu:
– Compareço hoje diante da Câmara dos Comuns carregando a mais terrível responsabilidade que pode recair sobre os ombros de qualquer homem.
Bom começo, pensou Ethel. Pelo menos ele não iria desdenhar o comunicado dos alemães como um truque ou uma distração sem importância, como os franceses e russos haviam feito.
– Qualquer homem ou grupo de homens que, de forma deliberada ou sem motivos suficientes, prolongasse um conflito terrível como este carregaria na alma um crime que nem mesmo todos os oceanos seriam capazes de lavar.
Um toque bíblico, pensou Ethel: uma referência ao ritual da lavagem dos pecados da Igreja Batista.
Mas então, qual um pregador, o primeiro-ministro afirmou o contrário:
– Mas qualquer homem ou grupo de homens que, por cansaço ou desespero, abandonasse a luta sem que o objetivo maior que nos fez entrar nela houvesse sido totalmente alcançado seria responsável pelo mais oneroso ato de covardia jamais perpetrado por qualquer chefe de Estado.
Ansiosa, Ethel se remexeu na cadeira. Para que lado ele iria tender? Pensou na Quarta-feira dos Telegramas em Aberowen, tornando a vislumbrar a expressão de dor das famílias. Com certeza Lloyd George, mais do qualquer outro político, não permitiria que um sofrimento como aquele continuasse se pudesse evitá-lo. Caso contrário, de que adiantaria estar na política?
George citou Abraham Lincoln:
– Nós aceitamos essa guerra em nome de um objetivo, e de um objetivo digno, e a guerra terminará quando ele for alcançado.
Isso não era nada promissor. Ethel teve vontade de lhe perguntar que objetivo era esse. Woodrow Wilson tinha feito a mesma pergunta e ainda estava aguardando que fosse respondida. Ela, no entanto, continuou sem resposta. Lloyd George falou:
– Existe alguma possibilidade de alcançarmos esse objetivo aceitando a proposta do chanceler alemão? Essa é a única pergunta que devemos nos fazer.
Ethel sentiu-se frustrada. Como essa questão poderia ser discutida se ninguém sabia qual era o objetivo da guerra?
Lloyd George ergueu a voz como um pregador prestes a se referir ao inferno:
– Participar de uma conferência a convite da Alemanha, que se proclama vitoriosa, sem termos a menor ideia de que propostas ela pretende fazer... – Ele então fez uma pausa e correu os olhos pela Câmara, olhando primeiro para os liberais às suas costas e à sua direita e, em seguida, para os conservadores na bancada da oposição, do outro lado do recinto. – ... significa enlaçar nosso próprio pescoço com a corda que a Alemanha tem nas mãos!
Os membros do Parlamento soltaram um rugido de aprovação.
Ele estava rejeitando a proposta de paz.
Ao lado de Ethel, Gus Dewar enterrou o rosto nas mãos.
– E quanto a Alun Pritchard, morto na batalha do Somme? – perguntou Ethel em voz alta.
– Silêncio! – disse o funcionário da Câmara.
Ethel se levantou.
– Sargento Profeta Jones, morto! – gritou ela.
– Fique quieta e sente-se, pelo amor de Deus! – falou Fitz.
Lá embaixo, na Câmara, Lloyd George continuava a falar, embora um ou dois parlamentares tivessem erguido os olhos para a galeria.
– Clive Pugh! – gritou ela a plenos pulmões.
Dois funcionários vieram na sua direção, um de cada lado.
– Llewellyn Espinhento!
Eles a agarraram pelos braços e a levaram embora.
– Joey Ponti! – berrou Ethel, e então eles a arrastaram porta afora.
Janeiro e fevereiro de 1917
Walter von Ulrich sonhou que estava em uma carruagem indo encontrar Maud. Ao descer uma encosta, a carruagem começou a acelerar perigosamente, sacolejando pela estrada irregular. “Mais devagar! Mais devagar!”, gritou ele, porém o condutor não conseguia escutá-lo por causa do barulho dos cascos dos cavalos, que lembrava estranhamente o motor de um carro. Walter estava apavorado com a possibilidade de a carruagem desembestada acabar batendo e ele jamais chegar até Maud. Quando tentou novamente dizer ao condutor para ir mais devagar, o esforço de gritar o despertou.
Na realidade, ele estava dentro de um carro, um Mercedes 37/95 Double Phaeton, conduzido por um chofer, que percorria a baixa velocidade uma estrada acidentada na Silésia. Sentado ao seu lado, seu pai fumava um charuto. Eles haviam deixado Berlim de manhã bem cedo, ambos usando casacos de pele – o carro não tinha capota –, e seguiam para o leste, rumo ao quartel-general do alto-comando.
O sonho era fácil de interpretar. Os Aliados haviam rejeitado com desdém a proposta de paz que Walter se esforçara tanto para obter. Essa rejeição havia fortalecido as Forças Armadas alemãs, que desejavam reiniciar a guerra submarina irrestrita e afundar todas as embarcações que estivessem na zona de guerra, fossem elas militares ou civis, de passageiros ou de carga, inimigas ou neutras. Com isso, pretendiam fazer a Grã-Bretanha e a França passarem fome e se renderem. Os políticos, sobretudo o chanceler, temiam que esse fosse o caminho da derrota, pois provavelmente faria os Estados Unidos entrarem no conflito, contudo os partidários da guerra submarina estavam vencendo. O Kaiser havia demonstrado sua inclinação ao promover o beligerante Arthur Zimmermann a ministro das Relações Exteriores. E Walter havia sonhado com uma descida irrefreável ladeira abaixo rumo ao desastre.
A seu ver, o maior perigo para a Alemanha eram os Estados Unidos. O objetivo da política externa alemã deveria ser manter os americanos fora da guerra. Era verdade que o bloqueio naval aliado estava fazendo a Alemanha passar fome. Porém os russos não iriam aguentar muito mais e, quando capitulassem, a Alemanha invadiria as regiões abastadas do oeste e do sul do Império Russo, com suas vastas lavouras de milho e seus poços de petróleo inesgotáveis. E, então, todo o Exército alemão iria poder se concentrar na frente ocidental. Essa era a única esperança.
Mas será que o Kaiser veria isso?
A decisão final seria tomada naquele dia.
Uma luz fraca de inverno começava a iluminar a zona rural, coberta de neve em alguns trechos. Walter se sentia um irresponsável por estar tão longe da linha de frente.
– Eu já deveria ter voltado para o front há semanas – falou.
– Está claro que o Exército quer você na Alemanha – disse Otto. – Eles prezam seu trabalho como analista de informações de inteligência.
– A Alemanha está cheia de homens mais velhos que poderiam fazer esse serviço no mínimo tão bem quanto eu. Foi o senhor quem arranjou isso?
Otto deu de ombros.
– Imagino que, se você se casasse e tivesse um filho, poderia ser transferido para onde quisesse.
– O senhor está me mantendo em Berlim para me fazer casar com Monika von der Helbard? – perguntou Walter, incrédulo.
– Eu não tenho poder para tanto. Mas talvez haja homens no alto-comando que compreendam a necessidade de preservarmos as linhagens da nobreza.
Isso era uma hipocrisia, e Walter estava prestes a protestar quando o carro saiu da estrada, atravessou um portão ornamentado e começou a subir um longo acesso margeado por árvores sem folhas e gramados cobertos de neve. No final do acesso, havia uma casa imensa, a maior que Walter já vira na Alemanha.
– Este é o Castelo Pless? – perguntou ele.
– Exato.
– É enorme.
– Trezentos quartos.
Eles desceram do carro e adentraram um saguão do tamanho de uma estação ferroviária. As paredes estavam decoradas com cabeças de javali emolduradas de seda vermelha e uma escadaria de mármore gigantesca conduzia aos salões do segundo piso. Walter havia passado metade da vida frequentando lugares esplêndidos, mas aquele ali era excepcional.
Um general os abordou, e Walter reconheceu Von Henscher, um dos amigos de seu pai.
– Os senhores ainda têm tempo para tomar um banho e passar uma escova nas roupas se forem rápidos. – falou o general, dirigindo-se a Otto em um tom urgente porém amistoso. – Estão sendo aguardados no salão de jantar daqui a 40 minutos. – Ele olhou para Walter. – Este deve ser o seu filho.
– Ele trabalha no departamento de inteligência – respondeu Otto.
Walter prestou uma rápida continência.
– Eu sei. Pus o nome dele na lista. – O general se dirigiu a Walter. – O senhor conhece os Estados Unidos, não conhece?
– Passei três anos em nossa embaixada em Washington, senhor.
– Ótimo. Eu nunca estive nos Estados Unidos. Nem o seu pai. Nem, para falar a verdade, a maioria dos homens aqui presentes... com a notável exceção do nosso novo ministro das Relações Exteriores.
Vinte anos antes, ao voltar para a Alemanha depois de uma viagem à China, Arthur Zimmermann havia passado pelos Estados Unidos, indo de trem de São Francisco a Nova York. Por conta dessa experiência, era considerado um especialista no país. Walter não disse nada.
– Herr Zimmermann me pediu para consultar vocês em relação a um assunto – disse Von Henscher. Isso deixou Walter lisonjeado, mas também intrigado. Por que o novo ministro das Relações Exteriores iria querer sua opinião? – Mas teremos mais tempo para isso depois. – Von Henscher acenou para um lacaio com um uniforme antiquado que os conduziu até um quarto de dormir.
Meia hora mais tarde, os dois estavam na sala de jantar, transformada para a ocasião em salão de conferências. Ao olhar em volta, Walter ficou admirado ao ver que quase todos os homens que tinham alguma importância na Alemanha estavam presentes ali, incluindo o chanceler Theobald von Bethmann-Hollweg – que, aos 60 anos, já estava com os cabelos à escovinha quase totalmente brancos.
A maioria dos comandantes militares de alto escalão da Alemanha estava sentada em volta de uma mesa comprida. Para os homens de menor vulto, como Walter, filas de cadeiras duras estavam dispostas contra a parede. Um ajudante distribuiu alguns exemplares de um memorando de 200 páginas. Walter espiou o documento por cima do ombro do pai. Viu diagramas indicando a tonelagem dos navios que entravam e saíam dos portos britânicos, tabelas com o preço e a capacidade do transporte de carga, o valor calórico das refeições na Grã-Bretanha e até mesmo um cálculo de quanta lã era gasta na fabricação de uma saia.
Depois de aguardarem duas horas, o Kaiser Guilherme entrou vestido com um uniforme de general. Todos se levantaram na mesma hora. Sua Majestade estava pálido e parecia de mau humor. Faltavam apenas alguns dias para seu 58o aniversário. Como sempre, ele mantinha o braço esquerdo atrofiado imóvel ao lado do corpo, para tentar disfarçá-lo. Walter achou difícil evocar o mesmo sentimento de lealdade jubilosa que experimentara de forma tão natural quando menino. Já não conseguia fingir que o Kaiser era o sábio pai de seu povo. Era óbvio demais que Guilherme II não passava de um homem comum, totalmente atropelado pelos acontecimentos. Incompetente, desnorteado e profundamente infeliz, era um argumento vivo contra a monarquia hereditária.
O Kaiser correu os olhos pelos homens reunidos, meneando a cabeça para um ou outro de seus preferidos, o que incluía Otto. Então sentou-se e gesticulou para um homem de barba branca: Henning von Holtzendorff, chefe do Estado-Maior do Almirantado.
O almirante tomou a palavra e pôs-se a citar trechos de seu memorando: o número de submarinos que a Marinha poderia manter nos mares ao mesmo tempo, a tonelagem de carga necessária para a sobrevivência dos Aliados e a velocidade com que seus adversários poderiam substituir embarcações afundadas.
– Calculo que possamos afundar 600 toneladas de carga por mês – disse ele.
Estava fazendo uma apresentação impressionante, em que cada afirmação era sustentada por um número. Para Walter, o único motivo de desconfiança era justamente o fato de o almirante se mostrar tão preciso e seguro: não era possível que a guerra fosse tão previsível assim.
Von Holtzendorff apontou para a mesa, indicando um documento amarrado com uma fita, provavelmente a ordem imperial para dar início à guerra submarina irrestrita.
– Se Vossa Majestade aprovar meu plano hoje, eu garanto que os Aliados irão capitular daqui a exatos cinco meses. – Ele tornou a se sentar.
O Kaiser olhou para o chanceler. Agora sim, pensou Walter, vamos ouvir uma avaliação mais realista. Já fazia sete anos que Bethmann-Hollweg era chanceler e, ao contrário do monarca, ele tinha noção da complexidade das relações internacionais.
Em tom pessimista, o chanceler falou sobre a entrada dos Estados Unidos na guerra e sobre os abundantes recursos norte-americanos em matéria de contingente, suprimentos e dinheiro. Para balizar seu argumento, citou opiniões de todos os alemães importantes que conheciam os Estados Unidos. No entanto, para decepção de Walter, parecia lhe faltar convicção. Ele deveria achar que o Kaiser já havia se decidido. Estaria aquela reunião servindo apenas para ratificar uma decisão já tomada? A Alemanha estava mesmo condenada?
A capacidade de atenção do Kaiser era pequena para qualquer um que discordasse dele e, enquanto Bethmann discursava, ele se remexia na cadeira, soltando grunhidos de impaciência e fazendo caretas desaprovadoras. O chanceler começou a se mostrar indeciso:
– Se as autoridades militares considerarem a guerra submarina essencial, não cabe a mim contradizê-las. Mas, por outro lado...
Ele não chegou a completar a frase. Von Holtzendorff levantou-se com um pulo e o interrompeu:
– Dou minha palavra de oficial naval que nenhum norte-americano pisará neste continente! – disse ele.
Mas que absurdo, pensou Walter. O que a palavra de oficial naval dele tinha a ver com o assunto? Aquilo, no entanto, funcionou melhor do que todas as suas estatísticas. O Kaiser ficou radiante e vários outros homens menearam a cabeça, aprovando.
Bethmann pareceu desistir. Seu corpo se afundou na cadeira, seu rosto relaxou e ele falou com voz derrotada:
– Se o sucesso nos aguarda, devemos ir ao seu encontro.
O Kaiser gesticulou e Von Holtzendorff fez o documento preso pela fita deslizar pela mesa.
Não, pensou Walter, não é possível que ele vá tomar essa decisão fatídica com base em uma argumentação tão precária!
O Kaiser empunhou uma caneta e assinou: Guilherme Imperator Rex.
Então pousou a caneta e se levantou.
Todos se puseram de pé imediatamente.
Isso não pode ser o fim, pensou Walter.
O Kaiser saiu da sala. A tensão se dissipou e um burburinho irrompeu no recinto. Bethmann permaneceu sentado em seu lugar, com os olhos fixos na mesa. Parecia um homem condenado. Estava murmurando alguma coisa e Walter se aproximou para escutar. Era uma expressão em latim: Finis Germaniae – o fim dos alemães.
O general Von Henscher apareceu e disse a Otto:
– Se quiser me acompanhar, podemos ter um almoço reservado. – Depois virou-se para Walter e falou: – Também está convidado, rapaz.
Ele os conduziu até uma sala contígua, onde estava servido um bufê frio.
Como o Castelo Pless era uma das residências do Kaiser, a comida ali era boa. Walter estava irritado e deprimido, porém, como todos na Alemanha, também estava faminto, de modo que fez uma montanha de frango frio, salada de batatas e pão branco em seu prato.
– A decisão de hoje já havia sido prevista pelo ministro das Relações Exteriores Zimmermann – disse Von Henscher. – Ele quer saber o que podemos fazer para desencorajar os Estados Unidos a entrarem na guerra.
A chance disso é pequena, pensou Walter. Se nós afundarmos os navios norte-americanos e afogarmos seus cidadãos, não vejo como abrandar a situação.
– Será que podemos, por exemplo – prosseguiu o general –, fomentar um movimento de protesto entre os um milhão e trezentos mil americanos nascidos aqui na Alemanha?
Walter conteve um suspiro de irritação.
– É claro que não – respondeu ele. – Isso é um conto de fadas idiota.
Seu pai o censurou com rispidez:
– Veja bem como fala com seus superiores.
Von Henscher fez um gesto apaziguador.
– Deixe o rapaz dizer o que pensa, Otto. Gostaria de ouvir a opinião sincera dele. Por que diz isso, major?
– Essas pessoas não amam a nossa pátria – respondeu Walter. – Por que acha que foram embora daqui? Podem até comer wurst e tomar cerveja, mas são cidadãos americanos e irão lutar pelos Estados Unidos.
– E as de origem irlandesa?
– É a mesma coisa. Elas detestam os britânicos, é claro, mas quando nossos submarinos matarem americanos vão nos detestar ainda mais.
– Como o presidente Wilson pode declarar guerra contra nós? – indagou Otto com irritação. – Ele acabou de ser reeleito por ser o homem que manteve os Estados Unidos fora do conflito!
Walter deu de ombros.
– De certa forma, isso até facilita as coisas. O povo acreditará que ele não teve escolha.
– O que poderia detê-lo? – perguntou Von Henscher.
– Oferecermos proteção aos navios de países neutros...
– Isso está fora de cogitação – interrompeu seu pai. – Guerra irrestrita significa guerra irrestrita. Era isso que a Marinha queria e foi isso que Sua Majestade lhes deu.
– Se Wilson não se deixar influenciar por questões domésticas – disse Von Henscher –, será que incidentes externos em seu próprio hemisfério chamariam sua atenção? – Ele se virou para Otto. – No México, por exemplo?
Otto sorriu, parecendo satisfeito.
– O senhor está se lembrando do Ypiranga. Devo admitir que esse foi um pequeno triunfo de diplomacia agressiva.
Walter nunca havia compartilhado a alegria do pai em relação ao incidente com o carregamento de armas enviado pela Alemanha ao México. Otto e seus amigos tinham humilhado o presidente Wilson – e talvez ainda viessem a se arrepender disso.
– E qual é a situação hoje? – perguntou Von Henscher.
– A maior parte do Exército norte-americano está no México ou então estacionada na fronteira – disse Walter. – Oficialmente, estão caçando um criminoso chamado Pancho Villa, que vem agindo na região. O presidente Carranza está indignado com essa violação de sua soberania territorial, mas não há muito que ele possa fazer.
– Se nós o ajudássemos, isso mudaria alguma coisa?
Walter pensou um pouco. Esse tipo de estrepolia diplomática lhe parecia arriscado, mas era seu dever responder às perguntas com a maior exatidão possível.
– Os mexicanos acreditam que o Texas, o Novo México e o Arizona foram roubados deles. Nutrem um sonho de recuperar esses territórios, mais ou menos como os franceses em relação à Alsácia e à Lorena. O presidente Carranza talvez seja burro o suficiente para acreditar que isso é possível.
– De toda forma, a tentativa com certeza desviaria a atenção norte-americana da Europa! – interveio Otto com entusiasmo.
– Por algum tempo – concordou Walter com relutância. – No longo prazo, nossa interferência poderia dar mais poder aos americanos que desejam entrar na guerra junto com os Aliados.
– O que nos interessa é o curto prazo. Você ouviu Von Holtzendorff: em cinco meses, nossos submarinos deixarão os Aliados de joelhos. Queremos apenas manter os americanos ocupados até lá.
– E o Japão? – perguntou Von Henscher. – Alguma chance de conseguirmos convencer os japoneses a atacarem o canal do Panamá ou mesmo a Califórnia?
– Falando de forma realista, não – respondeu Walter com firmeza. A conversa estava entrando cada vez mais no reino da fantasia.
Von Henscher, no entanto, insistiu:
– Mesmo assim, essa simples ameaça poderia deixar mais soldados norte-americanos presos à Costa Oeste.
