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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTROS DE SANGUE / Val McDermid
RASTROS DE SANGUE / Val McDermid

Depois dos eventos traumatizantes em que quase perdeu a vida durante seu último caso (ver O canto das sereias), o Dr. Tony Hill conseguiu montar a Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais, um grupo que está longe de conquistar aprovação e respeito da força policial. O psicólogo e seu grupo de seis detetives, será supervisionado pelo comandante Paul Bishop. Tony agora está treinando os policias escolhidos para identificar um serial killer em um grupo aleatórios de assassinatos e formar um perfil. A policial Shaw Bowman se candidatou para a força tarefa e estava empolgada, irá fazer de tudo para ter sucesso no grupo. Ela quer aprender o máximo possível com Hill, e quem sabe no futuro, escrever um livro sobre um assassino famoso.
Carol Jordan, não se candidatou para fazer parte da equipe, algo que deixou Tony chateado. Mas os dois estavam ligados por um passado traumático, um “relacionamento” mal resolvido e ela achou melhor se afastar. Uma promoção para uma cidade do interior contribuiu para isso, agora ela era a detetive inspetora-chefe em East Yorkshire. Os delitos no local eram menores, nada de assassinos sanguinários, mas ela logo liga uma série de incêndios aleatórios, e se coloca na pista de um incendiário.
Durante um exercício de treinamento, Tony Hill distribui aos detetives um grupo aleatório de adolescentes desaparecidas, e pede para que eles encontrem um padrão. O que era um simples exercício, se torna algo mais quando um deles encontra não só um padrão, mas afirma que algumas daquelas adolescentes foram assassinadas, e por ninguém menos do que uma famosa celebridade local. Claro que o assunto virou piada entre os colegas, ninguém comprou a história... Até que uma nova morte muda tudo, e Tony Hill resolve realmente investigar o crime.
Com a ajuda de Carol, ele parte em busca de seu assassino. Mas o adversário está pronto para a briga. Além de inteligente, sórdido e muito esperto, esse homicida está disposto a tudo para continuar seu trabalho.

 

 

 

 

 



Prólogo

O assassinato era como mágica, pensou ele. A velocidade da sua mão sempre ludibriava o olho, e continuaria a ser assim. Ele era como o carteiro que faz uma entrega em uma casa na qual, depois, jurariam jamais ter recebido qualquer visitante. Esse conhecimento estava alojado em seu interior como um marca-passo em um paciente cardíaco. Sem o poder da sua mágica, ele estaria morto. Ou quase.
Só de olhá-la, sabia que ela seria a próxima. Mesmo antes do contato visual, ele sabia. Sempre havia uma associação específica perfeita no seu vocabulário de sentidos. Inocência e maturidade, cabelo castanho escuro, olhos que dançavam. Até então nunca tinha errado. Era um instinto que o mantinha vivo. Ou quase.
Ele a observava observá-lo e, sob o insistente murmúrio da multidão, escutou ecoar na sua cabeça a música: “Jack e Jill subiam a montanha para buscar um balde d’agua. Jack caiu, quebrou a cabeça...” A harmoniosa canção cresceu e explodiu, espancando seu cérebro como uma maré de sizígia contra o quebra-mar. E Jill? E quanto a Jill? Ah, ele sabia o que tinha acontecido com Jill. Várias e várias vezes, repetidamente como os bárbaros versinhos infantis. Mas não era suficiente. Ele não estava satisfeito. Achava que o castigo não era compatível com o crime cometido.
Por isso deveria haver mais um. E ali estava ele, vendo como ela o observava mandar mensagens com os olhos. Mensagens que diziam: “Eu te notei. Dê um jeito de chegar até mim que vou te notar um pouco mais.” Ela o compreendeu. Compreendeu-o perfeitamente. Era tão óbvia; a vida ainda não tinha marcado suas expectativas com interferências. Um desajeitado sorriso de compreensão se formou no canto da sua boca, e ela deu o primeiro passo na longa e, para ele, excitante jornada de exploração e dor. A dor, até onde sabia, não era a única necessidade, mas sem dúvida era uma delas.
Ela começou a caminhar em direção a ele. O caminhar variava, ele percebera. Às vezes as mulheres eram diretas, destemidas; às vezes tinham um pouco de meandro, cautela para o caso de terem errado na interpretação daquilo que achavam que os olhos dele estavam dizendo. Aquela ali preferiu o caminho em espiral, circulando sempre para o interior como se seus pés estivessem seguindo a concha de um caracol gigante, uma miniatura da Galeria Guggenheim compactada em duas dimensões. Seus passos eram medidos, determinados, os olhos não se desgrudando dos dele, como se não houvesse ninguém entre os dois, nenhum obstáculo ou distração. Mesmo quando ela estava às suas costas, ele conseguia sentir o olhar dela, que era precisamente como achou que seria.
Era uma abordagem que lhe dizia algo sobre aquela pessoa. Ela queria saborear aquele encontro. Queria vê-lo de todos os ângulos possíveis, registrando-o eternamente na memória, porque achava que aquela seria a única chance para um escrutínio tão detalhado. Se alguém a tivesse contado o que o futuro realmente lhe guardava, estremeceria a ponto de desmaiar.
Por fim, sua órbita decrescente a levou a dele. Apenas o círculo imediato de admiradores entre eles, uma ou duas pessoas os separando. Capturou os olhos dela, injetou charme na maneira como a encarou e, com um educado aceno de cabeça para aqueles ao seu lado, deu um passo na sua direção. Os corpos se separaram obedientemente e ele disse:
— Com licença? Encantado em conhecê-la.
Uma incerteza esvoaçou pelo rosto da menina. Deveria se movimentar como os outros ou ficar no âmbito daquele olhar hipnotizante? Não era uma competição; nunca era. A menina estava fascinada, a realidade daquela noite superava todas as suas fantasias.
— Oi — cumprimentou ele. — Qual é o seu nome?
Momentaneamente sem fala por nunca ter ficado tão próxima de uma celebridade, estava deslumbrada por aquele espetacular sorriso, todinho para ela. Nossa, que dentões você tem, pensou ele. São pra te morder melhor.
— Donna — gaguejou ela. — Donna Doyle.
— É um nome bonito — elogiou gentilmente.
O sorriso que ele ganhou em resposta era tão brilhante quanto o dele. Às vezes, aquilo tudo parecia fácil demais. As pessoas escutavam o que queriam escutar, especialmente quando o que ouviam parecia ser um sonho se tornando realidade. Total suspensão de descrença, era isso o que conseguia toda vez. Elas iam a esses eventos querendo que Jacko Vance e todos conectados ao grande homem fossem exatamente como o que viam na TV. Por associação, qualquer um que fizesse parte da comitiva das celebridades possuía o mesmo brilho dourado. As pessoas estavam tão acostumadas com a sinceridade de Vance, tão familiarizadas com a sua probidade pública que nunca lhes passava pela cabeça desconfiar da armadilha. Por que deveriam, já que Vance tinha uma imagem popular que fazia o Bom Rei Venceslau parecer o Scrooge? Otários escutavam o que dizia e ouviam João e o Pé de Feijão — da sementinha que Vance e seus subordinados plantavam, imaginavam o desabrochar da flor burguesa que era a vida no topo da árvore bem ao lado dele.
Nesse aspecto, Donna Doyle era igualzinha a todas as outras. Era como se a jovem estivesse trabalhando em um roteiro que ele escrevera para ela. Levou-a estrategicamente para um canto e fez um movimento que deu a entender que lhe entregaria uma foto autografada de Vance, a superestrela. Então, encarou-a novamente com uma naturalidade tão primorosa que poderia ser parte do repertório de De Niro.
— Meu Deus — sussurrou ele. — É claro, é claro! — A exclamação era o equivalente verbal de uma batida na testa com a palma da mão.
Ao esticar o braço para pegar o que estava muito próximo de lhe ser oferecido, seus dedos ficaram a centímetros dos dele e ela, sem entender, franziu as sobrancelhas e perguntou:
— O quê?
Ele curvou os lábios para baixo, demonstrando ter desistido do que havia pensado e respondeu:
— Esquece. Desculpa, tenho certeza que você tem planos muito mais interessantes pro seu futuro do que qualquer coisa que nós, apresentadores de programas, possamos sugerir.
A primeira vez que usou essa fala, com as mãos suando, o sangue pulsando nos seus ouvidos, achou que era tão piegas que não enganaria nem um bêbado em coma alcoólico. Mas estava certo de ter confiado em seus instintos, mesmo que eles o levassem pelo caminho da breguice criminal. Essa menina, assim como a primeira, entendeu instantaneamente que algo estava sendo oferecido a ela, e não às outras pessoas insignificantes com quem estivera conversando mais cedo.
— O que quer dizer? — perguntou sem ar, hesitante, não querendo admitir que poderia ter entendido errado e que se preparava para o quente rubor da vergonha que viria à tona pelo equívoco.
Ele deu de ombros da maneira mais débil possível, de uma forma que o movimento dificilmente perturbaria o impecável caimento do seu terno.
— Esquece — disse ele, abanando a cabeça de maneira quase imperceptível. Havia um desapontamento no triste olhar que lançou para ela e seu sorriso reluzente tinha desaparecido.
— Não, me conta.
Agora havia uma pontinha de desespero, porque todo mundo queria ser uma estrela, independentemente do que falassem. Ele realmente arrancaria dela aquele quase vislumbrado voo no tapete mágico capaz de alçá-la para fora da sua vida desprezível e levá-la até o mundo dele?
Depois de uma rápida olhada para os dois lados, certificando-se de que ninguém o ouviria, soltou sua voz macia e intensa:
— Estamos trabalhando em um projeto novo. Você tem o visual certo. Seria perfeita. Assim que te vi direito, soube que era você. — Sorriu, pesaroso. — Agora pelo menos tenho a sua imagem para carregar na cabeça enquanto entrevisto centenas de esperançosas que os agentes nos mandam. Talvez a gente tenha sorte... — Sua voz desvaneceu, os olhos marejaram, desolados como os de um cão sem dono.
— Eu não poderia... quer dizer, é... — A esperança iluminou o rosto de Donna, depois, surpresa com o atrevimento, ficou desapontada; travou e não disse outra palavra.
Ele abriu um sorriso indulgente. Um adulto o teria identificado como condescendente, mas ela era jovem demais para perceber o tom paternalista.
— Acho que não. Seria assumir um risco enorme. Um projeto desses, numa fase tão delicada... uma palavrinha no ouvido errado poderia arruiná-lo comercialmente. E você não tem nenhuma experiência profissional, tem?
Essa provocadora espiada naquilo que poderia ser o seu futuro destampou um vulcão de turbulenta esperança e as palavras trombavam umas nas outras como rochas no fluxo da lava. Prêmios de karaokê no clube de jovens, uma ótima dançarina de acordo com todo mundo, no colégio interpretou a Ama em Romeu e Julieta. Ele imaginara que as escolas tinham criado mais juízo e parado de agitar as tumultuosas águas do desejo adolescente com um drama incitante como aquele, mas estava errado. Eles não aprendiam, os professores. Bem como seus pupilos. Crianças podiam assimilar as causas da Primeira Guerra Mundial, mas não entendiam que clichês eram criados porque refletiam a realidade. Antes o diabo conhecido. Não aceite doce de estranhos.
Advertências que nunca devem ter vibrado o tímpano de Donna Doyle, algo muito visível na sua expressão de incontrolável avidez. Ele abriu outro sorrisão e disse:
— Está bem! Você me convenceu!
Ele abaixou a cabeça e capturou o olhar dela. Sua voz se tornara conspiradora:­ — Mas consegue manter segredo?
Donna assentiu com a cabeça como se sua vida dependesse disso. Ela não tinha como saber que realmente dependia.
— Consigo, sim — respondeu, os olhos azuis cintilando, os lábios separados e a linguinha rosa bruxuleando entre eles. Ele sabia que a boca dela estava ficando seca. Sabia também que o fenômeno contrário estava acontecendo em outras partes do seu corpo.
Ele lançou um olhar ponderado e calculado, uma óbvia avaliação que ela recebeu com apreensão e desejo, que se misturavam como gelo e uísque.
— Estou pensando... — disse ele, com uma voz que era quase um sussurro. — Pode se encontrar comigo amanhã de manhã? Às nove horas?
Ela franziu as sobrancelhas momentaneamente, depois seu rosto se iluminou, e os olhos se encheram de determinação.
— Posso — disse ela, pois faltar aula era irrelevante. — Posso, sim. Onde?
— Conhece o Plaza Hotel?
Ele tinha que se apressar. As pessoas começavam a se mover em direção a ele, desesperadas para recrutarem a influência dele para suas causas.
Ela assentiu.
— Eles têm um estacionamento subterrâneo. Você entra lá pela Beamish Street. Vou te esperar no nível dois. E nenhuma palavra com ninguém, ok? Nem com sua mãe, nem com seu pai, nem com sua melhor amiga, nem mesmo com o cachorro.
Ela deu uma risadinha.
— Consegue fazer isso? — indagou ele, encarando-a com aquele olhar curiosamente íntimo de profissional de TV; aquele que convence os mentalmente perturbados de que os apresentadores de programas estão apaixonados por eles.
— Nível dois? Nove horas — confirmou Donna, determinada a não estragar a única chance de escapar da rotina monótona. Ela nunca poderia ter imaginado que, no final da semana, estaria chorando e gritando e implorando por monotonia. Estaria desejando vender o que restava da sua imortal alma por monotonia. E, mesmo que alguém lhe tivesse dito isso naquele momento, não teria compreendido. Ali, o deslumbramento e o sonho do que ele podia oferecer eram tudo que restava. Qual perspectiva poderia ser melhor?
— Nenhuma palavra, promete?
— Prometo — disse ela solenemente. — Não conto pra ninguém, nem morta.
PARTE UM

