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Capítulo 5
As preces de Tim Coughlan tinham finalmente sido ouvidas. Ele encontrou o lugar perfeito. O cais de carga era um pouco menos amplo do que a fábrica propriamente dita, deixando um intervalo de aproximadamente dois metros quadrados em uma ponta. À primeira vista, parecia que a alcova estava bloqueada por caixas de papelão achatadas e empilhadas. Se alguém tivesse se dado ao trabalho de olhar um pouco mais de perto, teria notado que as caixas não estavam organizadas de maneira muito compacta. Com um pouquinho de esforço, não seria difícil se espremer por entre elas. Qualquer um disposto a investigar um pouco mais teria encontrado o quartinho de Tim Coughlan, onde havia um saco de dormir ensebado e manchado e duas sacolas de compras. A primeira continha uma camisa limpa, um par de meias e cuecas limpas. A outra tinha uma camisa suja, um par de meias sujas, uma cueca suja e uma calça de veludo que provavelmente fora marrom-escuro, mas que agora tinha a cor de aves marinhas depois de ficarem presas em manchas de óleo.
Tim estava relaxado em um canto do seu espaço, com o saco de dormir embolado fazendo uma almofada debaixo das suas nádegas ossudas. Comia batata com molho de curry em um recipiente de isopor e tinha uma boa quantidade de cidra em uma garrafa de um litro para acompanhar e fazê-lo dormir. Precisava de alguma coisa nas noites frias para carregá-lo até o esquecimento.
Foram muitos meses de vida difícil na rua antes de emergir do outro lado do nevoeiro de heroína que roubara sua vida. A decadência fora tanta que nem mesmo a droga estava ao alcance dele, o que, ironicamente, o salvara. Trêmulo comendo peru em um abrigo de caridade natalino, finalmente superou a crise. Começara a vender o Big Issue nas esquinas. Conseguira juntar dinheiro para comprar roupas em lojas de caridade que faziam com que tivesse uma aparência mais de pobre do que de sem-teto desesperançado e arranjara um emprego nas docas. Era informal, recebia em dinheiro, a mais obscura das contratações ilegais. Mas era um começo. Foi então que encontrou seu lugar no cais de carga de uma fábrica muito apertada de grana para poder contratar um vigia noturno.
Desde então, conseguira guardar quase trezentos dólares na sua conta na building society, provavelmente a única conexão existente com sua vida passada. Em breve, teria o suficiente para o pagamento da garantia e de um mês de aluguel em um lugar decente para morar e o suficiente para se alimentar, embora seu seguro-desemprego estivesse demorando para ser aprovado.
Tim chegara ao fundo do poço e quase se afogou. Não demoraria muito, estava convencido, para que conseguisse nadar de volta até a luz do dia. Amassou o recipiente de batatas e o jogou em um canto. Depois abriu a garrafa de cidra e derramou o conteúdo garganta abaixo em uma longa série de rápidas goladas. A ideia de saboreá-la nunca lhe ocorria. Não havia razão para isso.
Oportunidades raramente batiam à porta de Jacko Vance. Na maioria das vezes, ele as agarrava pelo pescoço e as arrastava aos chutes e berros até o centro do palco. Percebera quando ainda era criança que a única maneira de algum dia dar sorte seria dando um jeito de ele mesmo criá-la. Sua mãe, afligida por uma depressão pós-parto que o tornara repugnante para ela, o ignorara o máximo possível. Ela não fora verdadeiramente cruel, apenas ausente em todos os sentidos. O pai era quem lhe dedicava atenção, geralmente de maneira negativa.
Não estava na escola há muito tempo quando a bela criança com seu cabelo louro desleixado, suas bochechas côncavos e seus enormes olhos desconcertados tomou consciência de que havia um motivo para sonhar, que era possível fazer com que as coisas acontecessem. Aquela aparência de garotinho perdido funcionava com alguns professores como um maçarico no gelo. Não demorou muito para que percebesse que podia manipulá-los e transformá-los em comparsas no seu jogo de poder particular. Nada disso apagava o que acontecia em casa, mas deu a ele uma arena onde começou a conhecer o prazer do poder.
Embora tirasse proveito da sua aparência, Jacko nunca contava apenas com o seu charme. Era como se tivesse uma compreensão interna de que haveria aqueles que demandariam um armamento diferente para que sucumbissem. Trabalhar para impressionar não era uma dificuldade desde quando inculcara dentro de si a ética do trabalho quando compreendera as mensagens dos discursos. O campo dos esportes era o lugar ideal para focar, já que possuía certo talento natural e ele oferecia uma arena mais ampla para brilhar do que o estreito palco da sala de aula. Também era uma área em que o esforço recompensava de maneira visível e espetacular.
Inevitavelmente, os elementos do seu comportamento que o valorizavam frente àqueles que detinham o poder afastou seus contemporâneos. Ninguém gostava do queridinho do professor. Ele lutou as lutas obrigatórias, ganhou algumas e perdeu poucas. As que perdeu, nunca esqueceu. Às vezes levava anos, mas sempre encontrava maneiras de executar algum tipo de vingança satisfatória. Quase nunca a vítima da sua vingança sabia que Jacko estava por trás da sua humilhação suprema, apenas algumas raras vezes.
Todo mundo no bairro pobre onde cresceu se lembra de como ele dera o troco em Danny Boy Ferguson. Danny Boy fora a maldição da vida de Jacko dos 10 aos 12 anos de idade e o atormentava sem dó. Por fim, quando Jacko partira para cima dele num ataque de raiva, Danny Boy o derrubou e o prensou no chão com uma mão levantada ostentosamente sobre sua cabeça. O nariz quebrado de Jacko foi curado e voltou ao normal, mas sua fúria obscura queimava por trás do charme que os adultos viam.
Quando Jacko venceu seu primeiro campeonato britânico júnior, da noite para o dia se transformou no herói do seu bairro pobre. Ninguém dali jamais tivera a foto estampada nos jornais de circulação nacional, nem mesmo Liam Gascoigne quando jogou um bloco de concreto em Gladstone Sanders do décimo andar. Não foi difícil persuadir a namorada de Danny Boy, Kimberley, a ir com ele para a cidade numa noite. Levou-a para jantar e beber vinho durante uma semana, depois a dispensou. Em uma noite de domingo, quando Danny começava a mandar a sua quinta cerveja, Jacko passou cinquenta pratas para o proprietário do pub para que ele tocasse no sistema de som a fita que continha uma gravação que secretamente fizera de Kimberley lhe contando, nos mínimos detalhes, como Danny Boy fodia mal pra cacete.
Quando Micky Morgan começara a visitá-lo no hospital, ele reconhecera que seus espíritos eram afins. Não estava certo sobre o que ela queria, mas tinha uma sensação forte de que Morgan queria alguma coisa. No dia em que Jillie terminou com ele e Micky se ofereceu para ajudar, teve certeza. Cinco minutos depois que ela saiu da ala, Jacko contratou um detetive particular. O sujeito era bom; as respostas chegaram antes mesmo do que ele esperava. Quando viu a obra dela nas manchetes que berravam em todos os tabloides, entendeu os motivos de Micky e soube qual seria a melhor forma de usá-la.
JACK BACANA ABANDONA O AMOR! O HERÓI DE CORAÇÃO PARTIDO! O SOFRIMENTO AMOROSO DE JACK BACANA!
Ele sorriu e continuou lendo.
O mais corajoso dos homens britânicos revelou que está fazendo o maior de todos os sacrifícios.
Dias após perder o seu sonho olímpico ao salvar a vida de duas crianças, Jacko Vance terminou o noivado com seu amor de infância, Jillie Woodrow.
O inconsolável Jacko, falando da cama do hospital onde se recupera da amputação do braço que usava para lançar dardos, disse: “Estou libertando-a. Não sou mais o homem com quem ela aceitou se casar. Não é justo querer que ela continue como antes. Não posso oferecer a vida que esperávamos ter, e a coisa mais importante pra mim é a felicidade de Jillie. Sei que ela está chateada agora, mas, em longo prazo, vai acabar se dando conta de que estou fazendo a coisa certa.”
Dessa maneira, Jillie jamais poderia negar a versão dele sem parecer uma total babaca.
Jacko aguardou o momento mais propício levando adiante a encenação da amizade que ela oferecia. Então, quando considerou que era a hora certa, atacou como uma cascavel.
— Ok, mas e então, quando vou ter que pagar a minha dívida?
— Pagar a sua dívida? — repetiu ela, intrigada.
— A história do meu sacrifício de amor — esclareceu ele, ornamentando suas palavras com uma pesada ironia. — Não falam que esse tipo de notícia só desperta interesse durante nove dias?
— Falam, sim — respondeu Micky sem parar de arrumar as flores que trouxera no vaso alto que conseguiu com a enfermeira usando seu charme.
— Bom, hoje completam dez dias desde que a imprensa soltou a notícia. Jacko e Jillie oficialmente já não são mais manchete. Estava imaginando em qual conta teria que depositar o que devo. — A voz era suave, mas observar dentro dos olhos dele era o mesmo que encarar a poça congelada de um pântano.
Micky abanou a cabeça e se acomodou na ponta da cama com o rosto sereno. Mas Jacko sabia que a cabeça dela estava a mil, calculando a melhor maneira de lidar com ele.
— Não sei o que você está querendo dizer — esquivou-se.
O sorriso de Jacko era cheio de condescendência.
— Qual é, Micky? Não nasci ontem. No mundo em que trabalha, você tem que ser uma leoa. Não se fazem favores no seu círculo sem a total compreensão de que o dia do pagamento chegar.
Ele viu que ela estava pensando em mentir e que rejeitou a ideia; esperou enquanto ela considerava a verdade e também a rejeitava.
— Vou me contentar com o que já tenho no banco — tentou ela.
— Se é assim que quer jogar, tudo bem — disse ele, indiferente. Sua mão esquerda serpenteou até o pulso dela e o agarrou. — Mas achei que você e sua namorada estivessem com um problema bem desesperador neste exato momento.