– Sim, talvez.
Otto limpou os lábios de leve com o guardanapo.
– Isso tudo é muito interessante, mas preciso ver se Sua Majestade precisa de mim – disse ele.
Os três se levantaram. Walter falou:
– General, se me permite um comentário...
Seu pai deu um suspiro, mas Von Henscher respondeu:
– Por favor.
– General, acho tudo isso muito perigoso. Se vazar a informação de que os líderes alemães cogitaram fomentar problemas no México e incentivar um ataque japonês à Califórnia, a opinião pública norte-americana ficará tão indignada que a declaração de guerra pode ocorrer bem antes do esperado, talvez imediatamente. Perdoe-me se eu estiver afirmando o óbvio, mas precisamos manter essa conversa totalmente confidencial.
– Naturalmente – respondeu Von Henscher. Então sorriu para Otto. – Seu pai e eu somos da velha guarda, mas ainda não desaprendemos tudo. Conte com a nossa discrição.
Fitz ficou contente que a proposta de paz alemã tivesse sido rejeitada – e orgulhoso de sua participação no processo. Porém, quando tudo terminou, começou a ter dúvidas.
Ficou pensando no assunto enquanto andava – ou melhor, enquanto mancava – pela Piccadilly na manhã da quarta-feira, 17 de janeiro, a caminho de seu escritório no Almirantado. As negociações de paz teriam sido uma forma traiçoeira de a Alemanha consolidar seus ganhos, legitimando seu controle sobre a Bélgica, o nordeste da França e partes da Rússia. Para a Grã-Bretanha, participar dessas negociações teria sido o mesmo que reconhecer sua derrota. Mas eles ainda não haviam vencido.
As palavras de Lloyd George sobre uma vitória por nocaute soavam bem nos jornais, mas qualquer pessoa sensata sabia que isso era um sonho impossível. A guerra iria continuar, talvez por um ano, talvez por mais tempo. E, caso os americanos continuassem neutros, era possível que no fim das contas tudo terminasse em negociações de paz. E se ninguém conseguisse vencer aquela guerra? Mais um milhão de homens morreria a troco de nada. O pensamento que assombrava Fitz era que, no frigir dos ovos, Ethel poderia ter razão.
E se a Grã-Bretanha perdesse? Haveria crise financeira, desemprego, pobreza. Os trabalhadores assumiriam a bandeira do pai de Ethel e diriam que nunca lhes foi permitido participar da discussão sobre a guerra. A raiva do povo contra seus governantes não teria limites. Protestos e passeatas se transformariam em revoltas. Fazia apenas pouco mais de um século que os parisienses tinham executado seu rei e grande parte da nobreza. Será que os londrinos fariam a mesma coisa? Fitz se imaginou, algemado e descalço, transportado em uma carroça até o local da execução, alvo de cusparadas e vaias da multidão. Pior ainda: viu o mesmo acontecendo com Maud, com sua tia Herm, com Bea e Boy. Afastou esse pesadelo de seus pensamentos.
Que temperamento o de Ethel, pensou ele com um misto de admiração e pesar. Tinha quase morrido de vergonha ao ver sua convidada ser expulsa da galeria durante o pronunciamento de Lloyd George, mas, ao mesmo tempo, aquilo o fizera se sentir ainda mais atraído por ela.
Infelizmente, Ethel se voltara contra ele. Fitz a seguira até alcançá-la no saguão principal da Câmara, onde ela o agredira, dizendo que a guerra seria prolongada por culpa dele e de gente da sua laia. Pela maneira como falou, era como se todos os soldados mortos na França tivessem sido abatidos por Fitz em pessoa.
Aquele foi o fim de seus planos quanto à casa de Chelsea. Ele havia lhe mandado um ou dois recados, mas ela não respondera. Sua decepção foi grande. Quando pensava nas tardes deliciosas que os dois poderiam ter passado naquele ninho de amor, a frustração o acometia como uma dor no peito.
No entanto, ainda lhe restava algum consolo. Bea levara a sério sua reprimenda. Ela agora o recebia em seu quarto vestida com belas roupas de dormir, e lhe oferecia o corpo perfumado como na época em que os dois eram recém-casados. Afinal de contas, ela era uma aristocrata bem-educada, que sabia para que servia uma esposa.
Enquanto refletia sobre a princesa submissa e a ativista política irresistível, o conde adentrou o antigo prédio do Almirantado e encontrou sobre sua mesa um telegrama alemão parcialmente decodificado.
O cabeçalho dizia:
Berlin zu Washington, W. 158. 16 de janeiro de 1917.
Fitz olhou automaticamente para o pé do texto para ver quem o assinava. O nome no final da mensagem era:
Zimmermann.
Isso despertou seu interesse. Era uma mensagem do ministro das Relações Exteriores alemão para seu embaixador nos Estados Unidos. Fitz apanhou um lápis e traduziu o texto, inserindo rabiscos e pontos de interrogação nas partes em que os blocos de código não haviam sido decifrados.
Mensagem altamente secreta para informação pessoal de Sua Excelência a ser entregue ao ministro imperial no (?México?) com xxxx por rota segura.
Os pontos de interrogação indicavam um bloco de códigos cujo significado era incerto. Os decodificadores estavam arriscando um palpite. Se estivessem certos, aquela era uma mensagem para o embaixador alemão no México. Ela estava apenas sendo enviada por intermédio da embaixada em Washington.
México, pensou Fitz. Que estranho.
A frase seguinte estava totalmente decodificada.
Propomos iniciar guerra submarina irrestrita em 1o de fevereiro.
– Meu Deus! – disse Fitz em voz alta. Aquilo já era temido, mas estava diante de uma prova concreta e com uma data ainda por cima! A notícia cairia como uma bomba na Sala 40.
Ainda assim tentaremos manter os Estados Unidos neutros xxxx. Caso contrário propomos ao (?México?) uma aliança sob as seguintes condições: conduzir a guerra, selar a paz.
– Uma aliança com o México? – disse Fitz para si mesmo. – Isso é muito sério. Os americanos vão ficar possessos!
Sua Excelência deve por enquanto informar o presidente em segredo sobre a guerra com os EUA xxxx e ao mesmo tempo servir de intermediário entre nós e o Japão xxxx nossos submarinos forçarão a Inglaterra a selar a paz dentro de alguns meses. Acusar recebimento.
Fitz ergueu o rosto e se deparou com o olhar do jovem Carver, percebendo agora que ele mal conseguia conter o entusiasmo.
– O senhor deve estar lendo a mensagem de Zimmermann que nós interceptamos – disse o subtenente.
– Na medida do possível – respondeu Fitz com tranquilidade. Estava tão eufórico quanto Carver, mas sabia esconder melhor. – Por que a decodificação está tão incompleta?
– É um código novo que ainda não quebramos completamente. Mesmo assim, a mensagem é quente, o senhor não acha?
Fitz tornou a examinar sua tradução. Carver não estava exagerando. Aquilo parecia uma tentativa de fazer o México se aliar à Alemanha contra os Estados Unidos. Era sensacional.
Poderia até deixar o presidente norte-americano furioso o suficiente para declarar guerra à Alemanha.
O coração de Fitz disparou.
– Acho – disse ele. – E vou levá-la agora mesmo para Hall Piscadela. – O capitão William Reginald Hall, diretor do serviço de inteligência da Marinha, tinha um cacoete facial crônico, daí o apelido; mas não havia nada de errado com o cérebro dele. – Ele vai fazer perguntas e preciso ter algumas respostas prontas. Quais são as chances de termos uma decodificação completa?
– Vamos precisar de várias semanas para dominar o novo código.
Fitz soltou um grunhido de irritação. A reconstrução de novos códigos a partir de seus princípios básicos era um trabalho árduo que não podia ser apressado.
Carver continuou:
– Mas estou vendo que a mensagem vai ser encaminhada de Washington para o México. Nessa rota, eles ainda estão usando um código diplomático antigo que nós quebramos mais de um ano atrás. Talvez possamos conseguir uma cópia do telegrama encaminhado, não?
– Sim, é possível! – disse Fitz com animação. – Temos um agente no escritório telegráfico da Cidade do México. – Ele pensou nas consequências. – Quando revelarmos isso para o mundo...
– Não podemos fazer isso – falou Carver, aflito.
– Por que não?
– Os alemães saberiam que estamos lendo as mensagens deles.
Fitz viu que ele estava certo. Este era o eterno dilema do serviço secreto: como usar as informações obtidas sem comprometer a fonte.
– Mas isso é tão importante que talvez valha a pena correr o risco.
– Duvido. Este departamento já forneceu informações confiáveis demais. Eles não vão se arriscar a perder isso.
– Droga! Não é possível que vamos encontrar algo assim e ficar de mãos atadas.
Carver deu de ombros.
– Na nossa área, acontece.
Fitz não estava disposto a aceitar uma coisa dessas. A entrada dos Estados Unidos no conflito poderia significar a vitória. Isso com certeza valeria qualquer sacrifício. Mas ele conhecia as Forças Armadas bem o suficiente para saber que alguns homens demonstrariam mais coragem e disposição para defender um departamento do que uma fortaleza. Era preciso levar a sério a objeção de Carver.
– Precisamos de uma cortina de fumaça – disse ele.
– Podemos dizer que os americanos interceptaram o telegrama – sugeriu Carver.
Fitz aquiesceu.
– A mensagem vai ser encaminhada de Washington para o México, então poderíamos dizer que o governo norte-americano a recebeu da Western Union.
– Talvez a Western Union não goste muito disso...
– Eles que se danem. A questão é a seguinte: como poderemos aproveitar ao máximo essa informação? Será que nosso governo deve divulgá-la? Ou será que devemos entregá-la aos americanos? Ou quem sabe não seria melhor arranjarmos um terceiro elemento para confrontar os alemães?
Carver ergueu as duas mãos, como se estivesse se rendendo.
– Isso foge da minha alçada.
– Mas não da minha – disse Fitz, subitamente inspirado. – E eu conheço a pessoa certa para nos ajudar.
Fitz encontrou Gus Dewar em um pub do sul de Londres chamado The Ring.
Para sua surpresa, Dewar era fã de boxe. Quando adolescente, ele frequentava um ringue à beira do lago em Buffalo e, em suas viagens pela Europa no ano de 1914, havia assistido a lutas em todas as capitais do continente. Mas era discreto quanto à sua paixão, pensou Fitz com ironia. O boxe não era um assunto muito popular nas rodas de chá de Mayfair.
No entanto, todas as classes sociais estavam representadas no The Ring. Cavalheiros vestidos a rigor se misturavam com estivadores de casaco rasgado. Bookmakers anotavam apostas em todos os cantos, enquanto garçons traziam bandejas abarrotadas de pints de cerveja. O ar estava carregado com a fumaça dos charutos, cachimbos e cigarros. Não havia lugares para sentar, nem mulheres.
Fitz encontrou Gus em uma conversa acalorada com um londrino de nariz quebrado, discutindo sobre o lutador americano Jack Johnson, o primeiro negro a conquistar o título mundial de pesos pesados, cujo casamento com uma branca fizera pastores cristãos pedirem seu linchamento. O londrino havia irritado Gus ao concordar com os religiosos.
Fitz nutria uma esperança secreta de que Gus se apaixonasse por Maud. Eles formariam um belo casal. Os dois eram intelectuais, liberais, levavam tudo assustadoramente a sério e viviam lendo livros. A família Dewar era fruto do que os americanos chamavam de Old Money, “dinheiro antigo” – a coisa mais próxima de uma aristocracia que os Estados Unidos possuíam.
Além disso, tanto Gus quanto Maud eram a favor da paz. Por mais que Fitz não fizesse a menor ideia do motivo, Maud sempre havia defendido de forma ardorosa o fim da guerra. E Gus idolatrava seu patrão Woodrow Wilson, que fizera um pronunciamento no mês anterior conclamando a uma “paz sem vencedores”, expressão que havia enfurecido Fitz e boa parte das lideranças britânica e francesa.
Mas a afinidade que Fitz detectara entre Gus e Maud não havia levado a nada. Fitz amava a irmã, mas se perguntava o que haveria de errado com ela. Será que Maud queria terminar como uma solteirona?
Depois de conseguir afastar Gus do homem de nariz quebrado, Fitz puxou o assunto do México.
– Isso está uma confusão só – disse Gus. – Para tentar agradar ao presidente Carranza, Wilson chamou de volta o general Pershing e seus soldados, mas não adiantou nada... Carranza não quer nem ouvir falar em policiar a fronteira. Por que a pergunta?
– Depois eu conto – respondeu Fitz. – A próxima luta vai começar.
Enquanto eles assistiam a um lutador chamado Benny, o Judeu dar uma surra em Albert Careca Collins, Fitz decidiu evitar o assunto da proposta de paz alemã. Sabia que o americano estava inconsolável com o fracasso da iniciativa de Wilson. Gus vivia se perguntando se poderia ter conduzido melhor a situação, ou feito algo mais para apoiar o plano do presidente. Fitz achava que aquela estratégia estivera fadada ao fracasso desde o início, porque, na verdade, nenhum dos dois lados queria a paz.
No terceiro assalto, Albert Careca foi à lona e não se levantou mais.
– Você quase não me pega aqui – disse Gus. – Vou partir em breve.
– Está ansioso para voltar para casa?
– Sim, se é que vou conseguir chegar lá. Posso ser afundado por um submarino alemão no meio do caminho.
Os alemães haviam reiniciado a guerra submarina irrestrita no dia 1o de fevereiro, exatamente como previa a mensagem interceptada de Zimmermann. Isso deixara os americanos irritados, mas não tanto quanto Fitz esperava.
– A reação do presidente Wilson ao anúncio da guerra submarina foi surpreendentemente branda – comentou ele.
– Ele rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. Não tem nada de brando nisso.
– Mas não declarou guerra – comentou Fitz.
Ele ficara arrasado. Havia lutado com afinco contra as negociações de paz, porém Maud, Ethel e seus amigos pacifistas tinham razão quando diziam não haver esperança de vitória em um futuro próximo – pelo menos, não sem ajuda externa. Fitz tinha certeza de que a guerra submarina irrestrita faria os americanos entrarem no conflito. Mas, até então, isso não havia acontecido.
– Para ser franco – disse Gus –, eu acho que o presidente Wilson ficou furioso com a decisão alemã e agora está pronto para declarar guerra. Pelo amor de Deus, ele já tentou de tudo. Mas foi reeleito por ser o homem que nos manteve fora do conflito. Só há um jeito de mudar isso: ser levado à guerra por uma onda irresistível de apelo popular.
– Nesse caso – disse Fitz –, acho que tenho algo capaz de ajudá-lo.
Gus arqueou uma sobrancelha.
– Desde que fui ferido, venho trabalhando em uma unidade que decodifica mensagens telegráficas alemãs interceptadas.
Fitz tirou do bolso uma folha de papel coberta com a própria caligrafia.
– Seu governo vai receber isto aqui oficialmente nos próximos dias. Estou lhe mostrando agora porque precisamos de conselhos sobre como proceder. – Ele entregou o papel a Gus.
O espião britânico na Cidade do México havia conseguido interceptar a mensagem retransmitida no código antigo, de modo que o papel entregue a Gus era uma decodificação completa da mensagem de Zimmermann. O texto, na íntegra, dizia:
De Washington para México, 19 de janeiro de 1917
Pretendemos iniciar guerra submarina irrestrita em 1o de fevereiro. Apesar disso, nos esforçaremos para manter os EUA neutros. Caso não tenhamos sucesso, faremos ao México uma proposta de aliança sob as seguintes condições:
Travar a guerra juntos.
Selar a paz juntos.
Apoio financeiro generoso e um compromisso de nossa parte de que o México irá reconquistar os territórios perdidos do Texas, Novo México e Arizona. Deixamos os detalhes da ocupação por sua conta.
O senhor informará o presidente sobre esta questão da maneira mais confidencial possível assim que a guerra contra os EUA estiver iminente, acrescentando a sugestão de que ele, por iniciativa própria, deve convidar o Japão a aderir de imediato e, ao mesmo tempo, servir de mediador entre o Japão e nosso país.
Queira, por favor, chamar a atenção do presidente para o fato de que a utilização implacável de nossos submarinos traz a perspectiva de obrigarmos a Inglaterra a selar a paz daqui a poucos meses.
Gus leu algumas linhas, segurando o papel junto aos olhos por causa da luz fraca do ringue, e disse:
– Uma aliança? Meu Deus!
Fitz olhou em volta. Uma nova luta havia começado e o barulho da multidão estava alto demais para que alguém conseguisse escutar Gus.
O americano continuou lendo.
– Reconquistar o Texas? – disse ele, incrédulo. E então, assumindo um tom raivoso: – Convidar o Japão? – Ele ergueu os olhos do papel. – Isto aqui é um acinte!
Era a reação que Fitz esperava, e ele teve de reprimir o próprio entusiasmo.
– Acinte é a palavra certa – falou com uma solenidade forçada.
– Os alemães estão se propondo a pagar ao México para invadir os Estados Unidos!
– Exato.
– E estão pedindo que o México tente conseguir a ajuda do Japão!
– Exato.
– Quero só ver quando isso vazar!
– É sobre isso que gostaria de conversar com você. Nós queremos ter certeza de que a mensagem será divulgada de forma favorável ao seu presidente.
– Por que o governo britânico simplesmente não a revela ao mundo?
Gus não tinha parado para pensar no assunto.
– Por dois motivos – respondeu Fitz. – Em primeiro lugar, não queremos que os alemães saibam que estamos lendo as mensagens deles. Em segundo, podemos ser acusados de ter forjado este telegrama.
Gus aquiesceu.
– Me perdoe. Fiquei tão irritado que nem estava conseguindo raciocinar. Vamos analisar isso friamente.
– Se possível, nós gostaríamos que vocês dissessem que o governo norte-americano conseguiu uma cópia do telegrama por meio da Western Union.
– Wilson não vai mentir.
– Então consigam uma cópia com a Western Union, assim não vai ser mentira.
Gus aquiesceu.
– Isso deve ser possível. Quanto ao segundo problema, quem poderia divulgar a mensagem sem levantar suspeitas de falsificação?
– O próprio presidente, imagino.
– É uma possibilidade.
– Mas você tem outra ideia melhor? – perguntou Fitz.
– Tenho – respondeu Gus, pensativo. – Acho que tenho.
Ethel e Bernie se casaram no Salão do Evangelho do Calvário. Nenhum dos dois dava muita importância para religião e ambos gostavam do pastor de lá.
Ethel não falava com Fitz desde o dia do pronunciamento de Lloyd George. A oposição pública do conde à paz havia sido para ela um duro lembrete de seu verdadeiro caráter. Ele representava tudo o que ela odiava: tradição, conservadorismo, exploração da classe trabalhadora, riqueza imerecida. Jamais poderia ser amante de um homem assim e sentiu vergonha de si mesma por sequer ficar tentada pela casa de Chelsea. Sua verdadeira alma gêmea era Bernie.
Ethel usou o mesmo vestido de seda cor-de-rosa que Walter von Ulrich lhe dera de presente para o casamento de Maud. Não havia mocinhas para serem damas de honra, de modo que Mildred e Maud cumpriram a função, apesar da idade. Os pais de Ethel vieram de Aberowen de trem. Infelizmente, Billy estava na França e não conseguiu licença. O pequeno Lloyd usou uma roupa de pajem que Mildred havia costurado especialmente para ele – azul-celeste, com botões de latão e uma pequena boina.
