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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES / H. G. Konsalik
QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES / H. G. Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES

Primeira Parte

 

Estava deitado atrás de uma lápide funerária, na qual se lia em letras douradas: ”Deus te ama”. Encolhia-se sobre o chão molhado, mole, e pegajoso, que estremecia sob o seu corpo como se ele estivesse deitado em cima de um animal. Enterrou o rosto numa mistura de grama, restos apodrecidos de flores, ramos espinhosos de ligustro, e uivou como um lobo.

O mundo explodia com estrondo em derredor, levantando na terra chafarizes de fogo. As sepulturas se abriam, como sob gigantescos punhos furiosos, caixões pairavam no ar por alguns instantes, estourando depois e espalhando os cadáveres. Do fundo da terra brotavam gêiseres flamejantes, o céu chovia pedras e terras, cabeças, membros e troncos humanos, e lousas de pedra nas quais um dia alguém mandara gravar: ”Descanse em paz”.

Lá estava ele, mordendo na sua angústia o chão malcheiroso, louco de pavor, aspirando enxofre e fuligem. Abraçou-se a uma pedra que de súbito rolara e se colocara à sua frente como se o quisesse proteger, mas não ousou abrir os olhos. Tinha um medo alucinado de ver aquilo que ouvia e sentia. Com todo aquele furor trovejando à volta dele, pensava numa coisa apenas: ”Mãe... meu Deus, meu Deus querido, onde estará a minha mãe? Faça com que ela viva... meu Deus... Mãe, mãe... será que se escondeu a tempo... num buraco de granada, num abrigo de terra ali na entrada do cemitério, no porão da Sra. Paneike, por onde você tinha de passar a caminho da leiteria... ó meu Deus, ajude a minha mãe...”

Novas salvas estouraram, centenas de minas e granadas uivavam como gigantes esmagando o mundo, o chão tremia, oscilava no ar inundado de terra e ao cheiro das explosões misturou-se de repente um cheiro novo, repugnantemente oleoso, quente, sufocante, áspero.

Ele levantou a cabeça um pouco, olhando por cima dos túmulos escancarados. Avistou alguns vultos marrom-acinzentados esgueirando-se depressa, carregando recipientes de metal nas costas e expelindo fogo pelas mãos. Lembrou-se de que o pai um dia dissera que o que havia de mais cruel na guerra eram os lançachamas. Arrastou-se então para mais perto da sua lápide, fechou novamente os olhos, e ali ficou, esvaziado pelo pavor.

O dia 7 de abril de 1945. Sobre Kõnigsberg pairava havia vinte e quatro horas uma cúpula de ferro e fogo. A destruição chovia de centenas de baterias soviéticas e milhares de lançadores de granadas, do ventre dos bombardeiros e dos aviões de voo rasante que se precipitavam do céu. Após meses de ocupação, as tropas russas haviam entrado na cidade para a conquista... Trinta divisões frescas, regimentos de elite, tropas siberianas, destacamentos de tanques, tropas de assalto, formações especiais para luta de rua, habituadas à morte depois de terem sobrevivido ao inferno de Stalingrado. Os soviéticos aproximavam-se de todos os lados, com suas armas de fogo. As ruínas de Kõnigsberg ardiam. O céu era uma nuvem negra, quando de repente o ruído cessou e o silêncio desceu sobre o cemitério.

Devagar, bem devagar, ele ergueu a cabeça e piscou, olhando em torno da sua lápide. Os vultos cor de terra, esgueirando-se por entre as sepulturas, reuniam-se na entrada do cemitério. Dos caibros negros de fuligem da capela mortuária bombardeada, dois grandes lençóis brancos tremulavam ao vento. Velhos e mulheres com as roupas dilaceradas, lenços amarrados em torno dos rostos magros e sujos, estavam parados contra a parede, apertados uns contra os outros. Três soldados russos, com metralhadoras apontadas, vigiavam-nos como se, apesar da sua miséria, eles ainda constituíssem perigo. Destacamentos isolados examinavam minuciosamente as fileiras de túmulos, especialmente do outro lado, na parte velha, onde ficavam os grandes mausoléus das famílias ricas, abóbadas subterrâneas, melhores do que qualquer casamata de terra. Ali os soldados soviéticos agarraram mais alguns soldados alemães, infelizes que se tinham arrastado para junto dos mortos a fim de sobreviver.

Hans Kramer sentou-se na terra e fitou a pedra que pouco antes abraçara na sua aflição. Na verdade era uma caveira, suja de terra, estranhamente pequena, como de uma criança. Seguroua nas mãos e contemplou com olhos arregalados os soldados alemães que agora eram empurrados para a capela, obrigados a se acocorarem junto da parede, como cinzentos pássaros sem asas. Ele só se assustou quando uma voz soou nas suas costas. Voltou-se apertando ao peito a caveira, como se fosse algo de imenso valor.

 

— Que idade você tem? — perguntou o homem que surgira de repente atrás dele. Parecia enorme. Um russo, pensou Hans Kramer. Meu Deus, me ajude! Esse homem com o rosto sujo de terra e suor, com sangue na testa, está mexendo as mãos... vaime matar com certeza, vai... todos me contaram, o pai leu nos jornais que os russos matam mulheres e crianças, pegam as crianças pelas pernas e as atiram de cabeça nas paredes.

Pôs as duas mãos na cabeça e encolheu-se todo.

— Sete anos — disse, e começou a chorar de medo. — Eu tenho sete anos...

O russo olhou em volta, sentou-se sobre o túmulo. Parecia um russo muito importante: usava botas altas e macias, nos ombros havia largas ombreiras com estrelas. Quando o homem pôs a mão no bolso do uniforme, Hans Kramer encolheu os joelhos e meteu a cabeça entre eles.

— Não quero morrer... — disse, chorando, e o corpo lhe tremia sem parar, como sob a ação de choques elétricos. — Não quero, não quero... por favor...

— Por que é que você tem medo? — perguntou o russo. Falava um alemão duro mas claro. A voz era baixa, não parecia a de um assassino de crianças. Hans Kramer levantou a cabeça dentre os joelhos e espiou.

— Você vai me jogar na parede... — disse trémulo.

— Quem lhe contou isso?

— Todos. Todo mundo. Meu pai leu no jornal. Essa gente de jornal sabe de tudo...

— É, eles sabem de tudo. — O russo tirou a mão do bolso. Um pedaço de pão preto e pegajoso estava na palma da sua mão. Estendeu-o para o menino e fez um aceno com a cabeça.

— Quer?

— Pão?

— Sim. Pão russo. Não tenho outra coisa. Que diabo, nós passamos fome como vocês. Nosso estômago rosna como se tivéssemos engolido um cachorro vivo. Você também está com fome?

— Estou...

— Então pegue e coma.

— E se estiver envenenado?

O russo olhou para o menino, quase com tristeza. Depois partiu um pedaço daquele pão pegajoso e enfiou-o na boca. Ofereceu o resto à criança. Hans Kramer pegou-o com as duas mãos, e meteu-o no bolso da calça. O russo curvou-se para a frente.

— Ainda está desconfiado, mo wolka? (Meu lobinho.)

— Vou guardar para a minha mãe.

— Ah, você tem mãe? — O russo sentou-se diante do menino, noutro túmulo também despedaçado, escondendo-lhe assim a visão da parede da capela, onde os russos começavam a contar os prisioneiros alemães. Depois empurraram os homens para um lado, com as coronhas das armas. Não era um quadro bonito, e o russo o encobria com seu corpo, para impedir a criança de ver.

— Onde está a sua mamuschka? — perguntou.

— Ela ia buscar leite em pó na loja de Normoth, na Rua Steinberg. Aí vocês começaram a atirar e depois chegaram. Mas ela está viva, eu sei... Minha mãe está viva, sim... deve estar sentada no porão da loja de Normoth...

— E o seu papuschka?

— Meu pai está no exército. Faz uma semana marchou para o Haff. — O menino meteu a mão no bolso, quebrou um pedacinho do pão e enfiou-o na boca, encabulado. Ainda soluçava... depois seu corpinho magro tremeu, os grandes olhos azuis de repente se tornaram escuros e muito antigos.

— Meu pai ainda nos disse: ”Vão para o cemitério. Procurem uma cripta... lá estarão seguros”. Foi o que fizemos. — Hans Kramer apontou ao redor. O russo seguiu o seu gesto com o olhar e viu as sepulturas abertas. — É lá que estamos morando... lá, onde está aquele anjo quebrado. — Na pedra estava escrito ”Família Kranowski”. — Quer ir até lá?

— Sim. — O russo pegou o menino pela mão. Como pai e filho, andaram até o anjo de mármore partido, a sepultura da família Kranowski. Era uma conhecida família de Kõnigsberg. Banqueiros e armadores, procuradores do Estado e comerciantes... uma rica família tradicional, que se podia permitir o luxo de um anjo de mármore.

— Ela vem logo... — disse o menino. O russo assustou-se.

— Quem?

— Minha mãe. — O menino ficou ali parado olhando para o russo. — Você não vai dar um tiro nela, vai?

— Não. Claro que não.

— E os outros soldados?

— Eu lhes darei ordens para que não façam isso.

— Você é um homem importante?

— Sou Anton Vassilievitch Pjetkin, capitão do regimento de guardas soviéticos.

— Anton Vassilievitch. Assim se chamava um camarada do meu pai. Um prisioneiro russo, sabe?

— E seu pai, o que faz na vida?

— Ele é sapateiro.

— E o que aconteceu com o outro Anton Vassilievitch?

— Não sei. Eles o vieram buscar. Uns homens com dourados tão brilhantes no peito como você. Anton nunca mais voltou.

O capitão Pjetkin acenou com a cabeça. Sentou-se no peito do anjo de mármore e segurou firme as mãos de Hans Kramer.

— Seu pai também não vai voltar mais... — disse lentamente.

— Vai, sim! — O menino fitou Pjetkin obstinadamente. — Ele prometeu.

— E a sua mamuschka também não virá mais.

— Mas como é que você sabe?

Olharam-se os dois, o magro e sujo menino alemão com olhos azuis agora escurecidos, e o grande capitão soviético, sujo de terra, ferido na testa. E por mais opressivo que fosse o horror em torno deles, de alguma forma sentiam que estavam numa ilha e o mundo constava só deles. Kõnigsberg ardia em torno, as divisões soviéticas invadiam as pobres sepulturas e casamatas dos alemães, tiravam dos buracos e porões os soldados exaustos, ou os tangiam para o mar como coelhos caçados. O último ponto de resistência alemã na Prússia Oriental fora eliminado.

O grupo do marechal Wassileski vingava-se, trinta e um anos depois, da derrota de Tannenberg.

— Vamos procurar seus pais — disse Pjetkin baixinho, e colocou a mão no ombro da criança. — Prometo que vou ajudar a procurar sua mamuschka...

Durante dois dias em vão procuraram entre as ruínas, rastejaram nos porões e canais, examinaram as sepulturas, revolveram os escombros. Perguntaram aos sobreviventes, mas estes de nada sabiam. Só horror flamejava nos seus olhos quando Hans Kramer aparecia nas ruas pela mão do capitão Pjetkin.

Na loja de Normoth não restava pedra sobre pedra.

Uma bomba despedaçara a casa toda. No porão havia cadáveres cobertos de caliça, da família Normoth, comprimidos contra a parede. A pressão da bomba lhes estourara os pulmões. Havia outras pessoas por ali, e Hans Kramer conhecia algumas... mas não acharam a mãe dele, nem quando mandaram levar para a rua os cadáveres irreconhecíveis e lavaram seus rostos para ver quem eram.

O capitão Pjetkin ordenara a seus soldados que procurassem a mãe do menino. Ele aparecia pessoalmente várias vezes por dia no pequeno jipe americano, e sempre trazia alguma coisa de comer. Geléia e biscoitos, o escuro pão russo, uma lata com legumes em conserva e, na noite do segundo dia, até uma garrafa de limonada.

— Ela não está aqui... — disse Hans Kramer nessa noite, — Minha mãe não está aqui... e meu pai...

— Os soldados alemães do Haff tiveram grandes baixas — disse Pjetkin apertando o menino ao peito. — O teu papuschka também não virá mais.

— Nunca mais?

— Nunca mais, meu lobinho...

A criança chorou. O corpo magro foi sacudido e, depois, os braços finos o enlaçaram, como se o capitão fosse o seu único amparo neste mundo.

Pjetkin acariciou-lhe os cabelos revoltos. Depois pegou o menino sob os braços, levantou-o como a um boneco, colocou-o no jipe e sentou-se ao seu lado.

— Não tenha medo — disse quase com ternura, e seguroulhe a cabeça com as mãos. Os olhos do pequeno fitaram-no como dois minúsculos lagos transbordantes. No rostinho sujo as lágrimas traçavam longos sulcos. — Nada de medo, meu querido. Você tem Anton Vassilievitch... e Deus amaldiçoe a guerra!

Pjetkin ligou o motor e partiu...

Rodaram para a cidade em chamas... era 9 de abril de 1945. Kõnigsberg capitulara. O exército soviético estava às portas de Berlim.

 

Em toda parte há pessoas invejosas de natureza, a ponto de que deveriam ter sempre a pele amarelada pela bílis, tão mesquinhas e invejosas são. Mal alguém aparece com uma calça nova, já vem um desses sujeitos repugnantes e começa a murmurar: ”Será que ele é mais do que nós? Será que tem um primo na seção de distribuição de roupas? Temos de verificar isso, camaradas!”

É, gente assim existe por toda parte, em Jenissei ou no Rio de Janeiro, Oslo ou Gelsenkirchen... Todo o mundo está cheio desses tipos, que não admitem que os outros soltem nem uma benfazeja descarga de gases. Não admira que também no regimento do capitão Pjetkin houvesse um sujeito desses, um indivíduo com nariz de batata, um tal tenente Andron Avdejevitch Burmin, que todos no regimento chamavam de ”Sujo”.

E esse Andron Burmin descobriu certo dia ao lado do capitão Pjetkin um menino com uma roupa feita de um uniforme soviético. Fora um acaso infeliz... Nos arredores de Berlim, Pjetkin cozinhava numa fogueira ao ar livre uma sopa de batatas, magra e rala, e o menino a remexia com um pedaço de pau, quando Burmin passou com estardalhaço numa motocicleta tirada dos despojos do inimigo. Parou imediatamente, fez a volta e freou bem diante da panela com sopa fervente. Nesse instante, Pjetkin saía do porão com lenha nos braços. Ao ver Burmin, soube que a guerra não terminaria com a conquista de Berlim, ao menos a guerra particular contra um certo capitão Pjetkin em torno de uma criança que se lhe tornara querida como um filho.

— Que bela máquina, Andron Avdejevitch! — exclamou Pjetkin deixando cair a lenha.

— E que simpatia de garoto! — exclamou Burmin, descendo da moto. — Quem é ele?

— Meu filho — disse Pjetkin simplesmente.

— Pois Deus ainda permite milagres! — Burmin empurrou o gorro para a nuca. Estava vermelho de excitação. — Anda chovendo criancinhas do céu, que coisa! E já vêm com roupinha sob medida. Mas até à sua última licença, o seu casamento não era estéril, Anton Vassilievitch? Ah, essa é a segunda part do milagre... em Kichinev as criancinhas são geradas e em sete meses se tornam rapazinhos. Felicitações, Anton Vassilievitch!

Pjetkin desistiu de dar explicações àquele homem desprezível. Não faria sentido. Os olhos de Burmin brilhavam como os de um sádico.

— Siga o seu caminho — disse Pjetkin, e como Burmin ficasse parado, examinando o menino, Pjetkin gritou: — Suba na moto e vá imediatamente para junto da sua companhia! Isso é uma ordem, camarada tenente!

Burmin torceu a cara como se tivesse tomado vinagre, virou-se e sentou-se na motocicleta. Partiu com grande estouro do motor.

Pjetkin seguiu-o com o olhar, pensativamente, até que ele desapareceu entre as ruínas. Depois, voltou-se, sentou-se ao lado da panela negra com a sopa fumegante.

— Vamos ter aborrecimentos — disse ele. — Burmin vai espalhar por toda a parte que você está comigo, Igoruschka...

Hans Kramer, que desde a conquista de Kõnigsberg era chamado apenas de Igor pelo capitão Pjetkin, despejou um pouco de sopa numa tigela de lata e colocou-a sobre as pedras dos escombros. O caminho da Prússia Oriental até Berlim fora uma sequência de aventuras. A tropa especial de Pjetkin, os lutadores de rua de Stalingrado tinham saído de Kõnigsberg assim que o comandante, general Lasch, capitulara. Numa longa coluna motorizada, o batalhão havia partido para oeste, passando pelos grupos de fugitivos. Varreu-os para a direita e a esquerda para dentro das valetas, e alcançou Berlim quando começava o último grande ataque ao centro da cidade. Nesses dias, o pequeno Hans Kramer se transformara numa criança russa. Pjetkin chamou um alfaiate, o segundo-sargento da sua companhia, e disse com olhar sombrio:

— Bogdan Jegorovitch, eu lhe darei dez rublos, e por cinco vezes vou esquecer que você chega bêbado ao serviço, se fizer uma roupa para Igor com algum uniforme velho, e calar a boca. Entendidos?

— Perfeitamente, camarada capitão.

Bogdan Jegorovitch tirou as medidas do menino, pegou o uniforme de um dos soldados russos mortos, e entregou dois rublos ao enfermeiro que permitira aquilo.

— Para que um morto vai precisar de um uniforme? — disse Bogdan com sabedoria. — Camarada, acho que morto não sente frio.

Nada havia a retrucar diante disso, e depois de quatro dias Igor obteve o seu belo traje, bem assentado, que tinha apenas uma pequena marca: atrás, debaixo do ombro esquerdo, havia uma mancha escura de sangue no tecido. Bogdan Jegorovitch esforçara-se ao máximo para tirá-la: lavou a fazenda, enxaguou-a na água corrente do Oderbruch, passou-lhe benzina, e quase se desesperou quando viu que a mancha não saía.

— Mas que maldito sangue tinha esse sujeito! — gritou ao entregar a roupa a Pjetkin. — Parece até que bebeu ácido anos a fio. Quem podia imaginar isso, camarada capitão? Mas foi o melhor uniforme que pude encontrar.

Não havia tempo para fazer outra roupa. Os lutadores de Stalingrado foram levados em tanque até Berlim. Já no dia seguinte dominaram um núcleo da resistência das SS, numa luta sangrenta na qual também Bogdan Jegorovitch perdeu a vida. Desse modo, Igor conservou a roupa com uma mancha de sangue nas costas.

O tenente Burmin andara em grande atividade... Pjetkin descobriu isso quando manteve uma ligação direta pelo rádio com o general, e escutou, no aparelho que soltava arquejos e estalos, a voz familiar de Ronovskij.

— Anton Vassilievitch! — disse o velho general. — Seu pessoal foi muito valente. Isso me alegra!

— Nós nos sacrificamos pela pátria, camarada general — respondeu Pjetkin formalizado.

— No momento você está descansando um pouco, não é?

— Faz quatro horas. Os alemães estão escondidos. Estamos recolhendo os feridos...

— E as crianças...

Ah, pensou Pjetkin, a coisa vem aí. E eu lhe dei a deixa.

Conhecia Ronovskij da Academia Militar. Fora professor de Estratégia de Pjetkin. Um bom sujeito, um pai para os seus alunos. Tinha especial agrado por Pjetkin, coisa que este não entendia, pois não era, absolutamente, o melhor aluno da Academia. Mas Ronovskij pensava de outro modo. Certa vez disse aos seus colegas professores:

— Claro que Anton Vassilievitch não é um modelo de soldado. Está incluído na metade superior, não mais. Mas em vez de encolher a barriga até estalar as bochechas, tem um coração no peito. Isso não é necessário para uma grande carreira militar, mas fico tranqüilo ao saber que nem todos os rapazes que despachamos daqui se tornaram máquinas humanas... — Ronovskij estava sozinho nesse ponto de vista, mas sempre fora um sujeito singular e era o único general soviético que usava barba, à maneira de um sacerdote. Até chegarem à fronteira alemã. Lá ele se barbeou, ficou de cara lisa como um bebé, e jurou aos seus oficiais reunidos que só depois da conquista de Berlim deixaria crescer novamente a barba. Desde então, cada manhã, ficava tristemente diante do espelho, olhando e apalpando o queixo vazio, e dava as primeiras ordens do dia:

— Tem de ser nossa primeira ambição chegar a Berlim antes de todos, e desfraldar no ponto mais alto da cidade a gloriosa bandeira vermelha!

— Crianças? — disse Pjetkin lentamente. — Claro que existem crianças por aqui, camarada general. Os porões estão cheios de civis.

— Pois venha até aqui! — disse o general Ronovskij secamente... — E traga o seu rapazinho!

O centro de comando da divisão ficava no porão de uma padaria. O forno a gás ainda estava intato, mas como não houvesse mais gás, os padeiros da divisão o aqueciam com lenha, e coziam o pão conforme o bom e antigo sistema camponês, entre pedras escaldantes. O general Ronovskij instalara-se entre as gamelas de massa e máquina de amassar como um mestre-cuca, espalhara seus mapas sobre a mesa de preparar os pães, prendendo com formas de bolo os cantos do papel que teimava em se enrolar. Seu uniforme estava coberto de farinha de trigo, pois ao lado os padeiros da divisão se atarefavam com as gamelas, formando enormes pães redondos.

Pjetkin e Igor tiveram de esperar lá em cima, até que Ronovskij os mandasse chamar por um ajudante. O chão tremia debaixo de seus pés, o ar estava impregnado pelas detonações e nuvens negras de fumaça. No rio Spree andavam tropas de assalto soviéticas ao abrigo de tanques, reduzindo os últimos grupos da resistência alemã. O anel em torno da Chancelaria do Reich também se apertava. A guerra logo estaria terminada... todos sentiam isso. Uma alegria ainda reprimida aparecia nos olhos. Era como na primavera, quando o gelo estala sobre os rios, e todo mundo olha para o sul, esperando pelos ventos mornos.

O general Ronovskij recebeu Pjetkin com um grande pedaço de pão ainda quente na mão. Havia um aroma delicioso em todo o porão, os estômagos famintos se encolhiam e estremeciam. Também a boca de Pjetkin encheu-se de água.

— Anton Vassilievitch... — disse Ronovskij devagar, contemplando o menino com seu traje feito de fazenda de uniforme. — Eu alguma vez gritei com você?

— Não, camarada general. — Pjetkin estava em posição de sentido entre uma gamela e a mesa de amassar pão. Colocara o braço direito sobre o ombro de Igor, e foi esse gesto que deixou Ronovskij indeciso.

— Alguma vez o chamei de animal estúpido?

— Não.

— Mas vou ter de fazer as duas coisas agora. — Ronovskij juntou as sobrancelhas hirsutas e examinou o rapaz como um comprador de cavalos. Depois, mordeu novamente o pão fresco e fumegante, andou ao redor de Igor e parou ao ver a mancha de sangue. Mas não perguntou nada, continuou a andar, rodeou até a mesa com os mapas, e voltou a fixar os grandes olhos azuis e sinceros da criança.

— Ele não tem medo — disse Ronovskij de repente, espantado.

— E por que iria ter? -— disse Pjetkin sem olhar diretamente para o seu general. — EU lhe disse: ”Não tenha medo, Igoruschka. Vamos ao encontro de um homem bom. Ele não vai mexer num só dos seus cabelos”.

— Esse seu maldito coração mole, Anton Vassilievitch! Ele ainda vai matá-lo um dia, espere para ver! Conquista todo um bairro de Stalingrado e fica mole como manteiga no sol quando encontra uma criança. Quem é ele?

— Igor Antonovitch, meu filho, camarada general.

— Já se viu uma estupidez igual? Seu filho! Um bastardo alemão.

— Ele vai ser meu filho depois da guerra. Irena Ivanovna não pode ter filhos... agora sabemos disso. Mas há anos desejamos um filho...

— E tem de ser logo um alemão? Mal encontra-um vira-lata das ruas, e o bom Anton Vassilievitch, com seu bondoso coração idiota, o beija e acaricia, e até fica com os olhos lacrimosos como os de um cachorrinho! Será que não há bastante rapazes russos, cheios de força? órfãos de pais valentes, que deram a vida pela nossa pátria? Onde foi que o encontrou?

— Num cemitério de ICõnigsberg, Andrei Ivanovitch. — Pjetkin apertou Igor de encontro a si, e pôs os dois braços ao seu redor. — Estava ajoelhado atrás de uma lápide, chorando, tremendo, e segurava uma caveira na mão, como se fosse uma maçã na qual quisesse dar uma dentada...

O general Ronovskij inflou as narinas e olhou para o seu grande naco de pão. O cheiro daquela fatia de pão fresco era embriagador... como um hálito da mais profunda paz.

O general Ronovskij olhou em torno. Os padeiros estavam de lado, amassando os pães redondos, dois oficiais do seu EstadoMaior estavam acocorados diante do telefone de campanha, anotando notícias recentes. Só Pjetkin o fitava, e ele fez um sinal.

— Feche os olhos, Anton Vassilievitch — disse Ronovskij. — Imediatamente! — Então curvou-se, partiu um grande pedaço de pão e deu-o ao menino.

— Isso não quer dizer nada — afirmou Ronovskij mais tarde, sozinho com o capitão Pjetkin num aposento ao lado, onde antigamente se guardava a farinha. — Como é que está imaginando tudo isso? Adoção! Uma criança alemã! Levar até o frontí Uma criança! Será que estamos vivendo na idade dos tártaros? Não diga nada, Pjetkin, eu lhe ordeno que desista de qualquer manifestação. -Parece que é um bom menino, um pouco fraco, e se você tiver azar, ele vai morrer de tuberculose, ou ferido por uma bala, uma granada, uma mina, sei lá. Adoção! Sabe como é difícil isso? Um oficial da guarda e uma criança alemã! As autoridades vão bater as cabeças na parede, se você apresentar esse requerimento. Reconheça que é impossível.

Pjetkin sacudiu a cabeça. Ronovskij suspirou fundo.

— Eu sou a única coisa que Igor ainda tem no mundo — disse Pjetkin. — Ele se agarrou a mim como um gatinho.

— Milhares de crianças agora não têm mais nada no mundo além da sua própria respiração! — gritou Ronovskij. — Na União Soviética há mais de quatro milhões de órfãos de guerra... e você me aparece com um bastardo... Pjetkin, raciocine comigo: o que vai acontecer? Tenho de ordenar-lhe que se livre dessa criança! Imediatamente!

— E o que vai acontecer com Igor?

— Por isso é que estamos aqui sozinhos, Anton Vassilievitch. Quero fazer-lhe algumas sugestões. — Ronovskij sentou-se numa caixa, pensou nos agradecidos olhos azuis do menino, ao morder o pão ainda quente, e suspirou de novo. — Vamos ser tolerantes, vamos aguardar como se vira a Terra, quando tivermos vencido a Grande Guerra, e encararemos o seu Igor simplesmente como um dos nossos órfãos. Que faremos com eles? Serão reunidos e colocados em acampamentos infantis onde serão educados como bons comunistas. É essa a sua ideia, Pjetkin? Pode pegar de novo o seu Igor, quando nós o tivermos reeducado. A União Soviética será seu pai e sua mãe. Se mais tarde ele quiser voltar para junto de você... poderemos tentar falar com as autoridades. — Ronovskij levantou as mãos, como para mostrar que estavam limpas. — Esse é o único caminho para salvar o menino. Se você recusar, terei de expulsar Igor como um cão.

Pjetkin ficou silencioso. Pesou sua situação e reconheceu que um homem isolado não é mais que um floco de neve caindo em fogão ardente.

— E como vai ficar isso tecnicamente? — perguntou com a garganta apertada. — Para onde irá ele e como chegará lá?

Ronovskij pigarreou e procurou um maço de cigarros no uniforme. Como não achasse nenhum, Pjetkin tirou seus papyrossi do bolso. Depois de três tragadas fundas, o general continuou:

— Eu mesmo me interessarei por ele, Anton Vassilievitch, prometo. Ele irá com o próximo trem-hospital para Moscou, levando uma carta minha para o comité de órfãos. Essa carta vai fazer milagres. Vamos seguir de perto a vida dele, não se preocupe, e quando ele for um bom russo, você sentirá orgulho dele. Mas agora precisa ir, reconheça isso. É impossível que na guerra cada um carregue algum amor consigo. Um leva uma criança, outro uma prostituta, e outro ainda vai aparecer com um papagaio no ombro.

— Devia-se quebrar a cabeça daquele Burmin — disse Pjetkin em tom abafado. Depois ergueu-se e apagou com o pé o seu cigarro fumado até o meio. — Quando terei de entregar Igor?

— Traga-o ao hospital de campanha amanhã de manhã. Vou tratar de instruir até lá todo o pessoal necessário.

Naquela noite, ficaram muito tempo acordados, no porão úmido das ruínas. Sobre eles trovejavam as pesadas granadas no bairro administrativo de Berlim. As explosões abafadas faziam tremer as paredes. Igor se comprimia contra Pjetkin, e rasgava com os dedinhos magros um pedaço de pano. Ficou calado por algum tempo, enquanto Pjetkin tentava explicar-lhe como seria bonito o seu novo lar, para o qual iria no dia seguinte, como toda a sua miséria teria fim, e mais tarde, depois da guerra ganha, ele seria levado para Kichinev, a bela cidade no Bakul, cuja água se lançava no imenso Dniester e corria para o Mar Negro.

Pjetkin falou, e falou, olhando os dedos do menino que rasgavam o pano. Sem uma palavra, com um miserável tremor que escondia todo o medo, a solidão, o horror do amanhã, que destruíam a pequena alma.

— Você vai mesmo me buscar depois? — perguntou Igor quando Pjetkin se calou. Este estava exausto. Nada mais lhe ocorria, pois todas as explicações estavam paralisadas como um cavalo cego que durante vinte anos correu em círculo puxando a roldana de um poço.

— Pela luz dos meus olhos... — disse Pjetkin com voz cansada. — Logo que eu puder.

— E as outras pessoas não me vão tratar como inimigo?

— Elas que se atrevam! Você é Igor Antonovitch e nunca foi outra coisa.

— Mas eu não sei uma palavra de russo.

— Você vai aprender depressa, meu lobinho.

Pjetkin colocou um velho cobertor em cima dele. Era uma noite fria e chuvosa. Em todo o porão a água pingava pelas rachaduras do teto. Tinha vontade de chorar, e estava admirado com seu próprio estado de alma. Como a gente se acostuma a querer bem a uma criança, pensou.

— Fale mais sobre Kichinev — disse Igor. Pjetkin estremeceu, recolheu seus pensamentos, e falou em sua mulher, Irena Ivanovna, as vinhas e plantações de frutas nas colinas verdes do nordeste e sul da cidade, do chão negro e fértil, as florestas de Kodry, os encantadores vales e ravinas do Moldava.

— Uma terra linda, não é? — perguntou Igor, brincando nervosamente com o pano. — Vou fazer tudo o que me disserem, para ir logo para lá.

— Sério, Igoruschka?

— Sério. — O menino virou-se e olhou a parede úmida do porão. — Para onde... para onde mais eu poderia ir? Agora estou sozinho no mundo.

Depois apertou o rosto no braço direito e começou a chorar, Na manhã seguinte, bem cedo, Pjetkin enrolou o adormecido Igor num cobertor, levou-o até o jipe, e dirigiu-se com ele para o acampamento principal dos feridos. Lá entregou o menino adormecido e acompanhou-o com o olhar enquanto o enfermeiro o carregava para uma das barracas. O cirurgião-chefe, um capitão médico, já estava instruído, e esperou até que Pjetkin dominasse a sua dor silenciosa.

— O senhor não quer ir certificar-se de que ele está em boas mãos? — perguntou.

— Não — disse Pjetkin, sacudindo a cabeça. — Se eu agora correr atrás dele, vou trazê-lo de volta, e nem mesmo Stalin vai arrancá-lo das minhas mãos.

Virou-se bruscamente e caminhou para o carro.

Foi vontade de Deus ou sadismo do Diabo que fez com que na volta ele deparasse com o tenente Burmin? Seja como for... Pjetkin parou o carro imediatamente, saltou e correu em direção a Burmin, que examinava as ruínas com um bastão militar, procurando atiradores alemães escondidos.

Pjetkin atingiu Burmin no queixo, exatamente na ponta, que estalou alto. Burmin encarou-o, atoleimado, revirou os olhos e caiu. Bateu ainda com a cabeça numa quina de pedra, mas isso, no seu estado pouco significava.

Satisfeito, Pjetkin voltou ao jipe. Burmin será meu inimigo, de hoje em diante, pensou. Seria bom que uma bala alemã ô atingisse de uma vez.

Não era um pensamento cristão, mas Pjetkin saíra da Igreja em 1930. além disso, muita gente pensava como ele.

 

O trem-hospital corria pela paisagem destruída, queimada, deserta e cinzenta de chuva. Dia e noite, com curtas paradas, quando as locomotivas tinham de receber água e carvão, ou eram substituídas. Aí também se descarregavam os cadáveres; trouxas de lonas de barraca, que batiam nas gares como sacos de farinha molhada. Frankfurt sobre o Oder... Posen... Kutno... Varsóvia... Bialystok... Baranovitschi... Minsk... Borissov... Orcha... Smolensko... Moscou... Dia e noite, noite e dia... por duas semanas o matraquear das rodas, o ranger dos trilhos, o embalo do vagão nas molas gastas, o choramingar dos feridos, o arquejar dos moribundos... e lá fora a imensidão do país.

Igor Antonovitch, como agora era chamado, vivia nesse trem cheio de moribundos como um gato doméstico. Podia deitar-se para dormir onde quisesse, e em geral rastejava debaixo da cama de algum ferido grave, deixando-se embalar pelos gemidos monótonos, recebia sua comida lá na frente, dos enfermeiros, ou da médica do carro III, ninguém lhe perguntava nada, mas também não o tratavam como gente. Aí vem um ser vivo que quer comer e dormir, e lhe dão isso. Meu Deus, todos no trem tinham bastante ocupação, quatrocentos e vinte feridos precisavam ser tratados, gritavam por ataduras limpas, água, injeções para acalmar a dor, blasfemavam e cuspiam sangue, faziam suas necessidades na cama, rezando, chorando e morrendo.

Igor Antonovitch acostumou-se depressa a seus companheiros de viagem. Quando o capitão médico o entregou no trem-hospital, amarraram um bilhete no pescoço de Igor. Ele não sabia o que estava escrito ali... mas adivinhava que era algo muito importante para a sua vida futura. Uma passagem para o futuro. Não entendia também o que a médica e os enfermeiros lhe diziam. Apenas encolhia os ombros, respondia com a única frase que sabia bem: ”Nje panimatij”, e tentava sorrir e extrair daqueles rostos estranhos um pouco de cordialidade. Mas não conseguia. Então refugiava-se junto dos feridos, segurava-lhes as canecas com água junto aos lábios ardentes, punha panos molhados nas testas febris, e carregava a bolsa de ataduras para o enfermeiro Lalikow, quando este fazia de manhã sua ronda pelo carro que lhe fora confiado. Assim aprendeu que se fecham as pálpebras dos mortos, para cobrir os olhos vidrados.

Até o amor entre homem e mulher lhe foi demonstrado, embora involuntariamente. Era de manhã cedo, ele se esgueirava pelos compartimentos para ver quantos tinham morrido durante a noite, quando passou pelo compartimento da médica e a viu, pela janela mal encoberta, deitada no seu catre, nua até o pescoço, e um corpo de homem, brilhante de suor e fremente, se deitava sobre ela, levantando e baixando-se. Ela parecia gostar, pois seu rosto largo reluzia de alegria, e ela sacudia as pernas. Tudo aquilo pareceu tão novo, sinistro e misterioso, que Igor continuou rapidamente o seu caminho, contando os mortos.

Fora um tempo bonito aquele, entre os doentes e moribundos, pensou Igor quando o trem se aproximava dos subúrbios de Moscou e de uma nova fase do seu ignorado destino. Sentou-se ao lado de Lalikow, olhando fixamente pela janela do compartimento, quando o trem entrou numa estação de bagagens e lá finalmente parou, depois de catorze dias. Carros de carga aproximaram-se dos vagões, aos solavancos, os feridos foram despachados, a médica entregou os papéis de transporte a dois oficiais. Igor também foi entregue como uma caixa de gaze... um dos oficiais leu o bilhete que o menino trazia no pescoço, contemplou Igor pensativamente, disse algo que ele não entendeu, e ficou atónito quando o pequeno respondeu com o que o cabo de Riga lhe ensinara:

— Deus te amaldiçoe! Vai mijar nas tuas botas!

O oficial ficou pasmado, juntou as sobrancelhas e refletiu se devia dar uma boa bofetada naquele fedelho. Mas decidiu que um oficial não faz uma coisa dessas, deu um empurrão em Igor de modo que o pequeno quase deu uma cambalhota, caindo sentado, e disse bem alto.

— Já vamos te rapar os cabelos, diabinho! — Depois fez uma cruz no bilhete que Igor trazia pendurado no pescoço por um barbante, e sublinhou o nome. Todos agora sabiam: ”Cuidado! Aqui vem um pequeno Satanás! Abram bem os olhos! Dêem-lhe mais pancada do que comida, isso lhe fará bem!”

Depois disso, Igor ficou horas a fio no canto de um escritório, sentado num tamborete, e ninguém mais se interessou por ele. Uma vez o enfermeiro Lalikow espiou para dentro, sorriu, atirou-lhe uma maçã e sumiu de novo. A médica também apareceu brevemente, pegou três gordas pastas em cima da mesa e se foi.

Igor não ousava mexer-se. Comeu a maçã com os caroços, encostou-se na parede e adormeceu.

Uma sacudidela o acordou. Diante dele estava um homem estranho com um boné listrado de azul e cinza, e um longo manto de pano grosseiro. Arrancou-lhe o cartão tão importante do pescoço, e leu-o pensativamente.

— Uma bosta de mosca, e a proteção de um general — disse como que enojado. — Mas que é que se pode fazer? Temos que acolher você no círculo dos bravos órfãos de guerra. Igor Antonovitch, levante-se e escute bem: exigimos obediência, mais nada. O resto vem por si. Entendeu?

Igor encarou o homenzarrão com seu longo manto. Não compreendera nada, mas pensou no cabo que lhe ensinara:

— Quando não souberes o que fazer, diz essa frase... — E Igor a disse:

— É tudo merda neste mundo!

O homem fez uma careta de dor. Colocou a sua mão enorme na cabeça de Igor e apertou. Era como um torno, e Igor gritou, deixando-se cair do tamborete.

— Isso é só um aviso! — berrou o homem. — Levante-se, bosta de burro! Lá no acampamento vamos pendurar você num gancho como uma lição para todos! Levante-se, que diabo! — Levantou Igor do chão com um puxão violento, empurrou-o à sua frente para fora, pela gare e para dentro de um carro velho, que fedia a chucrute e suor. — Vamos dobrar você — gritou o homem de novo. — Vai ficar do tamanho de um percevejo esmagado! Vai se meter nas frestas do chão para chorar!

Ligou o motor e o velho carro deu um salto no ar, caiu nas quatro rodas, gemeu e se pôs a sacolejar, bufando como um cavalo doente dos intestinos, pela rua afora.

Igor apertou o rosto contra a janela suja e fitou o crepúsculo.

Moscou. Aquilo era Moscou.

Ele não via nenhuma diferença de Kõnigsberg, só que as casas estavam todas inteiras, o sol da tarde brilhava cor de laranja nas vidraças, e as cruzes duplas reluziam douradas nas torres bulbosas das igrejas. Eu imaginava Moscou bem diferente, pensou. Mais colorida, mais bonita, como nas figuras dos livros de história. Mas as casas são velhas e cinzentas, e as ruas são como lá em casa... só as igrejas são iguais às figuras dos livros.

 

O Asilo Estadual para Órfãos de Guerra ficava num velho mosteiro no sul de Moscou, e de fora dava uma impressão tão venerável que se ficava tentado, ao entrar no vestíbulo, a tirar o boné da cabeça, como se fosse numa igreja. Essa impressão mudava instantaneamente, quando se olhava o pátio interno, onde um dia haviam andado respeitáveis monges rezando e cantando, até que a Revolução os expulsara dali e o comissário da zona transformara as celas do mosteiro em células de prisioneiros, trancando ali os suspeitos políticos. Mais tarde, o mosteiro ficou vazio e funcionava como lugar de encontros furtivos para casais apaixonados. Ah a gente podia-se amar sem jamais ser importunado.

Quando o Estado tomou conta do mosteiro mais uma vez, organizou ali um orfanato.

Igor Antonovitch teve sorte porque o chefe da instituição — ele se intitulava pacificamente de diretor do asilo — dominava mais ou menos o idioma alemão. Chamava-se Boris Igorovich Komorov. Era um sujeito gordo, que empurrava a barriga diante de si como uma locomotiva empurra um vagão, e até bufava como uma caldeira a vapor defeituosa, quando se movia mais depressa do que num ritmo cauteloso. Era solteirão e perseguia as empregadas da cozinha do orfanato, com moderado sucesso, pois o diâmetro do seu corpo tornava qualquer aproximação carinhosa um problema crítico, e uma verdadeira proeza acrobática.

— É este aí? — perguntou Komorov ao ver Igor à sua frente no escritório, fitando-o mudamente com seus grandes olhos azuis.

— É ele — rosnou o homem alto no carro. — Um aborto, eu lhe digo, camarada diretor. Uma boca igual à de uma vendedora de peixes podres. Deviam escová-lo como a uma panela de ferro.

— Mas não parece, camarada Schmeljov — Komorov curvou-se para Igor piscando os olhos. — Você vai ter uma vida boa aqui conosco, filhinho.

E Igor, sempre pensando no velho cabo, que lhe dissera: ”Se alguém se mostrar amável, diga essa frase: “Deus o amaldiçoe! Você é um bode vesgo!” — respondeu conforme aprendera.

— Que foi que eu disse? — gritou o compridão. — Escutou, escutou, camarada Komorov? Deviam-lhe torcer a cara para as costas! Ele vai enterrar nossa instituição!

Komorov ergueu as sobrancelhas e coçou o nariz. Depois leu os papéis que acompanhavam o menino, fez a volta na mesa, e em vez de bater no rosto do pequeno e jogá-lo na parede, como se esperaria com justiça, estendeu-lhe a mão dizendo em alemão:

— Bom dia.

— Bom dia — respondeu Igor claramente. Seus olhos brilharam. Colocou sua mãozinha fina na mão gorda de Komorov e fez uma pequena mesura. Schmeljov, o compridão, passou as duas mãos nos cabelos.

— Que animal! — gritou. — Que patife! Você entende esse sujeitinho, camarada Igorovitch?

— Perfeitamente. Algum porco lhe ensinou essas palavras e frases. Ele nem sabe o que significam. Igor não fala russo...

é alemão!

— É o quê? — Schmeljov apertou o queixo contra o colarinho. — É impossível!

— Pois leia os papéis! — Komorov jogou a pasta para Schmeljov. a vida de Igor Antonovitch em duas páginas. — Vamos fazer dele um russo e exemplar. Isso será minha ambição pessoal. Pense no provérbio dos tártaros: Do leite desprezado se faz manteiga.

— Mas ainda há outro provérbio — disse Schmeljov olhando enviesado para Igor. — Um urso fantasiado continua a ser urso...

Igor Antonovitch recebeu um lugar para dormir no Bloco III quarto 67 da divisão Jovens Falcões. Compartilhava a antiga cela de mosteiro com mais três órfãos de guerra, três rapazes robustos um pouco mais altos do que ele, que viviam há dóis anos no asilo, cujo pai era o Estado. Sabiam pouco ou nada de seus verdadeiros pais Quando se tornaram órfãos logo no começo da grande guerra da pátria, brincavam no jardim atrás da cerca e uma vizinha os pegou como cãezinhos novos, e lhes contou chorando que os alemães tinham assassinado seu paizinho no mato, levando a sua mamuschka para algum lugar do oeste. Os alemães não davam informações a respeito, e quem perguntava muito levava uma surra do pessoal militar.

Coisa parecida acontecera a quase todas as crianças que ali deviam ser educadas para se transformarem em homens, verdadeiros comunistas, tropas de assalto da nova geração. Por isso, nas classes mais altas também se ensinava a língua alemã, pois o olhar admirado para o oeste se tornara, depois da conquista da Sibéria, tão fascinante para os russos quanto o olhar alemão para o leste. Um olhava para uma terra de maravilhas, odiada e amada, outro sonhava com a amplidão do país, o chão virgem, o novo espaço vital de uma imensidão infinita.

Igor olhou em torno cautelosamente, depois que Komorov lhe mostrara a cama e o deixara sozinho. Os três companheiros de quarto — Dolgoruki, o de mãos longas, Njelep, o feio, e Schwasstun, o boca-grande — sentavam-se em seus colchões, mudos como figuras de barro, e esperavam. O olhar deles estava cheio de crueldade infantil, pois ninguém é tão livre de sentimentos quanto crianças entre si.

Igor ficou quieto. Tornara-se cauteloso, pois Komorov lhe contara que as frases do velho cabo eram uma porcaria e ofenderiam qualquer camarada decente. Igor entendeu muita coisa, e ficou triste porque todo o mundo lhe desejava o mal, até o cabo em quem tivera tanta confiança.

Timidamente sentou-se no seu colchão e depositou seu saco militar russo e um pedaço de pão ao lado. Era o seu único bem... um pedaço de sabão, um canivete, um xale de lã, encontrado nas ruínas de Berlim, duas grossas cebolas que o enfermeiro Lalikow lhe dera na despedida, dois pacotinhos de ataduras e um caco de espelho. Sim, havia também uma foto entre essas preciosidades, um retrato do capitão da guarda Pjetkin, tirada em umas férias em casa, em Kichinev. Um homem altivo em uniforme de gala.

— Que é que você tem aí? — perguntou Dolgoruki, mostrando com suas enormes mãos a trouxa de pão. Igor não entendeu, mas o gesto fora claro. Apertou o seu tesouro contra o peito, metendo a mão direita dentro do saco.

Njelep riu. Sua boca de peixe se abria e fechava.

— Parece ser um idiota, meus caros! — gritou com uma voz clara. — Parece não saber que nós aqui repartimos tudo, que somos uma comunidade de verdadeiros irmãos! — Eram as palavras de Komorov, apenas interpretadas de outro modo. Os dois meninos se aproximaram de Igor, e Schwasstun, da sua cama, cuspiu com maestria no peito de Igor.

— Mostre o que você trouxe! — rosnou Dolgoruki. — Nào é socialista comer tudo sozinho e deixar os outros passando fome. Você virou capitalista, hem?

Dolgoruki estendeu a mão para o saco de pão. -Igor o puxou para o lado, e os compridos dedos pegaram o vazio. Njelep riu zombeteiramente e massageou seu nariz grosso e torto.

— Está-se defendendo! — exclamou alegremente. — Está querendo levar uma surra! Amigos, encham-lhe o corpo com marcas azuis! Como é, Schwasstun? Não vem junto?

— Eu vou esperar — disse o boca-grande mastigando sementes de girassol. — Se eu lhe meter a mão, ele vai cair em pedaços. — Cuspiu na testa de Igor e exclamou ”Bravo!” para si mesmo.

Nessa situação perigosa Igor Antonovitch pensou no capitão Pjetkin. ”Nunca ceda, filhinho”, dissera este na última noite antes do transporte. ”Defenda-se, mesmo se estiver deitado no chão e os outros o pisarem. Não seja nunca covarde. Pense, onde estiver, que eu tenho orgulho de você.”

Num repelão, Igor arrancou a mão do saco de pão, atirou-o para trás contra a parede e abriu o canivete. Limpa e perigosa, a ponta para cima, pronta para ferir, a lâmina brilhava em sua mão.

Dolgoruki e Njelep pararam. Seus olhos se estreitaram.

— Seu filho de uma cadela! — disse Dolgoruki baixinho. — Seu sapo nojento! Você quer nos atacar? Pois espere, que não vamos esquecer isso! Ainda virão muitos dias e noites. Essa sua faquinha vai enferrujar, de tanto que você vai chorar!

Acenou com suas gigantescas mãos e Njelep e Schwasstun fizeram que sim com a cabeça. Depois, como sob um comando, puseram-se a guinchar, gritaram como leitões na ponta da faca, afastaram-se de Igor em direção de suas camas e ergueram os braços sobre a cabeça, como numa aflição mortal.

Depois de poucos minutos, Schmeljov entrou impetuosamente pelo quarto. Entendeu a situação assim como se apresentava, deu uma bofetada sonora em Igor, pegou-o pelo colarinho e arrastou-o para o corredor.

— Eu não disse? — gritava. — Ele vai destruir a nossa organização! É um demónio, um demónio! — Depois deu um pontapé no traseiro de Igor, e empurrou-o à sua frente até o escritório do camarada diretor.

Komorov mandou Schmeljov para fora, e falou a sós com Igor Antonovitch. Depois foi com ele até o quarto 67, fechou a porta atrás de si, e desafivelou lentamente a sua cinta. Por dez minutos, Komorov bateu em Dolgoruki, Njelep e Schwasstun, como um camponês que tange um boi teimoso com o arado pelos campos. Njelep desistiu por primeiro... caiu na cama e começou a implorar. Depois, foi a vez de Dolgoruki... Cobriu com as enormes mãos a cara, gritando por trás delas:

— Igor é nosso amigo! Juro que somos bons camaradas... Com Schwasstun, o boca-grande, a coisa era diferente...

mudo, encarniçado, com olhos escurecidos e pálpebras meio cerradas, deixou a cinta de couro bater no seu corpo. Agarrava-se à cabeceira da cama e não se mexeu até que o gordo Komorov ficojj sem fôlego, sentou-se gemendo na cama de Igor, tentou respirar, como um peixe fora da água. Só então Schwasstun se moveu dizendo com um rangido como areia num moinho:

— Camarada Komorov, foram trinta e nove batidas. Vou levar trinta e nove anos para esquecê-las.

— Engano! — berrou Komorov. — Quarenta anos!

Levantou-se de um salto, deu uma violenta bofetada no bocagrande, jogando-o de lado no colchão. Lá ficou Schwasstun, deitado, quase sufocando de ódio.

Desde então, deixaram Igor em paz. Pôde escrever descansadamente uma carta para o capitão Pjetkin, naquela noite. Foi uma longa carta, cheia de letras grandes e desajeitadas, cheias de erros, como escreve um menino de sete anos. Komorov recebeu a carta pessoalmente. Ela jamais chegou às mãos de Anton Vassilievitch Pjetkin... pois na mesma noite foi parar no cesto de lixo, e na manhã seguinte foi queimada no fogão de aquecimento, com outros restos.

Igor Antonovitch ficou cinco anos no asilo dos órfãos de guerra. Tornou-se um russo tão perfeito como se tivesse nascido numa terra de lavoura em Nagutskoje.

A 1º de maio de 1950, Anton Vasálievitch Pjetkin, agora promovido a tenente-coronel, tirou seu ”filho” Igor da severa escola de Komorov.

Apareceu na Instituição exatamente quando os alunos voltavam do grande desfile no Kremlin, uma pequena tropa marchando formalizada, com sua própria banda. Dez grandes bandeiras vermelhas tremulavam sobre as cabeças nuas, e uma faixa carregada por seis rapazes vinha à sua frente, ”Agradecemos ao nosso pai Stalin”, estava escrito nela.

— Onde está ele? — perguntou Pjetkin enquanto Komorov, silencioso, o deixava procurar.

— Será que mudou tanto?

— Igor Antonovitch está carregando a primeira bandeira, na frente, à direita...

— Aquele grandão ali? — Pjetkin contemplava o rapaz alto que segurava a bandeira com as duas mãos, firmando-se contra o vento que agitava o pano. Mas não saía do ritmo da marcha, embora devesse ser um enorme esforço.

— Sim — respondeu Komorov. — É aquele. O terceiro da sua classe. Estamos orgulhosos dele. Pode ficar orgulhoso dele, camarada Vassilievitch.

Pjetkin acenou com a cabeça. Lutava contra um aperto na garganta. Isso é emoção, disse para si mesmo. É alegria de pai. Lutei durante cinco anos por ele, com cem autoridades, cem requerimentos, funcionários cabeçudos e ideólogos demasiado zelosos. Fui até o Ministério da Guerra, ameacei com minha demissão do exército, e o general Ronovskij, hoje marechal da União Soviética, apresentou meus desejos a Stalin pessoalmente durante um almoço particular, ousei dirigir-me até a Béria, o demónio em forma humana, a quem o Ministério do Interior) e a polícia secreta estão submetidos.

Agora finalmente, Pjetkin vencera com seus requerimentos. Assinara a adoção em Moscou, e Irena ilvanovna, sua mulher, derramara lágrimas de felicidade, pois afinal tinham um filho.

— Ele sabe que venho para buscá-lo? — perguntou Pjetkin.

A pequena tropa fez alto no pátio interno, ordens militares soaram, as bandeiras foram baixadas e enroladas. Igor saiu da fila, deixou os outros carregadores de bandeiras parados, e marchou com eles e as bandeiras até o depósito.

— Há três meses ele é comandante dos Jovens Falcões — esclareceu Komorov. — E ele sabe que você vem, camarada.

— Como recebeu a ideia?

— Assim como esperávamos depois de cinco anos de educação. Considera isto uma mudança de comando altamente honrosa.

— Mas ele vem para junto de seu pai — disse Pjetkin chocado — não para um destacamento.

— Esse sentimento vai ser difícil de descobrir nele. — Komorov ergueu os ombros penalizado. — O pai de todos os órfãos de guerra é o camarada Stalin. A mãe deles é a eterna Rússia.

Pjetkin desistiu de pedir a Komorov que não o importunasse com frases.

— Vamos? — perguntou Komorov.

— Sim, vamos — disse Pjetkin, como que anestesiado. Dominou-se, colocou as mãos nos bolsos do casaco, fechou os punhos e respirou fundo. Depois, seguiu Komorov para fora, para o pátio interno agora vazio exceto pela faixa encostada à parede: ”Agradecemos ao nosso pai Stalin.”

Pjetkin teve impulsos de cuspir nele.

Eu sou o pai dele, gritava por dentro. Eu, camarada Slalinf Nasceu de mim no cemitério de Kõnigsberg. Chame isso de idiotice... mas é apenas um raro milagre...

E então se viu diante de Igor. O rapaz saíra do depósito, no uniforme dos komsomolzen, e havia suor na sua testa.

Komorov ficou de lado. Pjetkin estendeu as duas mãos, e também Igor começou a correr os últimos metros pelo pátio ao reconhecer Anton Vassilievitch. Caíram nos braços um do outro como um casal apaixonado.

— Igor, meu lobinho! — exclamou Pjetkin apertando-o ao peito. — Meu grande e forte lobinho!

E Igor disse baixinho no seu abraço:

— Finalmente você veio, papuschka...

Paizinho, ele me chamou de paizinho, pensou Pjetkin com calor. Eu sou o seu paizinho... Ó Deus, ó todos os santos... Nesse momento, teria podido abraçar o Sol.

 

A vida de Igor se tornou grande e bela como um rio siberiano.

Na casa de Pjetkin, na cidade de Kichinev, rodeada de vinhedos, havia um pequeno luxo em relação ao resto da massa humana. Pjetkin se tornara representante do comandante da cidade, membro de honra do Partido Comunista, portador da medalha de bravura, e ”herói de Stalingrado”. Era presidente de vários comitês, ou conselheiro decisivo, conhecia as personalidades importantes de toda a redondeza, e gozava de todos os privilégios e favores que eram possíveis numa sociedade sem classes.

Igor entregou-se a essa vida com uma naturalidade espantosa. Chamava Irena Ivanovna de mãe, o que nas primeiras seis semanas sempre arrancava lágrimas dela. Tornou-se também imediatamente líder dos jovens de Kichinev, e fazia conferências com frases que aprendera durante cinco anos de Komorov, em Moscou. Isso lhe trouxe a fama de ser um rapaz extremamente inteligente, e também algo assim como um piolho que Moscou colocara no pêlo de Kichinev. Em toda parte era tratado com cortesia, quase com submissão, pois nunca se podia saber que missão esse sujeito recebera, que ligações havia, e o que ele secretamente relatava para Moscou.

Igor freqüentava o ginásio. Fez seus exames de madureza com boas notas, embora não se esforçasse muito, e começou então a estudar Medicina na Universidade de Kichinev. Foi um dia de festa em casa de Pjetkin, quando ele voltou para casa com seu certificado de matrícula e disse: ”Agora sou estudante de Medicina.” Irena Ivanovna beijou-o comovidamente e Pjetkin fez saltar para o teto uma rolha de champanha da Criméia.