A mão grande de Jacko rodeou o pulso dela. Os músculos esculpidos do seu antebraço sobressaíram e ficaram salientes, uma terrível lembrança do que havia perdido. Não apertava a carne com força, mas ela sentia que era inquebrável como uma algema. Micky levantou a cabeça, desviando o olhar do seu pulso e observou o rosto implacável de Jacko, encontrou um momentâneo ninho de medo enquanto ela imaginava o que havia debaixo dos seus impenetráveis olhos. Ele relaxou o rosto em um leve sorriso e o instante passou. Jacko se viu refletido nos olhos dela, que agora não demonstravam nenhum traço de ameaça.
— Que coisa estranha de se dizer — falou ela.
— Não são só jornalistas que têm contatos — desdenhou Jacko. — Quando você começou a se interessar por mim, retribuí a cortesia. O nome dela é Betsy Thorne, vocês estão juntas há mais de um ano. Ela finge ser só sua assistente pessoal, mas também é sua amante. No Natal, você deu um relógio Bulova de presente pra ela, que comprou em uma joalheria da Bond Street. Dois fins de semana atrás você passou uma noite com ela num quarto de casal em uma pousada no interior, perto de Oxford. Você manda flores pra ela todo dia 23 de cada mês. Posso continuar.
— Circunstancial — disse Micky. Sua voz estava fria, todavia a pele debaixo da mão dele parecia um anel de carne em chamas. — E não é da sua conta.
— Não é da conta dos tabloides também, é? Mas eles estão cavando, Micky. É questão de tempo. Você sabe disso.
— Eles não têm como descobrir uma coisa que não está ali para ser descoberta — disse Micky, vestida em obstinação como se fosse um blazer feito sob medida.
— Vão descobrir — prometeu Jacko. — E é aí que posso ajudar.
— Suponhamos que eu precise de ajuda... que forma ela teria?
Ele soltou o pulso dela. Em vez de puxar o braço e esfregá-lo, Micky o manteve onde ele o deixou.
— Dizem os economistas que a boa moeda tende a expulsar do mercado a má moeda. É assim com o jornalismo também. Você devia saber disso. Dê a eles uma história melhor e eles vão abandonar a investigaçãozinha sórdida na qual estão trabalhando.
— Não concordo com isso. O que tem mente?
— O que me diz de “Romance hospitalar entre o herói Jacko e jornalista de TV”?
Ele levantou uma das sobrancelhas. Micky se perguntou se ele havia praticado o gesto em frente ao espelho na adolescência.
— O que você ganha com isso? — perguntou ela, depois de um momento em que ficaram se olhando de maneira avaliativa, como se medissem a congruência romântica.
— Paz e tranquilidade — respondeu Jacko. — Você não tem ideia da quantidade de mulheres lá fora que querem me salvar.
— Talvez uma delas seja a mulher certa.
O som da gargalhada que Jacko deu era seco e amargo.
— É o princípio de Groucho Marx, não é? Não querer ser membro de um clube que não me quer nele. Uma mulher que é suficiente demente para pensar que a eu preciso ser salvo e b que ela é a pessoa para o serviço é, por definição, a pior mulher do mundo pra mim. Não, Micky, preciso de camuflagem. Aí, quando eu sair daqui, o que não deve demorar pra acontecer, vou seguir a minha vida sem que toda gostosinha descerebrada do Reino Unido ache que sou a chance dela de ficar famosa. Não quero alguém que sinta pena de mim. Até alguém que eu escolha apareça, posso usar o equivalente erógeno de um colete a prova de balas. O trabalho te agrada?
Agora era a vez de Jacko adivinhar o que realmente estava acontecendo atrás dos olhos dela. Micky tinha recuperado o controle de si mesma, mantinha o ar de afável interesse, o que mais tarde a colocaria em uma boa posição no ranking de entrevistadora favorita das pessoas do Reino Unido que ficam encarceradas em casa.
— Não passo roupa. — Foi tudo o que ela disse.
— Sempre me perguntei o que um assistente pessoal faz? — comentou Jacko com um sorriso tão sarcástico quanto seu tom.
— É melhor você não deixar a Betsy escutar isso.
— Fechado?
Jacko cobriu a mão dela com a sua.
— Fechado — concordou ela, virando a mão para cima e entrelaçando os dedos nos dele.
O mau cheiro acertou Carol assim que ela abriu a porta do seu carro. Não havia nada tão repugnante quanto churrasco de carne humana e, uma vez sentido o cheiro, nunca mais podia ser apagado da memória. Tentando não deixar muito óbvia a ânsia de vômito, percorreu a pequena distância até onde Jim Pendlebury parecia estar improvisando uma entrevista coletiva debaixo do arco de luzes portáteis do corpo de bombeiros. Ela vira os jornalistas assim que seu motorista virara para entrar no estacionamento e pedira para ser deixada ali perto, bem longe da tropa de carros de bombeiros que ainda jogavam água em um depósito com o fogo quase apagado. Bem acima dos seus colegas, um homem em uma plataforma elevatória lançava um elevado arco de água sobre a cabeça deles e atingia os restos descascados do telhado. Perambulando desordenadamente atrás do corpo de bombeiros havia meia dúzia de policiais. Um ou outro observaram a chegada de Carol sem muito interesse e logo se viraram para verem melhor o restante do incêndio.
Carol não se aproximou enquanto Pendlebury dava respostas curtas e evasivas para o bem do rádio e da imprensa local. Assim que perceberam que não conseguiriam tirar muita coisa do comandante dos bombeiros, eles se dispersaram. Se algum deles tivesse prestado atenção na loura de casaco impermeável, provavelmente teriam concluído que era outro repórter. Até então Carol era reconhecida apenas pelos repórteres criminais e era cedo demais para que aquilo tivesse sido promovido de manchete de jornal para história de crime. Assim que os repórteres do turno da noite avisassem que o incêndio na fábrica não era apenas fatal, mas que também havia a suspeita de que era criminoso, os chacais que cobriam a área criminal ganhariam de bandeja suas tarefas matinais. Um ou outro poderia até mesmo ser arrancado da cama sem cerimônia, assim como ela fora.
Pendlebury cumprimentou Carol com um sorriso largo e comentou:
— O cheiro do Inferno.
— Sem dúvida.
— Obrigado por vir.
— Obrigada por me dar o toque. De outra forma eu não teria ficado sabendo de nada até chegar ao trabalho amanhã de manhã e ler os relatórios do turno da noite. Aí teria perdido os deleites proporcionados por uma cena de crime fresquinha — comentou, sarcasticamente.
— Bom, depois da nossa conversinha de outro dia, eu sabia que isto aqui ia ser um prato cheio pra você.
— Acha que é o nosso incendiário em série?
— Eu não ia ligar pra você às três e meia da manhã se não tivesse certeza disso — justificou ele.
— Então, o que temos?
— Quer dar uma olhada?
— Só um minutinho. Primeiro, queria que me fizesse um relato verbal enquanto ainda consigo me concentrar naquilo que você diz em vez de no que o meu estômago está fazendo.
Pendlebury ficou um pouquinho surpreso, como se esperasse que ela tolerasse mais aqueles horrores todos.
— Está certo — disse ele, meio desconcertado. — Recebemos a ligação logo depois das duas, de uma das suas radiopatrulhas, na verdade. Estavam fazendo ronda e viram o fogo. Chegamos com duas viaturas aqui sete minutos depois, mas o lugar já estava em chamas. Outros três caminhões chegaram aqui dentro de meia-hora, mas não havia a menor possibilidade de salvarmos o prédio.
— E o corpo?
— Assim que diminuíram o fogo nesta parte do depósito, o que levou mais ou menos meia-hora, os bombeiros perceberam o cheiro. Foi quando me ligaram. Fico permanentemente de plantão para todos os incêndios fatais. Os seus rapazes ligaram para o Departamento de Investigação Criminal e eu liguei pra você.
— E onde está o corpo?
Pendlebury apontou para um lado do prédio.
— De acordo com o que sabemos até agora, estava no canto do cais de carga. Parece que tinha um tipo de alcova em uma ponta. Se prestarmos atenção nas cinzas, dá pra ver que provavelmente havia um monte de papelão amontoado em frente a ela. Não conseguimos entrar lá, ainda está muito quente e há um risco muito grande das paredes desmoronarem, mas, de acordo com o que a gente pode ver e com o cheiro, eu diria que o corpo está atrás ou debaixo de toda aquela cinza molhada na parte de trás daquela alcova.
— Você não tem dúvida de que há um corpo lá dentro? — Carol estava enrolando, e sabia disso.
— Só existe uma coisa que tem cheiro de humano assado e é humano assado — disse Pendlebury sem meias palavras. — Além disso, praticamente dá pra ver o contorno do corpo. Chega aqui, vou te mostrar.
Alguns minutos depois, Carol estava de pé ao lado de Pendlebury a uma distância da ruína esfumaçada que ele alegou ser segura. Ela sentia um calor desconfortável, mas aprendera a confiar na expertise dos outros durante o seu período na força. Recuar teria sido desrespeitoso. Quando ele apontou para os contornos da forma enegrecida que o fogo e a água deixaram na ponta do cais de carga, foi impossível para ela não chegar à mesma conclusão que o comandante dos bombeiros.
— Quando o pessoal da cena do crime vai poder começar a trabalhar? —perguntou ela com um tom aborrecido.
Ele fez uma careta e respondeu:
— Hoje de manhã, só que mais tarde.
— Vou providenciar para que a equipe esteja pronta. — Ela se virou. — Era exatamente isto que eu não queria que acontecesse — disse, meio que para si mesma.
— Era quase certo que ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Lei das médias — afirmou Pendlebury levianamente, acompanhando o passo dela, que a levava de volta para o carro.
— Devíamos ter acabado com esse negócio de incendiário há muito tempo — afirmou Carol, procurando furiosamente um lenço no bolso para limpar a cinza molhada dos seus tênis. — O trabalho policial está muito desleixado. A gente já devia ter pegado esse cara. É culpa nossa ele ainda estar solto pra matar pessoas.
— Você não está sendo justa com você mesma — protestou Pendlebury. — Está aqui há cinco minutos e sacou o negócio de cara. Não deve se culpar.