Capítulo 1

Tony Hill estava deitado na cama e observava uma longa tira de nuvem deslizar por um céu cor de casca de ovo. Se alguma coisa o conquistara naquela apertada casa de dois andares sem quintal foi o sótão, com suas paredes de ângulos esquisitos e duas claraboias que davam a ele algo para olhar quando acordava no meio da noite. Uma casa nova, uma cidade nova, um novo começo, e ainda assim era difícil se desligar por oito horas ininterruptas.
Não era de se surpreender que não dormira bem. Este era o primeiro dia do resto de sua vida, lembrou a si mesmo com um sorriso irônico que enrugava a pele ao redor de seus fundos olhos azuis, transformando-a em um ninho de rugas que nem seu melhor amigo poderia chamar de linhas de expressão. Não havia rido tanto assim para tê-las. E transformar crimes em profissão lhe dava a certeza de que nunca riria.
A profissão sempre foi a desculpa perfeita, é claro. Durante dois anos, trabalhara pesado para o Ministério do Interior em um estudo para checar a possibilidade de instituir uma força-tarefa nacional de criadores de perfis criminais psicológicos, um esquadrão capaz de lidar com casos complexos e trabalhar com as equipes de investigação para melhorar o índice e a velocidade com que os casos eram solucionados. Um trabalho que requerera toda a habilidade clínica e diplomática que Tony desenvolvera ao longo dos anos como psicólogo em instituições mentais de segurança máxima.
Isso o manteve fora das repartições, mas o expôs a outros perigos. O perigo do tédio, por exemplo. Cansado de ficar enfurnado atrás de uma mesa ou em intermináveis reuniões, deixou-se seduzir pela tentadora oferta de envolvimento em um caso que, mesmo à distância, dava a impressão de ser algo muito especial, e se afastou do trabalho que conduzia. Nem mesmo em seus mais desvairados pesadelos poderia ter imaginado o quão excepcional aquilo seria. Nem quão destrutivo.
Cerrou os olhos momentaneamente contra as memórias que sempre o perseguiam no limiar da sua consciência, aguardando que ele baixasse a guarda e as deixasse entrar. Essa era outra razão pela qual dormia mal. Pensar no que seus sonhos poderiam fazer não era nenhum atrativo para que se distraísse e entregasse o controle ao subconsciente.
A nuvem saiu do seu campo de visão como um peixe, Tony rolou da cama e desceu até a cozinha sem fazer barulho nas escadas. Colocou água na parte inferior da cafeteira, preencheu a do meio com um pó de fragrância esquisita que pegou no freezer, atarraxou a parte de cima e acendeu o fogo. Pensou em Carol Jordan, como fazia provavelmente em uma a cada três manhãs enquanto preparava o café. Fora ela quem lhe dera a pesada cafeteira italiana de alumínio quando ele saiu do hospital e voltou para casa depois do fechamento do caso. “Você não vai caminhar até a cafeteria por um tempo”, dissera ela. “Com isso pelo menos vai poder fazer um expresso decente em casa.”
Já fazia meses que vira Carol. Eles sequer tiveram a oportunidade de comemorar a promoção dela a detetive inspetora-chefe, o que demonstrava o quanto haviam se distanciado. Inicialmente, depois de ter recebido alta do hospital, ela o visitava sempre que o ritmo frenético do trabalho permitia. Gradualmente, tomaram consciência de que, toda vez que estavam juntos, o espectro da investigação se erguia entre eles, obscurecendo qualquer possibilidade que estivesse à disposição. Entendeu que Carol era mais bem preparada do que a maioria das pessoas para interpretar o que via nele. Mas simplesmente não podia encarar o risco de se abrir para alguém que pudesse o rejeitar quando percebesse o quanto fora infectado pelo trabalho.
Se isso acontecesse, ele duvidava da sua capacidade de fazer dar certo. E, se não desse certo, não conseguiria fazer o seu trabalho. E isso era muito importante para ser posto de lado. O que ele fazia salvava a vida de pessoas. Era bom nisso, provavelmente um dos melhores, porque compreendia de verdade o lado obscuro. Colocar o trabalho em risco seria a coisa mais irresponsável que poderia fazer, especialmente agora que a recém-criada Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais estava em suas mãos.
O que algumas pessoas percebiam como sacrifícios eram, na verdade, dividendos, disse a si mesmo com firmeza enquanto servia seu café. Era-lhe permitido fazer exatamente aquilo que ele fazia soberbamente, e lhe pagavam por isso. Um sorriso cansado atravessou o seu rosto. Meu Deus, como era sortudo.
Shaz Bowman compreendia perfeitamente por que as pessoas cometiam assassinatos. Essa revelação não tinha nada a ver com a mudança para uma cidade nova ou com o trabalho que a levara até ali, mas sim com os picaretas que instalaram o encanamento quando a mansão de um ex-dono de uma fábrica na era vitoriana fora convertida em apartamentos. Os empreiteiros fizeram um trabalho cuidadoso, preservando características originais e evitando divisões que arruinassem as ótimas proporções dos cômodos espaçosos. Para olhos descuidados, o apartamento de Shaz tinha ficado perfeito, com as portas-balcão que levavam ao jardim do quintal, domínio exclusivo dela.
Anos dividindo espeluncas estudantis com carpetes grudentos e banheiras nojentas, seguidas de um alojamento para policiais e uma quitinete alugada por um preço absurdo em West London deixaram Shaz desesperada pela oportunidade de verificar se proprietária de imóvel era uma categorização com a qual conseguiria viver. A mudança para o norte lhe dera a primeira chance de ter condições de pagar por isso. Mas o idílio se despedaçou na primeira manhã em que teve que levantar cedo para ir trabalhar.
Com os olhos turvos e semiconsciente, abrira o chuveiro tempo suficiente para que a temperatura da água ficasse boa. Entrou debaixo da poderosa ducha, levantando as mãos sobre a cabeça num gesto estranhamente respeitoso. Seu gemido de prazer se transformou abruptamente em um grito quando a água de um morno amniótico se transformou em dispersas e escaldantes ferroadas hipodérmicas. Atirou-se para fora do boxe, torcendo o joelho ao escorregar no chão do banheiro, xingando com a fluência adquirida em seus três anos na Polícia Metropolitana de Londres.
Sem mais palavras, olhou para a nuvem de vapor no canto do banheiro onde estivera momentos antes. Então, abruptamente, ele se dissipou. Estendeu uma mão com cautela, colocando-a debaixo da água. A temperatura voltara a ficar como deveria. Titubeando centímetro a centímetro, movia-se para debaixo da água. Deixando escapar a respiração inconscientemente presa, esticou o braço para pegar o shampoo. Tinha feito uma aura branca de espuma quando agulhas geladas como chuva de inverno cascatearam em seus ombros. Dessa vez, inspirou e, junto do ar veio espuma, adicionando ânsia de vômito aos efeitos sonoros da manhã.
Não foi preciso refletir muito para concluir que seu martírio era resultado da ablução sincrônica de outra pessoa. Ela era detetive, afinal de contas. Mas tal descoberta não a deixou nem um pouco mais feliz. No primeiro dia no trabalho novo, em vez de se sentir calma e com os pés no chão depois de um longo e reconfortante banho, estava furiosa e frustrada, com os nervos à flor da pele e os músculos da nuca enrijecidos prometendo uma dor de cabeça.
— Que beleza — rosnou ela, lutando contra as lágrimas que tinham mais a ver com emoção do que com o shampoo nos olhos.
Shaz avançou para o chuveiro uma vez mais e o desligou com um giro de punho violento. A boca apertada se transformara em uma linha e ela começou a encher a banheira. Tranquilidade não era mais uma opção para o dia, mas ainda precisava tirar a espuma do cabelo se não quisesse chegar à sala de operações da novíssima força-tarefa parecendo algo com que nem um gato respeitável iria querer arrumar confusão. Já seria intimidador o bastante sem ter que preocupar com o seu visual.
Enquanto se agachava na banheira e mergulhava a cabeça na água, tentava restaurar o entusiasmo da expectativa.
— Você tem sorte de estar aqui, garota — afirmou para si mesma. — Aquele monte de idiotas se candidatou e você não precisou nem preencher o formulário para ser escolhida. Escolhida a dedo, elite. Fez todo aquele trabalho de merda valer a pena, todos aqueles sapos engolidos. Todos aqueles escrotos que viviam na cantina não vão a lugar nenhum tão cedo, são eles que vão ter que engolir merda agora. Não são como você, detetive Shaz Bowman. Policial Bowman, da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis.
Como se isso não fosse o bastante, ela trabalharia ao lado do renomado mestre da combinação arcana entre instinto e experiência. O dr. Tony Hill, com graduação pela Universidade de Londres e doutorado em Oxford, o maior criador de perfis criminas e autor do manual definitivo sobre serial killers. Se Shaz fosse uma mulher dada a venerar heróis, Tony Hill seria um dos primeiros da sua lista, estaria lá no alto, junto ao panteão dos seus deuses pessoais. De certo modo, foi pela oportunidade de explorar os conhecimentos dele e aprender seus artifícios que ela alegremente se sacrificou. Contudo, ela não tivera que abrir mão de nada. A oportunidade simplesmente caíra no seu colo.
Enquanto enxugava seu curto cabelo escuro, avaliou a chance única que estava à sua frente, o que amansou sua raiva, mas não seus nervos. Shaz se esforçou para se concentrar no dia que teria pela frente. Pendurando a toalha cuidadosamente ao lado da banheira, ela se encarou no espelho, ignorando o arroubo de sardas ao longo das maçãs do seu rosto, a ponte do nariz macio, passou pelas linhas retas dos seus lábios finos demais para assegurar sensualidade e focou na característica que todas as pessoas notavam primeiro nela.
Seus olhos eram extraordinários. Íris azul-escuro rajadas por linhas de tonalidade intensa e pálida, que pareciam capturar a luz como as facetas de uma safira. Em um interrogatório, eram irresistíveis. Aqueles olhos tinham talento. O intenso encarar azul imobilizava as pessoas como uma supercola. Shaz tinha o palpite de que eles deixavam seu último chefe tão desconfortável que ele se deleitava com a imagem de despachá-la para bem longe, a despeito de seu índice de prisão e condenação, que seria extraordinário em se tratando de um experiente policial do Departamento de Investigação Criminal, que dirá de um novato.
Ela só encontrara com seu novo chefe uma vez. Por alguma razão, não achava que lidar com Tony Hill seria moleza. E quem sabia o que ele veria caso deslizasse para dentro daquelas frias defesas azuis? Com um calafrio de ansiedade, Shaz se desviou do seu olhar implacável no espelho e mordeu a pele na lateral do dedão.
A detetive inspetora-chefe Carol Jordan tirou o original da copiadora, pegou a cópia na bandeja e atravessou o espaço sem divisórias do Departamento de Investigação Criminal até a sua sala e, no caminho, não houve nada mais revelador do que um cordial “Bom dia, rapazes”, para os dois detetives que madrugaram e já estavam em suas mesas. Presumiu que eles só estavam ali naquela hora porque queriam causar uma boa impressão. Coitadinhos.
Entrou, fechou a porta com firmeza e foi até a sua mesa. O relatório criminal original voltou para a pasta de documentos do período noturno e, em seguida, para a sua de despacho. A cópia se juntou a quatro outros despachos noturnos em uma pasta que vivia na sua maleta, quando não estava sobre sua mesa. Cinco, decidiu, era uma massa crítica. Hora de reagir. Olhou para o relógio. Mas não naquele exato momento.
O único outro item a ocupar a mesa dela naquele momento era um longo memorando do Ministério do Interior. Na sarcástica linguagem do serviço público, aquilo poderia capitular uma chatice estilo Tarantino, pois anunciava a inauguração formal da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. “Sob a supervisão do comandante Paul Bishop, a força-tarefa será liderada pelo psicólogo clínico do Ministério do Interior e analista criminal sênior, dr. Tony Hill. Inicialmente, a força-tarefa será constituída de seis experientes detetives que trabalharão subordinados ao dr. Hill e ao comandante Bishop, sob as diretrizes do Ministério do Interior”.
Carol suspirou e cantou suavemente.
— It could have been me. Oh yeah, it could have been me.
Ela não havia sido formalmente convidada. Mas sabia que a única coisa que tinha que fazer era pedir. Tony Hill a quisera na equipe. Tinha visto seu trabalho de perto e lhe dissera mais de uma vez que ela tinha a mentalidade certa para fazer com que a nova força-tarefa fosse eficaz. Mas não era simples assim. O único caso em que tinham trabalhado juntos fora pessoalmente devastador e difícil para ambos. E seus sentimentos por Tony Hill ainda eram muito complicados para ela apreciar a possibilidade de ser o braço direito dele em outros casos que poderiam se tornar tão desgastantes emocionalmente e desafiadores do ponto de vista intelectual quanto a primeira batalha deles.
Contudo, ficara tentada. Depois outra coisa surgiu. Uma promoção precoce em uma força recém-criada não era uma oportunidade que ela achava que podia se dar ao luxo de perder. A ironia era que essa chance emergira da mesma caçada ao serial killer. John Brandon fora o chefe de polícia assistente em Bradfield que teve a coragem de convocar Tony Hill e de designar Carol como policial de ligação. Quando foi promovido a chefe de polícia da nova força, ele a quis a bordo. O timing dele não poderia ter sido melhor, ela pensou, e sentiu, contra a sua vontade, uma leve pontada de pesar. Levantou-se e deu os três passos necessários para atravessar sua sala e olhar para as docas lá embaixo, onde as pessoas se moviam com determinação, fazendo ela não sabia o quê.
Carol aprendera o serviço primeiro com a Polícia Metropolitana em Londres e depois com a Polícia Metropolitana de Bradfield, ambas os leviatãs alimentados pela perpétua onda de adrenalina gerada pela criminalidade dos centros urbanos. Mas agora estava fora, na ponta da Inglaterra, na Polícia de East Yorkshire onde, como seu irmão Michael zombou, o acrônimo da força era quase idêntico ao cumprimento tradicional do caipira de Yorkshire: “Ey-up”. Ali, o trabalho do detetive inspetor-chefe não envolvia fazer malabarismos em inquéritos sobre assassinatos, passar correndo de carro por tiroteios, guerras de gangues, roubos à mão armada ou tráfico de drogas da pesada.
Nas cidadezinhas e vilas de East Yorkshire, o crime não era escasso. Mas eram delitos menores. Seus inspetores e sargentos eram mais do que capazes de lidar com eles, mesmo nas pequenas cidades de Holm e Traskham e no porto do Mar do Norte de Seaford, onde ela estava sediada. Seus subordinados não a queriam na cola deles. Afinal de contas, o que uma garota da cidade sabia sobre roubo de ovelhas? Ou de falsificação de notas de embarque de carga? Além disso, todos sabiam perfeitamente que, quando a nova detective inspetora-chefe aparecia nas ações de campo, não estava interessada em descobrir o que acontecia, mas que queria sacar quem realmente dava conta do recado e quem ficava encenando, quem gostava de tomar uma durante o expediente e quem curtia tirar um por fora. E estavam certos. Estava demorando mais tempo do que ela tinha previsto, mas gradualmente montava um painel que mostrava como era a sua equipe e quem era capaz de fazer o quê.
Carol suspirou novamente e bagunçou, com os dedos de uma das mãos, ainda mais o já despenteado cabelo louro. Era uma tarefa árdua, sobretudo porque a maioria dos homens rudes de Yorkshire com quem trabalhava estavam lutando contra o condicionamento de uma vida inteira ao levar a sério um chefe do sexo feminino. Não era a primeira vez que ela se perguntava se a ambição a tinha empurrado para um erro drástico e levado a sua próspera carreira a um beco sem saída.
Deu de ombros e se afastou da janela, depois tirou novamente a pasta da sua maleta. Ela pode ter optado por dar as costas para a força-tarefa de perfis criminais, mas trabalhar com Tony Hill havia lhe ensinado alguns truques. Sabia qual era a assinatura de um criminoso em série. Só desejava não precisar de uma equipe de especialistas para encontrar uma.
Uma das metades da porta dupla ficou momentaneamente aberta. Uma mulher com o rosto instantaneamente reconhecível em 78% das residências do Reino Unido de acordo com a última pesquisa de audiência , usando um salto alto que glorificava suas belas pernas que poderiam muito bem servir de modelo para meia-calça, entrou com passos largos dentro do departamento de maquiagem, olhando de lado e falando:
— ... o que não me deixa nenhum espaço de manobra, então fala pro Trevor trocar o dois e o quatro na ordem de transmissão, OK?
Betsy Thorne a seguiu, concordando calmamente com a cabeça. Ela tinha uma aparência autêntica demais para ser qualquer coisa na TV, com seu cabelo de fios prateados irregulares presos para trás por um arco azul de veludo, deixando à vista um rosto que, de certo modo, era quintessencialmente inglês; os olhos inteligentes de um cão pastor, os ossos de um cavalo puro-sangue inglês de corridas e a tez de uma maçã do tipo Cox.
— Sem problema — disse com sua voz em todos os níveis tão cordial e carinhosa quanto a de sua companheira. Fez uma anotação na prancheta que carregava.
Micky Morgan, apresentadora e única estrela admissível de Meio-dia com Morgan, o programa de notícias de duas horas de duração do horário do almoço, considerado o carro-chefe dos canais comerciais, continuou seguindo em frente até aquela que obviamente era a sua cadeira habitual. Ela se acomodou, jogou o cabelo louro-mel para trás e deu uma crítica e rápida analisada em seu rosto no espelho enquanto a maquiadora a envolvia com uma capa protetora.
— Marla, você voltou! — exclamou Micky com o mesmo grau de deleite na voz e no olhar. — Graças a Deus. Rezava pra você estar fora do país e não ter que ver o que fazem comigo quando não está aqui. Eu te proíbo de sair de férias de novo!
Marla sorriu e brincou:
— Continua falando esse monte de merda, né, Micky?
— É pra isso que eles pagam a Morgan — disse Betsy, empoleirando-se no balcão ao lado do espelho.
— Está difícil conseguir bons funcionários hoje em dia — disse Micky, com os lábios cerrados assim que Marla começou a passar base sobre a pele dela. — Tem uma espinha brotando na têmpora direita.
— Pré-menstrual? — perguntou Marla.
— Eu achava que só eu conseguia perceber isso a um quilômetro de distância — disse Betsy arrastando as palavras.
— É a pele. A elasticidade muda — explicou Marla de maneira distraída, completamente envolvida na sua tarefa.
— Tema do Debate — disse Micky. — Dá uma passada nele de novo pra mim, Bets.
Ela fechou os olhos para se concentrar e Marla aproveitou a chance para trabalhar nas pálpebras.
Betsy consultou sua prancheta.
— Aproveitando as últimas revelações dos tabloides sobre mais um subsecretário pego na cama errada, nós perguntamos: “O que faz uma mulher querer ser amante?”
Ela passava dos convidados para o tema enquanto Micky escutava atenciosamente. Betsy chegou ao último entrevistado e sorriu.
— Você vai gostar disto: Dorien Simmonds, sua romancista favorita. A amante profissional vai defender a tese de que, na verdade, ser amante não é apenas uma diversão maravilhosa, mas um serviço social positivo para todas aquelas esposas exploradas que têm que suportar sexo conjugal mesmo depois do tédio absoluto.
Micky soltou uma gargalhada e disse:
— Brilhante. Essa é a boa e velha Dorien. Acha que existe alguma coisa que Dorien não faria para vender um livro?
— Ela só está com inveja — opinou Marla. — Lábios, por favor, Micky.
— Ciúmes? — perguntou Betsy delicadamente.
— Se Dorien tivesse um marido igual ao da Micky, não estaria levantando a bandeira das amantes. Só está puta da vida porque nunca vai colocar a mão num partidão tipo o Jacko. Pensa bem, quem não estaria?
— Mmmm — murmurou Micky.
— Mmmm — concordou Betsy.
A máquina publicitária levou anos para gravar na consciência da nação o par Micky Morgan e Jacko Vance, com a mesma solidez que peixe com fritas e Lennon e McCartney. O casamento das celebridades era tão paradisíaco que jamais poderia ser dissolvido. Até mesmo os colunistas de fofocas tinham desistido de tentar.
A ironia era que fora o medo das fofocas que os juntara. Conhecer Betsy tinha virado a vida de Micky de cabeça para baixo no momento em que a carreira dela começara a fazer a curva em direção às alturas. Ascender na proporção e velocidade de Micky significava colecionar uma interessante seleção de inimigos que ia dos invejosos peçonhentos aos rivais que gradativamente perderam o lugar sob os holofotes que julgavam seu por direto. Como era difícil encontrar defeitos profissionais em Micky, concentravam-se no lado pessoal. Lá no início dos anos 1980, o lesbian chic ainda não havia sido inventado. Para as mulheres, mais do que para os homens, ser gay era uma das rotas mais rápidas para receber uma carta de demissão. Alguns meses depois de ter se apaixonado por Betsy e abandonado sua vida outrora heterossexual, Micky compreendeu como se sentia um animal sendo caçado.
Sua solução fora radical e extremamente bem-sucedida. Era a Jacko que Micky tinha que agradecer por isso. Tivera e ainda tinha sorte por estar com ele, pensou ela, ao olhar com aprovação para seu reflexo no espelho da sala de maquiagem.
Perfeito.
Tony Hill olhou ao redor da sala para a equipe que escolhera a dedo e por um momento sentiu pena. Eles achavam que estavam entrando naquele mundo novo e sombrio de olhos abertos. Policiais nunca pensavam em si mesmos como inocentes fora do seu mundo. Eles possuíam muita sabedoria das ruas. Já tinham visto de tudo, feito tudo e sabiam por experiência própria o que era ter a camisa mijada e vomitada. Tony estava ali para instruir meia dúzia de policiais que achavam que já conheciam todos os horrores inimagináveis que os fariam acordar aos berros durante a noite e os ensinariam a rezar. Não em busca de perdão, mas de cura. Ele sabia muitíssimo bem que, independentemente do que pensassem, nenhum deles se informara de verdade ao fazer a escolha pela Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais.
Nenhum deles, com exceção, talvez, de Paul Bishop. Quando o Ministério do Interior dera sinal verde para o projeto de criação de perfis criminais, Tony cobrara todos os favores que lhe deviam e outros que não lhe deviam para garantir que o representante da polícia fosse alguém que soubesse da gravidade do que estava empreendendo. Pendurou o nome Paul Bishop em frente aos políticos como uma cenoura em frente a uma mula empacada, lembrando-os sobre o quanto Paul se comportava bem diante das câmeras. Mesmo assim, titubearam até Tony salientar que mesmo os jornalistas cínicos demonstravam algum respeito pelo homem que chefiara a caçada bem-sucedida aos predadores apelidados de Estuprador do Passe Livre e Assassino de Metroland. Depois dessas investigações, Tony não tinha dúvida de que Paul sabia exatamente que tipos de pesadelo lhe aguardavam.
Por outro lado, as recompensas eram extraordinárias. Quando gerava resultado, quando o trabalho deles realmente prendia alguém, aqueles policiais conheceriam uma euforia como nenhuma outra que experimentaram até então. Era um sentimento poderoso saber que seus esforços ajudaram a encarcerar um assassino. Ainda mais gratificante era perceber quantas vidas provavelmente salvaram ao iluminar o caminho certo a ser percorrido por seus colegas. Era arrebatador, ainda que temperado com o conhecimento daquilo que o perpetrador já havia feito. De certa maneira, também tinha que transmitir essa satisfação para eles.
Paul Bishop estava falando naquele momento, dando as boas-vindas à força-tarefa e esboçando o programa de treinamento que ele e Tony planejaram juntos.
— Vamos fazer com que conheçam a criação de perfis, dando-lhes a informação histórica de que precisam para começar a desenvolver a habilidade por conta própria — disse ele.
Era um curso intensivo de Psicologia, inevitavelmente superficial, mas que cobria o básico. Se escolhessem com sabedoria, seus aprendizes seguiriam os caminhos da sua preferência, ampliariam suas leituras, procurariam outros especialistas e desenvolveriam a expertise em áreas específicas que os interessassem.
Tony olhou para seus novos colegas espalhados pela sala. Todos formados pelo Departamento de Investigações Criminais, todos menos um graduado. Um sargento, quatro detetives homens e duas mulheres. Olhos ávidos, cadernos abertos, canetas prontas. Esse grupo era inteligente. Sabiam que, se fizessem um bom trabalho e a unidade prosperasse, conseguiriam ascender até o topo por conta disso.
O olhar firme saltava de um para outro. Parte dele gostaria que Carol Jordan estivesse entre eles, compartilhando suas percepções aguçadas, as análises perspicazes, arremessando suas ocasionais granadas de humor para aliviar o clima sombrio. Mas sua mente sensível sabia que haveria problemas mais que suficientes pela frente sem esse complicador.
Se tivesse que apostar em alguém que se destacava a ponto de ter a capacidade de fazer com que ele parasse de sentir falta das habilidades de Carol, ficaria com aquela cujos olhos flamejavam fogo frio. Sharon Bowman. Como todos os bons caçadores, ela mataria se precisasse.
Do mesmo jeito que ele fizera.
Tony se livrou do pensamento e se concentrou nas palavras de Paul, aguardando pelo sinal. Quando Paul sinalizou com a cabeça, Tony assumiu com naturalidade:
— O FBI leva dois anos para treinar seus agentes em criação de perfis criminais — disse, recostando-se na cadeira numa atitude proposital de calma e descontração. — Nós fazemos as coisas de modo diferente aqui — declarou, com acidez na voz. — Aceitaremos nosso primeiro caso em seis semanas. Em três meses, o Ministério do Interior espera que cuidemos de uma quantidade significativa de casos. O que vocês têm que fazer durante este intervalo de tempo é assimilar uma montanha de teoria, aprender uma série gigante de protocolos, se familiarizar totalmente com o software que foi desenvolvido especialmente para a força-tarefa e cultivar uma compreen­são instintiva em relação àqueles que são, como nós clínicos dizemos, totalmente fodidos. — Ele sorriu inesperadamente diante dos rostos sérios. — Alguma pergunta?
— Ainda dá tempo de desistir? — Os olhos elétricos de Bowman faiscavam o humor que faltava a seu tom inexpressivo.
— As únicas dispensas que aceitam são as certificadas pelo patologista.
A resposta jocosa veio de Simon McNeill. Formado em Psicologia em Glasgow, quatro anos a serviço da polícia de Strathclyde, lembrou Tony, reassegurando-se de que conseguia recordar os nomes e históricos sem muito esforço.
— Correto — disse ele.
— O que me diz de insanidade? — perguntou outra voz do grupo.
— Instrumento conveniente demais para que deixemos que escapem das nossas garras — respondeu Tony. — Embora me agrade que tenha trazido isso à tona, Sharon. É o fio condutor perfeito para que eu entre no primeiro tópico sobre o qual gostaria de falar hoje.
Seus olhos se moviam de rosto em rosto, aguardando até que sua seriedade estivesse espelhada em cada uma das faces. Acostumado a assumir qualquer personalidade e comportamento aceitável, não deveria ter ficado surpreso com o quanto era fácil manipulá-los, mas ficou. Se fizesse seu trabalho apropriadamente, isso seria muito mais difícil de conseguir dali a poucos meses.
Quando ficaram sossegados e concentrados, Tony soltou o bloco de anotações na mesa acoplada ao braço da sua cadeira e o ignorou.
— Isolamento — disse ele. — Alienação. As coisas mais difíceis de lidar. Seres humanos são gregários. Somos animais que se agrupam em rebanhos. Caçamos em bandos, celebramos em bando. Retire o contato humano de alguém, e o comportamento dele se distorce. Vocês vão aprender muito sobre isso nos próximos meses e anos.
Ele tinha capturado a atenção deles. Hora do golpe mortal.
— Não estou falando de serial killers. Estou falando de vocês. São todos policiais com experiência no Departamento de Investigação Criminal. São bem-sucedidos, se encaixaram e fizeram o sistema funcionar pra vocês. É por isso que estão aqui. Estão habituados com a camaradagem do trabalho em equipe, com o sistema de suporte que os apoia. Quando atingiram um resultado, tiveram um esquadrão do álcool para compartilhar a vitória com vocês. Quando alguma coisa deu errado, o mesmo esquadrão foi lá se solidarizar. É um pouquinho como uma família, só que nessa família não existe o irmão mais velho pra te azucrinar nem a tia que pergunta quando é que você vai casar.
Ele notou os gestos de cabeça e as expressões faciais que indicavam concordância. Como ele esperava, os das mulheres eram menos intensos que os dos homens.