Já no segundo dia do primeiro semestre o destino interferiu profundamente com a alma de Igor Antonovitch.

No vestíbulo da Faculdade de Medicina, percebeu uma moça, que escorregava no chão recolhendo os livros, que lhe tinham caído de debaixo do braço. Ninguém se importava com isso... ao contrário, faziam um desvio e continuavam seu caminho. Igor abaixou-se e ajudou a moça a juntar seus livros. Até ali ele só via o brilho dos cabelos louros, cintilando ao sol como fios de ouro. Então ela ergueu a cabeça e o fitou.

— Obrigada... — disse apenas, apertou o monte de livros contra o peito redondo e se afastou sem outra palavra.

Igor seguiu a moça com um sentimento estranho no coração.

Estava como entorpecido, e não sentia mais a terra debaixo dos pés.

O almoço na casa de Pjetkin era comparável a um culto secreto. Irena Ivanovna, uma mulher orgulhosa, bela e alta, dedicava muito tempo e esforço à compra das verduras e carnes, cogumelos e temperos, amoras açucaradas e frutas em compota, e cozinhava ela mesma na grande cozinha. O tenente-coronel Pjetkin era um gastrônomo, e fundamentava isso do seguinte modo. ”Se alguém esteve, como eu, anos a fio na guerra comendo apenas repolho apodrecido e pão pegajoso, conquista o direito de sentar-se em paz a uma mesa farta.”

Anton Vassilievitch podia falar assim. Em Kichinev havia na verdade apenas umas dez pessoas importantes, que não se ofendiam mutuamente, e tinham resolvido, num círculo íntimo, não se alfinetar como era costume geral, pois afinal tinham vencido uma revolução, expulsado o Czar, e vencido os alemães, para praticar um socialismo perfeito; podiam dar-se ao luxo de ter uma casa grande, até mesmo empregados, e gastar tanto tempo na comida quanto outros gastavam em colher feijões. O tenente-coronel agradecia o privilégio de participar desse círculo, à fortuna pessoal da sua mulher, ao seu próprio uniforme reluzente de medalhas, e às suas ligações com Moscou. Seu velho general Ronovskij tornara-se marechal, e organizava uma nova tropa de foguetes, algo muito secreto e perigoso. Isso tinha seus efeitos sobre Pjetkin... que era considerado uma espécie de governador militar, e todos o cercavam de atenções.

O almoço começava com uma pontualidade militar, e um copo erguido à saúde de Irena Ivanovna, a solícita mãezinha. Mas naquele dia tiveram de esperar Igor Antonovitch, o estudante de Medicina. Pjetkin olhou várias vezes aborrecido para o relógio, espalmou a mão sobre o cálice com vinho, e permitiu que Irena reconduzisse a entrada — blinis (panquecas bem finas com peixe defumado) — para a cozinha, pondo-a de novo no fogão.

Finalmente a porta bateu, Igor entrou e sentou-se à mesa.

Os seus olhos brilhavam, ele esticou as pernas e fitou a parede.

— Meu filho está-se comportando como um débil mental — disse Pjetkin sombrio. — Chega atrasado, não se desculpa, sorri como uma beterraba estourada. Sua mãe já esquentou a comida duas vezes.

— Pai, estou apaixonado — disse Igor e cruzou as mãos sobre a mesa. Irena Ivanovna, que estava trazendo pela terceira vez os blinis, quase deixou cair a pesada travessa na mesa.

— Ele... ele está apaixonado... — gaguejou. — O meu pequeno Igor está apaixonado. Meu filhinho, meu querido... — Correu ao redor da mesa, apertou a cabeça de Igor contra o peito, e chorou. Pjetkin contemplou de má vontade esse quadro de uma mãe que perdera a linha e sacudiu a cabeça.

— Mas que é que tem isso? — disse alto. — Igor tem vinte anos... não podemos esquecer isso! Ele agora é um homem. Irena.

— Quem é ela? — perguntou Irena acariciando os cabelos louros de Igor. Era como se ele lhe tivesse confiado que seu pulmão estourara e que estava à morte. — De onde ela veio? Como a conheceu? Vai ver que ela se aproximou de você, não é? O filho de Pjetkin... bem conveniente! Conta, meu querido, conta! Ela veio feito um par de pernas de pau, sacudindo as coxinhas, os seios rebentando o vestido. E você, bom rapaz, quase deixou os olhos caírem no chão.

— Foi tudo bem diferente. — Igor livrou-se das mãos maternas e curvou-se sobre a mesa para Pjetkin. — Ela é loura. Seus cabelos brilham como fios de ouro trançados. Caminha como se flutuasse. Eu a segui e nem senti que movia os pés.

— Deus do céu, ele está com febre! — exclamou Irena Ivanovna apavorada.

— Nisso ela se perdeu na multidão. Eu a procurei até agora. Fui de sala em sala, de instituto em instituto... parece que foi engolida pelo chão. Mas hei de vê-la de novo. Amanhã serei o primeiro estudante diante da Universidade.

— Ele sempre foi assim — disse Pjetkin secamente, vendo o olhar suplicante da mulher. Depois ergueu-se, sentou-se no canto da mesa diante de Igor e bateu de leve na testa do filho. — Filhinho, é o seu primeiro amor...?

— O primeiro de verdade, paizinho.

— E nem sabe como a moça se chama?

— Não.

— Nem de onde ela vem?

— Não.

— Sabe se ela também quer?

— Não sei de nada. Só sinto que minha vida mudou...

— Naturalmente a vida muda. Está estudando, um dia vai ser médico, ajudar milhares de pessoas, assumiu uma tarefa que vai exigir toda a sua força. Vamos ter orgulho de você um dia, quando as pessoas disserem: Sim, o Igor Antonovitch é um grande médico!

— Prometo que vou ser um grande médico! — Igor levantou-se de um salto e abraçou Irena. Deu-lhe um beijo, o que causou novas lágrimas à mesma. Qual é a mãe que quer repartir seu amor, ainda mais com uma mocinha cujos cabelos são como raios trançados de sol?

— Acho que ele devia se deitar na cama e descansar! — exclamou Irena. — Está doente! Eu podia matar essa bruxa loura!

— Igoruschka está tão normal como um homem pode ser — disse Pjetkin. Irena engoliu sua resposta. Mas colocou demonstrativamente as mãos nos ombros de Igor e acariciou-lhe a nuca. — Quando você a vir de novo, convide-a para nos visitar.

— Você é um pai maravilhoso — disse Igor, feliz. Tomou as mãos de Irena, beijou-as conforme o antigo costume russo e sentou-se de novo à mesa. — Agora estou faminto como um lobo na neve. — Colocou dois blinis no prato, cobriu-os de nata quente e começou a comer. — Querem que eu lhes conte o que ela me disse? ”Obrigada!”, foi o que ela disse. Mais nada. Só essa única palavra. Obrigada... Mas foi como uma sinfonia inteira de Tchaikowsky. E depois ela apertou os livros no peito e se foi. Tem uns seios redondos, cheios...

— Meu Deus! — gaguejou Irena Ivanovna. — Ele nunca falou assim...

Foi um almoço silencioso. Pjetkin observava o filho crescido. Que caminho do cemitério de Kõnigsberg até a Universidade de Kichinev! Será que ele ainda se lembra de que a sua verdadeira mãe ficou debaixo das ruínas da cidade, em algum lugar, um porão, um buraco de granada, uma cratera de bomba? Seu pai caiu talvez no Haff, numa das ruas, quando conquistamos a cidade... será que, lá no fundo, ele às vezes revive aqueles dias? Nunca falou nisso, nunca fez uma só pergunta... No orfanato de Moscou tornou-se um russo e cresceu como outros meninos da sua idade. Tornou-se um Pjetkin, filho de Irena e meu filho, uma criança legítima da minha família, um verdadeiro russo.

Pjetkin sabia só uma coisa: havia amor de pai, então o seu amor por Igor era o ponto alto da sua alma, e Irena Ivanovna se deixaria até despedaçar por aquele filho.

— Que é que você vai fazer à tarde? — perguntou Pjetkin, quando tinham comido a sobremesa de morangos frescos.

— Vou procurá-la — disse Igor, levantando-se de um salto. Sentia as pernas elásticas e soltou um riso juvenil. Como é bonito, pensou Pjetkin. Alto e esbelto. E não tem só músculos, mas também inteligência. Tenho orgulho dele!

— Vamos! — disse Pjetkin e também se levantou. — Vamos procurar juntos.

Procuraram durante oito dias.

Cada manhã ficavam na entrada principal da Universidade e deixavam passar as estudantes, depois examinavam as salas de aula, e espiavam nos corredores. Nem mesmo a fama de herói de guerra de Pjetkin ajudou. Anton Vassilievitch falou com o Reitor da Universidade e alguns professores, mas em toda parte ouvia a mesma coisa:

— Sem nome, sem faculdade... como será possível? Se ao menos tivéssemos um retrato, camarada tenente-coronel.

— Estamos ficando ridículos — disse Pjetkin no oitavo dia. Estavam sentados no parque Puchkine, sob o monumento ao poeta, comiam passas de frutas, em pratos de papelão, tomando limonada, que se podia pegar em canecos lavados, num lugar do parque. — A Universidade tem setenta e cinco institutos e seis bibliotecas, sem contar a Universidade Pedagógica e o Conservatório. Meu Deus, o que mais podemos fazer? Os professores já estão ficando inquietos, porque acham que eu os estou observando por ordens superiores. Naturalmente isso é loucura, mas quem vai convencê-los disso? Se ao menos você pudesse descrever perfeitamente a moça, como numa fotografia...

— Uma foto! — Igor levantou-se e bateu palmas. — É isso! Vamos mostrar um retrato dela! Feito da minha memória! Oh, eu a vejo diante de mim, em cada detalhe... essa visão está impressa em mim a fogo.

Voltaram à cidade, compraram um bloco de desenho barato e um lápis macio.

— Pois então vamos começar — disse Igor Antonovitch mais tarde, sentado com Pjetkin num banco diante da Universidade. — Não se admire se eu desenhar um anjo, paizinho.

Espantado e um pouco comovido, Pjetkin viu o filho começar a desenhar a cabeça de uma jovem. Até então, não sabia que Igor tivesse aquele talento, e perguntou-se se não haveria outras coisas adormecidas naquele rapaz, que algum dia viriam à luz do dia e causariam admiração geral. É preciso contar com isso, pensou. Não porque ele seja um alemão e todo o seu russo lhe foi apenas imposto, como se enxerta numa videira agreste uma boa espécie de uvas... em qualquer pessoa existam abismos e picos ocultos. Existirá algum pai que nunca teve de se admirar a fundo de um filho?

— O rosto dela não é redondo nem fino — disse Igor enquanto o desenhava. O lápis produzia, num passe de mágica, um rosto no papel cinzento, grandes olhos bonitos, uma boca curva ousada, cabelos soltos até os ombros, um pescoço delicado, que sustentava a cabeça numa postura altiva.

Pjetkin tirou o desenho das mãos de Igor e segurou-o a certa distância.

— Uma moça do sudoeste — disse depois.

— Como?

— Os olhos dela são um pouco oblíquos. as maçãs do rosto mais marcadas.

— É isso. É isso mesmo, paizinho.

— Vamos achá-la, meu lobinho. — Pjetkin ergueu-se e apertou o desenho nas mãos. — Se ela se parece com este retrato, deve arrastar sempre um bando de homens atrás de si...

É espantoso como os homens maduros entendem bem dessas coisas. Mal Igor mostrara seu desenho na Faculdade de Medicina, e já recebia algumas informações. Foi exatamente o servente de anatomia Marko Borissovitch Godunov, uma criatura de baixa estatura e nariz torto, de assustadora feiúra, quem deu uma pista a Igor.

— Ela esteve aqui, mas só por dois dias — disse. — Falou que estava visitando uma tia, apresentou um cartão de matrícula, e ficou bem atrás quando o professor Salkin e seus estudantes abriram a barriga de um velhinho.

— Então foi aqui. Aqui. — Igor olhou em volta. Um aposento frio e despido, com longas mesas de mármore e banheiras de zinco vazias. Os cadáveres estavam no refrigerador ao lado. Sobre as mesas de dissecação, brilhavam lâmpadas nuas. Haverá algo mais desolado do que uma sala de anatomia? — Então ela estuda Medicina?

Marko coçou o nariz torto. Sorria agora, e isso o tornava tão feio que era preciso respirar fundo para poder contemplá-lo bem.

— Foi-se embora de novo — disse ele. — Apenas nos visitou por dois dias.

— E para onde foi?

— Quem pode saber, meu caro?

— O professor Salkin.

— Não tenha esperanças, camarada. Com tantos estudantes. quem pode observar todos eles? Além disso, Salkin só vive para os seus cadáveres.

Igor agradeceu as informações e, no dia seguinte, com a ajuda do seu desenho, retomou a busca. Dessa vez, Pjetkin não o acompanhou, pois tinha de visitar seu batalhão, que se dirigira para as montanhas em manobras.

Foi um dia ruim para Igor. Foi obrigado a brigar, ainda por cima, no pátio interno- da Universidade.

Aconteceu o seguinte: um estudante caucasiano, com um bigodinho arrogante, sentindo-se forte como um touro na primavera, tirou o desenho das mãos de Igor, contemplou-o com a cabeça torta, e cuspiu no papel.

— Ele está à procura de uma femeazinha rural, esse moço fino! — gritou. — Uma putinha que levanta a saia atrás das ancas dos cavalos e se deixa montar feito égua! Quem de vocês a conhece, hem? — Levantou o retrato acima da cabeça com risadas zombeteiras. — Falem sem medo, irmãozinhos! Quem é que já dormiu com ela? Vamos, companheiros!

Igor Antonovitch baixou a cabeça. Um ódio ardente o consumia. respirou fundo e cerrou os punhos, atirando-se sobre o caucasiano.

— Entreguem-me o retrato! — arquejou. — Seu diabo sujo! Por que está ofendendo a minha namorada?

Bateu cegamente, primeiro no peito do bigodudo, depois três golpes curtos na cabeça, de modo que o outro só pensou em defender-se quando já estava cambaleando, a ver pontinhos vermelhos diante dos olhos. Jogou longe o desenho, abaixou-se e devolveu os golpes. Que diabo, ele era um sujeito forte, que distribuía golpes como um cavalo irritado distribui coices. Um bando de estudantes juntou-se ao redor deles instigando-os.

— Por que sempre na cabeça? — gritou um da multidão. — Dê-lhe abaixo da barriga, irmãozinho! Vocês viram? Ele cuspiu naquele lindo retrato! Vamos, pau nele, camarada!

A luta durou cerca de meia hora. Por fim, o comprido caucasiano oscilou, suspirou fundo e virou-se. Igor lhe deu um pontapé no traseiro, em despedida, e olhou impassível o homem cair exausto e ficar deitado. Tirando a camisa das calças, Igor limpou o sangue do próprio rosto, pôs o desenho debaixo do braço e se afastou.

Irena Ivanovna deu um grito ao ver Tgor entrar na sala. Depois, mandou chamar o médico, levou Igor para o quarto e implorou que se despisse.

— Meu pequeno — choramingava ela quando ele finalmente se deitou na cama, com um pano molhado em vinagre na cabeça esfolada. — Meu amorzinho, meu cisne, minha pétala de rosa, quem fez isso? Seu pai vai mandá-lo para a Sibéria, isso mesmo, para um campo de concentração nas minas de chumbo, onde vai pagar pelo que fez, meu filhinho, ele amassou o seu nariz, seu belo nariz. Onde está o médico que não vem? Por que está demorando tanto?

Corria para lá e para cá no quarto, depois foi até a sala, tirou da gaveta inferior da cómoda um pequeno ícone, escondido debaixo das toalhas de mesa e bugigangas, sentou-se novamente na cama, afastou os panos com vinagre, e colocou o ícone no rosto de Igor.

— Ó santos do céu, ajudai-o... — murmurava. — Amparai o meu pobre filhinho...

Igor torceu a boca, mas não afastou o ícone da cara. Uma funda emoção o inundou. Procurou a mão de Irena e segurou-a.

— Mamuschka... — disse baixinho. — Eu tinha de fazer isso! Ele a ofendeu. Eu também o teria feito se ele tivesse cuspido em você...

Pouco depois, chegou o médico, lavou as feridas, fez os curativos, e aconselhou a fazerem com Igor como se fazia com os boxeadores que saíam do ringue com olhos inchados.

— Botem carne crua nos olhos dele. Isso tira a inchação. E muito repouso na cama. — Depois deu a Igor dois comprimidos analgésicos e despediu-se.

— É perigoso? — indagou Irena na porta da casa. — Não me esconda nada, doutor. Ele é o meu único filho, o meu raio de sol...

— Ele tem a cabeça dura. — O médico enfiou o boné na testa. — Está melhor do que o seu antagonista... estou vindo de lá. Esse está com uma comoção cerebral. O seu filhinho é muito bem nutrido. Tome cuidado para que não haja problemas com as autoridades. Aí nem mesmo a cabeça mais dura adiantará alguma coisa.

À noite, Pjetkin voltou de seus exercícios militares. Já no quartel ouvira falar da luta na Universidade. Dizia-se que o reitor ficara muito irritado.

— Onde está ele? — gritou Pjetkin precipitando-se pela casa adentro. Irena Ivanovna enfrentou-o como uma leoa.

— Na cama.

— Deixe-me entrar!

— Não! Você vai acabar com os nervos dele!

— Que idiota! Ele é meu filho. Saia do caminho!

Quis empurrar Irena para o lado, mas ela se opunha, a bater os dentes iradamente.

— Só se me derrubar! — exclamou ela. — Você não vai ver Igor enquanto não mudar de disposição.

— Quer que eu espie pelos cantos, hem? — berrou Pjetkin.

— Quero abraçar o meu filho, mais nada. O meu valente lobinho! Será que não tenho esse direito de pai?

— Ele está dormindo.

— Posso-lhe dar um beijo no sono.

Igor não dormia quando finalmente Pjetkin pôde entrar no quarto. Parecia um tapete remendado... Pjetkin contou nove curativos. O rosto estava amarelo de iodo.

— Imagino que não foi possível evitar a briga.

— De jeito nenhum. Só se eu fosse um covarde.

— Quem venceu?

— Eu.

— Era o que eu esperava. — Pjetkin ergueu-se, orgulhoso.

— O resto eu mesmo vou arranjar. — Tirou uma garrafa de vodca do bolso do casaco. Sob os olhares de reprovação de Irena, abriu a tampa e entregou a garrafa a Igor. — Para fortificar a sua vitalidade. Dentro de uma hora, vamos comer, como sempre.

Ele é um bom pai, pensou Igor. É o meu único pai. Eu sou mesmo Igor Antonovich Pjetkin.

 

Os meses corriam como as ondas azuis do Bakul. Os verões eram quentes, e o aroma dos vinhedos, jardins e pomares perpassava entontecedor pelo campo até às ruas dos subúrbios. À noite, as colinas ardiam vermelhas como se estivessem inundadas de cobre, e os vinhedos formavam guirlandas douradas até o céu. Milhares de pessoas, nessas noites, dirigiam-se para a margem do rio ou para as colinas; a bandurra, um instrumento de cordas parecido com a cítara, ressoava, ou havia danças alegres ao som do bajan, um tipo de harmónica. Era uma vida esplêndida.

No inverno, a solidão descia sobre a terra. Nas cabanas fora da cidade ardiam os fogos purpúreos dos fogões abertos, e o gado mugia nos estábulos. Os homens da cidade esbravejavam contra o racionamento de carvão, aqueciam apenas um quarto, ou se metiam na cama.

Igor Antonovitch era um estudante aplicado. Fazia com distinção os seus exames.

— Como parece — disse depois de três anos o professor de Cirurgia ao orgulhosíssimo Pjetkin — o seu filho Igor um dia será um bom cirurgião.

O professor de Medicina Interna profetizava.

— Ele será certamente um excelente clínico.

Cada especialista solicitava para si o jovem Pjetkin, e lhe profetizava um grande futuro na sua especialidade. Até o velho Salkin, que contava anedotas sobre os seus cadáveres, afirmava que Igor tinha o talento fenomenal de um excelente anatomista.

— Que é que você vai escolher? — perguntou Pjetkin ao seu filho. E este respondeu sem hesitar:

— Cirurgia.

— Por quê?

— É uma especialidade à frente de toda a Medicina. Era uma resposta que agradava a Pjetkin.

Nesses anos, Igor se apaixonou diversas vezes, deitava-se com as moças no capinzal alto à margem do Bakul, seduzia-as nas cabanas dos vinhedos, e aprendeu com a jovem viúva de um técnico uma arte de amar que em pouco tempo dominou perfeitamente, como um virtuoso domina os seus instrumentos. Mas sempre se afastava daqueles abraços recolhendo-se ao seu quarto, imerso em pensamentos profundos.

Lá na parede, com uma moldura estreita e barata, estava um retrato de mulher. Sobre a orelha direita estava um pouco apagado... ali cuspira o caucasiano. Igor não corrigira nada — a mancha era uma honra, como o ferimento resultante de uma batalha.

Uma grande amizade surgira nesses anos. Não era de acreditar a identidade desse amigo. Era Marko Borissovitch Godunov, o feio anão, servente de Anatomia, um percevejo recendendo a formol e desinfetantes, enfiado entre os cadáveres como um verme magro, rindo das piadas do velho Salkin como um bode castrado.

Era uma estranha amizade. Igor treinava nos cadáveres também fora das aulas de Anatomia, descia secretamente para junto de Marko no porão gelado, dava-lhe três rublos e mandava entrar os mais belos mortos. Neles aprendeu a operar rápida e seguramente, a atar os nós dos fios, a fazer delicadas costuras em vasos, incisões audazes, que mesmo grandes cirurgiões só aplicavam em casos de necessidade.

Durante esses exercícios, o anão Marko sentava-se na mesa de mármore ao lado, mãos no colo, olhos úmidos e cheios de admiração voltados para as mãos de Igor. Quando este conseguia uma bela costura ou um corte especialmente audacioso, o anão batia palmas como no teatro, e estalava os beiços.

— Você vai ser um grande médico! — dizia muitas vezes. — Logo vi isso! Acha que de outro modo eu permitiria essas entradas secretas na Anatomia, e lhe ofereceria os melhores cadáveres? Estou colocando em perigo o meu cargo por amor à ciência, só por amor à ciência. O que a gente vê aqui nesse porão, irmãozinho, quanta burrice, nem dá para imaginar. E vêm as mocinhas, flutuando pelos corredores nos seus guarda-pós brancos, mas quando estão diante do cadáver e o velho Salkin, esse demónio velho, lhes diz: ”Então, minha cara, corte o pênis desse vovô aí...”, então elas desmaiam, e eu as tenho de levar para fora, para o ar livre, e abanar-lhes o rosto. Que estudante, que estudante! ”Prepare o nervo simpático”, disse o Salkin uma vez. E onde pensa que o sujeito procurou pelo nervo? Na barriga da perna! Dá para se arrancar os cabelos, de tanta burrice!

Destas conversações iniciais desenvolve-se em Marko, uma espécie de devoção canina. O que nunca parecera possível: ele deixava seu porão de mortos, passeava no sol e na neve, espiava Igor no caminho para a Universidade, carregava-lhe a pasta de livros, trazia-lhe chá ou kwass gelado entre as aulas, tomava-lhe as lições, observava-lhe os desenhos, e metia-lhe na cabeça as pesadas fórmulas da fisiologia química.

Até Irena Ivanovna o tolerava em casa, e isto significava muito. Quando Marko apareceu pela primeira vez e tocou a campainha, pequeno, torto, gorro vermelho na cabeça enorme, muito mais parecido com um inseto do que com gente, ela bateu a porta e pediu ajuda a Igor:

— Há um monstro lá fora! — gritou quando Igor chegou correndo. — Mãe de Deus, como é que uma criatura dessas pode viver? Nunca vi coisa mais horrível.

— É Marko, uma boa pessoa — disse Igor. Não precisava abrir a porta para saber quem estava lá.

— Aquilo é uma pessoa? — Irena afastou-se quando Igor deixou entrar o pequeno Marko e lhe tirou o barrete. Aquilo piorou ainda mais o seu aspecto. Irena sentiu-se mal.

— Mamuschka, esse aí é um sujeito espantoso! — disse Igor rindo e bateu nos ombros largos de Marko. — E usa o nome altivo de um Czar, Godunov!

Em breve, Marko se tornava indispensável para Igor. Na Universidade, todos se habituaram à visão do feio anão correndo atrás do jovem alto. Os mais zombeteiros falaram até ficar de boca esfolada, mas depois houve paz. É inútil gritar quando não se obtém eco.

— Dentro de um ano, você estará formado — disse Marko no inverno de 1962. Os dois andavam lentamente pela neve que rangia. Como de costume, Marko apanhara Igor no hospital, onde o rapaz fazia sua prática cirúrgica. — Que vai fazer depois disso?

— Não sei ainda, Marko. O Ministério vai decidir.

— Vai sair de Kichinev, não vai?

— Quem pode saber por enquanto? Vão me mandar para onde se precisa mais urgentemente de médico. No Mar Ártico ou em algum canto na Sibéria, num acampamento nas estepes ou numa mina de carvão. Gente doente existe em toda parte.

— Será que o deixariam viajar com um ajudante? — perguntou Marko soprando as mãos azuladas de frio. — Quero dizer, é apenas uma hipótese. Seria possível que você dissesse, só Para dar um exemplo. Camaradas, vou aceitar o cargo em Novo Petrovka. É um buraco miserável, as raposas de lá morrem de desolação e as minhocas se ressecam de tanto chorar. Tudo em ordem, caros camaradas, vou para lá curar os enfermos. Mas permitam que leve o meu ajudante. Ele poderá carregar a minha pesada bolsa, limpar as injeções, lavar os curativos, enrolar as gazes, limpar as botas, lubrificar o meu carrinho e alimentar os cavalos, e deverá fazer tudo isso para que o meu trabalho de médico decorra com perfeição. Camaradas, escrevam um bilhete de viagem para Marko Borissovitch Godunov. — Marko passou a mão pelos olhos. — Por hipótese, a gente podia falar assim.

— Quer desistir do seu cargo na Anatomia?

— Sim, Igor Antonovitch.

— Um bom cargo vitalício?

— Quero estar perto quando você se tornar um grande médico.

— Você está delirando, Marko. Não sou nada de especial.

— Tem as graças de Deus, patrãozinho.

— Bobagem. Quem é Deus?

— Não vamos brigar por causa disso. — Marko, o anão, curvou-se ao andar, meteu os dedos de aranha pela neve, e fez uma bola. Jogou-a longe, e Igor admirou-se com a força daqueles braços compridos, parecidos com imensos vermes.

— Está admirado? — indagou Marko. — Eu só lhe queria mostrar como sou forte. Posso viver em qualquer lugar onde você esteja.

— Vou pensar nisso — disse Igor, levantando a gola do casacão. Um vento gelado vinha do rio. Os choupos da margem oscilavam sob a geada. — Num ano... meu caro Marko, como será o mundo daqui a um ano?

Tudo parecia vazio.

Na casa de Pjetkin havia um caixão mortuário.

Foi Marko quem trouxe a terrível notícia antes que as autoridades agissem oficialmente e a milícia mandasse um homem chamar Anton Vassilievitch.

No cruzamento da Pavlovskaia e da Puchkina, dois carros haviam batido, derrapando no gelo. O acaso quisera que exatamente nesse instante Irena Ivanovna saísse de uma loja de tecidos, e quisesse atravessar a rua. Não pôde nem gritar, tão rapidamente um dos carros derrapou deslizando em sua direção, esmagando-a contra a parede da casa. Quando a libertaram, o sangue lhe pingava da boca e, onde antes se arredondava seu belo peito, abria-se uma concavidade em que poderiam caber dois grandes punhos de homem.

O motorista do carro estava ileso. Dançava pela rua gelada como um louco, gritando para que o enforcassem no primeiro poste, mas que não tinha culpa, pois o outro camarada, aquele animal, se precipitara sobre o seu carro, de lado, e se ele devia morrer o outro tinha de morrer também.

Eram desejos idiotas, pois o outro motorista pendia sobre a direção do automóvel, com a nuca partida. Ninguém se importou com ele, só um açougueiro veio pela rua e deu uma violenta bofetada no motorista ileso que berrava. O homem caiu na neve e ficou imóvel. Enquanto isso, outras pessoas tinham levado Irena Ivanovna de volta à loja, deitando-a no balcão de tecidos. Alguém limpou-lhe o sangue da boca. Um homem com pince-nez no nariz curvou-se sobre ela e chamou:

— Ei, camarada! Está-me ouvindo? Está sentindo dores? Pode respirar? Não me enxerga? Ei... dê-me um sinal, camarada... A ambulância chegará logo...

Pode-se pensar qualquer coisa da administração da cidade de Kichinev — e ninguém pensa favoravelmente sobre autoridades e administrações — mas a ambulância funcionou com perfeição. Em vinte minutos pegou Irena Ivanovna transportando-a para o hospital. Ela ainda vivia quando os enfermeiros a colocaram na padiola... mas quando a levaram para a recepção do hospital, não respirava mais. Os grandes olhos castanhos fitavam o vazio.

O professor Rellikov contemplou o tórax esmagado e cobriu o rosto imóvel com um lençol. No transporte para o porão, o triste grupo encontrou Marko Borissovitch que saíra da Anatomia para tirar três novos cadáveres de um caminhão.

— Está registrada? — perguntou ao enfermeiro que empurrava a padiola. — Se não tem parentes na cidade, vou levá-la comigo. Estamos com falta de uma mulherzinha...

Levantou o lençol do rosto da morta e deu um grito agudo. Depois virou-se e correu com uma rapidez que jamais se atribuiria as suas pernas tortas, ao longo do vestíbulo, saindo do hospital.

Assim Igor soube por primeiro da morte da mãe, e a trouxe imediatamente para casa. Quando Anton Vassilievitch Pjetkin entrou, o agente funerário acabara de deitá-la nos travesseiros de seda, cobrindo-a de flores. Marko estava ajoelhado atrás do caixão, chorando.

— Ela não está morta! — gritou Pjetkin caindo sobre o caixão. — Irenuschka, não pode estar morta. Como pode me deixar? Irenuschka, acorde... — Depois bateu com a testa na quina do caixão, saltou e olhou em torno com os olhos injetados. — Onde está o assassino? — gritou. — Onde está esse animal? Vou jogá-lo na parede e lhe fazer espirrar o cérebro! Já está preso? Vou pedir que o soltem! Vou dá-lo aos peixes! Ó Igor, meu filhinho... não temos mais a nossa mãe...

Deitou a cabeça no ombro de Igor e chorou.

O enterro foi um acontecimento em Kichinev. A minoria apenas dos que estavam naquela incontável multidão haviam conhecido Irena — mas o nome Pjetkin era uma atração.

Quando o motorista do carro culpado soube quem esmagara contra a parede da casa, ficou branco como giz e, uma hora mais tarde, lançou-se da janela do destacamento militar.

Também ele foi enterrado naquele dia, algumas fileiras de túmulos além de Irena Ivanovna... mas ninguém tomou conhecimento disso.

Depois que os choros e queixas silenciaram e os curiosos se dispersaram, ficaram apenas Igor, Pjetkin e Marko entre as coroas e buquês.

— Fiz a autópsia na mamãe antes que a pusessem no caixão — disse Igor baixinho quando Pjetkin enxugava as lágrimas. — Uma costela quebrada perfurou o pulmão. Ela morreu de hemorragia interna. Podia ter sido salva...

— E por que ninguém a salvou? — rugiu Pjetkin, cerrando os punhos.

— O trajeto foi longo demais. Desde o acidente até a entrada no hospital passou-se uma hora. Dizem que foi por causa do gelo nas ruas. A administração da cidade racionou o material que deve ser espalhado sobre o gelo.

Desde esse dia, Igor Antonovitch tornou-se um espinho no olho de algumas pessoas influentes.

Como dizem os usbecos no deserto?

”Um piolho na areia é um castigo de Deus quando se mete entre os dedos dos pés...”

 

Dimitri Ferapontovitch Sadojev corria de um lado para outro como um bêbado, abraçava todos os que encontrasse, apertava-os, beijava-os na face e gritava:

— Ela vem aí! Vai chegar daqui a meia hora! Oh, meus amigos, este é o dia mais belo da minha vida.

Toda a aldeia de Issakova sofria há dias com a felicidade do velho Sadojev. Não porque Dimitri fosse o soviete da aldeia, e trouxesse a sua condecoração vermelha no peito, obtida por excelente trabalho de organização, mas porque o acontecimento era realmente motivo de orgulho para Issakova.

Imagine-se uma miserável aldeia à margem do Taiga, diretamente no grande rio Amur, portanto uma aldeia da fronteira, pois do outro lado da corrente começava o imenso domínio chinês, um vizinho bem desagradável, do qual nunca se sabia se uma noite não diria: ”Vamos atravessar, queridos irmãos, reconquistar o Amur e tocar fogo nos russos.”

Issakova consistia de cento e quarenta e nove casas, uma capela arruinada, dois depósitos compridos, uma estação de tratores e um silo de cereais. No rio haviam asfaltado uma rampa para carga e descarga, que se enferrujava sonhadoramente, pois apenas seis vezes, depois de uma festiva anexação à rede de transportes, Issakova fora visitada por um barco de carga. Depois um pequeno funcionário descobriu que, na verdade, atrás de Issakova ficava o fim do mundo, e desistiu do plano de fazer da aldeia um centro de comércio. Em vez disso, o exército transferiu alguns destacamentos para as proximidades da aldeia... tropas de tanques, exploradores e unidades de foguetes. Ficavam nas florestas, em acampamentos próprios e fechados. Só aos domingos os habitantes de Issakova mantinham algum contato com os soldados. Esses se banhavam no Amur, e muitas mocinhas em Issakova ficaram grávidas.

Naquele dia, porém, a aldeia gozava um verdadeiro dia de festa. A rua principal estava enfeitada de guirlandas, todos vestiam trajes domingueiros, varriam a rua diante das portas, limpavam o nariz das crianças ou se comprimiam diante de casa de Sadojev, para entregar presentes.

Anna Sadojev, a dona da casa, assava e cozinhava na enorme cozinha. Quatro vizinhas a estavam ajudando. De todas as frestas e janelas saía o aroma de gordura e carne, chucrute e peixe, misturado com o cheiro delicioso de pão quente que, em pedaços redondos, estava esfriando numa tábua limpa.

Sadojev encilhou o cavalo. Colocou debaixo da sela o chairel mongólico, bordado a ouro, limpou com as mangas do casaco mais uma vez as partes polidas dos arreios e limpou os olhos do cavalo.

Dimitri Ferapontovitch não era um homem bonito, nem mesmo um cego diria isso. Pequeno, pernas curvas, longo bigode caído e barretinho de feltro bordado, na cabeça calva, não se distinguia muito dos chineses ou mongóis que atravessavam o rio para comerciar, vendendo seda, contas de vidro e ópio. Nos primeiros anos do seu casamento com Anna, ele se perguntara muitas vezes como fora possível uma moça tão linda amar um homem como ele. Olhando-se num espelho, torcia a cara enojado, e afastava-se depressa. Sempre esperava que um dia Anna o abandonasse.

Mas ela ficou, e até lhe deu uma filha, que chamaram de Dunia, e que se tornou uma criança linda como o céu de primavera, com cabelos mais dourados do que o trigo maduro.

Sadojev suspirou emocionado, montou no cavalo e saiu do pátio. Acenou para os homens e mulheres que estavam diante da sua casa ou ainda enfeitavam as ruas.

— Agora ela está a caminho — gritou. — Faz meia hora que chegou a Blagovjechtchensk, com o trem de Chabarovsk! Vou ao seu encontro. Vão até a minha casa, amigos, vocês são todos meus convidados!

Esporeou seu cavalo e partiu da aldeia em direção ao vale do rio.

Montou até os limites da aldeia, depois desceu, sentou-se debaixo de um alto choupo, tirou do bolso um pouco do fumo e um pedaço de jornal. Pensativamente fez um cigarro grosso, acendeu-o e rosnou confortavelmente. A fumaça lhe saía do nariz e da boca.

Mais alguns minutinhos, pensou. Talvez meia hora, quem sabe como correm os cavalinhos. Mas o que são minutos diante dos anos em que esperei por este dia? Sadojev encostou-se ao tronco do choupo. Estendeu as pernas com botas de couro de rena, afugentou uma abelha que zumbia em torno da sua cabeça, fitou o céu limpo, de um pálido azul.

Seis anos. Não se pode dizer que não seja muito tempo. Seis anos de medo: será que ela vai conseguir? Será que vai agüentar? Ou será que vai aparecer um desses sujeitos, pegá-la pelas ancas, e dar fim a todos os planos de futuro, afogados no suor da cama, e todas as esperanças terão sido em vão? Seis anos e sempre as mesmas perguntas. Mas agora ela estava pronta, terminara seus estudos, estava a caminho de Issakova.

Médica... a minha Dunia é médica... A minha pequena Duniuschka é uma médica de verdade com guarda-pó branco, dois canudinhos de borracha nas orelhas, escutando os corações.

A minha Dunia.

Até um pai mal pode entender isso.

Sadojev ergueu-se de um salto. Ao longe brotava uma fina nuvem de pó. Jogou-se no cavalo e disparou ao encontro daquele pontinho que se formava no horizonte.

— Boas-vindas! — berrou quando conseguiu reconhecer bem a tróica com o criador de cavalos Vassja nas rédeas. Atirou no ar o seu barretinho de feltro, aparou-o de novo e jogou seu animal num galope doido, rodeando a tróica, fazendo o cavalo quase voar como um imenso pássaro, depois saltou da sela em pleno galope, caiu sobre a tróica ao lado de Dunia, e apertou-a nos braços.

— Minha filhinha! — gritava. — Luz dos meus olhos! Minha vida! — Depois perdeu o fôlego, tossiu, sua cabeça ficou rubra e ele se curvou revirando os olhos.

— De hoje em diante você está proibido de fumar — disse Dunia. Beijou seu sufocado pai na testa, tirou a bolsinha de tabaco e o pedaço de jornal do seu bolso e jogou-os na estrada.

— Está começando bem! — tossiu Sadojev, deixando-se cair no assento coberto de pelegos, ao lado de Dunia. — Está começando muito bem. Foi para isso que a fiz estudar todos esses seis anos?

Em Issakova todos beberam e comeram durante três dias a fio. Foi uma festa de família, pois de algum modo todos eram aparentados entre si. Não admira que todos em Issakova considerassem a médica Dunia como sua filha.

Igor Antonovitch também terminara seus estudos, passando em todos os exames com distinção. ”O melhor estudante de Medicina em Kichinev, nos últimos anos”, disse o reitor da Universidade, e abraçou o orgulhoso Pjetkin. O cirurgião Rellikov acrescentou: ”Ainda vão falar em Igor. Aposto qualquer coisa, Anton Vassilievitch...”

Pjetkin mandou preparar um jantar festivo, mas só para duas pessoas. Ficaram sozinhos na grande sala, comendo calados. Entre eles, na mesa, havia um terceiro lugar preparado...

— Ela está conosco — disse Pjetkin, vendo os lábios apertados de Igor. — Não que eu acredite em Deus, na alma imortal e todas essas bobagens que os padres vivem dizendo... mas conhecemos a nossa mamuschka. Ela está conosco... tenho certeza absoluta.

Mais tarde, foram à ópera, assistir ao balé O Lago dos Cisnes, e depois ficaram passeando por mais uma hora à margem do Bakul, sentaram-se num dos bancos alvos, sentindo, com o ar da noite, o perfume dos vinhedos e pomares perpassar a terra.

— Quais são seus planos, Igoruschka? — indagou Pjetkin. — Rellikov demonstrou que gostaria de ter você como assistente. Aí poderá ser médico-chefe, docente, professor, chefe de clínica... uma bela carreira segura.

— Vão nos criar dificuldades, paizinho. — Igor meteu a mão no bolso interno do casaco e tirou um papel dobrado. Pjetkin fitou o papel, espantado.

— Que é isso?

— Um documento oficial. Recebi antes da solenidade de formatura. Alguém da Secretaria de Saúde da cidade colocou-o na minha mão e sumiu. Nem pude perguntar o nome.

— Que pretende esse idiota?

— Não lhe quis dizer nada, mas agora a festa acabou. — Igor desdobrou o papel e entregou-o ao pai. Pjetkin leu rapidamente as poucas palavras, fungou e deixou-o cair, como se estivesse em chamas.

— Impossível! — berrou e golpeou o banco com os punhos. — Isso é chicana, pura chicana! Esses ratos da administração! Esses sujeitos vazios! Mas eles não conhecem Pjetkin! Minha voz não só ressoa de uma parede a outra, mas vai até Moscou. Vou telefonar ao marechal Ronovskij, ainda esta noite! — Olhou o relógio e Igor viu que seu braço tremia. — Não, agora é muito tarde. Mas amanhã de manhã... Para a Sibéria! O meu filho na Sibéria! Como assistente do médico do distrito! Em... como se chama esse buraco...

— Blagovjechtchensk...

— Ninguém conhece esse lugar desgraçado.

— É uma cidade no Amur.

— Uma cidade, é? Quatro casas com uma latrina atrás... mais nada.

— E um campo de trabalhos forçados com quatro mil prisioneiros. — Igor apanhou o papel no chão e dobrou-o de novo. — Já me informei... não há possibilidade de fazer nada contra. A ordem veio de Moscou. Quando falei com o diretor do planejamento médico, ele me disse: ”Mas o que é que você quer, camarada Pjetkin? Acaso o Estado não pagou seus estudos? Acaso o Estado não fez de você um homem? E agora que você é médico, vai querer dar um pontapé no traseiro do Estado? Estoulhe dando um aviso! Confiaram-lhe um posto de honra... médico numa terra virgem. A Sibéria ainda não foi conquistada... Você deve ajudar a abrir as riquezas dessa terra para o nosso povo. Isso é uma distinção... e você o encara como um exílio? Caro camarada doutor, nunca é bom que um nome fique sublinhado em vermelho em algum cartão... e o seu nome ainda não está sublinhado...”

Pjetkin mordeu os lábios e respirou aos arrancos pelo nariz. Conhecia bem a linguagem de Moscou, ele mesmo a empregara quando se fizera necessário... mas é diferente quando em vez de falar se é interpelado.

Igor ergueu-se e caminhou de um lado para outro diante do banco.

— Isso é o pagamento.

— Pagamento de quê?

— Pela morte de mamãe. Pelo meu artigo no jornal, contra a administração da cidade. — Parou diante de Pjetkin e de repente sentiu compaixão por aquele homem que passava a mão pelos cabelos grisalhos, sem achar saída. — Mas não sou um sujeito com mordaça na boca. Vou para a Sibéria cumprir o meu dever. Não vai acreditar... mas estou contente.

Em breve se revelou que Igor pegara a pista certa. Pjetkin telefonou ao marechal Ronovskij, mas já à tarde soube que este nada podia fazer no caso. Também alguns amigos nos diversos ministérios se esquivaram. Sua última tentativa, falar com o Ministro da Saúde, frustrou-se no telefone da sala de espera. Lá havia uma jovem camarada que ouviu o nome Pjetkin sem dar a mínima importância por estar falando com um tenente-coronel, perguntou o que desejava, ouviu que se tratava de uma queixa, e interrompeu a ligação sem uma palavra mais.

Pjetkin ficou furioso, jogou o inocente telefone na parede, e foi ao prefeito de Kichinev.

— Será que ganhamos uma guerra para agora nos curvarmos diante do terrorismo das autoridades? — berrou já no vestíbulo. Ouviram-no calmamente, deixaram-nos desgastar sua fúria, e depois deram de ombros. Pjetkin sentiu que sua fama sofrera com isso, sabiam agora que sua ligação com Moscou se havia desgastado.

Só o anão Marko Borissovitch Godunov agiu sensatamente nesses dias. Quando a transferência de Igor para a Sibéria se tornara oficial e irreversível, foi à administração da Universidade e demitiu-se.

— Vou-me embora — disse, atirando as chaves da sala de Anatomia e do porão dos cadáveres na mesa do funcionário, cuspindo com excelente mira na parede, bem ao lado da cabeça do homem. — Faz trinta anos que vivo com cadáveres, levandoos bem lavados e limpos para a Anatomia, recebendo-os de volta todos cortados. Uma vez por semana, queimo pedaços de corpos... pernas e braços, tripas e cabeças, troncos e ossos... Trinta anos, camaradas, por um pagamento que é uma vergonha para todos os trabalhadores. Nunca uma palavra de agradecimento, um aperto de mão, um reconhecimento qualquer. Sou um cadáver a mais para vocês, hem? Por que torcem o nariz, camaradas funcionários? Estou fedendo a podridão? Trinta anos entre os mortos... os poros da gente respiram um ar de sepultura. E o hálito apodrece...

Bafejou a cara do funcionário. Este se levantou e correu para o canto.

— Deixe disso, Marko Borissovitch! — exclamou o pobre — O que quer de mim afinal?

— Minha demissão! Quero uma demissão de verdade, e venho apanhá-la dentro de uma hora. Se não estiver pronta, vou lhe botar um pênis cortado em cima da mesa!

Assim Marko conseguiu sua demissão e apareceu alegremente com um saco de viagem na casa de Pjetkin.

— Está tudo acertado — disse. — Estou às ordens. Que é que posso fazer? Onde posso começar?

— Acalma meu pai — disse Jgor em voz abafada. — Ele não quer ser ajudado por mim. Se continuar assim, vamos deixar um doido aqui...

Não é de acreditar, mas Marko conseguiu. Quando depois de uma hora Igor entrou na sala, Pjetkin e o anão estavam sentados familiarmente no sofá, e Marko contava anedotas do professor Salkin. Eram anedotas amargas, temas escabrosos, como só um anatomista sabe inventar, mas serviam bem ao estado de ânimo de Pjetkin, e o acalmavam.

Às sete da manhã o trem bufava saindo da estação de Kichinev. A fumaça cinzenta envolvia Pjetkin, desfazia as linhas do seu corpo, cortava-o em pedacinhos. Igor pendurava o corpo para fora da janela e abanava com os dois braços. Havia lágrimas nos seus olhos, embora ele se tivesse forçado a não mostrar tristeza, e sim partir para aquela terra virgem como um alegre conquistador.

Mas era tudo diferente agora... Ele via o pai parado ali no vapor da locomotiva, em seu uniforme de gala com todas as cintilantes medalhas, via-o erguer a mão numa saudação ao filho que partia, como se se despedisse de um cadafalso num enterro oficial. Lá estava ele, como uma estátua de bronze, um herói com lágrimas a correr dos olhos, descendo pelo rosto anguloso até a gola do uniforme, um vencido inabalável, que via partir o que mais amava no mundo, e não podia combater esse maldito destino como não podia evitar a sua própria sepultura.

Igor deu adeus até que uma curva dos trilhos apagasse o passado. Enquanto isso, Marko andara atarefado, isto é, ficara parado no umbral do compartimento, e sorria para todos os que se aproximavam. Isso tinha um efeito tão horrendo que todos imediatamente pegavam suas bagagens e corriam depressa pelo corredor. Só um deles quis se instalar confortavelmente. Mas Marko espantou-o também. Sorriu e disse com voz aveludada:

— Não tenho só essa aparência... tenho também um mau cheiro parecido...

Segundos depois o compartimento estava vazio. As verdes colinas de Kichinev passaram, douradas ao sol da manhã, envoltas em véus de neblina.

— Quanto tempo vamos viajar?

— Se tudo correr bem, uma semana... Mas não é certo que fiquemos sem companhia. Dizem que em Tachkent é terrível...

— Que distâncias! — Igor Antonovitch segurou a caneca enquanto Marko servia chá. — Que caminho até lá!...

— E que caminho de volta! — disse Marko, e fez um sinal para que bebesse. — Temos de pensar nisso também...

 

Ninguém os apanhou na estação — ninguém esperava por eles.

Em Chabarovsk, onde Igor se apresentou na administração médica, nem ao menos sabiam que havia sido indicado um jovem médico.

— Você tem a ordem escrita, camarada — disse o funcionário sem entusiasmo e devolveu o papel — logo, deve estar em ordem. Não acredite que vamos deixá-lo num cantinho quente... temos muito serviço por aqui. O atendimento médico na zona do Amur é uma catástrofe. Um médico apenas controla uma região tão grande como uma província inteira, e se num canto alguém tem um estômago perfurado, e o outro uma bexiga estourada, um deles morre na certa, pois ninguém pode dividir-se em dois. Você vai ter que trabalhar, camarada, até seus dentes baterem.

Procurou num fichário, tirou uma folha grande, e leu as anotações.

— Blagovjechtchensk — murmurou. — Se não fosse bobagem demais, devíamos chorar juntos agora. Um campo de prisioneiros. É verdade que precisam de um assistente por lá. O último morreu de tifo, porque o idiota teimava em beber a mesma água que os prisioneiros bebiam. Há gente assim fanática, camarada. Beba vodca, é mais limpa. — Atirou a ficha na mesa e contemplou Igor como se quisesse magoá-lo. O médico do campo é uma mulher — disse então. — Marianka Jefimovna Dussova. Pêsames, camarada.

— Ela não vai me comer — riu Igor.

— Você não conhece Marianka. Sua fama derruba árvores mais depressa que o machado. Com ela, basta poder sacudir as cadeiras um pouco, e se está apto para trabalhar. O acampamento dela tem um gasto mínimo de remédios e ataduras. Gostaria de chorar por você, camarada... meteram-no logo com a Marianka!

Na administração de Chabarovsk, Igor conseguiu que Marko também recebesse uma permissão para trabalhar. Como servente de Anatomia com trinta anos de experiência, podia provar que era tão capaz de uma intervenção quanto um médico.

— Que alegria vai ser isso para Marianka! — gritou o funcionário, vencido o primeiro choque da aparência de Marko. — Mas é um time inteiro! Cirurgião com guarda particular para os seus mortos... até que a coisa é engraçada!

Receberam seus papéis, legitimações, licenças, cartões de identidade próprios para a Sibéria e a região do Amur, tiveram de vacinar-se contra febre dos pântanos, tifo, cólera e peste, e depois de tudo isso seguiram com um trem de material ao longo do Amur, em direção a Blagovjechtchensk.

Foi uma jornada monótona... só o largo, esplêndido rio com suas cintilações prateadas os recompensava. Ilhas brotavam nas suas águas lentas; do lado chinês, largas embarcações típicas corriam ao longo da margem; suas velas abertas reluziam contra o céu como imensos morcegos.

Na segunda noite, Igor e Marko dormiram durante a chegada a Blagovjechtchensk. Não os acordaram, pois ninguém sabia para onde queriam ir. Desligaram o vagão, manobraram com ele, prenderam-no no pequeno trem que duas vezes por semana levava material a Issakova e de lá trazia peles e lenha. Além disso, transportava correspondência, jornais e material de propaganda do Partido. Sadojev começava sempre a praguejar alto, pois isso significava que tinha de reunir os camaradas e dar uma aula de política.

Igor acordou porque ao seu lado um rebanho de vacas começou a mugir alto batendo com as cabeças contra o vagão. Assustou-se, sacudiu Marko e empurrou a porta para o lado.

Diante deles estendia-se uma paisagem plana, um grande galpão e, atrás deles, a parede verde-escura das florestas. Um par de pessoas sentadas em velhos caixotes no capim amarelo e duro jogavam xadrez e fumavam. Em algum lugar uma máquina matraqueava e devorava, rangendo, os troncos das árvores. O sol brilhava como latão.

Igor saltou do vagão e olhou em volta. Do outro lado estava novamente o Amur, liso como um vidro, com ondas que mal se encrespavam... uma torrente de ouro líquido. Um único ponto se destacava nele... lá longe, do tamanho de um grão, um barco se movia imperceptivelmente.

— Logo depois da esquina começa o paraíso — disse Marko. Andara em busca de informação, incomodara os jogadores de xadrez e descobrira onde tinham ido parar.

— Dizem que aqui há até uma aldeia. Issakova. Devíamos dar uma olhada... talvez aqui vivam os primeiros seres humanos.

— Perdemos a nossa estação enquanto dormíamos.

Igor desceu até o rio e colocou a mão sobre os olhos. Depois despiu-se até às cuecas, lavou-se e nadou um pouco. Marko ficou acocorado à margem, procurando, num mapa que comprara em Chabarovsk, o lugar para onde o sono os levara. Issakova aparecia ali, diminuta junto ao Amur.

— Uma bosta de mosca! — murmurou Marko. — Uma verdadeira bosta, de mosca!

Igor saiu do rio e correu algumas vezes de um lado para outro para deixar pingar a água. Os homens no tabuleiro de xadrez não se importavam com eles... sentavam-se em caixotes, em círculo estreito, olhando fixamente o jogo.

Seguindo um impulso — mais tarde não conseguiria explicar como sucedera — Igor desamarrou um botezinho de uma prancha, saltou nele, mergulhou os remos nágua e deixou-se levar para dentro do Amur. Marko corria como um cãozinho pela margem, atirando os braços para cima e gritando.

— Deixe dessa besteira! Você não conhece o rio! Pode haver correntezas que o levem para a China! Já se viu uma loucura dessas? Volte, filhinho do demónio, volte! Não, ele continua remando, não me ouve!

Marko corria pela margem do rio, procurando em vão outro bote. Depois, na sua aflição enorme, correu para os jogadores de xadrez, levantou os braços, gritou com eles, e, como não se movessem, virou o tabuleiro num audacioso pontapé.

Aquilo era um grande erro, pois os homens criaram vida. Levantaram-se dos caixotes, jogaram-nos sobre o anão e começaram a espancá-lo. Marko disparou como uma doninha entre os vagões descarregados, escondendo-se atrás de umas pilhas de madeira, e esperou até que a raiva dos jogadores de xadrez se acalmasse. Cautelosamente espiou o rio. O bote de Igor flutuava bem longe, dirigindo-se para o ponto que dançava nas águas douradas.

— Vão acontecer coisas desagradáveis — disse Marko cheio de pressentimentos. — Grandes desgraças. Já começou com essa história de dormirmos demais... Vamos ter uma vida inquieta por aqui.

Igor remava com toda a força dos seus músculos.

Tudo fora apenas uma brincadeira, uma fuga, uma recordação da infância em Kichinev, onde seguidamente remara com seu pai no Bakul.

Assobiava contente, aproximava-se do ponto, e reconheceu O que era outro bote. Mas este não se movia... ao contrário, havia alguém de pé dentro dele, acenando freneticamente com os braços. Pareciam não ser acenos alegres, mas um sinal de aflição, um grito de socorro.

Igor pegou dos remos como se lutasse por um campeonato.

Seu botezinho deslizou leve sobre as águas... um-dois, um-dois, comandava a si próprio, tocando firme para a frente. Igor olhou para trás algumas vezes. A distância diminuía, o vulto agora acenava com um pano, não, um lenço de cabeça, um trapo colorido.

Escutou uma voz — naquela distância parecia o piar de um pássaro assustado.

— Não tenha medo! — gritou por sobre os ombros. — Não faça movimentos bruscos senão vai cair na água. Cuidado!

Durante os últimos metros arfava como um fole defeituoso, recolheu os remos, aproximou-se do outro bote e enxugou o suor dos olhos. Seus braços tremiam, as palmas das mãos queimavam, as coxas latejavam de exaustão.

Quando passou a mão pelos olhos para vencer o reflexo do sol nas águas, viu pela primeira vez detalhadamente a pessoa no outro bote.

Estava sentada no banquinho estreito, imóvel como ele mandara, com o vestido e os pés molhados. Arrancara uma das mangas para tapar o buraquinho no fundo do bote. A dez metros de distância, o seu remo boiava indolente nas águas do Amur.

Ela sorriu para Igor, pedindo desculpas como uma criança que tivesse jogado sua bola na cabeça de alguém. A luz do sol pairava sobre sua cabeça como um elmo de ouro. Os olhos um pouco oblíquos piscavam contra a luz. ”Você!” — disse Igor, com voz fraca. Pegou a própria cabeça com as duas mãos, pois parecia que ela ia estourar. O sangue lhe martelava as têmporas. Tentou dizer mais uma palavra, mas seus lábios estavam ressequidos, e sua garganta também.

Igor passou para o outro bote, pegou nos braços a moça paralisada de susto, beijou-a e recebeu uma bofetada tão forte que caiu por sobre a beirada do bote dentro da água.