Bernie surpreendeu Ethel ao convidar uma família da qual ninguém ouvira falar. Sua mãe idosa, que só falava iídiche, passou a cerimônia inteira murmurando coisas ininteligíveis. Ela morava com o irmão mais velho de Bernie, o bem-sucedido Theo, que – como Mildred descobriu ao flertar com ele – era dono de uma fábrica de bicicletas em Birmingham.
Após a cerimônia, um chá com bolos foi servido no salão. Não houve bebidas alcoólicas, o que agradou Da e Mam, e os fumantes tiveram que sair para acender seus cigarros. Mam beijou Ethel e disse:
– Que alegria ver você com a vida resolvida, apesar de tudo. – A expressão apesar de tudo tinha um grande peso, pensou Ethel. Significava: “Parabéns, embora você seja uma mulher perdida com um filho ilegítimo de pai desconhecido e esteja se casando com um judeu, além de morar em Londres, o que dá no mesmo que morar em Sodoma e Gomorra.” Ainda assim, Ethel aceitou a bênção de Mam – e jurou nunca dizer coisa parecida a um filho seu.
Mam e Da haviam comprado passagens baratas de ida e volta para o mesmo dia, então foram pegar o trem. Quando a maioria dos convidados já havia ido embora, os que tinham ficado saíram para tomar um drinque no Dog and Duck.
Ethel e Bernie voltaram para casa na hora de Lloyd dormir. Pela manhã, Bernie havia empilhado suas poucas roupas e muitos livros em um carrinho de mão e o empurrara da pensão onde morava até a casa de Ethel.
Para que tivessem uma noite a sós, eles puseram Lloyd para dormir no andar de cima, com as filhas de Mildred, o que Lloyd considerou um agrado e tanto. Em seguida, Ethel e Bernie tomaram um chocolate quente na cozinha e foram para a cama.
Ethel estava usando uma camisola nova. Bernie vestia um pijama limpo. Ao entrar na cama ao lado da mulher, começou a suar de nervosismo. Ethel acariciou-lhe o rosto.
– Embora eu seja uma mulher desonrada, não tenho muita experiência – disse ela. – Só meu primeiro marido e, mesmo assim, apenas nas poucas semanas antes de ele ir embora. – Ethel não havia contado a Bernie sobre Fitz, e jamais contaria. Apenas Billy e o advogado Albert Solman conheciam a verdade.
– Já é mais do que eu – disse Bernie, mas ela podia sentir que ele estava começando a relaxar. – Só tive umas poucas experiências.
– Como se chamavam as moças?
– Ah, nem queira saber.
Ela sorriu.
– Quero, sim. Quantas foram? Seis? Dez? Vinte?
– Meu Deus, não! Foram três. A primeira foi Rachel Wright, na escola. Depois ela me disse que precisaríamos nos casar, e eu acreditei. Quase morri de preocupação.
Ethel deu uma risadinha.
– O que houve?
– Na semana seguinte, ela foi para a cama com Micky Armstrong e eu me safei.
– Foi bom com ela?
– Acho que foi. Eu tinha só 16 anos. Tudo o que eu queria, no fundo, era poder dizer que não era mais virgem.
Ela o beijou com delicadeza, então perguntou:
– E depois, quem foi?
– Carol McAllister. Ela era minha vizinha. Eu lhe paguei um xelim. Foi meio rápido... acho que ela sabia o que fazer e dizer para que terminasse depressa. Na verdade, pegar o dinheiro era a parte favorita dela.
Ethel fez uma careta de reprovação, então se lembrou da casa em Chelsea e percebeu que havia cogitado fazer o mesmo que Carol McAllister. Constrangida, perguntou:
– E quem foi a outra?
– Uma mulher mais velha. Ela era minha senhoria. Vinha para a minha cama à noite quando o marido estava fora.
– E era bom com ela?
– Era ótimo. Foi um período feliz para mim.
– E o que deu errado?
– O marido começou a desconfiar e eu tive que ir embora.
– E depois?
– Depois conheci você e perdi todo o interesse pelas outras mulheres.
Os dois começaram a se beijar. Dali a pouco, ele ergueu sua camisola e cobriu o corpo dela com o seu. Mostrou-se delicado, preocupado em não machucá-la, mas penetrou-a com facilidade. Ethel sentiu uma onda de afeto por ele, por sua gentileza, por sua inteligência e pela devoção que nutria por ela e por seu filho. Enlaçou-o com os braços, apertando o corpo dele contra o seu. O orgasmo de Bernie não demorou a vir. Então, satisfeitos, os dois adormeceram.
Gus Dewar percebeu que as saias das mulheres haviam mudado. Agora, deixavam aparecer os tornozelos. Dez anos antes, a visão de um tornozelo era algo excitante; hoje em dia, era corriqueiro. Talvez as mulheres cobrissem a sua nudez para ficarem mais sedutoras, não menos.
Rosa Hellman usava um casaco vermelho-escuro elegante, com pregas que desciam pelas costas. O casaco era enfeitado com a pele preta de algum animal, o que ele imaginava vir a calhar em Washington no mês de fevereiro. Seu chapéu cinza era pequeno e redondo, adornado por uma fita vermelha e uma pena – não muito prático, mas desde quando os chapéus das americanas eram feitos para serem práticos?
– Fico honrada com este convite – disse ela. Gus ficou na dúvida se ela estava zombando dele ou não. – Você acabou de voltar da Europa, não foi?
Os dois foram almoçar no salão do Hotel Willard, dois quarteirões a leste da Casa Branca. Gus a havia convidado por um motivo específico.
– Eu tenho uma matéria para você – disse ele assim que pediram a comida.
– Ah, que ótimo! Deixe-me adivinhar. O presidente vai pedir divórcio de Edith para se casar com Mary Peck?
Gus fechou o rosto. Wilson tivera um caso com Mary Peck enquanto era casado com a primeira mulher. Ele duvidava que os dois houvessem de fato cometido adultério, mas Wilson tivera a ingenuidade de escrever cartas para Mary demonstrando mais afeição do que o adequado. Todos os fofoqueiros de Washington conheciam essa história, mas os jornais nunca haviam publicado nada a respeito.
– Estou falando de coisa séria – disse Gus com gravidade.
– Ah, desculpe – disse Rosa. Ela imprimiu ao rosto uma expressão solene que fez Gus ter vontade de rir.
– A única condição será que você não pode dizer que obteve a informação da Casa Branca.
– Combinado.
– Vou lhe mostrar um telegrama do ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Arthur Zimmermann, para o embaixador alemão no México.
Ela fez cara de espanto.
– Onde você conseguiu isso?
– Por meio da Western Union – mentiu ele.
– Não está codificado?
– Códigos podem ser quebrados. – Ele lhe entregou uma cópia datilografada da tradução completa para o inglês.
– Esta conversa é em off?
– Não. A única coisa que não quero que você divulgue é onde conseguiu o telegrama.
– Tudo bem. – Ela começou a ler. Em poucos instantes, seu queixo caiu. Ela ergueu os olhos. – Gus, isto aqui é pra valer? – perguntou.
– Eu por acaso sou homem de fazer brincadeiras?
– Não, nunca foi. – Ela prosseguiu a leitura. – Os alemães vão pagar ao México para invadir o Texas?
– É o que diz Herr Zimmermann.
– Gus, isto aqui não é uma simples matéria... é o furo do século!
Ele se permitiu um leve sorriso, tentando não parecer tão triunfante quanto se sentia.
– Foi justamente o que achei que você fosse dizer.
– Você está agindo por conta própria ou a mando do presidente?
– Rosa, você acha que eu faria uma coisa dessas sem aprovação da mais alta instância?
– Imagino que não. Nossa! Então isso está vindo para mim direto do presidente Wilson.
– Não oficialmente.
– Mas como posso saber se é verdade? Não me parece que eu possa escrever a matéria com base apenas em um pedaço de papel e na sua palavra.
Gus já esperava por esse percalço.
– O secretário de Estado Lansing vai confirmar pessoalmente a autenticidade do telegrama para o seu chefe, contanto que a conversa permaneça confidencial.
– É o suficiente. – Ela tornou a baixar os olhos para o pedaço de papel. – Isso muda tudo. Você pode imaginar o que o povo americano vai dizer quando ler esta mensagem?
– Imagino que eles vão ficar mais inclinados a entrar na guerra e lutar contra a Alemanha.
– Inclinados? – repetiu ela. – Eles vão espumar de raiva! Wilson vai ser obrigado a declarar guerra.
Gus ficou calado.
Depois de alguns instantes, Rosa interpretou seu silêncio.
– Ah, entendo. É por isso que vocês estão divulgando o telegrama. O presidente quer declarar guerra.
Ela havia acertado na mosca. Gus sorriu, apreciando aquele embate de intelectos com uma mulher tão brilhante.
– Eu não estou dizendo isso.
– Mas este telegrama vai enfurecer o povo americano de tal forma que ele vai exigir a guerra. E Wilson poderá dizer que não descumpriu as promessas de campanha, mas sim que foi forçado pela opinião pública a mudar de política.
Rosa, na verdade, era um pouco inteligente demais para o que ele pretendia.
– Não é essa a matéria que você vai escrever, é? – perguntou ele, aflito.
Ela sorriu.
– Ah, não. É só que eu me recuso a engolir qualquer coisa sem questionar. Já fui anarquista, lembra?
– E agora?
– Agora sou repórter. E só existe um jeito de escrever essa matéria.
Ele ficou aliviado.
O garçom trouxe a comida: salmão poché para ela, filé com purê de batatas para ele. Rosa se levantou.
– Tenho que voltar para a redação.
Gus ficou surpreso.
– E o seu almoço?
– Está falando sério? – disse ela. – Não vou conseguir comer. Você não entende o que fez?
Ele achava que sim, mas falou:
– Diga para mim.
– Acabou de mandar os Estados Unidos para a guerra.
Gus aquiesceu.
– Eu sei. Agora, vá escrever a matéria.
– Ei – disse ela. – Obrigada por ter me escolhido.
Em instantes, já havia ido embora.
Março de 1917
Foi um inverno de frio e fome em Petrogrado. O termômetro do lado de fora do quartel do Primeiro Regimento de Metralhadoras passou um mês inteiro marcando -15°C. Os padeiros pararam de assar tortas, bolos, pastéis e qualquer outra coisa que não fosse pão, mas mesmo assim não havia farinha suficiente. Guardas armados vigiavam a porta da cozinha do quartel, pois muitos soldados tentavam implorar por mais comida ou então roubá-la.
Em um dia muito frio no início de março, Grigori teve uma tarde de folga e resolveu ir visitar Vladimir, que devia estar com a senhoria enquanto Katerina trabalhava. Vestiu seu sobretudo militar e saiu andando pelas ruas geladas da cidade. Na Nevsky Prospekt, cruzou olhares com uma criança pedinte, uma menina de seus 9 anos, parada em uma esquina sob um vento ártico. Algo nela o incomodou, e ele fechou o rosto ao passar. Logo em seguida, percebeu o que o intrigara. O olhar que a menina havia lhe lançado era um convite ao sexo. Ele ficou tão chocado que parou de andar no ato. Como ela podia ser uma puta naquela idade? Ele se virou com o intuito de questioná-la, mas a criança tinha desaparecido.
Seguiu em frente, atormentado. Sabia, é claro, que alguns homens buscavam sexo com crianças: aprendera isso quando ele e Lev tinham ido pedir ajuda a um padre, muitos anos antes. No entanto, por algum motivo, a imagem daquela menina de 9 anos fazendo um patético arremedo de sorriso provocante deixou seu coração apertado. Aquilo lhe deu vontade de chorar por seu país. Nós estamos transformando nossas crianças em prostitutas, pensou, o que pode ser pior do que isso?
Quando chegou a sua antiga casa, estava taciturno. Assim que entrou, ouviu Vladimir aos prantos. Subiu até o quarto de Katerina e encontrou o menino sozinho, com o rosto vermelho e contorcido pelo choro. Pegou-o no colo e pôs-se a niná-lo.
O quarto estava limpo, arrumado e tinha o cheiro de Katerina. Grigori ia até lá quase todos os domingos. Eles tinham uma rotina: saíam para um passeio matinal, depois voltavam para casa e preparavam o almoço com a comida que Grigori trazia do quartel, quando ele conseguia arranjá-la. Então, enquanto Vladimir tirava sua soneca, os dois faziam amor. Aos domingos, quando havia comida suficiente, Grigori era imensamente feliz naquele quarto.
Os berros de Vladimir se transformaram em um choramingo contínuo de irritação. Com o menino nos braços, Grigori saiu à procura da senhoria, que teoricamente deveria estar cuidando da criança. Encontrou-a na lavanderia, um anexo rebaixado que havia nos fundos da casa, passando lençóis molhados por um espremedor de roupas. Era uma mulher de uns 50 anos, com os cabelos grisalhos presos por um lenço. Em 1914, quando Grigori havia entrado para o Exército, ela era rechonchuda, mas agora tinha o pescoço descarnado e uma papada flácida. Até mesmo as senhorias estavam passando fome.
Quando o viu, a mulher assumiu uma expressão de espanto e culpa.
– A senhora não ouviu o menino chorando? – perguntou Grigori.
– Não posso ficar ninando essa criança o dia inteiro – respondeu ela, na defensiva, continuando a girar a manivela do espremedor.
– Talvez ele esteja com fome.
– Ele já tomou seu leite – falou ela depressa. Aquela resposta rápida pareceu suspeita, e Grigori imaginou que ela própria deveria ter tomado o leite. Teve vontade de esganá-la.
No ar frio da lavanderia sem aquecimento, ele sentiu que a pele macia de bebê de Vladimir estava irradiando calor.
– Acho que ele está com febre – falou. – A senhora não percebeu que ele estava quente?
– Eu agora também sou médica?
Vladimir parou de chorar e caiu em um estado de prostração que Grigori achou ainda mais preocupante. Normalmente era um menino esperto, agitado, curioso e até um pouco destrutivo, mas agora estava imóvel no colo de Grigori, com o rosto corado e os olhos vidrados.
Grigori tornou a colocá-lo na cama, no canto do quarto de Katerina. Pegou uma jarra na estante dela, saiu de casa e foi correndo até a rua ao lado, onde havia um armazém. Comprou leite, um pouco de açúcar em um embrulho de papel e uma maçã.
Quando voltou, Vladimir estava igual.
Aqueceu o leite, dissolveu o açúcar nele e adicionou um pouco de casca de pão dormido. Então, molhou pedaços do pão na mistura e os deu para Vladimir. Lembrava-se de que a mãe costumava dar isso a Lev quando seu irmão era bebê e adoecia. Vladimir comeu como se estivesse faminto e com sede.
Quando o pão e o leite acabaram, Grigori pegou a maçã. Usando seu canivete, cortou-a em gomos e descascou um deles. Comeu a casca e estendeu o resto para Vladimir, dizendo:
– Um pouco para mim, um pouco para você. – Antigamente, o menino achava a brincadeira divertida, mas desta vez se mostrou indiferente, deixando a maçã cair de sua boca.
Não havia nenhum médico na região e, de qualquer forma, Grigori não tinha dinheiro para uma consulta, porém uma parteira morava a algumas ruas dali. Era Magda, a bonita mulher de seu velho amigo Konstantin, representante da Metalúrgica Putilov no Comitê Bolchevique. Grigori e Konstantin jogavam xadrez sempre que podiam – em geral, quem ganhava era Grigori.
Ele pôs uma fralda limpa em Vladimir e então enrolou o menino no cobertor da cama de Katerina, deixando apenas os olhos e o nariz de fora. Os dois saíram para o frio.
Konstantin e Magda moravam em um apartamento de dois cômodos junto com a tia de Magda, que cuidava de seus três filhos pequenos. Grigori temia que Magda estivesse fora, fazendo o parto de algum bebê, mas por sorte a encontrou em casa.
Magda era experiente e bondosa, ainda que um pouco rude. Levou a mão à testa de Vladimir e disse:
– Ele está com uma infecção.
– É grave?
– Ele está tossindo?
– Não.
– Como estão as fezes?
– Moles.
Ela tirou as roupas de Vladimir e disse:
– Imagino que os seios de Katerina estejam sem leite.
– Como você adivinhou? – perguntou Grigori, surpreso.
– É comum. Uma mulher só pode dar de comer ao filho se ela própria estiver comendo. Nada surge do nada. É por isso que o menino está tão magrinho.
Grigori não sabia que Vladimir estava magro.
Magda cutucou a barriga de Vladimir e ele chorou.
– Infecção intestinal – disse ela.
– Ele vai ficar bem?
– É bem provável que sim. Crianças pegam infecções o tempo todo. Geralmente, elas sobrevivem.
– O que nós podemos fazer?
– Molhe a testa dele com água morna para fazer a febre baixar. Dê muita água para ele, quanto ele quiser. Não se preocupe se ele não comer. Faça Katerina comer, para ela poder lhe dar o peito. Leite materno, é disso que ele precisa.
Grigori levou Vladimir para casa. No caminho, comprou mais leite, que aqueceu no braseiro. Deu o leite a Vladimir com uma colher e o menino bebeu tudo. Ele então esquentou uma panela com água e lavou o rosto do menino com um pano. Pareceu dar certo: o bebê perdeu o aspecto corado, de olhos vidrados, e começou a respirar normalmente.
Às sete e meia, quando Katerina chegou, Grigori já estava menos aflito. Ela parecia cansada e com frio. Havia comprado um repolho e alguns gramas de banha de porco e Grigori os colocou em uma frigideira para fazer um ensopado enquanto ela descansava. Contou-lhe sobre a febre de Vladimir, sobre a senhoria negligente e sobre as recomendações de Magda.
– O que eu posso fazer? – perguntou Katerina, desesperada e exausta. – Tenho que ir para a fábrica. Não tem mais ninguém para cuidar de Volodya.
Grigori deu um pouco de caldo do ensopado ao menino e então o colocou para dormir. Depois de comerem, Grigori e Katerina foram se deitar juntos na cama.
– Não me deixe dormir demais – falou Katerina. – Tenho que entrar na fila do pão.
– Deixe que eu vou – disse Grigori. – Fique aqui e descanse. – Ele chegaria atrasado ao quartel, mas provavelmente conseguiria se safar: ultimamente, os oficiais estavam temerosos demais de um motim para criar caso por conta de transgressões sem importância.
Katerina não se fez de rogada e caiu em um sono profundo.
Quando Grigori ouviu o relógio da igreja bater as duas, calçou as botas e vestiu o sobretudo. Vladimir parecia dormir normalmente. Ele saiu de casa e foi andando até a padaria. Para sua surpresa, já havia uma fila comprida ali, e ele percebeu que saíra de casa um pouco tarde. Havia umas 100 pessoas na fila, todas encapotadas, batendo com os pés na neve. Algumas tinham trazido cadeiras ou bancos. Um rapaz empreendedor trouxera um braseiro e estava vendendo mingau, lavando as tigelas na neve depois que as pessoas terminavam de comer. Mais uma dúzia de fregueses entrou na fila atrás de Grigori.
Enquanto esperavam, todos fofocavam e resmungavam. Duas mulheres na frente de Grigori discutiam sobre quem era culpado pela falta de pão: uma dizia que eram os alemães na corte; a outra, os judeus que estocavam farinha.
– Quem é que governa? – perguntou-lhes Grigori. – Quando um bonde vira, vocês põem a culpa no motorneiro, porque é ele quem está ao volante. Os judeus não nos governam. Os alemães não nos governam. Quem nos governa é o czar e a nobreza. – Era essa a mensagem dos bolcheviques.
– Quem iria governar o país se não houvesse czar? – indagou a mulher mais nova com ceticismo. Ela usava um chapéu de feltro amarelo.
– Eu acho que deveríamos governar a nós mesmos – falou Grigori. – Como é na França e nos Estados Unidos.