Ficou em silêncio por um momento e se inclinou para a frente.
— Vocês acabaram de entrar em estado de luto coletivo. A família está morta e vocês nunca, nunca mais poderão voltar pra casa. Esta é a única casa que vocês têm, esta é a sua única família.
Ele os tinha fisgado de uma maneira que nenhum suspense jamais fizera. A sobrancelha direita de Bowman se levantou, formando um arco impressionante, porém, para além disso, estavam todos imóveis.
— Os melhores criadores de perfis provavelmente têm mais em comum com os serial killers do que com o restante da raça humana. Assassinos também precisam ser bons analistas criminais. Um assassino traça o perfil de suas vítimas. Ele tem que saber como olhar para um centro comercial cheio de gente e escolher a única pessoa que vai servir para ele. Se escolher a pessoa errada, já era. Ou seja, ele não pode cometer mais erros do que a gente. Como nós, ele começa fazendo uma seleção consciente a partir de critérios definidos, porém, gradualmente, se ele for bom, isso se transforma num instinto. E é assim que eu quero que todos vocês sejam.
Por um momento, seu controle perfeito lhe escapuliu quando imagens intrusas se aglomeram na superfície da sua percepção. Ele era o melhor, sabia disso. Mas pagara um preço alto para descobrir isso. A ideia de que a data de vencimento de outro pagamento poderia estar se aproximando era algo que ele era capaz de rejeitar enquanto se mantivesse sóbrio. Não por acaso Tony não bebeu praticamente nada durante quase um ano.
Recompondo-se, pigarreou e ajeitou o corpo na cadeira.
— Muito em breve suas vidas mudarão. Suas prioridades mudarão como Los Angeles em um terremoto. Acreditem em mim, quando passarem os dias e as noites se projetando dentro de uma mente programada para assassinar até que a morte ou o encarceramento a impeça, vocês repentinamente descobrirão que muitas coisas a que costumavam dar importância são completamente irrelevantes. É difícil ficar perturbado com a taxa de desemprego quando se contempla as atividades de alguém que tirou mais pessoas dos registros nos últimos seis meses do que o governo.
Seu sorriso cínico foi a deixa para que relaxassem os músculos que tinham permanecido tensos nos últimos dez minutos.
— As pessoas que nunca fizeram este tipo de trabalho não têm noção de como ele é. Todo dia você revisa as provas, reclassificando-as por ordem de importância em busca daquela pista fugidia que deixou escapar nas últimas 47 vezes. Observa, sem poder fazer nada, as pistas que achava que eram quentes ficarem mais frias que o coração de um viciado. Você tem vontade de sacudir as vítimas que viram o assassino, mas não se lembram de nada porque ninguém disse a elas de antemão que a pessoa que encheu o tanque no posto de gasolina numa noite há três meses era um assassino múltiplo. O detetive que acha que aquilo que vocês estão fazendo é pura merda e não vê razão para a porra da sua vida não ser tão miserável como a dele, por isso dá o seu telefone pra maridos, esposas, amantes, filhos, pais, irmãos, todos querendo de você uma migalha de esperança. E como se isso não fosse suficiente, a mídia fica no seu encalço. Aí o assassino age de novo.
Leon Jackson, que trilhou seu caminho de um gueto negro de Liverpool até a Polícia Metropolitana por meio de uma bolsa de Oxford, acendeu um cigarro. O estalo de seu isqueiro fez com que os outros dois fumantes pegassem os seus.
— Parece maneiro — disse ele, deixando um dos braços cair por trás da cadeira. Tony não conseguiu evitar uma pontada de pena. Quando mais duros na chegada, maior a queda.
— Ártico — disse Tony. — É assim que as pessoas fora deste Serviço veem você. E os seus ex-colegas? Quando trombarem com alguns deles, acreditem em mim, vão começar a notar que vocês ficaram um pouco esquisitos. Vocês não serão mais parte da galera, e vão começar a evitar vocês porque já não são mais os mesmos. Depois, quando estiverem trabalhando em um caso, serão transportados para um ambiente alienígena com pessoas que não os querem no caso. Inevitável. — Ele se inclinou para a frente novamente e ficou encurvado sob o gelado vento da memória. — E não terão medo de deixar você saber disso.
Tony leu superioridade no olhar desdenhoso de Leon. Por ser negro, ele raciocinou, Leon provavelmente imaginava que já tinha experimentado um pouco daquilo, e a rejeição, portanto, não lhe representava nenhum temor. O que ele muito provavelmente não percebia era que seus chefes tinham precisado da história de um negro bem-sucedido. Nem notara que deixaram isso claro para os policiais que controlavam a cultura, então era muito provável que ninguém pressionara Leon tanto quanto ele acreditara.
— E não achem que o pessoal do alto escalão vai apoiar vocês quando a merda estourar — continuou Tony. — Eles não vão. Vão amar vocês durante uns dois dias; depois, quando não tiverem acabado com a dor de cabeça deles, vão começar a odiá-los. Quanto mais demorar para resolver os crimes, pior fica. Os outros detetives os evitam porque vocês têm uma doença contagiosa chamada fracasso. A verdade pode estar lá fora, mas vocês não foram capazes de encontrá-la e, até que a encontrem, não passam de leprosos.
“E, por sinal — acrescentou ele, quase como se uma ideia tivesse acabado de lhe surgir —, quando finalmente pegarem o desgraçado graças ao seu trabalho pesado, não vão sequer convidá-los pra festa.”
O silêncio era tão intenso que Tony conseguia escutar o barulhinho do tabaco queimando enquanto Leon tragava. Ele se levantou e tirou da testa o cabelo preto ondulado.
— Vocês talvez achem que estou exagerando. Acreditem em mim, não contei nem um décimo sobre o quanto este serviço vai fazer com que se sintam mal. Se não acreditam que é pra vocês, se estão em dúvida sobre a decisão que tomaram, a hora de ir embora é agora. Ninguém reprovará vocês. Onde não há culpa, não há vergonha. É só dar uma palavrinha com o comandante Bishop. — Ele olhou para o relógio. — Coffee break. Dez minutos.
Pegou sua pasta e, de propósito, não olhou para eles enquanto empurravam cadeiras e seguiam desanimadamente até a porta e à área do café na maior das três salas que lhes haviam sido cedidas, a contragosto, por uma força policial carente de acomodações para seu próprio pessoal. Quando, por fim, levantou o olhar, Shaz Bowman estava de pé encostada na parede ao lado da porta, aguardando.
— Pensando melhor, Sharon? — perguntou ele.
— Odeio que me chamem de Sharon — retorquiu ela. — As pessoas que querem uma resposta preferem Shaz. Só queria dizer que não são só os criadores de perfis que são tratados como bosta. Nada do que você acabou de falar parece pior do que aquilo com que as mulheres têm que lidar neste trabalho.
— Foi o que me disseram — concordou Tony, pensando inevitavelmente em Carol Jordan. — Se isso é verdade, vocês terão uma vantagem inicial neste jogo.
Shaz abriu um sorriso e desencostou da parede, satisfeita.
— É só você ficar de olho — disse ela, dando meia-volta e passando pela porta com tanta flexibilidade quanto a de um gato selvagem.
Jacko Vance se inclinou sobre a mesa frágil e franziu a testa. Apontou para agenda de mesa.
— Você viu, Bill? Já me colocaram pra correr a meia maratona no sábado. E, depois disso, vou filmar na segunda e na terça, vou cobrir a inauguração de uma boate em Lincoln na terça à noite. Você, a propósito, vai estar lá também, não vai?
Bill confirmou com um gesto de cabeça e Jacko continuou:
— Tenho uma reunião atrás da outra na quarta-feira e terei que voltar dirigindo pra Northumberland por causa do trabalho voluntário. Simplesmente não sei como podemos encaixá-lo.
Jogou-se, suspirando, de costas no desconfortável sofá de tweed listrado do trailer da produção.
— Essa é a questão, Jacko — disse, com calma, o seu produtor, misturando leite desnatado em dois cafés que fazia na área da cozinha. Bill Ritchie produzia Vance Visita há tempo suficiente para saber que não fazia muito sentido tentar mudar a cabeça da sua estrela uma vez que ela já tivesse tomado sua decisão. Mas, dessa vez, ele estava sofrendo pressão suficiente dos seus chefes para que tentasse. — Esse documentário de curta metragem vai supostamente fazer com que você pareça ocupado, vai dizer “Aqui está este sujeito maravilhoso que, mesmo com uma vida profissional atarefada, ele encontra tempo para trabalhar para a caridade, então por que você não pode fazer a mesma coisa?”
Ele colocou os cafés na mesa.
— Desculpa, Bill, mas estou fora. — Jacko pegou seu café, e se horrorizou com o calor escaldante. De maneira afobada, colocou-o novamente na mesa. — Quando a gente vai ter uma cafeteira que funcione direito aqui?
— Se depender de mim, nunca — disse Bill, com um fingido olhar sério. — O café péssimo é a única coisa que garante que você se distraia de suas reclamações.
Jacko balançou a cabeça pesarosamente, admitindo que fora encurralado.
— Ok. Só que mesmo assim não vou fazer. Pra começar, não quero juntar uma equipe de filmagem no meu pé além de tudo o que já tenho que fazer. Em segundo lugar, não faço caridade para me exibir em maratonas televisivas de horário nobre para arrecadação de fundos. Em terceiro lugar, os coitados arruinados com quem passo minhas noites são doentes em estado terminal que não precisam de uma câmera enfiada nas suas gargantas macilentas. Vou fazer com prazer outra coisa pra esses programas de arrecadação de fundos, quem sabe alguma coisa com a Micky, mas não vou deixar que as pessoas com quem trabalho sejam exploradas só para que a gente angarie uma grana a mais por causa do sentimento de culpa dos espectadores.
Bill espalmou as mãos em sinal de derrota e falou:
— Por mim, tudo bem. Vai falar com eles ou falo eu?
— Você faz isso, Bill? Me poupa o aborrecimento? — O sorriso de Jacko era brilhante como um raio de sol atravessando uma nuvem de tempestade, cheio de promessas, como aquele antes de um primeiro encontro. Ele estava gravado na mente de seu público como uma memória genética. Mulheres faziam amor com seus maridos com mais desejo porque, por dentro das suas pálpebras, o que centelhava era o convite sexual dos olhos de Jacko, além da sua boca que pedia para ser beijada. Garotas adolescentes repentinamente encontravam o foco para seus vagos desejos eróticos. Senhoras idosas eram loucas por ele sem se dar conta dos subsequentes sentimentos de frustração.
Os homens também gostavam dele, mas não porque o achavam sexy. Homens gostavam de Jacko Vance porque ele era, apesar de tudo, praticamente um amigo do grupo. Medalhista de ouro britânico, membro da Commonwealth e, além disso, detentor do recorde mundial de arremesso de dardo e inevitável queridinho dos cadernos esportivos dos jornais. Então, numa noite, voltando de um treino de atletismo em Gateshead, entrou com o carro em um denso nevoeiro na rodovia A1. Não foi o único.
Jornais matinais relataram um número entre 27 e 35 veículos envolvidos no engavetamento. A história em destaque, entretanto, não era a dos seis mortos. O grande destaque foi para o trágico heroísmo de Jacko Vance, o garoto de ouro inglês. Apesar das lacerações múltiplas e de ter quebrado três costelas no impacto inicial, Jacko saiu engatinhando de seu automóvel destroçado e resgatou duas crianças da parte de trás de um carro segundos antes de ele se incendiar. Depois de colocá-las no acostamento, voltou até o amontoado de metal retorcido e tentou libertar um caminhoneiro preso entre o volante e a porta amassada da cabine.
O ranger do metal tensionado se transformou em um berro quando a pressão acumulada aumentou sobre o caminhoneiro e o teto desmoronou. O motorista não teve chance de escapar. Nem o braço que Jacko Vance usava para arremessar. O bombeiro levou três agônicas horas para libertá-lo do peso esmagador do metal, que reduziu seu tecido muscular a carne crua e seus ossos a estilhaços. Pior, Vance estava consciente durante a maior parte do tempo. Atletas treinados eram especialistas em lidar com a barreira imposta pela dor.
A notícia sobre a medalha George Cross chegou um dia depois dos médicos encaixarem sua primeira prótese. Uma pequena compensação pela perda do sonho que havia sido o centro da sua vida por mais de dez anos. Mas a amargura não obscureceu sua perspicácia natural. Sabia o quanto a mídia podia ser volúvel. Ainda sofria com a memória das manchetes quando arruinou sua primeira tentativa de conquistar o título europeu. JACK, O VACILÃO! fora a mais gentil punhalada no coração do homem que, no dia anterior, havia sido JACK, NOSSA GRANDE CARTADA.
Ele sabia que tinha que tirar proveito da sua glória com rapidez ou em breve seria mais um herói esquecido, que rapidamente serviria apenas para matérias do tipo “Por onde eles andam?” Então cobrou alguns favores, renovou seu contato com Bill Ritchie e acabou como comentarista das Olimpíadas em que deveria estar subindo no pódio. Fora um começo. Simultaneamente, esforçou-se para consolidar sua reputação como sujeito que trabalhava incansavelmente para a caridade, um homem que jamais deixaria sua fama interferir na ajuda que fornecia aos menos afortunados.
Agora, era maior do que todos os idiotas que se dispuseram com tanto afinco a derrubá-lo. Com seu charme e lábia, abriu caminho até o topo do ranking dos apresentadores esportivos, colocando em prática uma operação que consistia em derrubar e queimar, alicerçada em uma malícia tão brutal que algumas das vítimas ainda não se deram conta de que tinham sido prejudicadas. Assim que consolidara esse papel, apresentou um programa de entrevistas que ficou no topo do índice de audiência do entretenimento light durante três anos. Quando, no quarto ano, caiu para o terceiro lugar, livrou-se do formato e lançou Vance Visita.
Programa esse que alegava ser espontâneo. Na verdade, a chegada de Jacko no meio do que sua publicidade chamava de “pessoas comuns vivendo vidas comuns” era invariavelmente orquestrado com todo o planejamento que antecede uma visita da realeza, porém sem nenhuma daquela publicidade que a acompanha. Caso contrário, ele atrairia multidões maiores do qualquer um dos desacreditados da Casa de Windsor. Especialmente se aparecesse com a esposa.
E ainda não era o suficiente.
Carol comprou os cafés. Era um privilégio da patente. Decidiu não torrar grana com biscoitos de chocolate confiando no fato de que ninguém precisava de três Kit Kats para enfrentar uma reunião com o seu detetive inspetor-chefe. Mas sabia que seria mal interpretada, então sorriu e assumiu a despesa. Levou a tropa que escolhera com cautela para um canto tranquilo separado do resto da cantina ao lado de uma fileira de palmeiras de plástico. O sargento Tommy Taylor, o detetive Lee Whitbread e a detetive Di Earnshaw a haviam impressionado pela inteligência e determinação. O futuro podia lhe mostrar que estava errada, mas esses três policiais eram a sua aposta pessoal para a central de Seaford do Departamento de Investigação Criminal.
— Não vou fingir que isto aqui é um bate-papo informal pra que a gente se conheça melhor — anunciou ela, distribuindo os chocolates. Di Earnshaw a observou com seus olhos que pareciam cerejas em uma torta de Natal e odiou o jeito como sua nova chefe conseguia ficar elegante em um terninho de linho mais amarrotado que roupa de sem-teto, enquanto ela estava horrorosa na sua camisa e jaqueta de loja de departamento perfeitamente bem-passadas.
— Graças a Deus por isso — disse Tommy, abrindo devagar um sorriso malicioso. — Estava começando a ficar preocupado com a possibilidade de termos uma chefe que não entende a importância de uma Tetley’s Bitter pra boa condução de um Departamento de Investigação Criminal.
Em resposta, Carol deu um sorriso irônico e disse:
— Foi de Bradfield que vim, lembra?
— Por isso mesmo que a gente estava preocupado, senhora — respondeu Tommy.
Lee bufou ao reprimir uma gargalhada, transformou-a em tosse e balbuciou:­ — Sinto muito, senhora.
— Você vai sentir — disse Carol de maneira amigável. — Tenho uma tarefa pra vocês três. Venho dando uma boa olhada nos relatórios noturnos desde que cheguei aqui, e estou um pouco preocupada com a alta incidência de incêndios sem explicação na nossa área. Identifiquei cinco incêndios que podem ter sido criminosos no último mês e, quando confirmei com alguns policiais, descobri que houve mais uma meia-dúzia que também estão sem explicação.
— Sempre acontece esse tipo de coisa nas docas — comentou Tommy, levantando despreocupadamente seus ombros grandes cobertos por um blusão largo de seda que saíra de moda alguns anos antes.
— Percebi isso, mas estou me perguntando se não há alguma coisa além disso. Concordo, é claro, que uma ou outra labaredazinha são vacilos rotineiros, mas estou imaginando se não há outra coisa acontecendo aqui.
Carol deixou aquilo pairando para ver quem ia falar primeiro.
— Um incendiário, é disso que a senhora está falando? — Era de Di Earnshaw a voz agradável, mas a expressão beirava a insolência.
— Um incendiário serial, sim.
Houve um silêncio momentâneo. Carol concluiu que sabia o que eles estavam pensando. A força de East Yorkshire podia até ser uma corporação nova, mas aqueles policiais tinham trabalhando naquela área sob o regime antigo. Sacavam o esquema, enquanto ela era a garotinha nova na cidade desesperada para se destacar às custas deles. E eles não tinham certeza se cooperavam com ela ou se a sabotavam. De alguma maneira, ela tinha que persuadi-los a entender que era nela que eles deviam colar se quisessem se dar bem.
— Há um padrão — disse ela. — Lojas vazias, primeiras horas da manhã. Escolas, estabelecimentos da indústria leve, depósitos. Nada muito impactante, nenhum lugar em que haja um vigilante noturno capaz de acabar com a brincadeira. Mas sérios. Grandes incêndios, todos eles. Causaram muitos estragos e as empresas de seguro devem estar tomando mais prejuízo do que gostariam.
— Só que ninguém falou nada sobre incendiários durante a confusão. — Tommy comentou calmamente. — Geralmente o bombeiro dá um toque pra gente se tem alguma coisa um pouquinho estranha rolando.
— Ou isso, ou o jornal local dá pra gente uma dor de cabeça daquelas — comentou Lee fazendo com que sua voz atravessasse o segundo Kit Kat que enchia a sua boca. Magro que nem um cão galgo, apesar dos biscoitos e dos três torrões de açúcar no café, Carol notou. Era bom ficar de olho nele por causa de hiperatividade nervosa.
— Podem me chamar de enjoada, mas prefiro isso enquanto montamos o nosso plano de trabalho do que jornalistas enxeridos ou bombeiros — afirmou Carol, com frieza. — Incêndio criminoso não é um delitozinho qualquer que pode ser feito nas coxas. Assim como assassinato, ele tem consequências terríveis. E, assim como assassinato, existe um monte de motivos. Fraude, destruição de provas, eliminação da concorrência, vingança e ocultação, isso na ponta “lógica” do espectro. Na ponta fodida, temos aqueles que fazem isso de onda ou por gratificação sexual. Como serial killers, eles quase sempre têm uma lógica interna própria e a confundem com algo que faz sentido para o restante de nós.
“Felizmente, pra nós, assassinatos em série são muito menos comuns do que incêndios criminosos em série. As seguradoras calculam que um quarto de todos os incêndios no Reino Unido foram iniciados de propósito. Imaginem se um quarto das mortes fossem assassinatos.”
Taylor parecia entediado. Lee Whitbread a encarava inexpressivamente, a mão quase chegando ao maço de cigarros em frente a ele. Di Earnshaw era a única que parecia interessada em fazer alguma contribuição, — Ouvi falar que a incidência de incêndios criminosos é um índice de prosperidade econômica de um país. Quanto mais incêndios criminosos, pior a economia está. Bom, a gente tem muito desemprego por aqui — comentou ela, com o tom de alguém que esperava ser ignorado.
— E isso é algo que não podemos esquecer — alertou Carol, aprovando o comentário com um gesto de cabeça. — Então, isto é o que eu quero. Um arrastão cuidadoso nos relatórios do período noturno do Departamento de Investigação Criminal e nos feitos pelos policiais das delegacias dos últimos seis meses, para ver o que descobrimos. Quero que as vítimas sejam interrogadas novamente para verificarmos se há algum fator comum óbvio, como a mesma companhia de seguros. Façam a distribuição entre vocês. Vou conversar com o comandante dos bombeiros antes de nós quatro nos reencontrarmos em... digamos, três dias? Ótimo. Alguma pergunta?
— Eu podia falar com o comandante dos bombeiros, senhora — disse Di Earnshaw com ansiedade. — Já tive que lidar com ele antes.
— Obrigada por se oferecer, Di, mas, quanto mais cedo eu fizer esse contato, mais satisfeita vou ficar.
Os lábios de Di Earnshaw pareceram se retrair em sinal de desaprovação, mas ela praticamente não movimentou a cabeça.
— Você quer que a gente largue os nossos outros casos? — perguntou Tommy.
Carol deu um sorriso mais afiado do que picador de gelo. Ela nunca foi muito com a cara de oportunistas.
— Ah, por favor, sargento — suspirou ela. — Sei a quantidade de casos em que está trabalhando. Como disse no começo desta conversa, foi de Bradfield que vim. Seaford pode não ser uma cidade grande, mas não é motivo para operarmos com passo de guardinha de vilarejo.
Ela se levantou, absorvendo o choque no rosto deles.
— Não vim pra cá pra me desentender com as pessoas. Mas vou fazer isso se for preciso. Se acham que sou uma pessoa difícil de se trabalhar, acertaram. Não importa o quanto vocês trabalhem pesado, vou acompanhar. Quero que sejamos uma equipe. E temos que jogar com as minhas regras.
E foi embora. Tommy Taylor esfregou o maxilar e disse:
— Ainda acha que ela é comível, Lee?
Earnshaw franziu sua boca fina e disse:
— Não, a menos que você goste de cantar em falsete.
— Não acho que você vai ter muita vontade de cantar — comentou Lee. — Alguém vai querer o último Kit Kat?
Shaz esfregou os olhos e os desviou da tela do computador. Fora trabalhar cedo para que pudesse revisar rapidamente o que aprendera sobre o software nos dias anteriores. Encontrar Tony em um dos outros terminais fora um bônus. Ele se espantou ao vê-la passar pela porta logo depois das sete.
— Achei que fosse o único workaholic insone por aqui.
— Sou uma merda com computador — disse ela de maneira um pouco brusca, tentando encobrir sua satisfação em tê-lo apenas para si. — Sempre precisei trabalhar em dobro pra conseguir avançar.
As sobrancelhas de Tony pularam. Policiais geralmente não admitiam fraquezas para alguém que não faz parte da corporação. Shaz Bowman era ainda mais incomum do que avaliara inicialmente, ou então ele estava finalmente perdendo seu status de alienígena.
— Achava que todo mundo com menos de trinta anos fosse expert nessas coisas — comentou Tony delicadamente.
— Lamento te desapontar. Na hora da distribuição de habilidades eu não saí pra buscar a minha — respondeu Shaz. Ela se ajeitou em frente à tela e enrolou as mangas da blusa de algodão. — Primeiro se lembre da sua senha — murmurou, imaginando o que ele achava dela.
Duas forças fervilhavam sob a calma superfície de Shaz Bowman, alternando-se para tomar as rédeas. Por um lado, o medo de fracassar a corroía, minando tudo o que era e tudo o que alcançara. Quando olhava no espelho, nunca via seus pontos fortes, apenas a finura de seus lábios e a falta de definição do seu nariz. Quando reavaliava suas realizações, via apenas onde falhara, os níveis que não conseguira escalar. A força oposta era a sua ambição. De alguma maneira, desde quando começara a formular as ambições que a conduziam, tais objetivos restauravam sua deteriorada autoconfiança e continham suas vulnerabilidades antes que elas a aleijassem. Quando sua ambição ameaçava torná-la alguém arrogante, de alguma maneira o medo entrava em ação, mantendo-a humana.
A criação da força-tarefa coincidira de maneira tão perfeita com o rumo dos seus sonhos que ela não podia deixar de sentir a mão do destino naquilo. Isso não significava, contudo, que podia relaxar. O plano de longo prazo de Shaz para a sua carreira era brilhar mais do que qualquer um na força-tarefa. Uma das suas táticas para atingir isso era esmiuçar o cérebro de Tony Hill como um chaveiro profissional, extraindo todas as lascas de conhecimento que conseguisse vasculhar ali enquanto, simultaneamente, rastejaria para dentro das suas defesas para que, quando precisasse da sua ajuda, ele estivesse pronto para fornecê-la. Como parte da abordagem, e porque estava com muito medo de, sem fazer isso, ficar para trás e fazer papel de boba em um grupo em que estava convencida de que todos os integrantes eram melhores do que ela, Shaz voltava secretamente a todas as aulas em grupo para escutá-las repetidamente sempre que podia. E, naquele momento, a sorte deixou uma oportunidade extra no colo dela.
Então Shaz franziu as sobrancelhas, olhou para a tela, percorreu todo o caminho que envolvia o longo processo de preencher um relatório criminal e depois ativar a comparação dele com os detalhes dos crimes anteriores arquivados nos bancos de memória do computador. Quando Tony escapuliu da sua cadeira, ela registrou vagamente o movimento, mas se forçou a continuar trabalhando. A última coisa que queria era que ele pensasse que ela estava se insinuando.
A intensidade da concentração que se impôs foi suficiente para que não notasse quando ele entrou pela porta atrás da mesa dela, até seu subconsciente registrar um tênue aroma masculino que identificou como dele. Foi necessária toda a sua força de vontade para não reagir. Em vez disso, continuou atacando as teclas até que a mão dele surgiu na beirada da sua visão periférica e colocou um copo de café com um folhado ao lado dela na mesa.
— Hora de fazer uma pausa?
Só então ela esfregou os olhos e abandonou a tela.
— Obrigada.
— De nada. Tem dúvida em alguma coisa? Posso te ajudar, se quiser.
Continuou a se conter. Não se agarre a isso, advertiu a si mesma. Não queria gastar seu crédito com Tony Hill até que fosse totalmente necessário, e era preferível que isso não acontecesse antes que ela fosse capaz de oferecer algo útil em troca.
— Não é que não o entenda. É que não confio nele.
Tony sorriu, apreciando a teimosia defensiva dela.
— Você é um desses jovens que demandam provas empíricas de que dois mais dois são quatro?
Uma pontada de prazer por tê-lo entretido foi rapidamente reprimida. Shaz pôs o folhado de lado e tomou o café.
— Sempre fui apaixonada por provas. Por que acha que virei policial?
Tony deu um sorriso torto e sagaz.
— Eu poderia especular. Você ter escolhido este lugar aqui é quase um campo de provas.
— Na verdade, não. O campo já foi violado. Americanos têm feito isso por tanto tempo que não têm só manuais, têm filmes sobre isso. Vamos levar uma eternidade pra compreender tudo, como de costume. Mas você é uma das pessoas que tocou no assunto, então não resta mais nada pra gente provar. — Shaz deu uma mordida enorme no folhado e gesticulou com a cabeça, aprovando-o silenciosamente enquanto saboreava a cobertura de damasco sobre a massa.
— Você não vai acreditar — disse Tony ironicamente, voltando para o seu terminal. — A reação adversa está só começando. Demorou tempo demais pra fazer com que a polícia aceitasse que podemos fornecer ajuda útil. Os jornalistas pilantras que estavam nos tratando como deuses há uns dois anos agora caem matando em todas as nossas deficiências. Eles nos enalteceram exageradamente e agora nos culpam por não correspondermos a uma série de expectativas que eles mesmos criaram.
— Eu não sei — disse Shaz. — O público só se lembra dos grandes sucessos. Daquele caso em Bradfield que você solucionou no ano passado. O perfil estava certíssimo. A polícia sabia exatamente onde procurar quando o bicho pegou de verdade.
Desatenta em relação ao gelo que se formara no rosto de Tony, Shaz continuou com entusiasmo:
— Você vai fazer uma aula sobre ele. Ouvimos a versão boca a boca, mas não há praticamente nada na literatura, mesmo que seja óbvio que você tenha feito um compêndio sobre o perfil.
— Não vamos cobrir esse caso — informou ele, categoricamente.
Shaz levantou a cabeça de uma vez e se deu conta de onde a sua impetuosidade a levara. Tinha estragado tudo, sem dúvida.
— Desculpa — disse, em voz baixa. — Me deixei levar pelo entusiasmo e acabou que o tato e a diplomacia viraram fumaça. Eu não estava ­pensando.
Que anta, repreendeu-se severamente em silêncio. Se fizera a terapia necessária depois daquele pesadelo pessoal, a última coisa que ia querer seria expor os detalhes para evitar prurido, mesmo que aquilo estivesse mascarado de interesse científico legítimo.