É uma cruz estar diante de uma mulher furiosa. Com homens pode-se discutir. Mas com uma mulher? É mais fácil trançar fitas vermelhas nos chifres de um touro do que discutir com uma mulher. Por que será assim? Ninguém pode explicar. Igor Antonovitch também não conseguia entender... por duas vezes nadou em volta do barco, tentou subir pela borda, mas duas vezes aquele diabinho louro lhe bateu nos dedos empurrando-o de volta às águas do Amur.

O seu próprio bote afastava-se. Não havia possibilidade de segurá-lo. Como importar-se com ele, se era preciso lutar para manter-se contra a correnteza?

Igor nadava bem, mas nadar com roupas que absorviam água como uma esponja é diferente de brincar de calção de banho. Depois de quatro rodeios em torno do bote da moça, começou a arquejar, bebeu dois grandes goles de água e pôs-se a virar os olhos. Depois da quinta tentativa, esperneou na água e apoiou a cabeça, esgotada, contra o bote.

— Quer-me afogar? — disse arquejando. — Pois então, façao depressa. Segure minha cabeça debaixo da água! Será o pagamento pela minha estupidez de querer ver em você um anjo...

A mocinha loura riu alegremente. Ela ainda conseguia rir, aquele demónio, pensou Igor e respirou fundo. Vai rir e até cantar mesmo depois que eu me tiver afogado. E tem o ar de uma madona num ícone antigo...

— Adeus! Quando meu corpo for dar em Chabarovsk, ninguém saberá que fui vítima do meu amor. — Revirou horrivelmente os olhos, ergueu os braços sobre a cabeça, naturalmente só para mergulhar por debaixo do bote e reaparecer do outro lado. Mas a moça pareceu dar-lhe crédito, puxou-o pelos cabelos e até deixou que se agarrasse no costado do bote, ajudando-o a subir. Exausto ele rolou no fundo do barco, juntou as mãos no peito, fechou os olhos e ficou ali deitado, como morto.

A moça se curvou sobre ele, pegou-lhe o braço e sentiu seu pulso. Depois largou o braço, fungando com desprezo pelo belo nariz.

— Levante-se! — disse alto e em tom de comando. — Seu pulso está apenas um pouco lento, mas normal. Pare com essa farsa... um sujeito esgotado tem outros sintomas.

— Ora, camarada, isso parece muito científico. — Igor abriu os olhos. A moça estava sentada no outro canto do bote olhando-o furiosa. — Entende alguma coisa de coração e pulso?

— Eu sou médica.

— Então é mesmo você! Quando me empurrou na água pensei que estivesse enganado. Igor, disse a mim mesmo, não é ela. Um anjo não pode ser tão miserável. E eu me lembrava de você como um anjo...

Igor Antonovitch ficou deitado e tirou a camisa molhada. Meteu-a junto com a manga arrancada no buraco do bote, e começou a tirar a água com as duas mãos em concha.

— Tenha pena de mim. Estou à sua procura faz anos...

— Você é maluco! Completamente maluco!

— Você se lembra de Kichinev? — disse Igor ajoelhado na água que enchia o fundo do barco. Afastou os cabelos louros da cara. A moça o fitava zangada. — Lembra-se? Na Universidade? Você estava de visita a uma tia, assistiu a algumas aulas como visitante, depois desapareceu sem uma pista. Uma vez os livros lhe caíram e eu os apanhei. Você apenas disse ”Obrigada!” e fugiu.

— Foi você? — Os lábios cheios da moça sorriram timidamente. — Agora estou-me lembrando.

— Desde aquele minuto eu a procurei. Desenhei seu retrato e o mostrei a todo mundo, perguntando mil vezes: ”Quem a viu?” Até lutei com outros que zombavam de mim, e quase matei um deles porque a ofendeu.

— Ele nem podia me conhecer! Mal estive uma semana em Kichinev, e não me interessei por homem algum! — A moça se curvou para a frente. Os seus seios redondos e túmidos cresceram e apertaram-se contra o vestido molhado. Não usava corpete, a natureza estava à vontade. Aquilo era o Amur, na fronteira da China, não Moscou. Portanto, não torça o nariz, irmãozinho.

— Que foi que ele disse de mim?

— Disse que você era leviana... outros tiveram de me segurar, senão eu teria deixado a cabeça dele grudada na parede.

A moça ficara vermelha, e olhava por cima do imenso rio, dourado pelo sol. Na margem, entre pilhas de madeira, algo se moveu de repente. Alguém sacudia um pedaço de pano como num sinal.

— Eu lhe agradeço — disse a moça, sem olhar para Igor. — E eu o empurrei para a água! Desculpe.

— Já me esqueci disso. Podia beijar as ondas do Amur por tê-la encontrado afinal. — Igor continuou a tirar água do fundo do bote. Depois procurou o remo na superfície do rio, e encontrou-o longe. — Quem é você?

— Dunia Dimitrovna Sadojeva, doutora em Medicina... — disse ela deixando as mãos mergulharem na água. — E você?

— Igor Antonovitch Pjetkin, doutor em Medicina... Riram e olharam-se bem pela primeira vez. Quando seus olhares se encontraram, foi como uma explosão. Uma dor ardente os atravessou dos dedos dos pés à raiz dos cabelos, e seus corações começaram a impulsionar o sangue, um sangue quente e espesso.

Igor assustou-se quando Dunia disse:

— Há alguém lá na margem acenando com um pano.

— É Godunov.

— O grande Czar? — O rosto de Dunia escureceu. — Por que é que você sempre procura me irritar, Igor Antonovitch?

— Mas é mesmo Godunov. Marko Borissovitch... meu acompanhante. Um ex-ajudante de Anatomia em Kichinev. É como um cão... onde estou, ele está também. Mas não se assuste, Dunia. Não é apenas um anão... é a coisa mais feia que a natureza já produziu. Um pesadelo de duas pernas... mas um coração de santo. — Curvou-se pela borda do bote e sacudiu a cabeça. — Nunca conseguiremos pegar aquele remo. Vamos tentar com as mãos. Vai ser um trabalho duro! Eu indico o ritmo, e vamos em frente. Você rema à esquerda, eu à direita. Vamos experimentar?

— Se não quisermos ficar aqui no rio, tem de ser assim — Dunia debruçou-se para fora e acenou com a cabeça. — Pronto. Comandante, capitão.

— Então... vamos! Um-dois, um-dois...

O bote deslizou lentamente pelo Amur em direção à margem. O esforço da jornada quase lhes estourava os pulmões. Apesar disso, para Igor ainda iam depressa demais. Quanto mais perto da margem, mais lhe doía o coração. Será que a verei de novo?

Sentiu um medo bem vulgar, quando o bote arranhou a areia da margem, e ele teve de saltar para empurrá-lo com firmeza para a terra. Depois ajudou Dunia a descer, e viu de longe um inseto gigante numa nuvem de pó, correndo em sua direção.

— Lá vem ele. Godunov. Mesmo se você não acreditar, ele é realmente humano...

Igor tirou a camisa do furo no barco, abriu-a e viu que estava rasgada. Vestiu-a mesmo assim, e ficou parecendo um ousado pirata.

— Onde é que você mora, Dunia?

— Em Issakova. Nasci lá. Estou aguardando um cargo de médica. Parece que a administração de Chabarovsk não sabe onde me colocar. Também não insisti... é tão bonito em Issakova.

— Gostaria de conhecer a aldeia.

— Venha comigo. — Dunia penteou os cabelos com os dedos. A torrente dourada e sedosa desfez-se ao vento que soprava sobre o largo rio. Igor a fitou admirado. Ela parecia nua debaixo do vestido, que se colava nela como uma segunda pele.

Igor limpou o suor da testa com as costas da mão.

— Tenho alguma bagagem. Muita bagagem, aliás. Marko e eu dormimos no trem e não descemos em Blagovjechtchensk, e assim viemos parar aqui. Primeiro ficamos praguejando... Agora eu poderia abençoar esse sono com puro ouro. Foi por causa dele que eu a encontrei de novo, Dunia.

— O meu carro está atrás da serraria. Uma carrocinha com um cavalo velho e cansado...

Marko alcançou-os. Ainda em plena corrida, atirou-se contra Igor, enlaçou-o com os longos braços, e, como só lhe chegasse ao peito, apertou o rosto nos pêlos do peito do rapaz, beijando-o com devoção. Depois soltou Igor, caiu de joelhos diante de Dunia e segurou-lhe as mãos antes que ela as pudesse retirar. A visão do feio gnomo assustou-a apesar dos avisos de Igor. Mas ao mesmo tempo recordou-se de Marko... Kichinev, a sala de preparativos da Anatomia, as anedotas do professor Salkin. Marko, que carregava cadáveres de um lado para outro como bebés. De guarda-pó branco, avental de borracha arrastando pelo chão, ele tinha algo de horrível mas, ainda assim, suportável. Agora, sem as roupagens que misericordiosamente o cobriam, parecia um aborto crescido.

— A senhora o salvou! — gritava Marko beijando-lhe as mãos. Dunia tentou escapar, mas a força dos dedos de Marko era imensa. A moça não conseguiu libertar-se, e teve de suportar com calafrios as carícias daquela gratidão.

— O meu filhinho se teria afogado! E vieram sem remos, só com as mãos? Onde está o outro bote?

Igor fitou Dunia rapidamente, e o sorriso dela, envergonhado, o encheu de felicidade.

— Quando Dunia me puxou para o seu barco, o meu se afastou. Uma casquinha de noz, o diabo que o leve! — mentiu.

— Vamos para Issakova. — Dunia tirou um pedaço de barbante do bolso do vestido e atou os longos cabelos louros na nuca. — Vamos!

Foi na frente em direção ao depósito de madeira.. Marko ficou parado.

— Ali? Aqueles homens vão me fazer em pedaços.

— Não na minha presença! — gritou Dunia sobre os ombros. — Todos me conhecem.

Igor admirava o andar da moça à sua frente, o ritmo das pernas, que se comunicava para o corpo todo. Os cabelos caíam até os quadris e ela balançava a cada passo. Marko segurou Igor. A horrível boca de peixe torceu-se num sorriso medonho.

— Eu logo vi! — sussurrou. — É ela! O anjo que o senhor procurava. Que acaso! Devíamos acender uma vela a santo Afanasy, se não fosse tão tolo e antiquado acender velas. — Quando Dunia se voltou e lhes acenou, num sorriso radiante, Igor ficou com a respiração pesada. Vou escrever imediatamente ao meu pai — disse para si mesmo. Vou lhe pedir que venha até o Amur. Quero que a veja e me dê razão quando lhe disser: ”Só essa moça no mundo pode me fazer feliz. Nenhuma outra criatura serve para mim. Paizinho, dê-nos sua bênção. Vou-me casar com Dunia... mas primeiro terei de conquistá-la.”

A carroça com o cavalo cansado os levou, infinitamente devagar, para Issakova. Pouco antes da aldeia, Dunia parou o carro. Com um gesto indicou a paisagem — o Amur com suas águas douradas, o céu azul-pálido, enfeitado de fiapos de nuvens, a aldeia acocorada num vale, a praia arenosa, as pastagens e os campos cultivados nas margens, e no fundo a parede verde-azulada e ondulante dos bosques.

— Eu nasci aqui — disse orgulhosa.

Igor confirmou com a cabeça, e disse solenemente:

— Só aqui isso teria sido possível, Dunia...

 

Dimitri Ferapontovitch Sadojev não ficou nada feliz por sua filha trazer para casa um homem estranho, e ao lado dele, ainda por cima, uma criatura que se devia até matar com a pá. Anna Sadojev, geralmente uma mãe imperturbável e valente, diante de quem toda Issakova tirava o chapéu e ninguém se atrevia a brigar, deixou a frigideira cair no fogão, tapou o rosto com o avental, e correu para fora. Marko torceu o rosto num sorriso encabulado.

— Não tenho culpa, camarada — disse a Sadojev, que refletia sobre a humanidade do anão, que até emitia sons compreensíveis. — Quando Deus distribuiu a beleza, minha mãe estava mesmo limpando a latrina do diabo...

— É isso — disse Sadojev com grande autodomínio.

— Somos todos produtos do acaso.

Mais tarde, ficou sozinho diante do espelho contemplando-se contente.

— Você é feio, Dimitri Ferapontovitch — disse, alegrando-se — mas diante de Marko Godunov você é a verdadeira imagem do Senhor. De algum modo, o mundo é mesmo perfeito.

Depois de comerem juntos uma kascha de mingau de milho e frutas, coroada com peixe assado com muita gordura e cebolas, e um copinho de vinho caseiro de bétula, de que a mãe Anna se orgulhava muito, Igor contou sua história.

— Isso não é problema — disse Sadojev servindo mais vinho de bétula a todos. — Amanhã eu os levo a Blagovjechtchensk. É pouco mais de trinta verstas, uma boa esticada para dois bons cavalinhos. Mas hoje é tarde demais, devem reconhecer. — Recostou-se na cadeira, meteu as mãos nos bolsos da velha e remendada calça de montaria. — Então o senhor é médico. Como a minha Duniuschka. Mas que coincidência! Se continuar assim, vamos ser invadidos por doutores! Ah, ah, ah! Primeiro não há nenhum num diâmetro de cem verstas, de repente tenho logo dois sentados à minha mesa. Mamãe, pegue o pão fresco na despensa. Quer mel, camarada doutor? Eu mesmo o preparei no ano passado.

Igor acenou a cabeça, distraído. Olhava para Dunia. Ela estava junto do fogão, lavando a louça numa grande gamela de madeira, na qual a água quente fumegava. Não era mais médica nesses momentos, nada mais que uma filha do grande rio Amur, uma jovem camponesa de Issakova, que crescera ao vento ardente da estepe, que soprava das amplidões alaranjadas da China sobre o grande rio, fortalecido nas tempestades geladas que uivavam nos telhados e janelas de Issakova, vindas da nevada taiga.

Sadojev a observava e entendeu os olhares de Igor para Dunia. O seu coração de pai ficou pesado. Suspirou e contemplou o copo, cheio de melancolia. Era assim com todos os pais que tinham uma bela filha crescida.

— Vou-lhe mostrar a aldeia, camarada doutor — disse por isso Sadojev, erguendo-se abruptamente. — Venha. Mesmo o fim do mundo é interessante.

Durante três horas visitaram Issakova e suas belezas em ruínas. Marko não os seguiu... deixou que Anna lhe mostrasse um lugar no galpão, onde deviam dormir. Era um antigo estábulo, que Marko varreu e arranjou confortavelmente com dois montes de palha. Depois sentou-se ao sol, acendeu de novo o cachimbo, e deixou que as crianças o admirassem. Elas ficavam a uma respeitosa distância por trás da cerca, contemplando-o como a um animal de fábula.

Depois do jantar, a família Sadojev levou seus hóspedes ao galpão.

— Sua visita foi uma grande alegria, camarada doutor — disse Sadojev. — Durmam bem. Amanhã cedo, às sete horas, eu virei acordá-los.

A mamãe Anna deu a mão a Igor em silêncio, cumprimentando-o com a cabeça. Havia uma pergunta muda nos seus olhos, uma indagação maternal. Doeu a Igor não poder responder nada. Cedo demais, pensou. Por enquanto, Dunia ainda é apenas um sonho.

— Boa noite, Dunia — disse ele com a língua pesada.

— Boa noite, Igor Antonovitch. Quando tiver tempo, visite nos outra vez.

Isso era mais do que Sadojev pretendera. Sacudiu a lâmpada de petróleo, colocou-a no chão, interrompendo assim o aperto de mão de Igor e Dunia.

— A noite é curta — murmurou ele. — E se ouvir alguns ruídos, camarada, não se assuste. São ratos ou cobras inofensivas que procuram calor. Boa noite.

Empurrou Anna e Dunia para fora do estábulo e fechou a porta com estrondo. Marko estava acocorado na sua cama de palha. Torceu um longo rolo com seus mantos, servindo de travesseiro comum. Igor ficou diante da porta fechada, braços caídos, como se o tivessem aprisionado.

— Que foi? — perguntou Marko deitando-se. — Ela vai-se tornar a nossa dona-de-casa?

— Eu a amo — disse Igor baixinho. — Que diabo, eu a amo como um louco ama o seu mundo enlouquecido. Mas ela não sabe, nem sente.

— Vamos aguardar — disse Marko. — Uma pedra aguçada leva milhões de anos para se tornar um seixo redondo... mas no amor, mil anos são um segundo.

Apagou o lampião e Igor deitou-se ao seu lado na palha.

Na casa de Dunia e seus pais, foi tudo bem diferente quando voltaram para casa. O velho Sadojev esforçava-se para acompanhar a filha, com suas pernas tortas, mas quando a alcançou segurou-a pela manga.

— Você o ama? — perguntou de modo direto. — Vamos, diga, fale à vontade!

— Não sei, paizinho — respondeu Dunia e continuou andando.

— Palavras inteligentes — gritou Sadojev, coçando os poucos cabelos. — Palavras diabólicas! Nas mulheres, isso significa um ”sim”

De manhã, Igor, Marko e Sadojev voltaram a Blagovjechtchensk. Uma carrocinha de quatro rodas, com dois cavalos fogosos, levou-os aos solavancos ao longo do Amur. O orvalho cintilante pousava no capim, o rio cheirava a uma podridão adocicada. Dois imensos falcões giravam sobre a estrada. Vinham das florestas e procuravam ratos, coelhos ou carneirinhos perdidos.

Igor não vira mais Dunia. Não vira, tampouco, que ela ficara atrás da janela seguindo-os com o olhar até que a carroça desaparecesse numa curva da estrada.

— Será que ele volta? — perguntou sentando-se à mesa. A mãe Anna estava na cozinha. Sadojev gostava de beber, pela manhã, leite fresco e quente.

— Se for um homem, certamente virá — disse ela, mexendo na panela.

— O paizinho não gosta dele.

— Vai gostar. — Anna encostou-se no fogão de pedra. — Meu pai jogou Dimitri Ferapontovitch quatro vezes na rua.

— E se Igor não voltar?

— Então esqueça-o, filhinha, esqueça-o depressa! Só maçãs podres caem da árvore sozinhas...

Após quatro horas de jornada a carroça alcançou as florestas de Blagovjechtchensk. Uma estrada perpendicular levava ao mato, empoeirada, estragada, esburacada. Um cartaz torto e desmaiado pelas intempéries pendia numa árvore, mal legível, mas não era necessário mesmo, pois num diâmetro de cinqüenta verstas todos sabiam a inscrição de cor, e respeitavam-na.

”Passagem proibida. Infratores serão punidos.”

— Pronto! — berrou Sadojev freando os cavalos. — Estamos aqui, amigos. Adeus.

— Mas isso não é uma cidade? — disse Igor admirado.

— Não. A cidade fica a três verstas de distância. Mas vocês querem ir ao campo de prisioneiros, que fica no fim deste caminho. — Sadojev segurou mais firmemente as rédeas, como se algo o impelisse a estalar imediatamente a língua e partir a galope. — Não peçam que eu os leve até o portão. Ninguém me fará seguir essa maldita estrada. A pé são ainda uns vinte minutos. Adeus, camaradas.

Ficou sentado na sua carroça, Vendo Igor e Marko jogarem as bagagens nos ombros e partirem pela estrada proibida. Só quando desapareceram entre as árvores, Sadojev soltou as rédeas, virou a carroça e voltou sacolejando depressa para Issakova.

 

O caminho era mais longo do que vinte minutos. Só depois de uma hora Igor e Marko atingiram a zona do campo. De repente a estrada se abriu numa imensa praça. Diante deles estava um mundo no qual havia de tudo, menos esperança.

Não que Sadojev lhes tivesse indicado uma extensão falsa da estrada proibida... Vinte minutos era certo. Mas Igor interrompera diversas vezes a sua marcha. À beira do caminho havia coisas que geralmente não se espera numa estrada. Uma grande poça de sangue, uma coronha quebrada de espingarda, uma tábua com um líquido pegajoso que Marko, com conhecimento profissional, identificou como sendo massa encefálica, um sapato trançado com a parte interna da sola cheia de pus.

— Que estrada esquisita — disse Marko atirando o sapato longe, mato adentro. — Doutor, no fim deste caminho o senhor vai ter que esquecer que é um ser humano.

— Ou talvez estejam esperando por um!

O lugar era organizado como campo de trabalhos forçados ”para reeducação”, conforme a bela linguagem administrativa dos soviéticos. Uma cerca de madeira, com mais de três metros de altura, rodeava todo o areal. Havia nela três grandes portões de madeira, com torres de vigia do mesmo material. Entre a cerca e o Campo estendia-se a zona proibida, uma faixa de terra cercada de arame farpado. Quem entrasse nessa zona podia ser morto a tiros pelos guardas, sem qualquer aviso ou sinal. Fortes refletores nas torres iluminavam essa faixa da morte à noite. Ao lado do portão principal ficavam a casa da guarda, uma construção comprida, de madeira, rodeada de arame farpado, um canil com enormes cães de pêlo amarelo e olhos esverdeados, uma grande caixa dágua. Dentro do Campo, em torno da ampla praça que servia para a inspeção diária, separadas pelas ”ruas”, ficavam as barracas dos prisioneiros, a lavanderia, a comprida cozinha, a loja, a padaria, as oficinas, a ”barraca política”, uma espécie de sala de reuniões para instrução e reeducação, uma casa de banhos e — como única construção em tijolos amarelos e teto de telhas vermelhas — o hospital e a casamata dos castigos. Chamavam-na elegantemente de ”bloco de isolamento”... um inferno no inferno. Bem nos fundos do acampamento, separadas de todas as demais construções, rodeadas mais uma vez especialmente de arame farpado bem espesso, ficavam as barracas de quarentena. Ali todos os recém-chegados ficavam por vinte e um dias, banhados, examinados, despiolhados, observados para ver se não sofriam de doenças contagiosas. Em vinte e um dias qualquer corpo revelava tudo o que pudesse haver para ocultar.

Igor descobriu de longe que na barraca da guarda haviam sinalizado a sua chegada. Seis guardas em uniformes cor de terra e quepes enviesados nas cabeças raspadas correram de um lado para outro diante do arame farpado, erguendo as metralhadoras no peito.

— Alto! — gritaram quando Marko e Igor continuaram a andar calmamente. — Alto! Vamos atirar!

— Vamos parar — disse Marko, colocando a bagagem no chão empoeirado. — Não é bom irritá-los. Pense no sangue na estrada.

Ficaram parados e os soldados correram ao seu encontro. Num círculo de três metros rodearam Igor e Marko, encarando-os sombriamente.

— Eu sou o Dr. Pjetkin — disse Igor bem alto. — Fui destacado como novo médico.

O cabo não pareceu impressionado. Estendeu apenas a mão larga.

— Papéis? Ordem de viagem? Licença de entrada?

— Tudo em ordem. — Igor entregou-lhe a papelada. Só quando o cabo a estudara minuciosamente, tornou-se mais amável. Dobrou os papéis, meteu-os no bolso do uniforme, e guardou a pistola.

— Venha conosco, camarada — disse num tom normal. — Vou apresentá-lo à direção do Campo.

Igor e Marko foram levados a uma barraca, um quarto vazio sem janelas. Uma lâmpada pendia tristemente do teto, iluminando escassamente o aposento. Antes de chegarem a esse lugar, passaram pelos aposentos do pessoal. Os guardas sentavam-se em longas mesas fumando, bebendo kwass, jogando xadrez ou cartas, lendo jornais e ouvindo rádio.

— Esperem aqui — disse o cabo. Deixou o quarto e fechou-o a chave.

— Não confiam em nós — disse Marko e sentou-se no grande saco de roupas de Igor. — Um pouco idiota, acho eu. Quem é que viria para cá de livre vontade?

Esperaram durante meia hora, fumaram um cigarro e assustaram-se quando de repente a porta se abriu. Entrou um oficial do KGB e pôs-se a examinar Igor francamente. Tinha nas mãos os papéis de Chabarovsk.

— Não tínhamos a menor ideia da sua vinda, Igor Antonovitch — disse o oficial. — É uma porcaria. Um relaxamento! Faz um ano que pedimos um novo médico, para substituir a camarada Dussova... e agora que chega um, ninguém sabe de nada. Naturalmente estamos felizes por tê-lo aqui finalmente, camarada Pjetkin! Imagine... três mil habitantes no acampamento, sem contar os guardas, entre eles mil criminosos e dois mil do 58. E só um médico! Pode-se pensar como se quiser sobre esses vagabundos. mas o maior vagabundo precisa de atendimento médico. Isto é humanitarismo.

— Quem são os do 58? — indagou Igor sem saber.

— Os políticos, meu caro. Condenados pelo parágrafo 58 do Código Penal soviético. Os críticos e insatisfeitos, os contra-revolucionários e os traidores do povo, espiões e sabotadores, terroristas e conspiradores... toda a ralé, portanto. Há cabeças inteligentes entre eles, não parece possível, mas há! Professores, oficiais, académicos... e não têm nada na cabeça senão o propósito de destruir a ordem. Mas o senhor vai conhecê-los.

O oficial do KGB encolheu o queixo e contemplou Marko com um evidente ataque de nojo.

— Céus, quem é este aí? Não está enganado? O jardim zoológico mais próximo fica em Gamarovsk!

Marko fungou pelo largo nariz num sibilar de animal feroz.

— Meus papéis — disse e estendeu sua papelada. — Sou especialista em cadáveres...

— O que é que ele é? — perguntou o oficial, arrancando os papéis da mão do anão.

— É o meu acompanhante. Meu ajudante, se quiser, camarada. As autoridades sanitárias de Chabarovsk permitiram a colaboração do camarada Godunov no meu trabalho. Ele vai trabalhar como ajudante com os doentes.

— Um servente de Anatomia! — O oficial jogou os papéis diante das pernas tortas de Marko. — Essa gente lá de cima tem senso de humor. Ele vai carregar mais cadáveres do que gostaria. Pode até construir torrezinhas com eles...

— A mortalidade aqui é muito grande? — perguntou Igor interessado.

— A mortalidade é normal... mas o senhor ainda não conhece a camarada Dussova.

A mesma frase ouvida em Chabarovsk. Igor sacudiu a cabeça.

— Alegro-me por conhecê-la em breve.

— Pois então o senhor é o único que se alegra. Venha. — Dirigiu-se até a porta e Marko pegou a bagagem, mas o oficial o impediu.

— Deixe isso aí! Ambos agora são parte da administração do acampamento. Temos aqui um exército de carregadores às suas ordens. Guardas! Dois homens para as bagagens.

Passos martelavam o longo corredor, como sandálias de madeira. Depois, dois vultos surgiram na porta e ficaram esperando. Usavam calças de algodão cinza, muito remendadas, e uma camisa marrom. As cabeças estavam raspadas. Os olhos sem brilho jaziam em órbitas fundas e escuras. Eram dois velhos, se é que se podia ainda determinar idades naquele lugar. Um deles fitou Igor com uma súplica muda... seus lábios estavam azuis e tremiam.

— Bagagens para o hospital! — berrou o cabo que apareceu ao lado. — Depressa, macacos!

Os prisioneiros se precipitaram para as bagagens, e saíram correndo do quarto. Os pulmões arfavam como canos de descarga de uma máquina a vapor.

O oficial deixou Igor e Marko na administração do Campo. Apontou para a construção de pedra e disse:

— É ali. Vamo-nos encontrar na hora da comida. Felicidades, camaradas.

Andaram lentamente pela praça varrida até o hospital. Prisioneiros trabalhavam nas ruas. Varriam os caminhos, pintavam a madeira com tinta verde, remendavam barracas. Da barraca da cozinha erguia-se uma fumaça gordurosa, que cheirava a chucrute. Na faixa da morte também trabalhava um destacamento, vigiado por dez guardas. Estendiam a areia fina entre o arame farpado e a cerca de madeira. Assim na manhã seguinte podia-se ver na superfície lisa se alguém tentara atravessar a faixa.

Da porta do hospital saíam agora os dois carregadores. O homem de lábios azuis tirou imediatamente o gorro e ficou parado humildemente diante de Pjetkin.

— Pode-se falar com o senhor, camarada? — perguntou baixinho, quando Igor passou por ele. — Por favor, só uns minutos. Se tem coração... parece que o senhor tem. Por favor...

— Quem é você? — perguntou Igor. Ficou parado. O outro prisioneiro continuou a correr, com cabeça encolhida, sentindo aneladas de pavor na nuca.

— Stephan Ivanovitch Duchovski. Professor de Física em Charkov. Vai-me escutar?

— Sim, naturalmente. Amanha de manhã. Venha ao hospital.

— Mas lá está a Dussova...

— E eu também estarei lá, professor. Isso lhe basta?

— É difícil ainda acreditar em alguma coisa.

— Por que está aqui?

— Porque apresentei alguns cálculos. Disse que nos próximos dez anos não poderíamos alcançar os americanos na pesquisa atómica. Era verdade.

— Amanhã de manhã, depois da revista. Imagino que se façam revistas diárias aqui.

— Sim, claro — Duchovski passou a mão sobre os lábios secos e azuis. — Mas eles vão me mandar para o trabalho externo. Hoje é um dia de sorte... tenho serviço interno.

— Faça-se de doente.

— O chefe vai-se rir de mim, e dar-me um pontapé no traseiro. Já esteve alguma vez num campo como este?

— Não. É a primeira vez que vejo algo assim.

— Então coloque uma blindagem no coração e no cérebro, senão um dia o senhor estará sentado ao meu lado no catre da barraca 19. Pense nas minhas palavras, meu jovem amigo. Que idade tem?

— Ainda não fiz vinte e seis.

— Como é maravilhosamente jovem! E teve de vir para o inferno! Vou tentar, doutor. Amanhã de manhã. Se o chefe não me moer de pontapés. O senhor tem de saber... cada barraca tem um chefe, um chefe dos diabos entre os diabos. Só criminosos. Eles formam a camada superior do acampamento... nós, políticos, somos a ralé, o conteúdo da cloaca. Meu chefe foi um assaltante de estradas. Até amanhã, meu jovem amigo. Vou tentar...

Igor continuou imerso em seus pensamentos. Então assim são as coisas por aqui, pensava. Será que precisam de um médico para acelerar a morte? Alguém para selecionar em vez de curar? Que examine as barracas e classifique os doentes como aptos para trabalhar? E para isso escolheram um Pjetkin? Que engano, camaradas!

Entraram no hospital e na entrada chocaram-se com um prisioneiro que empurrava outro à sua frente e lhe batia na cabeça com uma cueca suja de excremento. A vítima chorava e corria em círculos. Igor segurou o homem com a cueca, e jogou-o contra a parede. O prisioneiro arregalou os olhos e quis defenderse, mas Marko estava ao seu lado e meteu-lhe o punho no estômago.

— Calma, irmãozinho — disse depois. — Quer que meu punho saia pelas suas costas?

— Ele cagou nas calças! — arfou o prisioneiro. — Pela terceira vez. É um porco, um porco fedorento!

— Estou com diarréia! — gritou o outro. Caiu de joelhos e de repente pôs-se a chorar. — Que é que posso fazer? Por que me castigam? Eu não quero fazer, mas isso vem...

— Vá-se deitar na cama — disse Igor e levantou o homem em prantos. — Onde fica a sua cama?

— No quarto quatro. Mas eles não me deixam deitar. Sempre me tocam para fora porque estou fedendo! Mas que é que posso fazer?

— Vamos. — Igor pegou o outro prisioneiro pela gola e só então viu que ele usava um casaco branco de linho, cheio de manchas, mas branco, numa nítida distinção dos demais prisioneiros.

— Eu sou o novo médico — disse ao homem que o olhava com olhos rancorosos. — Meu nome é Pjetkin! Não vai esquecer? P-j-e-t-k-i-n! — e com cada letra dava-lhe uma forte bofetada, de modo que a cabeça do homem batia de um lado para outro. Depois tornou a agarrá-lo pela gola e sacudiu-o.

— Onde está a Dra. Dussova? — gritou Igor. — Onde está?

— Quarto um à esquerda, Dr. Pjetkin — gaguejou o prisioneiro.

Não se defendeu quando Igor o empurrou à sua frente, para dentro do quarto um. Cambaleou contra um armário, com a cara vermelha e inchada, e lá ficou, de cabeça pendida. Antes de entrar, Igor escutou uma voz, a voz de Dussova. Uma clara e cortante voz de mulher, um som de vidro batido.

— Russlan! Está maluco? Que cara é essa? Que está acontecendo lá fora?

— Fui eu que cheguei, camarada — disse Igor. Abriu bem a porta e entrou. Marko seguiu-o, conhecendo o efeito da sua presença sobre as mulheres. Ela vai calar a boca bem depressa, pensou ele com alegria. Vai ficar muda como uma toupeira. Mas estava enganado.

Atrás da mesa coberta de papéis, sentava-se uma mulher de terrível beleza animal. Uma floresta de cabelos negros envolvia-lhe a cabeça redonda, com as maçãs do rosto bem salientes, e ardentes olhos tártaros. Quando se ergueu, de um salto, mostrou que era de estatura média, robusta, busto cheio sobre uma cintura fina. Trazia uma blusa azul-escura, apertada demais para os seus seios, e uma saia amarela que lhe envolvia as cadeiras como um braço. Nas pernas brilhavam botas pretas e macias, as temidas botas da Dussova, polidas como jóias e cujas menores dobras ela examinava à procura de sujeira. Se encontrasse alguma partícula de pó, chamava Russlan e mandava chicotear o prisioneiro que as tinha limpado. As mãos espantosamente longas e estreitas eram brancas como toda a sua pele, daquela brancura de porcelana que só se encontra na Ásia. Uma pele translúcida como uma taça chinesa.

— Dr. Pjetkin... — disse Dussova. Espantado, Igor ouviu a voz cortante dela tornar-se mais escura, sonora e cheia.

— Ao menos a senhora sabe o meu nome! — disse ele. — Cheguei há pouco e devo assumir meu posto ao seu lado.

— A direção do acampamento telefonou, por isso sei o seu nome. — Ela olhou enviesada para o enfermeiro Russlan, ainda encostado ao armário arquejando. Depois viu Marko. Uma fagulha saltou em seus olhos. — "Ao seu lado" é uma expressão falsa, caro colega. Sob as minhas ordens... sou capitão-médico. Qual é a sua patente?

— Nenhuma, camarada. Sou médico apenas.

— Muito bem — a Dussova sorriu. A boca larga, de lábios finos, contorceu-se, expondo os dentes alvos. A dentadura de um gato. — Um romântico no nosso campo de prisioneiros. Uma novidade, colega. Será a tão propalada distensão política? Quanta coisa a gente faz quando a política se torna monótona. — Jogou a cabeça para o lado fitando Russlan. — Que foi que fez com o camarada Kalakan?

— Dei-lhe sete bofetadas e joguei-o na parede. Ele maltratou um paciente na minha frente. Fui romântico a ponto de me lembrar de que sou médico.

— Fora! — gritou a Dussova. Deu dois passos à frente e deu um pontapé com a ponta da bota em Russlan. O homem deu um grito de dor, virou-se e saiu da sala.

— Ele é o meu melhor homem — disse a Dussova quando a porta se fechara. — Um matador. Uma criatura imprevisível. Mas trabalha como um escravo. Não sei se tem coração... mas me ajuda nas operações como uma máquina. E eu preciso de uma coisa assim.

— Agora vou eu ajudar. Sou cirurgião.

— Mas que sorte! — a Dussova bateu palmas. Mas seu rosto tártaro, de diabólica beleza, brilhava como se estivesse untado de gordura. — Eu nunca aprendi cirurgia.

— E mesmo assim...

— O que é que eu podia fazer? Ficar parada ao lado e dizer: Não posso? Pensa que sou capaz de fazer isso? Peguei o escalpelo e cortei. Alguns até sobreviveram... admiro a constituição deles. — Ela olhou ao lado de Igor, e contemplou Marko, parado silencioso junto do armário. — E quem é esse aí?

— Nosso novo enfermeiro.

— Quer ter doentes em estado de choque nas barracas?

— Marko Borissovitch Godunov é o melhor servente de Anatomia do mundo.

— Mas que piada! Que piada deliciosa!

A Dussova riu. Sabia realmente rir, curvando-se nos quadris, os seios crescendo na blusa. Era um riso parecido com um arrulho, demasiado profundo, que não combinava com sua voz.

— O cirurgião traz consigo o zelador de cadáveres! — gritou apoiando-se na mesa de tanto rir. — E isso num campo de prisioneiros! Pjetkin, Pjetkin, eu não o reconheci logo... você é um romântico, um doido, um doido encantador, um idiota sagrado! Marko, seu sapo, vamos... vamos mostrar o novo lar ao seu senhor...

Foi à frente, silenciosa como uma gata esgueirando-se. A saia ondulava ao redor das pernas, os quadris balançavam a cada passo. No fim do corredor da administração do hospital, abriu a porta de um quarto e deixou Igor passar. Sem querer, ele roçou o seio dela, duro como pedra. Um aroma de óleo de rosas subiu-lhe às narinas, doce e pesado como todo um campo em flor.

O quarto era como todos os demais quartos por ali... quatro metros por quatro, paredes caiadas, uma lâmpada nua no teto. Estava vazio, por isso parecia duplamente desolado. O chão de tábuas lisas estava limpo, escovado pelos prisioneiros.

— Até à noite estará arrumado — disse a Dussova. — Vou ordenar imediatamente que o atendam. Deseja alguma coisa em particular, colega?

— Onde é que Marko vai dormir?

— Não sei ainda.

— Então mande pôr duas camas no quarto.

— Impossível. O senhor é médico, ele enfermeiro. Mesmo num acampamento como este existe uma hierarquia. Vai ficar aqui sozinho... Marko encontrará uma cama numa das seções. Existe um quartinho com apetrechos como cubas, comadres, urinóis, regadores. Ali cabe uma cama. Ou será que os seus nervos vão sofrer com isso, Godunov?

Marko sorriu, cruzando as mãos.

— Camarada, sempre fiz a minha sesta entre cadáveres. Como iria me incomodar por causa de penicos? Um homem contente dorme em qualquer lugar.

A Dussova encarou o anão como se ele falasse outra língua. Houve espanto nos seus olhos negros. Depois virou-se e deixou o quarto. Igor e Marko seguiram-na.

— Pode lavar o pó da viagem — disse ela, parando diante de uma porta. Entrada proibida estava escrito na madeira em letras vermelhas. — Mandei construir um chuveiro para mim... O senhor pode usá-lo. Vai encontrar sabonete e toalha na mesinha junto do chuveiro.

— E onde está minha bagagem?

— Por enquanto, no meu quarto. Uma porta aí no banheiro vai dar lá — ela voltou-se sorrindo para Igor, os olhos tártaros faiscando. — Ninguém o incomodará, Pjetkin. Vou fazer minhas visitas agora.

 

À hora do almoço, Igor e Marko estavam lavados, barbeados e vestidos com suas melhores roupas. Até Marko parecia mais humano. Conheceram o diretor do acampamento, o comandante dos soldados do KGB que faziam a guarda, os capatazes dos depósitos e oficinas, os oficiais da guarda, o administrador, o chefe do escritório e o diretor técnico do acampamento.

— Estamos contentes por terem-no enviado — disse o diretor, um sujeito gordo com bochechas caídas e olhos empapuçados. — Vamos beber à saúde de nosso caro Dr. Pjetkin.

À tarde, Igor Antonovitch operou pela primeira vez. Um acidente. Um dos prisioneiros cortara a mão na serraria. Ela pendia apenas por dois músculos, e Igor tinha de amputar.

Marko ajudou, silencioso, rápido, adivinhando cada intervenção. Marianka Dussova estava atrás de Pjetkin e olhava. As mãos dele a fascinavam, a segurança da sua técnica de operação a entusiasmou. O corte dos farrapos de carne e músculo, a ligação das artérias, a correção do toco, a costura limpa, mesmo a atadura... tudo era feito com competência e espantosa perfeição.

— Bravo! — exclamou ela quando o paciente foi levado. — Foi um prazer assistir à operação. Só não sei por que teve tanto trabalho. É um prisioneiro...

— É um ser humano! — disse Igor. — Não só na superada religião, mas também no comunismo somos todos irmãos.

A Dussova ficou calada. Havia admiração nos seus olhos negros. Sem mais uma palavra, virou-se e deixou a sala de operações.

À noite, Igor foi cedo para a cama. O quarto era simples, mas fora mobiliado de modo confortável. Uma cama, uma mesa, duas cadeiras, um armário, um tapete de palha trançada, cortinas de linho tingido, um espelho e um quadro sem moldura. Kichinev. Igor ficou muito tempo diante dele, pensando no pai. Só então lhe veio o pensamento de que Dussova achara aquele quadro em qualquer lugar. Uma foto colorida de revista.

Deitou-se na cama, apagou a luz e ficou olhando a escuridão. O primeiro dia no acampamento. E ainda não vira muitas coisas...

Uma batida na porta o despertou. Sentou-se na cama, olhando ao redor, confuso. A maçaneta moveu-se devagar, o reflexo dos refletores lá fora clareou o quarto numa penumbra. Mais uma vez as batidas com o nó dos dedos.

— Marko? — perguntou Igor afastando as cobertas. — O que foi, diabo? Deixe um pobre médico dormir!

— Abra a porta... — era a voz da Dussova. Escura como a noite, um sopro de vento a suspirar. — Igor Antonovitch, tenho algo para lhe dizer. Abra...

A luz dos refletores afastou-se, deslizando para outro lado. Estava escuro no quarto.

Pjetkin levantou-se, abotoou o pijama e foi até a porta.

Mal a abrira, a Dussova se esgueirou para dentro do quarto, fechou a porta e virou a chave. Igor escutou o leve rangido na fechadura. A escuridão completa o impedia de fazer qualquer coisa... os refletores iluminavam agora a faixa da morte no longo muro e deslizaram sobre as ruas do acampamento. Igor ficou imóvel junto da porta esperando.

— Onde está você? — Uma voz de veludo envolvendo metal. Mesmo naquele disfarce, ouvia-se um retinir.

Igor deslizou dois passos para longe da voz, e pigarreou.

— Espere, Marianka Jefimovna, vou acender a luz.

— Deixe disso! — era uma ordem, em voz alta, mas cheia de tons misteriosos. — Conheço bem o quarto. Lá está a sua cama... vou me sentar nela. E você vai também.

Ele ouviu os ruídos dos passos batendo leves nas tábuas do assoalho, pés nus. O aroma de rosas chegou-lhe no nariz, o doce e forte perfume que a envolvia como uma nuvem invisível.

— Onde está você, Igor Antonovitch? — um riso profundo, um arrulho de pomba satisfeita. — Está com medo, falcãozinho?

Aquela última palavra encheu Igor de cautela. Devagar tateou até a cama e de repente bateu com os joelhos em algo macio. Tentou afastar-se, mas duas mãos famintas agarraram-no segurando-o firme. Os dedos comprimiram seus quadris, fazendo-o gemer de dor. Sentia as longas unhas furarem-lhe a pele como agulhas.

Os dedos fantasmagóricos dos refletores voltaram. Uma penumbra suave encheu o quarto, destacando contornos, separando formas da escuridão. A Dussova estava sentada na beira da cama, vestindo uma espécie de pijama de seda chinesa vermelhoescuro, bordado com animais fabulosos cujos olhos dourados brilhavam. O longo casaco de mangas largas estava aberto na frente. Os seios dela transbordavam, brancos e pesados. O cabelo preto estava amarrado por um lenço de seda, o rosto tártaro estava exposto, extuante de paixão selvagem, tendo nas maçãs do rosto as manchas vermelhas da excitação. Tinha a cabeça jogada para trás, e encarava Igor fixamente. A luz dos refletores movia-se devagar... estava quase claro no quarto.

Pjetkin estremeceu quando, nesse exato momento, ressoou um tiro. O barulho rasgou o silêncio. Houve um segundo tiro, e mais outro. Pjetkin puxava os dedos da Dussova, queria correr até a janela e ver o que acontecia lá fora na faixa da morte.

— Se estiver apenas ferido, tenho de ajudá-lo! — exclamou. — Largue-me, Marianka!

— Quem está ferido?

— Alguém atirou lá fora. Não ouviu?

— Os idiotas estão caçando coelhos. Tem de se acostumar com isso. Os sujeitos nas torres ficam entendiados demais, e quando vêem qualquer movimento apertam o gatilho. Em geral são coelhos que se encontram de manhã junto ao muro, às vezes é uma pessoa...

— E como sabe agora que não é uma pessoa?

— A sirene não está tocando — a Dussova sorria largamente. O esplêndido rosto assustava Igor, os olhos o paralisavam.

— Quando é uma pessoa, dá-se o alarma. Não sei por quê. Um coelho a gente pode assar e comer, gente não. Deviam dar o alarma quando fosse um coelho.

— Por que você é tão terrível, Marianka?

— Eu sou? Oh, meu lobinho, você é jovem, forte, sadio, um homem cheio de seiva... Como posso ser terrível com você? — ela ergueu o corpo. Os seios brancos, como bolas reluzentes, saltaram do traje e afastaram-se. — Todos disseram: a Dussova é um demónio, não é? Um diabo em pessoa! Andaram avisando você, é? Eu sei, eu sei... Todos aqui me odeiam, todos sem exceção. Os prisioneiros, os soldados, os comandantes, os administradores, os oficiais, os chefes. Até os cães me odeiam... e isso significa algo. E você não pergunta por quê? Está-me escutando, lobinho, e talvez esteja com medo de mim? Olhe para mim... vamos, contemple-me bem! Será que sou um monte de sujeira? Tenho uma cara de porco ou tetas de vacas? Minhas pernas são tortas como espadas sarracenas? Isso aqui são quadris de carneiro ou de mulher? Será que o meu traseiro é o de uma égua? Vamos, fale, não fique aí quieto!

— Você é uma mulher, Marianka Jefimovna, em cuja criação a natureza sonhou com uma beleza mais perfeita.

— Isso foi maravilhoso de dizer, meu bem — disse a Dussova.

— Mas ainda assim uma mulher diante da qual se pensa na fêmea da aranha, que depois da noite de amor mata e devora o macho.

— Serei mesmo assim? — ela encostou a cabeça no quadril de Igor, as unhas ainda enfiadas na sua carne. Quando ele se movia, mesmo cautelosamente, esse aperto aumentava, e as unhas entravam-lhe pelos músculos. — Ninguém sabe como eu sou. Ninguém. — O refletor moveu-se adiante, a escuridão voltou pesada ao quarto. Vozes estridentes ressoaram no portão principal.

— Mataram mesmo uma pessoa! — disse Igor com voz rouca.

— Um coelho. Estão brigando para ver a quem pertence.

— Devíamos verificar.

— Não! — Era quase um grito. Ela atirou a cabeça para trás, firmou as pernas nas tábuas do chão, fitando Igor. Os seios pareceram crescer, fora do traje chinês. — Nada de campo de prisioneiros... nada de pensar nesses sujeitos aí fora... Não quero ouvir nada desses ratos, nem ouvir nem ver... Igor, Igoruschka, você não entende? Por uma noite apenas quero ser uma mulher, simplesmente uma mulher. Ah, como invejo essas estúpidas camponesas, essas vacas de quadris largos, que não têm nada na cabeça senão deitar-se na cama ou no fogão e abrir as pernas! Que sou eu diante delas? Será que ainda sou mulher? Quando tive um homem pela última vez? Há meses ou anos? Sim... eu sou a temida Dussova... mas queria finalmente ser uma mulher. Entende isso?

Igor silenciava. Que mulher, pensava assustado. A paixão a faz imprevisível. Quem cair nas suas mãos estará liquidado.

Ela lhe puxou as calças para baixo. Ele ficou despido da cintura para baixo, ali diante dela, cujas mãos lhe apalparam as coxas tateando as partes íntimas. Pjetkin deu um salto para trás, antes que as unhas pudessem meter-se novamente na sua carne. Cambaleou contra a guarda da cama e puxou as calças novamente para cima.

— Você está doida, Marianka? — exclamou. — Ninguém precisa lhe dizer que é uma mulher esplêndida... mas devemos ser colegas, nada mais.

— Está com vergonha porque o vi despido? Meu jovem lobo! — ela riu, atirou-se de costas na cama e encolheu as pernas. Os seios pesados escorregaram para os lados, uma visão que fez o sangue latejar nas têmporas de Igor. — O que é um homem despido? Vejo-os todas as manhãs, montes deles... numa longa fila, uma parede branca. Cheiram a suor, encolhidos, ossudos, com olhos de carneiro, passo diante deles, toco na testa desses percevejos gigantes e grito-lhes na cara: Apto para o trabalho! Apto! Apto! Choram então como cachorros novos, são levados para o mato, a serraria, o rio onde estão construindo o dique. Com isso, terminou o meu trabalho principal... e tenho tempo, muito tempo para refletir sobre mim mesma. Tudo isso é nojento, sou uma pessoa nojenta. Mas sou mulher! Isso não basta?

Estendeu os braços para Igor. Seu rosto fundia-se na escuridão, tornando-se macio e de uma indizível suavidade.

— Com todos esses problemas, não devemos perder a cabeça, Marianka Jefimovna - disse Igor. Procurava um meio de escapar. Para fazer alguma coisa, foi até a porta e acendeu a luz. A Dussova não fechou o casaco, ficou deitada na cama, sem qualquer pejo, apenas piscando os olhos na súbita luz.

— Você quer fugir meu cisne? — levantou a mão depois de metê-la no bolso e segurou a chave. — Venha conquistá-la! Vai cair numa luta ardente!

— Não estou Com Vontade de lutar, Marianka Jefimovna. — Passos e vozes soaram na entrada da longa barraca de pedra. Botas ecoaram no corredor. Portas batiam. A Dussova não se moveu. Estava surda para essa espécie de ruídos. Igor encostou o ouvido à porta. — Atiraram mesmo numa pessoa — virou-se e estendeu a mão. — Dê-me a chave, Marianka! Preciso examinar o homem baleado.

— Está morto. Eles atiram bem, os ”sujeitinhos” lá das torres. Treinam todos os dias, e uma vez por mês temos campeonato de tiro. Todos atiram otimamente.

— A chave, por favor — a voz de Igor ficou dura. Aproximou-se da cama olhando para a Dussova. Ela moveu os pés, seu sorriso inescrutável e perigoso. — Preciso verificar a morte.

— Russlan vai fazer isso. Tem experiência bastante — jogou a chave no ar, apanhou-a de novo, beijou-a e deitou-a entre os seios. Uma mancha feja e escura naquela pele de madrepérola.

Igor tirou o pijama, sem olhar para a mulher, e com a mesma rapidez enfiou as calças, vestiu a camisa e os sapatos. Admirou-se de estar à altura da situação, por não enlouquecer diante da visão de Marian. Ser amante dessa mulher significaria morar ao mesmo tempo no céu e no inferno. Quem queria tal felicidade?

— Não me obrigue a derrubar a porta — disse Igor energicamente, pegando Uma cadeira. — É uma porta leve, camarada.

Posso arrombá-la com a cadeira, e se me atirar contra ela a fechadura cederá. Vão achar isso muito estranho, e encontrá-la na minha cama, nessa situação. Será que a sua autoridade não vai sofrer com isso?

Os olhos dela se estreitaram. Atirou a chave ao lado da cama, endireitando-se e fechou o casaco sobre os seios. Mas ficou sentada na cama, apenas atirou as pernas para fora.

— Igor Antonovitch — disse numa calma perigosa. — Você não sabe o que está fazendo. Pense bem em tudo.

— Lá fora existe um homem ferido.

— E aqui dentro, uma mulher espera por você. O que decide?

— Sou médico, isso é uma resposta?

— E eu estou doente... ansiosa por amor, abraços, plenitude, felicidade, entrega, esquecimento... Lá a morte, aqui a vida... Qual é a obrigação do médico? Que aprendeu na escola? A chorar os mortos... ou curar os doentes? Igor, você vai escurecer o céu... — Perdão, Marianka. — Igor recolocou a cadeira no chão — Mas não posso agir de outro modo. — Pensou em Dunia, nos seus ondulantes cabelos louros, os lábios vermelhos e seu último olhar, quando saíam do galpão. Era uma promessa para toda a vida, um casamento secreto, um entrelaçar de almas. Não posso ser-lhe infiel, pensou.

— Eu gosto de uma moça — disse ele, e soube no mesmo instante que estava transformando Marianka numa fera. — Eu a amo como uma rosa ama o orvalho, como o trigo ama o sol e o vento, como a terra ama a chuva. E agora finalmente me dê a chave.

— Então você vai deixar a Dussova como se fosse uma prostituta velha e malcheirosa? — Ela se curvou, pegou a chave e atirou-a nos pés de Igor. — Se a pegar, vou odiá-lo! Sabe o que significa isso? A Dussova odiará você!

Igor Antonovitch não hesitou um só momento. Mal viu a chave diante de si, abaixou-se.

— Igor! — gritou ela. Levantara-se de um salto, e ficou de pernas abertas parada diante da cama. Ele estremeceu, e levantou os olhos. — Deixe-a no chão! Eu lhe peço, suplico... não a pegue! — Com a selvajeria com a qual a tempestade da estepe levanta os telhados e arranca os embarcadouros das margens, retorce as árvores e despedaça as copas ondulantes, ela arrancou o casaco do corpo, abaixou a calça e ficou diante dele em plena nudez. Tudo nela fremia; o ardor vulcânico reprimido do seu corpo o assaltou como um raio de fogo.

— Ela é mais bonita do que eu? Haverá um corpo mais firme do que este? Ela não será um passarinho magro e depenado?

— Você pode ser uma deusa, Marianka Jefimovna — disse Igor com a língua pesada, movendo-se como chumbo no céu da boca. O suor lhe brotava dos poros, colando a camisa às costas. — Mas o homem é uma coisa estranha: venera a deusa e ama o passarinho depenado. Quem pode mudar isso?

Pegou a chave, abriu a porta, e deixou Marianka Jefimovna sozinha.

Diante do quarto 20, um aposento para reuniões, havia quatro guardas de mãos ensangüentadas. Russlan saía do quarto e torceu a cara quando viu o novo médico.

— Que está acontecendo aqui? — berrou Igor. Estava contente de poder gritar. A pressão no seu interior se tornara insuportável. Um dos soldados aproximou-se e fez posição de sentido.

— Uma tentativa de fuga, camarada doutor — disse o rapaz, com laconismo militar. — Abrimos fogo conforme as ordens. O sujeito morreu.

— E como está morto — sorriu Russlan na porta.

Pjetkin entrou. No chão jazia um vulto encolhido, consumido, jogado ali como um pedaço de carniça. O sangue ainda brotava da cabeça e corria pelo rosto. Mas os olhos e a boca sorriam. Que paz, pensou Igor, que felicidade. Como deve ser pavorosa a vida aqui, se a morte é uma dádiva.

Deixou a sala, olhou para Russlan e apontou para trás.

— O homem vai ser lavado, vestido com roupas limpas e velado — disse. — E imediatamente! Vamos! Não fique me olhando como um sapo... trabalhe!

— Isso é novidade por aqui — disse Russlan, o prisioneiro, assaltante e enfermeiro, metendo as mãos nos bolsos do casaco. — Sim, é besteira.

— Mandei que o lavasse! — berrou Igor. Pegou Russlan pela gola, jogou-o no quarto e deu-lhe ainda um pontapé. Russlan bateu contra a parede e agarrou-se no caixilho da janela.

— Vão colocá-lo na entrada, para que todos o vejam! E a cabeça vai ser enfaixada! Ele não era um fugitivo — disse Igor com voz fraca. — Ele apenas queria morrer.

A Dussova veio pelo corredor, saindo do quarto dela. Devia ter fugido, sem ser notada, do quarto de Pjetkin, durante a confusão. Estava vestida como na inspeção matinal. Botas, a calça azul, uma camisa preta, os cabelos severamente penteados para trás. O rosto largo estava sem expressão, petrificado. Uma mensageira da morte.

— Onde está o morto? — disse ela, com voz metálica. Era o tom do qual todos fugiam rastejando como diante do uivo do vento gelado. Mas não adiantava de nada... pois de uma Dussova não se fugia. Onde ela estivesse, toda a resistência morria.

— Onde deve estar, conforme as instruções — respondeu Igor sem temor. — Tinham-no jogado fora como um saco estourado. Russlan está tratando-o como gente agora.

— Russlan! Aqui! — gritou a Dussova.

— Fique no quarto ou lhe arrebento a cabeça! — berrou Igor.

Que fazer? Russlan decidiu ficar surdo. Sentou-se no chão ao lado do morto e tapou os ouvidos. Eles que se despedacem, pensou. Que se façam em pedaços.

— Ele fica onde está, o bom Russlan — disse Igor colocando-se diante da porta do quarto 20. — Seria um idiota se não o fizesse.