Carol parou de tentar limpar, olhou para cima e, com a cara fechada, falou com raiva:
— Não estou me culpando, mas quem sabe a gente podia ter se esforçado um pouquinho mais no caso. O que estou falando é que em algum momento a polícia desta área desapontou as pessoas que ela devia servir. E talvez você devesse ter sido um pouco mais contundente ao tentar convencer o meu predecessor de que achava que era coisa de incendiário.
Pendlebury estava em choque. Não conseguia se lembrar da última vez em que fora criticado cara a cara por um membro de outro serviço de emergência.
— Acho que você está um pouquinho fora de si, inspetora-chefe — disse, soando pomposo por causa da indignação.
— Lamento muito você se sentir assim — disse Carol rispidamente, levantando-se e endireitando os ombros. — Mas se vamos ter um relacionamento de trabalho produtivo, não há motivo pra cordialidade em prejuízo da honestidade. Espero que você me informe quando achar que não estivermos fazendo a nossa parte. Não quero brigar com você por causa disso. Quero pegar esse cara. Mas não vamos fazer progresso nenhum se ficarmos aqui parados falando que não é nossa culpa que um pobre coitado morreu lá dentro.
Por um momento, eles se encararam; Pendlebury indeciso sobre como lidar com a feroz determinação dela. Por fim abriu as mãos num gesto conciliatório.
— Desculpa. Você está certa. Eu não deveria ter aceitado não como resposta.
Carol sorriu e estendeu a mão.
— Vamos os dois tentar fazer a coisa certa de agora em diante, ok?
Eles apertaram as mãos.
— Fechado — disse ele. — Falo com você mais tarde, quando a equipe da perícia estiver mandando ver aqui.
Enquanto dirigia, Carol só pensava em uma coisa. Havia um incendiário em série que se transformara em assassino. Pegá-lo era a única coisa a fazer. Assim que a equipe da perícia tivesse algo positivo para lhe dizer, ela pretendia esboçar um perfil. No momento em que o inquérito fosse aberto, queria ter um suspeito sob custódia. Se John Brandon achava que ela era determinada quando trabalharam juntos em Bradford, podia se preparar para uma surpresa. Carol Jordan estava ali para provar muitas questões para muitas pessoas. E, caso se sentisse desencorajada durante sua trajetória, o fedor grudado nas suas narinas seria impetuoso o bastante para fazer com que voltasse a se movimentar.
Shaz se virou e olhou para o relógio. Vinte para as sete. Apenas dez minutos desde que o olhara pela última vez. Não conseguiria dormir novamente, não naquele momento. Para ser honesta, pensou enquanto saía da cama e ia ao banheiro, provavelmente não dormiria direito até que Chris tivesse cumprido sua promessa.
Pedir o favor fora menos esquisito do que imaginara, Shaz refletia ao se inclinar para abrir as torneiras da banheira. Parecia que o tempo tinha aplainado as arestas da relação dela com a sargento Devine e elas estavam de volta ao ponto em que estiveram antes dos mal-entendidos e das propostas equivocadas que as desgastaram e se transformaram em fissuras dolorosas.
Desde o início da carreira de Shaz na Polícia Metropolitana de Londres, Chris Devine representava tudo aquilo a que Shaz aspirava. Havia apenas duas mulheres no Departamento de Investigação Criminal na unidade em que ela estava alocada, e Chris era a que possuía a patente mais alta. Era óbvio o motivo. Era uma policial com um dos melhores índices de prisões da divisão. Era firme como uma rocha nos momentos de crise, trabalhava muito, era imaginativa e incorruptível, e também demonstrava ter a cabeça no lugar e senso de humor. Mais importante ainda, conseguia participar do grupo sem nunca deixar que se esquecessem de que era mulher.
Shaz a estudara como um espécime sob o microscópio. Onde Chris estava, ela queria estar, e desejava aquele mesmo respeito. Já tinha visto muitas policiais mulheres serem dispensadas ao serem consideradas vagabundas, e estava determinada a nunca deixar que isso acontecesse consigo. Sabia que, como policial novata, era um pontinho insignificante em algum lugar da visão periférica de Chris, mas, por alguma razão, ela penetrava na consciência daquela mulher mais velha e, depois de um tempo, sempre que coincidia de estarem na delegacia recebendo instruções, podiam invariavelmente ser encontradas em um canto da cantina bebendo um chá brutalmente forte e falando de trabalho. No dia em que Shaz pôde se candidatar ao cargo de assistente do Departamento de Investigação Criminal, a sargento indicou o nome dela. A recomendação de Chris foi o suficiente para que conseguisse o cargo e, algumas semanas depois, Shaz já fazia sua primeira ronda noturna com Chris. Demorou um pouco mais para perceber que Chris era lésbica, e que estava supondo que aquela perseguição era mais sexual do que profissional. A noite em que a sargento a beijara fora o pior momento da sua carreira.
Por um instante, quase deixou que aquilo continuasse, tão profunda era a sua ambição. Então a realidade a cutucou. Shaz podia não ter sido muito boa em estabelecer relacionamentos, mas sabia o suficiente sobre si mesma para ter certeza de que definitivamente não era com as mulheres, mas com os homens que se conectava. Fugiu do abraço de Chris com mais vigor do que de uma espingarda de cano serrado. O momento logo em seguida era algo que nem Shaz nem Chris conseguiam lembrar sem uma desconfortável mistura de emoções: humilhação, constrangimento, raiva e traição. A opção sensata provavelmente teria sido uma delas pedir transferência, mas Chris não estava preparada para abandonar a área que conhecia como a palma da sua mão, e Shaz era teimosa demais para desistir da sua primeira grande chance de conseguir um cargo permanente no Departamento de Investigação Criminal.
Então estabeleceram um desconfortável armistício que permitia que ficassem na mesma equipe. Entretanto, sempre que conseguiam evitar fazer o turno juntas, evitavam. Seis meses antes de Shaz se mudar para Leeds, Chris fora promovida e transferida para a New Scotland Yard. Desde então não se falaram, até Shaz chegar à porta de Chris para lhe pedir um favor.
Shaz misturou frutas picadas ao cereal e chegou à conclusão de que engolir o orgulho e pedir ajuda a Chris fora mais fácil do que pensara, possivelmente por Chris ter ficado desconsertada pela presença em seu apartamento — e, obviamente, em sua cama — de uma especialista em impressão digital que Shaz se lembrava de ter visto em Notting Hill Gate. Quando explicara o que ela queria, Chris concordou na mesma hora, entendendo exatamente por que Shaz estava tão disposta a fazer muito mais do que o instrutor do curso esperava dos seus policiais. E, novamente, como se o destino tivesse assumido o comando da vida dela, Chris por acaso estava de folga no dia seguinte, e conseguiria colher a informação que Shaz queria no menor tempo possível.
Enquanto remexia distraidamente o café da manhã e enchia a boca, imaginava Chris passando o dia no arquivo nacional de jornais em Colindale, fazendo cópia atrás de cópia das páginas dos jornais locais até ter coberto o período que compreendia todos os sete desaparecimentos que haviam dominado os pensamentos de Shaz. Ela colocou o pote de cereal vazio debaixo da torneira de água quente com uma expectativa crescendo dentro de si. Não conseguia dizer por que tinha tanta certeza, mas estava convencida de que os primeiros passos na sua jornada por provas teria seu caminho traçado na imprensa local.
Até então nunca tinha se equivocado. Com exceção, é claro, de Chris. Mas aquilo, disse a si mesma, fora diferente.
— Os tipos de caso com os quais trabalharemos são aqueles que deixam a maioria dos policiais tensos. Isso acontece porque os criminosos estão dançando num ritmo diferente do restante de nós.
Tony olhou ao redor, conferindo mais uma vez se estavam prestando atenção nele ou se folheavam seus papéis. Parecia que Leon preferia estar em outro lugar, mas Tony acabou se acostumando com suas afetações e não mais as levava em conta. Satisfeito, continuou:
— Saber que estão lidando com pessoas que criam suas próprias regras é uma experiência muito perturbadora para qualquer um, mesmo para policiais treinados. Por sermos de fora e chegarmos para dar sentido ao bizarro, é natural a tendência de nos colocarem como parte do problema e não da solução, por isso é importante que nos concentremos em construir afinidade com os policiais investigativos. Todos vocês vieram do Departamento de Investigação Criminal... têm alguma ideia sobre que tipo de coisa pode funcionar?
Simon foi o primeiro a opinar:
— Levar os caras pra tomar uma cerveja?
Os outros vaiaram e o zoaram por causa da previsibilidade.
Tony sorriu um sorriso amarelo.
— Acho que eles terão desculpas para não irem ao bar com vocês. Outras ideias?
Shaz levantou a caneta.
— Ralar que nem um doido. Se perceberem que você pega no pesado, vão te respeitar.
— Ou isso ou vão achar que você é puxa-saco do chefe — debochou Leon.
— Não é uma má ideia — comentou Tony — apesar de Leon ter levantado uma boa questão. Se for seguir essa estratégia, também vai precisar demonstrar um completo desdém por qualquer um acima da patente de detetive inspetor-chefe, o que poderia ser desgastante, além de contraproducente.
Eles riram.
— O pulo do gato pra mim é de uma simplicidade incrível — continuou Tony. Encarou-os com um olhar questionador e perguntou: — Não? O que acham de elogios?
Alguns deles concordaram com um gesto prudente de cabeça. Leon apertou os lábios e rosnou:
— Mais puxação de saco.
— Prefiro pensar nisso mais como uma técnica entre muitas no arsenal do criador de perfis. Não a uso para promoção própria; mas em benefício do desenvolvimento do caso. — disse Tony, chamando a atenção de Leon de maneira delicada. — Tenho um mantra que solto em toda oportunidade que tenho.
Ele mudou um pouquinho de posição, uma mudança que fez a sua linguagem corporal passar de autoridade confortável para subordinado. Com um sorriso autodepreciativo e com um tom condescendente, disse:
— É claro. Eu não soluciono assassinatos. Policiais fazem isso.