– Não sei – comentou a mulher mais velha. – As coisas não podem continuar assim.
A padaria abriu às cinco. Um minuto depois, correu pela fila a notícia de que cada pessoa só poderia comprar um pão.
– A noite inteira por um só pão! – disse a mulher de chapéu amarelo.
Eles ainda demoraram mais uma hora para chegar ao começo da fila. A mulher do padeiro recebia um cliente de cada vez. Quando a mais velha das duas mulheres na frente de Grigori entrou, a mulher do padeiro disse para os que estavam na fila:
– Acabou. Não tem mais pão.
A mulher de chapéu amarelo disse:
– Não, por favor! Só mais um!
A expressão da mulher do padeiro era impassível. Talvez aquilo já tivesse acontecido antes.
– Se nós tivéssemos mais farinha, faríamos mais pão – disse ela. – Acabou, entendeu? Eu não posso lhe vender pão se não tenho mais.
A última cliente saiu da padaria com o pão debaixo do casaco e afastou-se às pressas.
A mulher de chapéu amarelo começou a chorar.
A mulher do padeiro bateu a porta.
Grigori deu meia-volta e foi embora.
A primavera chegou a Petrogrado na quinta-feira, 8 de março, mas o Império Russo teimava em se ater ao calendário juliano, segundo o qual era 23 de fevereiro. Já fazia 300 anos que o restante da Europa usava o calendário moderno.
A alta da temperatura coincidiu com o Dia Internacional da Mulher, e as trabalhadoras das fábricas têxteis entraram em greve, saindo em passeata dos subúrbios industriais até o centro da cidade para protestar contra as filas para comprar pão, a guerra e o czar. O governo havia anunciado que passaria a racionar o pão, mas isso parecia ter agravado ainda mais a escassez dele.
Assim como todas as unidades do Exército estacionadas na cidade, o Primeiro Regimento de Metralhadoras foi destacado para ajudar a polícia e os cossacos montados a manter a ordem. O que aconteceria, pensou Grigori, se os soldados recebessem ordens para atirar nos manifestantes? Será que iriam obedecer? Ou será que virariam seus fuzis para os oficiais? Em 1905, eles haviam acatado as ordens e disparado contra os trabalhadores. Desde então, contudo, o povo russo havia suportado uma década de tirania, repressão, guerra e fome.
Mas não houve incidentes, de modo que Grigori e sua seção voltaram para o quartel naquela noite sem terem disparado um só tiro.
Na sexta-feira, mais trabalhadores entraram em greve.
O czar estava no quartel-general do Exército em Mogilev, a mais de 600 quilômetros dali. Quem estava encarregado da cidade era o comandante do distrito militar de Petrogrado, general Khabalov. Este decidiu designar soldados para as pontes a fim de manter os manifestantes longe do centro. A seção de Grigori foi posicionada perto do quartel para proteger a ponte Liteiny, que atravessava o rio Neva até a Liteiny Prospekt. No entanto, como a água do rio ainda estava congelada, os manifestantes simplesmente passaram por cima do gelo para evitar as tropas, para alegria dos soldados que assistiam – assim como Grigori, a maioria deles simpatizava com os grevistas.
Nenhum partido político havia organizado a greve. Como os outros partidos revolucionários de esquerda, os bolcheviques mais seguiam do que conduziam a classe trabalhadora.
Outra vez, a seção de Grigori não partiu para o conflito, porém a situação não foi igual em todos os lugares. Quando ele voltou para o quartel no sábado à noite, ficou sabendo que a polícia havia atacado os manifestantes em frente à estação de trem no final da Nevsky Prospekt. Para surpresa geral, os cossacos haviam defendido os grevistas contra a polícia. Os homens se referiam aos cossacos como camaradas. Grigori tinha suas dúvidas. Na verdade, os cossacos nunca tinham sido fiéis a ninguém a não ser a si mesmos, pensou. Eles simplesmente adoravam uma briga.
No domingo, Grigori foi acordado às cinco da manhã, bem antes de o dia raiar. Durante o café da manhã, correu um boato de que o czar teria instruído o general Khabalov a dar um fim às greves e passeatas usando toda a força necessária. A expressão era sinistra, pensou Grigori: toda a força necessária.
Após o desjejum, os sargentos receberam suas ordens. Cada pelotão deveria proteger um ponto diferente da cidade: não apenas as pontes, mas também os cruzamentos, as estações de trem e as agências dos correios. Os bloqueios estariam conectados por telefones de campanha. A capital do país seria defendida como uma cidade inimiga capturada. E pior ainda: o regimento de Grigori deveria instalar metralhadoras nos locais em que houvesse possibilidade de transtornos.
Quando Grigori transmitiu as instruções a seus homens, eles ficaram horrorizados. Isaak perguntou:
– O czar vai realmente mandar o Exército metralhar seu próprio povo?
– A questão é: se ele fizer isso, os soldados vão obedecer? – indagou Grigori.
Seu entusiasmo crescente vinha acompanhado de medo. Ele estava animado com as greves, pois sabia que o povo russo precisava desafiar seus governantes. Caso contrário, a guerra iria se arrastar, as pessoas morreriam de fome e não haveria chance de Vladimir ter uma vida melhor do que a de Grigori e Katerina. Fora essa convicção que o levara a se alistar no partido. Por outro lado, ele acalentava uma esperança secreta de que, se os soldados simplesmente se recusassem a obedecer às ordens, a revolução talvez começasse sem muito derramamento de sangue. No entanto, quando seu próprio regimento recebeu ordens para montar ninhos de metralhadora nas esquinas de Petrogrado, ele começou a achar que aquela esperança era uma ingenuidade.
Haveria mesmo possibilidade de algum dia o povo russo se ver livre da tirania dos czares? Às vezes isso parecia um mero devaneio. Contudo, outros países tinham feito revoluções e derrubado seus algozes. Até mesmo os ingleses já haviam matado seu rei um dia.
Petrogrado parecia uma panela de água no fogo, pensou Grigori: havia espirais de fumaça, algumas borbulhas de violência e a superfície tremulava com um calor intenso. A água, no entanto, parecia hesitar e, como reza o ditado, panela vigiada não ferve.
Seu pelotão foi enviado para o Palácio Tauride, a imensa casa de veraneio de Catarina II na cidade, agora sede do impotente Parlamento russo, a Duma. A manhã estava tranquila: até mesmo os famintos gostavam de dormir até mais tarde aos domingos. Mas o tempo continuou ensolarado e, ao meio-dia, as pessoas começaram a chegar dos subúrbios, a pé e de bonde. Um grupo se reuniu no grande jardim do Palácio Tauride. Grigori percebeu que não havia só operários, mas também homens e mulheres de classe média, estudantes e uns poucos empresários aparentemente bem-sucedidos. Alguns tinham trazido os filhos. Será que estavam participando de um protesto político, ou apenas dando um passeio no parque? Grigori imaginou que nem eles próprios tinham certeza.
Na entrada do palácio, viu um rapaz bem-vestido, cujo rosto bonito reconheceu de fotografias nos jornais, e percebeu estar diante do parlamentar trudovique Aleksandr Fedorovich Kerenski. Os trudoviques eram uma facção moderada dissidente dos socialistas revolucionários. Grigori lhe perguntou o que estava acontecendo dentro do palácio.
– O czar dissolveu a Duma formalmente hoje – informou-lhe Kerenski.
Grigori sacudiu a cabeça, revoltado.
– Que reação mais típica – comentou. – Reprimir quem protesta em vez de dar atenção às suas queixas.
Kerenski o encarou firme. Talvez não esperasse uma análise como aquela de um soldado.
– De fato – disse ele. – Seja como for, nós deputados estamos ignorando o decreto do czar.
– O que vai acontecer?
– Quase todos acreditam que as passeatas vão arrefecer assim que as autoridades conseguirem restabelecer o fornecimento de pão – disse Kerenski e entrou.
Grigori se perguntou o que fazia os moderados pensarem que isso iria acontecer. Se as autoridades fossem capazes de restabelecer o fornecimento de pão, já não teriam feito isso, em vez de passarem a racioná-lo? Os moderados, no entanto, sempre pareciam se basear em esperanças, não em fatos.
No início da tarde, Grigori ficou surpreso ao ver os rostos sorridentes de Katerina e Vladimir. Em geral passava os domingos com eles, mas havia imaginado que não os veria naquele dia. Para grande alívio de Grigori, Vladimir parecia disposto e alegre. O menino tinha claramente se recuperado da infecção. O clima estava quente o bastante para Katerina usar o casaco aberto, exibindo a silhueta voluptuosa. Ele desejou poder acariciá-la. Ela lhe deu um sorriso, fazendo-o pensar em como beijaria seu rosto quando os dois estivessem deitados na cama, e Grigori sentiu uma pontada de desejo quase insuportável. Detestava perder aquele momento de intimidade das tardes de domingo.
– Como você soube que eu estaria aqui? – perguntou a ela.
– Um palpite feliz.
– Estou contente por terem vindo, mas é perigoso para vocês ficar no centro da cidade.
Katerina olhou para a multidão que passeava pelo parque.
– Está me parecendo bem seguro.
Grigori foi incapaz de contradizê-la. Não havia sinal de perigo.
Mãe e filho saíram para dar uma volta pelo lago congelado. A respiração de Grigori ficou presa na garganta quando ele viu Vladimir sair andando e cair no chão quase na mesma hora. Katerina levantou o menino, acalmou-o e seguiu em frente. Os dois pareciam tão vulneráveis. O que seria deles?
Quando voltaram, Katerina disse que levaria Vladimir para casa para tirar seu cochilo.
– Passe pelas ruas de trás – disse Grigori. – Fique longe das multidões. Não sei o que pode acontecer.
– Está bem – disse ela.
– Prometa.
– Eu prometo.
Grigori não viu nenhum derramamento de sangue naquele dia, porém à noite, no quartel, ouviu relatos bem diferentes de outros grupos. Na praça Znamenskaya, os soldados haviam recebido ordens para atirar nos manifestantes e 40 pessoas tinham morrido. Grigori sentiu o coração gelar. Katerina poderia ter sido morta só de andar pela rua!
Outros soldados ficaram igualmente indignados e, no refeitório, os ânimos estavam exaltados. Sentindo o estado de espírito dos homens, Grigori subiu em uma das mesas e tomou as rédeas da situação, pedindo ordem e convidando os soldados a falarem um de cada vez. O jantar logo se transformou em um grande comício. O primeiro a quem ele deu a palavra foi Isaak, conhecido por ser a estrela do time de futebol do regimento.
– Eu me alistei no Exército para matar alemães, não russos – disse Isaak, ao que se ouviu um rugido de aprovação. – Os manifestantes são nossos irmãos e irmãs, nossas mães e nossos pais... e o único crime deles é pedir pão!
Grigori conhecia todos os bolcheviques do regimento, portanto convocou vários deles a falar – mas também teve o cuidado de chamar outros, de modo a não parecer parcial demais. Em circunstâncias normais, os homens eram cautelosos ao expressar suas opiniões, por medo de que seus comentários fossem denunciados e eles acabassem sendo punidos – naquele dia, contudo, não pareciam ligar para isso.
O orador mais impressionante foi Yakov, um homem alto e com ombros tão largos quanto os de um urso. Com lágrimas nos olhos, ele subiu na mesa ao lado de Grigori e começou a falar:
– Quando eles nos disseram para atirar, eu não soube o que fazer. – Yakov parecia incapaz de levantar a voz, e o silêncio tomou conta do recinto enquanto os outros homens tentavam escutá-lo. – Eu pedi: “Por favor, Deus, guie meus passos agora”, e escutei meu coração, mas Deus não me deu resposta alguma. – Os homens permaneciam calados. – Ergui meu fuzil – disse Yakov. – O capitão gritava: “Atirem! Atirem!”, mas em quem eu deveria atirar? Na Galícia, sabíamos quem eram nossos inimigos porque eles estavam disparando contra nós. Mas hoje, na praça, ninguém estava nos atacando. Quase todas as pessoas eram mulheres, algumas com crianças. Nem os homens tinham armas.
Ele se calou. Os soldados estavam imóveis como pedras, como se temessem que qualquer movimento pudesse romper aquele transe. Depois de alguns instantes, Isaak o incentivou a continuar:
– E depois, Yakov Davidovich, o que aconteceu?
– Eu puxei o gatilho – respondeu Yakov, e lágrimas escorreram de seus olhos para a barba preta cerrada. – Nem sequer mirei a arma. O capitão estava gritando comigo e eu atirei para ele calar a boca. Mas acertei uma mulher. Uma menina, na verdade. Acho que devia ter uns 19 anos. Ela estava usando um casaco verde. Dei um tiro no peito dela e o sangue se espalhou pelo casaco inteiro, vermelho sobre verde. Então ela caiu. – Àquela altura, ele chorava desbragadamente, falando aos arquejos. – Larguei minha arma e tentei chegar até ela para ajudá-la, mas a multidão veio para cima de mim, me cobrindo de socos e pontapés, embora eu não tenha sentido quase nada. – Ele enxugou o rosto com a manga. – Agora estou encrencado, porque perdi meu fuzil. – Houve outra pausa demorada. – Dezenove anos – disse ele. – Acho que ela devia ter uns 19 anos.
Grigori não havia percebido a porta se abrir, mas, de repente, o tenente Kirillov estava ali.
– Desça desse raio de mesa, Yakov – gritou ele. Olhou para Grigori. – Você também, Peshkov, seu desordeiro. – Então se virou para falar com os homens, sentados em bancos diante de suas mesas de cavalete: – Voltem para seus alojamentos, todos vocês – ordenou. – Qualquer um que permanecer neste recinto mais um minuto vai ser açoitado.
Ninguém se mexeu. Os homens encaravam o tenente com ar de poucos amigos. Grigori se perguntou se era daquela forma que começava um motim.
Yakov, no entanto, estava tomado demais pela própria tristeza para se dar conta do instante dramático que havia criado. Desceu da mesa atabalhoadamente e a tensão se dissipou. Alguns dos homens mais próximos de Kirillov se levantaram, carrancudos, porém amedrontados. Insolente, Grigori ainda continuou em cima da mesa por mais alguns segundos, mas sentiu que os homens ainda não estavam furiosos o suficiente para se voltarem contra um oficial, de modo que acabou descendo. O grupo começou a sair do refeitório. Kirillov não se moveu, fuzilando todos os soldados com o olhar.
Grigori voltou para o alojamento e dali a pouco a sineta tocou, ordenando o apagar das luzes. Como era sargento, ele tinha o privilégio de um recesso protegido por uma cortina nos fundos do dormitório de seu pelotão. Pôde ouvir os homens conversando em voz baixa.
– Não vou atirar em mulheres – disse um deles.
– Nem eu.
Uma terceira voz falou:
– Se fizerem isso, um desses oficiais filhos da mãe vai atirar em vocês por desobediência!
– Vou mirar para errar – disse outra voz.
– Eles podem ver.
– É só mirar um pouco acima das cabeças da multidão. Ninguém vai poder ter certeza do que você está fazendo.
– É isso que eu vou fazer – falou mais uma voz.
– Eu também.
– Eu também.
Veremos, pensou Grigori enquanto se rendia ao sono. No escuro, era fácil dizer palavras corajosas. À luz do dia, a história poderia ser outra.
Na segunda-feira, o pelotão de Grigori marchou por uma curta distância ao longo da Sampsonievsky Prospekt até a ponte Liteiny, com ordens para impedir os manifestantes de atravessarem o rio em direção ao centro da cidade. A ponte tinha pouco mais de 350 metros de comprimento e era sustentada por imensos pilares de pedra, incrustados no rio congelado como dois navios quebra-gelo à deriva.
Era o mesmo trabalho que tinham feito na sexta-feira, mas as ordens eram diferentes. O tenente Kirillov deu as instruções para Grigori. Nos últimos tempos, ele vinha falando como se estivesse constantemente de mau humor, e talvez fosse mesmo o caso: os oficiais provavelmente achavam tão ruim quanto os soldados terem que enfrentar os próprios compatriotas.
– Nenhum manifestante deve atravessar o rio, seja pela ponte ou pelo gelo, entendido? Vocês devem atirar em quem desobedecer aos seus comandos.
Grigori escondeu o desprezo que sentia.
– Sim, Excelência! – respondeu vigorosamente.
Kirillov repetiu as ordens e então desapareceu. Grigori teve a impressão de que o tenente estava com medo. Sem dúvida temia ser responsabilizado pelo que acontecesse, quer suas ordens fossem obedecidas ou desafiadas.
Grigori não tinha a menor intenção de obedecer. Deixaria que os líderes da passeata o atraíssem para uma conversa enquanto seus seguidores atravessavam o gelo, exatamente como havia acontecido na sexta-feira.
No entanto, de manhã bem cedo, um destacamento da polícia veio se juntar ao seu pelotão. Para seu horror, ele viu que os policiais eram liderados por seu velho inimigo, Mikhail Pinsky. Este não parecia estar sofrendo com a escassez de pão: seu rosto redondo estava mais gordo do que nunca, e seu uniforme de policial, apertado na cintura. Ele carregava um alto-falante. Kozlov, seu comparsa com cara de fuinha, não estava por perto.
– Eu conheço você – disse Pinsky a Grigori. – Você trabalhava na Metalúrgica Putilov.
– Até você me forçar a me apresentar ao Exército – respondeu Grigori.
– Seu irmão é um assassino, mas fugiu para os Estados Unidos.
– Isso é você quem diz.
– Ninguém vai atravessar este rio hoje.
– Veremos.
– Espero cooperação total dos seus homens, entendido?
– Não está com medo? – perguntou Grigori.
– Da turba? Não seja idiota.
– Não, do futuro. Imagine se os revolucionários conseguirem o que querem. O que acha que eles vão fazer? Você passou a vida inteira intimidando os fracos, espancando as pessoas, assediando as mulheres e aceitando subornos. Não tem medo de um dia levar o troco?
Pinsky apontou um dedo enluvado para Grigori.
– Vou delatar você como subversivo, seu maldito! – disse ele, afastando-se em seguida.
Grigori deu de ombros. Já não era tão fácil quanto antes para a polícia prender quem bem entendesse. Se Grigori fosse preso, Isaak e outros soldados poderiam se amotinar, e os oficiais sabiam disso.
O dia começou calmo, mas Grigori percebeu que havia poucos trabalhadores nas ruas. Muitas fábricas estavam fechadas por falta de combustível para seus motores a vapor e fornalhas. Outros lugares haviam entrado em greve, com os funcionários exigindo aumento para compensar os preços inflacionados, ou calefação para as oficinas geladas, ou ainda grades de proteção em volta de máquinas perigosas. Na verdade, parecia que ninguém estava indo trabalhar naquele dia. Mas o sol raiou, brilhante, e as pessoas não iriam ficar em casa. De fato, no meio da manhã, Grigori viu uma grande multidão de homens e mulheres usando as roupas esfarrapadas de operários descendo a Sampsonievsky Prospekt.
Grigori tinha 30 soldados e dois cabos sob seu comando. Havia posicionado os homens em quatro fileiras de oito, de uma ponta a outra da rua, impedindo o acesso à ponte. Pinsky tinha mais ou menos o mesmo número de homens, metade a pé e metade a cavalo, e os colocou ao longo dos acostamentos.
Apreensivo, Grigori observou a passeata se aproximar. Era impossível prever o que estava por vir. Sozinho, poderia ter conseguido evitar o derramamento de sangue, oferecendo uma resistência meramente simbólica e então deixando os manifestantes passarem. Contudo, não sabia o que Pinsky pretendia fazer.