— Saia daí! — Marianka baixou a cabeça. Seus olhos negros lançavam fogo sobre ele. — Deixe a porta livre, Dr. Pjetkin! Preciso ver esse morto, como preciso de três grandes copos de vodca.

— Daqui a uma hora poderá vê-lo até dizer ”chega”, Marianka Jefímovna. Ele vai ser velado.

— Um percevejo desses? Um saco de pele cheio de ossos e tripas?

— Era o professor Stephan Ivanovitch Duchovski. Devia apresentar-se como doente, pela manhã, e encontrar-se comigo. Mas teve medo. Medo do chefe, medo de uma médica, medo de tudo que o rodeava. E correu para a faixa da morte, para finalmente encontrar a paz.

A Dussova silenciou raivosa. Com um aceno de cabeça afugentou os soldados da guarda... eles se afastaram marchando desajeitadamente. A cada passo o seu alívio crescia. Igor Antonovitch abandonou a porta, dando um passo para o lado.

— Pois contemple o morto — disse com desprezo. — Se isso a acalmar, a morte dele ao menos terá um sentido.

A Dussova encolheu os ombros. Virou nos saltos das suas botas reluzentes, e afastou-se. Uma nuvem de perfume de rosas ficou. Nas paredes havia sangue.

Russlan saiu manquejando do quarto. Tinha um balde na mão, e com a outra apertava um grande galo na cabeça.

— Vou buscar água para lavá-lo — disse humildemente. — Também vou-lhe fazer a barba. Vai ficar satisfeito, camarada.

Ninguém no acampamento falou sobre esse incidente. Era como se nunca tivesse acontecido nada de anormal. O defunto professor Duchovski ficou todo o dia na entrada do hospital, colocado em três tábuas sustentadas por três caixotes, mas ninguém lhe deu atenção, oficialmente ao menos. Tanto mais era de admirar que a todo momento houvesse mais flores ao seu redor. O movimento no hospital também era maior do que normalmente... Russlan e os dois outros enfermeiros, mais tarde também Marko, escutaram toda a sorte de queixas tolas, jogaram a maioria dos queixosos para fora, mas era isso mesmo que eles queriam. Enquanto passavam ao lado do professor morto, tiravam depressa algumas flores do bolso e deixavam-nas cair, tudo isso com rapidez de um raio.

Marianka Dussova não saiu do seu quarto. Pela primeira vez o Dr. Pjetkin fez a inspeção da manhã, e pela primeira vez 70% dos doentes estavam realmente doentes. Marko distribuiu os felizardos pelos quartos e salas, e viu-se então que o hospital era pequeno demais. Os doentes ficaram no chão entre as camas, no corredor e em cima ou embaixo das mesas.

— Isso vai dar problemas — profetizou Godunov. — Quer que eu junte nossas bagagens? Não vamos ficar velhos aqui, filhinho.

À noite, o professor Duchovski foi enterrado. Até ali todos no acampamento o conheciam. Os oficiais, os funcionários da administração, os soldados da guarda, padeiros, alfaiates, cozinheiros, lavadeiros, capatazes, chefes e um destacamento dos criminosos do acampamento. Vieram como tropa de espionagem. Até ali, sob as ordens da Dussova, os criminosos tinham sido os mandachuvas no acampamento. Tinham as posições-chave, lambiam as botas dos superiores, e batiam nos políticos como se fossem cães. Isso mudaria agora? De onde soprava aquele vento novo? Duchovski fora um político, um konírik. Será que os koníriks substituiriam agora os blatnys, os criminosos? Isso seria algo totalmente inusitado num campo de prisioneiros russo. Há anos era tradição que os criminosos constituíssem a camada privilegiada nos acampamentos, tanto no tempo dos czares como dos bolcheviques.

O destacamento de blatnys visitou o cadáver no seu cadafalso, entrou em pânico à vista de todas aquelas flores e da simpatia que elas simbolizavam, e fez-se anunciar junto da Dussova. Mas esta não o recebeu. Em vez disso, Marko cuspiu nos dois blatnys que não davam sossego e a todo momento perguntavam pela Dussova, bateu-lhes as cabeças uma na outra quando ficaram malcriados e obrigou-os a ficarem em posição de sentido diante do morto. Depois, os expulsou do hospital com um chicote de couro.

Na barraca da administração, na cozinha, na padaria e do cassino dos oficiais, faziam-se apostas.

Quanto tempo o Dr. Pjetkin vai ficar no acampamento? Quando será devorado pela Dussova? Quando virão buscá-los, ou acabará ele mesmo um prisioneiro?

Seja como for... Pjetkin percebeu a fama que espalhara pelo acampamento quando realizou sua primeira inspeção. Visitou as barracas de moradia, as oficinas, a cozinha e padaria, o depósito, a stolowaja, a banja central, a prisão e por último a seção de quarentena. Voltou ao hospital de rosto pálido. Falara com mais de cem prisioneiros, todos se esgueiraram atrás dele, espreitaram-no, abraçaram suas pernas, beijando-lhe as botas. ”Ajude-nos!” — escutara cem vezes. ”Todos nos enganam, com a comida, a água, a distribuição dos trabalhos, tudo. Seja um ser humano, camarada doutor. Só um ser humano. Nós acreditamos no senhor!” E na estreita cela da casamata do castigo, sentado no escuro, rodeado de seus próprios excrementos, um sacerdote o abraçara e abençoara. Pjetkin mandara que o transferissem imediatamente para o hospital.

A Dussova, invisível também nesse segundo dia, torceu sarcasticamente a boca quando à tarde Pjetkin entrou no seu quarto. Batera e, não obtendo resposta, simplesmente entrara. Marianka estava na sua poltrona de vime, as pernas metidas- nas reluzentes botas longas colocadas sobre a mesa. Lia uma revista, fumando um papyros. Tinha aberto os dois botões de cima da blusa. A abertura branca dos seios aparecia.

— O campo está num estado miserável.

— Sei disso. Todo mundo sabe disso. Até um sanatório na Criméia está melhor aparelhado. Você devia ser médico de estação de águas, Pjetkin.

— As condições higiénicas são uma catástrofe. Duas paraschas — (duas cubas de latrina) — para 130 pessoas! A massa fétida corre pelo corredor. Por que não se constrói uma privada em cada barraca? Há lugar bastante, e a madeira cresce diante da porta.

— Pergunte a Moscou, Pjetkin. Se receber uma resposta, vou canonizar você.

— Eu vou escrever à administração central.

— Isso já foi feito — a Dussova empurrou com a bota um pedaço de papel por sobre a mesa. Cuidadosamente, como se o papel pudesse estar embebido em ácido, Pjetkin pegou-o e leu o texto. Quando depôs a carta na mesa, o rosto da mulher brilhava.

— Então, meu amigo? Satisfeito?

— Você escreveu tudo o que eu também queria relatar.

— E até pus o seu nome embaixo. É só assinar, e a carta vai com o próximo correio para Moscou. E então? Quer saber mesmo, meu belo rapaz? Então virá o silêncio. Interminável silêncio, exatamente como a imensidão desolada da tundra.

Igor Antonovitch sentou-se do outro lado da mesa, pegou um lápis num suporte de madeira — que um prisioneiro esculpira e dera à Dussova cheio de esperança e desespero, para amaciar seu coração — pegou a folha de papel e assinou. Enquanto o lápis riscava o papel, a mulher escorregou para a frente, empurrou o traseiro pela superfície da mesa, deitou as pernas sobre os ombros dele. Os saltos das botas juntaram-se atrás da sua nuca, forçando-lhe a cabeça para a frente.

— Como é o nome dela? — perguntou com voz pesada. Pjetkin tentou olhar ao lado das pernas e coxas dela, mas seu rosto não estava à vista. Ela se recostara para trás, fitava o teto, e os seios tapavam-lhe a cara.

— Quem?

— Quem? O passarinho depenado!

— Dunia.

— Dunia! Nome de camponesa estúpida. Tenho ódio dela!

— Os cabelos dela são como trigo dourado.

— Eu a destruirei! Vou mandar tricotar um xale com seus cabelos. E ele ficará entre nós dois, quando fizermos amor. Vai ficar molhado do nosso suor, ensopado de prazer, eu o torcerei sobre sua boca e você há de beber... Eu a odeio!

Ela recolheu subitamente as pernas, estendeu-as novamente e pisou Pjetkin na testa. Ele caiu da cadeira para trás, virou uma cambalhota no chão, e ficou por um instante ali deitado. A testa lhe ardia como se estivesse em fogo.

Ouviu a risada da Dussova, um riso triunfante, terrível como os gritos de um louco.

Igor ergueu-se, apoiando-se na parede, e saiu cambaleante.

— Vou mandar a carta! — gritou-lhe a Dussova ainda. — A burrice não tem o direito de existir no nosso mundo!

Pjetkin bateu a porta e correu para o seu quarto.

Naquela noite, escreveu uma carta ao pai. Mentiu-lhe pela primeira vez. Sabia que o seu coração se partiria se soubesse da verdade.

”Comecei vários projetos novos por aqui...”, escreveu, envergonhando-se de cada palavra. ”Aqui, nesta terra virgem, a gente está aberto a cada ideia prática e realizável. Principalmente o aperfeiçoamento do atendimento médico é perseguido com entusiasmo. Encontrei aqui muitas pessoas amigas que me tornam mais leve a separação de você, mas não me fazem esquecê-lo. Meu coração está cheio de felicidade. Por que se ri, paizinho? Eu a encontrei... não vai acreditar... num barco sobre o Amur. A mocinha que tanto procuramos daquela vez. Ela se chama Dunia. Dunia. Um som como o canto de um pássaro encantado...”

Então relatou tudo sobre Dunia, escondendo por trás dela toda a sua miséria. Ao fim da carta estava esgotado. A testa, onde a Dussova o atingira, estava inchada e ardia terrivelmente. Levantou-se, mergulhou uma toalha em água fria, e enrolou com ela a cabeça. Quando voltou a debruçar-se sobre a carta, os pingos dágua borraram a escrita.

Pjetkin contemplou-a indeciso. Talvez meu pai pense que são lágrimas, refletiu. O meu Igoruchka chorou. Não quero que pense isso. Amanhã escreverei outra carta. Amanhã, quando surgir um dia melhor.

Amarrotou a carta no punho fechado, rasgou-a em pedacinhos, jogou-a no cinzeiro de metal e queimou-a. Depois ficou olhando sombriamente as chamas, apoiando a cabeça nas mãos. A água da toalha molhada corria-lhe pela nuca, e pelas costas.

Durante cinco dias, o serviço transcorreu normalmente, desde que se tivesse bastante humor macabro para julgar normal a vida num campo de prisioneiros. Os grupos de trabalho saíam todas as manhãs para a floresta, e para a serraria, tropas de construção aumentavam a seção de quarentena, os homens do serviço interno escoavam as barracas, carregavam as paraschas fedorentas para a latrina central, varriam as ruelas do acampamento, plainavam a areia fina na faixa da morte. No quarto dia, um novo médico apresentou-se à Dussova. O comissário de saúde de Chabarovsk, um homem com humor sarcástico, deve-se dizer, notara as queixas que o Dr. Pjetkin lhe fizera ao telefone. Especialmente a falta de médicos o deprimia, e ele indicara mais um médico para auxiliar, que se abateu sobre a Dussova como uma pedra na superfície do oceano.

Pjetkin estava operando... uma pedra na bexiga, do tamanha de um ovo de galinha. O doente berrara tanto na sua barraca, que finalmente o chefe se comovera e acreditaram na cólica de bexiga. Pjetkin fizera imediatamente uma radiografia, e decidira operar.

Estava mesmo abrindo a bexiga e pegando a pedra com uma pinça, quando a Dussova irrompeu na sala se aproximando da mesa.

— Para trás! — exclamou Pjetkin. — Você não está esterilizada!

— E como estou esterilizada! Conhece alguma coisa mais esterilizada do que eu? — gritou a Dussova com voz rouca. — Temos um novo colega! Óculos e nada mais! Se eu respirar fundo, ele fica grudado em gotas no meu nariz! E se atrevem a nos mandar uma coisa dessas! Sabe que bagagem ele carrega consigo? Cinco volumes de Lendas dos Povos! Eu o nomeei diretor da seção de quarentena. Lá ele pode sentar-se nas latrinas e ler histórias para os seus piolhentos. — Ela se curvou, fitou a grande pedra verde e esbranquiçada dentro da bexiga. O operado roncava. Marko controlava a narcose e o pulso. Até Russlan estava lá, ao lado de Igor, vestindo o guarda-pó branco, assistindo. Sorriu encabulado ao perceber um olhar furioso da Dussova. Sentia-se estranho mas inteligente. — Como numa clínica de universidade — disse ela de voz rouca. — Não pense que lhe vão agradecer por isso...

— Não sei.

Ela recuou, encostando-se na parede, e ficou observando o transcurso da operação. Não tirava os olhos de Pjetkin.

À noite, Pjetkin tomou uma motocicleta emprestada do guarda diante do portão, e foi até Issakova. Deram-lhe o veículo sem pestanejar, piscaram-lhe os olhos em sinal de camaradagem, e disseram maliciosamente:

— Não seja muito mau com ela, camarada doutor... — Era assim em toda parte: o inimigo da Dussova era o amigo de todos.

Uma hora mais tarde a desgraça estava feita. A Dussova procurou pelo Dr. Pjetkin. Usava robe mongol amarelo, e, via-se pelas suas pernas e pelas formas transbordantes dentro da seda, que não usava mais nada. Correu pelo hospital, sem qualquer vergonha, esbofeteou os atónitos doentes, espantou os enfermeiros em todas as seções, e gritava com sua voz metálica:

— Onde está Pjetkin? Procurem-no, vamos, procurem-no! Chegou um importante chamado para ele!

Era uma mentira, mas quem iria pesquisar numa hora daquelas? Foi Marko quem esclareceu a coisa toda. A Dussova também apareceu junto dele, como uma tempestade amarela do deserto. Marko já estava na cama, lendo um livro sobre o seu tema favorito: Anatomia.

- O doutor saiu — disse ele fechando o volume.

— Quer dizer, saiu? — berrou o demónio negro.

— Há diversas explicações, irmãzinha. Um diz que vai visitar a vovozinha para tomar chá com ela, o outro acha que foi fazer uma viagem ao redor do mundo. Um diz que vai para o inferno, outro que para a felicidade. Parece-me que o doutor acaba de ir ao encontro da felicidade.

A Dussova retorceu a boca como se tivesse dores no ventre, e sentou-se na cama.

— Foi visitar a sua putinha, hem? — perguntou num rancor sombrio.

— Na verdade ela é uma pombinha dourada — Marko revirou os olhos sonhadoramente. — Ele está de parabéns. — Piscou os olhos encarando a Dussova, lançou um olhar atrevido pelo robe amarelo, contemplou insistentemente a convexidade sedutora dos seios, as pernas nuas e o rosto vulcânico, desfeito de ódio. — Eu amo Igor como a um filho — disse depois. Havia um aviso na sua voz. — Ele é inteligente, talentoso, um génio, posso dizer. Já vi algumas centenas de médicos operando... a gente acaba aprendendo de tanto olhar por cima dos ombros deles na Anatomia... Igor Antonovitch foi sempre o melhor de todos. E agora está-se estragando num campo de trabalhos forçados! Devia ter compaixão dele, irmãzinha.

— Não me chame de irmãzinha, seu bode vesgo! — gritou a Dussova. Bateu com os punhos na guarda da cama, e martirizava-se com seu ciúme. — Que é que estava lendo?

— Anatomia. A ciência de dissecar pessoas. Este é o capítulo sobre as entranhas, irmãzinha. Assunto altamente interessante. Quando se pensa que o intestino não é apenas uma mangueira que empurra os excrementos para o ânus, mas também...

— Cale a boca, sapo nojento! — gritou a Dussova, arrancando o livro das mãos de Marko. Godunov passou as duas mãos pelo enorme crânio calvo.

— Comparação grosseira, irmãzinha — disse Marko, fazendo-se de ofendido. — Um sapo não tem as mesmas coisas para lhe oferecer que eu tenho. — E antes que a Dussova pudesse atirar-lhe um novo insulto, ele jogou as cobertas para o lado e se apresentou a ela, como um bebê recém-nascido.

— Mas que porco! — A Dussova levantou-se de um salto, mas o anão foi mais rápido. Agarrou o robe de seda amarelo. Puxou para um lado e a Dussova puxou para o outro.

Não admira que a roupa não resistisse àquela luta silenciosa e se rasgasse. E de repente a Dussova estava nua, numa beleza magnífica como uma alva montanha de prazer, pensou Godunov, que rolou pelas tábuas do chão sacudindo um farrapo de seda amarela como uma bandeira conquistada. Parecendo um lobo em sua caçada, pôs-se sobre as pernas novamente, rápido como um raio, baixou a cabeça e saltou naquela carne branca. Acertou a Dussova no estômago, ela oscilou, caiu sobre a cama, sufocada, arranhando a careca de Marko enquanto ele forcejava em cima dela como um cão sobre a cadela.

Marianka Jefimovna resistiu como uma mulher pode resistir, com mordidas, empurrões, pontapés, socos, mas não disse muita coisa. Uma Dussova não grita por socorro.

— Seu polvo nojento! — arquejou ela, dando-lhe um soco entre os olhos. Marko grunhiu como um javali, retorcendo-se sobre o corpo dela, agarrando-lhe o seio esquerdo. Ela tentou afastá-lo com um impulso do corpo, mas, embora fosse difícil de acreditar, Marko era um bom cavalheiro, sabia apertar as coxas como um cossaco, e apenas ria no rosto desfeito debaixo do seu. Estava montado como numa égua que relincha raivosamente, escoiceando com as quatro patas e corcoveando.

Com um gemido, tão cheio e profundo que o próprio Marko parou por um segundo, finalmente a Dussova esticou o corpo e rodeou com os braços o corpo do anão.

— Isto é como a morte — balbuciou, enquanto ele se retorcia como um louco sobre a sua carne branca. — E você não vai sobreviver...

Só ao amanhecer, a Dussova o deixou, esgueirando-se para o seu próprio quarto, atirou num canto o traje rasgado, e pôs-se diante do espelho. Seu corpo ainda tremia, os arranhões na pele começavam a inchar e arder como se estivessem cheios de pimenta.

— E você ainda por cima gostou — murmurou, terrivelmente sombria. — Até que ponto cheguei... — E cuspiu na sua própria imagem ao espelho.

 

Sadojev aborrecera-se o dia todo, na sua qualidade de presidente da divisão de produção da aldeia. Incomodava-o a falta de união entre os camaradas. Tratava-se de determinar uma nova organização no preparo dos campos, pois os antigos tinham-se tornado improdutivos havia dez anos, mas aqueles camponeses de cabeça dura não entendiam isso e continuavam preparando suas lavouras como seus tataravós faziam. Sadojev passara algumas horas berrando, soltara uma rajada de pragas e estava cansado. Logo no momento em que esticara as pernas debaixo da mesa saboreando uma noite calma e quente, ressoou na rua, como uma metralhadora enferrujada, uma motocicleta que dava estouros terríveis.

Sadojev ergueu-se de um pulo, e correu à janela.

— Quem é que tem motocicleta por aqui? — gritou, como se as mulheres soubessem a resposta. — Só o secretário do distrito! Só falta ele chegar, para a minha felicidade ser completa!

Vestiu o colete bordado, pôs o gorro redondo, alisou as pontas do longo bigode. Suspirou, olhou tristemente a sua mulher, Anna, e foi para diante da casa, como um cão batido.

Deparou então com o Dr. Pjetkin, que amarrara a motocicleta como um cavalo. A cara de Sadojev ficou ainda mais carrancuda.

— Foi o senhor que veio com esse monstro barulhento? — indagou, postando-se diante de Pjetkin, de pernas abertas. — Que deseja aqui, camarada?

— Eu tinha prometido voltar — disse Pjetkin alegremente.

— Ah, sim. É, sim — Sadojev não se afastou do lugar. — Ainda não nos habituamos a ver promessas cumpridas.

— Se fosse possível, eu gostaria de falar com Dunia.

- Estamos mesmo comendo. Tem fome, camarada? Podemos convidá-lo? Mingau de milho com pepinos.

Virou-se, caminhou com as pernas tortas até à casa, parou na entrada e berrou:

Visita! Igor Antonovitch!

Depois ajudou Pjetkin a tirar o casaco e aborreceu-se porque Dunia abriu a porta num arranco e se precipitou para fora do quarto, como se o fogão tivesse explodido. Atrás dela, apareceu Anna e também ela tinha os olhos brilhantes. Que vacas, pensou Sadojev indignado. Sacudindo as tetas como se estivessem vendo bom pasto no campo. Meteu-se no meio de Dunia e Pjetkim, mas como ambos eram mais altos, fitaram-se por cima da sua cabeça.

Ficaram calados, só os olhos falavam, dizendo tudo. Que sofrimento a espera! Por que, Igoruschka? Uma árvore pode murmurar com sua copa ao vento, as ondas do rio podem bater nas margens, areia rodopia na tempestade, a neve pode abraçar todas as coisas vivas. Só nós nos escondemos, rastejando como um animalzinho na sua toca de inverno, e sonhamos com o beijo orvalhado do vento da primavera. Oh, Igoruschka, eu te amo... Deram-se as mãos, Pjetkin segurou a dela quando quis retirar novamente os dedos. Anna Sadojeva voltou correndo a cozinha e pôs uma frigideira grande no fogo. Bateu quatro ovos e cortou longas fatias de toucinho.

- Você faz de uma noite comum um momento de festa, Igor Antonovitch — disse Sadojev formalizado, farejando o ar. — A mamãe está fritando ovos e toucinhos, isso é uma distinção muito grande, acredite...

Foram até a cozinha, Dunia e Pjetkin de mãos dadas como duas crianças tímidas, e ela o empurrou para o canto do banco. Sobre ele pendia um velho ícone numa tábua na qual ardia uma lamparina. Era na verdade uma grossa vela num vidro vermelho.

- Eu prometi vir — disse Igor mais uma vez, como se tivesse de pedir desculpas. Olhou para Sadojev, que enchia o seu cachimbo feito por ele próprio, com um enorme bojo no qual desaparecia uma montanha de fumo. — Tentei quatro vezes anunciar minha vinda, mas ninguém atendeu na sede do partido.

— E como poderia? — disse Sadojev, acendendo o seu cachimbo. Uma fumaça amarelada subiu do cachimbo como se estivessem cozinhando enxofre. — Só posso me dedicar à papelada duas horas por dia. Você já viu um cavalo, um boi ou um porco que lhe dissesse: ”Caro Dimitri, temos fome mas vá primeiro assinar seus papeizinhos”. Mas o pessoal superior da administração pensa assim. Por isso, o velho Simeão passa o dia sozinho ao telefone. E ele tem medo do aparelho. Quando toca, faz o sinal-da-cruz e corre para o quarto ao lado. É uma miséria, esse homem! Já lhe expliquei que é um aparelho que não dá tiros nem choques. E a voz que se ouve vem de muito longe. Mas ele não entende mesmo. Acredita ainda que há um homenzinho naquele maldito fone. Para ele isso é feitiçaria, por isso foge.

Comeram ovos com tiras de toucinho, mingau de milho e pepinos com um cheiro delicioso. Dunia fitava seguidamente Pjetkin, com os grandes olhos azuis luminosos. Ele a contemplava enquanto ela comia... com faca e garfo, como se come na cidade, e não como Sadojev, que espetava pepinos inteiros com o garfo e mordia-lhes os pedaços, estalando a boca, enquanto o bigode pingava.

Mais tarde, depois que Pjetkin falara com hesitação do seu trabalho no Campo, desviado do assunto pelas perguntas de Sadojev, tomaram de novo o vinho agridoce de bétula e Pjetkin fumou um cigarro. Dunia desaparecera, sussurrando com a mãe Anna, o que deixou Sadojev inquieto.

A fumaça do seu cachimbo pairava pesada debaixo do teto.

A maior parte da nossa vida é hábito, equilíbrio, semelhança. Come-se, bebe-se, faz-se a digestão, dorme-se, e trabalha-se, ama-se e morre-se, vai-se ao fogão ou à mesa, anda-se diante da casa e do galpão, caminha-se estrada acima e estrada abaixo, a gente se lava, se barbeia, muda as meias, penteia o cabelo, senta-se na cadeira do escritório, incomoda-se com o chefe, xinga a mulher e lê jornal, e sempre, sempre a mesma coisa, dia após dia... Mas um dia, amigos, um dia nessa vida cinzenta cai um raio e tudo se transforma na alma, e foi exatamente isso que aconteceu com Pjetkin.

Dunia voltara. Mudara de roupa, e uma princesa de contos de fadas não poderia ser mais linda. Usava um traje mongol azul-cobalto, bordado com flores, calças largas metidas em bolinhas brancas e macias, um coletinho que apertava o busto, preso na frente por uma corrente de ouro. A massa de cabelos louros estava metida numa touca redonda de seda. Até os lábios estavam pintados de vermelho, o que Sadojev observou contrariado. Mas estava orgulhoso da filha. Que pai não estaria? Onde havia uma beleza maior do que a dela? E ainda por cima era médica, letrada, uma cabecinha muito inteligente.

O pai a conservava sob vigilância onde quer que fosse, especialmente quando os soldados e oficiais do acampamento militar próximo estavam de folga e perseguiam as mocinhas de Issakova como galo atrás de galinhas. Então ele não saía do lado da filha, carregando duas pistolas no cinturão e uma espingarda nos ombros, fazendo uma cara tão furiosa que todos só se atreviam a lançar no máximo um tímido olhar a Dunia.

Mas hoje era tudo diferente. Sadojev sentava-se desamparado no seu tamborete, segurando o cachimbo, quando Dunia dizia como quem não quer nada:

— Vamos até o rio, paizinho. Está uma noite quente.

E como está quente, pensou Sadojev furioso, sem poder fazer nada, pois isso ofenderia o direito do hóspede. Tão quente que as éguas relincham e os garanhões batem com a cabeça contra a parede do estábulo. Até os camundongos assobiam chamando as femeazinhas, e os sapos grunhem como velhos lascivos.

Sadojev olhou para a mulher em busca de socorro. Mas Anna Sadojev estava mais maluca que todos os outros, brilhando como uma panela areada, mãos cruzadas sobre o avental como se aguardasse a bênção do padre.

Sadojev suspirou alto e ergueu-se. Esticou o corpo como um cão que desperta, acionou os músculos do braço, meteu o gorro firme na cabeça. Mas não foi mais longe que isso, pois a voz de sua mulher se fez ouvir de junto do fogão.

— Você tem algo em mente, Dimitri Ferapontovitch?

— É verdade! — rosnou ele, parando diante da porta. — Tenho algo muito importante em mente...

— Uma coisa ruim...

— Isso é um ponto de vista seu. Vou atrás deles e cuidar para que não aconteça nada com Dunia. Se ele a deitar no capim, torço-lhe o pescoço como a um pombo!

— Você vai é ficar sentado aqui quietinho fumando cachimbo — disse Anna com determinação. — Dunia gosta dele.

— E se trouxer alguma coisa para casa debaixo da saia? — berrou Sadojev. — Quer que eu fique cego de vergonha?

— Quem foi atrás de nós quando fomos até o rio, hem? Ainda se lembra, Dimitri?

A mãe Anna sentou-se no seu canto predileto sorrindo sonhadoramente. As lembranças com Sadojev eram sempre como o rugir das florestas. Taiga.

— Foi num domingo. Eu estava com um vestido amarelo rodado, e foi muito simples para você levantá-lo por cima da minha cabeça...

— Sempre essas velhas coisas! — Sadojev caminhou de volta ao quarto e sentou-se à mesa. — Tenho vontade de cuspir na cara desse Pjetkin! — disse rangendo os dentes. — Um médico de campo de concentração! Um sujeito desses em nossa família. É de arrancar os cabelos! E nós ficamos aqui sentados como moscas grudadas no visgo.

A lua tecia fios prateados no rio, quando Dunia e Igor se sentaram na margem, abraçados.

No caminho pela aldeia pouco haviam falado. Issakova dormia. Só atrás de algumas venezianas brilhava a luz, uma vida fosca sob os telhados baixos, cobertos com grossas telhas. Dunia apontava as luzes e sabia histórias sobre todas.

— Ali mora Prokenov — disse ele. — Vive de noite e dorme de dia. É um doido. Esculpe figuras de ossos e tece uns panos inúteis que ninguém compra. Há fardos inteiros amontoados na sua choça. Está esperando por outro tempo, diz ele, em que se pagarão 10 rublos por um metro de tecido.

”Ali adiante mora Marija Klatovna. A coitada sofre de asma, fica sentada na cama virando os olhos e arquejando. Estou tratando dela como posso. Não tem mais salvação. Cada manhã, quando o sol nasce, a asma desaparece e ela fica diante da porta cantando — Dunia riu baixinho enfiando o braço no de Igor. — Como as pessoas são estranhas, até aqui em Issakova.

— A maior maravilha é você — disse Igor. — Incompreensível, inesgotável...

Era a primeira vez que se beijavam sem que depois o encanto fosse desfeito. Ela passou os braços pelo pescoço de Igor. Ele a abraçou tão fortemente que ela deu um gemido, quase um pipilar, como um passarinho assustado.

Igor não era um santo — naturalmente já tivera suas experiências, afinal tinha vinte e seis anos e seria de admirar que só conhecesse mulheres da sala de Anatomia ou da mesa de exames. Em Kichinev tinha havido quatro moças uma atrás da outra, amigas que deixavam cair as saias diante dele. Tinha havido também Ljuba, uma viúva robusta, de pele lisa e corpo ardente, que pôs Igor numa severa escola e lhe aplicou um tumultuoso exame de amor. Mas as experiências apenas atingiam sua pele, nunca se aprofundavam no seu coração...

Agora, naquela noite quente no Amur, ele sentia o verdadeiro amor, que atordoa os sentidos. Não havia nela nada de selvagem. Era antes um sentimento de felicidade, uma embriaguez, uma deliciosa dor.

Continuaram andando abraçados para o rio, parando às vezes para se beijarem. Era como se bebessem felicidade, e a cada gole sua sede crescia.

Na praia lisa deitaram-se na areia entre tufos de capim. A majestática beleza do rio prateado, com a outra margem mergulhada na noite, o sussurrar suave das ondas, o ciciar do vento morno, deslizando sobre seus corpos estendidos, os ruídos esmaecidos que brotavam da noite, eram como música suave.

Igor virou-se para Dunia e pôs as mãos nos seios dela. Ela se distendeu àquele toque e fechou os olhos. Enlaçou-o com os dois braços, puxou-o para si e saboreou o peso do seu corpo. Quando ele começou a desabotoar-lhe a blusa, as pálpebras dela tremeram e seus lábios se apertaram. Os músculos das longas pernas retesaram-se fechando o regaço. Era a primeira vez que um homem a tocava, a sensação era maravilhosa mas também muito angustiosa. Um estremecimento ardente correu-lhe dos seios para o ventre e as pernas, e quando os seios ficaram expostos e Igor os beijou, ela estava perto de desmaiar.

— Como você é linda... sussurrou Igor. — Indizivelmente linda. Conquistei um anjo...

Ele se ajoelhou sobre ela, puxou as calças do seu traje mongol pelas pernas, tocou-lhe o corpo com os lábios, seguindo cada redondeza, cada concavidade, cada segredo daquele ventre de madrepérola, deitou o ouvido no coração dela e respirou o perfume da sua pele, um aroma de laranjas ao sol.

— Igor... — disse ela com uma voz humilde. — Igor... o que está acontecendo conosco... estou com calor e com frio...

Dunia segurou-o numa última recusa trémula. Seus olhos gritavam diante dele, como estrelas explodindo na fronteira do aniquilamento.

Assim os dois não perceberam, já que para eles o mundo não existia naquele momento, que uma sombra deslizava da aldeia para o rio. Um traço longo e fino na escuridão da noite, silencioso como as patas de um felino. Uma mancha verde-castanha que se espichava, assumindo pernas e braços e uma cabeça de cabelos cortados rente.

Depois ergueu-se bem, deu dois longos passos e riu, alto e provocadoramente.

— Pouparam-me o trabalho. Agora afaste-se, idiota, ou vou amassar-lhe a cabeça como um ovo choco!

Ficou ali de pernas abertas contra o céu noturno, ameaçadoramente alto. Dunia se jogou sobre o ventre com um grito, Igor se afastou com a mesma rapidez, saltou sobre as pernas precipitando-se entre ela e a sombra.

Reconheceu imediatamente o uniforme, as largas ombreiras, as estrelas de prata: um oficial do acampamento das florestas. Um lobo solitário e faminto naquela noite.

— Pegue as suas pernas, seu vagabundo, e desapareça. Pegou e depenou o passarinho para mim, mas eu vou assá-lo! — disse ele rouco, olhando Dunia. Ela jogara a roupa sobre o corpo, impulsionou as pernas e rolou pela rampa suave até a margem do rio.

— Então o passarinho ainda está batendo asas! — berrou o oficial. — Vou lhe quebrar bem depressa as asinhas.

Quis saltar atrás dela, mas Igor se pôs no caminho, agarrou-o no peito e empurrou-o para trás.

— Corra para a aldeia, Dunia! — gritou. — Nunca matei um porco, mas não vai custar muito!

Mas Dunia ficou. Acocorada na margem, uma grande pedra em cada mão. Armas miseráveis, mas na hora do desespero até um talo de grama se transforma numa espada.

— Você se atreve? — gritou o oficial. — Atreve-se mesmo, seu idiota estúpido? Já viu como se torce o pescoço de uma galinha?

Ficaram os dois frente a frente, a dois passos de distância apenas, abaixados e aguardando que o outro saltasse primeiro.

— Cachorro! — disse Igor cheio de desprezo. Precipitaram-se quase ao mesmo tempo um sobre o outro, entrechocaram-se no ar e caíram para trás, com um som de duas tábuas que batessem uma na outra. Depois, respiraram fundo, encolheram as cabeças nos ombros e arremeteram de novo.

Embora fosse quase meia-noite, Sadojev continuava sentado diante da mesa escovada, fumando a quarta cachimbada. Tossindo, com os olhos vermelhos, Anna estava encostada ao fogão e não arredava o pé. Sadojev olhava para ela de esguelha sobre o bojudo cachimbo.

— Não está cansada, Mamãe? — perguntou casualmente.

— Não mais que você, Papai.

— Outros dias a esta hora já está na cama suspirando nos sonhos.

— E você já está abrindo a boca e roncando como uma serra.

Anna, disposta a brigar, limpava com um pano a chapa de ferro, mexia aqui e ali, mas não saía do lugar.

— Noite quente esta — murmurou Sadojev apertando o polegar no cachimbo. — Não dá para ficar deitado na cama. Vou dar uma olhada nas ovelhas. — Queria erguer-se, mas Anna imediatamente jogou o pano para um lado, pegou o seu lenço de cabeça pendurado num prego. Sadojev sentou-se de novo no banco soprando furioso uma nuvem de fumaça.

Ele sentia uma estranha inquietação. Antes que uma tempestade despedace o céu com seus raios, as vacas se reúnem, o cachorro gane e as ovelhas parecem loucas. Os cavalos dançam e relincham no estábulo, e até as galinhas se escondem. O mesmo acontecia em Sadojev. Alguma coisa estremecia debaixo da sua pele. Estava inquieto, olhava em torno com olhos chamejantes, forçava-se a não coçar o corpo todo, como se estivesse atacado de cem pulgas.

— Vamos ao estábulo — disse e ergueu-se de um salto. — Estou-me lembrando de que deixei o esterco de cavalo na entrada.

— Ninguém vai roubá-lo — respondeu Anna. — Mas você está inquieto como um bode na primavera. Pois então vamos.

Deixaram a casa, atravessaram o pátio e abriram a porta rangente do galpão. Uma escuridão pesada, quente, fantasmagórica envolveu-os.

— Ah, é Baba! — exclamou Sadojev quando um cavalo relinchou na treva e escoiceou a parede de madeira. — Vá ver o que há com ela. O meu pressentimento! Eu a observei esta tarde, essa égua andava como um fantasma, com olhos úmidos e pernas fracas.

Tirou a lanterna do prego, acendeu-a, colocou-a num caixote de ração e agradeceu a Deus por ter Baba relinchado naquela hora dando-lhe aquela boa ideia. Esperou que Anna se curvasse debaixo do cavalo, apalpando-lhe a barriga com as mãos, virou-se rápido, deu dois saltos até a porta, pulou para fora, fechou-a atrás de si. Ouviu Anna dar um grito, jogar algo contra a porta e praguejar.

— Um homem tem mesmo mais inteligência — disse Sadojev a meia voz. Depôs o cachimbo num toco de árvore no qual rachava lenha, puxou o barretinho para a testa e correu até o rio.

Aonde vai um casalzinho quando quer ficar só? Raciocinou e pegou a direção da velha grua enferrujada. Dimitri, seja sincero: se você tivesse trinta anos menos,, e o calor da noite lhe entrasse pelos ossos, que faria? Três caminhos a escolher: o depósito de madeira atrás da serraria, mas ninguém quer voltar para casa com serragem nos cabelos para ter de escovar-se. O galpão ao lado da grua. Mas lá há ratos e camundongos, e, ainda que digam que para os amantes o mundo desaparece, não devemos pôr nosso esquecimento à prova com uma ratazana. Há as dunas junto ao rio, concavidades macias e forradas de capim, onde os grilos cantam. Sadojev decidiu observar a margem do rio e andar silencioso como uma raposa.

Mas não foi preciso. Mal se afastara do caminho e andava entre os arbustos ralos, escutou vozes vindas do rio. Vozes altas, que não combinavam com aquela noite.

Ah, pensou Sadojev. Já estão brigando. Bom começo, que terá um rápido fim.

Mas a situação se apresentou diferente, quando Sadojev saiu silenciosamente dos arbustos. Viu dois homens lutando, batendo-se com os punhos, agindo como se quisessem se matar. Seu arfar e os insultos que se lançavam excitaram Sadojev duplamente. Um dia, na juventude, fora um homem famoso como grande brigão. Por pequeno que fosse, a sua coragem o fazia um gigante; por outro lado, como soviete da aldeia, era responsável pela ordem em Issakova. O que acontecia diante de seus olhos era uma briga dentro dos limites da aldeia.

Os dois lutadores estavam tão envolvidos um com o outro que nem perceberam a aparição de um terceiro homem.

Sadojev aproximou-se, empurrando o gorro para a nuca. Veja só, o doutor! E o outro é um oficial! Que significava aquilo? Sadojev queria mesmo intervir apartando os contendores quando Dunia o reconheceu e gritou com voz estridente:

— Ele vai matá-lo! É mais forte! Ajude-o, paizinho!

Sadojev estremeceu como debaixo de uma patada de boi, correu para a margem e envergonhou-se desmedidamente ao ver Dunia nua e descabelada junto da água, com dois grandes seixos nas mãos.

— Ele nos atacou! — gritou Dunia, quando ele se pôs a procurar pela sua roupa, que estava amassada sobre a areia, como um passarinho colorido estrangulado.

— Quer que o mate? Por que não o ajuda? Foi um herói de guerra ou um miserável covarde? Olhe, Igor vai cair...

Sadojev não quis mais saber quem era o culpado, quem despira a sua filha, de onde viera o oficial... Os acontecimentos o forçaram a intervir e primeiramente segurar o mais forte, antes que provocasse mais desgraças. Correu até o lugar da luta, arrancou da areia um bom pedaço de madeira rodou-o no ar sobre a cabeça e berrou:

— Chega! Para trás, camaradas!

— Ah, mais um rato! — gritou o oficial. — Quantos animais há por aqui?

Sadojev sempre fora um homem orgulhoso. Como não tivesse motivos para expor sua beleza duvidosa, satisfazia-se com a honra masculina, polindo-a como os arreios de prata que seus cavalos usavam quando puxavam a tróica no Natal. Quando Sadojev foi nomeado soviete da aldeia e introduziu novidades em Issakova — para que havia os livros que ensinavam como deviam ser os tempos modernos? — a sua honra ficou mais sensível ainda, pois qualquer oposição a sujava brutalmente. Durante meio ano tentou impor à força dos próprios punhos o fato de que as reformas são necessárias e vantajosas — até que mesmo Plonkin, o ferreiro, o mais tolo da aldeia, também o entendeu.

Pois nessa noite quente alguém chamara Sadojev de animal. Em circunstâncias normais teria respondido com igual fantasia, mas aqui tudo era confuso, sua filhinha estava nua acocorada junto ao Amur gritando sem parar:

— Ele nos atacou! Ajude-nos, paizinho! — e o violento intruso, de joelhos, tentava agora estrangular Igor.

— De pé! — gritava — De pé, canalha! Vou te arrasar!

Sadojev respirou fundo. Depois sacudiu o pedaço de madeira sobre a cabeça para tomar impulso, rangeu os dentes de raiva, e chegou a pular quando bateu na cabeça do oficial. Atingiu exatamente o meio do crânio com a quina, como se quisessem rachar lenha com um machado cego. Enquanto Sadojev rolava na areia levado pelo próprio impulso, o oficial deu um rugido rouco, pegou a cabeça com as duas mãos e viu o mundo mergulhar em sangue. Caiu para trás e já estava morto quando sua cabeça amassou os talos de capim do chão.

Sadojev saltou de pé, colocando ao ombro sua perigosa ripa, e contemplou o morto. Ao seu lado Dunia estava meio deitada sobre Pjetkin, chamava seu nome, beijava-o, acariciava-lhe o pescoço inchado, sacudia-lhe a cabeça nas mãos. Com isso, Igor deu um suspiro forte, abriu os olhos e quis continuar batendo, atirou Dunia longe, e precipitou-se sobre o defunto como um salmão procura saltar da água.

— Deixe-o, Igor — disse Sadojev imperturbável. — Ele não sente mais nada. Quem pensaria uma coisa dessas: uma cabeça tão grande rebenta como um pedaço de papelão. Voltou-se então para a filha. Contemplou sua nudez com olhos apertados, lembrou-se de que era pai daquela bela criatura, baixou o pedaço de madeira e deu-lhe uma forte pancada nas nádegas nuas.

— Onde é que estamos, hein? — berrou já arrependido daquele gesto, querendo na verdade apertar a filhinha ao peito. — Foi isso que você aprendeu em Chabarovsk? Ensinaram-lhe a sacudir as tetas de fora? Morro de vergonha por ter botado uma coisa assim no mundo!

— Ele nos assaltou! — exclamou Dunia e pegou o pedaço de madeira e puxou-o, fazendo Sadojev perder o equilíbrio. Ele tropeçou, recobrou-se e deixou a madeira cair. Pjetkin ainda cambaleava. Ar, pedia ele, ar! — Meu Deus, que ar delicioso! Primeiro quero respirar, velhinho, depois vamos continuar brigando — Não posso mais ver isso! — Sadojev continuou suas lamentações. Arrancou o barrete da cabeça, tirou seu casaco remendado e atirou-o para Dunia. — Pare! — berrou. — Pare, sua desavergonhada! Não se vai vestir? — Depois virou-se levantando areia do chão com os saltos das botas, e fitou Pjetkin com olhos belicosos: — Ele quis desonrar Dunia?

— Sim — respondeu Igor cansado. Toda a cabeça lhe zumbia. — Mas alguns segundos, e teria chegado ao fim.

— E você a protegeu?

— Quem não a teria protegido?

— E você fala como se estivesse mijando contra uma árvore! — berrou Sadojev. — Ele era um oficial! Sabe o que isso significa? Amanhã de manhã vão dar por falta dele, procurá-lo por toda parte, revirar tudo, interrogar-nos a todos, entrar nos nossos porões e galpões, casas e fardos de feno, e será uma sorte se não olharem também debaixo da saia das nossas mulheres... e você fica aí sacudindo o nariz e achando tudo natural. Ninguém ataca um oficial! Mas você o fez, meu valente irmãozinho. Você protegeu Dunia. Ninguém sabe como isso me é difícil, mas tem de ser.

Abraçou Pjetkin, baixou-lhe a cabeça, pois era muito menor, e beijou-o nas duas faces. Com a mesma rapidez, soltou-o de novo, enfiou as mãos nos bolsos e armou uma cara zangada.

— Pois aí está ele. Um sujeito pesado. Temos de levá-lo daqui. Esse canalha nos dará muito trabalho! Vamos!

Sadojev pesou diversas possibilidades de fazer desaparecer o cadáver. Mas a mais segura de todas era o rio.

— A natureza é piedosa — disse pegando a cabeça amassada do oficial. — Em algumas semanas os peixes o terão comido.

Arrastaram o morto até o bote que Sadojev tinha amarrado perto da gruta. Tiveram de largar sete vezes o pesado corpo do oficial e deitá-lo no capim antes de alcançarem o bote. O serviço de Dunia era apagar os rastros atrás deles. Espalhou areia limpa no lugar em que o crânio do oficial se partira e havia uma grande poça de sangue, pôs alguns seixos por cima, e até plantou alguns tufos de relva. Sadojev, que após o terceiro descanso voltou correndo para verificar o trabalho da filha, estendeu o braço imperiosamente, dizendo:

— Saia para o lado, filhinha, alguns metros adiante. O que vai acontecer agora não é para olhos de criança.

Esperou que ela se afastasse alguns passos, desabotoou a calça e urinou sobre o chão preparado. Nenhum cão terá faro agora, pensou satisfeito. Era preciso saber ajudar a si mesmo, e os velhos métodos caseiros eram ainda os melhores.

Duas horas passaram até que Sadojev alcançasse, no meio do rio, o lugar onde queriam mergulhar o corpo. Para segurá-lo para sempre no fundo, tinham-lhe amarrado duas enormes pedras, enfiadas num saco com o corpo que aparecia a partir dos quadris.

— Ponham a parte de cima do corpo sobre a borda, empurrem nos pés. Cuidado, meus queridos... logo estará na água. Mergulhem-no na eternidade — comandou Sadojev.

Mas a ordem devia ter sido mal compreendida. Sadojev, quando o morto passou por ele escorregando, recebeu um súbito golpe contra a barriga — era o braço do oficial ao cair sobre a borda — e não houve como segurar-se, o velho soltou um grito de falcão vendo um coelhínho, e caiu na água junto com o cadáver, desaparecendo com a mesma rapidez.

Mas havia uma diferença... enquanto o homem no saco cheio de pedras continuava descendo depressa, para o fundo do rio, Sadojev esperneou como um cachorro e reapareceu na superfície.

— Socorro! — berrou. — Querem que eu me afogue?

Pjetkin e Dunia agarraram-no ao mesmo tempo. Igor pegoulhe a cabeça e Dunia a camisa. Assim puxaram-no de volta ao barco — ele caiu no fundo, esticou-se e revirou os olhos assustadoramente.

— Vou-lhes rogar a praga do sétimo inferno se contarem o que aconteceu — disse com voz entrecortada. — Ninguém sabe que não sei nadar. Poupem-me essa vergonha.

Ao amanhecer, voltaram para Issakova. Anna Sadojev esperava-os diante da casa, comendo uma maçã. A porta do galpão fora arrancada das dobradiças e além disso ela destruíra, com um machado, o maior orgulho de Sadojev: uma gamela para manteiga, esculpida a mão e pintada com motivos mongóis.

— Estou trazendo um filho para casa, Mamãe! — gritou Sadojev ainda na cerca. — Abre os braços e aperte-o ao coração.

Anna Sadojev correu-lhes ao encontro, abraçou-se ao pescoço de Pjetkin e chorou como só as mães sabem chorar quando estão felizes.

Uma hora mais tarde, Pjetkin voltou com sua ruidosa motocicleta para Sergejevka. Num saco de linho levava toucinho e chouriço, ovos e presunto, um vidro de pepinos, e um quilo de cebolas lhe pendia numa réstia do pescoço.

Logo atrás de Issakova, na estrada para Blagovjechtchensk, encontrou dois jipes verdes com soldados armados para guerra, seguidos de dois carros e um tanque.

A caçada tinha começado. O capitão Kasankow não voltara do seu passeio.

 

Já esperavam pelo Dr. Pjetkín no Campo, e todo o plano de trabalho fora modificado. Os grupos de lenhadores, construtores de estradas e trabalhadores da serraria já tinham partido, como todas as manhãs, mas o serviço interno se desmoronava totalmente. As míseras figuras que se tinham apresentado como enfermas, que normalmente eram enxotadas com insultos pela Dussova e depois tinham um dia mais ou menos calmo com serviços no acampamento, estavam diante do hospital e aguardavam reunidas como um rebanho de carneiros ao redor do qual um cão está latindo em círculos. Os capatazes da vigia das barracas, cozinha, oficinas, depósito de padaria berravam ordens. As forças auxiliares, que eram doentes forçados a funcionar como sadios, estavam faltando. O diretor do Campo, o sujeito gordo, com queixo duplo, que apostara contra Pjetkin, elevava a sua aposta dizendo:

— Cinqüenta rublos, amigos. Aposto cinqüenta rublos que Pjetkin não fica nem mais um mês por aqui.

Marianka não se deixou avistar. Ficou deitada na cama, lendo um jornal, fumando, e atirara, na cabeça de Russlan, que entrara no seu quarto, desesperado com tanta confusão e gritaria, um velho despertador.

— Eu também estou doente! — berrou, descabelando-se. — Quero que Igor Antonovitch venha até aqui.

— Mas como? — gritou Russlan com olhos medrosos. — Ele ainda não voltou da sua saída noturna!

— Pois então vamos esperar! — disse ela, juntando as mãos debaixo da nuca e sorrindo maldosamente. — Ele é que tem a responsabilidade! Quem quis fazer a seleção matinal? Quem se pôs aqui como benfeitor? Deixe-me em paz, idiota!

Pjetkin entregou a motocicleta ao guarda, ficou sabendo que o diabo estava solto no acampamento, procurou o comandante da tropa e leu nos olhos dele que o julgavam já um homem morto.

A multidão diante do hospital se dividiu quando Pjetkin transpôs o portão. Havia silêncio como num enterro. Russlan, nos degraus da escada, desapareceu imediatamente no interior da barraca, correu até a porta da Dussova e exclamou:

- Ele já chegou!

— Que venha aqui! Imediatamente!—gritou ela em resposta. Pjetkin cumprimentou para os lados com a cabeça, passou de ombros erguidos pela ala formada pela massa humana silenciosa, e foi para o seu quarto. Lá encontrou Marko, sentado na cama. O anão estava fisicamente amarrotado, mas feliz em seu coração. Pela primeira vez tivera uma fêmea que sustentara o seu assalto. A luta durara até a manhã. Depois a Dussova caíra na cama, ficara ali deitada como um sapo estourado, membros estendidos, boca aberta, e Marko derramara uma jarra de água fria no seu corpo e a possuíra mais uma vez como um gigantesco besouro. A água na pele branca de mulher soltava vapor, e ela gemia:

— Animal! Animal de merda! Porco maldito!

Que noite fora aquela! Recompensa por vinte anos de vida apagada. Vingança das prostitutas de Kichinev, que mais pareciam tábuas, e eram as mais baratas que podia conseguir, que aceitavam o anão por cinco rublos. As outras o enxotavam, cuspindo-lhe entre os olhos, rindo-lhe na cara e gritando: ”Vai fazer amor na tua mãe, paizinho, ela é cega e agüenta tudo...”

Pjetkin vestiu seu guarda-pó branco. Isso também era novidade no Campo, pois a Dussova examinava os doentes em traje civil, às vezes até no seu uniforme de capitão. Igor enfiou a cabeça na bacia de lata e esfregou o cansaço dos olhos.

— Por que não diz nada? — exclamou. — Sei que foi um erro ficar fora... mas teve de ser assim.

Marko o observava em silêncio. Russlan esperava na sala de exames, e já mandara entrar a primeira leva de doentes. Quinze criaturas emaciadas de pé junto à parede, nuas, em posição de sentido, uma exposição de corpos ossudos com peles de pergaminho.

Com a Dussova um exame desses era simples. Lançava a fila de homens nus um longo olhar, e quem não caísse ao chão, sangrasse por algum lugar, apresentasse um tumor, cheirasse a pus, ficasse parado numa poça de excremento ou urina ou se retorcesse de dor abaixava-se aos golpes da longa chibata de montaria que ela manejava bem, e corria imediatamente para fora: ”Apto para o trabalho! Apto! Apto!” Os que sobravam eram examinados superficialmente e também enxotados para fora. Talvez ficassem dois felizardos que receberiam uma cama no hospital. Mas era uma curta felicidade... quando a Dussova selecionava e deixava ficar um, este estava mais perto da morte do que imaginava. Russlan aproximou-se de Pjetkin. Baixou a voz e sorriu desavergonhadamente:

— A camarada Dussova quer vê-lo imediatamente, camarada doutor. Imediatamente!

— Eu determino o meu tempo de serviço — disse Pjetkin e caminhou ao longo da fila de homens despidos. Pela primeira vez, puderam contar seus sofrimentos. Dores nos ossos, ardores no ventre, pés inchados, barrigas túmidas. Fome, sempre de novo a fome. Exaustão total. Distrofias, furunculoses. Edema pulmonar. Feridas arruinadas.

Pjetkin mandou todos de volta às barracas, aos seus catres. Só conservou no hospital os casos graves, até que Russlan dissesse, depois da quarta leva de doentes:

— Estamos lotados, camarada. Teríamos de empilhá-los agora, mas isso não é uma boa solução.

— Vamos fazer diferente, meu caro — disse Pjetkin, lavando as mãos. Mais um grupo e o exame estaria terminado. Enquanto isso, no acampamento espalhava-se a notícia fabulosa: O novo doutor é um ser humano! Um anjo em forma humana. Temos de rezar por ele, para que esse demónio de Dussova não o devore também. Irmãozinhos, sejam espertos, apóiem-no, só se mostrem doentes quando estiverem realmente.

Depois da visita aos quartos dos enfermos, Pjetkin agarrou Marko pela gola, na farmácia, e sacudiu-o como a um saco vazio do qual ainda devem cair alguns grãos:

— Por que não diz nada? — exclamou. — Será que lhe arrancaram a língua?

— Quase, filhinho, quase. Tive de segurá-la com as duas mãos! — Godunov sentou-se num caixote de gaze. Esse era outro dos pequenos milagres que agora aconteciam. Mandavam material farmacêutico de Chabarovsk... curativos, penicilina, analgésicos, remédios contra várias doenças internas, material de anestesia, instrumentos cirúrgicos. Pjetkin telefonava duas vezes por dia para Chabarovsk, insultava os funcionários do comissário de saúde, fazia inimigos por toda parte com isso, mas conseguia que suas exigências fossem atendidas, e que com os trens de material também viessem caixotes para o hospital do Campo.

— Marianka estava uma fúria! — disse Marko e suspirou. Estava esvaziado, mas quem não gosta desse tipo de cansaço? — Primeiro, procurou o seu lobinho, depois se portou como uma louca, finalmente deitou-se na cama dizendo que está doente. Ainda está lá, essa diaba negra.

Não disse mais nada. E para quê? A quem interessava? Há coisas que mesmo na maior fé não se diz ao ouvido dos padres...

Marianka estava deitada na cama, olhando a porta com olhos semicerrados. Pjetkin batera polidamente e entrara, todo médico no seu traje branco, cheirando a desinfetante.

— Bom dia, professor! — disse a Dussova, num tom perigosamente doce. — Seus pacientes estão se sentindo bem? Já lhes mandou servir ovo com vinho tinto?

— Ainda não. Estão recebendo primeiro antibióticos contra sua furunculose, isso é melhor do que rasgar os tumores na casca das árvores. — Pjetkin ficou parado na porta olhando a Dussova. — Quais são os seus problemas, camarada.

— Estou doente.

— Explique melhor.

— Estou doente no corpo todo. Dores e insensibilidade, puxões como choques elétricos, e depois como que uma paralisia. Uma sensação de sufocação. Os músculos se contraem... Você devia massagear-me, Igor Antonovitch.

A Dussova estendeu-se sob a leve coberta Depois, num pontapé selvagem, jogou tudo longe e ficou ali deitada, nua ao sol. Pjetkin baixou a cabeça. Seu olhar deslizou pelo corpo firme, as coxas carnudas, o ventre que fremia de leve, os poderosos seios. E o rosto dela, brilhando debaixo dos cabelos negro-azulados, um fogo diabólico nos olhos. Pjetkin sentou-se na beira da cama, colocou o estetoscópio nos ouvidos e escutou Marianka. O coração dela batia loucamente, sua respiração funcionava aos arrancos. Quando ele colocou o estetoscópio no seio esquerdo, ela suspirou alto, pegou-lhe a mão e apertou-a ao seio. Ele a deixou lá, enquanto continuava escutando o coração.