Depois, com a mesma rapidez, voltou à posição anterior.
— Funciona comigo. Pode não funcionar com vocês. Mas não há mal algum em falar para o investigador o quanto você respeita o trabalho dele e que você é só uma pecinha que pode fazer com que a máquina dele funcione melhor.
Houve um momento em silêncio.
— Vocês têm que falar isso pelo menos cinco vezes por dia.
Estavam todos sorrindo.
— Depois que fizerem isso, há uma chance razoável deles repassarem as informações necessárias para traçar o perfil. Se não se derem ao trabalho de fazer o esforço, é mais provável que escondam o máximo que conseguirem sem causarem problemas para eles mesmos, porque verão vocês como rivais em relação à glória que vem da solução de um caso muito famoso. Uma vez que vocês têm os investigadores ao seu lado, têm as provas. Então é hora de trabalhar no perfil. Primeiro, calculem as probabilidades.
Ele levantou e começou a rondar a sala como um felino verificando os limites do seu domínio.
— Ela é o único deus do criador de perfis. Abandonar a probabilidade em favor de uma opção demanda a mais poderosa das evidências. A desvantagem disso é que haverá momentos em que você vai estar tão enganado que vai ficar até com vergonha.
Ele já conseguia sentir os batimentos cardíacos aumentando e ainda não havia falado uma palavra sobre o caso.
— Tive essa experiência no último caso importante do qual participei. Lidávamos com um serial killer que matava jovens rapazes. Eu tinha toda a informação disponível para a polícia graças a uma brilhante oficial de ligação. E, com base nas evidências, esbocei um perfil. A oficial fez algumas sugestões com base nos instintos dela. Uma dessas sugestões era uma ideia interessante que não tinha me ocorrido porque eu não tinha tanto conhecimento de informática quanto ela. Porque era algo que apenas uma pequena parcela da população saberia, categorizei-a como uma probabilidade moderadamente baixa. Normalmente, isso quer dizer que a equipe de investigação atribuiria uma prioridade baixa àquilo, mas estavam sem muitas pistas, então foram averiguar. No final das contas, ela estava certa, o que, por si só, não fez com que a investigação avançasse muito.
As mãos dele estavam suadas e frias, mas agora que confrontava os detalhes que ainda retalhavam suas noites, seu estômago parara de se contrair. Continuou sua análise se esforçando menos do que imaginara ser necessário.
— Descartei a outra sugestão dela por ser completamente maluca. Era contrária a tudo o que eu sabia sobre serial killers.
Tony se deparou com os olhares curiosos. A tensão que sentia estava refletida em todo o esquadrão, que estava sentado, quieto e imóvel, aguardando o que viria a seguir.
— Meu descaso em relação à sugestão dela quase me custou a vida — disse, com simplicidade, ao alcançar sua cadeira e se sentar novamente. Olhou ao redor da sala, surpreso por conseguir falar controladamente. — E sabem de uma coisa? Estava certo em ignorá-la. Porque, em uma escala de um a cem, a proposição dela era tão improvável que sequer seria levada em consideração.
Assim que a confirmação formal do corpo no incêndio chegou, Carol convocou uma reunião com sua equipe. Dessa vez, não havia biscoito de chocolate.
— Espero que todos vocês tenham escutado o jornal hoje de manhã — falou, sem rodeio, enquanto se organizavam na sala dela. Tommy Taylor assentou com as pernas arreganhadas na única cadeira além da de Carol, levando em conta que era o sargento. Devia ter aprendido que não deveria se sentar quando uma mulher estava de pé, mas há muito tempo deixara de pensar em Di Earnshaw como mulher.
— Lógico — respondeu ele.
— Coitado do sujeito — Lee Whitbread entrou na conversa.
— Coitado do sujeito nada — protestou Tommy. — Ele não deveria estar lá, deveria?
Enojada, mas não surpresa, Carol disse:
— Se deveria ou não, não interessa. Ele está morto, e nós deveríamos estar procurando quem o matou.
Tommy fez uma cara de rebelde, cruzou os braços no encosto da cadeira e plantou os pés com mais firmeza no chão, mas Carol se recusou a responder ao desafio.
— Incêndios criminosos são sempre uma bomba-relógio — continuou ela. — E, desta vez, ela explodiu bem na nossa cara. O dia de hoje não está sendo o mais magnífico da minha carreira. Então, o que vocês têm pra mim?
Lee, inclinado contra o arquivo, foi logo tratando de tirar o peso dos seus ombros:
— Pesquisei todos os arquivos dos últimos seis meses. Pelo menos aqueles em que consegui pôr a mão. — Ele se corrigiu. — Achei alguns poucos incidentes como os que a senhora falou pra gente procurar, alguns nos relatórios do turno da noite do Departamento de Investigação Criminal, alguns nos dos policiais das delegacias. Estava planejando imprimir e agrupar o material hoje.
— Eu e Di estávamos interrogando de novo as vítimas, como a senhora mandou. Não topamos com nenhum fator de ligação até agora — disse Tommy, com a voz distante e seguindo o rosto de reprovação de Carol.
— Uma variedade de companhias de seguro, esse tipo de coisa — acrescentou Di.
— O que me dizem de um motivo racial? — indagou Carol.
— Algumas vítimas asiáticas, mas não é suficiente para considerarmos significante — respondeu Di.
— Já falamos com as seguradoras?
Di olhou para Tommy e Lee olhou pela janela. Tommy pigarreou e disse:
— Estava na lista da Di pra hoje. Primeira oportunidade que ela teve.
Nada impressionada, Carol abanou a cabeça e falou:
— Está bem. É o que nós vamos fazer agora. Tenho alguma experiência em criação de perfil criminal... — Ela parou quando Tommy resmungou algo. — Desculpe, sargento Taylor, você tem alguma contribuição?
Com a confiança restabelecida, Tommy deu um sorriso insolente e falou:
— Eu disse “a gente ouviu falar”, senhora.
Por um momento, Carol ficou calada, encarando-o apenas. Eram situações como essa que podiam fazer com que o trabalho degenerasse e se transformasse em um tormento se não fossem tratados corretamente. Até então, era apenas um desrespeito insolente. Porém, se ela deixasse passar, rapidamente se transformaria em insubordinação total. Quando falou, sua voz estava tranquila, mas fria:
— Sargento, não entendo essa sua ambição ardente de voltar a usar farda e brincar de policiamento comunitário, mas ficarei mais do que feliz em permitir isso se o trabalho no Departamento de Investigações Criminais continuar não sendo do seu agrado.
A boca de Lee se contorceu contra a sua vontade; os olhos escuros de Di Earnshaw se fecharam um pouco, aguardando a explosão que não chegou. Tommy puxou as mangas da camisa até a altura dos cotovelos, olhou direto nos olhos de Carol e disse:
— Acho melhor mostrar do que sou feito, chefe.
— É melhor mesmo, Tommy — alertou Carol. — Agora vou trabalhar em um perfil, mas, para fazer com que isso seja mais do que um simples exercício acadêmico, precisarei de muitos dados brutos. Já que não conseguimos encontrar nenhuma ligação entre as vítimas, vou arriscar e dizer que o que temos um caçador de emoção e não um incendiário de aluguel. O que significa que estamos procurando um jovem adulto do sexo masculino. Provavelmente desempregado, com chance de ser solteiro e de ainda morar com os pais. Não entrarei no psicologismo barato sobre inadequação social e essa coisa toda agora. O que precisamos procurar é alguém com antecedente policial por pequenos crimes de perturbação, vandalismo, abuso de substâncias, esse tipo de coisa. Quem sabe crimes sexuais menores. Um voyeur que se expõe. Ele não tem perfil de bandido, assaltante, ladrão ou delinquente. Vai ser um filho da mãe infeliz. Preso e solto desde a pré-adolescência. Provavelmente não tem carro, então precisamos observar a geografia dos incêndios; há chances de que, se vocês desenharem uma linha ligando os incêndios mais afastados, ele more dentro desses limites. Deve ter visto esses incêndios de um lugar privilegiado, então procurem por esse lugar e quem pode ter testemunhado o sujeito lá. Vocês conhecem a área. É trabalho de vocês me trazer suspeitos que a gente possa comparar com o meu perfil. Lee, quero que converse com o responsável por organizar a documentação na delegacia e veja quem os policiais conhecem que se encaixam nesse padrão. Vou continuar traçando um perfil completo e o Tommy e a Di vão fazer o trabalho rotineiro relacionado ao crime propriamente dito, estabelecendo a ligação com a perícia e organizando um porta a porta na área. Que diabos, não preciso falar pra vocês como fazer uma investigação de assassinato...
Uma batida na porta interrompeu o discurso desenfreado de Carol.
— Entra — gritou.
A porta foi aberta, era John Brandon. Aquele era, Carol percebeu, um indicador do quanto ainda teria que fazer antes de ser aceita na força de East Yorkshire, pois ninguém fora capaz de dar o toque nela de que o chefe estava chegando. Ela levantou abruptamente, Tommy quase caiu ao tentar sair apressado da sua cadeira e Lee empurrou com o cotovelo o arquivo para endireitar o corpo, o que fez ressoar um estalo. Somente Di Earnshaw já estava no lugar certo, em pé de costas para a parede com os braços cruzados em frente ao peito.
— Desculpe interromper, detetive inspetora-chefe Jordan — disse Brandon amigavelmente. — Uma palavrinha?
— Certamente, senhor. Já tínhamos praticamente terminado aqui. Vocês três sabem o que estamos procurando. Agora é com vocês — disse Carol, dando um sorriso que, ao mesmo tempo que os dispensava, os encorajava. Os três subordinados saíram da sala sem sequer dar uma olhadinha para trás. Brandon fez um gesto com a mão para que Carol se sentasse enquanto dobrava seu longo corpo e se acomodava na cadeira de visitante.
— O incêndio fatal na propriedade de Wardlaw — começou ele, sem formalidades.
Carol gesticulou afirmativamente a cabeça e informou:
— Estive lá mais cedo.
— Ouvi falar. O tal criminoso em série, então, suponho?