Os manifestantes chegaram mais perto. Eram centenas de pessoas – centenas não, milhares. Homens e mulheres com os dólmãs azuis e sobretudos esfarrapados dos operários. A maioria ostentava braçadeiras ou fitas vermelhas. Seus cartazes diziam Abaixo o czar e Pão, paz e terra. Aquilo já não era mais um simples protesto, concluiu Grigori: havia se tornado um movimento político.
Quando os líderes se aproximaram, ele sentiu a tensão aumentar entre seus homens.
Ele se adiantou, indo ao encontro dos manifestantes. Para sua surpresa, quem vinha na frente era Varya, mãe de Konstantin. Seus cabelos grisalhos estavam presos por um lenço vermelho e ela carregava uma bandeira da mesma cor em uma vara grossa.
– Olá, Grigori Sergeivich – disse ela com simpatia. – Vai atirar em mim?
– Não, eu não – retrucou ele. – Mas não posso responder pela polícia.
Embora Varya tivesse parado, os demais continuaram a andar, pressionados pelos milhares de outros que vinham às suas costas. Grigori ouviu Pinsky mandar seus homens a cavalo avançarem. Esses policiais montados, conhecidos como faraós, formavam a tropa mais odiada da força policial. Estavam armados com açoites e cassetetes.
– Tudo o que queremos é ganhar a vida e alimentar nossas famílias – disse Varya. – Não é isso que você quer também, Grigori?
Os manifestantes não enfrentaram os soldados de Grigori, nem tentaram passar por eles para chegar à ponte. Em vez disso, estavam se espalhando ao longo das margens do rio. Os faraós de Pinsky conduziram seus cavalos com nervosismo pelo caminho que ladeava o rio, porém não eram numerosos o suficiente para formar uma barreira contínua. Mas nenhum dos manifestantes queria ser o primeiro a se arriscar, de modo que, por alguns instantes, houve um impasse.
O tenente Pinsky levou seu alto-falante à boca:
– Para trás! – gritou. O instrumento não passava de um pedaço de lata em forma de cone, e só tornava sua voz um pouco mais alta. – Vocês não podem entrar no centro da cidade. Voltem para seus locais de trabalho de maneira ordeira. Isto é uma ordem da polícia. Para trás!
Ninguém recuou – a maioria das pessoas nem escutou o que ele disse –, porém os manifestantes começaram a xingar e vaiar. Do meio da multidão, alguém jogou uma pedra. Ela atingiu a anca de um cavalo, que se espantou. O cavaleiro, pego de surpresa, quase caiu no chão. Furioso, endireitou-se, puxou as rédeas e açoitou o animal. A multidão riu, o que o deixou ainda mais irritado, mas ele conseguiu controlar a montaria.
Um manifestante corajoso aproveitou a distração, driblou um faraó na margem do rio e correu para o meio do gelo. Várias outras pessoas de ambos os lados da ponte o imitaram. Os faraós sacaram seus açoites e cassetetes, girando e empinando os cavalos enquanto golpeavam. Alguns dos manifestantes caíram no chão, mas houve quem conseguisse passar – o que incentivou outros a também tentarem. Em poucos segundos, 30 pessoas ou mais estavam correndo pelo rio congelado.
Para Grigori, aquele era um desfecho favorável. Ele poderia dizer que havia tentado aplicar a proibição – de fato mantivera as pessoas fora da ponte –, mas que o número de manifestantes era grande demais, impossibilitando-o de impedir a multidão de atravessar o gelo.
Pinksy já não pensava assim.
Ele virou seu alto-falante para os policiais armados e disse:
– Apontar!
– Não! – gritou Grigori, mas era tarde demais. Os policiais assumiram posição de tiro, apoiando-se em um dos joelhos, e ergueram os fuzis. Os manifestantes que encabeçavam a multidão tentaram recuar, porém foram empurrados para a frente pelos milhares atrás deles. Alguns correram em direção ao rio, desafiando os faraós.
– Fogo! – gritou Pinsky.
Ao estampido dos tiros, que soavam como fogos de artifício, seguiram-se gritos de medo e dor enquanto os manifestantes caíam mortos ou feridos.
Grigori voltou 12 anos no tempo. Viu a praça em frente ao Palácio de Inverno, as centenas de homens e mulheres ajoelhados, rezando, os soldados com seus fuzis e sua mãe caída no chão com o sangue a se espalhar pela neve. Em sua mente, ouviu Lev, então com 11 anos, gritar: “Ela morreu! Ma morreu, minha mãe morreu!”
– Não – disse ele em voz alta. – Não vou deixar que eles repitam isso. – Girou a trava de segurança de seu fuzil Mosin-Nagant, destravando o ferrolho, e então ergueu a arma até o ombro.
A multidão gritava e corria em todas as direções, pisoteando quem houvesse caído. Os faraós, descontrolados, golpeavam a esmo. A polícia disparava indiscriminadamente contra a multidão.
Grigori mirou Pinsky com cuidado, pretendendo acertar o meio do seu corpo. Não atirava muito bem e o tenente estava a cerca de 60 metros de distância, mas tinha uma chance de acertá-lo. Apertou o gatilho.
Pinsky continuou a gritar pelo alto-falante.
Grigori tinha errado. Abaixou a mira – o fuzil dava uma pequena guinada para cima ao ser disparado – e tornou a apertar o gatilho.
Errou de novo.
A carnificina prosseguia, com a polícia disparando alucinadamente contra a multidão em fuga.
O cartucho do fuzil de Grigori tinha cinco tiros. Ele em geral conseguia acertar alguma coisa com um dos cinco. Disparou uma terceira vez.
Pisnky soltou um grito de dor que foi amplificado pelo alto-falante. Seu joelho direito pareceu se dobrar sob o corpo. Ele soltou o alto-falante e caiu no chão.
Os homens de Grigori seguiram seu exemplo. Atacaram a polícia, alguns com tiros e outros usando os fuzis como porretes. Outros arrancaram os faraós de suas montarias. Os manifestantes tomaram coragem e entraram na briga. Alguns dos que estavam no gelo deram meia-volta e retornaram.
A fúria da turba foi um espetáculo terrível. Desde que qualquer um conseguia se lembrar, a polícia de Petrogrado era de uma brutalidade desdenhosa, indisciplinada e fora de controle, e agora o povo estava se vingando. Policiais caídos no chão eram chutados e pisoteados, os que estivessem em pé eram derrubados e os faraós viram seus cavalos serem abatidos enquanto ainda estavam montados. A polícia resistiu apenas por alguns instantes, então os que conseguiram saíram correndo.
Grigori viu Pinsky se levantar com esforço. Tornou a mirar, louco para acabar com a raça daquele desgraçado, mas um faraó entrou no caminho, puxando Pinsky até o pescoço de seu cavalo e partindo a galope.
Grigori ficou parado, observando a polícia fugir.
Aquela era a maior encrenca em que havia se metido na vida.
Seu pelotão tinha se amotinado. Infringindo diretamente as ordens recebidas, eles haviam atacado a polícia em lugar dos manifestantes. E o exemplo partira dele, ao atirar no tenente Pinsky, que estava vivo para contar a história. Não teria como abafar aquilo, ou dar qualquer desculpa que fizesse alguma diferença – tampouco havia como escapar da punição. Ele era culpado de traição. Poderia ser levado à corte marcial e executado.
Apesar disso, estava feliz.
Varya abriu caminho pela turba. Havia sangue em seu rosto, mas ela estava sorrindo.
– E agora, sargento?
Grigori não iria se resignar a ser punido. O czar estava assassinando seu povo. Já que era assim, seu povo iria contra-atacar.
– Para o quartel – disse. – Vamos armar a classe operária! – Ele arrancou a bandeira vermelha de sua mão. – Sigam-me!
Ele voltou pela Sampsonievsky Prospekt. Logo atrás vinham seus homens, que haviam sido reunidos por Isaak, e em seguida a multidão. Grigori não sabia ao certo o que iria fazer, mas não sentia necessidade de ter um plano: ali, marchando à frente da multidão, tinha a sensação de que era capaz de qualquer coisa.
A sentinela abriu os portões do quartel para os soldados e depois não conseguiu fechá-los para deter os manifestantes. Sentindo-se invencível, Grigori conduziu a marcha pelo pátio de desfiles até o arsenal. O tenente Kirillov saiu do prédio do quartel-general, viu a multidão e saiu correndo na direção dela.
– Ei, homens! – gritou. – Alto lá! Parem onde estão!
Grigori o ignorou.
Kirillov se deteve e sacou o revólver.
– Alto lá! – falou. – Alto, ou eu atiro!
Dois ou três soldados do pelotão de Grigori ergueram os fuzis e atiraram em Kirillov. Várias balas o atingiram e ele caiu no chão, sangrando.
Grigori seguiu em frente.
O arsenal era protegido por dois soldados. Nenhum deles tentou impedir Grigori, que usou os dois últimos tiros de seu cartucho para arrancar a fechadura das portas de madeira maciça. A multidão então invadiu o arsenal, empurrando e acotovelando-se para pegar as armas. Alguns dos homens de Grigori assumiram o comando, abrindo caixotes de madeira cheios de fuzis e revólveres e distribuindo-os junto com caixas de munição.
É isso, pensou Grigori. Uma revolução. Estava ao mesmo tempo eufórico e aterrorizado.
Armou-se com dois dos revólveres Nagant que eram distribuídos aos oficiais, recarregou seu fuzil e encheu os bolsos de munição. Não tinha certeza do que pretendia fazer, mas, agora que era um criminoso, precisava de armas.
Os demais soldados do quartel aderiram ao saque ao arsenal e logo todos estavam armados até os dentes.
Carregando a bandeira vermelha de Varya, Grigori conduziu a multidão para fora do quartel. As passeatas sempre seguiam em direção ao centro da cidade. Acompanhado de Isaak, Yakov e Varya, ele atravessou a ponte até a Liteiny Prospekt, tomando o rumo do abastado centro de Petrogrado. Tinha a sensação de estar voando ou então sonhando, como se houvesse bebido um gole generoso de vodca. Passara anos falando sobre desafiar a autoridade do regime, mas agora estava fazendo isso de verdade e sentia-se um novo homem, uma criatura diferente, um pássaro. Recordou as palavras do velho que havia falado com ele depois de sua mãe morrer baleada. “Que você viva muito”, dissera ele enquanto Grigori se afastava do Palácio de Inverno, carregando o corpo da mãe. “Que viva o suficiente para se vingar do czar coberto de sangue pelo mal que fez hoje.” Talvez seu desejo se realize, velho, pensou ele, exultante.
O Primeiro Regimento de Metralhadoras não foi o único a ter se amotinado naquela manhã. Quando ele chegou ao outro lado da ponte, ficou ainda mais animado ao ver as ruas cheias de soldados usando os quepes virados para trás ou os casacos desabotoados, em desobediência ao regulamento. A maioria exibia braçadeiras ou fitas vermelhas na lapela para mostrar que eram revolucionários. Carros confiscados passavam roncando, dirigidos sem a menor cautela, com canos de fuzil e baionetas despontando pelas janelas e moças sentadas no colo dos soldados, às gargalhadas, lá dentro. As barreiras e postos de controle da véspera tinham sumido. As ruas haviam sido tomadas pelo povo.
Grigori viu uma loja de vinhos com a vitrine quebrada e a porta derrubada. Um soldado e uma garota saíram lá de dentro, com uma garrafa em cada mão, pisoteando o vidro quebrado. Ao lado, o dono de um café havia disposto pratos de peixe defumado e rodelas de linguiça em uma mesa na calçada e estava postado ao lado dela, com uma fita vermelha na lapela, sorrindo com nervosismo e convidando os soldados a se servirem. Grigori imaginou que ele estivesse tentando garantir que o seu estabelecimento não fosse invadido e saqueado como a loja de vinhos.
Conforme eles se aproximavam do centro, o clima de folia aumentava. Embora fosse apenas meio-dia, algumas pessoas já estavam bastante embriagadas. As garotas pareciam dispostas a beijar qualquer um que estivesse usando uma braçadeira vermelha, e Grigori viu um soldado apalpando explicitamente os seios fartos de uma sorridente mulher de meia-idade. Algumas garotas tinham vestido uniformes de soldado e andavam com afetação pelas ruas, usando quepes e botas grandes demais para elas e sentindo-se obviamente liberadas.
Um Rolls-Royce lustroso veio chegando pela rua e a multidão tentou detê-lo. O motorista pisou no acelerador, mas alguém abriu a porta e puxou-o para fora do carro. As pessoas se acotovelaram para tentar entrar. Grigori viu o conde Maklakov, um dos diretores da Metalúrgica Putilov, sair atabalhoado do banco de trás. Lembrou-se de como Maklakov ficara encantado com a princesa Bea no dia em que ela havia visitado a fábrica. A multidão zombou do conde, mas não o agrediu enquanto ele se afastava às pressas, erguendo a gola de pele do casaco até as orelhas. Umas nove ou dez pessoas se apertaram dentro do Rolls-Royce e alguém saiu dirigindo o carro, buzinando alegremente.
Na esquina seguinte, um pequeno grupo atormentava um homem alto, vestido como um trabalhador de classe média, com seu chapéu de feltro e seu sobretudo já bastante puído. Um soldado o cutucava com o cano do fuzil e uma velha lhe dava cusparadas, enquanto um rapaz de macacão de operário jogava um punhado de lixo nele.
– Deixem-me passar! – pediu o homem, tentando imprimir autoridade à sua voz, mas fazendo apenas as pessoas rirem. Grigori reconheceu a silhueta magra de Kanin, o supervisor da seção de fundição da Metalúrgica Putilov. Seu chapéu caiu e Grigori notou que ele havia ficado careca.
Grigori abriu caminho pela pequena multidão.
– Não há nada de errado com este homem! – gritou. – Ele é engenheiro, eu trabalhava com ele.
Kanin o reconheceu.
– Obrigado, Grigori Sergeivich – agradeceu ele. – Só estou tentando chegar à casa da minha mãe para ver se ela está bem.
Grigori virou-se para a multidão.
– Deixem-no passar – falou. – Eu me responsabilizo por ele. – Viu uma mulher carregando um rolo de fita vermelha, provavelmente saqueado de algum armarinho, e pediu-lhe um pedaço. Ela cortou um pouco de fita com uma tesoura e Grigori a amarrou em volta da manga esquerda do casaco de Kanin. A multidão vibrou.
– Agora o senhor vai estar seguro – disse Grigori.
Kanin apertou-lhe a mão, afastando-se dali, e as pessoas o deixaram passar.
O grupo de Grigori chegou à Nevsky Prospekt, a ampla rua comercial que ia do Palácio de Inverno até a estação ferroviária Nikolaevsky. A rua estava repleta de gente bebendo direto do gargalo, beijando-se e dando tiros para o alto. Os restaurantes ainda abertos ostentavam cartazes que diziam “Comida grátis para os revolucionários!” e “Comam quanto quiserem, paguem quanto puderem!”. Muitas lojas haviam sido invadidas e havia cacos de vidro por todo o calçamento. Um dos odiados bondes – caros demais para serem usados pelos operários – tinha sido virado no meio da rua e um carro Renault batera nele.
Grigori ouviu um tiro de fuzil, porém, como foi um entre muitos, durante um segundo ele não deu importância; mas então Varya, que estava ao seu lado, cambaleou e caiu no chão. Grigori e Yakov se ajoelharam junto dela, um de cada lado. A mulher parecia inconsciente. Com alguma dificuldade, os dois viraram seu corpo pesado e viram na mesma hora que não havia mais nada a fazer: um tiro a atingira na testa e seus olhos estavam voltados para cima, sem enxergar mais nada.
Grigori não se permitiu sentir tristeza, nem por si mesmo, nem pelo filho de Varya, seu melhor amigo, Konstantin. Havia aprendido no campo de batalha a revidar primeiro e prantear depois. Mas seria aquilo um campo de batalha? Quem poderia querer matar Varya? O ferimento, contudo, indicava um tiro tão certeiro que ele mal podia crer que ela tivesse sido vítima de uma bala perdida, disparada a esmo.
No instante seguinte, sua pergunta foi respondida. Yakov caiu ajoelhado, com o peito sangrando. Seu corpo pesado desabou sobre as pedras do calçamento com um baque.
Grigori se afastou dos dois corpos dizendo:
– Que droga é essa?
Agachou-se, tornando-se um alvo menos visível, e olhou em volta depressa à procura de abrigo.
Ouviu outro tiro e um soldado que passava com um cachecol vermelho amarrado em volta do quepe foi ao chão, agarrando a própria barriga.
Havia um atirador por perto, e ele estava mirando nos revolucionários.
Grigori correu três passos e mergulhou atrás do bonde virado.
Uma mulher gritou, depois outra. As pessoas viram os corpos ensanguentados e começaram a sair correndo.
Grigori levantou a cabeça e vasculhou os prédios em volta. O atirador devia ser um fuzileiro da polícia, mas onde estaria ele? Grigori achava que o estampido do tiro de fuzil tinha vindo do outro lado da rua, a menos de um quarteirão de distância. Os prédios reluziam sob a luz da tarde. Havia um hotel, uma joalheria com as persianas de aço fechadas, um banco e, na esquina, uma igreja. Ele não viu nenhuma janela aberta, de modo que o atirador só podia estar em cima de algum telhado. O único que oferecia abrigo era o da igreja, uma construção de pedra em estilo barroco com torres, parapeitos e uma cúpula em forma de cebola.
Mais um tiro ecoou e uma mulher vestida de operária gritou e caiu segurando o próprio ombro. Grigori teve certeza de que o som viera da igreja, mas não viu fumaça alguma. Isso provavelmente queria dizer que a polícia havia abastecido seus atiradores com munição que não produzia fumaça. Aquilo era mesmo uma guerra.
Agora, um quarteirão inteiro da Nevsky Prospekt estava deserto.
Grigori mirou o fuzil no parapeito que corria por cima da parede lateral da igreja. Era a posição de tiro que ele teria escolhido, pois dava vista para a rua inteira. Ficou observando com atenção. Com o canto do olho, viu mais dois fuzis apontando na mesma direção que o seu, empunhados por soldados que haviam buscado abrigo ali perto.
Um soldado e uma garota chegaram cambaleando pela rua, ambos embriagados. A garota dançava alegremente, erguendo a saia do vestido para exibir os joelhos, enquanto seu namorado valsava ao redor dela, apoiando o fuzil no pescoço e fingindo tocá-lo como se fosse um violino. Os dois usavam braçadeiras vermelhas. Várias pessoas gritaram palavras de alerta, mas o casal não escutou. Quando passaram pela igreja, felizes e alheios ao perigo, dois tiros ecoaram e o soldado e sua namorada caíram no chão.
Novamente, Grigori não viu nenhuma espiral de fumaça – mas mesmo assim disparou, furioso, contra o parapeito acima da porta da igreja, esvaziando o cartucho do fuzil. Seus tiros lascaram a pedra da fachada e levantaram pequenas nuvens de pó. Os outros dois fuzis também dispararam e Grigori viu que estavam atirando na mesma direção, contudo não parecia que nenhum deles houvesse acertado algo.
Aquilo era impossível, pensou Grigori enquanto recarregava a arma. Eles estavam disparando contra um alvo invisível. O atirador devia estar deitado, bem afastado da borda, de modo que nenhuma parte de sua arma despontasse por entre as colunas do parapeito.
Mas alguém precisava detê-lo. Ele já havia matado Varya, Yakov, dois soldados e uma garota inocente.
Só havia uma forma de alcançá-lo: subir no telhado.