— Não precisa pedir desculpas, Shaz — disse Tony com um tom cansado. — Você tem razão, é um caso-chave. O motivo pelo qual não vamos usá-lo é porque não consigo falar dele sem me sentir uma aberração. Todos vocês terão que me desculpar. Talvez um dia peguem um caso que os leve a se sentirem da mesma maneira. Para o bem de todos vocês, espero que não. — Ele baixou o olhar para o folhado como se este fosse um artefato alienígena e o empurrou para o lado; seu apetite estava morto, assim como deveria estar o seu passado.
Shaz desejou poder rebobinar a fita, retomar a conversa a partir do momento em que ele colocou o café na mesa dela e ainda havia a possibilidade de usar o momento para estreitar o relacionamento.
— Lamento muito, dr. Hill — desculpou-se inadequadamente.
Ele levantou o olhar e forçou um sorriso delgado.
— É sério, Shaz, não há necessidade. Podemos deixar de lado esse negócio de “dr. Hill”? Queria ter comentado isso no seminário de ontem, mas escapou da minha memória. Não quero que fiquem achando que sou o professor e vocês, a classe. Neste momento, sou o líder do grupo simplesmente porque faço isso há algum tempo. Depois de um curto período, estaremos trabalhando lado a lado, e não há porque termos barreiras entre nós. Então é Tony daqui pra frente, ok?
— Beleza, Tony.
Shaz procurou uma mensagem em seus olhos e nas suas palavras e, satisfeita por eles conterem um perdão genuíno, devorou o resto do folhado e voltou a se concentrar na tela. Era impossível fazer o que queria com ele ali, mas, na próxima vez que estivesse na sala dos computadores sozinha, pretendia entrar na internet, acessar os arquivos com os jornais e examinar todas as reportagens sobre o caso do serial killer de Bradfield. Ela lera a maioria na época, mas isso foi antes de conhecer o dr. Tony Hill e tudo tinha mudado. Agora, ela tinha um interesse especial. Ao terminar, saberia o suficiente sobre o mais público dos perfis de Tony Hill a ponto de poder escrever o livro que, por razões que ainda não conseguia entender, nunca fora escrito.
Afinal de contas, ela era uma detetive, não era?
Carol Jordan lutava com a complicada cafeteira cromada, um presente de casa nova dado por seu irmão Michael quando mudara para Seaford. Tivera mais sorte do que a maioria das pessoas pega pela crise no mercado imobiliário. Não precisara de muito esforço para encontrar um comprador para a sua metade do apartamento que dividia com o irmão; o advogado com quem ele vinha recentemente dividindo o quarto estava tão ávido para comprar a parte dela que Carol pensou que segurou muito mais vela do que imaginava.
Agora ela morava em uma casa de pedra ao lado de uma colina que se elevava acima do estuário quase exatamente oposto a Seaford; um lugar só dela. Quase, corrigiu-se, quando um crânio duro começou a dar cabeçadas em sua bochecha.
— Tá bom, Nelson — disse, curvando-se para acarinhar a parte de trás das orelhas do gato. — Estou te ouvindo.
Enquanto o café ficava pronto, encheu a tigela de comida de gato, gerando um ronronar seguido do som molhado de Nelson ingerindo o café da manhã. Andou até a sala para apreciar a vista do estuário com o arco de improvável fragilidade da ponte suspensa. Olhando para o outro lado do rio enevoado, para onde a ponte parecia flutuar sem conexão com a terra, ela planejava o encontro com o comandante dos bombeiros. Nelson entrou e, com o rabo ereto, pulou de uma vez no parapeito da janela, onde se espreguiçou, arqueando a cabeça na direção de Carol, demandando carinho. Carol passou as mãos pelo denso pelo e disse:
— Só tenho uma chance de convencer esse cara de que sei alguma merda sobre esse tipo de coisa, Nelson. Preciso dele do meu lado. Deus sabe que preciso de alguém do meu lado.
Nelson bateu na mão dela com a pata como se respondesse às palavras dela. Carol bebeu o resto do café e se levantou em um movimento tão suave quanto o do gato. Uma das vantagens da carga horária como detetive inspetor-chefe que rapidamente descobrira foi a de que conseguia ir à academia mais de uma vez por mês, e já sentia os benefícios de uma musculatura mais firme e um condicionamento aeróbico melhor. Seria recompensador ter alguém com quem compartilhar isso, mas não era esse o motivo pelo qual malhava. Fazia isso por ela mesma, porque a fazia se sentir bem. Orgulhava-se do seu corpo e estava satisfeita com sua força e mobilidade.
Uma hora depois, tolerando o tour pelo corpo de bombeiros, sentia-se feliz pelo seu condicionamento ao se esforçar para acompanhar o passo das pernas longas do chefe das operações locais, Jim Pendlebury.
— Parece que vocês são bem mais organizados aqui do que o Departamento de Investigação Criminal — disse Carol, quando finalmente chegaram à sala dele. — Vai ter que revelar o segredo da eficiência.
— Tivemos tanta redução de custos que tivemos que otimizar tudo o que fazemos — contou a ela. — Costumávamos ter todas as nossas unidades guarnecidas ininterruptamente com bombeiros, o que, em termos de custo, não era eficaz. Sei que muitos dos rapazes se queixaram, mas há alguns anos alteramos para uma mescla de bombeiros que trabalham meio expediente e em período integral. Foram necessários alguns meses para colocarmos isso em prática, mas tem sido uma enorme vantagem em termos de gestão.
Carol fez uma careta.
— Não é uma solução que funcionaria pra nós.
Pendlebury deu de ombros.
— Não sei. Você poderia ter um grupo principal de funcionários para lidar com as coisas rotineiras e um esquadrão especial para usar quando necessário.
— Isso é mais ou menos o que já temos — comentou ela, secamente. — O grupo principal de funcionários é chamado de turno da noite e o esquadrão especial são as equipes diurnas. Infelizmente, as coisas nunca ficam suficientemente tranquilas para que possamos abdicar de alguma delas.
Parte da mente de Carol traçava um perfil mental do comandante dos bombeiros enquanto falavam. Durante a conversa, suas sobrancelhas retas e escuras ondulavam e salientavam acima dos seus olhos azul-acinzentados. Considerando o tempo que ele passava com a bunda na cadeira atrás de uma mesa, sua pele era surpreendentemente castigada pelo clima, as rugas ao redor dos olhos se mostravam brancas quando não estava sorrindo ou franzindo a testa. Provavelmente um navegador ou pescador de fim de semana. Quando inclinou a cabeça para validar algo que falara, Carol pôde ver alguns fios grisalhos se destacando nos seus cachos escuros. Provavelmente tinha passado dos trinta há alguns bons anos, pensou, revendo sua estimativa inicial. Ela tinha o hábito de basear as análises dos novos conhecidos em como as descrições deles apareceriam em um boletim policial. Na verdade, nunca tivera que fazer um retrato falado de alguém que tivesse encontrado, mas tinha confiança de que sua prática teria feito dela a melhor de todas as testemunhas possíveis para um desenhista da polícia.
— Agora que você viu a operação, creio que esteja um pouco mais tendenciosa a aceitar que, quando dizemos que um incêndio é criminoso, não estamos falando bobagem.
O tom de Pendlebury era leve, mas seus olhos a desafiavam.
— Nunca duvidei do que estavam nos falando — disse ela, com calma. —­ Minha dúvida é se nós estamos encarando isso com a seriedade que deveríamos.
Ela destrancou a sua maleta e retirou a pasta.
— Eu gostaria de examinar os detalhes desses incidentes com você, caso tenha tempo para fazer isso comigo.
Ele inclinou a cabeça e indagou:
— Você está falando o que eu acho que está falando?
— Agora que vi a maneira como conduz sua operação, não posso acreditar que a ideia de um incendiário em série ainda não tenha passado pela sua cabeça.
Ele deu uma puxada no lóbulo de uma orelha, ponderando. Por fim, disse:
— Estava me perguntando quando é que algum de vocês perceberia.
Carol soltou o ar com força pelo nariz.
— Teria sido útil se tivessem nos dado uma cutucada na direção certa. Vocês são os especialistas, afinal de contas.
— O seu antecessor não pensava assim — revelou Pendlebury. Ele podia estar fazendo um comentário até mesmo sobre o preço do peixe, pois todo o entusiasmo que demostrara antes por seu trabalho desapareceu por trás de uma máscara impassível, deixando que Carol tirasse suas próprias conclusões. E elas desenhavam um cenário não muito bonito.
Colocou a pasta na mesa de Pendlebury e abriu-a.
— Isso era antes. Passado é passado. Vamos tratar do agora. Está me dizendo que tem incêndios criminosos anteriores a este aqui?
Ele olhou para a folha de cima na pasta e bufou.
— Quer começar quanto tempo atrás?
Tony Hill se sentou sozinho à mesa, preparando-se para o seminário do dia seguinte com os policiais da força-tarefa. Seus pensamentos, porém, vagavam bem longe desses detalhes. Pensava nas mentes psicopatas à solta e definia a natureza dos que causariam dor e miséria a pessoas que sequer conheciam ainda.
Há muito tempo existia uma teoria entre os psicólogos que desconsiderava a existência da maldade e que atribuía os piores excessos da maioria dos sociopatas sequestradores, torturadores e assassinos a uma série de circunstâncias e acontecimentos interconectados no passado deles, que culminava em um evento carregado de estresse que os catapultava para um estado de descontrole em relação ao que a sociedade civilizada tolerava. Isso, entretanto, não satisfazia inteiramente Tony. A teoria requeria que se perguntasse por que algumas pessoas com históricos quase idênticos de abuso e privação não se tornavam psicopatas, mas tinham vidas proveitosas e produtivas, integradas à sociedade.
Agora os cientistas falavam sobre resposta genética, uma fratura no código do DNA que poderia explicar tal divergência. De certa maneira, Tony achava essa resposta conveniente demais. Parecia uma desculpa, assim como a antiquada noção de que alguns homens eram simplesmente maus e pronto. Ela se esquivava da responsabilidade de uma maneira que ele achava repugnante.
Era um problema que sempre encontrava uma ressonância particular nele. Tony sabia a razão pela qual era tão bom no que fazia. Era porque aproveitava muitas das pegadas que suas presas deixavam ao percorrer seus próprios caminhos. Mas sempre alcançava o ponto em que nunca conseguia identificar que tinha chegado a uma bifurcação. Onde se tornavam caçadores primários, ele era um caçador secundário e os perseguia assim que ultrapassavam o limite. Porém, a vida de Tony ainda carregava os ecos das deles. As fantasias que os conduziam eram sobre sexo e morte; já as dele sobre sexo e morte eram chamadas de criação de perfil. Era de arrepiar o quanto eram parecidas.
Para Tony, às vezes parecia um problema como o do ovo e da galinha. Sua impotência começou porque temia que a desacorrentada expressão da sexualidade pudesse levá-lo à violência e à morte? Ou o conhecimento sobre a frequência com que o impulso sexual levava ao assassinato agiu em seu corpo para torná-lo sexualmente incapaz? Duvidava que algum dia saberia. Independentemente do sentido da trajetória nesse circuito, era inegável que o trabalho afetara profundamente a sua vida.
Sem razão aparente, recordou-se da centelha de entusiasmo descomplicado que via nos olhos de Shaz Bowman. Ele se lembrava de se sentir dessa maneira também, mas isso foi antes da fascinação ser mitigada pela exposição aos horrores que os humanos podiam infligir uns aos outros. Talvez pudesse usar o que sabia para dar à sua equipe uma armadura melhor do que a dele. Se não atingisse nada mais, só isso já valeria a pena.
Em outra parte da cidade, Shaz apertou o botão do mouse e fechou o software. Em piloto automático, desligou o computador e olhou para a tela que escurecia, mas a mente estava longe. Quando decidira que sua primeira estratégia seria explorar as fontes da internet para exumar o passado de Tony Hill, esperava se deparar com um punhado de referências e, se tivesse sorte, uma série de recortes em algum arquivo de jornal.
Em vez disso, quando digitou as palavras-chave “Tony, Hill, Bradfield, assassino” na ferramenta de busca, chocou-se com um tesouro obscuro de referências ao caso que colocara o rosto dele nas primeiras páginas um ano antes. Havia um punhado pavoroso de sites totalmente devotados a serial killers que mencionavam o famoso caso. Além disso, jornalistas e comentaristas haviam postado artigos sobre aquele caso específico em seus sites pessoais. Havia até mesmo uma galeria de vilões, uma montagem de fotografias dos rostos dos mais notórios serial killers do mundo. O alvo de Tony, chamado de Assassino de Bonecas, era retratado de mais de uma maneira na bizarra exposição.
Shaz fizera o download de tudo que conseguiu encontrar e passara o resto da noite lendo. O que começara como um exercício acadêmico para descobrir o que motivava Tony Hill a deixara com o coração apertado.
Os fatos não estavam em discussão. Os corpos nus de quatro homens foram largados em áreas gays de Bradfield. As vítimas tinham sido torturadas antes de morrer com uma crueldade que ia quase além da compreensão. Depois da morte, haviam sido mutiladas sexualmente, lavadas e abandonadas como lixo.
Como último recurso, Tony fora contratado como consultor e trabalhara com a detetive-inspetora Carol Jordan para desenvolver o perfil. Estavam se aproximando do alvo quando o caçador virou a caça. O assassino queria Tony para um sacrifício humano. Capturado e amarrado, ele estava prestes a se tornar a vítima número cinco, com os mecanismos de tortura prontos e seu corpo berrando de dor. Fora salvo no último segundo, não pela chegada da cavalaria, mas pelas próprias habilidades verbais, afiadas por anos de trabalho com criminosos mentalmente perturbados. Para salvar sua vida, teve que matar seu captor.
À medida que lia, o coração de Shaz se enchia de horror e os olhos, de lágrimas. Amaldiçoada com imaginação suficiente para criar uma imagem mental do inferno vivido por Tony Hill, foi tragada para dento do pesadelo daquele confronto final em que os papéis de assassino e vítima estavam invertidos de maneira irrevogável. O cenário a fez estremecer de medo e pavor.
Como Tony conseguiu voltar a viver depois daquilo? Ela ficou admirada. Como dormia? Como conseguia fechar os olhos e não ser assaltado por imagens além da imaginação e da tolerância da maioria das pessoas? Não era de se estranhar que não estivesse preparado para usar o próprio passado para lhes ensinar a lidar com seus futuros. Era um milagre que ainda estivesse disposto a executar um trabalho que deve tê-lo levado à beira da loucura.
E como ela teria enfrentado aquilo se estivesse no lugar dele? Shaz tampou o rosto com as mãos e, pela primeira vez desde que ouvira falar da força-tarefa, se questionou se não teria cometido um erro terrível.
Betsy preparou um drinque para a jornalista. Pegou pesado no gin, leve na tônica, e completou com um pedacinho de limão espremido para que o azedo cortasse a doçura oleosa do gin e disfarçasse sua potência. A insistência de Betsy para que não confiassem em ninguém fora do trio que mantinha o seu segredo era uma das principais razões pelas quais a imagem de Micky sobrevivera intocada por escândalos. Suzy Joseph podia ser toda sorriso e charme, encher a arejada sala com o brilho do seu riso e a fumaça dos seus cigarros mentolados, mas era uma jornalista. Ainda que representasse a mais acomodada e bajuladora das revistas de famosos, Betsy sabia que, entre os seus parceiros de copo, havia mais de um jornalista de tabloide safado pronto para enfiar a mão no bolso e conseguir uma bela fofoca. Então a encheriam de bebida. Quando ela fosse sentar para almoçar com Jacko e Micky, sua visão afiada já estaria um pouco comprometida.
Betsy se empoleirou no braço de um sofá, cujas fofas almofadas engolfavam a jornalista de magreza anoréxica. Conseguia facilmente manter os olhos nela dali, enquanto Suzi tinha que fazer uma mudança de posição óbvia e proposital para colocar Betsy na sua linha de visão. Isso também tornava possível que Betsy, sem ser vista, sinalizasse para que Micky tomasse mais cuidado.
— Esta sala é tão adorável — disse Suzy de maneira efusiva. — Tão clara e fresca. Não é sempre que se vê algo com tanto bom gosto, tão elegante, tão... apropriado. E, pode acreditar em mim, já estive em mais mansões de Holland Park do que os corretores imobiliários daqui!
Virou-se desajeitadamente e falou para Betsy, com o mesmo tom que teria usado com um garçom:
— Você se certificou se o pessoal do bufê tem tudo de que precisa?
Betsy confirmou com um gesto de cabeça.
— Tudo sob controle. Ficaram encantados com a cozinha.
— Tenho certeza que ficaram. — Suzy se voltou para Micky e descartou Betsy novamente. — Você mesma projetou a sala de jantar, Micky? É tão estilosa! É muito, muito você! Tão perfeita pra Junket with Joseph. — Ela se inclinou para a frente para apagar o cigarro, e lançou um olhar de desprezo para Betsy que deixou à mostra uma ruga tão profunda que nem bronzeamento artificial nem tratamentos corporais caros poderiam disfarçar inteiramente.
Ser elogiada por seu bom gosto por uma mulher que sem nenhum indício de vergonha usa um arrogante terninho da Moschino vermelho e preto desenhado para alguém vinte anos mais novo e com um corpo completamente diferente era uma felicitação de duplo sentido, Micky pensou. Mas apenas sorriu novamente e disse:
— Na verdade, a maior parte foi inspiração da Betsy. Ela é quem tem bom gosto por aqui. Só lhe digo como quero o ambiente e ela resolve tudo.
O sorriso involuntário de Suzy não continha nenhuma cordialidade. Ele parecia dizer: “outro início desperdiçado; nada aqui que mereça ser citado”. Antes que tentasse novamente, Jacko entrou na sala com seus passos longos, os ombros largos dentro de uma alfaiataria perfeita projetados para a frente, fazendo-o parecer uma formação militar. Ele ignorou o entusiasmo alvoroçado de Suzy e foi direto até Micky, abaixou-se, envolvendo-a com um braço e a aproximando de si, apesar de não beijá-la.
— Querida — disse, com sua voz pública profissional similar ao som de um acorde de violoncelo. — Desculpe pelo atraso.
Virou-se um pouco e se recostou no sofá, brindando Suzy com seu sorriso mais elegante.
— Você deve ser a Suzy — comentou ele. — Estamos entusiasmados por recebê-la aqui hoje.
Suzy ficou iluminada como o Natal.
— Estou entusiasmada por estar aqui. — Deixou escapulir numa voz ofegante que perdia o verniz e revelava o inconfundível sotaque das Midlands Ocidentais que ela se dedicara a enterrar. O efeito que Jacko ainda exercia nas mulheres nunca deixava de surpreender Betsy. Ele podia transformar a mais azeda das vadias em um doce Barsac. Até mesmo o cinismo cansado de Suzy Joseph, uma mulher que se relacionava com celebridades da mesma forma que besouros com esterco, não estava suficientemente blindada contra seu charme. — Não é sempre que a Junket with Joseph me dá a chance de passar um tempo com pessoas que genuinamente admiro — completou ela.
— Obrigado — agradeceu Jacko, todo sorridente. — Betsy, não deveríamos nos dirigir para a sala de jantar?
Ela olhou o relógio.
— Isso seria muito bom — respondeu. — O bufê não vai demorar a ser servido.
Jacko se colocou de pé num pulo e aguardou atenciosamente Micky levantar e se mover em direção à porta. Também conduziu Suzy diante de si, voltando-se para trás e revirando os olhos para Betsy em sinal de terrível tédio. Segurando uma gargalhada, ela os seguiu até a sala de jantar, observou-os se sentarem e os deixou lá. Às vezes havia benefícios claros em não ser o cônjuge oficial, ela pensou, acomodando-se com seu pão e seu queijo para ouvir o programa The World at One, na BBC.
Esse tipo de alívio não existia para Micky, que precisava fingir que nem percebeu o insípido flerte com seu marido. Micky ignorou o tedioso ritual de dança que acontecia ao seu lado e se concentrou em soltar os últimos bocados de lagosta de uma garra.
Uma alteração no tom de Suzy a alertou para o fato de que a conversa mudara de marcha. Hora de trabalhar, Micky se deu conta.
— É claro que li nos jornais como vocês se conheceram.
Suzy falou, segurando a mão verdadeira de Jacko. Ela não teria sido tão rápida para fazer o mesmo com a outra, Micky refletiu, com raiva.
— Mas preciso escutar dos seus lábios.
Então vamos lá, Micky pensou. A primeira parte do relato era sempre dela:
— Nós nos conhecemos no hospital.
Na segunda semana, a equipe inteira já se sentia em casa no escritório da força-tarefa. Não era por acaso que seis dos policiais escolhidos para o esquadrão eram solteiros e livres, de acordo tanto com seus registros quanto com a confirmação de histórico não oficial investigado de cabo a rabo pelo comandante Paul Bishop em cantinas e bares policiais no país. Tony intencio­nalmente queria um grupo de pessoas que, desenraizadas de suas vidas pregressas, seriam colocadas juntas e forçadas a desenvolver o espírito de equipe. Pelo menos isso era algo que parecia ter feito corretamente, pensava Tony ao olhar a sala de seminário onde seis cabeças estavam abaixadas sobre uma série de arquivos policiais fotocopiados.
Àquela altura, eles já tinham começado a formar alianças e, até então, evitaram bem o conflito de personalidades, capaz de estragar o grupo de maneira irrecuperável. Curiosamente, as parcerias eram flexíveis em vez de rígidas em pares fixos. Embora algumas afinidades fossem mais fortes que outras, não havia tentativa de fazer com que fossem exclusivas.
Shaz era a única exceção, de acordo com o que Tony percebera até então. Não que houvesse um problema entre ela e os outros. Era mais uma questão de ela evitar a intimidade fácil que aumentava entre os demais. Participava das piadas, tomava parte do brainstorming coletivo, mas, de certa forma, sempre se distanciava dos seus colegas. Ele sentia que ela possuía uma paixão pelo sucesso que faltava ao restante do esquadrão. Eram inegavelmente ambiciosos, mas a característica era mais profunda em Shaz. Era determinada e a sua necessidade queimava por dentro e consumia qualquer traço de frivolidade. Era sempre a primeira a chegar e a última a sair, agarrava com avidez toda oportunidade que tinha para ampliar seus conhecimentos com Tony sobre qualquer que fosse o assunto. Tal necessidade de sucesso, entretanto, tornava-a analogamente mais vulnerável ao fracasso. Aquilo que ele reconhecia como um desejo desesperado por aprovação era uma lâmina capaz de ser usada contra ela e teria um efeito devastador. Se não aprendesse a baixar a guarda para que pudesse usar a sua empatia, ela jamais atingiria seu potencial como criadora de perfis. Era trabalho dele encontrar, sem assumir o risco de causar muito dano, uma maneira de fazer com que ela relaxasse a própria vigilância.
Naquele momento, Shaz levantou a cabeça e cravou os olhos diretamente nos dele. Não havia constrangimento ou embaraço algum. Ela simplesmente o encarou por um tempo e depois voltou para o que estava lendo. Era como se tivesse invadido o banco de memórias dele em busca de uma informação que lhe faltava e, tendo-a encontrado, desconectou-se novamente. Ligeiramente desconcertado, Tony pigarreou.
— Quatro incidentes distintos de agressão sexual e estupro. Comentários?
O grupo já passara da fase dos silêncios constrangedores e das hesitações e opinava sem problema. Leon Jackson foi o primeiro a se aprofundar, o que já estava se tornando um padrão.
— Acho que a ligação mais forte está nas vítimas. Li em algum lugar que os estupradores em série tendem a agir dentro da sua própria faixa etária e todas essas mulheres estavam com vinte e poucos anos. Além disso, todas têm cabelo loiro curto e se esforçavam muito pra ficar em forma. Duas praticavam corrida, uma era jogadora de hóquei e a outra, remadora. Todas praticavam esportes que seriam difíceis de serem observados por um agressor esquisitão sem que ele chamasse a atenção.
— Obrigado, Leon. Mais comentários?
Simon, já designado o advogado do diabo do grupo, com seu sotaque de Glasgow e o hábito de encarar com um olhar perturbador que vinha de baixo das escuras sobrancelhas, ponderou:
— É possível argumentar que isso se dá porque a mulher que se dedica a essas modalidades de esporte é exatamente do tipo autoconfiante o bastante para ficar em lugares arriscados sozinhas, convencidas de que nunca vai acontecer algo com elas. Poderiam facilmente ser dois, três ou até quatro agressores. E, nesse caso, contratar um criador de perfis seria uma perda de tempo total.
Shaz negou, sacudindo a cabeça.
— Não são apenas as vítimas — declarou com firmeza. — Se ler as evidências, em todos os casos os olhos foram tampados durante o ataque. Em todos os casos o agressor abusava verbalmente delas sem parar enquanto as agredia. Isso é mais do que mera coincidência.
Simon não estava pronto para desistir.
— Qual é, Shaz? — protestou ele. — Qualquer camarada tão fraco a ponto de precisar recorrer a um estupro para se sentir bem consigo mesmo vai ficar se vangloriando durante a parada. E, com relação aos olhos cobertos... não há nada em comum nisso com exceção de que, na primeira e na terceira, ele usou a faixa de cabeça delas mesmas. Olha — ele balançou os papéis —, caso número dois, ele puxou a camisa da vítima, a colocou sobre a cabeça dela e deu um nó. Caso número quatro, o estuprador tinha um rolo de fita adesiva e enrolou a cabeça dela. É muito diferente.
Ele se encostou novamente com um sorriso amigável que neutralizava a força das suas palavras.
Tony sorriu.
— Discussão perfeita para nos conduzir ao próximo assunto. Obrigado, Simon. Hoje vou distribuir a primeira tarefa a vocês. O preâmbulo do guia do iniciante sobre assinatura versus MO. Alguém sabe do que estou falando?
Kay Hallam, a outra mulher da equipe, levantou a mão pouco mais de quinze centímetros e olhou interrogativamente para Tony. Ele acenou com a cabeça. Ela colocou seu cabelo castanho-claro atrás das orelhas com um gesto que ele reconheceu como seu principal mecanismo para parecer feminina e vulnerável e assim tentar neutralizar críticas, particularmente quando estava prestes a fazer uma afirmação da qual tinha certeza absoluta.
— O MO é dinâmico, a assinatura é estática — disse ela.
— É uma maneira de se colocar — concordou Tony. — Entretanto, provavelmente está técnico demais para os policiais entre nós — comentou ele com um sorriso, apontando o dedo para cada um dos outros cinco. Empurrou para trás sua cadeira e começou a se mover energicamente pela sala enquanto falava. — MO significa modus operandi. Latim. A maneira de se fazer. Quando usamos isso no contexto criminal, estamos nos referindo à uma série de ações executadas pelo criminoso no processo de atingir seu objetivo, o crime. Nos primórdios da criação de perfis, os policiais, e, em grande medida, os psicólogos, eram muito literais em relação à ideia que tinham sobre serial killers. Faziam basicamente as mesmas coisas todas as vezes para chegar basicamente aos mesmos resultados. Com a exceção de que eles geralmente apresentavam uma intensificação e passavam, digamos, da agressão a uma prostituta para arrancar o cérebro de uma mulher com uma marreta.
“Contudo, à medida que fomos descobrindo mais, percebemos que não somos os únicos a aprender com os nossos erros. Estávamos lidando com criminosos que eram suficientemente inteligentes e imaginativos para fazerem exatamente a mesma coisa. Isso significava que tínhamos que enfiar nas nossas cabeças a ideia de que o MO era algo que poderia mudar drasticamente de um delito para o próximo porque o criminoso achou que uma linha de ação em particular não era muito eficaz. Então ele adaptava. Seu primeiro assassinato poderia ser um estrangulamento, mas talvez o assassino ache que isso levou tempo demais, foi muito barulhento, o amedrontou demais, o estressou mais do que fez com que desfrutasse da realização. Na próxima vez, ele esmaga o crânio dela com um pé-de-cabra. Faz bagunça demais. Então, no crime número três, esfaqueia. E os investigadores os categorizam como três assassinatos distintos porque o MO é muito diferente.
“O que não muda é o que chamamos, pela necessidade de nomeação, de assinatura. ASS, abreviado” Tony parou de andar e se inclinou sobre o parapeito da janela. “A ASS não muda porque ela é a razão de ser do criminoso. É o que dá ao criminoso o sentimento de satisfação. Do que consiste a assinatura, então? Bem, todos os fragmentos de comportamento que excedem aquilo que é realmente necessário para se cometer o crime. O ritual do ataque. Para satisfazer o perpetrador, os elementos da assinatura têm que ser encenados toda vez que ele sai numa missão e têm que ser executados com o mesmo estilo todas as vezes. Podem ser exemplos da assinatura de um assassino coisas como: ele desnuda a vítima? Faz uma pilha organizada com as roupas da vítima? Usa os cosméticos na vítima depois da morte? Faz sexo com a vítima depois da morte? Realiza algum tipo de mutilação ritualística como cortar os seios, o pênis ou as orelhas?”