— Acho que sim. Tem todas as características. Estou esperando pra ver o que os investigadores dos bombeiros vão falar, mas Jim Pendlebury, comandante do corpo de bombeiros, reconhece similaridades com os incidentes identificados anteriormente.
Brandon mordeu um lado do lábio inferior. Era a primeira vez que Carol o via fazer algo que não fosse ficar completamente sereno. Ele soltou com força o ar pelo nariz e falou:
— Sei que já conversamos sobre isso e que você está convencida de que consegue lidar com a situação. Não estou falando que não consegue, porque acho que você é uma detetive boa pra cacete, Carol. Mas quero que Tony Hill dê uma olhada nisso.
— Não tem necessidade — retrucou Carol, sentindo um calor subir pelo peito e pescoço. — Com certeza não neste estágio.
A sombria cara de cachorro de Brandon pareceu ficar ainda mais comprida. — Não é crítica alguma à sua competência — justificou ele.
— Estou inclinada a dizer que é o que parece — disse Carol, tentando não soar tão rebelde quanto se sentia, forçando-se para lembrar o quando a impertinência de Tommy Taylor há pouco tempo atrás a tirara do sério. — Senhor, mal começamos a investigação. É bem possível que tenhamos a situação resolvida em questão de dias. Não podem existir tantos suspeitos potenciais assim em Seaford que se encaixem no perfil de incendiário em série.
Brandon se mexeu na cadeira, como se pelejasse para arranjar uma posição adequada para suas longas pernas.
— Eu me encontro numa posição bem difícil aqui, Carol. Nunca gostei do comando tipo “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Sempre achei que as coisas funcionam melhor quando meus oficiais entendem por que dou as ordens que dou, em vez de me obedecerem cegamente. Por outro lado, por razões operacionais, às vezes as coisas devem ser feitas com base na confiança. E, quando outras unidades fora do meu comando estão envolvidas, mesmo quando acho que não exista razão objetiva para sigilo, tenho que respeitar o que me pedem. Será que me entende?
Ele levantou as sobrancelhas num gesto que representava uma pergunta ansiosa. Se existia algum dos seus policiais que conseguia ler entre linhas tão oblíquas, era Carol Jordan. Ela franziu a sobrancelha ao digerir as palavras de Brandon.
— Então, hipoteticamente — falou ela, dedicando um tempo para pensar no que estava dizendo —, se uma nova unidade, com uma área de atuação específica, estivesse sendo criada, e eles quisessem uma delegacia solidária que os deixasse usar um dos seus casos como cobaia, mesmo achando que o oficial responsável tem o direito de saber do que se trata, você seria compelido a apoiar a exigência de sigilo quanto à verdadeira razão pela qual eles receberiam o caso? Esse tipo de coisa, senhor?
Brandon deu um sorriso agradável e falou:
— Falando de maneira puramente hipotética, sim.
Não houve um sorriso em resposta.
— Na minha opinião, esta não seria uma ocasião apropriada para um experimento assim. — Ficou em silêncio por um momento. — Senhor.
Brandon ficou surpreso e perguntou:
— Por que, não?
Carol pensou um pouco.
Poucos dos que se formavam muito rápido escalaram o pau-de-sebo com tanta velocidade quanto ela, particularmente mulheres. A patronagem de John Brandon dera a ela mais do que podia sequer almejar. E ela não conseguia nem mesmo ter certeza se suas verdadeiras razões de relutância eram aquelas que estava prestes a relatar. Entretanto, nunca deixara de dar a cara a tapa, nem desistia das suas convicções.
— Somos uma força nova — disse ela, cuidadosamente. — Acabei de chegar pra trabalhar com um grupo de pessoas que forma uma equipe há muito tempo. Estou tentando construir um relacionamento de trabalho que vai nos permitir proteger e servir a comunidade. Não consigo fazer isso se sou arrancada do primeiro grande caso que aparece na minha mesa desde que cheguei aqui.
— Ninguém está falando em tirar o caso de você, inspetora-chefe — argumentou Brandon, refletindo a formalidade de Carol. — Estou falando de usar a consultoria da nova força-tarefa.
— Vai parecer que o senhor não confia em mim — contra-argumentou Carol.
— Isso não faz o menor sentido. Se não confiasse nas suas habilidades, porque teria indicado você para a promoção?
Carol balançou incrédula a cabeça. Ele realmente não tinha entendido.
— Tenho certeza que os cowboys lá na cantina não vão ter o menor problema pra pensar coisas a esse respeito — comentou ela amargamente.
Brandon arregalou os olhos quando entendeu do que ela estava falando.
— Você acha que eles... Não pode ser... Isso é ridículo! Nunca ouvi uma coisa tão absurda!
— Nossa, senhor. — Carol deu um sorriso torto e passou a mão no despenteado cabelo louro. — Também não estou tão acabada assim.
Brandon abanou a cabeça descrente.
— Nunca me ocorreu que as pessoas podiam interpretar mal a sua promoção. É evidente que você é uma ótima policial. — Ele suspirou e mordeu o lábio novamente. — Agora estou numa posição pior da em que estava antes de entrar aqui.
Ele olhou para ela e tomou a decisão.
— Vou falar extra-oficialmente. Paul Bishop está tendo problemas no relacionamento com os oficiais graduados em Leeds. Deixaram claro que não querem a equipe dele naquela área e não vão deixar que cheguem perto de nenhum dos crimes deles. Paul precisa de um caso real para que os policiais aprendam o trabalho e, por razões óbvias, não quer que seja um serial killer ou um estuprador com muita visibilidade. Ele me ligou porque somos vizinhos e me pediu pra ficar de olho em alguma coisa que servisse como exercício pro esquadrão antes de estarem oficialmente disponíveis para pegar casos de qualquer um. Para ser totalmente honesto, ia oferecer a eles o seu incendiário em série antes mesmo de ele se tornar fatal.
Carol tentou manter a raiva longe do rosto. Era sempre desse jeito. Assim que você acha que conseguiu ensiná-los a usar a caixinha de areia, eles voltam a ser neandertais.
— Agora passou a ser assassinato. Difícil alguma coisa ganhar mais visibilidade do que isso — ela disse. — Para respeito próprio, independentemente do respeito da minha equipe, preciso chefiar a investigação. Não preciso ser vista como alguém que usa a Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais como muleta pra conseguir as coisas — continuou ela, friamente. — Se achasse que a melhor maneira da polícia solucionar um problema fosse com esse pessoal, teria me candidatado para entrar lá. Não acredito que esteja me minando desse jeito. Senhor. — A última palavra foi dita como um palavrão.
A maneira de Brandon lidar com ameaça de insubordinação era muito diferente da de Carol. Um homem na posição dele tinha pouca necessidade de ameaças veladas; ele podia ser mais criativo.
— Não tenho nenhuma intenção de minar nenhum dos meus oficiais, detetive inspetora-chefe Jordan. Por isso que você vai ser a única policial a lidar diretamente com a força-tarefa. Vai até eles em Leeds, eles não virão à nossa área. Vou deixar claro para o comandante Bishop que os policiais dele não discutirão o caso com nenhum outro policial da força de East Yorkshire. Acredito que você achará isso satisfatório.
Carol não pode deixar de sentir um invejoso respeito pela velocidade com que o chefe conseguia pensar.
— As ordens do senhor são perfeitamente claras — disse ela, recostando-se, num gesto de resignação.
Aliviado pela crise ter sido resolvida sem qualquer maior constrangimento, Brandon se levantou com um sorriso relaxado.
— Obrigado, Carol. Fico muito agradecido. Engraçado, podia jurar que você ia adorar a chance de trabalhar com Tony Hill de novo. Vocês dois se deram tão bem quando você foi a oficial de contato durante os assassinatos em Bradfield.
Ela persuadiu seus músculos a evocarem um sorriso e torceu para que parecesse verdadeiro.
— Minha resistência não tem nada a ver com o dr. Hill — informou ela, perguntando-se se Brandon acreditaria naquilo, já que nem ela mesma conseguia se convencer.
— Vou falar com eles que você vai entrar em contato. — Brandon fechou a porta depois de sair, uma cortesia que fez Carol se sentir profundamente agradecida.
— Mal posso esperar — disse ela, com a cara fechada na sala vazia.
Shaz entrou agitada pela porta da delegacia de polícia e sorriu para o policial fardado atrás da mesa com uma alegre expectativa.
— Detetive Bowman — apresentou-se. — Força-Tarefa de Criação de Perfis. Tem uma correspondência aí pra mim?
O policial parecia descrente e perguntou:
— Aqui?
— Isso mesmo — ela olhou o relógio. — Deve ter sido enviada ontem à noite. Para ser entregue hoje às nove da manhã. E como o meu relógio está marcando dez e...
— Vai ter que meter bala em alguém porque não tem nada aqui pra você, meu amor — disse o policial, incapaz de disfarçar a satisfação na voz. Não era sempre que tinha a chance de dar uma sacaneada em um desses intrometidos da força-tarefa e menosprezar uma mulher numa tacada só.
— Tem certeza? — perguntou Shaz, tentando não demonstrar a decepção que sabia que aumentaria a satisfação do homem.
— Tenho a minha insígnia de leitura, meu amor. Confia em mim, sou policial. Não tem correspondência nenhuma pra você aqui.
Já aborrecido, ele se virou ostensivamente e fingiu estar interessado em uma pilha de papéis.
Fervendo de frustração, com seu bom humor já tendo ficado para trás, ela contornou o corredor dos elevadores e subiu correndo os cinco lances de escada até a sala de operações da força-tarefa.
— Nunca confie em outra pessoa, nunca confie em outra pessoa — disse ela com a cabeça pulsando em sincronia com os pés nos degraus e o sangue nas orelhas. Marchou direto para dentro da sala onde ficava seu computador e se jogou na cadeira, mal conseguindo soltar um grunhido para cumprimentar Simon, o único outro ocupante da sala. Shaz pegou o telefone e socou nas teclas o número da casa de Chris.
— Vagabunda! — murmurou quando a secretária eletrônica atendeu.