Grigori tornou a atirar contra o parapeito. Como já esperava, isso fez os outros dois soldados atirarem também. Imaginando que o atirador devesse ter abaixado a cabeça por alguns segundos, Grigori se levantou, abandonando a proteção do bonde virado e correndo até o outro lado da rua, onde colou o corpo à vitrine de uma livraria – uma das poucas lojas que não haviam sido saqueadas.
Mantendo-se dentro da sombra vespertina lançada pelos prédios, foi avançando pela rua até a igreja. Ela era separada do banco ao seu lado por um beco. Ele aguardou pacientemente por vários minutos, até o tiroteio recomeçar – então disparou pelo beco e parou com as costas viradas para a lateral leste da igreja.
Será que o atirador o vira correr e adivinhara seu plano? Não tinha como saber.
Sem descolar o corpo da parede, contornou a igreja até chegar a uma pequena porta. Estava destrancada. Entrou sem fazer barulho.
Era uma igreja suntuosa, lindamente decorada de mármore vermelho, verde e amarelo. Não havia missa naquela hora, porém 20 ou 30 fiéis estavam em pé ou sentados, de cabeça baixa, fazendo suas preces individuais. Grigori vasculhou o recinto, em busca de uma porta que pudesse levar a uma escada. Percorreu a nave a passos largos, temendo que mais pessoas estivessem sendo mortas a cada minuto que demorasse.
Um jovem padre, incrivelmente bonito com seus cabelos pretos e sua pele branca, viu o fuzil em sua mão e abriu a boca para protestar, mas Grigori o ignorou e passou depressa por ele.
No vestíbulo, viu uma portinha de madeira em uma parede. Quando a abriu, se deparou com uma escada em caracol que subia. Atrás dele, uma voz disse:
– Pare, meu filho. O que está fazendo?
Ele se virou e viu o jovem padre.
– Esta escada leva ao telhado?
– Eu sou o padre Mikhail. Você não pode entrar com essa arma na casa de Deus.
– Tem um atirador no seu telhado.
– Ele é da polícia!
– O senhor sabia? – Grigori encarou o padre, incrédulo. – Ele está matando gente!
O padre ficou calado.
Grigori subiu a escada correndo.
Um vento frio soprava de algum lugar lá em cima. Era evidente que o padre Mikhail estava do lado da polícia. Será que havia algum jeito de o padre avisar o atirador? Não, a menos que ele corresse até a rua e acenasse – o que provavelmente o faria tomar um tiro.
Depois de uma longa subida quase no escuro, Grigori viu outra porta.
Quando seus olhos chegaram ao mesmo nível da parte de baixo da porta, o que fazia dele um alvo ainda bem pequeno, ele a abriu alguns centímetros com a mão esquerda, mantendo o fuzil na direita. A luz forte do sol entrou pela brecha. Ele escancarou a porta.
Não viu ninguém.
Apertou os olhos para protegê-los do sol e examinou a área visível através do pequeno retângulo do portal. Estava no campanário. A porta se abria para o sul. A Nevsky Prospekt ficava do lado norte da igreja. O atirador estava do outro lado – a não ser que tivesse mudado de lugar para emboscar Grigori.
Com cautela, Grigori subiu um degrau, depois outro e espichou a cabeça para fora.
Nada aconteceu.
Ele atravessou a porta.
Sob seus pés, o telhado pouco inclinado descia até uma calha, que margeava um parapeito decorativo. Tábuas de madeira enfileiradas permitiam que trabalhadores se movimentassem por ali sem pisar nas telhas. Às suas costas, a torre se erguia até a abertura do sino.
Com a arma na mão, ele contornou a torre.
Na primeira quina, deparou-se com a Nevsky Prospekt, que se estendia na direção oeste. Sob a luz forte, podia ver o Jardim Alexander e o Almirantado na outra ponta. A meia distância, a rua estava abarrotada de gente, mas não havia ninguém nas proximidades da igreja. O atirador ainda devia estar em ação.
Grigori apurou os ouvidos, mas não escutou nenhum tiro.
Seguiu dando a volta na torre até poder espiar pela quina seguinte. Lá chegando, conseguiu ver toda a parede norte da igreja. Tinha certeza de que encontraria o policial ali, deitado de bruços, atirando por entre os pilares do parapeito – mas não viu ninguém. Para além do parapeito, podia ver a larga rua mais abaixo, com pessoas acocoradas nos vãos das portas e encolhidas nas esquinas, esperando para ver o que iria acontecer.
Logo em seguida, o fuzil do atirador disparou. Um grito vindo da rua informou a Grigori que o homem havia atingido seu alvo.
O tiro viera de cima da cabeça de Grigori.
Ele ergueu os olhos. O campanário tinha várias janelas sem vidraças e era cercado por pequenas torres abertas, situadas em diagonal nas quinas. O atirador estava lá em cima em algum lugar, disparando por uma das muitas aberturas disponíveis. Por sorte, Grigori havia permanecido bem colado à parede, o que o deixara invisível para o atirador.
Ele voltou para dentro do campanário. No espaço exíguo da escada, seu fuzil lhe pareceu grande e difícil de manejar. Ele o largou no chão e sacou um dos revólveres. Pelo peso dele, soube que estava vazio. Soltou um palavrão: carregar um Nagant M1895 era tarefa demorada. Tirou uma caixa de balas do bolso do uniforme e inseriu sete delas, uma a uma, pela complexa abertura de carregamento do revólver. Então puxou o cão para trás.
Deixando para trás o fuzil, subiu a escada em caracol pé ante pé. Manteve um ritmo constante, sem querer se esforçar a ponto de sua respiração ficar audível. Segurava o revólver na mão direita, apontando-o escada acima.
Dali a poucos segundos, sentiu cheiro de fumaça.
O atirador estava fumando um cigarro. Mas o cheiro pungente de fumo queimado era capaz de percorrer uma longa distância, de modo que Grigori não podia ter certeza de quão perto estava o outro homem.
À frente e acima de onde estava, viu um reflexo de luz do sol. Subiu agachado, pronto para atirar. A luz entrava por uma janela sem vidraça. O atirador não estava ali.
Grigori subiu mais um pouco e tornou a ver luz. O cheiro de fumaça ficou mais forte. Seria imaginação sua ou ele estava mesmo sentindo a presença do atirador um pouco mais à frente, depois da curva da escada? Se fosse o caso, será que o atirador também sentia a presença dele?
Ouviu o som de alguém inspirando com força. Levou um susto tão grande que quase puxou o gatilho. Então se deu conta de que era o barulho que você fazia ao tragar um cigarro. Logo em seguida, escutou o ruído mais suave e satisfeito do fumante soltando a fumaça.
Hesitou. Não sabia para que lado o homem estava olhando, nem para onde sua arma poderia estar apontada. Queria ouvir novamente o disparo do fuzil, pois isso lhe diria que a atenção do atirador estava voltada para o lado de fora.
Aguardar poderia significar outra morte, outro Yakov ou outra Varya sangrando sobre as pedras frias do calçamento. Por outro lado, se Grigori fracassasse, quantas outras pessoas seriam abatidas pelo policial naquela tarde?
Ele se forçou a ter paciência. Era como estar no campo de batalha. Não se podia sair correndo para socorrer um companheiro ferido, sacrificando assim a própria vida. Você só devia correr riscos quando os motivos eram incontornáveis.
Ele ouviu outra tragada, seguida por uma longa expiração, e instantes depois a guimba amassada de um cigarro veio descendo a escada, ricocheteando na parede e aterrissando aos seus pés. Ouviu-se o barulho de um homem mudando de posição dentro de um espaço apertado. Então Grigori escutou murmúrios abafados, a maioria deles parecendo insultos:
– Porcos... revolucionários... judeus fedidos... putas doentes... débeis mentais... – O atirador estava se preparando para matar novamente.
Se Grigori conseguisse detê-lo naquele instante, salvaria pelo menos uma vida.
Ele subiu mais um degrau.
Os murmúrios prosseguiram:
– Animais... eslavos... ladrões e criminosos... – A voz lhe pareceu um tanto familiar, e Grigori se perguntou se já conhecia aquele sujeito.
Deu mais um passo e então viu os pés do homem, calçados com botas de couro preto novas em folha, do tipo usado pela polícia. Eram pés pequenos: o atirador era um homem baixo. Estava apoiado sobre um dos joelhos, a posição mais estável para atirar. Grigori pôde ver que ele havia se posicionado dentro de uma das pequenas torres de quina, para que conseguisse atirar em três direções diferentes.
Mais um degrau, pensou Grigori, e poderei lhe dar um tiro na cabeça.
Ele subiu o degrau seguinte, mas a tensão o fez pisar em falso. Ele tropeçou, caiu e a arma escapou de sua mão, aterrissando no degrau de pedra com um ruído metálico.
O atirador xingou alto, assustado, e olhou em volta.
Com espanto, Grigori reconheceu o comparsa de Pinsky, Ilya Kozlov.
Tentou agarrar a arma no chão, mas não conseguiu. O revólver foi caindo pela escadaria de pedra com uma lentidão torturante, degrau por degrau, até ir parar bem fora do seu alcance.
Kozlov começou a se virar, porém, ajoelhado como estava, não conseguiu se mover depressa.
Grigori recuperou o equilíbrio e subiu mais um degrau.
Kozlov tentou girar o fuzil. Era o Mosin-Nagant padrão do Exército russo, mas com uma mira telescópica acoplada. Mesmo sem a baioneta, o fuzil tinha mais de um metro de comprimento, de modo que Kozlov não conseguiu prepará-lo com rapidez suficiente. Movendo-se depressa, Grigori chegou mais perto, batendo com o ombro esquerdo no cano do fuzil. Kozlov apertou o gatilho inutilmente e uma bala ricocheteou pela parede curva do vão da escada.
Kozlov saltou de pé com uma agilidade surpreendente. Tinha uma cabeça pequena e um rosto cruel e, em algum lugar de sua mente, Grigori imaginou que ele tivesse se tornado atirador para se vingar de todos os meninos – e meninas – maiores que algum dia o houvessem maltratado.
Grigori conseguiu agarrar o fuzil e os dois homens lutaram pela arma, um de frente para o outro na pequena torre apertada, ao lado da janela sem vidraça. Grigori ouviu gritos de empolgação e imaginou que as pessoas na rua provavelmente conseguiam vê-los.
Grigori era maior e mais forte e sabia que conseguiria se apoderar da arma. Kozlov também percebeu isso, então a largou de repente. Grigori cambaleou para trás. Em uma fração de segundo, o policial sacou seu cassetete de madeira curto e golpeou, acertando Grigori na cabeça. Por alguns instantes, Grigori viu estrelas. Com a vista embaçada, notou que Kozlov tornava a erguer o cassetete. Levantou o fuzil e o cassetete acertou o cano. Antes de o policial poder desferir um novo golpe, Grigori soltou a arma, agarrou a frente do casaco de Kozlov com as duas mãos e o ergueu do chão.
O outro homem era franzino e não pesava quase nada. Grigori manteve-o suspenso por alguns instantes. Então, usando toda a sua força, atirou-o pela janela.
Kozlov pareceu cair pelo ar muito lentamente. A luz do sol cintilou nos ornamentos verdes do seu uniforme enquanto ele voava por cima do parapeito do telhado da igreja. Um grito demorado de puro terror ecoou pelo silêncio. Ele então atingiu o solo com um baque que pôde ser ouvido mesmo do campanário. O berro se interrompeu abruptamente.
Após alguns instantes de silêncio, uma ovação se fez ouvir.
Grigori se deu conta de que era a ele que as pessoas estavam ovacionando. Podiam ver o uniforme da polícia no chão e a farda do Exército na pequena torre, então deduziram o que havia acontecido. Enquanto ele observava, elas emergiam de vãos de portas e esquinas e iam se postar no meio da rua, com os olhos erguidos em sua direção, gritando e aplaudindo. Ele era um herói.
Não ficou à vontade com a situação. Havia matado várias pessoas na guerra, e há tempos que não se deixava abalar por isso, mas ainda assim achava difícil comemorar outra morte, por mais que Kozlov tivesse merecido. Continuou onde estava por algum tempo, deixando-se aplaudir, mas sentindo-se constrangido. Então se abaixou para entrar de volta e desceu a escada em caracol.
No caminho, recolheu seu revólver e seu fuzil. Quando chegou à igreja, o padre Mikhail estava à sua espera com um ar amedrontado. Grigori apontou o revólver para ele.
– Eu deveria lhe dar um tiro – falou. – Aquele policial que o senhor deixou subir no telhado matou dois amigos meus e pelo menos três outras pessoas. O senhor é um demônio assassino por ter permitido que ele fizesse isso. – O padre ficou tão chocado ao ser chamado de demônio que não soube o que responder. Grigori, no entanto, não conseguiu se forçar a atirar em um civil desarmado, então soltou um grunhido e saiu da igreja.
Os homens de seu pelotão estavam à sua espera e soltaram rugidos de aprovação quando ele emergiu à luz do sol. Não pôde evitar que o erguessem nos ombros e saíssem carregando-o em procissão.
De cima dos seus braços, ele notou que o clima na rua estava diferente. As pessoas estavam mais embriagadas e em cada quarteirão havia uma ou outra desmaiada pelas soleiras. Ele ficou surpreso ao ver homens e mulheres fazendo muito mais do que apenas trocar beijos nos becos. Todos estavam armados: sem dúvida a turba havia assaltado outros arsenais e talvez até fábricas de armamentos. Em cada cruzamento havia carros batidos, alguns com ambulâncias e médicos cuidando dos feridos. Além dos adultos, havia crianças na rua, sendo que os meninos pequenos eram os que mais se divertiam, roubando comida, fumando cigarros e brincando dentro de carros abandonados.
Grigori viu uma loja de peles sendo saqueada com uma eficiência que lhe pareceu profissional e identificou Trofim, ex-comparsa de Lev, carregando braçadas de casacos de pele para fora da loja e empilhando-os em um carrinho de mão sob o olhar de outro amigo de Lev, o policial corrupto Fyodor, que vestira um sobretudo do tipo que os camponeses usavam para esconder o uniforme. Os criminosos da cidade viam a revolução como uma oportunidade.
Depois de algum tempo, os homens de Grigori o puseram no chão. A tarde estava escurecendo e várias fogueiras haviam sido acesas na rua. Em volta delas, pessoas reunidas bebiam e cantavam canções.
Grigori ficou pasmo ao ver um menino de cerca de 10 anos pegar a pistola de um soldado desmaiado. Era uma Luger P08 automática de cano comprido, normalmente fornecida às guarnições de artilharia alemãs: o soldado devia tê-la pego de um prisioneiro no front. O menino segurou a arma com as duas mãos, sorrindo, e apontou-a para o homem no chão. Quando Grigori avançou para tirar-lhe a pistola das mãos, o menino puxou o gatilho e uma bala se enterrou no peito do soldado embriagado. O menino gritou, mas, de tanto susto, manteve o gatilho puxado, de modo que a pistola automática continuou a disparar. O coice da arma empurrou o braço do menino para cima e ele disparou uma chuva de balas, acertando uma senhora de idade e outro soldado, até esvaziar o cartucho de oito tiros. Então largou a pistola.
Antes que Grigori pudesse reagir ao horror que sentia, ouviu um grito e se virou. No vão da porta de uma chapelaria fechada, um casal fazia sexo. A mulher, de costas para a parede, tinha a saia erguida até a cintura e as pernas abertas; seus pés calçados com botas estavam fincados no chão. O homem, que usava uma farda de cabo, estava enfiado no meio de suas pernas, com os joelhos dobrados e a calça aberta, estocando. Ao redor dos dois, o pelotão de Grigori aplaudia.
O homem pareceu atingir o orgasmo. Recuou depressa, deu as costas para a mulher e abotoou a braguilha enquanto ela puxava a saia para baixo. Um soldado chamado Igor disse:
– Espere um instante. Agora é a minha vez! – Então levantou a saia da mulher, exibindo suas pernas brancas.
Os outros vibraram.
– Não! – disse a mulher, tentando afastá-lo. Ela estava bêbada, mas não indefesa.
Igor era um homem baixinho e musculoso, dotado de uma força imprevisível. Ele a empurrou em direção à parede e agarrou-lhe os pulsos.
– Vamos lá – falou. – Um soldado a mais, outro a menos não faz diferença.
A mulher se debateu, mas dois outros soldados a seguraram para imobilizá-la.
O primeiro parceiro dela falou:
– Ei, deixem-na em paz!
– Você já teve a sua vez, agora sou eu – disse Igor, desabotoando a calça.
A cena deixou Grigori revoltado.
– Parem com isso! – gritou ele.
Igor lançou-lhe um olhar desafiador.
– Está me dando essa ordem como oficial, Grigori Sergeivich?
– Como oficial não... como ser humano! – respondeu Grigori. – Ora, Igor, você está vendo que ela não o quer. Há muitas outras mulheres por aí.
– Eu quero esta. – Igor olhou em volta. – Todos nós queremos esta... não é, rapazes?
Grigori deu um passo à frente e parou com as mãos nos quadris.
– Vocês são homens ou cachorros? – gritou. – A mulher disse não! – Ele passou o braço ao redor do revoltado Igor. – Me diga uma coisa, camarada – pediu. – Tem algum lugar por aqui onde um homem possa tomar um trago?
Igor abriu um sorriso, os soldados vibraram e a mulher escapuliu.
– Estou vendo um pequeno hotel do outro lado da rua – disse Grigori. – O que acham de perguntarmos ao dono se ele por acaso tem um pouco de vodca?
Os homens tornaram a vibrar e todos entraram no hotel.
No saguão, um dono assustado servia cerveja de graça. Grigori achou a atitude sensata. Os homens demoravam mais tempo para beber cerveja do que vodca, o que os deixava menos propensos a ficarem violentos.
Ele aceitou um copo e deu um gole generoso. Sua euforia havia desaparecido. Era como se tivesse ficado sóbrio depois de um momento de embriaguez. O incidente com a mulher na soleira o deixara estarrecido, e ver o menininho disparando a pistola automática tinha sido horrível. Para se fazer uma revolução, não bastava apenas livrar-se dos grilhões. Armar o povo era arriscado. Permitir aos soldados confiscar os carros da burguesia era quase igualmente letal. Até mesmo a liberdade aparentemente inofensiva de beijar quem você bem entendesse havia conduzido, em poucas horas, a uma tentativa de estupro coletivo por parte do pelotão de Grigori.
Aquilo não podia continuar.
Era preciso haver ordem. Não que Grigori quisesse voltar aos velhos tempos, é claro. O czar lhes dera filas para comprar pão, uma polícia violenta e soldados sem botas. Contudo, era preciso haver liberdade sem caos.
Grigori murmurou uma desculpa dizendo que precisava urinar e abandonou seus homens. Voltou pelo mesmo caminho da vinda, a Nevsky Prospekt. O povo tinha vencido a batalha do dia. A polícia e os oficiais do Exército do czar haviam sido derrotados. No entanto, se isso conduzisse apenas a uma orgia de violência, o povo não tardaria a clamar pelo retorno do antigo regime.
Quem estava no comando? Pelo que Kerenski tinha contado a Grigori na véspera, a Duma havia desafiado o czar e se recusado a fechar. O Parlamento era um tanto impotente, mas pelo menos simbolizava a democracia. Grigori resolveu ir até o Palácio Tauride para ver se havia algo acontecendo por lá.
Andou na direção norte até o rio, depois para o leste até os jardins do palácio. Quando chegou, a noite já havia caído. A fachada clássica do palácio tinha dúzias de janelas e todas estavam acesas. Vários milhares de pessoas haviam tido a mesma ideia de Grigori, de modo que o amplo pátio frontal estava abarrotado de soldados e operários zanzando de um lado para outro.