Simon parecia ligeiramente nauseado. Tony imaginava quantas vítimas de assassinato aquele policial já tinha visto. Ele precisava ficar mais calejado ou então se preparar para lidar com a zoeira dos colegas que se divertiriam vendo o criador de perfis despejar seu almoço sobre outra vítima profanada.
— Um criminoso em série precisa realizar atividades que são sua assinatura para se satisfazer, para fazer com que o ato seja significativo — continuou Tony. — Isso tem a ver com a satisfação de uma variedade de necessidades... dominar, infligir dor, provocar reações distintas, alcançar alívio sexual. Os meios podem variar, mas o fim se mantém constante.
Respirou fundo e tentou manter a mente afastada das variações muito particulares que vira em primeira mão.
— Para um assassino cujo prazer vem do ato de infligir dor e de ouvir as vítimas gritando, é imaterial se ele... — Sua voz titubeava devido às irresistíveis imagens que escalavam para dentro da sua cabeça. — Se ele... — Todos olhavam para Tony que, desesperadamente, lutava para parecer que tinha apenas perdido a concentração, e não que estava verdadeiramente abalado. — Se ele... as amarra e as corta, ou se ele...
— Se ele as chicoteia com arame — completou Shaz, com a voz casual e expressão reconfortante.
— Exatamente — disse Tony, recuperando-se rapidamente. — Bom saber que você tem uma imaginação tão meiga, Shaz.
— Típico de mulher, né? — comentou Simon, soltando uma gargalhada ruidosa.
Shaz ficou ligeiramente constrangida. Antes que a piada se alastrasse, Tony continuou:
— Ou seja, é possível haver dois corpos em condições físicas bem diferentes. Mas, quando se examina o cenário, foram feitas outras coisas além do ato de matar, e a gratificação final foi a mesma. É aí que está a assinatura.
Ele ficou em silêncio, seu controle firme novamente, olhou ao redor para conferir se todos o estavam acompanhando. Um dos homens parecia estar com dúvida.
— Para ser o mais simplista possível — retomou —, pensem em criminosos triviais. Você tem um ladrão de televisões. É a única coisa que ele quer, televisões, porque tem um receptador com quem consegue fazer um bom negócio. Ele furta em ruas onde não havia espaço lateral entre as casas e entrava pelo quintal. Mas aí ele lê no jornal local que a polícia está alertando as pessoas sobre o ladrão de televisões que entra pelo quintal, e que estão preparando equipes de vigilância para olhar com mais cuidado os becos atrás das casas. Então ele abandona esse tipo de casa, as troca por casas de dois andares, pois esse tipo de residência possui janela lateral na sala do andar de baixo. Ele mudou o MO. Mas ainda furta apenas as televisões. Essa é a assinatura dele.
O rosto daquele que estava com dúvida clareou. Tony o fizera compreender. Satisfeito, pegou uma pilha de papéis dividida em dois.
— Então temos que aprender a ser inclusivos enquanto estamos considerando a possibilidade de haver um criminoso em série. Optem por “fazer conexões pela similaridade” em vez de “desconsiderar pela diferença”.
Ele se levantou novamente e caminhou em meio às carteiras, preparando-se para a parte crucial do seminário.
— Alguns policiais veteranos e criadores de perfis têm uma hipótese que é mais confidencial do que os segredos da Maçonaria — disse ele, capturando novamente a atenção. — Acreditamos haver pelo menos meia dúzia de serial killers não identificados que vêm operando no Reino Unido nos últimos dez anos. Alguns com, provavelmente, mais de dez vítimas. Graças à rede de estradas e à relutância histórica da força policial em compartilhar informação, ninguém se põe à disposição pra fazer as conexões cruciais. Assim que estivermos em pleno funcionamento, com o tempo e os funcionários disponíveis, isso é algo que levaremos em consideração. — Sobrancelhas erguidas e cochichos encheram o seu silêncio momentâneo.
— O que vamos fazer aqui é um teste simulado — explicou Tony. — Trinta adolescentes desaparecidos. Todos os casos são reais e foram selecionados de uma dúzia de distintos durante os últimos sete anos. Vocês têm uma semana pra examinar os casos durante o tempo livre. Depois apresentarão suas teorias sobre se alguns deles contêm similaridades suficientes a ponto de nos servir de base para suspeitarmos de que pode ser trabalho de um criminoso serial.
Entregou a cada um deles um maço de cópias e lhes deu um tempinho para que folheassem.
— Devo enfatizar que isso é um mero exercício — alertou-os enquanto retornava para sua cadeira. — Não há razão para supor que alguma dessas meninas e desses rapazes tenham sido sequestrados ou assassinados. Alguns deles podem estar mortos agora, mas isso provavelmente tem mais a ver com os atritos da vida na rua do que com violência criminal. O fator comum que os liga é que nenhuma das famílias desses garotos acredita que eles eram do tipo que fugiria de casa. Todas alegaram que os adolescentes desaparecidos eram felizes, que não houve nenhuma discussão séria e não tinham nenhum problema significativo na escola. Embora um ou outro tenha tido problema com a polícia ou o serviço social, não havia nenhuma dificuldade no momento dos desaparecimentos. Entretanto, nenhum dos jovens desaparecidos fez contato subsequente com sua casa. É possível que a maioria deles tenha ido buscar a vida urbana londrina.
Respirou fundo e se virou para encará-los.
— Mas pode haver outro cenário escondido nisso aí. E, se ele existe, será trabalho nosso encontrá-lo.
Como uma pequena queimação nas entranhas, Shaz começou a sentir uma excitação poderosa o bastante para turvar as memórias do que lera sobre o último confronto de Tony com um assassino. Era a sua primeira chance. Se havia vítimas de assassinato desaparecidas, ela as encontraria. Mais do que isso, seria sua defensora. E quem as vingaria.
Criminosos são frequentemente pegos por acidente. Ele sabia disso; assistira a programas na TV. Dennis Nilsen, assassino de quinze jovens sem-teto, foi descoberto porque os canos ficaram entupidos com carne humana; Peter Sutcliffe, o Estripador de Yorkshire, que despachou treze mulheres, foi capturado porque roubara várias placas para disfarçar seu carro; Ted Bundy, assassino necrófilo de mais de quarenta jovens, foi finalmente preso por passar em alta velocidade por um carro de polícia à noite com o farol desligado. Saber disso não o amedrontava, mas adicionava um frisson extra à onda de adrenalina que inevitavelmente acompanhava o ato de atear fogo. Os seus motivos poderiam ser bem diferentes dos deles, mas o risco era quase tão grande. As luvas de condução feitas de um couro que já fora macio estavam sempre ensopadas com seu suor de nervoso.
Em algum momento próximo da uma da manhã, ele estacionava o carro em um local cuidadosamente escolhido. Nunca o deixava em uma rua residencial, pois tinha consciência da insônia dos idosos e da rebeldia dos jovens na madrugada. Em vez disso, escolhia os estacionamentos das grandes lojas de material de construção. Os terrenos baldios perto de fábricas, os pátios de garagens fechadas à noite; revendas de carros usados eram os melhores; ninguém notava um carro a mais nelas por uma hora durante a madrugada.
Por achar que ficaria muito suspeito por causa da hora, também nunca carregava bolsa de viagem. Um policial que o visse não pensaria duas vezes antes de deduzir que ele estava ali para roubar casas. E, mesmo que um meganha entediado resolvesse passar o tempo o fazendo revirar os bolsos, não haveria muita coisa que levantasse suspeita. Um pedaço de barbante, um isqueiro fora de moda com uma capa de metal, um maço de cigarros faltando um ou dois, uma caixa de fósforos amassada quase acabando, um jornal do dia anterior, um canivete militar suíço, um lenço de bolso amarrotado e manchado de óleo, uma lanterna pequena, mas poderosa. Se isso fosse motivo suficiente para se efetuar uma prisão, as celas estariam cheias toda noite.
Ele caminhava pela rota que memorizara, mantinha-se próximo às paredes e se movia silenciosamente por ruas vazias; o sapato de boliche com a sola gasta não fazia barulho algum. Após alguns minutos, chegou a um beco estreito que levava à lateral fora de vista de um imóvel industrial no qual estava de olho há um tempo. Fora originalmente uma fábrica de cordas e consistia em um conjunto de quatro prédios de tijolo da virada do século recentemente adaptados para uso atual. Havia uma oficina elétrica ao lado de uma reformadora de estofados e, em frente, uma loja de encanamento e uma padaria que fazia biscoitos com uma receita que alegavam ser muito antiga. Ele avaliou que qualquer um que se dava bem cobrando aqueles preços ridículos por um pacote de biscoitos vagabundos e esfarelentos merecia ter a sua fábrica arruinada, mas não havia material inflamável suficiente ali para as necessidades dele.
Nessa noite, a reformadora de estofados iria pelos ares como fogos de artifício.
Mais tarde, ele vibraria com a imagem das chamas amarelas e carmesins enfiando seus longos ferrões nas nuvens de fumaça cinza e marrom que se elevariam do tecido, da madeira do assoalho e das vigas do prédio antigo em chamas. Mas, naquele momento, tinha apenas que entrar.
Preparara-se mais cedo naquele dia, quando deixara uma sacola de compras dento de uma lata de lixo perto da porta lateral da loja. Ele a pegou e tirou dela o desentupidor de pia e o tubo de supercola. Deu a volta pelo lado de fora do prédio até chegar à janela do banheiro e prendeu o desentupidor no vidro. Esperou alguns minutos para ter certeza de que a cola adesiva tinha endurecido, depois agarrou o desentupidor com as duas mãos, firmou o corpo, preparou-se e deu um puxão. O vidro quebrou fazendo um barulho baixinho, e os fragmentos caíram do lado de fora da janela, assim como teriam caído se tivesse explodido por causa do calor. Com inteligência, bateu o desentupidor na parede para espatifar o círculo de vidro, deixando sobrar apenas um anel fino colado à borracha. Isso não o preocupava; não havia razão para um especialista da perícia forense reconstituir o vidro e revelar que estava faltando um círculo dele no miolo dos cacos. Feito isso, precisou de poucos minutos para entrar. O lugar, ele sabia, não tinha alarme.
Sacou a lanterna e a ligou e desligou rapidamente para verificar onde estava, depois entrou no corredor que passava por trás da sala de trabalho principal. No final, ele lembrava, havia algumas caixas de papelão grandes com retalhos que artesãos locais informais compravam a preço de banana. Não havia razão para que investigadores de incêndio duvidassem de que aquele era um lugar onde trabalhadores se encontravam para relaxar.
Ele levava pouquíssimo tempo para construir seu dispositivo incendiário. Primeiro abria o isqueiro e esfregava o barbante com o feltro previamente encharcado com fluído de isqueiro. Depois, colocava o barbante no meio de uma meia dúzia de cigarros ajuntados frouxamente com um elástico. Posicionou seu explosivo de maneira que o barbante detonador ficasse junto da caixa de papelão mais próxima, depois colocou o lenço ao lado dele com um pouco de jornal amassado. Por fim, acendia os cigarros. Eles queimavam até a metade antes do barbante acender. O que, por sua vez, fazia com que demorasse um pouco até que as caixas de tecido começassem lentamente a queimar. Mas, no momento em que as chamas se firmassem, nada as impediria. Seria um incêndio daqueles.
Vinha postergando esse incêndio por um tempo, pois sabia que seria uma beleza. Recompensador, em vários sentidos.
Betsy olhou seu relógio. Mais dez minutos, depois ela acabaria com a festinha de Suzy Joseph, alegando que Micky tinha um compromisso. Se Jacko quisesse prosseguir com o galanteio, ficava por conta dele. Ela suspeitava que ele preferiria agarrar a oportunidade para fugir. Acabara de filmar o último Vance Visita na noite anterior e depois sairia para um dos seus compromissos de caridade em um dos hospitais em que trabalhava como conselheiro voluntário e assistente social. Deixaria a casa em paz para ela e Micky passarem o fim de semana sozinhas.
— Por causa de Jacko e da Princesa de Gales, aqueles que têm doença terminal hoje não conseguem ficar em paz — disse ela, em voz alta. — Eu é que tenho sorte — continuou, fechando a parte de cima da sua escrivaninha, deixando à vista apenas as gavetas depois de ter limpado a mesa e se preparado para um fim de semana sem culpa. — Não preciso escutar a Versão Autorizada pela milionésima vez. — Ela imitou a entonação alto-astral da encenação de Jacko. — “Eu estava deitado lá, contemplando a ruína dos meus sonhos, convencido de que não havia mais razão nenhuma para viver. Então, das profundezas da minha depressão, tive uma visão.” — Betsy fez o gesto vívido e arrebatador que vira Jacko pôr em ação tantas vezes com seu braço. — “A própria imagem da beleza. Ali, de pé ao lado da minha cama de hospital, estava a única coisa que tinha visto desde o acidente que me fez acreditar que a vida merecia ser vivida.
Era um conto que não guardava quase nenhuma relação com a realidade que Betsy vivera. Lembrava-se do primeiro encontro de Micky com Jacko, mas não porque havia sido a colisão sensacional de estrelas encontrando suas equivalentes. A memória de Betsy era muito diferente e bem menos romântica.
Foi na primeira vez que Micky assumiu o papel de jornalista principal na transmissão de uma reportagem externa no jornal mais importante da noite. Ela estava levando a milhões de espectadores ávidos a primeira entrevista exclusiva com Jacko Vance, o herói da mais recente história humana na mídia. Betsy vira a transmissão sozinha em casa. Entusiasmada por ver sua amante sendo o centro das atenções de dez milhões de pares de olhos e se abraçando de alegria.
O deleite não durou muito. Celebravam juntas sob o brilho tremeluzente do replay quando o telefone interrompeu o prazer delas. Betsy atendera com a voz irradiando felicidade. A jornalista que a cumprimentou como namorada de Micky drenou toda a sua felicidade. Apesar das frias e veementes negações de Betsy e da ridicularizarão desdenhosa de Micky, as duas mulheres sabiam que o relacionamento delas se equilibrava na lâmina da exposição do pior tipo de tabloide.
O paciente esforço de Micky para bloquear as furtivas táticas dos pilantras era cuidadosamente planejado e executado de maneira implacável, bem como qualquer passo que já tinha dado na carreira. Toda noite, dois pares separados de cortinas eram fechados e as luzes eram acesas atrás delas. As lâmpadas eram apagadas em intervalos escalonados, a do quarto de hóspedes era controlada por um timer que Betsy ajustava para uma hora diferente toda noite. Todas as manhãs, as cortinas eram abertas, sempre pelas mesmas mãos que as tinham fechado. Os únicos lugares em que as duas se abraçavam eram atrás das cortinas fechadas, fora da linha de visão da janela ou no corredor, que era invisível pelo lado de fora. Se ambas saíam de casa juntas, separavam-se lá embaixo com um cordial tchauzinho e sem contato corporal.
Não dar aos supostos observadores nada para verem seria o suficiente para fazer com que a maioria das pessoas se sentissem seguras. Porém, Micky preferia uma abordagem mais proativa. Se os tabloides queriam uma história, ela lhes daria uma. Ela teria simplesmente que ser mais empolgante, mais crível e mais sexy que a história que achavam que tinham. Importava-se demais com Betsy para arriscar a paz de espírito da sua amante ou o relacionamento delas.
Na manhã depois do telefonema fatal, Micky tinha uma hora de folga. Ela foi de carro até o hospital em que Jacko era paciente e usou seu charme para conseguir vê-lo. Jacko pareceu satisfeito em vê-la, e não apenas porque ela fora até lá armada com um radinho AM FM com fones de ouvido. Apesar de ainda estar tomando medicação forte para dor, estava alerta e receptivo a qualquer coisa que o desviasse do tédio da vida ali na ala onde estava. Micky passou meia hora batendo papo sobre tudo menos o acidente e a amputação, depois lhe deu um beijinho amigável na testa e foi embora. Não fora infortúnio algum; para sua surpresa, ela se viu afeiçoada a Jacko. Ele não era o machão arrogante que ela esperava, baseada na experiência pregressa com heróis do esporte. E, ainda mais surpreendente, ele não estava se chafurdando em autopiedade. As visitas de Micky podiam até ter começado como um interesse pessoal cínico, mas logo ela se viu envolvida primeiro pelo respeito que sentia pelo estoicismo de Jacko, depois pelo inesperado prazer que sentia quando estava na companhia dele. Ele podia estar mais interessado em si mesmo do que nela, mas pelo menos conseguia ser divertido e espirituoso.
Cinco dias e quatro visitas depois, Jacko fez a pergunta pela qual ela estava esperando.
— Por que você fica me visitando?
Micky deu de ombros e respondeu:
— Porque eu gosto de você?
As sobrancelhas de Jacko levantaram e abaixaram, como se afirmassem: “Não é só por isso.”
Ela suspirou e fez um esforço consciente para conter seu olhar especulativo.­ — Fui amaldiçoada por ter imaginação. E entendo a determinação para se obter sucesso. Ralei pra caramba pra chegar onde estou, fiz sacrifícios e, às vezes, tive que tratar pessoas de um jeito que, em outras circunstâncias, eu sentiria vergonha. Mas chegar aonde quero é a coisa mais importante da minha vida. Posso imaginar como me sentiria se uma cadeia de circunstâncias fora do meu controle me custasse esse objetivo. Acho que o que sinto por você é empatia.
— Que significa o quê? — perguntou ele, com uma expressão no rosto que não deixava transparecer nada.
— Compaixão sem pena?
Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça, como que satisfeito.
— A enfermeira achava que era porque você estava a fim de mim. Sabia que ela estava errada.
Micky deu de ombros. Estava tudo correndo bem melhor do que previra.
— Não a desiluda. As pessoas não confiam em motivações que não conseguem entender.
— Você está certíssima — concordou ele com uma pontada de amargura na voz que ela ainda não havia escutado, apesar do motivo que a levava até ali. — Mas o entendimento nem sempre faz com que seja possível aceitar alguma coisa.
Havia mais, muito mais por trás das palavras dele. Mas Micky sabia quando deixar as coisas para depois, e ela teria um monte de oportunidades para mencionar aquele assunto outra vez. Quando foi embora naquele dia, fez questão de que a enfermeira a visse dando um beijo de despedida nele. Se sua história precisava ser crível, tinha que vazar, não precisava ser transmitida pela TV. E, por experiência jornalística própria, uma fofoca se espalha por um hospital mais rápido do que legionelose. Dali para uma comunidade mais ampla bastava um mensageiro.
Quando voltou, uma semana depois, Jacko parecia distante. Micky percebeu emoções violentas que ele mal conseguia conter, mas não teve como descobrir ao certo que sentimentos eram aqueles. Por fim, cansada de conduzir um monólogo em vez de uma conversa, perguntou:
— Vai me contar ou simplesmente vai deixar a sua pressão arterial subir até você ter um derrame?
Pela primeira vez naquela tarde, ele olhou diretamente para o rosto dela. Momentaneamente, Micky pensou que estivesse com febre, então percebeu que era uma fúria tão poderosa que ela não conseguia imaginar como ele conseguia contê-la. Jacko estava tão furioso que mal conseguia falar, algo que ela percebeu quando o viu lutando para encontrar as próprias palavras. Ele dominou sua ira com uma enorme força de vontade e rosnou:
— Minha suposta noiva.
— Jillie? — Micky torceu para ter dito o nome certo. Elas se encontraram rapidamente em uma tarde quando a jornalista estava indo embora. A impressão de Micky foi de uma bonita mulher de cabelo preto que, por um triz, era mais provocante do que vulgar.
— Puta — xingou ele entre dentes, com os tendões do pescoço tensionados como cordas debaixo da pele bronzeada.
— O que aconteceu, Jacko?
Ele fechou os olhos, respirou fundo, e seu enorme peito se expandiu, enfatizando a assimetria do seu corpo antes perfeito.
— Terminou comigo — conseguiu dizer por fim, a voz rouca de raiva.
— Não — sussurrou Micky. — Nossa, Jacko. Ela estendeu a mão e encostou os dedos no punho fechado dele. Conseguia sentir seu pulso batendo de tanta força que usava para apertar a mão. Era uma raiva fenomenal, Micky pensou, embora não parecesse que ele perderia o controle.
— Disse que não consegue lidar com isto. — E deu uma risada cínica e rouca. — Ela não consegue lidar com isto? Como acha que esta porra é pra mim?
— Sinto muito. — Foram as insuficientes palavras de Micky.
— Eu vi isso no rosto dela na primeira vez que veio me visitar. Não, soube antes disso. Porque ela sequer chegou perto de mim naquele primeiro dia. Levou dois dias pra chegar o rabo perto de mim. — A voz hostil e gutural deixava as palavras caírem como blocos de pedra. — Quando veio, não conseguia tolerar a minha imagem. Estava na cara dela. Só conseguia ver o que eu não era mais.
Jacko puxou o punho e deu um soco na cama.
— Idiota que ela é.
Ele abriu os olhos e a encarou com raiva.
— Não começa. Se tem uma coisa que não preciso é de mais uma puta me consolando. Já tenho aquela porra daquela enfermeira com toda aquela animação artificial pra cima de mim. Pode parar!
Micky não recuou. Vencera muitos confrontos com editores novos por causa disso.
— Você tem que aprender a reconhecer o respeito quando o vê — devolveu a ele. — Sinto muito que a Jillie não tenha o necessário pra ficar ao seu lado, mas é melhor descobrir isso agora do que mais na frente.
Jacko estava abismado. Há anos, a única pessoa que falara com ele de um jeito que não fosse com deferência nervosa era o seu treinador.
— O quê? —berrou ele, a fúria substituída por um espanto perplexo.
Micky continuou sem levar em consideração a resposta dele.
— Agora você só tem que pensar em como vai jogar esse jogo.
— O quê?
— Isso não vai ser um segredo entre vocês dois, vai? De acordo com o que você falou, a enfermeira já sabe. Então, lá pela hora do chá, vai ser o maior “Segura a primeira página”. Se quiser, pode se contentar em ser o objeto de pena: a namorada termina com o herói porque ele não é mais um homem completo. Vai garantir o voto de compaixão e boa parte do público manipulado pela mídia vai cuspir na Jillie na rua. Por outro lado, pode conseguir sua retaliação antes e sair dessa por cima.
A boca de Jacko estava aberta, mas, por um momento, nenhuma palavra foi dita. Por fim, falou, em voz baixa, aquilo que os membros da equipe olímpica teriam entendido como um sinal para colocarem os coletes à prova de bala:
— Continue.
— É você quem decide. Depende de você querer que as pessoas o vejam como vítima ou como vencedor.
A firmeza do olhar de Micky parecia desafiá-lo mais do que qualquer outro que já enfrentara em competições.
— O que você acha? — rosnou ele.
— Estou te falando, cara, não tem nada mais caipira do que isto aqui — disse Leon, balançando uma pakora de frango com um gesto exagerado que parecia incluir não apenas o restaurante, mas também a maior parte de West Riding of Yorkshire.
— É óbvio que você nunca foi a Greennock sábado à noite — ironizou Simon. — Pode acreditar em mim, Leon, aquilo faz Leeds parecer totalmente cosmopolita.
— Nada consegue fazer com que este lugar seja cosmopolita — protestou Leon.
— Não é tão ruim assim — disse Kay. — É muito bom pra fazer compra.
Mesmo fora de sala de aula, Shaz notou que Kay assumia rapidamente o papel conciliatório e ficava alisando o cabelo do mesmo jeito que alisava as asperezas nas conversas.
Simon gemeu teatralmente e disse:
— Ai, por favor, Kay, você não precisa descambar pra essas coisas meigas de mulher. Vai em frente, faz a minha noite, conta como aqui em Leeds eles são bons em colocar piercing.
Kat mostrou a língua para ele.
— Se você não parar de encher o saco da Kay, nós mulheres podemos muito bem considerar fazer um piercing em alguma parte especial da sua anatomia com esta garrafa de cerveja — disse Shaz com doçura, brandindo sua cerveja.
Simon levantou as mãos.
— Tá bom, vou me comportar, desde que você prometa não me bater com um chapati.
Houve um momento de silêncio quando os quatro policiais atacaram suas entradas. O restaurante indiano de sábado à noite parecia estar se tornando uma característica regular do quarteto, enquanto os outros dois preferiam voltar para os lugares de onde vieram do que explorar sua nova base. Quando Simon fez a sugestão pela primeira vez, Shaz não tinha certeza se queria ter um relacionamento tão próximo com seus colegas. Mas Simon foi persuasivo e, além disso, o comandante Bishop tinha ficado de ouvido em pé e ela queria evitar ser rotulada como alguém que cooperava pouco. Shaz concordou e, para sua surpresa, divertiu-se, mesmo que tenha dado suas desculpas para escapulir da boate para onde os outros foram. Agora, com três semanas de trabalho, ela aguardava ansiosa para saírem à noite, e não só por causa da comida.
Leon foi o primeiro a limpar o prato, como sempre.
— O que estou querendo dizer é que este lugar é primitivo.
— Não sei — protestou Shaz. — Tem um monte de restaurantes indianos bons, os imóveis são mais baratos e consigo bancar um lugar maior do que uma gaiola de coelho. E dá pra ir a pé de uma parte do centro da cidade para outra, em vez de ter que ficar uma hora sentada no metrô.
— E o campo. Não se esqueça de como é fácil ir para o campo — completou Kay.
Leon se recostou na cadeira suspirando e revirando os olhos como uma caricatura terrível de programas de humor. Depois gorjeou em falsete:
— Heathcliff.
— Ela está certa — disse Simon. — Meu Deus, você é tão clichê, Leon. Devia dar uma fugida das ruas da cidade, colocar um pouco de ar puro nos pulmões. O que acha de sairmos amanhã pra uma caminhada? Quero muito descobrir se Ilkley Moor está à altura das homenagens.
Shaz riu e disse:
— O quê? Quer caminhar sem gorro pra ver se morre de frio?
Os outros gargalharam junto com ela.
— Viu, cara, é primitivo, do jeito que eu falei. Nada pra fazer a não ser caminhar. E, porra, Simon, não sou eu que sou clichê. Você sabe que já fui parado três vezes quando estava indo de carro pra casa desde que cheguei aqui. Até mesmo a Polícia Metropolitana de Londres é um pouquinho mais esclarecida em relação ao racismo e não parte do princípio que todo negro com uma caranga decente é traficante — disse Leon, amargamente.
— Não estão te parando porque você é negro — retrucou Shaz quando ele parou de falar para acender um cigarro.
— Não? — indagou Leon soltando fumaça.
— Não. Estão te parando porque você anda com uma arma perigosa.
— Do que você está falando?
— Desse terno, querido. Um pouquinho mais afiado e você se cortaria na hora de vesti-lo. Você está usando uma lâmina, é lógico que vão te parar. — Shaz levantou a mão para que Leon batesse nela e, em meio à explosão de gargalhadas dos outros dois, ele fez uma cara sem graça.
— Não tão afiado quanto você, Shaz — disse Simon.
Ela não sabia dizer se era apenas o calor das pimentas o responsável pelo rubor em suas normalmente pálidas bochechas.
— Por falar em afiado — emendou Kay quando seus pratos principais estavam chegando. — O Tony Hill não deixa passar nada, não é?
— Ele é inteligente, com certeza — concordou Simon, tirando o cabelo preto ondulado da testa. — Só queria que ele relaxasse um pouquinho. É como se houvesse um muro ali, dá pra subir nele, mas não dá pra ver o outro lado.
— Eu te digo o motivo — disse Shaz, repentinamente séria. — Bradfield. O Assassino de Bonecas.
— Foi aquele que ele participou, que resolveram o caso, mas que no final deu merda, né? — perguntou Leon.
— Isso mesmo.
— Foi tudo encoberto, não foi? — perguntou Kay com o rosto atento que fazia Shaz se lembrar de um animalzinho peludo, bonito, mas com dentes escondidos. — Os jornais sugeriram todo tipo de coisa, mas nunca entraram muito em detalhes.
— Acreditem em mim — disse Shaz, olhando para o seu meio frango e pensando que deveria ter pedido algum prato vegetariano —, vocês não gostariam de saber dos detalhes. Se quiserem a história toda, busquem na internet. Ali ninguém é coagido por detalhes técnicos como bom gosto ou pedidos das autoridades pra manter as coisas encobertas. Estou falando pra vocês, se conseguirem ler sobre o que Tony Hill passou sem repensar o que estamos fazendo, puta que pariu, vocês são muito mais corajosos do que eu.
Houve um momento de silêncio. Depois, Simon se inclinou para a frente e pediu confiante:
— Você vai contar pra gente, não vai, Shaz?
Capítulo 2