— Então, o passarinho piou? — perguntou ela.

Pjetkin sabia a quem ela se referia. Que diferença entre as duas mulheres! Dunia, uma gota de sol que caíra na terra, delicada como um gatinho e quente como o vento das estepes. Marianka, um perfume entontecedor como de terra revolvida, a plenitude generosa de um verão, a maturidade de uma terra ainda não descoberta.

— Fomos felizes — disse Pjetkin simplesmente.

O corpo dela empinou-se num protesto selvagem e mudo.

— Massageie-me! — disse em tom abafado. — Agora!

— Seria melhor dar-lhe uma injeção calmante.

Ela jogou a cabeça para trás e, de olhos fechados, soprou pelas narinas, que se distenderam amplamente. A beleza selvagem e oferecida de Marianka quase entristecia Igor. No fundo ela era um pobre animalzinho, apesar de toda a sua crueldade. O sangue indomável pulsava-lhe nas veias, o corpo estava estourando de paixão, e não havia quem a libertasse desse doce peso. Todos fugiam dela, escondiam-se como lobos medrosos diante daquela loba solitária que rasgava a garganta de todos os machos.

— Escrevi um relatório — disse a Dussova em voz baixa e rouca. — Sobre você, meu doutorzinho. Um relatório para Moscou. Sabs que tenho um grande amigo por lá? Basta que eu lhe diga algo, e a terra treme como se a gente tivesse soprado num vulcão. Você quer que esse vulcão cuspa fogo? Quer morrer nas cinzas ardentes?

— Você não conseguirá assustar um Pjetkin, Marianka.

— Mesmo santos e heróis sentem dor.

— Você jamais conseguirá separar-me de Dunia — disse Pjetkin e guardou o estetoscópio. — E, além disso, sei defender a minha pele.

— Será tão ruim assim acariciar-me? — gritou ela, apoiada nos cotovelos e apertando as coxas. O sol brilhava no seu corpo reluzente. — Quer que eu lhe beije a mão e lamba as botas como os escravos? Maldição, pois eu o farei, vou rastejar diante de você como um cão escorraçado!

Ela quis saltar da cama mas Pjetkin a segurou e atirou-se sobre ela. Isso não, meu Deus! Que mulher poderia perdoar isso? Ele não resistiu mais quando Marianka lhe tomou a cabeça e a puxou entre os seios, nesse recanto redondo de carne firme, do qual saia um cheiro adocicado de suor.

Era natural que nesse momento a lembrança da noite com Marko brotasse em Marianka. Ela rangeu os dentes, lembrando-se do anão enlouquecido, aquele inseto repugnante que rastejara por cima do seu corpo, e mordeu os lábios para não gritar, sentiu-se suja e maculada. Será que ele não sente o cheiro? Não vai ficar paralisado com esse fedor? O hálito de carniça do anão talvez o atordoe... não sentirá o aperto das suas garras, não verá as marcas dos seus dentes na minha pele?

Apertou as coxas e tão subitamente como o puxara para si, afastou Igor de novo, com um empurrão. Ele bateu com a cabeça na guarda da cama e ficou ali.

— Quero que me massageie! — disse ela entre os dentes apertados. — Por Deus, comece! Não o quero matar.

E Pjetkin a massageou.

Passou-lhe as mãos pelo corpo, comprimiu-lhe ombros, os seios, o ventre convexo, as coxas e pernas firmes; ela se virou com um gemido alto e ele lhe acariciou as costas frementes, os quadris redondos, as nádegas que estremeciam em cãibras. Esfregou-a com as mãos espalmadas, da nuca aos calcanhares, até que, a cada carícia, ela empinou o corpo, enfiou os dedos como garras no colchão de palha, soltando gritos agudos.

Quando ele parou, Marianka jogou a cabeça para trás e gritou contra a parede.

— Continue, meu anjo! Não pare... eu o mando apedrejar se você agora for-se embora... que mãos macias... que dedos flexíveis... parecem carregados de eletricidade... Igoruschka, queime-me... tire a minha pele... suas mãos são imãs ardentes... que me arrancam o coração do peito...

Depois ela mordeu o travesseiro, despedaçando-o, jogou as penas no ar e deixou-as cair sobre ambos como neve. Igor estava arrebatado com tanta paixão, e ao mesmo tempo sentia repulsa lembrando-se da ternura de Dunia, do seu beijo na margem do Amur, e da sua assustada imobilidade quando ele a despira. Por isso, não considerava infidelidade massagear agora a Dussova com as mãos... uma pobre criatura de alma doente, isso é o que ela é, pensava ele, e eu sou médico, eu a estou ajudando sem despender nada senão um pouco de força muscular e da resistência dos meus dedos. Isso a acalmará, não curará. Mas como vai continuar isso? Esse era o seu único medo. E estremeceu violentamente quando ela se virou de costas, encolheu as pernas, pegou a cabeça com as mãos e se estendeu depois com um grito abafado e inumano, como se fosse o seu último alento. Pjetkin acariciou-lhe mais uma vez os seios duros. Depois ergueu-se, foi até a bacia, lavou as mãos e olhou no espelho. Um rosto coberto de suor, estranho e desfeito, o fitava. Enxugou-se com uma toalha e sentou-se, exausto, na cadeira junto à janela.

Os trabalhadores varriam as ruas entre as barracas. O comando alisava de novo a areia fina na faixa da morte. Dez prisioneiros tiravam ervas daninhas no jardim. Esse pequeno oásis florido era uma pilhéria do primeiro comandante do acampamento. Uma pilhéria cruel, pois no verão as flores secavam sob o sol impiedoso, e no inverno a neve e gelo as cobria. Mas as duas coisas não deviam ser. Sobre um pedestal de pedras do rio, entre as flores, erguia-se uma estátua de Lenine. Temida e odiada, pois constantemente perguntavam aos prisioneiros: por que é que as flores murcharam? Vocês mesmo estão bebendo a água, seus vagabundos? E no inverno o lugar tinha de ser conservado livre de neve ou gelo. Os encarregados cuidavam disso dia e noite, para que nenhum floquinho caísse naquele lugar sagrado. Isso durou quatro anos, até que um dia o cachorro do comandante correu sem temor por entre as flores, ergueu a perna na base do monumento e molhou Lenine. Os encarregados do jardim ficaram parados ali, indecisos, sem fazer nada. Matar o cachorro do comandante por causa desse atrevimento... quem sabe lá como o homem reagiria? Deixar que mijassem em Lenine também era um crime. Que fazer, então? Decidiram amarrar o cachorro numa correia e levá-lo ao comandante, para resolver aquela complicada situação.

Desse dia em diante — o cachorro continuou vivo, os encarregados das flores não foram castigados, o pedestal foi bem escovado, o que mostra o grande amor dos russos pelos animais — o comandante perdeu o interesse no jardinzinho do monumento. Três meses mais tarde foi transferido, o teatro recomeçou. Assim ficara tudo até aquele dia... Lenine entre as plantas floridas, e cada novo comandante prezava aqueles canteiros idiotas como se fossem o tesouro do Kremlin.

— Saia! — disse a Dussova respirando pesadamente. — Saia da minha frente. — E quando Pjetkin se foi mesmo, na ponta dos pés como se deixasse uma doente em estado grave, ela se jogou de novo de barriga para baixo na cama, enfiou o rosto nas penas espalhadas e pôs-se a chorar alto, com soluços longos como uivos.

Marianka ficou todo o dia de cama, e também o outro dia e o terceiro, deixando que Pjetkin a tratasse. Ele o fez por Dunia. Pensava nela constantemente, e no terceiro dia telefonou.

Em Issakova haviam passado dias difíceis. A sede do partido de Sadojev tornara-se o quartel-general das equipes de busca. Todos na aldeia — já haviam adivinhado isso e estavam preparados — foram interrogados, mas o que poderia surgir disso? Ninguém mentia, o que era muito raro, mas não havia mesmo nada sobre o que mentir... ninguém vira um oficial, e isso era tão verdade quanto é verdade que uma pedra mergulha no rio.

Curiosamente, ninguém perguntou nada a Sadojev. Como soviete da aldeia parecia acima de qualquer suspeita. Além disso não dava aos oficiais tempo de se ocuparem com ele. O indivíduo diligente é sempre respeitado e seguindo esse provérbio ele levantava um verdadeiro redemoinho em Issakova.

— Um oficial desapareceu no nosso distrito! — disse ele piscando por cima das cabeças dos seus aldeões reunidos. — Um bom oficial, ativo e valente. Eu lhes pergunto: será que uma pessoa pode simplesmente desaparecer? Será ele um vento que escapa invisível das nossas calças? Isso não existe. E já que não existe, vamos procurá-lo. Não esqueçam nenhum cantinho, camaradas! Devemos ter como ponto de honra encontrar o oficial!

Era natural que nenhum soldado interrogasse o diligente Sadojev. Com três outros oficiais e quatro cães farejadores — Deus os amaldiçoasse, eles cheiraram uma luva do morto, latiram, sacudiram os rabos e uivaram como coelhos feridos — Sadojev procurou na margem do rio, e ficou paralisado quando os cães correram para o seu bote e o rodearam inquietos. Eu o lavei pensou ele. Não podem cheirar nada. Botei bosta de vaca na borda do bote. Será que um oficial soviético cheira a bosta de vaca? Os cães continuaram a sua corrida ao longo do Amur, com respiração ofegante e língua pendente. ”Que bichos bestas!”, gritou um dos soldados, quando em lugar do desaparecido encontraram o rastro de um inofensivo ouriço e saíram em disparada até o encontrarem sob um monte de lenha.

— Devíamos castrar esses idiotas de quatro pernas! — Bateu nos cães que ganiram. Sadojev interrompeu a busca na margem do rio.

— Nada — disse com grande pena. — Será possível que o camarada tenha remado até a China, do outro lado?

— Um capitão do exército? — perguntou o major consternado.

— Bem, há exceções, camarada. Um assa a carne por cima do fogo, outro a coloca debaixo da sela e monta até que ela fique cozida. A exceção come apenas pepinos crus. Quem é que conhece bem as pessoas?

E ainda acontecem coisas grandiosas. Depois da pausa do meio-dia, na qual Sadojev discutira o caso na sede do partido e todos ficaram sentados ao redor de uma panela de kascha, que Anna e outras três mulheres tinham preparado, Schmulnoff, o caolho, se apresentou ali e já de longe berrava: ”O meu bote sumiu! O belo barquinho! Camaradas, vocês o conheciam! Era o mais bonito de todos! Pintado de verde amarelo... e agora sumiu. A corda foi cortada. Que o diabo torça o pescoço do ladrão até às costas!”

A situação não exigia mais esclarecimentos... os oficiais examinaram com minúcia a corda cortada, e chegaram à mesma conclusão que o furioso Schmulnoff.

— Com o meu bote para a China! — berrava ele cambaleando de comoção. — Com o bote verde-amarelo de um bom patriota e comunista! Amigos, meu coração vai-se partir! — Caiu nos braços dos vizinhos que o carregaram para longe das vistas, sentaram-no atrás de uma carroça e puseram-se a rir. — Que tal o meu ato de teatro? — perguntou Schmulnoff orgulhoso. — Ah, eu sempre fui uma cabeça espertinha! — Depois bebeu uma garrafa de vinho de bétula e arrotou satisfeito.

A busca foi suspensa e escreveram um relatório para Chabarovsk, para o comando geral. Uma coisa terrível: o capitão Kasankow desertou e foi para a China. O belo Kasankow. ”Vamos declarar que estava doido”, disse o general em Chabarovsk.

O médico-chefe e dois outros médicos militares confirmaram no mesmo ritmo. ”Essa será a única desculpa que Moscou aceitará. Demência! Espero o mesmo diagnóstico dos senhores.”

Assim o capitão Kasankow foi declarado débil mental, um melancólico a quem já andavam observando havia muito.

As pastas foram fechadas.

Dunia contou tudo isso pelo telefone, e Pjetkin escutou a sua voz clara com o encantamento de todos os enamorados.

— Quando vou ver você de novo? — perguntou ela. Sua voz soava como se estivesse tirando a roupa. Um arrepio correu pelas costas de Pjetkin.

— Assim que eu puder, Dunia. Sonho com você todas as noites.

No quinto dia, a Dussova ainda estava de cama, só se interessando por que Pjetkin a tratasse como a uma criança doente. Já não queria ser massageada, ao contrário, puxava a coberta até o pescoço quando Pjetkin lhe trazia tudo o que vivia pedindo. E isso tinha um motivo.

O corpo dela se cobria cada vez mais de mordidas e vergões, manchas roxas e arranhaduras, marcas de unhas e esfoladuras. Todas as noites, quando todos dormiam no hospital, Marko corria, vestido num roupão de banho que arrastava pelo chão, até o quarto da Dussova, abria a porta destrancada, esgueirava-se para dentro, deixava o roupão cair do seu corpo de aranha, esticava-se todo e dizia:

— Meu diabinho, o seu querido Marko chegou!

Eram noites em que a cama rangia como os cedros na tempestade de outono. Por aí se pode ver como é boa a madeira siberiana.

Todas as manhãs, quando Marko partia de novo célere, a Dusssova ia para debaixo do chuveiro lavando o anão do seu corpo, passando pomada nas novas feridas, cuspindo na própria imagem do espelho. Pegava um chicote e deixava-o estalar na pele.

— Puta! — insultava-se a si mesma. — Pedaço de imundície! Tenho vontade de vomitar quando a vejo!

Seu corpo estremecia sob os golpes, ela caía de joelhos, rastejava pelo estreito quarto de banho, apertava o rosto na parede e chorava.

- Por que você não morre de uma vez? — balbuciava. — Mate-se... por que ainda viver? Sua vagabunda covarde... dê um fim nisso tudo... dê um fim...

Depois da visita, ela voltava para a cama. Quando Pjetkin lhe trazia o chá da manhã, ela o observava violentando sua alma ao dizer de si para si: ”Não foi Godunov quem esteve comigo, mas ele... Igor, o meu radiante amor, meu sonho, meu coração, meu desejo, meu céu, meu deus.”

Mas Pjetkin não entendia seus olhares, sua súplica silenciosa. Não os queria ver, num pressentimento obscuro de que a sua ruína estava nos braços da Dussova. Quando ele saía do quarto, ela chorava baixo, doente de amor, transbordando de nojo de si própria. E tornava a tocar a sineta, e sempre havia alguém no corredor que a escutava e espiava respeitosamente no quarto dela.

— Quero que Pjetkin me traga um livro! — gritava então. Ou então:

”O relatório dos doentes de hoje! ”Onde anda o jornal?

”Um copo dágua! Querem que eu morra de sede? No quinto dia, Marko levou chá e pão com queijo fundido. Marianka fez uma exclamação e tapou os olhos com as mãos.

— Será que tenho de ver você até de dia? — gritou.

— O doutorzinho está operando, minha diabinha — disse Marko colocando a refeição na mesa. — Não posso ajudá-lo porque minhas mãos estão tremendo. Tremem pela primeira vez em trinta anos. Uma noite dessas vou ter de matá-la, minha querida. Você está-me consumindo.

Sorriu-lhe cruelmente, encolheu suas sobrancelhas hirsutas, passou a mão pela enorme careca e saiu arrastando os pés. Marianka saltou da cama, correu para a pia e vomitou.

Enquanto a Dussova permaneceu de cama — prisioneiros rezavam todas as noites para que ficasse lá ainda muito tempo — foi impossível a Pjetkin ir até Issakova visitar Dunia. O trabalho o assoberbava como uma tempestade de neve assalta as florestas: o hospital lotado, os doentes nas barracas, a quem visitava todas as manhãs, a seção de quarentena onde o novo médico de Chabarovsk afundava como num mar furioso, as operações e finalmente sua própria luta inglória contra a sujeira. Pediu mais paraschas — latrinas — e fez construir uma grande latrina central. Tentou quebrar o poder dos blatnys, os criminosos, no campo, e ocupar os postos importantes com os kontriks, os presos políticos. Sua luta mais desesperada era dirigida contra os ssuki, as ”cadelas”, como se designam os homens de confiança do KGB, espiões entre os prisioneiros, delatores, os ouvidos da polícia.

Pjetkin encontrava-os por toda parte, onde houvesse postos inferiores a serem preenchidos: inspetores para o serviço interno, fechadores de portas e calafetadores na prisão, escreventes da sede do comando, guias das tropas de trabalhadores na floresta. Os ”cadelas” corriam de um lado para outro armados de porretes ou até martelos, odiados por todos, impelindo os demais ao trabalho. Pjetkin expulsou três deles do território, substituindo-os por políticos. Não sabia que nesse dia, no quarto 2 da prisão, fora decidido matá-lo simplesmente, antes que novas desgraças caíssem sobre os criminosos. O assaltante Andrej Vissarinovitch Kulkov foi escolhido para estrangular o Dr. Pjetkin com uma corda na primeira oportunidade. Seria mais seguro quando Pjetkin voltasse da seção de quarentena. Teria então de passar por uma zona desabitada, em que se depositavam madeira e lixo.

— Vamos enterrá-lo no monte de estrume — sugeriu o chefe dos ”cadelas”, conquistando muitos aplausos pela ideia... não era por nada que o chamavam ”cabeça oca”, apelido de todos os intelectuais do acampamento.

No décimo dia — a Dussova saíra da cama, saudável como nunca, depois de ter, com uma força de vontade quase sobrehumana, espantado naquela noite Marko de seu quarto com a chibata, numa luta silenciosa, pois nem Godunov gritou sob os golpes brutais nem ela berrou insultos, apenas os estalos da correia cortaram a quietude da noite — chamaram Pjetkin no telefone da administração. A sede do partido em Issakova estava na linha, a voz de Dunia soava distante e oprimida.

— Chegou uma carta, Igoruschka — disse ela. — Estão-me indicando um emprego, no hospital de Irkutsk. Tenho de aceitar, não posso recusar. O povo russo pagou meus estudos. Tenho de obedecer.

— E quando... quando tem de estar em Irkutsk?

— Dentro de três semanas.

— Vamo-nos casar? — perguntou ele sem hesitação.

— Ah, eu o amo, Igoruschka. Mas isso não vai mudar nada. Preciso ir para Irkutsk.

— Vou pedir transferência, e vamos os dois para lá. Que diz seu pai?

— Está correndo feito louco de um lado para outro, amaldiçoando as autoridades. Já telefonou para Chabarovsk e ofendeu tanto o secretário do partido do distrito que este o ameaçou com chicotadas no próximo controle. Não se consegue mais falar com Papai. — Pjetkin escutou-a assoando o nariz. Está chorando, pensou ele, sentindo uma dor aguda no peito.

— Vou até Blagovjechtchensk amanhã — exclamou ele ao telefone. — Não chore, Dunia. Vamo-nos casar numa semana. Vou combinar tudo com as autoridades. Tenha calma, muita calma, querida... três semanas é muito tempo.

Depois dessa conversa, correu de volta à barraca dos doentes, e tirou seu guarda-pó branco. A Dussova, que perambulava por ali e o seguiu ao quarto, fitou-o espantada.

— Que foi, meu lobinho?

— Vou até a cidade — disse Pjetkin. — Um problema urgente. Posso lhe pedir que faça as visitas da tarde em meu lugar?

Ela ergueu as sobrancelhas escuras e colocou as mãos entre as coxas abertas. Usava uma calça justa e altas botas macias, que dois prisioneiros do serviço interno tinham polido com saliva. Uma blusa cor de vinho com grandes botões dourados apertava-lhe o busto. Ela tinha uma aparência excitante, perigosamente bela. — Mais uma dificuldade maciça, Igor Antonovitch? Você vai reunir todas as autoridades como um exército de inimigos contra si.

— Desta vez não, Marianka.

Pjetkin mudou de roupa. Colocou uma camisa azul-clara, meteu-se no traje de domingo que o pai conseguira numa loja de Kichinev depois de longas negociações com o diretor. Amarrou os cordões dos sapatos e pareceu de repente um rapaz rico da cidade. Marianka contemplava-o com desconfiança.

— Você vai se encontrar com a sua putinha loura? — perguntou contendo-se.

— Não, camarada. Vou até o Palácio dos Casamentos para anunciar o meu.

Quando se enfia uma agulha no traseiro de alguém, essa pessoa salta e pragueja. É o seu direito. Mas quando se dá um pontapé no coração de uma mulher, é de se esperar que pelo menos o vestíbulo do inferno cuspa fogo. A Dussova saltou da cadeira como se estivesse sentada numa fogueira, e correu para a porta. Postou-se ali e bateu com os punhos contra o umbral.

— Você fica! — disse ela, com a respiração pesada. — Por Deus, você fica, Igor. Não vou deixá-lo sair. Quer-se casar com ela? Aquela pálida pombinha de olhar estúpido? Você pode amála, já o fez, aliás, quem pode impedir, não é? Pode levá-la para a cama quando quiser, eu alisarei os lençóis e os travesseiros, e trarei água quando tiverem sede... mas casar? Nunca! Não se esqueça do lugar onde está, meu lobinho, e de quem eu sou! Não se esqueça!

— Por que se obstina em lutar contra o inevitável, Marianka? — Pjetkin pegou-a nos ombros e afastou-a da porta. Ela deu pontapés nas suas canelas, bateu com os punhos na sua cabeça. Ele a afastou, empurrou-a e saiu do quarto.

Com um jipe do comando foi a Blagovjechtchensk. Era um carro americano, antiqüíssimo e desconjuntado, mas levou Pjetkin à cidade sem se desmontar no caminho.

No acampamento, porém, imperava o terror.

A Dussova fez as visitas da tarde, conforme pedido.

Fez uma limpeza em todos os quartos de doentes. Atirou os homens fora das camas. Correu de quarto em quarto com a chibata na mão, arrancou as cobertas de cima dos corpos, bateu-lhes na barriga gritando: ”Aptos para o trabalho! Fora! Fora!” De camisas curtas, nus, assim como estavam no momento, os doentes cambalearam para fora e encostaram-se à parede da barraca de pedra, ao sol. Mesmo os recém-operados foram levados para fora por ordem da Dussova, as macas colocadas na areia, e então ela examinou todas as barracas onde os que podiam andar estavam sentados nos catres de madeira.

— Vão reunir-se no lugar da inspeção! Vamos! Seus filhos da puta!

Depois da sua ronda pelo acampamento, ela voltou ao hospital batendo com as botas no assoalho dos quartos vazios. E depois pôs-se a rir, golpeando com a chibata as camas vazias, destroçando as lâmpadas. Ria, ria num tom tão metálico que Russlan venceu seu horror a Marko e correu até ele, sentando-se ao seu lado, todo trémulo.

 

Um Palácio de Casamentos é um lugar bonito. Uma casa grande e festiva, com uma sala pomposa e muitos compartimentos, uma enorme escrivaninha no chão de mármore reluzente, lustres valiosos no teto, retratos de Lenine e Marx nas paredes, e num terceiro prego aquele camarada que atualmente determina a vida do povo lá do Kremlin, ora Stalin, ora Malenkow, depois Khrushchev, sempre mudando, e o prego já estava todo polido de tanto botar e tirar quadros. Jarrões com ramos de louro estão ao lado da escrivaninha, e o funcionário que está na função de casar os jovens pares treinou perfeitamente o seu discurso, que sabe dizer até dormindo.

Um lugar desses é algo maravilhoso, que saiu da alma do povo. Festivo, até com música, o que a gente desejar: Lago dos Cisnes. Ou Onegin. A gente flutua como sobre nuvens pela sala até à escrivaninha, onde Fjodor Ivanovitch, o funcionário, diz solenemente: ”Eu os uno como marido e mulher. A família é um dos fundamentos do grande povo soviético. Lenine já dizia...”

Pjetkin fez-se anunciar junto ao diretor do Palácio de Casamentos, um certo camarada Sulukov. Este ficou surpreso porque um médico lhe queria falar, pois não se sentia doente. Quando lhe disseram que era até um médico do Campo de Prisioneiros Sergejevka, ficou inquieto e começou a transpirar um pouco. Recebeu Pjetkin com especial cortesia, serviu um copinho de conhaque georgiano, e acalmou-se depressa quando soube que o médico queria casar.

— Fez bem em vir-me procurar e não a um dos meus funcionários subalternos — disse Sulukov profissionalmente e abriu uma agenda. — O senhor, como médico do acampamento, é funcionário do Estado. E ainda tem o status de um oficial. Se quiser casar, não basta, por isso, uma simples declaração, mas é preciso o consentimento de seus superiores. Uma formalidade, mais nada. Se o senhor fosse ferreiro, tudo seria mais simples. Mas um médico, com posto de oficial é diferente.

— No bolchevismo são todos iguais — disse Pjetkin levianamente.

Sulukov olhou-o atónito, engoliu e baixou os olhos. ”Ah, ele é desses”, pensou desapontado. Temos de agarrá-lo com luvas e bater palmas a cada frase sua. É o método mais seguro para afastá-lo depressa. Endireitou-se na cadeira e sorriu familiarmente para Pjetkin.

— Tem o seu passaporte, camarada?

— Por favor — Pjetkin colocou-o na mesa, Sulukov estudou-o e estacou, contendo-se.

— Lugar de nascimento, Kõnigsberg? Isso não fica na Alemanha? Antigamente, antes da grande vitória dos exércitos vermelhos? Hoje se chama Kaliningrado, a desejada porta da Rússia para o Báltico. Um porto livre de gelo. Já Pedro, o Grande, sonhava com ele. — E a feliz noiva? — perguntou Sulukov dobrando o passe.

— Dunia Dimitrovna Sadojeva. Médica.

— Mas que escolha excelente! — exclamou Sulukov.

— Filha do soviete da aldeia, Dimitri Ferapontovitch Sadojev, de Issakova. Queremos casar o mais depressa possível, camarada. Uma transferência para Irkutsk pede urgência. Pode apressar os papéis?

— Vou fazer tudo o que for possível. Confie em mim, camarada. — Sulukov meteu o passaporte na gaveta. Aquilo era estranho, mas Pjetkin pensou que tinha de ser assim.

— Vou-lhe telefonar amanhã para o Campo. Amanhã ou depois de amanhã. Diga à camarada Dunia que comece a preparar o véu. E se precisar de um bercinho... o marceneiro Malinovsky na Pratoskaia é conhecido pelos seus móveis, ah! ah! ah!... — Sulukov estava de ótimo humor, acompanhou Pjetkin até a porta, esperou que ele descesse as escadas, se afastasse pelo vestíbulo. Depois telefonou para a administração médica de Chabarovsk, e leu o que anotara: — O camarada Pjetkin, nascido em Kõnigsberg como se explica isso? pretende casar-se com a médica soviética Dunia Sadojeva. Logo que- possível. Que pensam disso, camaradas?

— Impossível! — disse uma voz na distante Chabarovsk. — Totalmente impossível. Vamos tratar disso.

— A noiva é uma pessoa respeitável — disse Sulukov, com o ouvido apurado. — Médica, como o Dr. Pjetkin. Qual é o obstáculo, afinal?

— Muito simples. Você já hesitou ao ler o passaporte, camarada. — A voz em Chabarovsk, que pertencia ao chefe da administração médica, um médico-chefe Abransky, tornou-se mais impessoal, mais fria. — Pjetkin é alemão...

Sulukov respirou fundo, o peito roncando de excitação.

— Mas Pjetkin é russo! Médico do Campo! Como se entende isso?

— Isso são perguntas que Moscou responderá. Dirija-se a eles se estiver curioso, camarada — disse a voz fria de Chabarovsk. Sulukov revirou os olhos e sacudiu a cabeça. A curiosidade já diminuiu notavelmente, camarada, pensou. Quem é que pergunta qualquer coisa a Moscou? Em três anos me aposento. Seria um idiota se me importasse com problemas distantes.

— Que ”devo dizer então a Pjetkin? — perguntou. — Tenho de lhe telefonar.

— Nada. Fique quieto. Amanhã mandaremos buscar o passaporte. Mais perguntas, camarada?

— Nenhuma.

Sulukov sentia um frio no estômago... a frieza daquela voz era palpável... acenou fracamente com a cabeça e deixou o fone cair no gancho.

Pjetkin voltou ao Campo Sergejevka, feliz e sem apreensões. Telefonara a Dunia da estação e lhe descrevera a pessoa cortês e solícita que era o diretor do Palácio de Casamentos, e que certamente na semana seguinte já poderiam se casar.

Até à partida do trem, Pjetkin correra por Blagovjechtchensk, do armazém à loja especializada de artigos para noivas, que o escrivão do Palácio lhe recomendara, pois onde pode um homem comprar um véu de noiva? Por isso pedira conselho aos que lidam com essas coisas todos os dias. Era espantoso quantas pessoas se casavam, pois Pjetkin teve de ficar diante da loja especializada, como décimo nono de uma fila, e depois ficou perplexo diante da vendedora que lhe mostrou três modelos.

— Geralmente as noivas escolhem pessoalmente seus véus — disse ela quando Pjetkin comparou os tecidos, hesitante. Ele enrubesceu, puxou um fio da fazenda com a unha, e desculpou-se.

— Que véu escolheria você, camarada? — perguntou.

— Sua noiva é loura ou de cabelos escuros?

— Isso faz diferença?

— Há tipos delicados e tipos fortes, claros e escuros. Nem todas podem usar tudo, é preciso combinar. Como é ela?

— Loura e delicada.

— Então, leve este. — A vendedora jogou um véu sobre as mãos e braços. Ele caiu até o chão como neve entretecida. Brancos botões de rosa oscilando ao vento. — É o melhor que temos. Dez rublos o metro. Quer um véu comprido?

— Bem comprido, camarada.

— Fica mesmo mais bonito. Mas só podemos ceder-lhe um metro, camarada.

Pjetkin voltou ao acampamento com um pacote bem pequeno debaixo do braço. Entregara o velho jipe americano nas oficinas. Chegara ainda até o Palácio de Casamentos, mas ao dar partida na volta algo se quebrara lá dentro do motor, o refrigerador soltava densa fumaceira, cheirava a ferro quente e havia ruídos horríveis debaixo do capô.

Nas barracas da guarda e do comando, Pjetkin foi assaltado por uma sensação inquietante. O comandante em serviço, um capitão sentado contra a parede da casa expondo ao sol seu tórax despido, reluzente de gordura e bem nutrido, ergueu-se de um salto ao ver Pjetkin e correu em sua direção:

— Doutor, finalmente! — foi exclamando de longe. — Ninguém mais se atreve a passar o portão. Tão ruim a coisa nunca foi. Sabe o que é uma megera furiosa? Não pense na lenda grega... vá ao acampamento e veja o senhor mesmo do que é capaz uma mulher endemoninhada!

No lugar de inspeção estavam todos os doentes parados em três fileiras. Não só os das barracas, também os casos graves do hospital. Diante deles, estavam deitados em montes de palha os acamados, os operados, os moribundos e os desenganados, os felizes que tinham conquistado uma cama jogando suas vidas, os bem-aventurados que podiam deixar este mundo aquecidos e confortáveis. Todos estavam parados ou deitados ao sol causticante, agora mais rubro e mais gordo em seus raios, alimentado pelo dia ardente.

Para não cair, os doentes tinham-se dado as mãos como crianças para brincar de roda. Formavam um muro apertado, que oscilava levemente como capim na brisa. Mas não caía. Quatro chefes, criminosos da prisão, rodeavam os infelizes e só aguardavam que alguém saísse da fila. Para isso tinham grossos porretes preparados.

Pjetkin sentiu lágrimas nos olhos ao passar pelos seus doentes, num terrível desfile. Domskaneff morrera, tivera pedras na vesícula, e esperava, depois da operação, poder voltar para junto da mulher e dos cinco filhos. Tinham-lhe imposto dez anos de trabalhos forçados e deportação, porque escrevera ao seu jornal se não era possível que os trabalhadores de indústrias de meias fossem fazer estágio no ocidente, pois então era possível que houvesse meias cujo pé esquerdo tivesse o mesmo tamanho do direito. Isso os tinha aborrecido. Agora, jazia num montinho de palha na areia, e o sol da tarde brilhava vermelho nos seus olhos mortos.

— Meus filhos... — disse Pjetkin. A raiva e a emoção fechavam-lhe a garganta. — Eu lhes prometo que serão tratados como seres humanos.

As tropas de trabalho, que derrubavam árvores, que trabalhavam na serraria, que construíam estradas, ainda não tinham voltado ao acampamento — as barracas estavam vazias exceto pelos homens do serviço interno. Pjetkin reuniu-os, apontou a barraca 4 que estava mais próxima e ordenou:

— Mudança! Tudo para fora! Quero dez voluntários para escovar o chão! Teremos de poder lamber esse chão! Irmãos!

Os homens do serviço interno estavam como um bloco diante de Pjetkin e não se moviam. Não compreendiam o que acontecia por ali, e não tinham mais fantasia suficiente para adivinhar pensamentos. Sabiam apenas uma coisa, que os enraizava no chão: aqui está acontecendo algo monstruoso, à nossa custa. Nós teremos de pagar por tudo, com dores e humilhações. A pergunta sempre pendente em todos os campos de trabalhos: quem é o mais forte? não fora resolvida. O poder de Dussova estava intacto, tinham podido ver isso. Noventa e dois doentes estavam de pé no crepúsculo vermelho, vinte e sete operados jaziam por ali, desenganados, moribundos, esperançosos, crédulos, estúpidos, e os que secretamente ainda rezavam. Parados e deitados ali no meio do campo havia nove horas. Sabem o que significam nove horas no sol causticante? Nove horas de pé? Quem se mexe, quem implora água, quem se atreve a isso no seu desespero, saindo daquele muro terrível, esse é agarrado pelos supervisores, aqueles cachorros, que lhe batem com porretes. Sabem que nove horas podem custar ao corpo e à alma nove anos?

— Vocês estão com medo — disse Pjetkin quando nenhum se moveu. — O medo está nos seus olhos, não podem puxar uma cortina sobre ele. Não têm confiança em mim?

— De que adianta, camarada? — Um ancião destacou-se da fila. Era míope, piscava com olhos apertados e falava o russo culto de Leningrado. — O senhor talvez fique aqui um ano, mas nós ficaremos dez ou vinte, de qualquer modo o tempo suficiente para apodrecer.

— Se tiverem medo vão perder também a honra — disse Pjetkin insistentemente. Ele compreendia os homens, pois tinham sido deportados, metidos no campo de concentração porque alguma vez, na sua vida, haviam resistido, protestando quer pela discussão sobre a entrega do leite, por crítica intelectual a qualquer máxima, ou talvez por terem escrito um poema.

— Desistimos da nossa honra quando fomos desinfetados — disse o velho amargamente. — E de resto... para onde vamos carregar as coisas do quarto 4? Todos os quartos estão ocupados.

— Vamos distribuí-los no depósito, na barraca da cozinha e na padaria. É necessário que os cozinheiros e padeiros tenham cada um um quarto? Quartos em que se podem meter dez homens? E o depósito... todo um aposento enorme vazio, só um par de caixotes espalhados! — Pjetkin falava agora num tremendo entusiasmo e a cabeça ardia. O que ele dizia valeria normalmente vinte anos de deportação, era uma crítica desagregadora contra arranjos oficiais. Era rebeldia contra uma ordem protegida por um exército de autoridades. — Vocês estão aqui neste Campo para serem reeducados. Pois devem aprender justiça, sentimento sadio de povo, limpeza pessoal! — Pjetkin estava fora de si.

Correu primeiro para a barraca 4, pegou uma trouxa de roupas, apertou-a ao peito e correu para a padaria. Foi como se um dique estourasse. Com selvagem gritaria os prisioneiros se precipitaram para a barraca, agarraram as coisas dos trabalhadores, assaltaram o depósito, a cozinha, a padaria. Outros carregavam os doentes graves de volta ao hospital, recolocando-os nas antigas camas.

Sinais de alarma funcionavam estridentes nas torres de vigia. Os dois portões foram ocupados, os cintos de balas puxados para as metralhadoras.

Rebelião no Campo. Os homens se comportavam como loucos. Os capatazes fugiram para o porão, os chefes se comprimiam contra as paredes, quietos, os ”cadelas” abriam bem os olhos, anotavam os nomes e o que esses nomes faziam, eram os protocolos vivos, atos de punição sobre duas pernas.

Marianka Jefimovna estava na janela do seu quarto e contemplava com rosto petrificado a ação louca de Pjetkin. Ainda teria podido interferir, pela primeira vez com sensatez, mas não se moveu do quarto. Igor Antonovitch tinha requerido a licença de casamento... isso era uma sepultura que ela não podia mais saltar. Ainda que o mundo acabe, pensou, não vou mover um dedo. Via claramente que também ela seria responsabilizada, era a diretora do hospital, e Pjetkin era apenas seu representante, mas isso não a assustava. Chegara aos limites da sua capacidade de viver... estava entregue, e queria arrastar todos consigo.

Marko, o anão, tinha mais a fazer do que podia. Não só distribuiu os acamados de novo pelos quartos, mas também impelia diante de si Russlan e outro criminoso, um estuprador de crianças, enfermeiro número 2, com uma pequena chibata. Primeiro tentaram resistir, mas quem conhecia Marko desistia logo dessa tolice.

A mudança durou menos de uma hora. A barraca 4 tornou-se a nova enfermaria geral. Um cartaz grande, pintado às pressas cobre papelão, já estava sobre a porta: Seção de doentes II. Na entrada do depósito, o serviço interno montou novos catres. Os quartos dos padeiros e cozinheiros mudaram de função. Agora moravam seis cozinheiros num aposento, e ainda tinham lugar bastante.

Enquanto isso, o comandante convocava uma reunião extraordinária. O diretor civil do Campo, os cozinheiros e padeiros, o administrador do depósito, o diretor das oficinas e o chefe do escritório central comprimiam-se no pequeno escritório e berravam como um coro clássico quando novas informações eram fornecidas aos gritos pela janela.

— Estão mudando a padaria. Na barraca da cozinha já há vinte doentes. Engano... são vinte camas para os sujeitos da barraca quatro. No depósito, estão montando novas filas de catres.

— Isso é revolução! — berrou o chefe de cozinha. — Uma insurreição! Camarada major, para que tem as metralhadoras? Esse Pjetkin está perturbando toda a ordem!

— Não posso fazer nada sem ordens de Chabarovsk. Enquanto não houver mortos, eles que desabafem. Quando estiverem cansados, vamos entrar em ação.

O major era um sujeito inteligente. Não pôs os militares em combate. Uma baioneta cintilante podia ser a fagulha no barril de pólvora. Não era preciso transformar o Campo Sergejevka num inferno. Em vez disso, decidiu falar pessoalmente com o Dr.. Pjetkin.

Sozinho, sem armas — sabe-se como os exilados são sensíveis — o comandante andou pelo Campo, desprezou os insultos indignados, e procurou Pjetkin. Encontrou-o na barraca 4, sentado numa cama dando uma injeção num doente.

— Isso tudo era necessário, doutor? — perguntou o major cauteloso.

Pjetkin depôs a injeção vazia numa bandeja, coberta por um pano de gaze.

— E o que a camarada Dussova fez, foi necessário? — perguntou em resposta.

— Não conseguimos impedi-la.

— Pois veja, a mim também ninguém pode impedir.

— Isso não seria um engano, camarada Pjetkin? — O major sentou-se no outro lado da cama. — A camarada Dussova faz o seu dever... o senhor apenas instiga a inquietação no Campo.

— Preciso de camas para os doentes. Se não as consigo, tomo-as — disse Pjetkin. — Há quatro semanas os meus pedidos estão à espera.

— Quatro semanas! Acha muito tempo? O senhor pode ficar impaciente e tentar indagar cortesmente, depois de quatro anos. Afinal, em que mundo o senhor pensa que vive?

— No estado do operário e do camponês livres. No mundo dos direitos humanos.

— E o senhor está destruindo essa ordem.

— Onde havia ordem por aqui? Chama ordem deixar doentes nove horas deitados ou parados ao sol? Nove horas de revista, diante de uma mulher histérica?

— Quem sabe se tudo não foi uma terapêutica especial da Dra. Dussova? — O major pôs as mãos às costas. Sua atitude formalizou-se... viera para ordenar, não para discutir. Num campo de prisioneiros não se discute, isso se fazia antes, por essa razão vieram ter ali. — Em meia hora voltarão os destacamentos do serviço externo. Vai haver um caos! Coloque as coisas nos seus antigos lugares, camarada Pjetkin.

— Não! — uma resposta clara diante da qual não havia mais perguntas a fazer.

— O senhor sabe que terei de delatá-lo a Chabarovsk?

— Faça o seu dever, major. Eu, da minha parte, vou mandar um relatório a Moscou.

O major não ficou nada impressionado. Por mais opressiva que seja uma ameaça envolvendo Moscou, naquele caso o direito estava do seu lado.

Os prisioneiros ficaram até tarde da noite procurando seus novos lugares de dormir, suas roupas, talheres, os tabuleiros de xadrez feitos por eles mesmos, os baralhos feitos com papel de sacos de açúcar, e todas as miudezas insignificantes, tão preciosas naquele mundo de dissolução humana. Muitos esgueiraram-se de volta à barraca 4, soltaram tábuas do assoalho, procuraram nos catres, e retiraram seus tesouros dos esconderijos: fumo, uma faca afiada, uma lima, um saco de milho, um potinho de gordura derretida, a foto de uma mulher nua, uma Bíblia gasta de tanto ler, os tesouros dos deportados.

Mas o temido caos não aconteceu. Só risos de alegria malévola ressoaram pelo Campo quando os funcionários, padeiros, cozinheiros e escreventes ficaram acocorados em grupos de seis ou dez num quarto, pálidos de ódio, desejando o inferno para Pjetkin.

Só quando a paz voltou ao acampamento, quando os refletores derramaram sobre barracas e ruas a sua luz branca, o uivar dos cães selvagens soou nas florestas, e o sono misericordioso acalmou até mesmo as ruínas humanas, Pjetkin se importou com a Dussova.

Marianka Jefimovna estava sentada a sua mesa, jogando paciência. Levantou rapidamente o olhar quando Pjetkin entrou, e colocou novas cartas.

— Que radiante vencedor! — disse ela em tom abafado, vendo que Pjetkin não falava. — Depois de amanhã, no máximo, virão buscá-lo.

— Não acredito.

— Não seja doido, Igor Antonovitch! Que está pensando, afinal? Acha que é representante de Deus? Que tem mãos abençoadas? Vão é sujar nas suas mãos. Vão despedaçá-las nos trabalhos forçados. Você vai ter de derrubar árvores com essas mãos, e arrastá-las para os caminhões. Vai cavoucar a terra com elas, para colocação de trilhos! Você acha que é algo de especial? Que sabe da vida, Igorenka? Você ainda nem viveu, está apenas começando. Não passa de um bebê neste mundo horrível. Mas você também vai aprender e entender: só sobrevive aquele que é mestre da arte de torcer o pescoço dos outros...

— Mas que mulher você é... — disse Pjetkin baixinho. Estava honestamente chocado. — Vá até a janela, Marianka Jefimovna e olhe para fora...

Ela se ergueu, foi à janela, afastou a cortina e olhou pelo acampamento. A praça estava vazia exceto pelo defunto Domskaneff, que ainda jazia no seu monte de palha, esticado, solitário, iluminado pela lua e pelos fachos deslizantes do refletor da torre 2. Estava com os olhos no monumento de Lenine, intocado, do jeito que morrera ali sobre a terra poeirenta da Sibéria. Pjetkin ordenara que o deixassem assim, e os deportados o tinham compreendido. A fé cresce com os mártires.

— Domskaneff está ali — disse a Dussova calmamente.

— E isso não a comove, Marianka Jefimovna?

— Eu cresci entre os mortos. — Ela deixou cair a cortina, voltou à mesa e continuou a sua paciência. — Igorenka, você não sabe... sou filha de deportados! Meu pai era um blatny, um conhecido ladrão... seus companheiros no campo o mataram porque ele roubara um pedaço de pão debaixo do colchão de palha de um vizinho. Desde então o Estado cuidou de mim. E agora desapareça, seu utopista incurável! Se sua mãe foi uma boa mulher, deve tê-lo ensinado a rezar. Reze... depois de amanhã, no máximo, os carrascos de Chabarovsk estarão aqui.

Pjetkin apertou os lábios e saiu. Não sentia medo, só um vazio, e pensava em Dunia.

 

A comissão de Chabarovsk não se fez esperar muito. Mas não se interessou pelos acontecimentos no Campo Sergejevka, e sim com a pessoa de Igor Antonovitch Pjetkin. O que ele fizera no acampamento foi anotado nos documentos, comentado a lápis vermelho, e posto de lado. Muito mais importante pareceu à seção distrital do KGB, o pedido de casamento com a médica Dunia Dimitrovna.

Um funcionário do KGB foi a Issakova e teve a felicidade de encontrar Dimitri Ferapontovitch Sadojev na sede do partido. Sadojev organizava listas para a distribuição de semeadura de inverno. Como todos os anos, descobrira que as reservas no silo não bastariam, e que os queridos camaradas tinham secretamente devorado parte dos bens do Estado, em vez de armazená-los. Tinham cevado com eles os seus pequenos mas carnudos porcos.

— Veja só, quem vem aí? — disse Sadojev furioso quando o homem do KGB entrou simplesmente, sem bater. — Um sujeito a quem enfiaram a boa educação no traseiro em vez de na cabeça! Vamos, irmãozinho, para fora, bata na porta! Isso aqui é uma sede do partido, não um bordel!

O homem de Chabarovsk sentou-se, atirou o barrete na mesa, exatamente em cima dos cálculos dos bens do Estado, e esticou as pernas. Sadojev ficou sem saber se devia esbofeteá-lo ou cuspir nele. Era um estranho, e Sadojev tinha antipatia por todos os estranhos.

— Camarada — disse Sadojev baixando a voz — é verdade que estamos nos últimos confins da Rússia, mas só por isso não somos idiotas. Além disso, eu sou o soviete da aldeia, e se lhe bater na cabeça isso é oficial. Sancionado por Moscou. O que deseja aqui?

— Falar com você, Dimitri Ferapontovitch.

— Você me conhece! — Sadojev ficou inseguro. — A que devo a honra?

O homem de Chabarovsk estendeu um cartãozinho de identificação sobre a mesa, Sadojev lançou-lhe um olhar e encolheu-se. KGB. Deus do céu!

— O senhor tem alguma missão, camarada tenente-coronel? — perguntou Sadojev, subitamente com a língua pesada. — É por causa do desaparecimento do capitão Kansakow? Um caso trágico. Remou até a China! Que coisa um sujeito doente da cabeça consegue inventar...

— Trata-se do Dr. Pjetkin — disse o homem. Chamava-se Plumov, mas podemos esquecer-lhe o nome. — Conhece-o?

— Como não iria conhecer o meu futuro genro? — Sadojev sentiu algo de desagradável. Eu não lhe disse?, pensou em silêncio. Aí vêm dificuldades. Um médico de campo de prisioneiros! Quem sabe ele próprio é deportado, e não contou nada. — O que há com Igor Antonovitch?

— Ele fez um pedido de casamento.

— Isso mesmo. Dunienka já está costurando o vestido de noiva e Annenka, minha mulher, anda correndo de um lado para o outro como uma galinha tonta. O senhor conhece isso, camarada tenente-coronel!... Elas perdem a cabeça quando se trata de agarrar um homem para sempre. Ah! Ah! Ah! — Aquilo devia soar engraçado, mas o riso ficou enfiado na garganta de Sadojev como uma espinha de peixe. Além disso, o sujeito de Chabarovsk parecia não ter nenhum senso de humor.

— Temos interesse em que esse casamento não se realize — disse Plumov com a indiferença de um comprador de cavalos que quer baixar o preço.

— Mas eles se amam — exclamou Sadojev espantadíssimo. — Que é que se pode fazer? Estou de mãos atadas, e mesmo as autoridades não vão conseguir virar dois corações numa volta de cento e oitenta graus.

— Podem, sim — disse Plumov parecendo um oráculo. — As autoridades podem tudo. Amor é um problema emocional. O interesse do Estado é algo real. O que será mais forte, camarada?

— Isso é um enigma duro. — Sadojev coçou a cabeça e puxou as pontas do bigode. — Pergunte a uma mulher, e a resposta será clara. Mas nós somos homens. Então, camarada, o que há contra Igor Antonovitch?

Plumov bateu com o indicador num dos papéis. Sadojev viu que estava coberto de carimbos, e tinha, portanto, seguido já um longo caminho.

— Ele é um bom comunista, um médico excelente, um sujeito honesto, um organizador de primeira, ele é exatamente tudo aquilo de que nós precisamos aqui na Sibéria, na nova terra. Pjetkin tem, porém, um pequeno mas decisivo problema... é alemão.

Sadojev meteu a cabeça entre os ombros, fechou os olhos deixando apenas uma estreita fenda, e pôs as mãos na cabeça como se o céu lhe caísse em cima.

— Alemão... — disse em tom abafado. — Ale... Camarada Plumov, tem de haver um engano! O pai dele é o herói da guerra Comandante Anton Vassilievitch Pjetkin, tenho certeza. Portador da Medalha de Bravura e da Ordem de Honra do Partido. O senhor deve ter pegado uma ficha errada. Igorenka é tão russo quanto o senhor e eu. Foi até criado numa escola do Estado.

— Ele é alemão. Leia, camarada Sadojev. É uma história bem enrolada. Em 1945, cometeram uma série de erros e não os corrigiram. O caos da guerra, tudo era possível. Mas agora vivemos num tempo de ordem, e temos o dever de desfazer resquícios daqueles dias de ilegalidade. Agora, nesse caso, podemos.

Sadojev mergulhou nos papéis. Era difícil entender o que lia.

— Não se pode negar — disse finalmente, e devolveu os papéis a Plumov. Seu rosto amarelado escurecera ainda mais. Sentia o coração martelar, pensou na filha e teve vontade de ganir como um cão surrado. — Mas será que ele próprio sabe?

— Com sete anos a gente tem memória — disse Plumov formalizando. — Ele não pode ter esquecido Kõnigsberg.

— Nunca falou nisso, só em Kichinev, no seu paizinho Anton Vassilievitch, e na sua mãezinha Irena Ivanovna, mas Kõnigsberg nunca! — Sadojev puxava o bigode ralo e com isso baixava o lábio superior. Parecia que estava soluçando de um modo horrível. — E agora, como é que vai ser?

— Sua filha Dunia terá de renunciar a Pjetkin.

— Camarada, não me considere um contra-revolucionário — disse Sadojev pesando bem cada palavra. Afinal, Pjetkin salvara duas vezes a vida de Dunia, isso não apenas merecia louvor mas também tolerância. — Mas por que não é possível que um alemão que se tornou russo case com uma moça russa?

— Pergunte a Moscou — disse Plumov. — Não fomos nós em Chabarovsk que fizemos as regras, e a ordem veio do Kremlin. Somos apenas o órgão executor.

Sadojev sacudiu a cabeça pesadamente. Moscou. Naturalmente, Moscou. Quem se atreve a fazer perguntas em Moscou? Todos ficam felizes se são deixados em paz, mas essa paz cessa imediatamente quando a gente chama a atenção das autoridades e carrega uma segunda vida nos arquivos.

— O senhor conhece a minha filha Dunia? — perguntou Sadojev cautelosamente.

— Não.

— Pois devia conhecê-la, camarada. Então entenderia que é mais fácil vestir uma baleia do que forçar a vontade de Dunienka. Vá até ela e diga-lhe: ”Menina, o seu casamento vai dar em nada! Trate de procurar com calma outro homem, mas nascido na Rússia. Há sessenta milhões de homens na União Soviética... já vai encontrar um entre eles para se casar...” Sabe o que acontecerá então? Anna, a minha mulher, vai pegar a grande colher de pau e enxotá-lo da cozinha, e Dunienka vai correr atrás do senhor com uma chibata pela estrada afora. — Sadojev recostou-se na cadeira, pegou o cachimbo, tirou o saquinho de fumo da gaveta, encheu bem o cachimbo e começou a envolver-se na sua conhecida nuvem amarela.

Plumov ergueu-se. Seu dever era secundário quando o mau cheiro bestial do cachimbo de Sadojev o espantou dali. Como pode alguém fumar um negócio desses, pensou. Se ele sobrevive a isso, não há veneno no mundo que liquide com ele.

— Você me acompanha, camarada?

— Até diante da cerca. Depois me sento no celeiro, fazendo o sinal-da-cruz.

— Vamos.

Sadojev refletiu durante todo o caminho em como um sujeito poderia afinal ser russo, até médico de campo de prisioneiros, e, ainda assim, alemão. As leis são confusas. Mas quando Moscou faz uma lei, deve ser correta. Moscou nunca se engana... esse é o primeiro mandamento da fé comunista.

Apertou a mão de Plumov na cerca, olhou-o longamente, como se o outro estivesse a caminho do cadafalso, e sumiu no celeiro.

Depois de meia hora Plumov apareceu no estábulo, junto de Sadojev. Dimitri Ferapontovitch conversava com sua vaca preferida, e perguntava-lhe o que faria se Anna quebrasse a cabeça do bom e leal Plumov.

— Você ainda está vivo, camarada? — exclamou admirado. — Como conseguiu isso?

— Vá ter com sua família — disse o outro, sério. — Elas precisam de apoio.

— E Dunienka?

— É uma moça inteligente. Vai renunciar.

— Impossível! O senhor a hipnotizou?

— O Estado pagou sua formação de médica, logo o Estado é o seu segundo pai. Pais devem ser obedecidos... ou se é repudiado.

Sadojev sentiu um frio na espinha. O KGB... Deus impeça um choque com essa gente. Eles sempre têm razão, pois atrás deles existe um único poder...

— Eu lhe agradeço, camarada — disse Sadojev cortesmente. — E o que vai acontecer agora?

— Vou ao campo de prisioneiros falar com Pjetkin. Então o problema estará resolvido. — Plumov deu a mão a Sadojev, e apertou um pedacinho de carne mole.

Havia na casa um silêncio sinistro. Sadojev puxou o gorro para perto dos olhos, respirou forte pelo nariz, meteu as mãos nos bolsos e abriu a porta com o pé.

Anna e Dunia estavam sentadas junto do fogão chorando em silêncio. Fitaram-no com olhos inchados, com olhares tão dolorosos que Sadojev arrancou o gorro da cabeça, jogou-o no chão e sapateou em cima dele.

— Vou matar esse Plumov! — berrou. — Vou afogá-lo no rio! Mas que adianta? Outro há de vir. Não podemos afogar as leis.

— Eu o amo — disse Dunia e cruzou as mãos. — E ainda que chovam leis... ninguém pode me separar de Igor. Vou lutar até contra Moscou, se for preciso!

O tenente-coronel do KGB, Plumov, apareceu no Campo Sergejevka quando o Dr. Pjetkin estava retirando um apêndice. A sede do comando, onde ele devia anunciar-se, já sinalizara a sua vinda. A Dussova o recebeu no vestíbulo do hospital e empurrouo para dentro do seu quarto.

— Antes que o senhor censure o camarada Igor Antonovitch, ou talvez até o prenda — disse ela, o rosto belicoso — escute o que tenho a dizer. O que ele fez foi um ato de desespero. As circunstâncias aqui no acampamento são indignas de um ser humano, e ninguém se preocupa com isso, apesar dos muitos pedidos. Se Pjetkin apelou para a auto-ajuda, agiu conforme a palavra de Lenine, que disse...

— Vamos deixar Lenine de lado, camarada capitão — disse Plumov. — Essa revolução no Campo... nós sabemos dela... pertence a outro setor de serviço. Estamos preocupados é com o ser humano Pjetkin, com sua vida privada, que está começando a se tornar desagradavelmente política.

— Igor Antonovitch? Não me faça rir!

— Ele quer se casar.

- De fato. — A Dussova dirigiu-lhe um olhar maldoso. — Então agora o KGB também já trata de papéis de casamento? Quanta honra! Ele deve ter grandes protetores nas altas posições.

— E se tem! — disse Plumov com um sorriso contrafeito. — Protegem-no como a um quadro de altar. Onde está ele?

— Operando. Apendicectomia.

— Isso é rápido. Leve-me até ele.

— Também entende de medicina?

— O KGB entende um pouco de tudo — disse Plumov com indiferença, mas a Dussova entendeu a ameaça oculta.

Pjetkin não mudou de roupa. Entrou na sala, vindo da sala de operação, com o avental de borracha salpicado de sangue, os cabelos colados à testa. Era a terceira operação daquele dia, num trabalho quase contínuo. Falou com Plumov, que estava sentado na cadeira, sozinho. A Dussova saíra depressa. Plumov folheava uma pasta com algumas folhas datilografadas, que encontrara sobre a mesa.