Um homem com um alto-falante fazia um pronunciamento, repetindo sem parar as mesmas palavras. Grigori abriu caminho até a frente para poder ouvir.
– O Grupo de Trabalhadores do Comitê de Indústrias de Guerra foi libertado da prisão Kresty – gritava o homem.
Grigori não sabia ao certo que grupo era esse, mas o nome soava bem.
– Junto com outros camaradas, eles formaram o comitê executivo provisório do Soviete de Delegados dos Trabalhadores.
Grigori gostou da ideia. Um soviete era um conselho de representantes. Em 1905, havia sido criado um soviete de São Petersburgo. Grigori tinha apenas 16 anos na época, mas sabia que o conselho fora eleito por operários e organizara greves. Ele possuía um líder carismático, chamado Leon Trótski, que desde então estava exilado.
– Tudo isso será anunciado oficialmente em uma edição extra do jornal Izvestia. O comitê executivo formou uma comissão de abastecimento alimentar para garantir que os operários e os soldados tenham o que comer. Também criou uma comissão militar para amparar a revolução.
Não houve menção à Duma. A multidão aplaudia, porém Grigori tinha dúvidas se os soldados aceitariam receber ordens de uma comissão militar autonomeada. Onde estava a democracia nisso tudo?
Sua pergunta foi respondida pela última frase do pronunciamento:
– O comitê convoca os operários e os soldados a elegerem representantes para o soviete o quanto antes e a enviarem esses representantes aqui para o palácio de modo que possam participar do novo governo revolucionário!
Era isso que Grigori queria escutar. O novo governo revolucionário – um soviete de operários e soldados. Agora sim haveria mudança sem desordem. Cheio de entusiasmo, ele saiu do pátio e começou a voltar para o quartel. Mais cedo ou mais tarde, os homens retornariam para suas camas. Mal podia esperar para lhes dar a notícia.
Então, pela primeira vez, eles teriam uma eleição.
Na manhã do dia seguinte, o Primeiro Regimento de Metralhadoras se reuniu no pátio de desfiles para eleger um delegado para o soviete de Petrogrado. Isaak sugeriu o sargento Grigori Peshkov.
Ele foi eleito por unanimidade.
Grigori ficou satisfeito. Conhecia a vida dos soldados e dos operários e levaria o cheiro de óleo de máquina da vida real para os corredores do poder. Jamais colocaria uma cartola na cabeça e esqueceria suas raízes. Iria garantir que a revolta conduzisse a melhorias, e não a uma violência descontrolada. Agora tinha uma chance concreta de construir uma vida melhor para Katerina e Vladimir.
Ele atravessou depressa a ponte Liteiny, sozinho desta vez, e tomou o caminho do Palácio Tauride. A prioridade no momento tinha que ser o pão. Katerina, Vladimir e os outros 2,5 milhões de habitantes de Petrogrado precisavam comer. E, agora que havia assumido a responsabilidade – pelo menos na sua imaginação –, ficou apreensivo. Os agricultores e donos de moinhos da zona rural precisavam mandar mais farinha para os padeiros de Petrogrado imediatamente, mas só fariam isso depois que fossem pagos. Como o soviete iria garantir que houvesse dinheiro suficiente? Ele começou a achar que derrubar o governo havia sido a parte mais fácil.
O palácio tinha uma fachada central comprida e duas alas. Grigori descobriu que tanto a Duma quanto o soviete estavam reunidos. Como não poderia deixar de ser, a Duma – o antigo Parlamento de classe média – ocupava a ala direita, enquanto o soviete, a esquerda. Mas quem estava no comando? Ninguém sabia. Primeiro era preciso resolver isso, pensou Grigori com impaciência, antes de poderem cuidar dos problemas de verdade.
Nos degraus do palácio, Grigori viu a figura alta e magra de Konstantin, com sua cabeleira negra. Foi quando percebeu, chocado, que não fizera menção alguma de avisar Konstantin sobre a morte de sua mãe, Varya. Contudo, viu na mesma hora que o amigo já sabia. Além da braçadeira vermelha, Konstantin usava um cachecol preto amarrado em volta do chapéu.
Grigori lhe deu um abraço.
– Eu estava lá quando aconteceu – falou.
– Foi você quem matou o atirador da polícia?
– Sim.
– Obrigado. Mas a verdadeira vingança será a revolução.
Konstantin havia sido eleito um dos dois delegados da Metalúrgica Putilov. Durante a tarde, cada vez mais representantes foram chegando – até que, no início da noite, já eram mais de três mil amontoados no imenso Salão Catarina. Quase todos eram soldados. Como se organizavam em regimentos e pelotões, Grigori imaginou que tivesse sido mais fácil para eles realizarem eleições do que para os operários, muitos dos quais estavam proibidos de entrar em seus locais de trabalho. Alguns delegados tinham sido eleitos por umas poucas dúzias de pessoas, outros por milhares. A democracia não era tão simples quanto parecia.
Alguém propôs que o nome do conselho deveria ser trocado para Soviete dos Delegados de Operários e Soldados de Petrogrado, ideia que foi aprovada ao som de aplausos ensurdecedores. Não parecia existir nenhum procedimento estabelecido. Não havia pauta, nem resoluções sendo propostas ou apoiadas, nem mecanismo de votação. As pessoas apenas se levantavam e falavam, geralmente mais de uma de cada vez. No palanque, vários homens com uma aparência suspeita de classe média tomavam notas, e Grigori supôs que fossem os membros do comitê executivo formado na véspera. Pelo menos alguém estava registrando as atas.
Apesar do caos preocupante, a atmosfera era de tremenda animação. Todos sentiam ter travado uma batalha e vencido. Fosse qual fosse o resultado, estavam construindo um mundo novo.
Mas ninguém falava em pão. Frustrados com a falta de atitude do soviete, Grigori e Konstantin deixaram o Salão Catarina em um momento particularmente caótico e atravessaram o palácio para descobrir o que a Duma estava fazendo. No caminho, viram soldados com braçadeiras vermelhas empilhando comida e munição no corredor, como se estivessem se preparando para um cerco. É claro, pensou Grigori: o czar não vai aceitar o que aconteceu e pronto. Em algum momento, tentará recuperar o controle pela força. E isso implica atacar o palácio.
Na ala direita, toparam com o conde Maklakov, um dos diretores da Metalúrgica Putilov. Ele era delegado de um partido de centro-direita, mas se dirigiu aos dois com educação. Disse-lhes que mais um comitê havia sido formado, o Comitê Temporário de Membros da Duma para a Restauração da Ordem na Capital e o Estabelecimento de Relações com Indivíduos e Instituições. Apesar do nome ridículo, Grigori teve a sensação de que aquela era uma tentativa inquietante de a Duma assumir o controle. Ficou ainda mais preocupado quando Maklakov lhe disse que o comitê havia nomeado um tal coronel Engelhardt como comandante de Petrogrado.
– Sim – disse Maklakov com satisfação. – E eles instruíram todos os soldados a retornarem aos quartéis e obedecerem às ordens.
– O quê? – Grigori estava chocado. – Mas isso seria o fim da revolução. Os oficiais do czar retomariam o controle!
– Os membros da Duma não acreditam que haja uma revolução.
– Os membros da Duma são uns idiotas – retrucou Grigori, furioso.
Maklakov empinou o nariz e se afastou.
Konstantin estava tão irritado quanto Grigori.
– Isso é uma contrarrevolução! – falou.
– E precisa ser impedida – disse Grigori.
Os dois voltaram às pressas para a ala esquerda. No grande saguão, um presidente de sessão tentava controlar os debates. Grigori saltou para o palanque.
– Tenho um anúncio urgente! – gritou.
– Você e todo mundo – disse o presidente com desânimo. – Mas que se dane, pode falar.
– A Duma está ordenando que os soldados retornem aos quartéis e aceitem a autoridade dos oficiais!
Um grito de protesto se ergueu do grupo de delegados.
– Camaradas! – exclamou Grigori, tentando acalmá-los. – Nós não aceitaremos a velha ordem de volta!
Os representantes concordaram com um rugido.
– O povo da cidade precisa de pão. Nossas mulheres precisam se sentir seguras na rua. As fábricas precisam reabrir e as moendas precisam girar... mas não como era antes.
Grigori havia conquistado a atenção de todos, que não sabiam ao certo aonde ele queria chegar.
– Nós, soldados, temos que parar de espancar os burgueses, de assediar as mulheres na rua e de saquear lojas de vinho. Devemos voltar para nossos quartéis, curar a bebedeira e retomar nossas funções, mas... – Ele fez uma pausa de efeito e acrescentou: – ... sob nossas próprias condições!
Houve um burburinho de aprovação.
– E que condições seriam essas?
Alguém gritou:
– Comitês eleitos para emitir ordens no lugar dos oficiais!
Outra pessoa disse:
– Acabar com tratamentos do tipo “Sua Excelência” e “Mais Alto Fulgor” e passar a usar tenente, coronel e general.
– Chega de prestar continência! – gritou mais alguém.
Grigori não sabia o que fazer. Cada um tinha sua própria sugestão. Não conseguia sequer escutá-las, quanto mais se lembrar de todas elas.
O presidente da sessão veio em seu socorro:
– Eu proponho que todos aqueles que tenham alguma sugestão formem um grupo com o camarada Sokolov. – Grigori sabia que Nikolai Sokolov era um advogado de esquerda. Isso é bom, pensou: precisamos de alguém para redigir nossa proposta nos termos jurídicos corretos. O presidente continuou: – Depois de chegarem a um consenso sobre o que desejam, tragam sua proposta para ser aprovada pelo soviete.
– Certo. – Grigori saltou para fora do palanque. Sokolov estava sentado diante de uma pequena mesa em uma das laterais do salão. Grigori e Konstantin se aproximaram dele, acompanhados de pelo menos uma dúzia de outros delegados.
– Muito bem – disse Sokolov. – A quem devo endereçar a proposta?
Outra vez, Grigori não soube o que fazer. Estava prestes a responder “Ao mundo”, quando um soldado sugeriu:
– À guarnição de Petrogrado.
– E a todos os soldados da Guarda, do Exército e da Artilharia – disse outro.
– E da Marinha – falou um terceiro.
– Muito bem – disse Sokolov enquanto anotava. – Para execução imediata e precisa, imagino?
– Sim.
– E também para informação dos operários de Petrogrado?
Grigori começou a ficar impaciente.
– Sim, sim – respondeu. – Então, quem propôs comitês eleitos?
– Fui eu – disse um soldado de bigode grisalho. Ele estava sentado na beirada da mesa, bem em frente a Sokolov. Como se estivesse ditando, prosseguiu: – Todas as tropas devem criar comitês com seus representantes eleitos.
Sem parar de escrever, Sokolov disse:
– Em todas as companhias, batalhões, regimentos...
– Postos de treinamento, baterias, esquadrões, navios de guerra – acrescentou alguém.
– Quem ainda não tiver elegido seus delegados deve fazê-lo – atalhou o homem de bigode grisalho.
– Certo – disse Grigori, irrequieto. – Continuando: as armas de qualquer tipo, incluindo veículos blindados, ficam sob o controle dos comitês de cada batalhão e companhia, não dos oficiais.
Vários dos soldados manifestaram sua aprovação.
– Muito bem – disse Sokolov.
– Todas as unidades militares ficam subordinadas ao Soviete dos Delegados de Operários e Soldados e a seus comitês – continuou Grigori.
Pela primeira vez, Sokolov ergueu os olhos.
– Isso significaria que o soviete controla o Exército.
– Sim – disse Grigori. – As ordens da comissão militar da Duma só devem ser obedecidas quando não entrarem em conflito com as decisões do soviete.
Sokolov continuou olhando para Grigori.
– Isso torna a Duma tão impotente quanto sempre foi. Ela antes era subordinada aos caprichos do czar. Agora, qualquer decisão sua terá que ser aprovada pelo soviete.
– Exatamente – disse Grigori.
– Então o soviete é o poder supremo.
– Coloque isso no papel – falou Grigori.
Sokolov colocou.
– Os oficiais ficam proibidos de ser grosseiros com outras patentes – disse alguém.
– Está certo – falou Sokolov.
– E não devem chamá-las de tyi, como se fossem animais ou crianças.
Grigori achava que essas cláusulas eram triviais.
– O documento precisa de um título – falou.
– O que você sugere? – perguntou Sokolov.
– Como você intitulou as ordens anteriores do soviete?
– Não há nenhuma ordem anterior – respondeu Sokolov. – Esta é a primeira.
– Então está decidido – disse Grigori. – Ponha o título “Ordem Número Um”.
Redigir seu primeiro texto legislativo como representante eleito causou profunda satisfação em Grigori. Ao longo dos dois dias seguintes, vários outros foram redigidos, e ele ficou totalmente absorvido pelo trabalho incessante de um governo revolucionário. No entanto, pensava o tempo todo em Katerina e Vladimir e, na noite de quinta-feira, finalmente teve a oportunidade de escapulir para ver como eles estavam.
Enquanto seguia rumo aos bairros residenciais do sudoeste, tinha o coração cheio de apreensão. Katerina havia prometido ficar longe dos problemas, contudo, as mulheres de Petrogrado consideravam aquela revolução tão delas quanto dos homens. Afinal de contas, tudo havia começado no Dia Internacional da Mulher. Isso não era nenhuma novidade. A mãe de Grigori morrera na revolução fracassada de 1905. Se Katerina houvesse decidido ir até o centro da cidade com Vladimir no colo para ver o que estava acontecendo, não teria sido a única mãe a fazer isso. E muitos inocentes haviam morrido – alvejados pela polícia, pisoteados pela multidão, atropelados por soldados bêbados ao volante de carros confiscados, ou atingidos por balas perdidas. Ao entrar na velha casa, ele temeu ser recebido por uma das inquilinas, com uma expressão solene no rosto e os olhos cheios de lágrimas, dizendo “Aconteceu uma coisa terrível”.
Subiu a escada, bateu na porta de Katerina e entrou. Ela pulou da cadeira e se atirou em seus braços.
– Você está vivo! – exclamou ela, beijando-o com avidez. – Eu estava tão preocupada! Não sei o que seria de nós sem você.
– Desculpe não ter podido vir antes – disse Grigori. – Mas eu agora sou delegado do soviete.
– Um delegado! – Katerina estava radiante de orgulho. – Meu marido! – Ela lhe deu um abraço.
Grigori tinha conseguido impressioná-la de verdade. Era a primeira vez que isso acontecia.
– Um delegado só faz representar as pessoas que o elegeram – falou com modéstia.
– Mas elas sempre escolhem os mais inteligentes e confiáveis.
– Bom, elas tentam.
O cômodo estava iluminado pela luz fraca de uma lamparina a óleo. Grigori pôs um embrulho sobre a mesa. Graças a seu novo status, não tivera problemas para conseguir comida na cozinha do quartel.
– Tem também alguns fósforos e um cobertor no pacote – disse ele.
– Obrigada!
– Espero que você esteja ficando o máximo possível em casa. Ainda está perigoso nas ruas. Alguns de nós estamos fazendo uma revolução, mas outros estão simplesmente perdendo as estribeiras.
– Eu mal saí de casa. Estava esperando notícias suas.
– Como vai nosso menininho? – Vladimir dormia no canto do quarto.
– Com saudades do pai.
Ela estava se referindo a Grigori. Ele não fazia questão que Vladimir o chamasse de pai, mas havia aceitado o capricho de Katerina. Dificilmente algum deles tornaria a ver Lev um dia – há quase três anos que ele não mandava notícias –, de modo que o menino jamais saberia a verdade. Talvez fosse melhor assim.
– É uma pena ele estar dormindo – disse Katerina. – Ele adora ver você.
– Eu falo com ele pela manhã.
– Você vai poder passar a noite aqui? Que maravilha!
Grigori se sentou, ao que Katerina se ajoelhou diante dele e tirou suas botas.
– Você parece cansado – comentou.
– E estou, mesmo.
– Vamos para a cama. Já é tarde.
Katerina começou a desabotoar a farda de Grigori e ele se recostou na cadeira, deixando que ela o ajudasse.
– O general Khabalov está escondido no Almirantado – disse ele. – Ficamos com medo de que retomasse o controle das estações de trem, mas ele nem sequer tentou.
– Por que não?
Grigori deu de ombros.
– Covardia. O czar ordenou a Ivanov que entrasse em Petrogrado e estabelecesse uma ditadura militar, mas os homens de Ivanov se amotinaram e a operação foi cancelada.
Katerina franziu as sobrancelhas.
– A antiga classe governante simplesmente desistiu?
– É o que parece. Estranho, não? Mas está claro que não vai haver contrarrevolução.
Eles foram para a cama, Grigori de roupa de baixo, Katerina ainda de vestido. Ela nunca havia se despido na sua frente. Talvez sentisse que não podia se entregar totalmente. Era uma peculiaridade sua que ele aceitava, mas não sem alguma tristeza. Ele a abraçou e beijou. Quando a penetrou, ela disse:
– Eu te amo. – E ele se sentiu o homem mais sortudo do mundo.
Depois, sonolenta, ela perguntou:
– O que vai acontecer agora?
– Haverá uma assembleia constituinte, eleita pelo que eles chamam de voto quaternário: universal, direto, secreto e igualitário. Enquanto isso, a Duma está formando um governo provisório.
– Quem vai ser o líder?
– Lvov.
Katerina sentou-se na cama.
– Um príncipe! Por quê?
– Eles querem a confiança de todas as classes.
– Ao diabo com todas as classes! – A indignação a tornava ainda mais bela, corando suas faces e fazendo seus olhos brilharem. – Quem fez a revolução foram os operários e os soldados. Por que precisamos da confiança de quem quer que seja?
Essa questão também havia incomodado Grigori, mas a resposta o convencera.
– Nós precisamos que os empresários façam suas fábricas operar, que os atacadistas voltem a abastecer a cidade e que os lojistas reabram suas portas.
– E quanto ao czar?
– A Duma está exigindo que ele abdique. Mandaram dois delegados até Pskov para lhe dar o ultimato.
Katerina arregalou os olhos.
– Abdicar? O czar? Mas isso seria o fim.
– Sim.
– E é possível?
– Não sei – respondeu Grigori. – Vamos descobrir amanhã.
Na sexta-feira, no Salão Catarina do Palácio Tauride, o debate foi tumultuado. Dois ou três mil homens e algumas mulheres abarrotavam o salão e o ar recendia a fumaça de tabaco e a soldados sem banho. Todos esperavam notícias sobre o que o czar iria fazer.
A todo momento, anúncios interrompiam o debate. Muitas vezes, não eram nada urgentes – um soldado se levantava para dizer que seu batalhão havia formado um comitê e prendido o coronel. Às vezes, não eram sequer anúncios, mas discursos exigindo que a revolução fosse defendida.
No entanto, Grigori percebeu que havia algo de diferente quando um sargento de cabelos grisalhos saltou para cima do palanque, com o rosto afogueado e a respiração acelerada, trazendo na mão uma folha de papel e pedindo silêncio.
Com a voz lenta e bem alta, ele disse:
– O czar assinou um documento...
A vibração começou logo depois dessas poucas palavras.
– … abdicando a coroa...
Os vivas se transformaram em um rugido. Grigori ficou siderado. Aquilo era mesmo verdade? Teria o sonho se realizado de fato?
O sargento ergueu a mão, pedindo silêncio. Ainda não havia terminado.
– … e, por causa da saúde precária de seu filho de 12 anos, Alexei, o czar nomeou como sucessor o grão-duque Mikhail, seu irmão caçula.
A comemoração se transformou em uivos de protesto.
– Não! – gritou Grigori, sua voz se perdendo entre os milhares de outras.