Ele sempre chegava quinze minutos antes porque sabia que ela chegaria cedo. Não interessava qual menina escolhera, ela chegaria com antecedência porque estava convencida de que ele era Rumpelstiltskin, o homem que podia transformar a palha seca que era sua vida em ouro de vinte e quatro quilates.
Donna Doyle — não mais a próxima, mas a mais recente — não era diferente das outras. Quando sua silhueta apareceu à luz turva do estacionamento, ele ouviu a musiquinha infantil retumbando em sua cabeça: “Jack e Jill subiram a montanha para buscar um balde d’agua...”
Ele abanou a cabeça para limpar os ouvidos como um mergulhador com snorkel vindo à superfície em um recife de corais. Observava a aproximação dela, que movia-se cautelosamente entre os carros, olhando de um lado para o outro, a expressão fechada no rosto franzia levemente sua testa, como se não conseguisse entender por que suas antenas não lhe informavam a posição exata dele. Ele percebeu que ela dera o seu melhor para ficar bonita; a saia do uniforme escolar obviamente dobrada na cintura para deixar à mostra pernas bem-torneadas, a blusa de uniforme desabotoada a uma altura que os pais e professores jamais permitiriam em público, o blazer sobre um ombro, pendurado dessa maneira para ocultar a mochila com o material escolar. A maquiagem estava mais carregada do que na noite anterior e seu excesso a catapultava diretamente para a meia-idade. O cabelo negro na altura dos ombros brilhava e seu balanço capturava a luz opaca do estacionamento.
Quando Donna estava bem próxima, ele abriu a porta do passageiro. A repentina luz interior a fez pular ao mesmo tempo em que reconheceu o perfil de beleza escandalosa fazendo um corte escuro no retângulo luminoso. Ele falou de maneira sociável através da janela já aberta:
— Entra aqui pra eu te contar tudo.
Donna hesitou por um brevíssimo momento, mas estava muito familiarizada com a franqueza do rosto público dele para parar e refletir o suficiente. Ela se sentou no banco ao lado dele, e Jacko se certificou de que Donna percebesse que ele não olhou para as coxas que seus movimentos revelaram. Por ora, a castidade era a melhor estratégia.
— Quando acordei hoje de manhã, fiquei me perguntando se não tinha sonhado tudo isso — comentou ela com um sorriso faceiro, ainda que inocente.
O sorriso com que ele respondeu era indulgente.
— Eu me sinto assim o tempo todo — disse ele, construindo outra fileira de tijolos na falsa fundação daquele falso entrosamento. — Fiquei imaginando que você podia ter reconsiderado. Você podia fazer muitas outras coisas com a sua vida que seriam uma contribuição bem maior para a sociedade do que estar na televisão. Acredite em mim, eu sei disso.
— Mas você faz essas coisas também — disse ela com seriedade. — Todo o trabalho de caridade. Ser famoso é o que faz os astros da TV levantarem tanto dinheiro. As pessoas pagam pra ver vocês. Elas não fariam isso se fosse diferente. Quero poder fazer isso. Ser como eles.
O sonho impossível. Ou, melhor dizendo, pesadelo. Ela nunca poderia ser como ele, embora não tivesse a menor noção do verdadeiro motivo. Pessoas como ele eram tão raras que isso era praticamente um argumento sobre a existência de Deus. Ele sorriu de maneira benevolente, como o Papa na varanda do Vaticano. Uma jogada de mestre para atingir exatamente o resultado que queria.
— Bom, talvez eu possa te ajudar a começar — completou.
E Donna acreditou.
Ele a tinha ali, sozinha e cooperativa, em seu carro, em um estacionamento subterrâneo. Como poderia ser mais fácil carregá-la para onde queria?
Só um idiota pensaria assim, percebera há muito tempo, e ele não era nenhum idiota. Para começar, o estacionamento não estava completamente vazio. Executivos e executivas faziam check-out no hotel, guardando porta-ternos em sedãs de luxo e saindo de ré das vagas apertadas. Eles notavam muito mais do que qualquer pessoa pode imaginar. Além disso, era plena luz do dia do lado de fora; o centro da cidade, adornado com semáforos onde pessoas não tinham nada melhor para fazer do que xeretar boquiabertos os passageiros dos carros. Primeiro, eles notariam o carro. Um Mercedes prata, elegante o bastante para capturar os olhares e gerar admiração. Ou, é claro, a inveja. Depois perceberiam as harmoniosas letras ao longo da lateral dianteira, que anunciavam: Carros para Vance Visita fornecidos pela Morrigan Mercedes de Cheshire. Alertas pela possível proximidade de uma celebridade, espiariam pelas janelas com película na tentativa de identificar quem era o motorista e o passageiro. Não esqueceriam aquilo rápido, principalmente se vislumbrassem uma adolescente atraente no banco do passageiro. Quando a foto dela aparecesse no jornal local, eles, sem dúvida, lembrariam.
E, finalmente, ele tinha um dia cheio pela frente. Não tinha tempo para levá-la a um lugar onde pudesse tomar o que lhe era devido. Não fazia sentido chamar a atenção para si ao faltar aos seus compromissos ou não fazer suas aparições públicas cuidadosamente construídas para darem a Vance Visita a maior exposição com o mínimo esforço. Donna teria que esperar. Para ambos, a expectativa seria um prazer a mais. Bem, para ele, pelo menos. Para ela, não demoraria muito para que a realidade transformasse sua emocionante expectativa em uma piada doentia.
Então ele aguçou o apetite dela e a manteve na coleira.
— Não acreditei quando te vi ontem à noite. Você seria a coapresentadora perfeita. Em um programa conduzido a quatro mãos, precisamos de contraste. A Donna do cabelo escuro e o Jacko louro. A delicada Donna, o parrudo Jacko.
Ele sorriu, ela gargalhou.
— O programa novo em que estamos trabalhando é uma competição envolvendo equipes de pais e de crianças. Só que as equipes não sabem que estão no programa até a gente fazer a revelação. Uma surpresa total. Essa é uma das razões pelas quais precisamos ter certeza de que a pessoa com quem eu vou trabalhar é totalmente confiável. Discrição total, essa é a chave.
— Eu consigo ficar calada — disse Donna, com seriedade. — De verdade. Não contei pra viva alma que vinha encontrar você aqui. Quando a minha colega que estava comigo ontem perguntou sobre o que a gente ficou conversando tanto tempo, falei que só estava perguntando se você tinha algum conselho pra me dar se eu quisesse entrar pra TV.
— E eu tinha? — reivindicou ele.
Ela sorriu, atraente e sedutora.
— Falei que você me disse que eu precisava me qualificar antes de tomar qualquer decisão sobre carreira. Ela não te conhece tanto a ponto de saber que você nunca solta essas merdas chatas que minha mãe fala comigo.
— Bem pensado — aprovou ele. — Juro que você nunca vai ficar entediada. Agora, o problema é que estou desesperado de tão atarefado nos próximos dias. Mas tenho a sexta-feira de manhã livre e consigo agendar com facilidade alguns testes de filmagem pra você. Temos um estúdio de ensaios à nordeste daqui da e podemos trabalhar lá.
Os lábios dela se separaram, os olhos brilharam na penumbra do interior do carro.
— É sério? Eu posso aparecer na TV?
— Não prometo nada, mas você se encaixa no perfil e tem uma voz bonita.
Ele se ajeitou no assento de maneira que pudesse fixar o olhar diretamente nela.
— A única coisa que preciso provar é que você consegue guardar um segredo.
— Já falei que sim — reafirmou Donna com consternação na voz.
— Mas consegue continuar assim? Consegue ficar em silêncio até quinta à noite?
Ele enfiou a mão dentro da jaqueta e retirou uma passagem de trem.
— Esta passagem de trem é pra Five Walls Halt, em Northumberland. Na quinta, você pega o trem das 3h25 para Newcastle na estação daqui, depois, em Newcastle, você troca e pega o das 7h50 pra Carlisle. Quando sair da estação, vai ver um estacionamento à esquerda. Estarei esperando lá, em uma Land Rover. Não posso sair pra me encontrar com você na plataforma por causa de sigilo comercial, mas estarei no estacionamento, prometo. Vamos te hospedar num lugar onde vai passar a noite e a primeira coisa que faremos de manhã vai ser o seu teste de filmagem.
— Mas minha mãe vai entrar em pânico se eu passar a noite fora e ela não souber onde estou — protestou ela, relutante.
— Você pode ligar pra ela assim que a gente chegar ao complexo de estúdios — afirmou ele com a voz bem tranquilizadora. — Pensa bem, ela provavelmente não deixaria você fazer o teste de filmagem, ia? Aposto que ela não acha que trabalhar na TV seja um trabalho adequado, acha?
Como de costume, ele calculara tudo com perfeição. Donna sabia que sua ambiciosa mãe não iria querer que ela jogasse pro alto os planos universitários para ser uma gostosinha de programa de auditório. Sua expressão preocupada desapareceu, e, por baixo das sobrancelhas, ela levantou os olhos para ele.
— Não vou falar nem uma palavra — prometeu solenemente.
— Boa menina. Espero que esteja falando sério. Uma única palavra errada é capaz de destruir todo o projeto. Isso custa dinheiro, e o emprego das pessoas também. Você pode contar pra sua melhor amiga e falar que é segredo, mas ela vai falar pra irmã dela, e a irmã dela vai comentar com o namorado, e o namorado vai falar pro melhor amigo durante uma partida de sinuca e a cunhada desse melhor amigo por acaso é uma repórter. Ou a executiva de uma emissora concorrente. O programa morre. E, junto dele, a sua grande chance. Deixa eu te contar uma coisa. No início da sua carreira, você só consegue dar uma mordida na cereja. Pise na bola uma vez e ninguém mais vai te contratar. É necessário muito sucesso no currículo para os chefões da TV perdoarem uma falha pequenininha.
Ele se inclinou para a frente e pôs a mão no braço de Donna enquanto falava, invadindo o espaço dela e fazendo com que sentisse a excitação sexual do perigoso vigor de Jacko.
— Eu entendi — disse Donna com toda a intensidade de alguém de 14 anos que se achava bem grandinha e não entendia por que os adultos não a admitiam em sua conspiração. A promessa de ingresso naquele mundo era o que tinha feito com que ela estivesse tão preparada para engolir algo tão disparatado quanto a armadilha dele.
— Posso contar com você?
Ela fez que sim com um gesto de cabeça e disse:
— Não vou te decepcionar. Nem com isso, nem com nenhuma outra coisa. — A insinuação sexual era indiscutível. Provavelmente ainda era virgem, avaliou ele. Algo na avidez dela lhe revelou isso. Ela estava se oferecendo para ele, um sacrifício vestal.
Ele se inclinou, aproximando-se um pouco mais, e beijou a macia e ansiosa boca que se abriu instantaneamente sobre seus lábios recatadamente fechados. Ele se afastou, sorrindo para suavizar o óbvio desapontamento dela. Sempre as deixava querendo mais. Era o clichê mais antigo do mundo. E sempre funcionava.
Capítulo 3