— Isso não é definitivo — disse Pjetkin. — Só um esboço.

— Estou vendo. Um relatório sobre o Campo. Alguns camaradas ficaram de orelhas vermelhas por causa disso. Meu nome é Ivan Ignatievitch Plumov. KGB II.

— Eu já o esperava.

— Está enganado. Essa confusão aqui no Campo não me interessa. Quero falar sobre o seu casamento.

— Está-me trazendo o passaporte e os papéis? O próprio KGB?

— Igor Antonovitch, seu passaporte foi retido.

— Retido?

Pjetkin encostou-se à parede. De repente, percebia que era um indivíduo programado. Respirava, comia e bebia, urinava e evacuava, pensava e agia, e ainda assim tudo isso era predeterminado, controlado, dirigido em trilhos precisos, inserido nessa imensa máquina que se chama coletividade.

— Explique-se, Ivan Ignatievitch.

— A médica Dunia Dimitrovna, com quem quer se casar, foi incluída num plano que a impede de se prender por laços fixos.

— Mas isso é tolice — disse Pjetkin. — É retórica barata. Ela vai assumir o cargo em Irkutsk. Eu fiz um pedido de transferência para Irkutsk. Médicos são necessários em toda parte. Sou cirurgião, logo, mercadoria rara...

— Nós precisamos de você aqui em Sergejevka, e da camarada Dunia em Irkutsk. Seria impossível uma transferência para lá ou para cá. Os cargos são ocupados conforme pontos de vista mais altos, que o indivíduo aqui embaixo não entende. Enxerga apenas até a primeira esquina, mas nós supervisionamos o país inteiro.

Plumov jogou a pasta na cama e olhou Pjetkin com ar crítico.

— Dê-se por feliz por sobrevoar o país como um falcão — disse Pjetkin. Era um sarcasmo que Plumov julgou impróprio, e que o atingiu pessoalmente. — Mandei o meu pedido diretamente a Moscou e espero uma resposta afirmativa.

— Eu sou a sua resposta! Chegou um telegrama de Moscou. Estamos agindo por iniciativa superior, e esta diz: nós lhe proibimos casar-se com Dunia Dimitrovna!

— O senhor está louco! — disse Pjetkin com um sorriso amarelo, que já era expressão de dor, uma dor que lhe despedaçava o coração. — Como podem me ordenar a quem devo amar?

— Nós podemos, Igor Antonovitch! Não porque tenhamos algo contra Dunia Dimitrovna. Muito menos contra você pessoalmente. Você é um médico em cujos papéis só se anotou louvor. Temos grandes planos a seu respeito, transferências para clínicas famosas, uma docência, até professor deverá ser um dia, os seu trabalhos sobre novos métodos da gastroenterostomia foram lidos com muita atenção... Mas o seu casamento é impossível.

— Motivos! — disse Pjetkin secamente. Os elogios o deixavam frio.

— Motivos? — Plumov esticou as pernas para a frente. — Você é alemão.

— O que é que eu sou? — Pjetkin esperava muita coisa, mas aquilo o deixava atónito. Alemão? Então o tempo retrocede? Kõnigsberg, o cemitério, o fogo cerrado sobre os túmulos, a destruição da cidade, o assalto do Exército Vermelho, o capitão Pjetkin, que encontra um menino choroso e apavorado atrás de uma lápide... quem é que ainda se lembra disso tudo?

— Onde nasceu? — perguntou Plumov imperturbável.

— Em Kõnigsberg. Mas...

— Como se chamavam seus verdadeiros pais?

— Peter Kramer e Elisabeth Kramer, nascida Reiners.

— E ainda pergunta se é alemão?

— O capitão Pjetkin me adotou. Cresci na Rússia, freqüentei escolas soviéticas, a Universidade, tornei-me doutor, sou médico do Campo de prisioneiros no vestíbulo do inferno... e ninguém até hoje indagou onde nasci.

— Mas os documentos não esqueceram isso. O senhor é Pjetkin de nome, mas é Hans Kramer de nascimento. Se a gente tosquia um carneiro e lhe veste um couro de bezerro, em que ele se transforma?

— Eu não sou um carneiro! Nunca me disseram que não era russo. Sinto-me russo, penso, vivo como russo, amo esta terra com patriotismo ardente, como poucos cidadãos a amam, estou pronto a morrer por ela... por que devo ser alemão? Nem conheço a Alemanha, não tenho nenhuma ligação espiritual com esse país, ele me é distante como a luz, não me interessa em nada, eu seria um estranho naquele chão... por que querem fazer de mim algo que não posso ser?

— Porque o senhor nasceu lá. Foi integrado no nosso país... mas é totalmente impossível permitir seu casamento com uma legítima russa.

— E é Moscou quem diz isso?

— Pode receber a decisão por escrito se quiser, Igor Antonovitch.

— E pensa que eu me curvarei a essa loucura das autoridades?

— Aí está. A característica alemã: a crítica! Um verdadeiro russo se dobra sem perguntas ante uma ordem de Moscou. — Plumov ergueu-se bruscamente. — Eu já estive em Issakova. Dunia Dimitrovna tem mais juízo do que você, Pjetkin. Ela desistiu.

— Não é verdade! — exclamou Pjetkin. — Você está mentindo!

— Eu sei que você é um revolucionário. Mas as paredes que o cercam são grossas, têm metros de espessura. Não lute contra isso. Seja sensato, Pjetkin. Você pode ser professor em Charkov ou Kiev. Você é um génio... e em Moscou sabem disso.

— Nunca fui tão sensato como agora — disse Pjetkin com voz fremente. — Você deu o seu recado, camarada Plumov, e eu lhe digo oficialmente que desprezo a sua ordem. E agora saia do meu caminho. Vou-me encontrar com Dunia, e vamo-nos casar.

— Nem mesmo um cego se atreveria a casar sem licença. Pode quando muito fazer um filho em Dunia, mas isso é tudo. — Plumov saiu da frente e a porta ficou livre. — Vamos, corra, Igor Antonovitch... Moscou fica a sete mil quilómetros de distância...

Naquela noite, Pjetkin não voltou ao Campo, nem a Dussova se pôs em ação, não enxotou doentes para a praça de inspeção, nem se comportou como um demónio. Ficou no seu quarto, esperou uma resposta de Moscou, e embebedou-se com aguardente barata, quando Moscou não se manifestou. Sua única ligação falhara... Timofei Alexandrovitch, o tio, o irmão da sua mãe, um membro do Soviete Supremo, puxara a coberta sobre a cabeça. A proteção significa a metade da vida na Rússia, mas tem seus limites nos provérbios.

Pjetkin, Dunia, Anna e Sadojev ficaram toda a noite sentados discutindo o assunto. E decidiram tomar a mais louca das atitudes: combater a lei.

Nos dias seguintes, desenvolveu-se uma atividade frenética. O KGB em Chabarovsk mandou um relatório para Moscou, dizendo que o camarada Pjetkin se rebelara e queria casar com a Dra. Dunia Dímitrovna apesar dos insistentes avisos. A administração distrital do campo de prisioneiros apresentou um relatório sobre um movimento de revolta que o Dr. Pjetkin tinha provocado em Sergejevka. A médica do Campo, a Dra. Dussova, queixara-se de falhas conhecidas há vinte anos, mas que ninguém até ali denunciara publicamente. O médico do Campo Sergejevka, Dr. Pjetkin, bombardeara várias vezes as autoridades com relatórios sobre o miserável atendimento médico do Campo (veja-se a Dussova), suas próprias medidas em contrário (veja-se o relatório do Campo) e sobre a falta de liberdade de casar-se com quem quisesse. E tudo isso num Estado supostamente ”livre”.

Enquanto eram cartas, podia-se jogá-las fora, e interessar-se por outra coisa... mas a situação ficou crítica quando o Coronel Anton Vassilievitch Pjetkin, herói da grande guerra da pátria, lutador de Stalingrado e conquistador de Berlim, apareceu em Moscou percorrendo as repartições oficiais como uma tempestade de areia. Berrava no bom antigo jeito militar, ameaçando todos com uma constatação: ”O que está faltando por aqui é uma nova guerra! Em Stalingrado teriam cortado as gorduras e feito sopa com elas!”

Anton Vassilievitch, o herói de guerra, não hesitara uma só hora, quando seu filho lhe comunicara a situação em que estava na distante Sibéria. Foi uma carta breve mandada com urgência. O coronel, em Moscou, não se deteve em busca de um quarto de hotel. Se necessário, podia dormir com os oficiais da Academia Militar. Foi diretamente da estação para o lugar de serviço do Marechal Ronovsky.

Este se tornara um ancião, quieto, impregnado de uma estranha atitude aristocrática. Usava uniforme mais por tradição do que por necessidade, pois suas funções no Exército Vermelho eram mais representativas. Era apresentado nas paradas. O seu peito rebrilhante de medalhas era um elemento de luxo em recepções oficiais, e para que ele não ficasse inteiramente num canto, esperando uma ocasião de aparecer, tinham-lhe dado o cargo de controlar a escolaridade na Academia Militar. De vez em quando, tinha de aparecer na Academia, controlar os cursos, dizer aqui e ali que podiam ter dito isso ou aquilo de outro modo, e depois voltava ao seu lugar de serviço, lia jornais e tomava xícaras freqüentes de café.

Ronovsky recebeu Pjetkin como a um filho, beijou-o nas duas faces, fez servir vodca e alegrou-se como uma criança porque o seu aluno predileto ia tão bem. Pjetkin vestira o uniforme para essa visita... ele ficara um pouco justo no peito e na barriga.

— Anton, meu pequeno... — disse Ronovsky carinhosamente. Para ele, Pjetkin permanecia o ”pequeno”, embora tivesse cinqüenta e cinco anos e cabelos brancos como Ronovsky.

— Até que enfim achou o caminho para Moscou! Amanhã vou apresentá-lo ao Estado-Maior. Quantas vezes falei em você. Esse Pjetkin, eu dizia, e sua companhia de atiradores e lutadores, aquilo era uma tropa que hoje nem se conhece mais. Eles arrancavam os pêlos do rabo do demónio, e os enfiavam nos seus bonés! Mas que veio fazer aqui em Moscou?

— Estou numa nova luta corpo a corpo, camarada Marechal! — disse Anton Vassilievitch entregando-lhe a carta de Igor.

Romovsky colocou os óculos grossos e piscou para Pjetkin por sobre as lentes.

— Estão tratando o meu Igor como um inseto.

— Igor. É o menino do cemitério? O seu filho adotivo? Mas ele é médico.

— Um médico excelente. Agora, quer-se casar... e de repente lhe dizem que ele ainda é alemão e não pode casar-se. Leia o que ele escreveu. É de cortar o coração! Meu filho tratado desse modo!

O Marechal Ronovsky leu a carta atentamente. Depois, dobrou os ócuos e olhou a parede por cima da cabeça de Pjetkin. Lá estava, numa simples moldura de madeira clara, o retrato de Lenine de mão levantada.

— As autoridades têm razão, meu filho — disse devagar. — Não se aborreça, mas leis são pensamentos lógicos, sem alma, embora indiscutíveis. Ele nasceu em Kõnigsberg, chamava-se Hans Kramer, e isso não se pode alterar.

— Então eu não precisava tê-lo adotado! — berrou Pjetkin.

— E ninguém o forçou a isso. Lembre-se do que eu lhe disse naquela ocasião. Não foi diante de Berlim?

— Numa padaria, camarada Marechal.

— Certo. O que foi que eu disse? Você com seu coração mole! Você vai receber a conta um dia! E aqui está ela, Anton Vassilievitch... uma conta mandada pela lei. E você tem de pagar. Igor Antonovitch, o seu filho, continua a ser alemão. Você foi apenas quem o criou. Quer se rebelar contra isso?

— Quero uma exceção, se não for possível de outro modo.

Não compreendia as leis mais do que Igor, e resistia à constatação de que vivera quase um quarto de século dentro de uma ilusão. Fizera por Igor Antonovitch tudo o que fora possível: onde havia russos que fossem tão perfeitamente soviéticos quanto ele? Se havia nele alguma coisa de alemão, então era a data de nascimento nos documentos. Um par de cifras! Será que um ser humano se constitui de cifras?

— Vamos tentar, meu filho — disse o velho Ronovsky. — Agora, outra geração está no comando. Você viu que o seu Igor teve de ir para a Sibéria. Eu não consegui nada. Nós, velhos lutadores do front, somos fósseis, nada mais. A nova geração sabe tudo melhor, muda tudo de lugar, modifica o que pode modificar. Mas vamos tentar. Vamos correr de um lado para outro. Primeiro, para o Ministério do Interior. Esse é o lugar mais importante. Ele é que teima em considerar Igor um alemão. Infelizmente esse Ministério não tem respeito algum por um marechal!

O sombrio pressentimento de Ronovsky realizou-se... O Ministério do Interior provou a Pjetkin que Igor Antonovitch era cidadão soviético, mas, ainda assim, um alemão.

— Isso é esquizofrênico! — gritou Pjetkin fora de si. Há dois anos tinha problemas cardíacos, tomava comprimidos e fazia tomarem-lhe a pressão todos os meses. O médico de Kichinev estava sempre insatisfeito. O coração de Pjetkin disparou também agora, ele tomou um comprimido e respirou fundo: — Igor não pode casar... mas pode operar cidadãos soviéticos, isso pode!

O funcionário, o camarada conselheiro ministerial Cheremet, confirmou com a cabeça:

— Isso pode. Diante de um médico todos são iguais. Isso é a grande vantagem dele, camarada coronel... como médico, ele é internacional. A profissão de professor, por exemplo, ele nunca poderia ter escolhido... Nós o teríamos impedido imediatamente. Mas a Medicina está aberta ao mundo inteiro.

— Grandes palavras! Frases! — rugiu Pjetkin. — Meu filho tem de ser feliz. Na Rússia. Como russo. Ele ama Dunia Dimitrovna, que também é médica, eles formariam uma equipe que traria infinitas vantagens ao povo russo. Camarada Cheremet... só um rabisco com a caneta, uma vez, sobre o papel... Faça do meu filho um verdadeiro russo!

— Já pensamos nessa possibilidade, Anton Vassilievitch. — Cheremet abriu uma pasta de documentos, folheou um deles, e encontrou a página desejada. — No ano de 1953, estávamos dispostos a receber Igor Antonovitch no seio do nosso povo. Mas encontramos as listas mais recentes de busca da Cruz Vermelha.

Sob a letra K estava escrito: ”Procura-se Hans Kramer. Agora com 15 anos de idade. Nascido em Kõnigsberg. Desaparecido desde a conquista da cidade.” Ao lado havia o retrato de um menino louro.

Um frio gélido espalhava-se em Pjetkin. Escutou para dentro, mas não ouviu mais as batidas do próprio coração.

— Quem... quem deu esses dados? — perguntou numa voz sem entonação.

— Os pais. Peter Kramer e Elisabeth Kramer.

— Mas eles sobreviveram?

— Moram em Lemgo, na Vestfália.

— Por que não destruíram Lemgo? — disse Pjetkin em tom abafado. — Por que não a arrasaram? Por que nunca me disseram isso?

— Não poderia ter gostado, camarada.

Pjetkin sacudiu a cabeça, cansado. Uma infinita tristeza lhe exauria toda a sua força. Ergueu-se, estendeu a mão inerte a Cheremet, fitou Ronovsky e saiu, curvado, como um homem muito velho que dava seus últimos passos.

— O senhor podia ter-lhe poupado isso — disse Ronovsky baixo. — Eu sabia há anos, e silenciei. Agora ele perdeu tudo no mundo. Era mesmo necessário?

— Isso vai esclarecer tudo, camarada Marechal — disse Cheremet, fechando a pasta. — Não faz mais sentido iludi-lo.

Ronovsky não alcançou mais Pjetkin. Tinha desaparecido quando o marechal saiu da sala.

De cabeça baixa, Pjetkin passou pelos amplos jardins, circundou a Catedral da Assunção de Maria, ergueu os olhos para a cebola dourada da torre do sino Ivan Veliki, e depois sentou-se cansado no pedestal de concreto no qual tinham montado o gigantesco canhão ”Czar Puchka”.

Lá ficou sentado, calmo e contido, de cabeça baixa, deixando passar os visitantes, escutando as palavras dos guias de turistas. Mas tudo aquilo não lhe interessava, eram palavras que escorriam por ele como a água por um pano encerado.

Os verdadeiros pais dele estão vivos, pensava apenas. Estão à sua procura, e um dia vão tirá-lo de mim, o meu Igorenka, meu filhinho, meu coração, minha vida. Vou ter de levá-lo até o trem, e nunca mais o verei. Quem pode suportar isso? Não vivi apenas para ele? Não é por isso que envelheço, para me alegrar sempre de novo com ele?

Apoiou a cabeça nas duas mãos e fitou o chão. À noite, quando o Kremlin foi fechado, ainda estava sentado ali. Um suboficial e dois soldados, a patrulha, ficaram parados e hesitaram em falar com o camarada coronel. Depois atreveram-se, e não receberam resposta.

Já estava rígido quando o levaram para o posto da guarda.

O Coronel Anton Vassilievitch Pjetkin foi enterrado em Kichinev, ao lado de sua mulher Irena Ivanovna. Foi um enterro oficial, com música, bandeiras, um acompanhamento de honra, discursos, salvas de fuzil, e incontáveis coroas e ramos de flores. Igor beijou o pai mais uma vez e disse: ”Eu lhe agradeço por tudo, paizinho”, antes que a tampa fosse aparafusada. Depois o caixão desceu à terra, as bandeiras tremularam sobre a cova, um clarim do Estado-Maior soprou a velha saudação dos cossacos. Dunia e Sadojev abraçaram Igor, apoiando-o quando ele se dirigiu à sepultura e jogou sobre a tampa do caixão as últimas flores. Anna Sadojev estava sentada numa cadeira desconjuntada, chorando alto, e não podia dar mais um passo de tanta emoção. A grande surpresa aconteceu quando a maioria dos presentes já partira. No seu uniforme de capitão, um sinal de luto na manga, Marianka Dussova aproximou-se da sepultura. Ninguém a vira até então — ela apareceu de repente, ficou sozinha diante do caixão e jogou sobre ele um grande ramo de pinheiro siberiano. Depois virou-se, fitou Dunia longamente, era a primeira vez que se defrontavam. Prosseguiu até junto de Igor, tomou-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-o na testa e deixou o cemitério em silêncio.

— Traga-a de volta... — disse Dunia baixinho. — Convide-a para a refeição fúnebre. Não nos vamos despedaçar mutuamente...

Mas Marianka desaparecera. Igor procurou no cemitério entre as lápides, diante do muro... não a encontrou.

— Ela é de uma beleza assustadora — disse Dunia quando Igor voltou sozinho.

Depois de quatro dias, todos voltaram a Tssakova, indo de avião até Chabarovsk. Foi o primeiro voo de Sadojev... que vomitou desde a decolagem até à chegada, e foi levado para fora do aparelho com o rosto esverdeado.

— Prefiro estar mil verstas abaixo da barriga de uma vaca a entrar de novo num negócio desses! — disse ele debilmente, e deitou-se logo na cama. — O homem não nasceu para andar pelo ar...

No quinto dia após o enterro, chegou a esperada carta de Moscou.

”É com alegria que o nomeamos cirurgião-chefe do hospital de Chelinogrado. Deve assumir o seu posto dentro dos próximos quinze dias. Desejamos-lhe muito sucesso, camarada...”

Pjetkin abriu o mapa da Rússia e procurou. Sadojev e Dunia olhavam sobre seus ombros. A mãe Anna chorava de novo.

— Onde fica esse chiqueiro de Chelinogrado? — perguntou Sadojev.

— Aqui. — Pjetkin pôs o dedo num ponto. — Em Kasakstan. No meio da estepe. Vou viver entre os chacais...

Sadojev suspirou fundo, pegou o mapa da mesa, rasgou-o em minúsculos pedaços, e jogou tudo no fogo.

 

Depois de uma semana de licença que haviam tomado para o enterro de Anton Vassilievitch e a regulamentação da sua herança, Pjetkin e Godunov voltaram ao Campo Sergejevka. Sadojev levou-os com sua carroça até avistarem o primeiro bloqueio. Lá, Igor e Marko desceram, abraçaram Sadojev e andaram a pé os últimos metros.

No Campo algumas coisas tinham mudado também... Pjetkin percebeu isso logo que chegou ao portão. Os grupos de serviço interno, que como sempre varriam as ruas e alisavam a faixa da morte, não levantaram os olhos como de costume quando o médico passava, saudando-o, mas empenharam-se mais intensamente no seu serviço. Em contrapartida, os supervisores estavam mais malcriados, sorriam zombeteiramente para Pjetkin, enfiavam as mãos nos bolsos provocadoramente e assobiaram alto a Internacional. O chefe da barraca VI, um sujeito brutal com cara marcada por cicatrizes de punhal, um assaltante temido que andava pelo Campo com um martelo, batendo com ele nas costas dos outros prisioneiros, dizendo: ”Voa, homem! Voa!”, encostava-se preguiçosamente na parede da barraca. Mexeu nas calças quando Pjetkin passou, arrotou alto e mostrou-lhe o pênis.

Pjetkin ficou quieto. Marko, ao contrário, parou, sacudiu a cabeça, olhou bem e disse:

— Você tem razão, camarada. Está em muito mau estado. Amanhã de manhã, às oito, no hospital! Vamos amputá-lo! — Depois baixou-se rápido como o raio, pegou um punhado de areia e jogou-a contra o sexo exposto. O martelo jogado contra sua cabeça passou a um milímetro.

— Eles já sabem — disse Marko quando alcançou Pjetkin, que continuara seu caminho. — Já comentaram que você foi transferido. Agora os ratos saem outra vez das tocas, e dançam no campo de trigo. Vou atirar Russlan na parede.

O pressentimento de Marko era realidade. A notícia da nomeação de Pjetkin como o cirurgião-chefe e sua transferência para Kasakstan chegara de Chabarovsk até Marianka Dussova. Esta se portara como louca, sapateara com as botas em cima da carta, e atirara uma cadeira na cabeça de Russlan, que apenas queria fazer-lhe uma pergunta. A novidade correu pelo Campo como fogo num pavio, e Russlan cuidou disso. O conselho secreto dos blatnys, que decidira o assassinato de Pjetkin na primeira oportunidade, reuniu-se às pressas e eliminou esse feio assunto do seu programa de ação. Mas decidiram que, logo após a partida do ”reformador”, como chamavam Pjetkin, todas as boas condições antigas voltariam a imperar: o poderio dos criminosos sobre os políticos. Os kontriks previam aquela evolução das coisas... já estavam-se rebaixando de novo, saíam da frente de Pjetkin e aguardavam a vingança dos blatnys. O hospital estava estranhamente vazio. Russlan estava sentado na enfermaria, lendo um jornal, e não se levantou quando Pjetkin e Godunov entraram. Fez como se fosse surdo.

— Ah! — exclamou Marko.—Um caso de paralisia cerebral. Camarada doutor, em Kichinev também tivemos um caso assim. Completa paralisia da capacidade de pensar. O professor então pegou o martelo e bateu na cabeça! E sabe o que aconteceu? O paciente ergueu-se de um salto e pôs-se a citar Puchkine.

Russlan virou-se com ímpeto, deixou cair o jornal e quis gritar alguma obscenidade, mas Godunov não permitiu. Pegou a cabeça de Russlan com as duas mãos, apertou-a e sacudiu-a como a um coco quando se quer verificar se há água dentro. Depois, colocou-o na cadeira de novo, deixando-o paralisado de horror diante de tanta força.

— Onde estão os doentes? — perguntou Marko brandamente.

— Não se apresentou quase ninguém — respondeu Russlan de olhos esbugalhados.

— A camarada Dussova fez de novo suas seleções acuradas?

— Não. — Russlan sacudiu a cabeça com esforço, sentia como se sua cabeça tivesse encolhido pela metade. — Hoje só se apresentaram nove doentes.

Pjetkin deixou o quarto e foi até Marianka Dussova. Era tudo como Marko imaginara: a ordem no Campo estava a desagregar-se novamente. O predomínio dos criminosos se solidificava. Nem os doentes se atreviam mais a dizer que estavam doentes.

Um gosto amargo apareceu na boca de Pjetkin. Perto da porta do quarto de Marianka, ficou parado, e por alguns segundos sentiu-se dominado pela corrente de pensamentos que o assaltou. Cinqüenta anos de revolução mundial, cinqüenta anos de modelo como um mundo novo, meio século de reeducação das pessoas para respeitar os direitos humanos e a dignidade das pessoas e ainda era possível uma coisa como o Campo Sergejevka! Bateu na porta, esperou pelo possante ”Entre!” e entrou no quarto. Marianka Jefimovna estava sentada diante de uma armação com vidros de laboratório, e fizera alguns exames de sangue. Aquilo era novidade. O sangue dos prisioneiros jamais lhe interessara até ali, nem mesmo quando corria de feridas e pingava no chão enquanto os seus dedos batiam no peito da vítima: ”Apto! Apto!”

— Igor Antonovitch... você voltou! — disse ela com sua voz peculiar, capaz de tantas modulações. Agora, estava escura e macia, um murmurejar de vento nas folhagens do outono. As mãos dela juntaram-se, e pela primeira vez Pjetkin viu que ela tinha belos dedos cuidados, unhas discretamente pintadas de vermelho.

— Obrigado, Marianka Jsfimovna — disse ele e estendeu-lhe a mão. Ela colocou ali os dedos, frios e lisos como peixes.

— Por quê? — perguntou ela. — Porque não botei os doentes outra vez parados na praça? Não valia a pena... eram muito poucos.

— Você foi visitar o túmulo de meu pai... Por que logo desapareceu? Eu a queria convidar para uma pequena cerimónia fúnebre.

— Havia pouco tempo. Pude voar com um avião da nossa força aérea e só tinha alguns minutos. — Sua mão fria contraiu-se na pele. — Igorenka... eu tenho os papéis da transferência.

— Eu sei. Para Chelinogrado.

— Você não vai, está ouvindo? Vai recusar-se a ir para lá! — Na voz dela soava o medo animal, comovente, de todas as mulheres diante do inevitável. Puxou Pjetkin para junto de si, enlaçou com o outro braço os seus quadris, e apertou o rosto contra o ventre dele. Embora pensasse em Dunia, Igor acariciou-lhe os cabelos. — Você não vai partir! — exclamou ela. — Mandei um protesto para Moscou!

— Não vai adiantar nada, Marianka Jefimovna. — Ele afastou-lhe a cabeça e levantou seu rosto. Ela chorava. Sim, o milagre acontecera... ela chorava, grossas lágrimas redondas e infantis, que corriam pelo seu rosto fremente. — Uns mandam, outros são mandados. Isso nunca mudará. Cada um de nós é programado, é parte de um processo de produção, é controlado, ajustado, orientado e corrigido. Autómatos de pele, músculos, ossos e sangue. E se esse autómato não funciona mais, vai para a oficina, é desmontado, lubrificado, limpo, e religado... até que volte a ser o velho autómato trabalhando com precisão. Sergejevka é uma dessas oficinas. E como em todas as oficinas, os autómatos totalmente estragados são postos fora. No lixo, no ferro-velho, para serem fundidos de novo. O que você pode alterar em tudo isso, senhora mecânica de gente, Marianka Jefimovna?

— Você me odeia, não é, Pjetkin?

— Não. Mas considero-a um enigma. De dia para dia...

— Eu o amo, Igorenka. — A voz dela era de novo macia como veludo. Marianka não se modificou, embora ainda chorasse e as lágrimas lhe corressem inesgotáveis dos cantos dos olhos. — Eu vi a sua Dunia. É linda, linda, um sol polido sobre um lago calmo. Nunca você poderá me amar, agora sei, mas isso também não me vai impedir de amá-lo. Entende isso? Igoruschka, acredite em mim... nunca amei antes. Fui educada para odiar os homens. Como filha de um campo de prisioneiros, eu os vi deitados atrás das grandes bacias de lavar, os capatazes e os condenados, e minha mãe estava entre eles. Eu ficava ao lado, ninguém se importava comigo, e quando fiz doze anos o chefe do destacamento da lavanderia me disse: ”Mais um ano, e vou deitar você na mesa de passar ferro.” Pôs a mão debaixo da minha saia, eu cuspi nele e lhe dei um pontapé na canela. Minha mãe teve de pagar por isso. ”Você deseducou essa malcriada!”, gritaram-lhe na cara. ”Queria que fosse uma fina dama, bem? Mas tome nota: porcas só parem leitoas, não cavalinhos de corrida!” E eu estava sempre junto, escutava e via tudo, e jurei odiar os homens, odiá-los como é possível odiar algo cuja visão nos deixa doentes. Então você veio, Igorenka... e quando entrou no quarto, eu soube desde o primeiro olhar: Eu estava enganada! Não há nada mais belo no mundo do que um homem. Foi isso que pensei, Igorenka. E logo esse homem nunca me pertencerá. Eu pergunto, Igorenka, seja honesto comigo: Se Dunia não existisse...

— Mas ela existe, Marianka.

— E se não existisse?

— Não sei...

— Ela é mais bonita do que eu.

— É diferente.

— O amor dela é quente como o vento das estepes...

— Marianka, por que nos estamos torturando assim?

Ela caiu contra Pjetkin, abraçou-o e chorou. Ele ficou ali indeciso, enlaçou com os braços o corpo forte da mulher, sentiu o aperto dos seios fortes, e foi ficando inseguro. Lentamente, passo a passo, levou-a ao quarto do lado, e deitou-a sobre a cama. Mas apenas ela sentiu o colchão, levantou-se num salto, e fugiu com dois grandes passos para o canto.

— Não estou doente! — gritou. — E não quero a sua piedade, Pjetkin! Se alguém precisa de compaixão é você! Sabe para onde vai? Conhece Chelinogrado? Cirurgião-chefe de um hospital! Apenas um título! Bem poderia se chamar: percevejo-chefe na parede da cloaca de Kasakstan! A terra nova! O seio ainda virgem da Rússia, estourando de fertilidade! Sabe o que o espera por lá?

— Doentes... — disse Pjetkin com simplicidade.

De repente, ela ficou quieta, olhando-o com seus grandes olhos negros, espantada, e, no seu modo incompreensível, transformou-se de novo.

— Você é um anjo, Igorenka — disse baixinho. — Anjos são suspeitos neste mundo. Vão aniquilar você.

— Não posso evitá-lo.

— Então faça concessões. Encolha a cabeça nos ombros e feche os olhos. Ponha as mãos nos ouvidos e fique surdo. Cole esparadrapo nessa boca solta e fique mudo. E vá atrás dos outros, cante mais alto que eles, passe à sua frente, marche na ponta, pegue a bandeira, exercite-se no comando... Uive como os lobos, e eles lhe darão comida...

— E é exatamente isso que não posso fazer, Marianka!

— Então vai perecer miseravelmente! Não espere que alguém fique do seu lado. Só existem covardes agora.

— E apesar disso você protestou em Moscou?

— Que é que tenho a perder? — Ela enxugou as lágrimas nos cantos dos olhos. — Você vai-se embora, Igorenka... e que é que me restará?

A partida de Dunia para Irkutsk foi marcada para uma sextafeira. Sadojev informara-se sobre os trens, horários de partida, baldeações, e com isso descobrira que na rede ferroviária soviética, ao menos ali no sul da Sibéria, o diabo estava solto.

— Tiveram cinqüenta anos para limpar a sujeira do relaxamento czarista! — berrou Sadojev para o inocente funcionário atrás do guichê, e batia com o punho no balcão. — O que foi que fizeram durante esse tempo todo? Deitados no fogão, fazendo filhos e cuspindo na parede, hem? Por que é que a minha Dunienka tem de esperar seis horas em Tchita e mais cinco horas em Ulan-Ude? Onze horas de tempo desperdiçado... isso é planejamento progressista e racional? Vamos, camaradas! Digam alguma coisa! Eu sou membro do partido há trinta anos.

Os funcionários apenas sacudiam os ombros. Sadojev comprou o bilhete, rangendo os dentes, e voltou a Issakova.

Começara a grande corrida para fazer as malas. A mamãe Anna corria como uma galinha degolada de um lado para outro, três vizinhas choravam alto sentadas no quarto, como se se tratasse de enterrar um ser amado. Dunia fez sua última ronda pela aldeia, visitou os doentes, e voltou com um carrinho de mão puxado pelo pequeno Ivan Pantalonovitch, cheio de presentes. Até um longo manto de peles de lobo havia, presente do caçador Ifan.

— É frio no inverno em Irkutsk — dissera ele. — Menos 50 graus e até abaixo. Um passarinho como você não deve sentir frio.

A última viagem à estação de Blagovjechtchensk foi feita por Dunia e Sadojev sozinhos. A mãe Anna ficou, seria demais para o seu coração. Ela abençoou Dunia na porta da casa paterna, beijou-a longamente, pôs na sua mão um saquinho com pão e sal, e disse:

— Nunca o deixe ficar vazio, e Deus estará com você.

— Irkutsk não fica em outra estrela, mamãe — disse Dunia com voz firme. — Em breve, vamos ver-nos de novo. Vou mandar buscá-los... vou economizar os rublos do meu ordenado, e pagar a sua viagem.

— Vamos ver! — exclamou Sadojev da boleia do seu carro, estalando a longa chibata. — Ainda que tenhamos de ir assim até Irkutsk! Acha que nossos cavalinhos não conseguem isso? Você vai ver, Dunienka, um dia estaremos diante da porta chamando: ”Feno para os nossos cavalos! Água!” E os camaradas em Irkutsk vão ficar bem espantados.

Tudo aquilo devia soar alegre, mas quem pode ficar rindo quando tem a garganta cheia de soluços? Sadojev fez a única coisa certa: estalou a língua, chicoteou os cavalos e deixou que galopassem para longe de Issakova, antes que começasse a grande lamentação e a despedida se tornasse uma tortura. Só fora da aldeia, na estrada junto ao Amur, ele parou de novo e limpou os olhos.

— Paizinho... — disse Dunia Baixo. — Por favor, não chore.

— E quem é que está chorando? — berrou Sadojev. — A areia, a maldita areia entra nos olhos da gente! Nunca houve um ano tão seco. Tudo está cheio de pó! — Remexeu no casaco, tossiu um pouco, voltou os olhos para o rio e fez como se olhasse os juncos chineses que passavam longe no horizonte, na água prateada. — Também quero lhe dar uma coisa, Dunienka — disse com uma voz que dominava a custo. — É do seu avô, o valente Gavrilow Romanovitch. Ele o encontrou em 1914 na Prússia Oriental, na rua, mas acho que o roubou. Dizem que traz sorte, e enquanto esteve conosco nunca tivemos miséria, é verdade. Leve-o, filhinha, ponha-o no pescoço... — Ele abriu a mão. Um amuleto esculpido em marfim, com uma pequena Madona de âmbar dourado e translúcido, apareceu aos olhos de Dunia. Ela o pegou, beijou e colocou-o na corrente fina, de prata, que trazia ao pescoço. Sadojev soluçou alto, berrou para o rio: ”Maldita areia!”, chicoteou os cavalos e prosseguiu viagem.

Pjetkín já esperava por eles no fim do caminho da floresta, sentado num tronco derrubado, fumando nervosamente um papyross após outro.

— Finalmente! — exclamou e correu ao encontro do carro. — Não vamos mais alcançar o trem.

— Então ela pegará o seguinte! — gritou Sadojev. — De qualquer jeito vai ficar onze horas sentada esperando.

Pjetkin subiu para o lado de Dunia, beijaram-se, seguraram-se as mãos e ficaram calados. O que podiam significar as palavras numa hora daquelas?

Como era de prever, chegaram tarde a Bagovjechtchensk. Quando pararam diante da estação, o trem saía bufando. Sadojev deu um salto e correu para a bilheteria. Os funcionários que o viram chegar encolheram as cabeças. Reconheceram-no imediatamente. quem uma vez lidava com ele, não o esquecia mais.

— Que significa isso? — berrou Dimitri Ferapontovitch sacudindo o punho ameaçador. — Lá vai o trem, pontual, no minuto certo! Todos os dias sai atrasado, os planos nunca são cumpridos, mal logo hoje ele sai na nossa cara. Quando segue o próximo trem para Tchita?

— Amanhã de manhã às sete, camarada — disse o funcionário atrás do guichê. — No horário ali na parede está tudo explicado.

— Amanhã de manhã... — Sadojev pôs a mão no coração, respirou fundo e cuspiu no horário exposto.

Andaram por toda parte na cidade, procurando dois quartos de hotel, isso também não era assim tão simples.

Sadojev também sentiu isso, quando parou o carro em frente ao melhor hotel, desceu da boleia e empurrou para o lado o porteiro de olhar sombrio que o queria segurar. Depois de dois minutos estava de volta à rua, vermelho de raiva e tremendo como uma peneira elétrica.

— Negam-se a nos dar um quarto! — disse rouco de raiva. — Olharam-me como a um bebê que mija na cama e disseram na minha cara: ”Não temos montes de palha por aqui!” E quando respondi que era membro do Partido há trinta anos, responderam malcriados: ”Felicidades, camarada. Que honra para o Partido!” Mas mesmo assim não me deram o quarto. Mas eu lhes mostrei quem é Sadojev. Bati com o livro de hóspedes nas orelhas daquele piolho vestido de porteiro. Agora ele está sentado no canto, chorando.

— Temos de entrar — disse Pjetkin baixo a Dunia — senão ele vai começar uma revolução.

O hotel estava realmente lotado. Dunia e Pjetkin foram tratados com cortesia, e quando souberam que eram médicos, o porteiro desacatado até pegou o fone e telefonou para oatras hospedarias.

— Vá até o Nowo Sibirka — disse então. — Lá reservaram um quarto para os senhores. Mas só para os senhores... o seu cocheiro, esse filho de uma cadela, pode dormir na sarjeta.

Pjetkin desistiu de discutir, segurou Sadojev lá fora, pois este queria entrar de novo para estrangular o porteiro, e depois de muito indagar chegaram ao hotel indicado, uma velha hospedaria que apenas tinham pintado recentemente, para justificar o nome. O quarto estava preparado, um quarto de casal com uma imensa cama de madeira esculpida.

Dunia e Pjetkin não perderam uma só palavra sobre o fato de haver uma cama só. Pertenciam um ao outro, e era sua última noite, por muito tempo. Sadojev despediu-se deles com olhar dolorido para sua filha. Depois foi sacolejando com sua carroça pela cidade até a entrada, onde recomeçava a taiga, encontrou uma casa de camponeses de aparência limpa, e conseguiu por três rublos — são todos uns exploradores! — uma cama no celeiro. Ainda não era noite, mas Dunia e Igor quiseram ir para a cama. Comeram na pequena sala de refeições um prato de schtchi rala, uma sopa de couve azeda e uma kuttbjaka, que é um bolo de massa folheada com recheio de miúdos de galinha, tomaram um cálice de vinho doce e amarelo-escuro, e depois subiram para o quarto.

— Se eu tiver uma criança eles vão ter que permitir o nosso casamento — disse Dunia mais tarde. Estavam deitados lado a lado, ambos nus, e o calor de seus corpos se fundia. Pela primeira vez o mundo lhes pertencia... um quarto velho e bolorento, de cortinas empoeiradas, uma casa imensa na qual a gente mergulhava como num pântano, uma noite na qual ninguém os estorvou senão o vento que batia nas janelas.

Suas carícias eram como a refeição de um faminto. A despedida, que se aproximava com o amanhecer, só ensombrecia a sua felicidade quando se largavam, lutando para respirar, e distendiam seus corpos suados.

— Tem de vir uma criança! — dizia então Dunia. — Tem de vir! O filho de uma russa!

— Eu também sou russo! — disse Pjetkin fumando um papyross. — E vou provar isso a eles.

Ele não sabia que em Lemgo, a 9.000 quilómetros de distância, num outro mundo, morava o casal Peter e Elisabeth Kramer, e os dois ainda esperavam encontrar em algum lugar o filho desaparecido. O Coronel Pjetkin sabia, mas por causa disso morrera sob o canhão ”Czar Puchka”, no Kremlin. E o Ministério do Interior também sabia, mas nada diria.

Às seis e meia, com grande alarido, Sadojev apanhou Dunia e Igor no hotel. Não queria atrasar-se novamente, mas precisou de dez minutos para entrar no vestíbulo e explicar sensatamente o que pretendia. Um porteiro e um carregador ficaram para trás gemendo e chorando, depois de tentarem em vão detêlo à entrada do edifício.

— Ah, querem me segurar? — berrava Sadojev. — A mim? Em Stalingrado eu conquistei quarteirões inteiros!

O gerente do hotel Nowo Sibirka cruzou as mãos devotamente quando enfim Sadojev voltou para a rua com Dunia e Pjetkin, carregou a bagagem na carroça e partiu para a estação.

Inacreditável... o trem estava mesmo ali, esperando pela via prescrita, já lotado, os primeiros vidros de pepinos estavam sendo abertos, havia cheiro de cebolas e chucrute, galinhas cacarejavam em algum lugar num cesto trançado, e um homem berrava: ”De quem é esse leitão? Ele está mijando na minha gola!”

Sadojev correu ao longo do trem, procurou um lugarzinho livre, saltava para as janelas e gritava:

— Onde pode ficar a minha filhinha? Não podem se apertar um pouco, suas vacas? Minha filha é médica! Pensem que a viagem é longa... talvez precisem de ajuda médica! Quem dá lugar?

Todo russo é um sujeito cauteloso: o que mais teme é a doença. E assim realmente apareceu no trem superlotado um lugarzinho ao lado de um homem que sofria de asma e que achava muito tranqüilizadora a presença de uma doutora.

Alguém apitou, um assobio agudo e penetrante.

— Já vão partir! — exclamou Sadojev. — Que pontualidade! Como se ultimamente cozinhassem as regras na sopinha dos funcionários! Dunia, oh, Dunienka, minha filhinha, escreva logo, contando como são as coisas em Irkutsk, se a tratam bem lá, como é o hospital, se tem um quarto bonito, tudo!

O trem partiu. Grossas nuvens brancas de fumaça jorraram da locomotiva invadindo a estação e derramando-se pesadamente sobre as pessoas que davam adeus e chamavam. Dunia debruçou-se para fora da janela e segurou as mãos de Pjetkin. Ele corria ao lado do trem, e Sadojev seguia atrás com as suas pernas tortas, como um cachorro arquejante.

— Em quatro semanas saberemos mais, meu amor — disse Dunia beijando as mãos de Igor. — Eu o amo, eu o amo...

Pjetkin sentia a garganta apertar-se. Apenas acenava a cabeça, correndo junto da janela do trem, olhando os grandes olhos azuis e cintilantes de Dunia, admirando-se de que seu coração não rebentasse. Quando o trem começou a correr mais depressa, tiveram de largar-se as mãos, e Pjetkin foi ficando atrás, embora fosse um bom corredor. Finalmente ficou parado, dando adeus com os dois braços, e mergulhou nas nuvens de fumaça branca da locomotiva, como um dia seu pai na estação de Kichinev.

Arfando, Sadojev o alcançou e caiu contra ele, exausto da corrida.

— Lá vai ela — chorava abraçando-se ao outro. — Como é corajosa! Como é corajosa! Que queria dizer com ”em quatro semanas saberemos mais”?

— Quer dizer que até lá ela se terá ambientado e poderá contar sobre todas as coisas — disse Pjetkin evasivo. — E nossos requerimentos estarão em Moscou. Vamos enviá-los juntos em quatro dias.

Sadojev ficou mais calmo. Seguiu o trem com o olhar até que ele desapareceu numa curva, chorou mais um pouco no peito de Pjetkin, clamou que sua vida não valia mais nada, assoou o nariz e disse:

— Agora precisamos de um copo de vodca, filhinho. A Anna vai me perdoar se eu afogar minhas mágoas nessa hora.

Os dias até a partida de Pjetkin para Chelinogrado tornaramse um tormento. A ordem no Campo era apenas uma cobertura ténue, sob a qual já se realizavam lutas pelo novo poder. Os criminosos tinham formado grupos de ação; deveriam entrar em atividade no momento em que Pjetkin deixasse o Campo. Na sede do comando já sabiam disso, e preparavam-se para o que viria. Desenvolveram um plano de intervenção para a hora X, pediram mais tropas em Chabarovsk, e armazenaram bombas de gás lacrimogéneo nas torres de vigia.

Os blatnys mandaram também uma delegação falar com Marianka. Vieram como doentes e disseram: ”Camarada doutora, quando terminar a brincadeira com esse idiota de Pjetkin, a senhora poderá contar de novo conosco.”

A Dussova confirmou com a cabeça, e disse secamente:

— Tirem a roupa! Abaixem-se! — e enfiou uma injeção com uma agulha especialmente grossa no traseiro de cada um. Eles ficaram quietos, rilhando os dentes, e não sabiam o que lhe estava entrando na carne. Só à noite perceberam... as nádegas incharam como balões, tiveram de ficar deitados de barriga, gemendo de dor, nos seus colchões de palha. Mas na manhã seguinte a Dussova berrou com eles, batendo-lhes no peito com a ponta do dedo indicador, comprido e famoso, ordenando: ”Apto para o trabalho!”

Em Sergejevka o mundo de repente girava para outro lado.

Outra notícia ruim veio de Chabarovsk. Não havia lugar em Chelinogrado para Marko Borissovitch Godunov. O hospital estava bem servido, havia bastante enfermeiras e atendentes, e até dois lavadores de cadáveres.

— Vou com você, e ficarei por perto — disse Marko, pouco impressionado com aquela carta. — Tenho de encontrar alguma coisa. Talvez precisem de um varredor de ruas, e deve haver uma praça para cuidar, pois agora é de bom-tom que cada cidade tenha o seu parque. Lá posso apanhar as folhas caídas, cortar grama, cuidar das flores.

Na noite antes da partida Godunov esgueirou-se mais uma vez até o quarto de Marianka Dussova. Ela estava deitada na cama, nua, dormindo profundamente. Sem uma palavra o anão saltou sobre ela, e quando a mulher acordou, com um grito, querendo resistir, ele apertou-lhe a grande mão sobre a boca, sussurrando:

— Quietinha, irmã! Não sei se vou poder escrever lá de longe... vamos, portanto, adiantar nossos cartões-postais.

Godunov escreveu-os longa e minuciosamente, e pela manhã, depois do seu banho de chuveiro, a Dussova cuspiu mais uma vez na própria imagem ao espelho.

A saída do acampamento foi de uma desolada solidão. Ninguém se despediu de Pjetkin... O comandante ainda dormia, a Dussova se fechara a chave, o administrador estava embriagado, os supervisores o ignoraram, os homens da cozinha, da padaria, oficina e depósito absorveram-se no seu trabalho. Só o médico da seção de quarentena veio às pressas, desejou boa sorte e sumiu de novo. Também ele já fora sugado pelo campo de prisioneiros.

Pjetkin não olhou para trás quando partiram no jipe. Para ele, Sergejevka não existia mais. Concentrava-se no que estava por vir, em Chelinogrado.

E o requerimento estava a caminho de Moscou...

 

O hospital distrital de Chelinogrado era uma construção de tijolos, comprida, de dois andares, oriunda dos tempos em que começaram a descobrir, em Kasakstan, que a doença não era um castigo de Deus, mas um fenómeno humano curável. Depois da grande guerra da pátria, começou um período de construção sem igual. Geólogos e físicos, químicos e agrónomos, engenheiros e construtores viajavam de um lado para outro através da imensa estepe e marcando, cavando e perfurando, fazendo novos mapas, descobrindo tesouros na terra, de incalculável valor, e trazendo insegurança aos nómades e aos camponeses de Kasakstan, os criadores de cavalos, os cavaleiros da estepe, com a conversa de que aquela terra era a fonte do bem-estar de toda a Rússia.

Também o hospital de Chelinogrado tirou seu proveito disso, quando a técnica se espalhou, empurrando o fascínio da estepe sempre mais para o sul, com as torres de extração de petróleo e poderosas fábricas fazendo de Chelinogrado uma cidade industrial suja mas rica. O hospital obteve os instrumentos mais modernos, uma sala de operações como a das grandes clínicas de Alma-Ata, capital de Kasakstan, um laboratório excelente, um centro de radioterapia e uma seção especial de pediatria.

O soviete da cidade, apreciador da beleza, plantara ao redor do hospital um parque com choupos, bétulas, carvalhos, olmos siberianos, amoreiras e acácias brancas. Gramados e canteiros de flores acalmavam os olhos, quando se olhava pelas janelas do hospital... esquecia-se, então, que havia apenas um banheiro comum para cada seção, sete vasos lado a lado, sem paredes de separação, o que era uma demonstração da fraternidade e senso de igualdade. Geralmente os vasos estavam ocupados, as pessoas sentavam-se por ali, fumavam os cigarros proibidos, discutiam política, queixavam-se de sua enfermidade. Mas, apesar de tudo, era um bom hospital. Os médicos de Chelinogrado eram famosos, ativos, trabalhavam até cair, passavam por insubornáveis, e eram na sua maioria grosseiros.

Pjetkin tomou um táxi na estação de Chelinogrado e foi até o hospital. O motorista, um rapaz baixinho, amarelo e vesgo, espiava constantemente para o lado durante o trajeto, e finalmente perguntou:

— Doente, camarada? — E como Pjetkin não respondesse imediatamente, prosseguiu: — O hospital é bom. Tem os aparelhos mais modernos. Tiraram-me uma pedra da vesícula, do tamanho de uma noz... Eu me joguei no chão, rolando e isso os impressionou. Ser atendido lá é uma arte. O hospital está sempre superlotado, e não há exceções. O Dr. Trebjoff sozinho é quem decide. Espero que tenha feito reserva, camarada, senão depois de uma semana o senhor ainda estará sentado na sala de espera.

— Eu sou o novo cirurgião-chefe — disse Pjetkin. O motorista gaguejou algumas palavras incompreensíveis, meteu o pé no acelerador, e dirigiu mais depressa.

A vida de hospital é a mesma em toda parte... tanto numa clínica de universidade como no hospital de Chelinogrado. Só o tamanho da organização muda, os doentes são os mesmos. Quando se abre a porta, chega-se a outro mundo, mais silencioso, mais limpo, cheio do hálito de sofrimentos ocultos. Passam por ele mocinhas de uniforme branco, toucas engomadas, homens de guarda-pó branco e médicas de olhar penetrante. A gente se encolhe nesse ar estranho, e subitamente percebe como é na verdade pequeno e miserável. Aqui toda a desgraça do mundo é empurrada para dentro das padiolas, e distribuída pelos quartos.

Pjetkin e Godunov seguiram o caminho de todos os recém-chegados... não disseram a razão de sua vinda, mas fizeram-se incluir numa lista pela enfermeira da recepção. Ninguém se interessava por saber quem eram, a enfermeira nem uma vez levantou os olhos.

Pjetkin e Godunov olharam em torno, na sala de recepção, contaram os presentes, e por algum tempo escutaram suas queixas. Depois deixaram a sala, passaram pela entediada enfermeira e foram em direção às enfermarias. Logo atrás de uma porta de vaivém depararam com uma jovem médica, que olhou para Pjetkin e para o feio Godunov com as sobrancelhas erguidas. A visão de Marko pareceu abalá-la.

— Por aqui se vai à cirurgia — disse ela em tom autoritário. — Deixe esse pobre aborto na seção interna, primeiro andar, corredor da esquerda.

Godunov ergueu os ombros, deixou cair as malas, e deu a mão a Pjetkin.

— Vou ficar perto de você — disse — mas agora tenho de sair depressa senão acabo violentando essa linda cabritinha aqui mesmo.

E saiu em disparada pela porta de vaivém. A médica quis correr atrás dele, mas Pjetkin a segurou pelo braço.

— Chame-o de volta! — exclamou ela nervosa. — É doido! O que não vai fazer, solto por aí?

E como Pjetkin não a soltasse, fuzilou-o com o olhar e enrubesceu.

— Afinal, quem é o senhor?

— O Dr. Pjetkin, novo cirurgião-chefe. Leve-me ao Dr. Trebjoff. E quem é você?

— Sinaida Nicolaievna Svesda. — Ela não resistia mais ao seu aperto, olhou-o com olhos arregalados, espantada, e disse: — O senhor é o Dr. Pjetkin? Nós estávamos à sua espera. Venha, o Dr. Trebjoff está operando, vai recebê-lo imediatamente.

Com a mão esquerda ela alisou os cabelos pretos, que emergiam da touca branca que lhe dava ao rosto um ar infantil. Depois, pôs-se a caminho, estremecendo um pouco quando Pjetkin lhe largou o braço. Seu uniforme branco era curto, mais curto ainda que o vestido, que já ficava uns quatro dedos acima do joelho. Um vestido amarelo-ouro, do qual saíam longas pernas esbeltas e tornozelos delicados como os de uma corça.

O Dr. Trebjoff não interrompeu sua operação, mas terminou-a logo. Isso agradou a Pjetkin, que começou a simpatizar com o médico sem conhecê-lo. Sinaida Nicolaievna saltitava inquieta em torno de Pjetkin, esforçava-se por atrair seus olhares, e disse depois, algo desiludida com a fraca recepção:

— Estou na seção de recuperação, Dr. Pjetkin. Temos vinte e um recém-operados...

— Então, camarada, seria bom que se ocupasse com seus pacientes — respondeu Pjetkin amavelmente. — Posso esperar sozinho pelo Dr. Trebjoff.

Com um olhar antes de espanto que de dignidade ofendida, Sinaida deixou a ante-sala da seção cirúrgica.

Pjetkin contemplou as modernas instalações, cumprimentou algumas enfermeiras e jovens médicos que se preparavam pára as próximas operações.

As portas à prova de som da sala de operações abriram-se, a cama de rodas com o paciente ainda anestesiado foi trazida para fora. Ainda com o avental de borracha, máscara descida e touca sobre a nuca, apareceu um homem grande e de ombros largos. Antes que ele se apresentasse, Pjetkin sabia que era Trebjoff. Um homem que irradiava segurança como um farol.

— Seja bem-vindo, Igor Antonovitch — disse com uma esplêndida voz de baixo.

Deram-se as mãos e ao primeiro olhar simpatizaram mutuamente.

— Sou Avdeij Romanovitch. — Trebjoff pegou o braço de Pjetkin e saiu com ele da seção cirúrgica. — Vamos primeiro ao meu gabinete. É preciso explicar muita coisa antes que comece a trabalhar.

O gabinete de Trebjoff era uma sala pequena e escura no fim do corredor, pobremente mobiliado com três cadeiras, uma mesa coberta por uma confusão de fichas de doentes, radiografias, papeletas de febre, um armário cheio de livros e pastas, e um grande retrato de Lenine na parede. O único luxo era um tapete de pastores do Kasakstan, diante da mesa.

Trebjoff sentou-se, ofereceu a Pjetkin uma caixa de papyross, e recostou-se na cadeira, inclinando-a para trás.

— A administração superior dos hospitais transferiu-o para Chelinogrado — disse ele devagar soprando a fumaça contra o teto baixo de madeira. — Vamos ver bem claro, Igor Antonovitch: essa missão tem dois lados, um polido e um grosseiro. O senhor vai assumir imediatamente a cirurgia, enquanto eu, como médico-chefe, dirijo todo o hospital. Vamos trabalhar bem juntos, gostei de você, camarada, sua ficha está repleta de louvores, sei que é um cirurgião excelente e sei quais são os planos que têm para você. Mas tudo isso é apenas a ladainha profissional, o lado polido da história. Vire a medalha e tudo muda. Você é uma cabeça esquentada, gosta de se rebelar, não liga absolutamente às determinações superiores, está sempre ofendendo as autoridades, tenta instaurar reformas, provoca inquietação com o seu fanatismo justiceiro, que não se importa com regras. Em resumo, você é um ponto de interrogação político. Por isso, mandaram o seu passaporte imediatamente para a administração distrital, onde está guardado no cofre. Vai receber apenas um cartão de identificação, no qual se lê que se chama Pjetkin.

— Isto significa que serei tratado como um deportado — disse Pjetkin que já suspeitara de algo semelhante. Mas agora que seus temores se confirmavam, sentiu-se dominado por uma encarniçada resistência. Vou lutar, pensou ele... vou resistir e defender meus direitos como membro de uma sociedade livre.

Trebjoff sacudiu a cabeça, pegou embaixo da mesa uma caixa que parecia um cesto de papéis, tirou uma garrafa de vodca AlmaAta, desarrolhou-a, colocou-a nos lábios, tomou um grande gole e empurrou-a sobre a mesa para Pjetkin.