Ela arrancou sua agenda da bolsa e digitou o nome de Chris. Seu dedo indicador golpeava o número da linha direta da New Scotland Yard. O telefone foi atendido na segunda chamada:
— Devine.
— É Shaz.
— Não interessa o que você está querendo, a resposta é não, docinho. Acho que nunca vou conseguir tirar a poeira e a tinta das unhas da mão depois do exerciciozinho de ontem. Com certeza não é uma coisa que você coloca no topo da lista de “coisas legais para fazer no dia de folga”.
— Fico muito agradecida, você sabe disso. Só que...
— O que foi, Shaz? — suspirou Chris.
— O negócio ainda não chegou.
Chris bufou e disse:
— Só isso? Escuta só, na hora que acabei, e tenho que contar que só consegui isso porque dei a velha carteirada pra manter os funcionários quietos lá, já era muito tarde e não dava tempo de mandar ser entregue aí hoje cedinho. O mais cedo era meio-dia. Ou seja, você vai receber a qualquer momento hoje. Está certo?
— Tem que estar — disse Shaz, preocupada em não soar indelicada, mas incapaz de se importar com isso.
— Relaxa, docinho. Não é o fim do mundo. Você vai acabar tendo uma úlcera — brincou Chris.
— Tenho que apresentar o meu caso amanhã à tarde — explicou Shaz.
Chris deu uma gargalhada.
— Qual é o problema, então? Puta merda, Shaz, esse ar aí de Yorkshire está te deixando mais lenta. Você já foi mais ligadona. Tem a noite inteira pra se virar. Não me diga que está amolecendo.
— Eu tenho essa esquisitice de dar uma dormidinha entre o anoitecer e a madrugada — comentou Shaz.
— Por isso mesmo nunca nos demos muito bem, não é mesmo? Me dá uma ligada se não tiver recebido o negócio até lá pelo meio da tarde, está bem? Relaxa. Ninguém vai morrer.
— Tomara que não — comentou Shaz, mas Devine já tinha desligado.
— Problemas? — perguntou Simon, abaixando-se ao lado de Shaz e empurrando uma caneca em direção a ela.
Shaz deu de ombros, esticando o braço para pegar o café.
— Só umas coisas que queria conferir antes de entregarmos o relatório do exercício amanhã.
O interesse de Simon se expandiu repentinamente para além das possibilidades eróticas de um flerte com Shaz.
— Encontrou alguma coisa? — perguntou ele, falhando no propósito de demonstrar indiferença.
O sorriso irônico de Shaz foi maligno.
— Quer dizer que ainda não olhou o material?
— Lógico que olhei. Fiz isso na mesma hora, é sério — respondeu ele, nitidamente se vangloriando.
— Certo. Então também encontrou a conexão externa?
Shaz gostou da inexpressividade que atravessou o rosto branco como leite de Simon antes dele retomar o controle. Ela riu soltando o ar.
— Boa tentativa, Simon.
Ele abanou a cabeça e disse:
— Tá certo, Shaz, você venceu. Vai me contar o que descobriu se eu pagar um jantar pra você hoje à noite?
— Vou te contar o que descobri amanhã à tarde, na mesma hora em que vou contar pra todo mundo. Mas, se o convite for de verdade e não uma chantagem, até que aceitaria tomar uma antes de a gente sair pro restaurante indiano no sábado à noite.
Simon estendeu a mão.
— Combinado, detetive Bowman — Shaz pegou a mão dele, elas encaixavam.
A probabilidade de tomar alguma coisa com Simon antes do jantar, apesar de sedutora, não foi capaz de distrair Shaz da expectativa em relação à sua encomenda. No coffee-break, ela estava no balcão da recepção antes mesmo dos outros terem preparado o café. Durante o resto da manhã, enquanto Paul Bishop mostrava como aplicar a criação de perfis a uma lista de suspeitos, Shaz, normalmente a mais atenciosa dos alunos, estava inquieta como uma criança de quatro anos na ópera. Assim que fizeram a pausa para o almoço, Shaz disparou escada abaixo como um galgo inglês numa corrida de cachorros.
Desta vez suas expectativas haviam sido correspondidas. Uma caixa de papelão lacrada com o que parecia um rolo inteiro de fita adesiva estava sobre o balcão.
— Se demorasse um pouquinho mais eu ia ligar pro esquadrão antibomba. Isto aqui é uma delegacia, não uma agência do correio.
— Ainda bem. Se fosse, você não aguentaria o batente.
Shaz pegou a caixa no balcão e saiu apressada em direção ao estacionamento. Abriu o porta-malas do carro e deu uma olhadinha rápida no relógio. Calculou que tinha aproximadamente dez minutos antes que a sua ausência na mesa de almoço coletiva instigasse comentários. Afobada, arrancou a fita adesiva com a unha até que tivesse descolado o suficiente para forçar a abertura da aba.
Sentiu o coração apertado. A caixa estava abarrotada de papéis. Por um breve momento, questionou-se sobre a possibilidade de abandonar a sua intuição. Depois pensou nas sete adolescentes, nos rostos sorridentes para ela com toda a expectativa de que, independentemente de quantas fossem as decepções que a vida lhes guardasse, pelo menos elas teriam uma vida. Aquele ali não era somente um exercício. Em algum lugar havia um assassino de coração frio. E a única pessoa que parecia ter conhecimento disso era Shaz Bowman. Mesmo que levasse a noite inteira, ela, no mínimo, devia esse esforço àquelas meninas.
Vendo-o novamente cara a cara, Carol foi atingida pela realização de que era dor o que espreitava atrás do rosto de Tony Hill. Desde que o conhecera, nunca percebera o que sustentava a intensidade dele. Sempre supôs que ele era como ela: conduzido somente pelo desejo de capturar e entender, inflamado pela paixão em elucidar, assombrado pelas coisas que vira, escutara e fizera. Mas a distância permitira a ela compreender aquilo que não conseguiu ver antes, e se pegou pensando no quanto o comportamento dela em relação a Tony teria sido diferente caso tivesse realmente capturado o que estava acontecendo por trás daqueles olhos negros e perturbados.
É claro que ele deu um jeito de providenciar para que não estivessem sozinhos no primeiro encontro entre eles depois de meses separados. Paul Bishop foi enviado para se encontrar com ela quando chegasse à base da força-tarefa em Leeds, e a asfixiou com o charme que o transformara no queridinho da mídia. Seu cavalheirismo não chegou ao ponto de se oferecer para carregar as duas pesadas malas, e Carol se divertiu ao notar que ele não podia passar por uma superfície refletora sem dar uma conferida na aparência em busca de imperfeições, ora alisando a sobrancelha, ora nivelando os ombros largos na roupa claramente feita sob medida.
— Nossa, estou muito entusiasmado em conhecer você — disse ele. — A melhor e mais inteligente pupila de John Brandon. Por si só já é uma façanha, sem contar o seu currículo. — Isso fala por si só, é claro. Brandon falou que a gente fez academia militar juntos? Que incrível policial aquele homem é, e que incrível caça-talentos.
O entusiasmo dele era contagiante e Carol se pegou respondendo à bajulação, embora suas intenções fossem as melhores.
— Sempre gostei de trabalhar com o sr. Brandon — disse ela. — Como estão caminhando as coisas com a força-tarefa?
— Ah, você vai ver com os próprios olhos — comentou desinteressadamente, conduzindo-a para dentro do elevador. — É claro que Tony está agradecendo aos céus. Que maravilha é trabalhar com você, que agradável e inteligente colega, como é de fácil trato — ele abriu um sorrisão para ela. — E o resto.
Carol soube, então, que ele era um falastrão. Ela não tinha dúvida sobre o respeito profissional de Tony por ela, e o conhecia muito bem para ter certeza de que ele nunca teria falado sobre ela em termos pessoais. A arraigada reticência dele teria exigido muito mais sutileza e habilidade para ser penetrada do que Paul Bishop possuía. Tony jamais teria falado sobre Carol porque, para fazer isso, teria que falar sobre o caso que os colocara juntos. O que significaria revelar muito mais sobre os dois do que qualquer estranho tinha o direito de saber. Teria que explicar como ela tinha se apaixonado por ele e como suas inadequações sexuais forçaram-no a rejeitá-la, como a esperança de algum dia ficarem juntos fora a última vítima do psicopata assassino que perseguiram. Ela sentia profundamente que ele jamais diria a outra viva alma essas coisas, e se havia algo que tornava melhor que seus colegas era o instinto.
— Hmm — resmungou de forma evasiva. — Sempre admirei o profissionalismo do dr. Hill.
Bishop roçou no quadril dela ao apertar o botão do quinto andar. Se eu fosse homem, Carol pensou, ele simplesmente me falaria para qual andar ir.
— É realmente uma vantagem que você já tenha trabalhado com o Tony — continuou Bishop, dando uma olhadela no seu cabelo nas portas de metal escovado. — Nossos novos trainees vão aprender muito observando como vocês decompõem o processo, como se comunicam, os motivos pelos quais um precisa do outro.
— Você conhece meus métodos, Watson — parodiou Carol, com ironia.
Bishop pareceu momentaneamente desconcertado, depois seu rosto se iluminou.
— Ah, tá. — A porta do elevador abriu. — Por aqui. Vamos tomar um café juntos. Só nós três. Depois você e Tony poderão trabalhar no contato inicial com os alunos.
Ele apertou o passo pelo corredor, segurou a porta aberta para ela e ficou de pé enquanto Carol entrava no que parecia uma sala de funcionários, em escala reduzida, de uma escola imunda.
Do outro lado da sala, Tony Hill se virou, com um filtro de café em uma mão e uma colher na outra. Seus olhos se arregalaram ao ver Carol e ela sentiu um lento sorriso se espalhar irresistivelmente no seu rosto.
— Tony — disse ela, controlando-se para manter formal o tom de voz. — Bom te ver.
— Carol — cumprimentou-a, jogando ruidosamente a colher de chá na mesa. — Você está... bem. Você está bem.