Carol limpou os vestígios do frango jalfrezi com o último naco de pão naan e saboreou a bocada final.
— Isso — elogiou ela — estava delicioso.
— Tem mais — ofereceu Maggie Brandon, empurrando a pesada caçarola para ela.
— Só se eu fosse vestir — resmungou Carol. — Não tem mais espaço aqui dentro.
— Pode levar pra casa — ofereceu Maggie. — Conheço a loucura do trabalho de vocês. Cozinhar é a última coisa que vão ter tempo pra fazer. Quando o John foi promovido a detetive inspetor-chefe, pensei em pedir ao chefe de polícia para a família dele se mudar pra uma das celas na Scargill Street, porque parecia que só assim os filhos conseguiriam ver o pai.
John Brandon, chefe de polícia de East Yorkshire, sacudiu a cabeça e disse afetuosamente:
— A minha mulher é uma mentirosa terrível. Só fala essas coisas pra que você se sinta culpada e trabalhe tanto que não sobre nada para eu fazer na sua divisão.
Maggie pigarreou e disse:
— Até parece! Como você acha que ele acabou com essa aparência, hein?
Carol deu a Brandon uma olhada cautelosa. Era uma boa pergunta. Se algum homem já tivesse nascido com cara de defunto, esse homem era Brandon. Todo o seu semblante era vertical, comprido e fino; tinha rugas em suas bochechas ocas e entre as sobrancelhas, nariz aquilino, cabelo grisalho acinzentado liso como as linhas de grade de um mapa. Alto e magro, começava a ficar curvado, só precisava de uma foice para poder fazer um teste para o papel de Morte. Avaliou suas opções. Podia ser “John” ali naquela noite, mas, na segunda de manhã, voltaria a ser “sr. Brandon”. Melhor não forçar tanto a relação informal com o chefe.
— E eu aqui pensando que tinha sido o casamento — disse ela sem maldade.
Maggie deu uma gargalhada e comentou:
— Diplomática e rápida — disse por fim, esticando o braço e dando um tapinha no ombro do marido. — Você fez bem em fazê-la abandonar a boa-vida de Bradfield e trazê-la para o fim do mundo, meu amor.
— Por falar nisso, como estão se adaptando? — perguntou Carol.
— Bom, esta casa foi cedida pela polícia — respondeu Maggie, mostrando com um movimento de braço a parede pintada com um branco brilhante, um contraste deprimente em relação à textura marmorizada da sala de jantar deles em Bradfield da qual Carol se lembrava.
— Mas vai ter que servir. A gente alugou a casa em Bradfield, sabe? Daqui a cinco anos o John completa trinta anos de serviço e queremos voltar pra lá. É onde estão as nossas raízes, os nossos amigos. E as crianças já vão todas estar na faculdade nessa época, então não vão sofrer de novo com mais uma mudança.
— O que a Maggie quer dizer é que ela se sente um pouco como uma missionária vitoriana entre os Hottentots — disse Brandon.
— Bom, você tem que admitir que East Yorkshire é um pouco diferente de Bradfield. Só a uma meia-hora de carro daqui é que a gente consegue um teatro decente. Parece que só existe uma livraria em toda a área que vende mais do que best-sellers. E quanto a ópera, pode esquecer! — protestou Maggie, levantando-se e recolhendo os pratos vazios.
— Você não fica feliz com as crianças crescendo longe da influência da cidade grande. Longe do alcance dos chefões das drogas? — perguntou Carol.
Maggie abanou a cabeça e justificou:
— Estão muito isolados aqui, Carol. Lá em Bradfield, tinham amigos de todas as origens, asiáticos, chineses, afrocaribenhos. Até um rapaz vietnamita. Aqui só se tem contato com as pessoas iguais a você. Não há nada pra fazer a não ser ficar à toa pelas esquinas das ruas. Francamente, eu preferiria arriscar mantê-los longe dos problemas da cidade grande para que tivessem todas as oportunidades que tinham em Bradfield. Essa vida no interior é supervalorizada.
Ela caminhou em direção à cozinha.
— Desculpa, não sabia que era um assunto tão delicado.
Brandon deu de ombros.
— Você conhece a Maggie. Ela gosta de desabafar. Daqui a alguns meses estará correndo pelo vilarejo feliz que nem porco na lama. As crianças até que estão gostando. E você? Como está lá no chalé?
— Eu adoro. O casal de quem eu o comprei fez um trabalho de restauração imaculado.
— Fico surpreso por quererem vender, então.
— Divórcio — revelou Carol, sucintamente.
— Ah.
— Acho que estavam mais tristes com a perda do chalé do que com fim do casamento. Você e a Maggie terão que aparecer lá pra um almoço ou jantar.
— Se em algum momento você conseguir tempo pra fazer compras — disse Maggie com um tom sombrio, voltando com uma cafeteira grande.
— Ah, na pior das hipóteses peço ao Nelson pra caçar um coelho pra gente.
— Ele está gostando das oportunidades de assassinato que morar no campo oferece? — perguntou Maggie ironicamente.
— Acha que morreu e foi pro céu dos felinos. Você pode preferir a cidade grande, mas ele se transformou num menino da roça do dia pra noite.
Maggie serviu café para John e Carol, depois disse:
— Vou deixar vocês dois sozinhos, se não se importarem. Sei que estão doidos pra falar de trabalho e prometi à Karen que a buscaria depois do cinema em Seaford. A quantidade de café que tem aí dá pra deixar vocês dois acordados até de madrugada e, se a fome bater daqui a pouco, tem um cheesecake na geladeira. O Andy chega lá pelas dez, então é melhor se servirem antes disso. Juro que aquele menino tem lombrigas. Ou isso ou as pernas dele são ocas.
Ela se curvou sobre Brandon e lhe deu um beijinho carinhoso na bochecha.
— Divirtam-se.
Incapaz de se livrar da sensação de que caíra numa armadilha profissional, Carol deu um gole de café e aguardou. Quando a pergunta foi feita, ela estava longe de ser uma surpresa.
— Então, como está a adaptação aqui? — A voz dele era casual, mas os olhos, vigilantes.
— Óbvio que estão desconfiados de mim. Não só porque sou mulher, que, na escala evolutiva de East Yorkshire, está localizada em algum lugar entre um furão e um cão de corrida, mas também sou o dedo-duro do chefe de polícia. Me trouxeram da cidade grande pra colocar o pessoal pra ralar — comentou ironicamente.
— Tive receio de que ficasse desanimada com isso — revelou Brandon. — Mas você devia saber disso quando aceitou o trabalho.
Carol deu de ombros.
— Não foi surpresa. Só que tem acontecido menos do que eu esperava. Talvez estejam se comportando da melhor maneira que conseguem, mas acho que a equipe da Divisão Central do Departamento de Investigação Criminal de Seaford não é ruim. Por estarem enfurnados na área rural antes da reorganização, ninguém prestava muita atenção e ficaram um pouco preguiçosos, desleixados. Suspeito que um ou dois estão gastando mais do que ganham, mas não acho que haja uma corrupção sistemática enraizada ali.
Brandon afirmou com a cabeça, satisfeito. Confiar no julgamento de Carol Jordan tinha sido uma curva de aprendizado enorme para ele, que sabia instintivamente que ela era um dos oficiais superiores que ele devia convencer a se afastar de Bradfield. Com ela ditando os rumos em Seaford, a notícia correria pelas outras divisões e, consequentemente, a cultura do Departamento de Investigação Criminal se adaptaria. Tempo e certa quantidade de varadas que Brandon não tinha medo de dar.
— Alguma coisa nos relatórios está te dando problema?
Carol terminou o café, serviu outra xícara e ofereceu o bule a Brandon, que recusou abanando a cabeça.
— Tem uma coisa — disse ela. — Já que estamos conversando informalmente.
Brandon concordou.
— Bom, analisando os relatórios noturnos, parece existir uma enxurrada de incêndios sem explicação e de inquéritos de incêndios criminosos. Todos à noite e em dependências desocupadas como escolas, fábricas, cafés, depósitos. Nenhum deles muito grande se pensados isoladamente, mas, juntos, são muitos estragos. Formei uma equipe pra interrogar as vítimas de novo, ver se conseguimos encontrar alguma conexão... alguma coisa relacionada com aspectos financeiros ou com os seguros. Nada. Eu mesma fui falar com o comandante dos bombeiros local e ele me apresentou uma série de incidentes que tiveram início há mais ou menos quatro meses. Nenhum dos incêndios podia ser absoluta e categoricamente classificado como criminoso, mas, circunstancialmente, ele calcula que houve algo em torno de seis a doze possíveis incêndios intencionais por mês na área dele — informou Carol.
— Um incendiário em série? — indagou Brandon com tranquilidade.
— É difícil interpretar de outra maneira — concordou Carol.
— E o que exatamente você quer fazer?
— Pegá-lo — respondeu ela com um sorriso.
— Tá, o que mais? — riu Brandon. — Tem alguma coisa específica em mente? — continuou, em um tom moderado.
— Quero continuar trabalhando com a equipe que designei e quero traçar um perfil.
Brandon franziu as sobrancelhas.
— Quer trazer alguém pra cá?
— Não — negou Carol de imediato. — Não há evidências suficientes que justifiquem o custo. Acho que eu mesma consigo muito bem fazer isso.
Brandon olhou impassível para Carol e afirmou:
— Você não é psicóloga.
— Não, mas aprendi muito no ano passado trabalhando com o Tony Hill. E, desde então, tenho lido tudo que consigo encontrar sobre criação de perfis.
— Você deveria ter se candidatado para a Força-Tarefa Nacional — disse Brandon, mantendo os olhos fixos nela.
Carol sentiu a pele queimar. Esperava que o vinho e o café explicassem a intensificação de sua cor.
— Não acho que estejam procurando oficiais com a minha patente — justificou ela. — Com exceção do comandante Bishop, não têm ninguém com patente acima de sargento. Além disso, prefiro o trabalho de campo, conhecer as pessoas e o lugar.
— A previsão é de que estejam prontos para assumir os casos em algumas semanas — continuou Brandon implacavelmente. — Quem sabe não gostariam disso aí como exercício antes de começarem de verdade.
— Talvez gostem — concordou Carol. — Mas o caso ainda é meu e eu não gostaria de entregá-lo a outras pessoas.
— Certo — disse Brandon, satisfeito por Carol já ter desenvolvido uma possessividade tão feroz sobre o trabalho do distrito de East Yorkshire. — Mas me mantenha informado, sim?
— É claro — concordou Carol. A sensação de alívio que sentia, disse a si mesma, era inteiramente porque tinha a chance de cobrir a si mesma e a sua equipe de glória quando resolvessem o caso. No fundo, entretanto, sabia que estava mentindo.
Dormir no que o corretor imobiliário se referira como quarto de hóspedes do apartamento de Shaz era algo inimaginável para qualquer pessoa, particularmente para alguém que precisava ler algumas páginas antes de começar a piscar de sono. Embora a estante de livros na sala de estar contivesse uma mistura inócua de ficção moderna mediana, as prateleiras no quarto que Shaz considerava seu escritório tinham apenas horror hardcore, a maioria deles mascarada de manual. Havia alguns romances de patologistas de psicopatias e anatomistas da agonia, como Barbara Vine e Thomas Harris, mas a maioria era mais estranha e brutal do que qualquer ficção jamais se atreveu a ser. Se houvesse um curso profissionalizante para serial killers, a biblioteca dela seria a referência bibliográfica.
Nas prateleiras mais baixas ficavam itens que a deixavam ligeiramente constrangida — biografias baseadas em crimes reais de serial killers notórios de apelidos assustadores e relatos sensacionalistas de carreiras que roubaram a confiança e a vida de centenas de pessoas. Acima desses, ficavam as versões mais respeitáveis das mesmas vidas, primorosas interpretações que forneciam revelações cuidadosas e insights sociológicos, psicológicos e, às vezes, ilógicos.
Em seguida, no nível dos olhos de quem estivesse sentado à mesa de Shaz, na qual seus blocos de anotação e seu notebook ficavam, havia as histórias de batalhas dos veteranos da guerra contra serial killers. Como já haviam se passado vinte anos desde o início da criação de perfis criminais, os pioneiros começaram a se aposentar há poucos anos, todos determinados a complementar a aposentadoria com relatos descritivos das suas contribuições para a mais recente ciência acessível, contando seus notáveis sucessos e fazendo um breve comentário sobre os fracassos. Eram todos, até o momento, homens.
Acima dessas autobiografias ficavam as coisas sérias; livros com títulos do tipo A psicopatologia do homicídio sexual, Análise de cena de crime e Estupro em série: um estudo clínico. A prateleira de cima refletia as únicas indicações de que Shaz aspirava ser caçadora, e não caça. Era a sua seleção de livros de direito, incluindo alguns guias da Lei de Evidência Policial e Criminal. Uma coleção abrangente que ela não tinha acumulado nos meros meses desde que conquistara seu lugar na força-tarefa; vinha sendo construída há anos, e a ajudava a se preparar para o dia que estava convencida de que chegaria, aquele em que seria chamada para escrever seu próprio livro sobre um assassino notório. Se a familiaridade textual sozinha pegasse criminosos, ela teria o melhor histórico de prisões do país.
Ela implorara para não participar da ida às boates depois do restaurante indiano, apesar da bajulação dos outros três. Não que jamais tivesse sido frequentadora de boates. Nessa noite, seu quarto de hóspedes estava infinitamente mais tentador do que qualquer coisa que um DJ ou um bartender tinha a lhe oferecer. A verdade era que Shaz estivera inquieta a noite inteira, ansiosa para voltar ao seu computador e finalizar as comparações que começara a fazer em seu banco de dados. Há três dias, passava todo seu tempo livre trabalhando nos trinta esboços de casos que Tony lhe entregara. Afinal, aquela era a oportunidade de colocar em prática todas as teorias e artifícios do negócio que aprendera nas leituras. Lera os jornais do começo ao fim, não uma, mas três vezes. Não chegou perto do computador até ter certeza de que os tinha todos diferenciados na cabeça.
O banco de dados que Shaz usava já não representava o que havia de mais avançado no desenvolvimento de software quando ela o copiou de um aluno amigo seu, e, naquele momento, era um item que praticamente merecia ser exposto em um museu. Mas, embora não tivesse todos os acessórios e aplicativos, era mais do que capaz de executar aquilo de que ela precisava. Expunha o material de forma clara, permitia que ela criasse suas próprias categorias e critérios de classificação de informação e Shaz achava que o seu funcionamento estava sintonizado com os instintos e a lógica dela, portanto, era fácil de usar. Ela vinha inserindo dados desde bem cedo naquela manhã, tão concentrada no trabalho que não tirou os olhos da tela nem para preparar o almoço, e se virou com uma banana e meio pacote de biscoito integral, depois virou seu notebook de cabeça para baixo para tirar os farelos do teclado.
Novamente em frente à tela, livre da roupa formal e sem maquiagem, estava feliz. O cursor do mouse piscava à medida que os dedos apertavam os botões, reunindo menus que a interessavam muito mais do que qualquer coisa oferecida no restaurante. Classificou os supostos fugitivos por idade e imprimiu os resultados. Seguiu os mesmos passos na classificação por área geográfica, tipo físico, contato policial prévio, alterações na situação doméstica, experiência com bebida e drogas, contatos sexuais conhecidos e interesses. Não que os investigadores estivessem muito preocupados com os hobbies daquelas pessoas.
Shaz estudou minuciosamente as impressões, lendo-as uma a uma, depois as espalhou pela mesa para que fosse mais fácil comparar as anotações. Ao observar as listas impressas, a lenta queimação de entusiasmo começou na boca do estômago. Examinou-as uma vez mais, conferindo com as fotos nos arquivos para garantir que não inventara algo que não estava ali.
— Ah, que coisa linda —exclamou suavemente, deixando escapar um longo suspiro.
Fechou os olhos e respirou fundo. Quando olhou novamente, tudo continuava claro. Um grupo de sete meninas. Primeiro, as similaridades positivas. Todas tinham cabelo escuro com corte chanel e olhos azuis. Quatorze ou quinze anos, entre um metro e cinquenta e oito e um metro e sessenta e três de altura. Moravam com um ou os dois pais. Em todos os casos, amigos e familiares disseram à polícia que ficaram perplexos com o desaparecimento da menina, pois estavam convencidos de que não tinham nenhuma razão para fugir. Em todas as ocorrências as meninas não levaram nada, apesar de que, em todos os casos, pelo menos uma muda de roupas sumira com elas, principal razão pela qual a polícia não considerou seriamente que tivessem sido vítimas de sequestro ou assassinato. Reforçava a ideia o horário dos desaparecimentos: a menina saíra para a escola como de costume, mas nunca chegara lá. Todas deram falsas explicações sobre onde passariam a noite. E, apesar disso não poder ser quantificado de uma maneira que o computador pudesse digerir, todas tinham o mesmo estilo: uma sensualidade insinuante, uma qualidade natural na maneira como se entregavam à câmera que indicava que tinham deixado para trás a inocência da infância. Eram sensuais, soubessem disso ou não.
Em seguida, as similaridades negativas. Nenhuma delas havia sido presa ou teve problemas com a polícia. Alguns amigos admitiram que bebiam de vez em quando, talvez até um baseado ocasional, anfetamina ou haxixe. Mas nenhum uso significativo de drogas. Em nenhum dos sete casos havia qualquer sinal de que estivessem envolvidas com prostituição ou fossem vítimas de abuso sexual.
Havia problemas com o grupo, claro. Três tinham namorado, quatro, não. As localizações geográficas eram distintas — Sunderland era o ponto mais ao norte, Exmouth, o mais ao sul. Entre eles estavam Swindon, Grantham, Tamworth, Wigan e Halifax. Os relatórios também abrangiam um período de seis anos. Os intervalos entre os desaparecimentos não eram regulares nem pareciam diminuir à medida que o tempo passava, o que Shaz esperaria que acontecesse caso estivesse realmente lidando com um serial killer. Por outro lado, era possível haver meninas das quais ela ainda não tinha conhecimento.
Quando Shaz acordou de manhã cedo naquele domingo, tentou voltar a dormir. Sabia que só havia uma coisa que poderia fazer para avançar na busca por conexões entre o grupo teórico de vítimas e essa única tarefa não podia ser apressada. Quando fora para cama por volta da meia-noite, prometera a si mesma que a executaria com um telefonema na hora do almoço. Mas, deitada completamente desperta e com a cabeça a mil às quinze para as sete, soube que não conseguiria esperar tanto.
Irritada pela inabilidade em fazer progresso a não ser pelas mãos de outra pessoa, desfez-se das cobertas. Meia-hora depois acelerava pela subida onde a rodovia M1 começava.
Tomar banho, vestir-se e engolir um café com o noticiário do rádio de trilha sonora ajudou a manter os pensamentos distantes. Agora que as três faixas pretas se estendiam à sua frente, ela não conseguia se esconder atrás da distração. Somente a voz do locutor do rádio não era suficiente para isso. Nem mesmo as palavras de sabedoria de Tony Hill conseguiam contê-la nesse dia. Impacientemente, enfiou uma fita de árias operísticas no som e desistiu da tentativa de concentração. Durante as duas horas e meia seguintes, não tinha nada para fazer a não ser ficar repassando memórias na cabeça, como filmes antigos em um domingo chuvoso.
Era quase dez horas quando desceu com o carro pela rampa que levava ao estacionamento do subsolo no complexo Barbican. Ficou satisfeita pelo atendente do estacionamento ter se lembrado nitidamente dela, como tinha desejado, embora parecesse surpreso em ver o rosto com um sorriso incerto na porta do seu escritório.
— Oi, sumida — disse ele de maneira carinhosa. — Tem tempo que você não aparece por aqui.
— Mudei pra Leeds — comentou ela, tomando cuidado para não dar nenhuma pista sobre o quanto sua mudança era recente.
Já havia passado dezoito meses desde a última vez que estivera ali, e as razões para isso diziam respeito somente a ela.
— Chris não falou que você vinha — informou o atendente do estacionamento, levantando-se da sua cadeira e caminhando em direção a ela. Shaz se afastou da cabine e desceu os degraus com ele seguindo-a.
— Foi tudo meio que de última hora — disse ela de maneira evasiva enquanto abria a porta do carro.
Parecia que a resposta satisfez o atendente.
— Vai passar a noite? — perguntou ele, apertando os olhos à procura de uma vaga boa.
— Não, não estou planejando ficar muito tempo — respondeu com firmeza, ligando o carro e andando vagarosamente pelos corredores de veículos, seguindo o atendente e estacionando na vaga que ele indicou.
— Vou te deixar lá no bloco — disse ele quando ela se aproximou. — Então, como é lá no norte gelado?
Shaz sorriu.
— O futebol é melhor. — Foi tudo o que disse enquanto ele puxava a gigantesca porta de vidro e metal e fazia um movimento de braço para que ela entrasse. Além disso, não sou um terrorista que não está mais na ativa, pensou ela enquanto esperava pelo elevador.
No terceiro andar, parou no meio do corredor acarpetado. Respirou fundo e apertou a campainha. No silêncio que se seguiu, soltou o ar pelas narinas lenta e uniformemente, tentando conter o nervosismo que estava transformando seu estômago em uma jacuzzi. Quando tinha quase perdido a esperança, escutou os sussurros dos passos. Depois a porta pesada abriu alguns centímetros.
Cabelo castanho desgrenhado, turvos olhos igualmente castanhos com manchas escuras embaixo deles e rugas profundas entre um e outro, nariz arrebitado e um bocejo meio reprimido atrás de uma mão quadrada com dedos grossos e unhas bem-cuidadas apareceram na greta da porta.
Dessa vez, o estreito sorriso de Shaz se esticou até seus olhos. Um arroubo de calor derreteu Chris Devine, e não pela primeira vez. A mão caiu da boca, mas os lábios continuaram separados. A primeira coisa que sentiu foi perplexidade, depois alegria, depois consternação.
— Alguma chance de tomar um café? — perguntou Shaz.
Chris deu um passo para trás de maneira hesitante e abriu mais a porta.
— É melhor você entrar — disse ela.
Capítulo 4