- Fizeram de você um ser híbrido, Igor Antonovitch. Um cirurgião livre, que tem limites para as suas saídas. Pode anaar por todo o Kasakstan, mas não pode ir, por exemplo, para Omsk, e de modo algum para Irkutsk...

— Então já sabe, Avdeij Romanovitch?

— Estou informado de tudo, até do fato de que você seria alemão. Isso naturalmente é idiotice, mas como convencer os camaradas do Kremlin? Eu apenas o queria informar sobre a sua situação. Você é um homem livre, mas sem passaporte. Nisso há uma chance, Pjetkin: trabalhe e suba na sua carreira, nessa que planejam para você. Pense só em Medicina, só nisso... estamos entendidos?

Pjetkin acenou com a cabeça. O caminho que Moscou lhe havia determinado estava claro à sua frente: uma máquina de precisão, programada para operar. Em troca disso, era alimentado e vestido, davam-lhe 500 rublos de ordenado, moradia grátis e a generosidade de poder andar livremente pelo Kasakstan.

— Vou ser um sujeito incómodo — disse Pjetkin e devolveu a garrafa a Trebjoff. — Tenho outra concepção de liberdade.

— Vamos dar tempo ao tempo, Igor Antonovitch. — Trebjoff ergueu-se, esticou o corpo e as juntas estalaram audivelmente. — Primeiro, você vai operar até que as compressas de gaze lhe saiam pelas orelhas. Há trinta e nove casos de câncer na lista de espera, sete rins, doze vesículas, cinco tumores do estômago, dez cistos e miomas, treze escrófulas. Isso sem contar os acidentes diários. Para essa montanha de operações você tem às suas ordens: quatro médicos assistentes, dois anestesistas, duas enfermeiras instrumentistas, um médico-chefe. Falei nele por último porque é um animal vestido. Mas o pai dele tem um cargo na Academia de Ciências de Kasakstan, em Alma-Ata. Não precisa tratá-lo muito bem... ele nem tem desejo de operar. Prefere bebida e mulheres. Agora, vou-lhe mostrar o seu quarto...

Alguém já levara ao quarto a bagagem que Marko deixara no corredor. Havia também uma surpresa à espera de Pjetkin; num vaso sobre a mesa, três grandes rosas vermelhas. Trebjoff contemplou-as atónito, cheirou-as como se não pudesse acreditar que eram legítimas, e sacudiu a cabeça.

Na manhã seguinte, às oito horas, Pjetkin reuniu todos os médicos da seção cirúrgica. Trebjoff apresentou-o como o novo cirurgião-chefe, Pjetkin fez um breve discurso sobre bom trabalho de equipe, cumprimentou com especial amabilidade o médicochefe que tresandava a álcool, o que este percebeu com agrado, e começou a primeira operação do plano do dia, uma ressecção de rins.

Embora fosse uma operação de rotina, logo se espalhou pelo hospital que o Dr. Pjetkin tinha mãos abençoadas. Na primeira visita, os doentes o olhavam como a um santo.

 

Durante uma semana, Pjetkin não viu nem ouviu nada de Marko Borissovitch Godunov. Parecia desaparecido e Pjetkin se preocupava com ele. Mas repentinamente o anão apareceu, esperou-o à tarde no jardim do hospital, porque ninguém lhe permitia por meios normais a chegada até o cirurgião-chefe, e não acreditavam que fosse amigo de Pjetkin. Marko esperou atrás de um grande espinheiro rubro, até que Pjetkin fosse passear no jardim, o que fazia todos os dias após o almoço... Marko descobrira isso com o jardineiro, em troca de um valioso montante de rublos.

— Marko! — Pjetkin abriu os braços quando Godunov saltou do seu esconderijo e correu pelo gramado. — Mais uns dias e eu ia pedir à polícia que o procurasse! Onde andava? O que fez até agora?

Sentaram-se num banco, e Marko pegou a mão de Pjetkin acariciando-a como se tivesse reencontrado um filho perdido.

A história de Marko era curta.

Quando deixara Pjetkin no hospital, fora à administração pública apresentar-se às autoridades. Começou bem embaixo, na limpeza das ruas, no departamento de jardins, nas obras de eletricidade, na administração do cemitério, finalmente na seção de construções. Mas aonde quer que fosse... os funcionários ficavam brancos, como se um espírito monstruoso tivesse entrado na sala, procuravam palavras, e diziam finalmente: ”Camarada, a limpeza pública é perigosa para você, poderiam levá-lo junto na carrocinha”. Ou então: ”Coveiro, camarada? Os defuntos ficariam ofendidos ao vê-lo.” — Ou ainda: ”Jardineiro? Quer que as flores murchem de horror?” Não havia nada a fazer, Godunov deixava cada repartição com uma resposta molhada, pois cuspia silenciosamente na cara dos funcionários, e depois de dois dias proibiram sua entrada na administração pública, ameaçando-o com a polícia. Godunov dirigiu-se para as cercanias de Chelinogrado. E lá, na estepe junto do rio Rischim, conseguira. Um aviário do Estado precisava de um tratador para 7.000 galinhas. Aquilo, visto por um leigo, parecia uma bela tarefa. A gente distribuía comida, esperava que os ovos fossem postos, recolhia-os, ordenava-os conforme o tamanho, e já à tarde estava livre para tomar banho de sol e cuidar de si.

Mas havia um obstáculo: sendo uma instituição do Estado, alguém na administração — na escrivaninha, pois raramente se encontram idiotas desses na prática — determinara uma quota, que tinha de ser cumprida à risca. Era dever conseguir cada dia tantos e tantos ovos. Se isso não era feito, exigia-se um relatório e descontava-se no ordenado do pobre tratador de galinhas.

Marko sentiu isso na primeira semana... ele alimentava as galinhas exatamente conforme as regras, limpava os galinheiros, interessou-se pela mais recente novidade da psicologia animal, segundo a qual a música tem efeito positivo, e tocava as fitas disponíveis. Realmente, fazia todo o possível, mas... não conseguia preencher a quota.

— Como posso preenchercom quota? — disse ele ao controlador que exigia explicações. — O problema está nos galos. São preguiçosos, comilões e gordos, ficam deitados ao sol e nem se interessam pelas galinhas.

O controlador chamou Marko de idiota e sumiu depressa. Mas não lhe descontaram nada do ordenado na primeira semana, o que era um grande sucesso.

— Estou imaginando como posso fazer os galos trabalharem — disse Marko a Pjetkin. — Um grande problema. Vamos partir das pessoas. O que se faz quando um homem diante de uma bela moça não tira as calças? Dão-lhe hormônios. Ele toma uns comprimidos, e lá se vai saltando como um bode animado. Por que não dar hormônios aos galos? Imagine que enorme trabalho lhes é exigido!

Pjetkin riu, colocou o braço nos ombros do anão, e começou a sentir-se em casa.

— Venha me visitar todas as semanas — disse. — Vou pedir que o deixem entrar. Já ouviu alguma novidade sobre Dunia?

— Nada, filhinho.

Aquilo era estranho mas tinha uma explicação. Logo que chegara a Chelinogrado, Pjetkin mandara uma carta para Dunia, e esta mandara uma longa carta a Chelinogrado. Mas o correio entre Irkutsk e Kasakstan parecia desorganizado... as cartas se perderam. Oficialmente. Na verdade, foram parar na Central do KGB em Trkutsk, e foram juntadas aos documentos. Só a correspondência de Sadojev chegara, fizeram fotocópias, e fecharam tão bem os envelopes que ninguém poderia reconhecer que estavam controlados. Eram profissionais, artistas no seu campo...

— Era preciso atraí-los — disse Pjetkin com olhar sombrio. — Eu devia escrever uma carta relatando a Dunia que contei tudo à embaixada alemã em Moscou. Quando então viessem para me interrogar, saberíamos onde ficaram as cartas.

— Mas sabemos de qualquer modo, meu filho. Para que provocar? — Marko sacudiu a cabeça. — Não atraia os lobos para fora da floresta... Você está só, mas eles vêm em bandos. Isso é velha sabedoria de pastores, escreva-a no seu coração, Igorenka. Não se pode derrubar uma árvore com uma só machadada.

Naquela noite, contudo, Pjetkin escreveu uma carta para Dunia, dizendo que tinha em Moscou um amigo que queria falar com um importante alto funcionário do Soviete Supremo. Era uma mentira, mas devia causar inquietação.

Pjetkin encontrava-se com a jovem médica Sinaida duas vezes por dia, quando controlava a seção de recuperação em que estavam os recém-operados. Ela fazia o seu trabalho com exatidão e consciência. Tinha sensibilidade para prever complicações, e coragem para agir com presteza. Pjetkin elogiou-a algumas vezes... Sinaida agradeceu com um sorriso radiante e com a sedução a brilhar nos olhos castanhos. Aconteceu também que ela o tocasse, aparentemente sem intenção, ora com a mão, ora com a ponta dos seios, quando se debruçava sobre ele para examinar uma radiografia; uma vez escorregou no assoalho encerado e caiu nos braços dele, agarrando-se a ele por medo, como parecia, com as mãos e com as pernas. Assim Pjetkin sentiu as coxas de Sinaida e a força que nelas se ocultava. Mas ele parecia feito de pedra.

Depois de dez dias, o telefone de Sinaida tocou. Ela hesitou em pegar o fone, mas a pessoa que chamava era obstinada e tocou tanto que a sua resistência se quebrou.

— Já está dormindo? — perguntou uma voz masculina.

— Bem, tinha mesmo adormecido.

— E como vai o nosso Pjetkin, Sinaida Nicolaievna?

— Duro como uma rocha, camarada.

— Rochas podem ser dinamitadas. Você tem bastante dinamite no corpo, não fracasse! Sabe que é sua tarefa fazer Pjetkin esquecer essa Dunia Dimitrovna. Será que ele é tão feio para você agir assim devagar?

— Ele é maravilhoso — disse Sinaida. Um honesto entusiasmo ressoava na sua voz. — Estou apaixonada por ele, camarada.

— E apesar disso ainda não está na cama dele? — A voz do homem era fria e parecia cortar as palavras. — O que a impede?

— Falta-me a ocasião. — Sinaida rastejou pela cama e recostou-se na parede. — Eu tinha a tarefa de chamar a atenção do Dr. Pjetkin e estimular uma evolução natural das coisas. Isso significa que ele não deve ter a sensação de estar sendo assaltado. Trata-se de uma pessoa de muito senso crítico.

— Não seja ridícula, Sinaida Nicolaievna. Desculpas, tudo desculpas! Esperamos que no máximo em dez dias - essa é a última data - você anuncie o cumprimento da tarefa, dizendo que é amante de Igor Antonovitch. — A voz se tornou mais macia, e Sinaida escutava com a respiração contida. — Você o ama de verdade?

— Sim, camarada.

— Pois nós permitimos que receba Pjetkin na sua vida particular.

— Obrigada, camarada.

— Mas trate de não engravidar. Conhece as conseqüências?

— Sim, camarada. Não vai acontecer.

— Boa sorte, Sinaida.

— Obrigada, camarada.

Ela jogou o fone como se lhe queimasse a mão, puxou os joelhos para junto do queixo, e ficou olhando a penumbra do quarto. As rodas das macas rangiam no chão da sua porta. Vozes dos atendentes, passos das enfermeiras. De repente, a voz funda do Dr. Trebjoff.

— Todos na OP H, assim como estiverem. Depressa!

Um acidente. Doentes, operados, moribundos, mortos. Uma torrente incessante de sofrimento. E ali no meio, o amor por Pjetkin, o desejo pelas suas abençoadas mãos, o sonho de ser beijada por ele, a ânsia de se entregar ao corpo dele.

Sinaida saiu da cama, vestiu-se, abotoou o curto uniforme branco e colocou a touca branca de médica nos cabelos negros. Depois virou-se para o espelho e constatou com orgulho que se notava, através do uniforme, a ausência do sutiã.

Quando mais tarde andou pelo corredor, os doentes a seguiam com o olhar.

Igor Antonovitch continuava operando, já havia dez horas, com pausa de uma hora para um pouco de chá e uma tigela de borschtch.

Sinaida Nicolaievna lavou mãos e braços, mergulhou-os em solução anti-séptica, deixou que lhe amarrassem avental e máscara e substituiu em silêncio um assistente exausto. Pjetkin ergueu os olhos rapidamente e viu os dela, grandes e luminosos. Um olhar vindo do sol.

Os jakuts — não se pense que são tolos apenas por serem pequenos, de pernas tortas, pele amarela e olhos oblíquos — têm um bom provérbio: Quando a raposa corre atrás do raposo, não enxerga o falcão.

Assim era a cegueira de Sinaida quando estava ali ao lado de Pjetkin, limpando a cavidade abdominal com um sugador e compressas. Em vez de olhar a grande ferida aberta, olhava para ele, admirava a sua perícia, a segurança das mãos, o modo rápido e silencioso de operar. Com o Dr. Trebjoff era diferente... ele berrava na mesa da OP II, tesouras e pinças voavam pelo ar. As enfermeiras e médicos tinham um tempo duro, Deus sabe, e quando certa vez Trebjoff perfurara uma artéria e o sangue espirrara até o teto, parecia que um bando de loucos se reunira ao redor da mesa, gritando uns com os outros, e jogando pelo ar uma torrente de insultos.

Igor Antonovitch operava em silêncio. Só o tilintar dos instrumentos quebrava o silêncio, o bombear suave do aparelho de anestesia com o balão inchando e murchando outra vez, um par de palavras breves, e, diante de alguma demora, apenas um olhar firme e punitivo.

Foi naquele encantamento que sucedeu... Sinaida ajudou Pjetkin a retirar o tumor e cortou-se no dedo com a ponta do escalpelo. Só um corte diminuto, invisível na luva de borracha nem mesmo doloroso, e também não sangrou. Sinaida continuou operando sem dizer nada. A lei suprema do cirurgião, de tratar imediatamente qualquer ferida própria durante uma operação, foi desprezada por ela. A proximidade de Pjetkin era mais importante.

— Pronto — disse ele quando a cavidade abdominal estava pronta, e o tumor removido. — Costure, Sinaida Nicolaievna. E ponha muita penicilina, pois não podemos espiar em todos os cantinhos.

Ela confirmou, seguiu-o com o olhar enquanto ele se afastava da mesa, tirava as luvas jogando-as no balde, ia até a pia e lavava os braços. Uma enfermeira desamarrou-lhe o avental e a máscara, e limpou-lhe o suor da testa com um pano.

Sinaida curvou-se sobre o ventre aberto e começou a costurar. Um jovem médico assistente, vindo da Universidade de Alma-Ata com exames recém-concluídos, ajudava-a, alcançava agulhas, pegava pinças, enxugava e puxava as bordas da ferida.

No corredor, Pjetkin e o Dr. Trebjoff se encontraram. Trebjoff vestira-se de gala. No terno azul-escuro e camisa branca, uma gravata discretamente listrada, parecia estranho, quase ocidental, um visitante de um país estrangeiro, que espalha um sopro de luxo na uniformidade socialista. Ficou parado, meteu as mãos nos bolsos, e contemplou Pjetkin de cima a baixo.

— Eu sabia! — disse. — Você é um búfalo! Trabalha noite adentro. Nunca pensa em si?

— À noite, Avdeij Romanovitch. À noite, deito-me e penso: por que tem de ser tudo assim? Dunia em Irkutsk, eu em Chelinogrado, separados porque nos amamos. Isso é justiça?

— Não haveria problemas se você fosse russo.

— Que diabo, eu sou russo! — exclamou Pjetkin.

— Isso você é quem diz. — Trebjoff pegou o braço do outro e puxou-o pelo corredor. — Por isso é que lhe pergunto: por que trabalha feito burro de carga e não pensa em si próprio? Hoje há um concerto do pianista Remnoff no Palácio da Cultura. Um pianista brilhante, um técnico com sentimento. Hoje vai tocar Beethoven e Brahms. Beethoven... aí eu fecho os olhos e sonho. E você o que faz? Remove um tumor purulento, que podia esperar até amanhã. Quem lhe agradecerá por isso?

— O doente — disse Pjetkin reservado.

— Enquanto estiver no hospital. Quando sair, acabará furioso amaldiçoando-o por ter uma cicatriz na barriga. — Trebjoff parou. — Tgor Antonovitch, eu simpatizo com você... desde o primeiro dia.

— Obrigado, Avdeij Romanovitch. Isso é mútuo.

— Então não vamos mentir um ao outro. — Trebjoff curvou-se para o ouvido direito de Pjetkin. — Você tem inimigos, meu jovem.

— Eu sei. — O rosto de Pjetkin contorceu-se. — Só não sei é quem são e onde estão.

— Nunca saberá. Quem sabe onde nascem as tempestades? Aí estão de repente, curvando as árvores, arrancando telhados. Tome cuidado, Pjetkin... curve-se, mas não deixe que o arranquem com as raízes. Mais um conselho entre amigos: afaste-se de Dunia.

— Sobre isso nem precisamos discutir — disse Pjetkin, esquivo.

— Nem é necessário. Eu apenas apelo para a sua lógica, Igor Antonovitch. Que sentido tem esse amor absurdo! Dunia mora em Irkutsk... você está metido em Chelinogrado, e nunca sairá daqui sem ordens superiores. Não tem passaporte. Nunca mais verá Dunia! Isso será motivo para se tornar logo um monge?

— É um motivo para lutar contra esse sistema de coletivização humana.

— Seu doido! — Trebjoff abriu a porta para o vestíbulo, — Por que não segue o seu caminho para o sol, Pjetkin? Tem uma carreira brilhante à sua frente, se pensar coletivamente. Aprenda a viver aqui! Por exemplo, Sinaida... ela não é uma criatura que se tem vontade de acariciar o tempo todo?

— Você não conhece Dunia — disse Pjetkin sonhadoramente. — Diz que devo seguir meu caminho para o sol? Dunia é o meu sol.

— Venha-me procurar amanhã. — Trebjoff olhou o relógio de pulso. — Eu o examinarei, Igor Antonovitch. Em algum lugar do seu cérebro há uma falha. Daqui a dez minutos começa o concerto de Beethoven. Tenho de me apressar.

Saiu correndo do hospital como se tivessem dado um alarma. Pjetkin seguiu-o com os olhos. As breves observações de Trebjoff tinham-lhe mostrado o quanto sua própria vida já estava envolvida com os planos de autoridades poderosas e desconhecidas. Foi para fora, ficou parado diante do edifício e respirou fundo o ar claro da noite. As copas das árvores do parque se balançavam ao vento.

Naquela noite Tgor Antonovitch Pjetkin se transformou.

Ele queria agora ser alemão.

A febre assaltou-a em breve. O céu da boca ficou ressequido, as têmporas latejavam, calafrios corriam-lhe pelo corpo, a pele parecia couro, e queimava. No dedo, a inchação já se estendia para o cotovelo.

Sinaida ficou sentada na cama, apoiando a cabeça na parede, abalada. A dor a despertara, e quando quisera saltar da cama, caíra para trás, e só tivera forças para se apoiar na parede. Todos os ruídos mergulhavam em algodão... ela arranhou a parede e mal ouviu. Gritou, parecia-lhe que gritava e ouvia sua voz como um eco bem distante:

— Igor! — chamava. — Igor, ajude-me! Meu braço! Salve meu braço, Igor!...

Mas era como se já a voz não encontrasse a saída pela boca, e morresse no seu interior.

Ela sabia o que destruía seu corpo vertiginosamente, e o medo lhe reuniu as forças. Deixou-se cair da cama e rastejou até à porta, arrastando pelo chão o braço inchado, trémulo, ardente, abriu-a e caiu para o corredor, ficando ali deitada.

Assim Pjetkin a encontrou ao voltar do parque. Com alguns passos estava junto dela. Levantou-a e assustou-se com o calor da sua pele. Carregando Sinaida no colo como uma criança, ele correu para a sala de exames e fez a enfermeira da noite, que saía do quarto assustada, dar o alarma para todos os médicos da seção cirúrgica.

— Tirem o Dr. Trebjoff do concerto! — gritou ele quando examinara o braço. — No Palácio da Cultura! Imediatamente! Por que estão parados aí, olhando para mim? Chamem-no! — O jovem médico ainda hesitava. Pela primeira vez via Pjetkin fora de si, nervoso, e isso o confundia. Os outros médicos haviam despido Sinaida e colocado na mesa de exames. Pjetkin sentiu-lhe o pulso: era um pulso pequeno e macio, e disparava.

— Temperatura, quarenta e um e sete — disse um jovem cirurgião de Alma-Ata. Pjetkin apalpou o ventre. O baço estava enorme. Outro médico tirou sangue da veia do braço da moça, e das costas da mão, e correu para o laboratório. A respiração de Sinaida tornou-se rápida e superficial. Novos calafrios lhe sacudiram o corpo, jogando-a de lá para cá. A pele estava ressequida.

— Imediatamente para a OP esterilizada! — gritou Pjetkin. — Que coisa! Será que Sinaida não disse a ninguém que se cortou? Depressa, depressa... Isso é uma emergência, camaradas!

Não demorou um quarto de hora e o Dr. Trebjoff estava de volta. Um funcionário da sala de concertos o chamara discretamente, bem na parte da obra que Trebjoff mais apreciava.

Não lhe disseram ao telefone o que acontecera no hospital, apenas que era muito urgente. Mas agora já na entrada lhe gritavam:

— Sinaida Nicolaievna está com septicemia!

Trebjoff atirou o chapéu no ar, berrou com dois médicos que vinham correndo do laboratório e se chocaram com ele, como um touro apunhalado, e quase arrancou a porta da sala de operações.

Pjetkin, pronto para operar, acenou-lhe com a cabeça.

— Infecção de ferimento. Estafilococos. Infecção por corte no dedo. Eu não quis fazer nada sem ouvi-lo, Avdeij Romanovitch.

O Dr. Trebjoff debruçou-se sobre a moça inconsciente. O estado dela era assustador, ele nem se atreveu a dizer o prognóstico.

— Você é o chefe da cirurgia, Pjetkin — disse com voz rouca. — Faça o que tem de fazer... — Depois olhou Sinaida, sacudiu a cabeça e deu uma bofetada na moça desacordada. — Sua fêmea estúpida! — berrou. — Queria bancar a santa, hein? E agora, e agora? Agora vão aleijá-la. Aleijar esse corpo magnifico. Pjetkin, que está esperando?

Era uma operação cruel. Primeiro, Pjetkin lhe abriu o braço até a axila e deixou jorrar o sangue da longa ferida. Mas até o cotovelo o tecido já estava inflamado e inchado mandando sempre novos estafilococos para o corpo através da corrente sangüínea. Ao mesmo tempo, outros médicos lhe injetavam doses de tetraciclina e colocavam soro no braço sadio.

— Ampute! — disse Trebjoff entre os dentes apertados.

Igor Antonovitch... domine-se. Exarticulação da junta do braço. Não me olhe como um cãozinho! Eu também sei. Ela não tem mais salvação. Mas não vamos ficar aí parados, de braços caídos. Há uma chance, uma diminuta chance... uma gota no deserto...

— Não! — Pjetkin depôs de novo a grande faca de amputação. — Vou fazer uma última tentativa. Faça saber quem de nós tem sangue tipo O RH positivo. Que fiquem preparados.

Trebjoff jogou os braços para cima, depois colocou suas mãos na cabeça.

— Aqui nunca fizemos até hoje uma grande transfusão — disse. — Mas seja como quer, Pjetkin. Eu sou o primeiro. Sou O positivo. — Arrancou do corpo o casaco e a camisa, e começou a berrar: Tirem os outros médicos da cama! Todos os de O positivo na sala de operações! Vamos! Quero sentir uma tempestade debaixo desses traseiros!

As enfermeiras dispararam para fora. Pjetkin costurou o grande corte no braço e colocou a cânula de três bicos na veia. Um jovem médico empurrou uma maca para junto da mesa de operações, e Trebjoff deitou-se nela, ajeitou-se confortavelmente e gritou:

— Mais depressa! Mais depressa! Será que aprenderam a rapidez das lesmas?

Pjetkin lavou o corpo de Sinaida em sangue fresco... deulhe doses tão grandes de antibiótico quantas havia, e depois desistiu de lutar contra aquele poderoso inimigo.

— Temos de esperar... — disse totalmente exausto. — Fizemos tudo... quem quiser rezar, pode rezar.

Ao meio-dia do outro dia Sinaida Nicolaievna Svesda morreu. Acordou ainda uma vez do seu desmaio, olhou ao redor com olhos tristes. Pjetkin e Trebjoff estavam ao seu lado.

— Vou deixá-los sozinhos — disse Trebjoff e ergueu-se.

— Por quê? Fique.

— Mas não pode ser tão idiota! — Trebjoff acariciou o rosto ardente e seco de Sinaida, e deu-lhe um sorriso triste. — Coragem, filhinha... — disse com uma voz peculiar. — Agora você pode lhe confessar tudo. Ele não fugirá... e você não tem mais tempo para se envergonhar...

Pjetkin esperou que Trebjoff saísse do quarto. Depois curvou-se sobre Sinaida e colou o ouvido aos lábios rachados.

— Igoruschka, eu o amo... — sussurrou ela. Era um sopro que passava sobre a língua inchada. — Fique comigo... fique... fique...

Ele acenou a cabeça, pegou-lhe as mãos ardentes e apertouas contra os lábios. Que crueldade, pensou. Uma mentira transforma a morte em felicidade.

— Sinaida... — disse ele debruçando-se de novo. O hálito dela já cheirava a podridão, mas seus olhos ainda lutavam pela vida, e “stavam cheios de esperança. — Vou ficar com você até o fim da vida.

Era uma promessa barata... um presente de minutos apenas. Mas ela não entendia... para ela não havia mais tempo, apenas a felicidade presente. Sorriu, enquanto um novo calafrio lhe sacudia o corpo, e a respiração se apressava cada vez mais.

O sorriso feliz permaneceu quando a respiração cessou tão abruptamente que até Pjetkin se assustou. Era como se alguém tivesse apagado uma lâmpada... o contato com a vida fora interrompido.

Pjetkin ergueu-se e deixou o quarto. No corredor, Trebjoff esperava encostado na parede, fumando nervosamente. Ele era um homem grande e forte, e também as lágrimas nos cantos dos olhos eram grossas e graúdas.

— Acabou? — perguntou numa voz apagada.

— Sim. Feliz.

— Ela foi feliz?

— Acho que sim.

— Era uma mulherzinha misteriosa. — Trebjoff enxugou as lágrimas com as costas da mão. — Faz dois anos que está em Chelinogrado. Um anjo de figura, mas uma rocha de dureza. Se alguém me dissesse que dormira com ela eu lhe quebraria a cabeça, pois seria um mentiroso infame. E aí vem você... e desde o primeiro dia ela ficou transformada. Olhe para mim, Igor Antonovitch. O que tem você de tão irresistível? Não vejo nada. — Trebjoff esforçou-se por fingir bom humor, mas não foi bastante forte para impedir-se de chorar. — Quero lhe revelar uma coisa, meu rapaz. Eu o invejava. Uma coisa caiu-lhe no colo, como uma maçã arrancada pelo vento, uma coisa pela qual eu lutava há dois anos. Andei ao redor dela como um pavão, e ela apenas sorria como se sorri para um louco inofensivo.

Deixou Pjetkin parado e entrou de cabeça baixa no quarto da morta.

Uma hora depois, Sinaida Nicolaievna estava amortalhada na sala de refeições dos médicos. Trebjoff mandara vir um caixão esculpido, antigos ornamentos mongóis e do Kasakstan, nos quais estavam reproduzidos a rudeza da estepe e o amor aos cavalos. Sinaida jazia sob uma coberta bordada a ouro, os cabelos negros trançados com fitas coloridas. Trebjoff chorava como uma criança, sentou-se ao pé do caixão e não falou mais com ninguém. Só quando Pjetkin se aproximou ainda uma vez, colocando rosas ver- melhas nas mãos dela, Trebjoff olhou-o tristemente.

À noite uma médica telefonou desesperada para o Dr. Pjetkin. Havia ali um homem retorcendo-se no chão, cuspindo nas paredes e nos atendentes, berrando pelo Dr. Pjetkin. Mas todos viam que era só simulação. E era um anão muito feio...

Pjetkin correu para a recepção. Realmente, era Marko...

— Filhinho! — gritou este. — Eles não acreditam que estou doente! Não sabem nada! Eu lhes expliquei a minha doença, e eles não a conhecem. Mas não lêem livros de Medicina? Você a conhece não é? Já dissecamos juntos um sujeito que morreu desse horrível tormento. Só homens são atacados por ela, só homens mas as médicas se recusam a acreditar.

Pjetkin afastou-se.

— Quarto 19 — disse ao atendente que estava pronto para atirar Godunov na rua. — E avise a OP. Preparar tudo para operação no cérebro...

— Filhinho! — berrou Godunov. Correu atrás de Pjetkin, agarrou-se ao seu braço e correu ao seu lado. — Tenha piedade. As galinhas estão acabando comigo, os galos são preguiçosos, os ovos diminuem. Estou doente de corpo e alma... dê-me uma cama por aqui, sem operar meu cérebro.

Pjetkin parou.

— O verdadeiro motivo? — perguntou ameaçador.

— Eu prometi. — Marko enxugou o suor e tremia de alegria. — Voltei. Não me quiseram como empregado. Agora venho como paciente.

E Pjetkin podia ter beijado o feio anão.

 

Quem pela primeira vez sai das imensas florestas da taiga e entra na cidade de Irkutsk, senta-se quieto num dos bancos de seus muitos parques e jardins e fica calado. Pensa que está num lugar encantado, e precisa de algum tempo para convencer-se: também isto é a Sibéria. Também isto é a Rússia. Esta cidade moderna com as largas avenidas e praças, os grandes navios brancos no Angara, navegando para o Baikal, esse pequeno mar entre as florestas virgens, as construções ousadas da Universidade Idanow, os teatros de colunas e torreões no estilo clássico, como a Ópera e o Teatro, a Casa Branca com suas colunas coríntias, na qual se instala a biblioteca da Universidade, a enorme ponte de concreto sobre o Angara, as belíssimas igrejas Spassakaja e Kretovskaia, o milagre da represa de Bratsk, que com 4,5 milhões de quilowatts mantém o recorde de eletricidade no mundo, o palácio da estação de estrada de ferro no subúrbio de Glaskovskoie e o maior estádio de esportes de todo o Oriente... tudo isso é a Sibéria, embora seja difícil acreditar.

No verão, as margens do Angara e do lago de Baikal estão cheias de corpos suados procurando refrescar-se... no inverno o leite é vendido em blocos congelados no mercado, pois a cinqüenta graus abaixo de zero nada mais se move, exceto gente e bichos. Mais de cem indústrias estendem-se ao redor da cidade, nos curtumes são trabalhadas peles de almíscar, zibelina, arminho, marta, raposa branca e marta do Canadá. Em 72 escolas, 19 institutos técnicos e 8 escolas de ensino superior, se forma o espírito de uma nova geração na Sibéria, 10.000 estudantes vivem permanentemente na cidade, a elite dessa terra virginal, cuja abertura poderá um dia transformar o mundo... é uma dádiva poder viver em Irkutsk.

A clínica da Universidade, como tudo em Irkutsk, era o complexo hospitalar mais moderno do Oriente. Nada faltava ali... nem em Paris, Londres ou Berlim, Nova York, Tóquio ou Roma, se percebe uma diferença entre aqueles hospitais e essa clínica siberiana, a não ser que sejamos bastante honestos para reconhecer: este é ainda mais moderno, melhor, mais amplo do que qualquer outro hospital do mundo.

Dunia Dimitrovna obteve um belo quarto claro, sobre o pátio interno. O médico-chefe, Dr. Bulak, cumprimentou-a uma hora após sua chegada pessoalmente em seu escritório, fez-lhe uma preleção sobre o espírito de camaradagem e a honra de ser médica em Irkutsk, apresentou-a ao colegiado dos médicos, e entregoulhe uma seção masculina na Cirurgia. Seção de Acidentados III. O médico-chefe dessa seção III era um Dr. Júri Dimitrivitch Tchepka, um homem orgulhoso, alto, magro, com cara de carneiro. Cumprimentou Dunia com um grande sorriso, percorreu com o olhar seus seios e quadris, estalou a língua e disse:

— Vamo-nos entender muito bem, Dunia Dimitrovna. Está sozinha em Irkutsk?

— Venho do Amur, camarada. — Dunia disse aquilo como uma recusa. — Estamos habituados à solidão.

— Mas quem fica solitário em Irkutsk? — disse Tchepka e quis agarrá-la pelos quadris. Mas ela foi mais rápida, esquivou-se e bateu-lhe nos dedos. — Ah, uma mulherzinha de ferro! — exclamou Tchepka curvando-se de tanto rir.

Era um sujeito desprezível, esse Júri Tchepka. Tinha-se vontade de lhe bater na cara o tempo todo, e seria um prazer. Ele se aproveitava vergonhosamente da posição de médico-chefe, corria atrás das jovens médicas e enfermeiras assim que escurecia, e queixava-se ao Dr. Bulak inventando maldades sobre as que não cediam aos seus desejos.

Dunia escreveu a Igor logo após sua chegada, entregou a carta ao correio na administração do hospital, o que foi um erro. A carta foi posta de lado, um homem num pequeno escritório isolado decidiu que devia ser destruída, e assim a carta desapareceu na máquina de picar papel.

Como vivia Dunia? Era médica, o ritmo de vida de uma médica de clínica é monótono, prescrito pelos doentes. A dor assoberba a gente até que ficamos habituados aos gritos e gemidos, não os ouvindo mais até que nem vemos mais as pobres pessoas, mas apenas a doença, que resume tudo naquela parte do corpo que estamos tratando. Um braço esmagado, uma mão amputada, uma perna quebrada, uma cabeça rachada, um tórax dilacerado, uma espinha partida ou um rosto cheio de cacos de vidro, uma perna arrancada. Dia por dia, e seguidamente também à noite, só corpos sangrentos e mutilados... acidentes no trabalho, nas estradas... era espantoso como as pessoas se dizimavam por sua própria culpa.

Por três vezes, Dunia telefonou a Issakova e falou com seu pai. Dimitri Ferapontovitch ficava então sentado atrás da sua mesa na sede do Partido, tremendo, e berrava no fone:

— Minha filhinha, como vai? Está com saúde? Todos aí são bons com você? Senão vou já para aí! Toda a aldeia vai fazer uma vaquinha para que eu possa ir de avião! E vou pregar na parede todos os que a ofenderam!

Nessa hora em geral a voz lhe faltava, e Dunia podia enfinv, perguntar:

— Tem notícias de Igor, paizinho?

— Nada. Absolutamente nada! Ele está no mais total silêncio. Nada de carta, nada de telefonema. Escrevi duas vezes e telefonei duas vezes para Chelinogrado. E sabe o que me dizem? O doutor não tem tempo agora!” Imagine, mas dizem isso! Não tem tempo! E eu gritei na cara deles: ”Ah! Eu sou o sogro dele! Vão chamar o meu genro. Ele sempre tem tempo para mim. Sou Sadojev, há trinta anos sou membro do Partido...” E sabe o que fazem? Desligam!

— Devem estar-nos vigiando... — disse Dunia, e era preciso ter coragem para dizê-lo assim ao telefone. E realmente, houve um estalo na ligação, que foi interrompida. Para Dunia essa situação era compreensível, mas Sadojev portava-se como louco, até que por fim, exausto, teve de conformar-se e aceitar a vontade do Estado.

No hospital de Irkutsk, porém, o sujeito misterioso no pequeno escritório colocou um novo documento na pasta Sadojev Pjetkin e guardou os papéis na sua escrivaninha. E como acontecera com Sinaida em Chelinogrado, também o Dr. Tchepka recebeu um telefonema certa noite:

— Camarada Júri Dimitrivitch, como está? Como vão seus esforços com Dunia?

— Não vou conseguir nada com belas palavras — respondeu ele soprando a fumaça do cigarro no telefone. Estava sentado no sofá, em seu quarto, tomando conhaque. — Ela é uma bichinha selvagem, que tem de ser apanhada com redes e cordas.

— Pois então apronte a armadilha, camarada. Não decepcione a Central. O senhor tem muito a perder...

Tchepka confirmou silenciosamente com a cabeça, e desligou. Bebeu mais quatro cálices de conhaque, tomou banho, vestiu apenas um roupão branco sobre o corpo nu respingado de um perfume áspero, enfiou pantufas bordadas e esgueirou-se pelo corredor até o quarto de Dunia. A porta não estava trancada quando ele baixou a maçaneta, o quarto estava vazio, uma garrafa de limonada sobre a mesa, ao lado um copo meio vazio. O perfume de suaves cigarros chineses ainda pairava no ar.

Um caso de urgência, pensou Tchepka. Seção de acidentados. Serviço miserável. Não pôde nem terminar de beber essa horrorosa limonada.

Olhou em torno, decidiu dar um pequeno susto em Dunia, tirou o roupão e deitou-se despido na sua cama.

Esperou uma hora, fumou seis cigarros, tomou aquela limonada adocicada, o que lhe causou azia, e depois apagou a luz quando ouviu passos rápidos no corredor.

Primeiro, foi o cheiro estranho de fumo que deixou Dunia cautelosa, ao abrir a porta. Acendeu a luz, ficou parada na porta aberta, e olhou em torno. Ao primeiro olhar o quarto parecia vazio. Fechou a porta, virou a chave e tirou o guarda-pó branco. Debaixo dele usava apenas uma calcinha rendada e um minúsculo sutiã que mal conseguia prender-lhe o busto cheio.

— Eu nunca teria esperado tanta colaboração — disse Tchepka, o filho do diabo, da cama. Dunia virou-se e, numa espantosa reação, pegou a garrafa de limonada vazia. — Primeiro, fecha a porta, depois desvenda um corpo diante do qual os poetas cantariam versos imortais... Dunia Dimiírovna, você me assalta com sua selvageria...

— Levante-se! — disse ela com voz fria. — Imaginei que um dia isso havia de acontecer. Faz três semanas que anda atrás de mim.

— Você notou? É uma faísca que pode acender uma fogueira, Dunienka. Estou morrendo de desejo.

— Não pense que vou gritar por socorro. — Dunia agarrou firme a garrafa, sopesando-a na mão. E falou com calma. — Lá no Amur aprendemos a viver com o perigo. Uma vez espantei lobos com um porrete, e atirei um martelo na cabeça de um urso. E agora tenho uma garrafa para enxotar um porco. Isso basta. Levante-se imediatamente!

— Se eu me levantar, você vai ficar admirada.

Tchepka riu maldosamente. Afastou a coberta e apresentou-se em plena nudez a Dunia. Percebia-se perfeitamente a sua excitação.

— E agora? — perguntou cruzando os braços atrás da nuca. — Quer-me arrancar da cama? Peso noventa quilos, difíceis de mover. Vamos pensar juntos, Dunienka: você não vai me tirar daqui com palavras. Violência provocaria reação e aí uma mulher sempre sai perdendo. Se gritar por socorro, vão rir de você, pois eu vou ficar aqui deitado, tal como estou, e dizer: ”Camaradas, saiam daqui. Ela gritou apenas porque não estava preparada para tão grande masculinidade...”

— Você me está subestimando, Júri Dimitrivitch — disse Dunia calmamente. — Onde nasceu?

— Em Kiev.

Tchepka olhou-a estupefato.

— Então ninguém levará a mal que não conheça as moças do Amur. Agora levante-se e saia do quarto.

— Amanhã quando o sol brilhar no Angara... antes não.

— Você é um imbecil, Tchepka. Foi assim que conquistou todas as suas mulheres?

— Sim, em cada mulher se esconde um incrível impulso de união sexual. Elas apenas se disfarçam com o mantinho da vergonha. Mas é um tecido fino... que se rasga ao primeiro aperto e cai ao chão. Dunienka, livre-se do bolor da moralidade...

— Vou é me livrar do mau cheiro de um bode. No Amur basta uma simples chibata e ele corre como se um fardo de palha lhe ardesse nas costas. Que sujeito desmiolado é você, Júri Dimitrivitch!

Ela deu quatro passos à frente, e fitou com olhos frios Tchepka e seu excitado órgão. Depois levantou a garrafa, e antes que ele pudesse esquivar o corpo, bateu-lhe na cabeça. O vidro se estilhaçou e de repente o fundo da garrafa ficou enfiado como uma coroa no seu crânio, brilhando como um enorme diamante. Uma onda de sangue inundou o corpo despido. Tchepka esticou-se, gemeu baixo e perdeu os sentidos.

Dunia vestiu novamente o uniforme sem precipitação, deixou o quarto e do telefone no corredor deu alarma para a equipe de operações de emergência, que sempre estava preparada num quarto junto às salas de operações.

— Ferimento na cabeça — disse com a voz impessoal de todos os clínicos. — Cacos de vidro no crânio. Tragam uma maca ao meu quarto... sim, camarada, o senhor ouviu bem: meu quarto. O acidentado está na minha cama. O Dr. Tchepka, sim, o senhor adivinhou. Ele também fez uma aposta com o senhor? Apresse-se ou ele morre de hemorragia.

Na manhã seguinte, Dunia Dimitrovna defrontou-se pela primeira vez com o homem misterioso no pequeno e desconhecido escritório. Um sujeito pouco amigável, gordo, com cabelos pretos e ondulados, um nariz carnudo com três cravos. Apontou para uma cadeira diante da sua mesa e disse:

— Pode fumar, camarada. — E folheou uns papéis. — O camarada Tchepka ficará paralítico do lado esquerdo — disse indiferente. — Sabe disso?

— Não. Sinto muito. Mais eu avisei Tchepka.

— E precisava logo deixá-lo aleijado? Um homem nu não é motivo para se acabar com a vida dele. Sabe que posso levantar queixa por tentativa de assassinato?

— E eu vou responder com tentativa de estupro.

— E as provas? — O gordo olhou Dunia cordialmente. Mas naquele ar paternal havia todo o poder do KGB. — Provas! Quem jamais vai acreditar nisso? — O sujeito cordial abanou as duas mãos quando Dunia quis responder. — Vamos poupar palavras inúteis. O que vale é o meu relatório, as minhas constatações, o meu ponto de vista sobre o caso Tchepka. — Segurou o papel no ar e deixou-o cair de novo sobre a mesa. — Aqui está escrito o que você fez. Tentativa de assassinato do Dr. Tchepka com uma garrafa. Pouco feminino, brutal, nojento e antiestético o seu ato. Se eu entregar esse papelzinho, você vai ser presa e condenada... Isso é tão certo como o Angara congelar-se no inverno. Mas para que isso? Você é boa médica, ainda pode ser útil por muito tempo ao Estado Soviético. Temos outro caminho. — Pegou outro papel, segurou-o também no ar, deixando-o cair como o anterior. — Uma única palavra basta, camarada. a sua assinatura. Mais nada.

”Tchepka será então levado a um sanatório, cuidaremos dele, e não se falará mais nisso. Você agiu direito, resistindo a esse porco selvagem. Defendeu a sua honra, isso exige reconhecimento. Não devíamos refletir sobre esse segundo caminho? Por favor...

Estendeu o papel a Dunia. Ela lançou um olhar às poucas palavras, e afastou-o energicamente. Uma renúncia a Pjetkin.

— Não — disse com dureza e ergueu-se. — Hei de rever Igor Antonovitch. O preço é alto demais.

— Do outro lado terá prisão e deportação. — O sujeito amável coçou os cravos do seu nariz grosso. Ele também era apenas um homem, e a visão de Dunia era reconfortante para o coração. Ele pensou nos campos de trabalhos forçados na estepe, na florestas e no Mar Ártico, nessa outra Sibéria em que se amontoou o horror de séculos, e tentou mais uma vez agir contra as suas ordens de pensar apenas na lei e não nas pessoas. — Dunia Dimitrovna... não seja tão cega! Essa assinatura é só uma formalidade. Só o fim de um caso já encerrado. Você não vai mais encontrar-se com Pjetkin.

— Isso é o que o senhor pensa... — disse ela baixo. O reconhecimento dessa verdade a deixava vazia como um imenso quarto no qual nem escutava mais a própria voz.

— Eu sei. Temos ordens superiores. Por mais terrível que a verdade seja... Pjetkin é alemão. A sua assinatura, camarada, e todos os problemas serão guardados no cofre. É tão difícil esquecer um único homem entre milhões?

— Aí é que está, camarada. — Dunia foi até a porta. Uma franguinha altiva essa, pensou o sujeito gordo e amável, mas ainda assim vão-lhe torcer o pescoço. Pena, mas as leis não param diante de belos corpos e olhos luminosos.

No seu quarto, Dunia escreveu uma queixa contra Tchepka. Na mesma hora o sujeitinho gordo telefonava para Moscou, curvando-se para a frente a cada duas palavras, dizendo cheio de respeito:

— Será assim, camarada. Sim, senhor, assim será feito.

 

O posto de serviço do KGB em Chelinogrado — também havia um ali, pois onde cresce o progresso também cresce a desconfiança do Estado — ficava numa estreita rua lateral, discreta, uma casa como milhares de outras. Poucos em Chelinogrado sabiam desses camaradas que, para os russos, ficavam perto do bom Deus, pois Deus fez o céu e a terra, manda o vento e a chuva, faz o sol brilhar e a noite escurecer, determina primavera e verão, outono e inverno... mas os camaradas do KGB determinam se alguém pode fumar calmamente o seu cachimbo e tomar 100 gramas de vodca, ou se deve entregar o seu espírito inútil- em Kap Deschnev, trabalhando nas montanhas com outros cem prisioneiros.

Pjetkin de nada suspeitava quando o correio lhe trouxe aquela carta. Pediam-lhe — pediam! — que fosse à Chabarovskaia, na quinta-feira, às 10 da manhã, para um encontro. O remetente era mais misterioso ainda: Escritório de Assuntos Técnicos. Um nome que nada dizia a Pjetkin, mas para um russo a palavra ”técnica” é uma palavra mágica. Ele deve à técnica sua nova Rússia.

— Coisa estranha — disse Godunov ao ler a carta. Vivia como paciente no hospital, era tratado por Pjetkin pessoalmente, e mesmo que não tivesse doença alguma tinha de permitir que lhe aplicassem injeções e remédios amargos.

— Assuntos técnicos — disse Pjetkin revirando a carta entre os dedos. — Em princípio, isso soa bem. Quem sabe estão testando algum aparelho novo de radiografia? Vou até lá.

A Chabarovskaia é uma rua lateral, a casa é uma construção amarela e feia. Mas dentro, tudo limpo, singularmente silencioso, de uma solidão quase gelada. Sala 6. Pjetkin bateu, alguém exclamou ”entre!” e ele se viu num típico escritório, mobília desolada, constando de uma mesa, três cadeiras, um fichário, um retrato de Lenine na parede, um vaso de flores murchas na janela.

O homem sentado atrás da mesa acenou sorrindo para Pjetkin, apontou uma cadeira e disse:

— Sente-se, Igor Antonovitch. Já vamos ao assunto. — Mas não se ergueu, coisa que um homem educado faria, e logo chamou Pjetkin pelo primeiro nome, sem que este se tivesse apresentado. Duas coisas que chamaram a atenção de Pjetkin, e o deixaram cauteloso.

— Conhece-me, camarada? — perguntou, sentando-se.

— Quem não conhece o médico Pjetkin? — O homem recostou-se. Era a terceira gafe, pois um sujeito decente se apresenta com nome e sobrenome, para que se saiba quem é e como deve ser tratado. — O génio da Medicina. É esse o nosso assunto! O senhor fez um requerimento oficial para ser tratado como alemão e poder viajar para sua pátria, a Alemanha.

Naquele momento, Pjetkin entendeu o que era na verdade o escritório para ”assuntos técnicos”. Ficou calmo, pegou o coração nas mãos, e preparou-se para lutar pelo destino.

— Disseram-me muitas vezes que, embora eu fosse educado como russo e adotado pelo capitão Pjetkin, ainda permanecia alemão. Deram-me até um exemplo muito plástico: se a gente veste um boi com pele de camelo, ele continua sendo boi...

— Mais tarde, falaremos no boi, Pjetkin. — O homem atrás da mesa fitou o teto d e madeira. — Vamos tratar do seu pedido... Na verdade, é uma pilhéria, Igor Antonovitch.

— É tão verdadeiro quanto o fato de eu ser alemão. A decisão está em suas mãos. Se me negam o retorno à Alemanha, então devo ser tratado como russo.

— E chama a isso de lógica? — O homem, um camarada bem tratado, esbelto, com cabelos castanhos levemente grisalhos, parecendo antes um cientista do que um funcionário do serviço secreto, sacudiu a cabeça como se estivesse confuso. — O povo soviético espera que o senhor empregue suas forças e o seu saber em benefício da Rússia.

- E eu espero que o Estado Soviético me encare como um dos seus, e não me impeça de desposar a mulher que amo.

— Ah, sim, Dunia Dimitrovna. No seu pedido está escrito, textualmente: ”Regresso à Alemanha com Dunia Dimitrovna como minha esposa...” Pjetkin, o senhor teve um momento de descontrole quando escreveu isso. Vamos ignorar o fato.

— Mas deviam imprimi-lo a fogo em seu cérebro, camarada! Eu insisto em poder emigrar com Dunia para a Alemanha!

O homem atrás da escrivaninha fitou Pjetkin por alguns momentos, em silêncio. Era o silêncio da máscara caindo. Doze horas, desmascaramento. Aparecem os verdadeiros rostos. E eles vieram...

Igor Antonovitch Pjetkin — disse o homem quase em tom festivo — eu não poderei impedir que o interroguem minuciosamente. Tenha calma... diante da porta já está um guarda.

— Que quer dizer isso? — disse Pjetkin erguendo-se de um salto. Estava consciente da sua impotência, mas não queria sair daquela sala sem resistência alguma. — Eu protesto! Apresentei o meu pedido ao Ministério do Interior em Moscou, e é de lá que aguardo uma resposta!

— Mas quem é que pensa naquele seu pedido maluco, Pjetkin? Estamos exatamente tratando de fazê-lo desaparecer. Meu caro Igor Antonovitch, eu o prendo como culpado da morte da médica Sinaida Nicolaievna Svesda...

Marko Borissovitch Godunov estava sentado na privada lendo o jornal e fumando prazerosamente um cigarro que ele mesmo fizera e que era malvisto no seu quarto. O bom homem estava satisfeito, gozando de um quarto de hora sossegado, quando o atendente da seção, Jermal, entrou correndo. É preciso conhecer as circunstâncias para não se admirar. Naturalmente não havia privadas isoladas, quartinhos com parede e porta, em que alguém pudesse esconder-se sozinho consigo mesmo e com os próprios excrementos, mas havia só um grande compartimento com sete vasos lado a lado, em fila como numa parada militar. Do outro lado havia sete pias presas na parede, sem sabonete nem toalhas, pois tinha havido experiências negativas nesse sentido.

Era raro que essa bela sala — era até caiada de branco, com chão de pedra — estivesse vazia como naquele momento em que Marko ali estava, sentado no seu vaso, achando o mundo em perfeita ordem. A entrada precipitada do atendente Jermal não o perturbou... funcionários também têm suas necessidades, e quando têm tanta pressa isso apenas prova que comem bem.

— Aqui está você! — gritou Jermal parando diante de Marko. — Sentado feito um macaco, mandando fedor pelos ares! Levante-se daí. O Dr. Trebjoff está à sua procura, está na hora da injeção!

Marko ficou sentado, balançando as pernas. Dobrou cuidadosamente o jornal e prendeu-o sob a axila esquerda.

—- Como, Trebjoff? — perguntou. — Estou na seção do Dr. Pjetkin, e ele me prometeu que não me vão mais dar aquelas injeções horríveis.

— Pois ele não vai mais ter tempo de cumprir promessa alguma — gritou o atendente, pessoa que Godunov mais detestava entre todos os do hospital. Um sujeito mandão, que sempre queria estar certo e nunca admitia uma falha, ainda que tivesse a camisa pendurada fora das calças. — Levante-se e ande. O Dr. Trebjoff está sentado na sua cama esperando...

— Que quer dizer com essa de que Pjetkin não vai poder cumprir promessa alguma? — perguntou Marko devagar.

— Ele está preso.

— Preso? Pjetkin? — Godunov deu um pulo, jogou o jornal no chão e puxou as calças para cima. — Não pode deixar de ser um engano.

— Ninguém sabe nada ao certo. Os espertalhões do KGB telefonaram. Aqui no hospital tudo parece um grande mistério. Uns dizem que ele ofendeu a administração do hospital, outros afirmam que já era meio prisioneiro quando chegou a Chelinogrado.

Marko não se esquivou mais da injeção. Deitou-se na cama de bruços e Trebjoff enfiou-lhe uma injeção nos músculos, fazendo Godunov rilhar os dentes. Depois, o médico se debruçou como se quisesse examinar-lhe a garganta, e perguntou:

— Camarada, você veio com Pjetkin para Chelinogrado?

— Sim. Mas como não precisassem de mim por aqui, tomei o encargo de adaptar alguns milhares de malditas galinhas às normas de postura do mercado de ovos do Estado. Essa tarefa acabou com os meus nervos. O que aconteceu com Pjetkin?

— Você não o verá mais. — disse Trebjoff baixinho, com ar sombrio. — Nenhum de nós o verá mais. Não pergunte nada, Marko... fique com os seus ovinhos, isso é uma profissão mais segura e apolítica.

Trebjoff levantou-se e se foi, sem olhar para trás. Godunov já sabia o bastante. Cruzou as mãos sobre o peito e fechou os olhos. Então ele colocou tudo em ação, pensou. Não ouviu nenhum aviso. Sempre dando com a cabeça na parede. Não há cabeça no mundo que agüente isso.

Marko virou-se de lado fitando o linóleo do chão, que era encerado e polido três vezes por semana. Os ruídos e rostos ao redor dele esmaeceram... tudo se perdeu dos seus ouvidos e olhos, permanecendo apenas uma ideia: será que ainda se pode ajudar Pjetkin? Como posso ficar perto dele? E Dunia, meu Deus, Dunia... ela tem de ser avisada. Não adianta telefonar, pois todas as conversas eram censuradas, Marko tinha certeza disso. Escrever era mais idiota ainda, pois a carta jamais chegaria ao seu destino. Então restava apenas uma coisa: viajar para Irkutsk e falar com ela pessoalmente. Mas assim ele perderia Pjetkin de vista.

Era um problema que quase esmagava Godunov.

Depois do almoço, Marko — uma figura habitual — saiu com sua bengala para tomar ar no jardim. Ficava em geral sentado num banco debaixo de um salgueiro. Mas dessa vez fez uma curva ao redor do banco habitual, olhou em volta algumas vezes, rápido, e desapareceu entre os arbustos. Sumira, e só na hora do jantar perceberam que não voltara, pois a comida ficara esfriando ao lado da cama, na mesinha.

Mas aí já era tarde para procurá-lo. O médico da seção logo avisou ao Dr. Trebjoff, e admirou-se da indiferença do médico-chefe, pelo desaparecimento de um paciente.

— Alegramo-nos com a sua partida — disse Trebjoff. — Era um simulador. Pjetkin e eu o tratávamos só de piedade. Agora ao menos ele não será mais um encargo para o Estado.

Godunov passou a tarde inquieto como nunca. Primeiro tratou de saber onde ficava o escritório do KGB. Para isso falou com um policial na rua, dirigiu-se a ele sem rodeios, como se fala com uma prostituta, e indagou:

— Camarada, tenho um caso muito valioso para comunicar à polícia secreta. Se eu soubesse o endereço...

— Vá à sede do comando — aconselhou o policial. — No meu setor não sabemos de tais endereços.

Marko correu para o comando. Mandaram-no a sete salas diferentes. Em toda parte, ele contava a mesma história sobre uma suspeita de que no kolkhose Nowo Gorki um padre disfarçado de tratorista celebrava missas ocultas e até balizados. Isso lhe conseguiu imediatamente uma audiência, mas só depois de duas horas descobriu o endereço do escritório do KGB.

— Na Chabarovskaia.

Godunov deu um salto no ar quando ouviu isso e lembrou-se da carta do escritório, sobre assuntos técnicos, que Pjetkin recebera. Desistiu do padre misterioso no kolkhose, e mencionou ousadamente o nome de Pjetkin. Assim foi imediatamente levado ao lugar certo, à sala do amável, bem vestido e aparentemente culto policial do KGB.

— O senhor tem uma acusação contra Pjetkin? — perguntou o sujeito elegante, tomando um chá verde e aromático numa xícara fina. — Quem é você, e o que sabe?

— Primeiro, uma coisa, depois a outra. Presumo que o Dr. Pjetkin esteja bem vigiado, pois é um canalha.

— E por que Pjetkin é um canalha? — perguntou o homem.