Ela estaria mentindo se dissesse o mesmo a ele. Continuava pálido, embora já o tivesse visto pior. As olheiras escuras sob os olhos não estavam tão parecidas com hematomas como da última vez que se encararam, mas ainda eram a marca de alguém para quem oito horas de sono não passavam de um sonho impossível. Os olhos dele perderam um pouco da aflição que ela se acostumara a ver, mas ainda pareciam tensos. E, ainda assim, queria beijá-lo.
Em vez disso, colocou as malas na comprida mesa de café e disse:
— Então, sai um café aí?
— Forte, puro, sem açúcar? — conferiu Tony com um meio sorriso.
— Você deve ter causado boa impressão nele — comentou Bishop, passando por Carol e despencando em uma das cadeiras caindo aos pedaços, levantando cuidadosamente os joelhos da calça para evitar que amarrotasse.
— Ele não consegue lembrar, de um dia pro outro, como eu gosto do meu.
— Quando trabalhamos juntos antes, a situação era do tipo em que todos os detalhes ficam gravados no cérebro pra sempre — comentou Carol repressivamente.
Tony lhe lançou um rápido olhar de gratidão depois se virou para fazer o café.
— Obrigado por enviar os arquivos do caso — agradeceu ele em meio ao chiado da chaleira elétrica velha. — Fiz cópias e as entreguei para a equipe estudar à noite.
— Ótimo. Como quer conduzir isso? — perguntou Carol.
— Acho que podíamos fazer uma encenação — sugeriu Tony, ainda de costas para eles enquanto fazia o café. — Sentar ao redor de uma mesa e percorrer o arquivo do caso exatamente do jeito que faríamos de verdade. — Virou-se de lado numa tentativa de sorriso e um espasmo percorreu o estômago de Carol. Controle-se, ela disse a si mesma com raiva. Mesmo que ele pudesse, não ia querer você. Lembra?
— Acho uma boa. — Ela escutou o próprio comentário. — Como está planejando envolver os trainees?
Tony fez malabarismo com as três canecas quentes em suas enormes mãos e conseguiu levá-las até a mesa de café sem derramar muito no carpete marrom tabaco.
— Escolhido especialmente para esconder as manchas — resmungou ele, cuja concentração estampava seu rosto fechado.
— São seis trainees — informou Bishop. — Então não é factível deixar que cada um se aventure com você individualmente, mesmo que esteja disposta a dedicar tanto assim do seu tempo. Eles vão observar você e Tony trabalhando nos arquivos do caso. E, se tiverem alguma pergunta sobre uma parte específica do processo, farão. Depois que você for embora, Tony vai trabalhar com eles no desenvolvimento de um perfil, que será enviado a você em poucos dias. O que estamos querendo é que, quando chegar ao ponto de identificar um suspeito, prendê-lo e acusá-lo, você vai se unir a Tony pra traçarem estratégias de interrogatório e posteriormente dará acesso a nós às gravações desses interrogatórios. — O sorriso dele dizia que não estava acostumado a ter suas solicitações negadas.
— Isso pode não ser possível — disse Carol cuidadosamente, sem muita certeza do seu posicionamento. — Você pode ter que aguardar o julgamento para ter acesso às gravações e, mesmo assim, se o interrogado permitir. Preciso conferir isso com algum especialista.
Pequenos movimentos musculares abaixo da pele arrancaram a cordialidade do rosto de Bishop.
— A impressão que o sr. Brandon me deu foi de que não seríamos escravos da formalidade neste caso — comentou, bruscamente.
— Sou a policial responsável pela investigação aqui, comandante. Não se trata de um exercício de sala de aula. E sim de um inquérito relativo a um homicídio e é minha intenção conseguir uma condenação se ela for apropriada. Não assumirei risco nenhum que possa me custar o sucesso da acusação. Não deixo janelas abertas para advogados de defesa espertinhos.
— Ela está certa — comentou Tony, inesperadamente. — Daremos um jeito aqui. É trabalho intelectual, você sabe, Paul. O objetivo principal é a Carol defender seu caso contra esse incendiário de forma sustentável frente ao tribunal, e não podemos esperar que ela concorde com qualquer coisa que possa interferir nisso.
— Ótimo — disse Bishop bruscamente. Ignorando seu café, ele levantou e seguiu em direção à porta. — Vou deixar vocês dois trabalharem. Tenho que me livrar de algumas ligações telefônicas se quiser participar do seu seminário. Vejo você mais tarde, detetive inspetora-chefe Jordan.
Carol sorriu.
— Quer apostar que antes dele encostar as costas na cadeira já vai ter ligado pro Brandon?
Tony abanou a cabeça e disse:
— Na verdade, é provável que não. Ele gosta de guardar suas cartadas para as batalhas importantes.
— Não como eu, que ando onde os anjos temem pisar, né?
Tony se deparou com o olhar dela e reconheceu neles a boa vontade.
— Ninguém é parecido com você, Carol. Achei mesmo uma pena você não querer se juntar à nossa equipe aqui.
Ela levantou um dos ombros e se justificou:
— Não é o meu jeito de manter a ordem, Tony. É claro que gosto de casos grandes, mas não gosto de viver no limbo.
As palavras dela pairaram entre eles, carregadas com mais significado do que qualquer outra pessoa poderia captar. Tony pigarreou antes de dizer:
— Mais uma razão pela qual me sinto satisfeito por ter a oportunidade de trabalhar neste caso com você. Se já estivéssemos em pleno funcionamento aqui, não acho que você correria até nós com o que superficialmente parece ser um incendiário em série bem objetivo que se tornou sórdido quase que por acidente. Vai ser ótimo para o esquadrão poder ver o trabalho de alguém bom como você.
— Quer saber, tudo o que consegui desde que mencionaram a conexão entre esta força-tarefa e o meu caso foi um monte tão grande de bajulação que dava pra sufocar até um político — comentou Carol, tentando esconder sua satisfação com um tom debochado.
— E eu alguma vez já te bajulei? — indagou Tony, de maneira simples.
Novamente, o estômago de Carol se contorceu.
— Talvez essa não seja uma ideia muito boa. Ter com você uma policial como eu. Você deveria ter dado um choque de realidade neles e trazido pra cá um desses homens das cavernas — comentou Carol, forçando para manter o sorriso.
Tony sorriu, empolgado.
— Dá pra imaginar? Ia ser um ótimo seminário.
Ele baixou a voz e escancarou seu sotaque de Yorkshire:
— Que montão de bosta este aqui. Cê quer que saia por aí perguntando pros meu suspeito se eles mijaram na cama quando eram criança?
— Tinha esquecido que você era daqui — disse Carol.
— Eu, não — esclareceu Tony. — Sou de West Riding, o último lugar na Terra em que gostaria de estar. Mas eu queria a força-tarefa, e o Ministério do Interior era inflexível quanto a ele ser fora de Londres. Deus nos livre de fazer qualquer coisa sensível como alojar o esquadrão de criadores de perfis junto com a unidade de inteligência. O que está achando da vida no lodo primitivo de Seaford?
Ela deu de ombros.
— Da vida entre os dinossauros? Pergunta de novo daqui a seis meses. — Ela olhou seu relógio. — Que horas está marcado pra começarmos?
— Daqui a alguns minutos.
— Quer botar o papo em dia no almoço? — Ela praticou o tom casual umas cinquenta vezes na estrada para Leeds.
— Não posso — disse ele, parecendo realmente lamentar. — A gente almoça junto aqui no esquadrão. Mas queria te perguntar...
— O quê? — Calma, Carol, não fica tão ansiosa.
— Você está com pressa de voltar?
— Não, pressa nenhuma. — Seu coração cantava: Isso, isso, ele vai me chamar pra jantar.
— Não gostaria de participar do seminário de hoje à tarde?
— Claro — respondeu com a voz radiante, mas com as esperanças esmagadas e a luz em seus olhos atenuada. — Alguma razão em particular?
— Dei um exercício pra eles na semana passada. Têm que apresentar as conclusões hoje e acho que seria útil saber a sua opinião sobre as análises.
— Tudo bem.
Tony deu um suspiro ansioso e disse:
— Além disso, quem sabe a gente não toma alguma coisa depois?
Apreensão e ansiedade lançaram Shaz em uma onda de adrenalina. Apesar de ter condensado as horas de sono à noite e dormido apenas três, estava zunindo como alguém chapado de anfetamina em uma rave. Atacara as cópias dos jornais no minuto em que chegara em casa, organizando-as em três pilhas no carpete da sala e parando apenas para pedir uma pizza. Estava tão envolvida que sequer percebeu que lhe tinham mandando uma pizza média de margherita e cobrado por uma portuguesa grande.
A uma da manhã, tinha terminado tudo, exceto pelos cadernos de entretenimento e de esportes. Sua convicção anterior de que a conexão externa que provaria a argumentação dela estava escondida nos jornais locais começava a parecer menos com uma intuição sólida e mais com uma busca desesperada. Alongando as costas tensas e esfregando os olhos que pareciam cheios de areia, Shaz levantou e cambaleou até a cozinha para preparar mais uma garrafa de café.
Reabastecida, voltou à tarefa, decidida a começar pelos cadernos de esportes. O mesmo time de futebol visitante e seus torcedores fiéis? Quem sabe um jogador que mudou de um time para outro e depois se transformou em empresário? Uma competição de golfe local que atraiu gente de fora ou um campeonato de bridge? Levou mais duas horas para eliminar todas as possibilidades nos cadernos esportivos, o que deixou Shaz inquieta por causa da exaustão, da cafeína e do avultante medo do fracasso.
Quando a conexão finalmente emergiu, achou que estivesse alucinando. Era uma ideia tão espalhafatosa que não conseguia levá-la a sério. Pegou-se dando risadinhas nervosas, como uma criança que ainda não aprendeu a maneira apropriada de se comportar frente à dor dos outros.
— Isto é uma loucura — disse com suavidade, conferindo todos os sete jornais para ter certeza de que não estava vendo coisas.
Ela se levantou, inclinando o corpo na tentativa de relaxar os músculos tensionados, e cambaleou até o quarto, tirando as roupas à medida que caminhava. Era demais para se absorver às três e meia da manhã. Colocando o relógio para despertar às seis e meia, deixou a cabeça cair na cama onde o sono a golpeou como um caminhão colidindo em um viaduto de rodovia.