Nada que valha a pena ter vem fácil. Dizia isso a si mesmo em intervalos regulares durante os dois dias de suplício, embora essa fosse uma lição que provavelmente nunca esqueceria. Sua infância fora cicatrizada por disciplina opressora, e toda rebeldia e frivolidade, reprimida pela força. Aprendera a não mostrar as correntes que se moviam abaixo da superfície, a manter o semblante afável e agradável diante de qualquer adversidade que as pessoas jogassem na sua cara. Outros homens poderiam ter revelado alguns sinais da excitação que borbulhava e redemoinhava por dentro toda vez que pensava em Donna Doyle, mas ele, não. Era muito versado em dissimulação. Ninguém jamais notou que sua mente se estendia por territórios diferentes, descolada de seus arredores, levando-o a um local completamente distinto. Era uma peculiaridade que no passado o salvara de dor; agora, o mantinha a salvo.
Em sua cabeça, estava com ela, imaginava se Donna cumpria sua promes­sa, fantasiava a empolgação queimando por suas veias. Pensava na menina como um ser modificado, carregado com a arma secreta do conhecimento, convencido de que possuía o poder de todos os astrólogos de tabloide porque tinha certeza que sabia o que o futuro guardava.
É claro que a visão dela podia não ser a mesma da dele, tinha consciência disso. Teria sido difícil imaginar duas fantasias mais díspares, tão distantes no continuum que poderia não existir sequer um fator de união entre elas. Com exceção do orgasmo.
Imaginá-la imaginando um futuro falso tinha seu próprio frisson de prazer, que coabitava e alternava com uma parte de medo de que ela não mantivesse sua palavra, de que, enquanto ele jogava jogos de computador com os sofridos habitantes da ala de câncer infantil, Donna estivesse em um canto do vestiário da escola revelando seu segredo para a melhor amiga. Era a aposta que ele fazia toda vez. E, toda vez, calculara o arremesso dos dados perfeitamente. Nenhuma vez alguém o procurara. Quer dizer, não no sentido investigativo. Houve uma vez que os pais atormentados de uma adolescente pediram para aparecer na TV porque, para onde quer que ela tivesse ido, a filha jamais perderia sua dose semanal de Vance Visita. Doce ironia, tão deliciosa que ele se excitara por meses só de pensar naquilo. Não podia lhes contar que a única maneira de conversarem com a filha novamente era através de um médium, podia?
Durante duas noites seguidas, dormiu cedo e acordou de madrugada enrolado em lençóis úmidos, com o pulso acelerado e os olhos arregalados. Qualquer que tenha sido o sonho, roubou dele o sono, deixando-o a vagar pelo espaço confinado do seu quarto de hotel, alternando exultação e preocupação.
Mas nada durava para sempre. A noite de quinta-feira o encontrou no seu refúgio em Northumberland. A apenas quinze minutos do centro da cidade, ele era, contudo, tão isolado quanto um sítio em Highland. Antes uma pequenina capela metodista que nunca deve ter recebido mais do que duas dezenas de pessoas, foi comprada quando reduzida a quatro paredes espessas e um telhado caindo aos pedaços. Uma equipe de pedreiros locais ficou feliz por receber o dinheiro vivo para reformá-la de acordo com orientações bem específicas e sem nunca duvidar das razões pelas quais lhe eram pedidas tais características.
Saboreou os preparativos para a visitante. Os lençóis estavam limpos, as roupas, dispostas. O telefone estava desligado, a secretária eletrônica, com o volume baixo, o fax confinado em uma gaveta. As fibras óticas podiam zumbir chamando-o a noite inteira que ele não as ouviria até a manhã. A mesa estava coberta com linho tão branco que parecia brilhar no escuro. Sobre ele, cristal, prata e porcelana estavam arranjados de maneira tradicional. Botões de rosa vermelhos em um vaso de cristal trabalhado, velas em prataria georgiana simples. Donna ficaria fascinada. É claro que não se daria conta de que aquela seria a última vez que usaria talheres.
Deu uma olhada ao redor, conferiu se estava tudo como deveria. As correntes e tiras de couro estavam fora de vista, a mordaça de seda, escondida, e a bancada de carpintaria, livre de ferramentas, exceto pelo torno, permanentemente montado. Ele mesmo tinha desenvolvido a bancada de trabalho, todas as ferramentas dispostas em um pedaço de madeira maciça como a aba dobrável de uma mesa acoplada à ponta da bancada a noventa graus da superfície de trabalho.
Uma última olhada no relógio. Hora de ir de Land Rover pela trilha esburacada do campo até a vazia estrada B que o levaria a Five Walls Halt e sua isolada estação de trem. Acendeu as velas e sorriu sentindo um prazer absoluto, confiante de que ela tinha mantido tanto a fé quanto o silêncio.
“Gostaria de entrar no meu salão?” disse a aranha para a mosca.

 

 


CONTINUA