— É assim: um dia ele chegou ao kolkhose, na minha criação de galinhas, admirou as franguinhas, os galos, que faziam tão ativamente o seu trabalho viril, e me disse: ”Irmãozinho, sou médico do hospital. Gosto de comer ovos frescos e de vez em quando um franguinho assado e suculento. Será possível você me arranjar ovos e uma galinha?” Eu respondi: ”Caro camarada doutor, somos um kolkhose, temos normas a cumprir, aqui não há vendas diretas. Mas cada um de nós tem uma quota, e dessa eu posso lhe ceder alguma coisa.” E no decorrer do tempo eu lhe dei sessenta e nove ovos e quatro franguinhas no ponto. Acha que ele pagou? Nenhum copeque até hoje! Por isso, fui hoje ao hospital para arrancar uns rublozinhos desse Dr. Pjetkin, e ouvi dizer que ele tinha desaparecido. Fui ligeiro à polícia e eles me mandaram aqui, camarada. E agora? Como posso falar com ele?

— Faça o seu pedido por escrito, camarada. — O homem elegante tomou algumas notas e jogou o lápis na mesa. — Você vai ouvir notícias nossas.

— Então ele está mesmo aqui com você — perguntou Godunov obstinadamente. — Que sujeito com cara de santo! Em quem ainda podemos confiar, camarada? Ele vai ser deportado?

— Trate de fazer seus galos trabalharem direito — disse o camarada elegante. Contemplou Marko como a um fóssil raro, e lavou o seu nojo com um grande gole de chá. — Mas não faça tantas perguntas. Você fala demais.

— E como não ficar assim, vivendo no meio das galinhas? — queixou-se Godunov. Revirou os olhos de peixe, coçou o imenso crânio pelado, deu um suspiro de cortar a alma e deixou o escritório.

Na rua, modificou-se totalmente. Acenou para um táxi, e o motorista parou só por curiosidade, pois uma coisa como Godunov nunca o fizera parar, o que ele aliás confessou honestamente.

— Para o kolkhose Nowo Gorki — disse Marko. — Voe, meu irmãozinho, voe com esse carro... ainda temos muito caminho pela frente.

Depois de uma hora alcançaram a granja da criação de galinhas.

O novo administrador, um velhote com reumatismo e um enorme nariz indecente, vermelho e cheio de cravos, que passava os dias sentado por ali deixando galos e frangas inteiramente entregues à natureza, o que podia acabar numa catástrofe, pois tudo deve ser planejado e dirigido, recebeu Marko com olhos vermelhos e úmidos, arrotou-lhe na cara e deitou-se novamente no catre. Uma exalação de álcool pairava pesadamente no ar.

Marko ficou satisfeito. Foi ao galinheiro central, torceu o pescoço de cinco galinhas, meteu cem ovos num cesto trançado, e voltou de táxi a Chelinogrado, depois de beijar agradecidamente o velho.

Com essas cinco galinhas e cem ovos, Marko abriu as comportas da loquacidade. Distribuiu seus tesouros entre os funcionários subalternos.

— Ele vai ser metido num campo de concentração — disse o funcionário dos registros, e ele sabia, pois era quem organizava as listas. — A sentença será dada conforme o artigo 58 — disse ele contemplando com agrado a galinha debaixo da sua mesa.

— Isso não traz problemas e vai depressa. Mas nunca se pode predizer para qual dos campos o mandarão.

— Mas você vai ficar sabendo, não vai, irmãozinho? — perguntou Marko e tirou do bolso mais cinco ovos.

— Quem mais senão eu? — O funcionário escondeu os ovos com uma pasta. — Então permita que eu passe por aqui às vezes.

— Godunov piscou-lhe o olho, mas aquilo estava indo longe demais. O funcionário acenou com a cabeça, silencioso e formalizado, enfiou os ovos na gaveta e olhou para a porta. Marko entendeu. Não devemos trapacear com a benevolência dos nossos irmãozinhos. Curvou-se como um camponês que recebe um pontapé no traseiro, fez uma mesura e desapareceu. Estava contente.

Não vou abandonar você, meu filhinho, pensou, feliz. Aonde quer que o levem, ainda que seja no fundo do inferno... Marko Borossovitch estará por perto. Ainda não conceberam o demónio capaz de me segurar longe de você...

À tardinha, Godunov foi com o último trem para Semipalatinsk e de lá, com muitas vicissitudes, seguiu para Irkutsk.

Ele se tornara o último elo entre Igor e Dunia.

Igor Antonovitch Pjetkin foi interrogado quatro vezes. Eram interrogatórios curtos, ao contrário dos métodos habituais do KGB, que costumava massacrar presos com sessões que duravam noites a fio. Eram sempre outros oficiais que o interrogavam, e pareceu a Igor que eram de patente cada vez mais alta, embora usassem no momento trajes civis.

As perguntas eram sempre as mesmas:

— O senhor fez tudo para salvar Sinaida Nicolaievska Svesda?

— Como foi que ela se infeccionou?

— O senhor deixou seu escalpelo escorregar, por acaso ou intencionalmente, e feriu Sinaida?

— Por que não lhe amputou o braço?

— Não poderia ter mandado vir um especialista da AlmaAta?

E finalmente a pergunta que provou imediatamente a Pjetkin que ele nunca fora um homem livre, desde que o tinham transferido de Sergejevka:

— O senhor naturalmente sabia que Sinaida tinha a missão de conquistá-lo. E foi por isso que a matou...

— Eu não sabia nada desses fatos — respondeu Pjetkin com voz firme. — E é tão absurdo que eu tenha assassinado Sinaida, que não responderei mais a esse tipo de pergunta. Diga-me o verdadeiro motivo da minha prisão, camarada.

O oficial, um homem grisalho com a postura de um soldado da guarda, encostou-se na cadeira e agarrou a borda da mesa com as duas mãos. Olhou para Pjetkin por algum tempo em silêncio, e depois confirmou de leve com a cabeça:

— Tem razão, Igor Antonovitch. É indigno. Afinal, seu pai adotivo foi um oficial altamente condecorado, lutador de Stalingrado, herói do povo e modelo da juventude. O senhor usa o nome dele e tem consciência dessa honra.

— Nunca desonrei esse nome, camarada. — Pjetkin esmagou o cigarro no cinzeiro. — Estudei, fiz meus exames finais com distinção, esforcei-me para ser um bom médico. Ser médico significa ajudar. Ajudar a todos os doentes, sem distinção.

— Isso é uma grandiosa concepção ética — disse o oficial grisalho olhando para as mãos. — Mas ela não se deve tornar política. Em Kichinev, na sua juventude, o senhor ofendeu os camaradas da administração da cidade. Veja, temos tudo nos documentos. Acusou-os de que tinham lançado mão do dinheiro para o material a ser espalhado no gelo. Sua mãe Irena Ivanovna morreu num acidente causado pelo gelo escorregadio... isso acontece milhares de vezes no inverno na União Soviética. Depois, o senhor pôs o Campo Sergejevka de pernas para o ar e ainda quis se casar com a médica Dunia Dimitrovna. Quando lhe explicaram, de forma cortês, que isso era impossível uma vez que o senhor é alemão, perdeu todo o controle e fez um pedido de regresso para a Alemanha...

— Em companhia de Dunia — disse Pjetkin.

— Pois esse foi o cúmulo da estupidez, Pjetkin. E insiste nisso?

— Sim.

— E espera que ainda o apertemos ao peito?

— A Revolução nos tornou homens livres. Eu lhe pergunto, camarada: essa liberdade não permite que a gente se case com quem ama?

Esse fora o mais longo interrogatório até então. Pjetkin foi levado de volta à cela, um compartimento escuro, sem janelas, no porão. O guarda o encarou interrogativamente, e sacudiu a cabeça. Fora operado por Pjetkin há três semanas. Ele se havia deitado, recebera uma injeção, depois tornara a acordar, ainda na cama, e berrara: ”Por que me deixaram de lado outra vez? Que há, camaradas? Sou um caso incurável? Sejam honestos, não mintam... Chamem minha mulher e filhos para que eu possa me despedir...” Levara muito tempo para entender que tudo já havia passado, que seu apêndice fora retirado, e que em uma semana o Dr. Pjetkin o deixaria ir para casa, curado. Desde então, ele admirava o médico e ficara perplexo quando este aparecera de repente no porão, como prisioneiro do KGB.

— Desculpe, camarada doutor, mas por que o senhor é um sujeito tão teimoso? — disse ele antes de fechar de novo a porta. — Será que a sua felicidade depende de uma única mulher?

— Sim, Stepan — disse Pjetkin, sentando-se no duro catre. Não tinha colchão, mas quem está cansado dorme até de pé, encostado na parede. — Pense na sua mulher. Você a deixaria?

— Isso é uma pergunta delicada, camarada. O senhor não conhece minha mulher... — respondeu Stepan fazendo tilintar as chaves. E para evitar novas perguntas, deixou Pjetkin sozinho.

Conforme tinham revelado a Marko Borissovitch Godunov, a sentença decorreu sem formalidades, e com espantosa rapidez. Certa manhã, Pjetkin foi tirado do porão, pôde fazer a barba sob a vigilância de Stepan, tomou banho, e apareceu, cheirando a sabonete e água quente, na sala de interrogatórios. Agora havia três oficiais sentados atrás da mesa, usando pela primeira vez seus uniformes. O homem grisalho, um coronel, abriu uma pasta e fitou Pjetkin amavelmente, mas com distância profissional.

— Tenho a honra — disse com voz rude de militar — de lhe participar a sua sentença. Sente-se, camarada, e escute com atenção.

”O grande conselho do Komiteí Gossudarstwennou Besopassnosti (KGB), em sua sessão, tratou do caso do acusado Igor Antonovitch Pjetkin, nascido Hans Kramer, em 5 de maio de 1938, em Kõnigsberg, de nacionalidade alemã. Ele é acusado de crime contra o artigo 58, parágrafo 11, do Código Penal da URSS. Esse conselho especial decidiu que:

”O acusado, Igor Antonovitch Pjetkin, é culpado, conforme o parágrafo 4, do artigo 58, de perturbar a ordem da URSS com ideias burguesas, de tentar derrubar e aniquilar essa ordem.

”Conforme o parágrafo 11, do artigo 58, o acusado é culpado de ter continuado secretamente a Grande Guerra da Pátria, que terminou com gloriosa vitória, e de ter assim apoiado elementos rebeldes da nossa Pátria. Em nome das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e por motivo dos mencionados crimes, Igor Antonovitch Pjetkin é condenado a passar dez anos num campo da trabalhos forçados, para reeducação. Como prova de misericórdia, depois desses dez anos não lhe serão tirados os direitos de cidadão.”

O capitão deixou cair a folha e pigarreou, uma quente onda de dor estendeu-se sobre Pjetkin. Não era o desmoronamento diante da sentença, mas o reconhecimento que lhe destruía todos os ideais: cresci numa mentira, fui educado numa mentira, acreditei numa mentira. O mundo em que fui feliz nem ao menos existe.

— A sentença está assinada por todos os membros do conselho especial — disse o homem grisalho. — Entendeu tudo, Pjetkin? Por favor... assine.

Colocou a folha diante de Pjetkin, na mesa, e estendeu-lhe uma caneta. Pjetkin ergueu-se da cadeira e deu um passo para trás.

— Não assinarei — disse em voz alta. — Protesto contra essa sentença! As acusações são idiotas, e nunca houve um júri no qual eu gudesse me defender. Cumpri apenas o meu dever de médico, nada mais. E estou apaixonado por uma mulher. Se isso é crime, não existe mais justiça. Não assinarei.

— Como quiser, Pjetkin. — O capitão recolocou o papel na pasta. — A sentença é válida também sem a sua assinatura. Desejo-lhe boa sorte, camarada.

Antes que Igor pudesse responder, dois funcionários do KGB o agarraram e retiraram da sala. Com olhos vazios, movendo os pés mecanicamente, Pjetkin desceu ao porão e foi entregue a Stepan.

— Já sei. Dez anos — disse Stepan. — Isso era necessário? — Sentou-se ao lado de Pjetkin no catre, e tirou um pedaço de lingüiça do bolso. Deu-o a Pjetkin e olhou encabulado para um lado quando este comeu, faminto. Há oito dias houvera apenas um litro de água quente como alimento, duzentos gramas de pão e uma papa aguada de milho.

— Sabe para onde vão me levar? — perguntou finalmente.

— Nem ideia. Mas os últimos transportes todos foram para Workuta. Imagine só... de Chelinogrado para o Mar Ártico! Ah, se a gente pudesse levar uma boa provisão de água quente...

Pjetkin deitou-se, quando Stepan saiu, e pensou em Dunia. Eram pensamentos que sangravam, só memórias, sem esperança de um futuro.

Nunca mais a verei, pensava ele, mas não a esquecerei. Vou sobreviver aos dez anos de trabalhos forçados. Vou tirar forças da lembrança de Dunia. E após dez anos vou procurá-la de novo... camaradas, podem-se dobrar as costas mas não me quebrarão a espinha! Um Pjetkin não capitula. Nem diante do Mar Ártico, nem diante de Workuta. Enquanto eu respirar e rastejar, hei de clamar pela liberdade.

 

Sadojev, o soviete da aldeia, recuperou num dia o que até ali perdera na sua vida calma. Pegou um saco de viagem de linho bordado, pendurou-o ao pescoço, beijou sua mulherzinha Anna, deu a mão a todos os aldeões, nomeou o ferreiro Jakob Ivanovitch Chisky seu substituto e defensor dos direitos, parou diante da casa do Partido e berrou:

— Irmãos e irmãs, vou correr mundo para cuidar de minha filhinha Dunienka! A injustiça tresanda até ao céu, e vou tirar o esterco desse chiqueiro! Estou no Partido há trinta anos... vou conseguir audiência, ainda que tenha de ir a Moscou! Cuidem de Anna, comportem-se como pessoas civilizadas, e pensem que vou voltar e acertar contas a porrete com os que forem acusados de qualquer coisa. Adeus, camaradas!

Os moradores de Tssakova deram vivas, ajudaram Sadojev a entrar no coche do distinto mercador de cavalos Vassia, e ficaram dando adeus quando ele saiu em disparada. Anna chorava alto, pois conhecia o marido e sabia que o velho iria se meter em complicações.

A viagem de Sadojev começou em Chabarovsk. Gritou com os funcionários da administração médica, ameaçou com a dreção do Partido em Moscou, e o delegado da província do Amur do Soviete Supremo. Todos foram pacientes com ele e puseram-no para fora em meio a alguns insultos.

Sadojev decidira desprezar as ofensas, pois se naquelas circunstâncias tivesse muita sensibilidade não iria longe. As iniqüiidades aumentavam, quanto mais ele se entranhava na hierarquia de funcionários, como um verme que, diante de outros vermes, não se contenta em fazer furinhos, mas ainda emite ruídos insistentes. Mais que tudo, Sadojev ficou conhecendo um novo aspecto da burocracia: ninguém era responsável por nada.

Mas só muito lentamente começou a entender isso.

— Mas, então — berrou quando o deixaram falar — alguém deve ter mandado que minha filhinha fosse para Irkutsk. Ou será que por aqui há fantasmas que escrevem as ordens de transporte? Quem foi que mandou meu genro para Chelinogrado, pergunto-lhes, camaradas? Um fantasminha qualquer, que de noite rabisca secretamente os documentos? Quero falar com o sujeito que deu a ordem, que diabo! Irmãozinhos, não me irritem. Não podem enganar um velho companheiro do Partido!

Mas nada adiantou. Mandavam-no sempre adiante, até que todos se cansaram de escutar aquilo. E ameaçaram-no abertamente de prisão por desacato às autoridades.

Sadojev desistiu de lutar pelos seus direitos em Chabarovsk. Dormiu mais uma vez nos arredores da cidade, num celeiro, e contou o dinheiro. Dava para uma viagem de trem a Irkutsk, mas ali começaria o problema de continuar de bolsos vazios. Em Irkutsk, teve trabalho para ver sua filha. Primeiro, na clínica da Universidade, disseram-lhe que ali não havia uma Dunia Dimitfovna.

— Mas eu sou pai dela! — gritou, fora de si, pulando como se estivesse atormentado por mil pulgas. — Eu a gerei e devo saber disso. Quem duvida, hem? E ela é médica nesta clínica de merda. Já lhe telefonei nove vezes, ela escreveu quatro cartas... e de repente tudo acabou. Será que sonhei? Aqui! — e jogou uma carta de Dunia na cara de um dos funcionários da administração no hospital.

Era compreensível que uma atitude dessas não provocasse amizades. A administração então mandou Sadojev para o professor Bulak, o cirurgião-chefe.

O professor Bulak aceitou, suspirando, a missão de clarear um pouco o mundo sombrio de Sadojev. Ofereceu-lhe um charuto, que Sadojev esmigalhou nos dedos e meteu num imenso cachimbo. Depois, bebeu dois cálices de um conhaque castanhodourado, estalou a língua, e soprou a fumaça perfumada do charuto.

— Finalmente um homem bom no meio de todos esses cavalos — disse ele. — Nota-se que o senhor é um homem culto, um colega da minha Duniuschka. Então, como é: eu gostaria de ver a minha filha.

— Vai haver algumas dificuldades, meu caro Sadojev. Dunia Dimitrovna, todos gostávamos muito dela, mas não está mais na clínica. Sadojev, você é um sujeito duro, um velho cossaco, nascido na fronteira e lá criado, capaz de enfrentar todas as tempestades: Dunia foi presa.

Os olhos de Sadojev se fecharam. Mas não só eles... era como se ele estivesse encolhendo. Ficou menor e menor, ali sentado miseravelmente na sua cadeira.

— Presa... — disse em voz baixa.

— Ela agrediu um colega, o Dr. Tchepka, deixando-o aleijado para sempre.

— A minha filhinha? — gaguejou Sadojev. — Deve certamente ter tido motivos, não?

— O Dr. Tchepka queria beijá-la. Ela se atirou sobre o coitado como uma fúria, e quase lhe partiu o crânio.

— Isso é muito bom — disse Sadojev voltando à sua estatura normal. — Eu a eduquei assim. Sempre lhe disse: quem te agarra é um canalha, e aos canalhas a gente quebra a cabeça! Dunienka fez isso mesmo. Tenho orgulho dela.

— Mas foi presa. E vão puni-la, mandá-la para algum lugar da Sibéria, onde os lobos uivam de solidão. Tentei tudo o que estava nas minhas forças... a autoridade do outro lado é mais forte. Acredite em mim, Sadojev, apreciei muito a sua Dunia. Mas que posso fazer?

O Prof. Bulak ergueu os dois braços e deixou-os cair de novo. Sadojev entendia a sua impotência. Levantou-se, foi para trás da mesa, abraçou e beijou o atónito professor, e saiu correndo da sala.

Todos temos um pai, e todos os pais se tornam heróis quando se trata do sofrimento dos filhos. Sadojev não era diferente. Juntou toda a sua coragem, perguntou aos policiais até conseguir o endereço do KGB, em Irkutsk, e depois entrou no edifício de cabeça erguida, como alguém que já não tem nada a temer porque já perdeu tudo.

Sejamos honestos. Sadojev foi tratado com cortesia pelos funcionários do KGB, porque também se portava com cortesia. Ali não adiantava berrar, lutava-se com o hálito gelado do poder.

— Dunia Dimitrovna já foi condenada — disse o homem do KGB, solícito. — Como pai, o senhor tem o direito de saber. Não vai como deportada, mas como médica transferida por punição, para um campo de trabalho forçado. Isso é uma distinção, uma prova. Se ela se comportar bem, em dois anos poderá voltar a um grande hospital.

Sadojev ficou satisfeito com o que ouviu. Tinha encontrado sua filhinha Dunia. E não havia razão para queixar-se ou chorar, arrancar os cabelos e gritar ao mundo aquela injustiça. Calou-se amargurado, sentou-se na calçada diante do edifício do KGB, contou seus rublos, e ficou refletindo como poderia ganhar algum dinheiro e ainda assim ter o dia livre. Havia trabalho bastante, mas o problema é que ele tomara a resolução de passar o dia, de sol a sol, observando a entrada do KGB. Um dia Dunia havia de sair dali. Um dia haveriam de transportá-la. E ele queria estar a postos. Queria ficar sempre junto dela, não importa para onde a levassem. Onde Dunia viver há lugar para mim, dizia de si para si.

Ainda estava sentado na rua pensando no futuro quando alguém lhe pôs a mão no ombro, exclamando:

— Mas que sorte! Não é Dimitri Ferapontovitch, de Issakova? Um abraço, meu irmãozinho!

Sadojev virou-se como um raio e viu diante de si o anão cuja feiúra sempre o tinha enojado. Mas agora ele lhe parecia a pessoa mais bonita do mundo inteiro, e seus beijos eram bálsamo na alma dilacerada de Sadojev.

— Marko Borissovitch! — gritou. — Você aqui? Também está procurando minha Dunia?

— Ainda consegui falar com ela antes que a prendessem. Ela já sabe que Igor Antonovitch também foi preso.

— Ele também? Será que quis defender a sua inocência, como Dunia?

— Ele queria ir para a Alemanha. Sujeito burro. Mas que se vai fazer? Os dois são muito moços para pensarem com sensatez. Agora estão numa enrascada e nós, dois velhos, teremos de cuidar deles.

Marko já tecera uma rede de relações em Irkutsk. Cada dia telefonava a Chelinogrado, prometia uma franguinha, e perguntava por Pjetkin.

Sadojev conseguiu um bom trabalho graças aos conhecidos de Marko: à noite carregava caixotes e cestos para o mercado. O pagamento dava para sobreviver, e ele tinha o dia livre. Sentava-se então firme diante do KGB, e deixava a vida passar.

— Ficaremos em contato — disse Marko quando voltou a Chelinogrado. — Esses idiotas pensam que vão separar Igor e Dunia. Mas nós estamos a postos, meu caro, e eles não contavam com isso. Você já tem uma ideia de como poderá acompanhar Dunia?

— Vou-me oferecer como ajudante nas caldeiras da locomotiva — disse Sadojev, orgulhoso. — E você, irmãozinho?

— Vou acompanhar o trem como mecânico.

— Sem papéis?

— Quem há de me controlar? Ao pessoal da locomotiva vou dizer que fui mandado pelos soldados. Aos soldados, digo que a administração do trem me mandou. Ninguém vai indagar por minha causa. Que tal a ideia?

— Marko Borissovitch, você não presta — disse rindo Sadojev. — Um abraço.

Godunov beijou o velho e deixou-o depressa.

 

As tempestades de novembro uivavam sobre a estepe, impelindo a neve para os menores cantos. Quando o inverno irrompe, os rios correm mais lentos, o céu parece esconder-se debaixo de um lençol, e em todo o interior as frestas das janelas são vedadas com papel. Na cidade, tiram-se as capas de pele dos baús e os camponeses empilham lenha debaixo dos telhados oblíquos dos celeiros. Também em Chelinogrado começara o longo período de frio.

Naqueles dias de novembro, chegou finalmente a hora de Pjetkin. O transporte para o campo de prisioneiros foi reunido, e levado até a estação. Marko descobriu imediatamente, roubou um manto de peles no hospital, o que não lhe causou nenhuma dificuldade, pois em todos os quartos havia casacões pendurados nos cabides, e foi indagando o caminho para o trem dos deportados, guardado pela polícia.

Pjetkin e outros quarenta condenados estavam num caminhão com as lonas fechadas, sentados num banco de madeira, atravessando a cidade até à estação. Igor emagrecera naquelas semanas e estava pálido. Usava uma barba loira e revolta. Desde a sua condenação, estava proibido de se barbear... até o dia do anúncio da sentença ele ainda fora o Dr. Pjetkin. Agora, era o número 187. Antes da partida, um homem lhe dera um velho casaco acolchoado, gorro e calça, muito remendados e puídos nas costuras, tirados de um depósito de roupas.

— E você ainda recebeu do melhor, Doutor — disse o administrador do depósito, quando Pjetkin enfiou aquelas roupas. — Só porque sou amigo do Stepan.

Os vagões esperavam na estação. Os condenados tinham sido trazidos de toda parte... Havia quatrocentas e vinte figuras miseráveis diante dos trilhos, em filas de cinco, contados como gado e tinham de esperar na neve. Onze vagões formavam o comboio. três atrás da locomotiva, carros de carga com janelinhas pregadas de tábua, depois o carro de passageiros para os oficiais, o carro-cozinha para prisioneiros e soldados, e o vagão de provisões. O fim era constituído por quatro vagões de transporte de animais, fechados, com portas de correr, nas quais um jovem soldado aguardava.

— Contem até sessenta! — gritou um oficial. — O grupo vai até o carro. Andem!

Os números voaram de um homem ao outro. Depois, os míseros correram aos vagões, comprimindo-se diante da porta. Quem subia primeiro obtinha os melhores lugares.

A neve voava sobre os trilhos. Pjetkin estava na quarta fila. Não lutou pelos primeiros lugares, era-lhe indiferente saber onde arrumaria um cantinho no vagão, para se acocorar. Pacientemente, permitiu que os demais passassem por ele, deixou-se empurrar para o lado.

— Dêem lugar! — gritou alguém atrás dele. — Tenho de controlar os freios! Que diabo, vocês estão parados à minha frente como carneiros!

Pjitkin não se virou, embora reconhecesse a voz. Mas um sentimento de profunda alegria o inundou, afugentando toda a desolação. Alguém o empurrou por trás e o afastou dali.

— Vou acompanhá-lo, filhinho — disse Godunov em voz baixa às costas de Pjetkin. — Sou mecânico do trem. Vou cuidar especialmente do seu vagão. Um troço infecto que arrumaram aí. Se tiver dificuldades, diga-me. Estou no vagão da cozinha. Jevseyl, o cozinheiro, está meu amigo porque arranjei um pozinho para curar seu ardor na bexiga. Tenha coragem, filhinho, e suba no vagão. Pegue uma cama na parede. E se já estiver ocupada, tire o sujeito a bofetadas. Você agora ainda tem forças, e o mundo pertence aos fortes no vagão dos animais.

Pjetkin concordou com a cabeça. Subiu pela porta, recebeu um golpe fraco com o martelo, do jovem soldado, nas costas — Quarenta e três — e cambaleou para dentro do vagão. As ”camas” nas paredes estavam ocupadas. Três andares de tábuas. Só havia camas livres na parede comprida... ali já estavam os velhos e os fracos, que tinham desistido de lutar. Pjetkin logo reconheceu por que essas tábuas ainda estavam vazias... no vagão, atrás delas, fora feito um buraco com um estreito cano enferrujado. A latrina. Seria uma realização artística atingir sempre esse cano, sem falar nos momentos em que a mistura de urina e excremento, de horrível fedor, corresse pelo chão do vagão.

Um buraco no chão, para sessenta homens. E, não longe dele, o fogão redondo de ferro. Requisito indispensável há centenas de anos nas viagens para o exílio siberiano. O fogãozinho ardente... a minúscula fagulha de vida... quando ela se apagava, tudo o mais também morria.

Igor deitou-se na sua tábua do segundo andar, e fechou os olhos. Marko vem junto, esse sujeito do diabo, esse pequeno monstro. Mas não vão deixar que entre no inferno... lá estarei sozinho.

Partiram à noite. O vagão, agora fechado e trancado, soltava vapores de calor. Ainda havia lenha bastante. Em algum lugar alguém rezou alto, dois outros deram uma risada. No canto esquerdo, outros trocavam sandálias por fumo.

Pjetkin colou o ouvido à madeira. Escutou o assobio do vento e sentiu o frio da neve que se grudava às paredes do vagão.

Quase ao mesmo tempo, Sadojev estava no depósito de carvão de outro trem, que ia de Irkutsk para oeste, e manejava a sua pá, gemendo, e alimentando a locomotiva.

Sadojev não vira Dunia. Mas estava a postos quando o caminhão coberto saíra do pátio do KGB. Sadojev saltou numa bicicleta comprada com seu ordenado duramente ganho, uma bicicleta velhíssima que tilintava em todos os lados, fez meia-volta diante da estação de carga, e cuidou de empregar-se como ajudante de foguista. Primeiro, esgueirou-se de um trem ao outro até descobrir qual era o que tinha dois vagões com setenta e novemulheres. Era um trem de carga, que ia carregando máquinas para o noroeste da Sibéria para lá pegar outras mercadorias. Antes dos dois vagões de prisioneiras havia um vagão de guardas e um de cozinha. Por último, vinha um vagão de vacas que mugiam.

Sadojev rodeou algumas vezes os vagões fechados, rangeu os dentes e tratou de convencer o foguista e o maquinista a levá-lo como ajudante sem pagamento.

E conseguiu. Todos os homens são preguiçosos por natureza, mesmo que se trate de um foguista soviético. Este combinou com Sadojev como seria feito o trabalho, e comentou com o maquinista: ”Ainda há muita gente trouxa neste mundo!” e foi tomar cem gramas de vodca.

Mas para Sadojev o céu já não estava pesado de neve, nem a temperatura a trinta graus abaixo de zero. Suava de excitação, e com o calor real da caldeira.

Pensava no momento em que veria Dunia, debruçando-se para fora da locomotiva. Via os vagões trancados, os guardas parados lá embaixo na neve. O pobre passarinho...

Encostou-se nos gordurosos montes de carvão, baixou a cabeça e chorou.

De algum modo a organização devia ter falhado, alguém fabricara um vagão defeituoso.

Foi em Semipalatinsk que um trem de carga se aproximou vindo do oeste, enquanto outro vinha de leste. E na estação de carga, num desvio, os dois trens ficaram, de repente, lado a lado. Os soldados de Irkutsk saudaram os soldados de Chelinogrado, gritando uns para os outros que ficariam parados um dia inteiro ali em Semipalatinsk.

Uma serpente de cem vagões de mercadorias. Uma serpente terrível, pois no ventre de seus muitos segmentos havia seis mil deportados. Homens e mulheres e adolescentes e velhos à beira da sepultura.

Era uma serpente pesada de almas mortas.

E foi ali, na estação de Semipalatinsk, numa manhã tão fria que o ar dava estalos audíveis, foi ali que, entre os trilhos e sobre a neve endurecida, agasalhados a ponto de se tornarem irreconhecíveis, com pedacinhos de gelo nos cílios e lábios, que Dunia e Igor se viram novamente.

 

Igor Antonovitch Pjetkin habituara-se já àquela viagem pela Sibéria. Os primeiros dias tinham sido terríveis. Enfrentavam o implacável frio do inverno, as geladas tempestades de neve, as sussurrantes noites de geada, nas quais toda a vida se cristalizava. Os sessenta homens no vagão de gado lutavam encarniçadamente pelo seu pouquinho de vida, e assim como no vagão de Pjetkin acontecia em todas as demais tepluschkas, velhos vagões de carga ainda do tempo dos czares. O perigo não era apenas congelar, mas ser jogado do trem como bloco de gelo,- na primeira parada, na primeira estação, na primeira refeição. Aproveitem cada calorzinho, camaradas, aproximem-se uns dos outros, aqueçam-se mutuamente, enrolem-se em montinhos, conservem o calor... a vida não é senão calor, compreendem agora? Antigamente se pensava que comer e beber era o mais importante... que engano! Um grau centígrado... um grau apenas acima do ponto em que tudo se congela... isso é a vida!

Por melhor que tudo estivesse organizado na partida de Chelinogrado, a organização se desmoronou já na viagem para Semipalatinsk. Como em toda parte em que criminosos e prisioneiros políticos convivem, os blatnys assumiram o poder, e empurravam os kontriks, os pobres cabeças-moles, que sacrificavam a vida pelos ideais políticos, para o papel de comandados ou de tolerados. No vagão de Pjetkin imperava Kolka Ivanovitch Rassimov, condenado por três crimes. Logo no primeiro dia, agarrou pela nuca um dos fracos políticos, um velho de barbas brancas, e ergueu-o meio metro no ar. Depois sacudiu-o e atirou-o num canto.

— Entendem o que quero dizer? Alguém tem de controlar um bando como vocês, senão nenhum de nós sobreviverá. E quem é o mais forte, hein?

Não houve nenhum protesto quando alguém disse timidamente:

— Você, é claro, Kolka. Está provado.

— Então saiam da frente, seus cães fedorentos!

Kolka Ivanovitch procurou o melhor lugar no vagão, e o seu ocupante anterior pegou suas coisas sob o braço e procurou silenciosamente outra tábua. Como só havia lugar perto da latrina — e ali estava Pjetkin — o homem se ergueu do seu lado sobre o catre e acocorou-se ali.

— Eu sou professor de ginásio — disse baixinho. — Meu nome é Sergei. E você?

— Eu sou médico — disse Pjetkin cumprimentando com a cabeça.

— Que gente se encontra aqui: assassinos, cáftens, assaltantes, ladrões, arrombadores, professores, doutores, engenheiros, arquitetos, empresários e médicos. O mundo é colorido, irmãozinho.

— Espantosamente colorido. — Pjetkin estendeu a mão a Sergei. — Sejamos bons vizinhos.

— Se Kolka nos deixar em paz...

— Vai deixar. Também ele um dia vai precisar de um médico... receio que tenhamos um longo caminho pela frente.

— Dez anos... Para mim já passaram três. Conheço tudo por aqui. Fui transferido sete vezes. Você é novato?

— Sim.

— Pois fique perto de mim, Doutor. O melhor é não chamar atenção.

O poderio de Kolka não tardou a mostrar-se falso. Nos primeiros dias, ele meteu muita lenha no fogão, que ardia deixando o vagão confortavelmente quente. Mas quando as achas acabaram e só restavam dois tocos miseráveis, ao lado do fogão de ferro, pela primeira vez surgiram dúvidas quanto à inteligência daquele sujeito tão forte.

— E daí? — perguntou outro criminoso, um estuprador de mulheres. — Devíamos ter racionado a lenha.

— Quem está abrindo o bico aí? — berrou Kolka e fez dançarem os músculos dos braços. — Naturalmente, vou tratar de arranjar mais lenha. — A promessa foi mais fácil de dizer que de cumprir. Na primeira parada, numa estação miserável, entre Petropavlovsk e Òmsk, Kolka ficou sabendo que as pilhas de lenha ao redor do fogãozinho tinham sido calculadas até Ómsk. Só lá haveria mais combustível.

— Acham que queremos assar vocês como franguinhos? — perguntou um oficial da guarda. — Quem é tão burro como você, pode tremer de frio! Isso deixa o cérebro mais livre.

Kolka Ivanovitch voltou ao seu vagão, em silêncio.

— Ah! — gritou o estuprador, — Agora ele vai mijar nas botas para esquentar os dedos.

Kolka ficou quieto. Mas olhou o outro de alto a baixo, longa e carrancudamente. Foi um olhar de aterrorizar, pois quem revira assim os olhos não se importa com um assassinato a mais ou a menos, pois isso não lhe mudará em nada a vida.

A partir daí, o vagão começou a congelar-se lentamente. Uma geladeira de quatro rodas. Da fresta no teto pendia um cone de gelo, e o que se congelou primeiro foi o cano no chão do vagão, a única latrina para os sessenta homens. Desesperados, todos se esforçavam para conservar ao menos aquele lugar livre do gelo. Cada homem que ainda estava em condições procurava urinar mirando bem no cano, acocorava-se por cima dele procurando degelar a crosta de gelo cada vez mais espessa. Mas o que representa a urina morna diante de um frio de quarenta graus abaixo de zero, aumentado pelo vento que assobiava sob o vagão? Após dois dias, os homens todos desistiram da luta... o cano estava fechado pelo gelo. Com a última acha de lenha restante, Kolka ainda tentou abrir o cano, antes de jogá-la no fogo.

— Todos no buraco mais uma vez! — comandou. — Daqui por diante só se defeca em caso de absoluta necessidade!

Isso é fácil de dizer, mas quem pode regulamentar uma coisa dessas quando só se recebe do vagão-cozinha água quente, uma kascha fininha de mingau de aveia, ou uma balando mais fina ainda, que é uma sopa feita de repolho e batatas? Aí ninguém mais se preocupa com canos congelados, pois a barriga ronca, alguma coisa dilacera os intestinos, e tem de sair.

Quando a primeira massa de excremento correu pelo assoalho, espalhando um fedor bestial, houve luta dentro do vagão. Os criminosos obrigaram todos os políticos a desocupar os catres de cima, e empurraram-nos para baixo, para a primeira fila de catres junto do chão, onde o cheiro era mais horrível. Isso não aconteceu sem resistência. Alguns se revoltaram e receberam pancadas que lhes arrancou sangue da boca e do nariz. Pela primeira vez, precisaram de Pjetkin... Ele desceu da sua cama e pensou os ferimentos maiores com farrapos de camisas. Kolka ficou olhando, a cabeça torta.

— Enfermeiro, hein? — perguntou, metendo a ponta da bota no flanco de Pjetkin.

— Não, médico.

— Ah! — Kolka examinou-o com uma mistura de desprezo e respeito. Um médico na Rússia é sempre venerável. Diante dele todos tiram o chapéu, até os orgulhosos. Um médico é a fronteira entre a vida e morte, e não se deve derrubar um muro atrás do qual talvez um dia se encontre abrigo. Kolka pareceu pensar de modo semelhante. Olhou em torno, achou um lugar bom à esquerda perto da porta, e acenou para o seu ocupante.

— Saia! — disse secamente.

O sujeito no catre encolheu as pernas.

— Kolka, eu sou assaltante... esse aí é apenas um cabeçaoca!

— É um médico! — gritou Kolka. — Vá para o outro canto por bem, senão eu o levo à força! — Voltou-se para Pjetkin e disse. — Eles não sabem das coisas, irmãozinho. Agora, o seu lugar está livre. Pode ocupá-lo.

— Não quero lugar especial — disse Pjetkin em voz alta, para que todos escutassem. — Estou bem lá em cima na minha tábua — Mas você é médico. Alguns de nós aqui não vão sobreviver a essa viagem, outros serão descarregados como sacos, quem sabe aonde nos levam? Você vai ter trabalho bastante, e isso exige forças. — Kolka olhou em torno, imperioso. — Quem é contra o nosso médico pegar aquele lugar?

Que pergunta! Naturalmente todos estavam plenamente de acordo. Sergei jogou o saco de viagem a Pjetkin, e Kolka levou-o ao catre, como se o levasse a hospedar-se num palácio.

— Para que tudo fique bem claro — disse quando Pjetkin ocupara a sua tábua — você é o médico e eu sou o chefe deste vagão. Você está melhor do que eu mas isso não é motivo para abrir o bico. Sou um assassino, e até me orgulho disso.

Para demonstrar o seu poder, curvou-se e deu uma sonora bofetada no rosto de Pjetkin. Um leve gemido correu pelos sessenta homens, mas ninguém se mexeu. Pjetkin também não devolveu logo o golpe... compreendia mesmo o medo que Kolka sentia de perder a sua máscara.

— Essa você ganhou — disse apenas, calmamente. — Mas a viagem é longa, meu amigo...

A luta de Kolka contra o excremento estava fadada a fracassar ainda antes de começar. De dia ninguém se atrevia a acocorar-se sobre o cano congelado, à noite todos esvaziavam ali os intestinos. Kolka colocou guardas, mas eles também eram apenas humanos. Tinham comido balando e cem gramas de pão visguento.

Quatro dias depois, o excremento de sessenta homens empilhava-se, congelando no chão de madeira, com o vento uivando lá fora a sessenta graus abaixo de zero. As camadas subiam, espalhando um fedor que dilacerava as narinas. As emanações da urina queimavam os olhos, que se punham a lacrimejar e arder, com as pálpebras vermelhas.

O alívio chegava quando traziam comida, pois então o ar gelado entrava no carro, um ar fresco, limpo, uma delícia que se aspirava até doerem os pulmões.

Marko conseguiu por quatro vezes chegar até o vagão de Pjetkin. Junto com os carregadores de comida — naturalmente criminosos, escolhidos por Kolka — percorria a longa fila de vrgões, controlando os freios, e espiando para dentro das peptuschkas.

— Ouvi dizer que vocês têm um médico aí! — disse quando Kolka chegou à porta e o fitou desconfiado. — Ele tem de ir lá para a frente.

— Por quê?

— Estou com dor de barriga.

— Pois procure o vagão-enfermaria, seu porcaria de funcionário público! — berrou Kolka em resposta. — O médico vai ficar aqui!

— Se você não calar o bico, vou avisar que os freios deste vagão estão ruins, e vocês ficarão atirados por aqui até que o novo vagão chegue. Sabe quanto tempo isso pode levar? Até lá você terá virado um pedaço de gelo, e poderão encostá-lo na parede para economizar a sepultura. Portanto, tenha calminha, irmão, e mande o médico.

Kolka rilhou os dentes, cuspiu na cara de Marko e fez um sinal para Pjetkin.

— Vamos fazer uma rebelião se nos tirarem você — sussurrou quando Igor se preparava para saltar na neve. Estavam parados num lugar amplo e livre, os soldados saíam dos vagões. Os oficiais deixaram o vagão onde se reuniam.

Contagem. Chamada das almas mortas. Retirada dos cadáveres. Confirmação das listas de transportes. Grossos riscos sobre os nomes dos que agora jaziam, pálidos e rígidos, diante das portas abertas.

Quando Pjetkin estava à sua frente, Marko apontou para o ventre, e depois deram alguns passos para o lado. Fingiram que eram médico e paciente, mas Godunov falava em tudo, menos em dor de barriga.

— Temos agora dez vagões-cozinha, dois de enfermaria, dez de tropas e quatro de depósito. Ninguém até agora sabe para onde vamos. Todos acham que é para o Norte. Isso seria ruim, Igorenka, pois a taiga é melhor para a gente se esconder do que a tundra. Aquela terra lá em cima é como uma mesa lisa com uma toalha sempre branca. A gente enxerga qualquer manchinha.

Pjetkin fez como se apalpasse Marko, e o anão lhe passou um pedaço de pão, uma pequena lingüiça, um saquinho de açúcar mascavo e um pouco de chá.

— Você não está pensando em fuga? — perguntou Pjetkib olhando a garganta de Marko.

— Mas você pretende agüentar lá dez anos, Igor? Talvez no Mar Ártico? Construindo estradas? Já assentou trilhos a cinquenta graus abaixo de zero, e com vento? Temos de escapar antes que o trem saia da floresta. A floresta é a nossa aliada.

O exame em Marko teve um resultado bom para todos... o vagão recebeu um suprimento especial de lenha. Cinco grandes achas. Kolka as apanhou pessoalmente no vagão de lenha, e estava de bom humor.

— Achei um amigo — anunciou. — De outro campo. Ele distribui combustível, e vamos ganhar cinco achas todos os dias.

Cinco achas para vinte e quatro horas de frio.

À noite, Pjetkin e Kolka sentaram-se juntos no catre. A maioria já estava dormindo, alguns sonhavam alto. Roncos e estertores, tosses e murmúrios enchiam a escuridão malcheirosa. Pjetkin apalpou os bolsos do casaco acolchoado, tirou o saquinho de açúcar e a lingüiça. Cutucou Kolka e guiou a sua mão até o açúcar.

— De onde? — perguntou este baixinho.

— Não faça perguntas. Coma.

— Que mais tem aí?

— Lingüiça, um pedaço de pão e chá.

— Guarde o chá. Amanhã vamos fazer uma caneca. A lingüiça.

— Está aqui.

Kolka mordeu a lingüiça e devolveu-a a Pjetkin. Comeram em silêncio a lingüiça e o pão. Depois Kolka pegou o ombro de Pjetkin.

— Você está com frio?

— Horrível.

— Vire-se. — Sentou-se atrás de Pjetkin, baixou-lhe a cabeça para a frente e depois de inspirar fundo começou a soprarlhe na nuca, até que Igor sentiu um tímido calor.

— Você tem duas calças? — perguntou Kolka baixo.

— Tenho.

— Pois enrole uma nas pernas. Encolha-se bem. Nós havemos de mostrar a essses desgraçados... Não vamos morrer de fome nem de frio. — Rolou sobre Pjetkin e ficou meio deitado em cima dele. — Vou aquecê-lo. Se eu for muito pesado, diga.

— Não. Dá para suportar. E esquenta.

E assim ficaram, deitados um sobre o outro... Um médico e um assassino aqueciam-se como animais no mato, e tinham um só pensamento: viver, viver, viver!

— Por que foi que você matou três pessoas? — perguntou Pjetkin depois de -longo tempo. Kolka pigarreou.

— Uma mulher e dois homens. A mulher era minha, e um deles era amante dela. Surpreendi-os na cama, onde queriam se divertir um pouco— Agarrei-os depressa e os estrangulei.

— E o outro homem?

— Este veio por acaso e queria me segurar. Era o homem da eletricidade, um sujeito simples e bom. Mas a mínha raiva era grande demais... e eu o estrangulei também, Por isso me condenaram... E agora durma, doutorzinho. Eu não preciso de muito sono.

E Pjetkin adormeceu. Sentia-se como nos braços de uma mãe, quente e seguro.

De repente, estavam em Seiflipalatinsk, um desvio da estação de carga. Foram contados os novos, os mortos, os vivos, os doentes, os semimortos. Os vagões foram limpos, os assoalhos escovados, o excremento retirado e os canos da latrina desentupidos. Pela primeira vez houve também uma refeição completa: kaxha, kipj =itok, nome poético dado à água quente para beber, 650 gramas de pão — os homens tinham vontade de saltar — e um arenque inteiro, congelado, mas na boca tudo se derrete com a saliva, um torrãozinho de sal para todo o vagão, que Kolka, como chefe, tomou sob seus cuidados, um saquinho de açúcar mascavo, do mesmo que Marko dera a Pjetkin (Kolka também tomou conta do açúcar e prometeu uma distribuição justa, coisa em que ninguém acreditou), e, como se fosse uma festa, os carregadores de comida trouxeram uma balando de feijão, batatas e mingau de milho.

Marko fora apanhar Pjetkin, para desgosto de Kolka, que protestou violentamente, chamou Marko de percevejo inchado, e ameaçou com uma rebelião de todo o trem se Pjetkin não voltasse.

— Vamos até o vagão-depósito — disse Godunov e pegou a mão de Igor. — Estamos em semipalatinsk. Daqui por diante vamos para o Norte, para Vorkuta, dizem. Mas não vão conseguir nos levar tão longe... ainda temos de passar pela taiga.

— E para onde iremos então? — disse Pjetkin. — Não podemos viver por aí como lobos.

— E por que não? O mundo é tão grande que pode engolir duas pessoas.

— E fazer tudo isso a pé?

— Os russos conquistaram a Sibéria a pé.

— E Dunia?

— Isso é um problema realmente — disse Godunov. — Tenros de esquecê-la.

— Eu devia lhe dar uma surra por essas palavras! — disse Pjetkin, indignado.

— Mas você só pode mesmo esquecê-la, filhinho. Godunov inspirou fundo. Até ali sempre se esquivara de dizer a verdade, evitara falar em Dunia, fizera uma ampla curva em torno de tudo o que o forçasse a contar o que sabia. Mas agora não tinha mais como fugir.

— Você não a verá nunca mais. Ela foi presa e deportada— Pjetkin sentiu como se o céu o esmagasse numa prensa e o apertasse contra o chão. Fechou os olhos, pôs as mãos nos ombros do anão, apoiando-se e resistindo assim à sensação de estar caindo num abismo.

— Como... Como sabe disso, Marko?

— Eu estava lá quando a levaram. E me encontrei com Sadojev em Irkutsk, ele estava à procura da filha. Se ele tivesse dez bombas na mão, não haveria mais autoridade em Irkutsk. Quem sabe onde Dunienka está agora? Eles tem um grande sortimento de campos de concentração. Decorei todos. Existe Peschlag em Karaganda, Inta no norte da Rússia Central, Vorkuta no Koma, onde já se cheira o Mar Ártico, Kamyschlag no Kemerowschen em Osmk, Norilsk mais acima no Norte, Magadan na Kolyma, e Taichet perto de Irkutsk. E esses são apenas os maiores. Assim é, Igoruschka. O mundo se desmorona, mas a gente continua respirando. Abra os olhos... o sol brilha, a neve cintila. E a gente escuta tudo cantando... os mortos cantam... isso é um milagre da vida, entende? Pavios consumidos que ainda ardem... e enquanto for assim, Igorenka, a esperança existe. Você a quer jogar fora, o único tesouro dos prisioneiros? Abra os olhos... estamos vivos!

Pjetkin acenou a cabeça, mudo. Ergueu o queixo e fitou o sombrio céu nevoso.

— Temos de encontrar Dunia.

— Não, temos de salvar a nossa própria pele.

— Mas que sou eu sem Dunia, Marko? Você tem uma resposta para isso?

Godunov fitou-o, apavorado, e sacudiu a cabeça devagar.

— Reconheço — disse oprimido — que você é duplamente prisioneiro. Vai ser muito difícil encontrar uma liberdade decente.

Foram ao vagão-depósito, subiram a pequena escada de madeira encostada à porta corrediça, e lá foram recebidos pelo acompanhante do comboio, do camarada secretário Ulanov. Era um sujeito gordo, que só sonhava com mulheres e também falava nelas, mas suas façanhas se resumiam a isso, pois na realidade era impotente, e apenas se deleitava com possibilidades sonhadas.

— Então é este, Marko Borissovitch? — disse com voz aguda. — Um médico milagroso! Sente-se, camarada, e coma. Depois conte-me como é que um homem tão forte como eu pode ser tão fraco entre as pernas. Não posso entender isso...

Pelo meio-dia uma grande agitação percorreu as filas de homens. Do leste vinha fumegando um pequeno trem de mercadorias, e parou também no desvio. Os soldados deram adeus, os prisioneiros de Chelinogrado foram empurrados para os vagões.

Sobre o telhado de ferro do tênder de carvão estava pendurado Sadojev, preto como um demónio, suando e parecendo mais um biscoito queimado do que um ser humano.

 

Primeiro, foi o chefe do vagão-cozinha quem descobriu o fato. Era um criminoso, cem vezes ladrão, pertencendo ao pessoal dos trens deportados. Estava despejando água suja pela janela, quando diante dele parou um dos novos vagões procedentes de Irkutsk, e pelas tábuas ressoaram vozes claras e chamados ritmados.

— Abram a porta! Abram a porta!

Prokov, o ajudante de cozinha, deixou cair o balde, jogou os braços para o ar e berrou entusiasmado:

— Mulheres! Camaradas, chegaram mulheres!

Um grito desses se espalha mais depressa do que o tique-taque de um telégrafo. O anúncio correu de carro em carro, os homens se agrupavam nas portas abertas e fitavam as tepluschkas ainda trancadas das mulheres. Os soldados que acompanhavam o trem de Irkutsk saíram assim que ele parou, isolaram as redondezas, e não deixaram seus camaradas de Chelinogrado se aproximarem mais do que dez metros dos vagões.

— Vocês têm um cão esperto no comando! — disse um dos prisioneiros para eles. — Querem ficar com todas essas coxinhas brancas, hem?

— Mulheres... — Um dos homens encostou-se à porta e apertou as pernas. — Faz um ano que não vejo uma mulher. Mulheres. como é que elas são mesmo?

— Abram a porta, abram a porta! — ressoava o coro atrás das tábuas. Punhos martelaram as paredes do vagão.

Do carro dos oficiais desceu uma mocinha de longos cabelos louros. Usava calças acolchoadas metidas em grossas botas de pele, uma fofaika — o conhecido casaco siberiano com gola de pele — e no pescoço um xale vermelho. Quando saltou para a neve, algumas centenas de homens assobiaram e acenaram os braços.

— Um anjinho! — gritou alguém. — Realmente, um anjinho. Dê-nos um fio dos seus cabelos louros e dormiremos como no paraíso.

Dunia não deu importância aos chamados. Falava com um oficial e apontava o carro fechado com as mulheres. O oficial sacudiu a cabeça, Dunia bateu os pés e voltou ao vagão-depósito, em cuja parede estava escrito com tinta clara a palavra Hospital. Centenas de chamados a seguiram, era um tumulto como numa pequena revolução. Na gritaria geral sumiu-se o berreiro de Sadojev no seu tênder de carvão ao reconhecer Dunia. Foi uma sorte, pois se tivessem sabido por que aquele velho se portava tão doidamente, ele perderia o seu trabalho como ajudante de foguista. Mas o foguista-chefe apenas sacudiu a cabeça e disse:

— Não proceda como um bode faminto, irmãozinho. Você podia ser pai dela. Para nós essa fêmea é apenas um cartaz que podemos olhar. Os camaradas oficiais há muito já meteram a mãozinha nela...

— É verdade que eu podia ser pai dela! — berrou Sadojev dançando como uma cabrita animada no seu monte de carvão. — Mas posso me alegrar só de olhar para ela... isso ainda é permitido a um velho...

Sadojev saiu do tênder e viu, com olhos ardentes, Dunia ajudar uma mulher com uma grossa atadura na cabeça a sair do vagão, amparando-a pela neve. Ele não se atreveria a fazer-se notar. Esperemos até o anoitecer, pensou, sentindo o coração encolher-se, pois atravessar o tempo até à escuridão era um tormento quase insuportável.

Já escurecia quando um funcionário do trem, pequeno e de pernas tortas, parecendo um anão, com um martelo de cabo longo, andou de vagão em vagão. Curvava-se e batia contra os freios, numa ação totalmente sem sentido. Ele usava um gorro grande demais, que lhe escorregava sobre os olhos, e o capote era tão comprido que deixava rastros na neve. Sadojev o olhava há um bom tempo, cheio de suspeita, pois enquanto esse sujeito repulsivo andasse por ali era impossível chamar Dunia.

— Que quer dizer isso, hem? — exclamou Sadojev quando o homúnculo parou, exatamente diante do vagão-enfermaria, e acendeu com diabólica calma um cigarro. — Faça o seu trabalho, bata nesses freios e suma-se! Ou será que as marteladas já estão sujeitas a quotas?

Marko Borissovitch deu um sorriso largo, empurrou o gorro para a nuca e acenou alegremente para o outro.

— Alô, Dimitri Ferapontovitch! Foi como eu pensava. É o trem com Dunia. Desça daí, seu comedor de carvão, e dê-me um abraço!

Que reencontro! Beijaram-se, abraçaram-se, bateram-se nos ombros e berraram um com o outro, como se fossem surdos. Depois, pararam do lado do trem que ficava protegido do vento, e fumaram. Sadojev enchera o seu cachimbo, e Marko suportava bem o fedor da misteriosa erva que Dimitri fumava havia anos.

— Eles nunca poderão desfazer esse erro — disse Marko esfregando as mãos. — Queriam separá-los para sempre, e agora vão juntos para o exílio. Se forem espertos, ninguém saberá que estão juntos. Mas já que nos têm a nós, Dimitri Ferapontovitch, melhor ainda! Deus permita que ainda vivamos dez anos, então nossos filhinhos também sobreviverão...

Quando estava bem escuro, ambos se separaram depois de terem combinado um excelente plano. Godunov voltou primeiramente ao seu vagão de material, colocou vinte rublos na mesa do camarada secretário da direção do comboio e disse:

— Meu querido e bom amigo Ulanov, você é um grande comilão e o violento conquistador de mulheres, ainda que seja impotente. O meu médico, o Dr. Pjetkin, me avisou que talvez pudesse haver cura para você. Talvez...

— Que quer dizer talvez? — exclamou o gordo Ulanov. — Ele que comece imediatamente! O que o está impedindo?

— O seu bem-estar e a sua cegueira, camarada.

— Como devo entender isso?

— Bem-estar significa que você terá um coração mole com relação a ele, e cegueira significa que não vai ver nem ouvir nada do que se passar esta noite.

— Godunov, essas coisas são ilegais. Sou um funcionário do governo!

— E eu não sou? Ulanov... você é um gigante mas tem um ridículo anãozinho no meio das pernas. Quer ficar assim pelo resto da vida?

— Que pergunta! Prefiro ser cego e surdo.

— Você é bem esperto — disse Marko. — Preciso do seu quarto, meu amigo... mude-se por esta noite, e durma no depósito ao lado.

Enquanto isso, Sadojev se aproximara do vagão de Dunia. Bateu na madeira com um certo ritmo. Assim sempre batera na porta de Dunia quando a acordava de manhã. Com esse sinal ela crescera, exatamente como crescera ouvindo o assobio que Sadojev deu em seguida.

Nada se moveu dentro do carro. Sadojev repetiu batida e assobio, e de repente um medo cresceu nele. Os oficiais teriam levado Dunia para junto deles?

Sadojev sentiu calor, bateu os punhos um contra o outro e rilhou os dentes como um tigre raivoso.

Queria bater e assobiar pela terceira vez, quando a porta de correr rangeu e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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