Quando, depois de vários minutos, todos começaram a se acalmar, um rugido ainda mais alto ressoou vindo do lado de fora. A multidão no pátio devia ter escutado a mesma notícia e a estava recebendo com a mesma indignação.
– O governo provisório não pode aceitar isso – disse Grigori a Konstantin.
– Concordo – respondeu seu amigo. – Vamos dizer isso a eles.
Os dois saíram do soviete e atravessaram o palácio. Os ministros do governo recém-formado estavam reunidos na sala que antes abrigava o comitê temporário – na verdade, tratava-se praticamente dos mesmos homens, o que era preocupante. Já estavam debatendo sobre o pronunciamento do czar.
Pavel Miliukov estava em pé. O moderado, que usava um monóculo, argumentava que a monarquia deveria ser preservada como símbolo de legitimidade.
– Quanta imbecilidade – murmurou Grigori. A monarquia simbolizava incompetência, crueldade e derrota, tudo menos legitimidade. Felizmente, outros pensavam como ele. Kerenski, agora ministro da Justiça, propôs que o grão-duque Mikhail fosse instruído a recusar a coroa e, para alívio de Grigori, a maioria dos presentes concordou.
Kerenski e o príncipe Lvov foram escolhidos para partir imediatamente ao encontro de Mikhail. Miliukov, lançando um olhar raivoso através de seu monóculo, disse:
– E eu deveria ir com eles, para representar a opinião da minoria!
Grigori imaginou que essa sugestão tola fosse ser rejeitada, porém os outros ministros assentiram sem convicção. Grigori então se levantou. Sem pensar muito, disse:
– E eu acompanharei os ministros como observador do soviete de Petrogrado.
– Está certo, está certo – disse Kerenski com a voz cansada.
Os quatro saíram do palácio por uma porta lateral e entraram em duas limusines Renault que os aguardavam. O ex-presidente da Duma, um homem muito gordo chamado Mikhail Rodzianko, os acompanhava. Grigori mal conseguia acreditar no que estava lhe acontecendo. Fazia parte de uma delegação prestes a ordenar que um príncipe da coroa recusasse o título de czar. Menos de uma semana antes, havia descido obedientemente de uma mesa porque o tenente Kirillov mandara. O mundo estava mudando tão depressa que era difícil não ficar para trás.
Grigori nunca havia entrado na residência de um aristocrata e teve a impressão de adentrar um mundo de sonho. A imensa casa era abarrotada de riquezas. Para onde quer que olhasse, havia vasos deslumbrantes, relógios ornamentados, candelabros de prata e bibelôs incrustados de joias. Se tivesse agarrado uma tigela de ouro e saído correndo pela porta da frente, poderia tê-la vendido por dinheiro suficiente para comprar uma casa – embora, naquele momento, ninguém fosse comprar tigelas de ouro, pois tudo o que queriam era pão.
O príncipe Georgy Lvov, homem de cabelos prateados com uma barba grande e espessa, obviamente não estava impressionado com o ambiente, tampouco intimidado com a solenidade de sua missão, porém todos os demais pareciam nervosos. Ficaram esperando na sala de estar, arrastando os pés pelos grossos tapetes, sob os olhares carrancudos de retratos de antepassados.
Por fim, o grão-duque Mikhail apareceu. Era um homem de 38 anos, que ostentava uma calvície prematura e um bigodinho. Para surpresa de Grigori, parecia mais nervoso do que a delegação. Apesar de manter a cabeça erguida com arrogância, dava uma impressão de timidez e perplexidade. Depois de algum tempo, reuniu a coragem necessária para perguntar:
– O que os senhores têm a me dizer?
– Nós viemos lhe pedir para não aceitar a coroa – respondeu Lvov.
– Oh, céus! – exclamou Mikhail, parecendo não saber o que fazer em seguida.
Kerenski manteve a presença de espírito. Falou de maneira clara e firme.
– O povo de Petrogrado reagiu com indignação à decisão de Sua Majestade, o czar – disse ele. – Um contingente maciço de soldados já está marchando rumo ao Palácio Tauride. A menos que nós anunciemos imediatamente que o senhor se recusou a assumir o título de czar, haverá uma violenta revolta seguida de guerra civil.
– Ah, meu Deus! – comentou Mikhail com voz débil.
Grigori percebeu que o grão-duque não era muito inteligente. O que não é nenhuma surpresa, pensou. Se aquelas pessoas fossem inteligentes, não estariam a ponto de perder o trono da Rússia.
– Vossa Alteza – disse Miliukov por trás de seu monóculo –, eu represento a opinião da minoria no governo provisório. A nosso ver, a monarquia é o único símbolo de autoridade aceito pelo povo.
Mikhail pareceu ainda mais confuso. A última coisa de que precisava era de uma alternativa, percebeu Grigori – aquilo só piorava a situação para ele.
– Os senhores se importam que eu troque algumas palavras a sós com Rodzianko? – pediu o grão-duque. – Não saiam daqui... nós vamos apenas nos retirar para a sala ao lado.
Assim que o titubeante czar nomeado e o gordo ex-presidente do Parlamento foram embora, os demais puseram-se a conversar em voz baixa. Ninguém dirigiu a palavra a Grigori. Ele era o único representante da classe trabalhadora presente e notou que os outros sentiam um certo medo dele, desconfiados – com razão – de que os bolsos de seu uniforme de sargento estivessem recheados de armas e munição.
Rodzianko tornou a aparecer.
– Ele me perguntou se poderíamos garantir sua integridade pessoal caso ele se torne czar – disse ele. Grigori achou repulsivo que o grão-duque estivesse mais preocupado consigo mesmo do que com o próprio país, mas não ficou surpreso. – Eu respondi que não – concluiu Rodzianko.
– E...? – indagou Kerenski.
– Ele vai voltar daqui a pouco.
Depois de um intervalo que pareceu interminável, Mikhail retornou. Todos se calaram. Durante vários instantes, ninguém disse nada.
Por fim, Mikhail disse:
– Eu decidir recusar a coroa.
Grigori teve a sensação de que seu coração havia parado de bater. Oito dias, pensou ele. Oito dias atrás, as mulheres de Vyborg atravessaram a ponte Liteiny. E agora o reinado dos Romanov havia chegado ao fim.
Ele se lembrou das palavras da mãe no dia de sua morte: “Não vou descansar até a Rússia ser uma república.” Então pensou: pode descansar agora, mãe.
Kerenski estava apertando a mão do grão-duque e dizendo algo pomposo, mas Grigori não estava prestando atenção.
Nós conseguimos, pensou ele. Nós fizemos uma revolução.
Nós depusemos o czar.
Em Berlim, Otto von Ulrich abriu uma garrafa magnum de champanhe Perrier-Jouët 1892.
Os Von Ulrich haviam convidado os Von der Helbard para almoçar. Konrad, pai de Monika, era um Graf, ou conde, portanto sua mãe era uma Gräfin, uma condessa. A Gräfin Eva von der Helbard era uma mulher vistosa, que usava os cabelos grisalhos presos em um penteado alto e complexo. Antes do almoço, encurralou Walter e lhe disse que Monika era uma excelente violinista e que havia sido a primeira de sua classe na escola em todas as matérias. Com o canto do olho, ele viu seu pai conversando com Monika e imaginou que ela também estivesse ouvindo uma avaliação do desempenho escolar dele.
A insistência dos pais em tentar empurrar Monika para cima dele o irritava. O fato de que ele sentia uma forte atração por ela piorava ainda mais a situação. Além de linda, ela era inteligente. Seus cabelos estavam sempre arrumados com esmero, mas Walter não conseguia deixar de imaginá-la soltando-os à noite e sacudindo a cabeça para liberar os cachos. Nos últimos tempos, vinha tendo dificuldade em imaginar Maud.
Otto então ergueu sua taça.
– Adeus ao czar! – brindou.
– Pai, estou surpreso com o senhor – disse Walter com irritação. – Está mesmo comemorando a derrubada de um monarca legítimo por uma turba de operários e soldados amotinados?
Otto enrubesceu. Greta, irmã de Walter, afagou o braço do pai para tranquilizá-lo.
– Não ligue, papai – disse ela. – Walter só diz essas coisas para chatear o senhor.
– Eu conheci o czar Nicolau quando trabalhei em nossa embaixada em Petrogrado – falou Konrad.
– E o que o senhor achou dele? – quis saber Walter.
Monika respondeu no lugar do pai. Lançando um sorriso conspiratório para Walter, ela disse:
– Papai costumava dizer que, se o czar não tivesse nascido em berço de ouro, talvez, com algum esforço, pudesse ter virado um carteiro competente.
– Essa é a tragédia da monarquia hereditária. – Walter se virou para o pai: – Mas o senhor certamente reprova a democracia na Rússia, não?
– Democracia? – repetiu Otto, irônico. – Veremos. Tudo o que se sabe é que o novo primeiro-ministro é um aristocrata liberal.
– Você acha que o príncipe Lvov tentará selar a paz conosco? – perguntou Monika para Walter.
Essa era a questão do momento.
– Espero que sim – respondeu Walter, tentando não olhar para os seios de Monika. – Se todas as nossas tropas na frente oriental puderem ser transferidas para a França, talvez consigamos derrotar os Aliados.
Ela ergueu sua taça e fitou Walter nos olhos por cima da borda.
– Então vamos brindar a isso – falou.
Em uma trincheira fria e úmida no nordeste da França, o pelotão de Billy tomava gim.
Quem havia providenciado a garrafa fora Robin Mortimer, o oficial destituído.
– Eu vinha guardando isto aqui – disse ele.
– Bem, macacos me mordam! – comentou Billy, usando uma das expressões de Mildred. Mortimer era um sujeito rabugento que nunca tinha sido visto oferecendo bebida a ninguém.
Mortimer serviu o gim nas tigelas de metal que os soldados usavam para comer.
– Um brinde à revolução – disse ele, e todos beberam, estendendo logo em seguida as tigelas para uma segunda dose.
Billy já estava animado antes mesmo de beber o gim. Os russos haviam provado que ainda era possível derrubar tiranos.
Todos cantavam “Bandeira Vermelha” quando o conde Fitzherbert veio mancando do recesso da trincheira, suas botas chapinhando na lama. Fora promovido a coronel e estava mais arrogante do que nunca.
– Silêncio! – gritou.
O canto foi morrendo aos poucos.
– Estamos comemorando a derrubada do czar russo! – disse Billy.
– O czar era um monarca legítimo – disse Fitz com raiva –, e aqueles que o depuseram são criminosos. Chega de cantoria.
O desprezo de Billy por Fitz aumentou um ponto.
– Ele era um tirano que assassinou milhares dos seus súditos, e todos os homens civilizados do mundo estão celebrando hoje.
Fitz observou-o com atenção. O conde já não usava mais o tapa-olho, mas sua pálpebra esquerda havia ficado caída para sempre. No entanto, isso não parecia afetar sua visão.
– Sargento Williams... eu deveria ter adivinhado. Conheço você... e sua família.
E como!, pensou Billy.
– A sua irmã é uma agitadora pacifista.
– E a sua também, senhor – retrucou Billy, o que fez Robin Mortimer soltar uma risada rouca e então se calar de repente.
– Mais uma palavra insolente e você vai ganhar uma punição – disse Fitz a Billy.
– Perdão, senhor.
– Agora sosseguem o facho, todos vocês. E chega de cantoria. – Fitz se afastou.
– Vida longa à revolução – falou Billy baixinho.
Fitz fingiu não escutar.
Em Londres, a princesa Bea gritou:
– Não!
– Tente ficar calma – disse Maud, que acabara de lhe dar a notícia.
– Eles não podem fazer isso! – gritou Bea. – Não podem obrigar nosso amado czar a abdicar! Ele é o pai do povo!
– Talvez seja melhor assim...
– Não acredito em você! Isso é uma mentira cruel!
A porta se abriu e Grout espichou a cabeça para dentro com uma expressão preocupada.
Bea pegou um vaso japonês contendo um arranjo de plantas secas e atirou-o pela sala. O vaso bateu na parede e se espatifou.
Maud afagou o ombro de Bea.
– Pronto, passou – disse. Não sabia ao certo o que mais poderia fazer. Ela própria estava contentíssima em ver o czar derrubado, mas, ainda assim, se compadecia de Bea, para quem todo um estilo de vida havia sido destruído.
Grout chamou alguém com um dedo e uma criada entrou na sala, parecendo assustada. Ele apontou para o vaso quebrado e a criada começou a juntar os cacos.
A mesa estava posta para o chá: xícaras, pires, bules, jarrinhas de leite e creme, tigelas de açúcar. Bea derrubou tudo no chão com violência.
– Esses revolucionários vão matar todo mundo!
O mordomo se abaixou e começou a limpar a bagunça.
– Não se exalte – disse Maud.
Bea começou a chorar.
– Pobre czarina! E pobres dos filhos dela! O que vai ser deles?
– Talvez seja melhor você deitar um pouco – falou Maud. – Venha, vou acompanhá-la até o quarto. – Ela segurou o cotovelo de Bea, que se permitiu ser conduzida para fora da sala.
– É o fim de tudo – soluçou Bea.
– Não se preocupe – disse Maud. – Talvez seja um novo começo.
Ethel e Bernie estavam em Aberowen. Era uma espécie de lua de mel. Ethel estava gostando de apresentar a Bernie os lugares de sua infância: a entrada da mina, a capela, a escola. Chegou até a lhe mostrar Tŷ Gwyn – Fitz e Bea não estavam –, embora não o tivesse levado à Suíte Gardênia.
O casal estava hospedado com a família Griffiths, que tornara a oferecer a Ethel o quarto de Tommy, de modo que não foi preciso incomodar Gramper. Eles estavam na cozinha da Sra. Griffiths quando seu marido, Len – ateu e socialista revolucionário –, chegou de supetão brandindo um jornal.
– O czar abdicou! – disse ele.
Todos vibraram e aplaudiram. Há uma semana que recebiam notícias das rebeliões em Petrogrado, e Ethel vinha se perguntando como aquilo iria terminar.
– Quem assumiu o poder? – perguntou Bernie.
– Um governo provisório chefiado pelo príncipe Lvov – respondeu Len.
– Então não chega a ser um triunfo do socialismo – disse Bernie.
– Não.
– Alegrem-se, rapazes... – falou Ethel. – Uma coisa de cada vez! Vamos ao Two Crowns comemorar. Posso deixar Lloyd um pouco com a Sra. Ponti.
As mulheres puseram os chapéus e todos saíram para o pub. Em uma hora, o lugar já estava lotado. Ethel ficou espantada ao ver o pai e a mãe entrarem. A Sra. Griffiths também os viu e disse:
– Caramba, o que eles vieram fazer aqui?
Alguns minutos depois, Da subiu em uma cadeira e pediu silêncio.
– Sei que alguns de vocês estão surpresos por me verem aqui, mas ocasiões especiais pedem atitudes especiais. – Ele lhes mostrou um caneco de cerveja. – Não mudei meus hábitos da vida inteira, mas o dono do pub teve a gentileza de me oferecer um copo de água da torneira. – Todos riram. – Estou aqui para compartilhar com meus vizinhos a vitória conquistada na Rússia. – Ele ergueu o caneco. – Um brinde... à revolução!
Todos vibraram e beberam.
– Vejam só! – disse Ethel. – Da no Two Crowns! Nunca pensei que fosse ver esse dia.
Na Prairie House ultramoderna de Josef Vyalov em Buffalo, Lev Peshkov pegou uma garrafa do armário de bebidas e serviu-se um drinque. Ele não bebia mais vodca. Desde que fora morar com o sogro rico, tinha aprendido a apreciar uísque escocês. Gostava de bebê-lo como faziam os americanos, com pedras de gelo.
Lev não gostava de morar com os sogros. Teria preferido que ele e Olga tivessem um lugar só para eles. Porém Olga preferia assim e, além do mais, o pai dela pagava por tudo. Lev estava preso ali até conseguir juntar seu próprio dinheiro.
Josef lia o jornal enquanto Lena costurava. Lev ergueu o copo para eles.
– Vida longa à revolução! – disse de forma exuberante.
– Cuidado com o que fala – respondeu Josef. – Isso vai ser ruim para os negócios.
Olga entrou.
– Querido, sirva-me uma tacinha de xerez, por favor – pediu ela.
Lev reprimiu um suspiro. Ela adorava lhe pedir pequenos favores, e, na frente dos sogros, ele não podia se recusar a fazê-los. Serviu o xerez adocicado em uma pequena taça e entregou-a para Olga, curvando-se como um garçom. Ela deu um sorriso bonito, sem entender a ironia.
Lev tomou um gole do uísque e saboreou o gosto e a pungência da bebida.
– Sinto pena da pobre czarina e dos seus filhos – comentou a Sra. Vyalov. – O que será deles?
– Com certeza serão todos mortos pela turba – disse Josef.
– Coitados. O que o czar fez a esses revolucionários para merecer isso?
– Essa pergunta eu posso responder – disse Lev. Sabia que deveria ficar calado, mas não conseguiu, sobretudo com o uísque a lhe aquecer as entranhas. – Quando eu tinha 11 anos, a fábrica onde minha mãe trabalhava entrou em greve.
A Sra. Vyalov deu um muxoxo. Ela não acreditava em greves.
– A polícia reuniu todos os filhos dos grevistas. Nunca vou me esquecer. Fiquei aterrorizado.
– Por que eles fariam uma coisa dessas? – perguntou a Sra. Vyalov.
– Então os policiais bateram em todos nós – disse Lev. – No traseiro, com varas. Para dar uma lição a nossos pais.
A Sra. Vyalov tinha empalidecido. Não suportava crueldade com crianças ou animais.
– Foi isso o que o czar e seu regime fizeram comigo, mãe – disse Lev. Ele chacoalhou o gelo no copo. – É por isso que eu bebo à revolução.
– O que você acha, Gus? – quis saber o presidente Wilson. – Você é o único aqui que conhece Petrogrado. O que vai acontecer?
– Detesto falar como um funcionário do Departamento de Estado, mas a situação pode tender para qualquer um dos dois lados – respondeu Gus.
O presidente riu. Os dois estavam no Salão Oval – Wilson atrás da escrivaninha e Gus em pé diante dela.
– Vamos lá – pediu Wilson. – Dê um palpite. Os russos vão sair da guerra ou não? É a pergunta mais importante do ano.
– Está bem. Todos os ministros do novo governo são de partidos políticos com nomes assustadores que incluem os termos socialista e revolucionário, mas na verdade são empresários e profissionais de classe média. O que eles de fato querem é uma revolução burguesa que lhes dê liberdade para fomentar a indústria e o comércio. O povo, no entanto, quer pão, paz e terra: pão para os operários, paz para os soldados e terra para os camponeses. Nada disso agrada a homens como Lvov e Kerenski. Então, para responder à pergunta do senhor, eu acho que o governo de Lvov vai buscar uma mudança gradual. Sobretudo, vão continuar na guerra. Mas os trabalhadores não vão se contentar com isso.
– E quem vai ganhar no final?
Gus se lembrou de sua ida a Petrogrado, antiga São Petersburgo, e do homem que havia lhe demonstrado como se fundia uma roda de locomotiva em uma oficina suja e caindo aos pedaços da Metalúrgica Putilov. Mais tarde, Gus vira o mesmo homem brigando com um policial por causa de uma garota. Não conseguia recordar seu nome, mas ainda podia visualizá-lo, com seus ombros largos e braços fortes e um dos dedos faltando. Porém, acima de tudo, visualizava seu olhar azul intenso, de determinação irrefreável.
– O povo russo – respondeu Gus. – O povo russo vai ganhar no final.
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