Sonhou com programas de televisão em que os vencedores escolhiam como seriam mortos. Quando o despertador tocou, sonhou que era o zumbido de uma cadeira elétrica. Ainda grogue de sono, tinha a impressão de que aquilo que desenterrara nos jornais era uma extensão do pesadelo. Empurrou o edredom e foi até a sala nas pontas dos pés, como se passos normais fossem espantar sua descoberta.
Sete pilhas de recortes das cópias dos jornais. No topo de cada uma delas, uma página do caderno de entretenimento. Cada uma das páginas continha, do mesmo homem, a propaganda de uma aparição pública e uma entrevista. Porém, da forma como fizera os recortes, parecia que uma das pessoas queridinhas da nação estava ligada ao desaparecimento e suposto assassinato de pelo menos sete adolescentes.
E ela teria que compartilhar sua revelação.
Não era difícil fazer com que as pessoas dessem com a língua nos dentes, Micky não demorou a descobrir. Toda vez que visitava a unidade de reabilitação onde Jacko estava aprendendo a usar seu braço artificial, faziam questão de fechar a porta do quarto e se sentarem próximos um do outro para que, quando fossem interrompidos por um fisioterapeuta ou uma enfermeira, pudessem se afastar dando a impressão de constrangimento.
No trabalho, ela ligava para ele quando as mesas ao redor estavam ocupadas e era praticamente certo que a escutariam. As conversas variavam de hilaridade animada, com o nome dele sendo pronunciado em intervalos regulares, e os tons baixos e íntimos que seus colegas sem imaginação associavam apenas a amantes.
Finalmente, para dar uma acelerada nas coisas, era hora do escândalo e do drama. Micky escolheu um amigo de um tabloide de boa reputação. Três dias depois, o jornal soltou a bomba: PERVERTIDO MIRA O NOVO AMOR DE JACKO.
A nova namorada de Jacko Vance, o herói salvador de vidas, tornou-se alvo de uma terrível campanha de vandalismo e correspondências odiosas.
Desde o início do seu turbilhão romântico, a jornalista de TV Micky Morgan teve:
• tinta jogada no seu carro;
• ratos e passarinhos mortos colocados em sua caixa de correio;
• uma série de odiosas cartas viperinas enviadas para a sua casa.
O casal se conheceu quando ela entrevistou a estrela detentora do recorde de arremesso de dardos em um hospital depois do engavetamento em que o trágico heroísmo de Jacko lhe custou a parte de baixo de seu braço direito e seu sonho olímpico. Eles vinham tentando manter seu romance debaixo dos panos.
Mas podemos revelar com exclusividade que o segredo deles vazou e chegou a alguém que nutre um ressentimento contra a atraente loura Micky, 25, uma famosa repórter do Six o’clock World.
Ontem à noite, na sua residência em West London, Micky disse: “Tem sido um pesadelo. Não temos ideia de quem está por trás disso. Só queria que eles parassem.
Temos mantido a nossa relação apenas entre nós dois porque queremos nos conhecer melhor sem os holofotes da publicidade. Estamos muito apaixonados. O homem privado é ainda mais notável do que a pessoa que o público vê.
Ele é corajoso e bonito. Como eu poderia não estar loucamente apaixonada? A única coisa que queremos agora é que esta campanha cruel termine.”
Um porta-voz de Jacko, que está passando por uma intensiva reabilitação e fisioterapia na exclusiva Martingale Clinic de Londres, relatou: “Obviamente o Jacko está indignado por alguém tratar a Micky assim. Ela é a mulher mais maravilhosa que ele conheceu. Quem quer que esteja por trás disso é melhor desejar que a polícia o pegue antes dele.”
Jacko, que terminou seu noivado com continua na página 4
A cobertura da imprensa foi frenética durante algumas semanas, depois foi morrendo aos poucos, ressurgindo quando alguma coisa acontecia com um dos supostos amantes. A saída de Jacko da reabilitação e sua volta para a antiga vida; a contratação dele como apresentador esportivo; o novo emprego de Micky como entrevistadora em um programa matinal; o trabalho voluntário de Jacko com os doentes terminais; tudo isso reavivava o interesse no suposto romance. Rapidamente aprenderam que precisavam ser vistos juntos em algum lugar público famoso pelo menos uma vez na semana para evitar especulação nas colunas de fofoca. Sabendo que estavam sendo seguidos, com frequência Jacko acabava passando a noite sob o mesmo teto que as duas mulheres depois dele e Micky terem saído para boates ou feito trabalho de caridade. Depois de aproximadamente um ano assim, Micky convocou Jacko para discutir um assunto com Betsy durante um jantar.
Os dotes culinários da amante não a tinham abandonado desde os anos que passara preparando e servindo almoço em salas de reuniões da diretoria. Quando engoliu o último pedaço, Jacko deu às duas mulheres seu sorriso mais lupino antes de soltar:
— A coisa deve ser ruim, já que precisaram de uma coisa tão gostosa assim pra me amaciar.
Betsy sorriu modestamente e disse:
— Você ainda não experimentou o pudim de caramelo com sorvete caseiro de avelã.
Jacko fingiu estar surpreso.
— Se eu fosse um policial, você seria presa por me fazer uma oferta dessas.
— Temos mesmo uma proposta pra você.
— Algo me diz que não estão falando sobre sexo a três — disse ele, balançando de leve nas pernas de trás da cadeira.
— Pode ficar um pouco desapontado — disse Betsy, ironicamente. — A ideia de sermos tão pouco atraentes é ruim para aquilo que os americanos chamam de autoestima.
Era desconcertante para Micky o quanto o sorriso de Jacko a fazia lembrar de Jack Nicholson.
— Betsy, minha querida, se você soubesse o que gosto de fazer com as minhas mulheres, ficaria profundamente grata pela minha falta de interesse.
— Na verdade, nossa ignorância a respeito desse ponto específico é um dos fatores que nos deixou relutante em expor nossa proposta antes deste momento — informou Betsy, limpando energicamente os pratos e os levando para a pequena cozinha.
— Agora fiquei intrigado — revelou Jacko, apoiando, com um leve ruído abafado, os pés da frente da cadeira de volta no chão e colocando seu braço protético na mesa. Havia fagulhas na maneira como encarou Micky.
— Coloque as cartas na mesa, Micky.
Betsy apareceu à porta da cozinha e se encostou ao umbral.
— É uma perda de tempo terrível esse negócio de você e Micky terem que ficar saindo pra curtir. Não tenho problema algum com ela sair com você, mas preferimos passar juntas o limitado tempo de folga que temos.
— Querem cancelar o esquema todo? — indagou Jacko com uma careta.
— Exatamente o oposto — disse Betsy, sentando-se à mesa novamente e colocando a mão sobre a de Micky. — A gente meio que pensou que seria uma boa ideia se vocês se casassem.
Ele ficou abismado. Micky pensou que nunca tinha visto uma expressão tão genuína atravessar as feições cuidadosamente controladas de Jacko Vance.
— Casassem — ecoou ele. Não foi uma pergunta.
Shaz olhou ao redor da sala de novo, avaliando sua plateia, com esperança de que não fizesse papel de completa idiota. Tentou adivinhar de onde as objeções viriam e quais seriam. Simon acharia buracos na ideia central, ela sabia disso. Leon inclinaria a cadeira para trás e fumaria, com o fantasma de um sorriso de escárnio na boca, depois encontraria uma viga de sustentação do argumento dela e a derrubaria. Kay contestaria e implicaria com detalhes sem nunca conseguir ver o todo. Tony, assim desejava, ficaria bem impressionado com sua genialidade em identificar aquele grupo de meninas e seu empenho no esforço para fazer uma conexão externa demonstrável. Seu trabalho seria o estopim para um inquérito importante e, quando a poeira por fim baixasse, o futuro dela estaria garantido. A mulher que prendeu a celebridade assassina. Ela seria lenda nas delegacias de todo o país. Ficaria numa posição em que poderia escolher onde trabalhar.
Carol Jordan era o curinga do baralho. Uma manhã a observando trabalhar com Tony quase não fornecera matéria-prima que gerasse alguma conjectura precisa sobre a reação dela à teoria de Shaz. Para arriscar o mínimo possível, teria que aguardar um pouco e deixar alguns dos colegas falarem primeiro, aproveitando o tempo para a observar cuidadosamente.
Leon foi o primeiro. Shaz ficou surpresa com a brevidade do relatório dele, e não foi a única. Ele disse que, embora houvesse similaridades claras entre alguns dos casos devido ao número de adolescentes fugitivas registrados anualmente, era difícil argumentar uma significância estatística naquilo. Ele tinha, aparentemente com má vontade, escolhido quatro meninas de West Country, uma delas também estava no grupo de Shaz. O fator de conexão que identificou foram os relatos de que as quatro nutriam ambições de se tornarem modelos. Sugeriu que elas poderiam ter sido sequestradas por um ou mais pornógrafos sob o pretexto de oferecê-las a oportunidade de realizarem o sonho e, então, foram sugadas para uma vida de filmes pornô e prostituição.
Um curto silêncio foi seguido por alguns comentários apáticos na sala. Então Carol perguntou calmamente:
— Quanto tempo você gastou na análise, sr. Jackson?
As sobrancelhas de Leon desceram quando ele fechou a cara.
— Não havia muito o que analisar — disse em tom hostil. — Gastei o tempo necessário.
— Se eu fosse a investigadora de polícia que tivesse passado esse material pra você, estaria bem desapontada com algo tão superficial — informou Carol. — Estaria frustrada, me sentindo enganada, e teria ficado com uma impressão muito ruim de uma unidade especializada que produzisse nada mais significativo do que um dos meus próprios policiais poderia ter fornecido com uma tarde de trabalho.
Leon ficou tão surpreso que seu queixo caiu. Nem Tony, nem Bishop fizeram críticas de forma tão aberta sobre o trabalho de ninguém. Antes que pudesse responder, Tony interveio:
— A detetive inspetora-chefe Jordan está certa, Leon. Não está bom. Presume-se que somos um esquadrão de elite, e não vamos fazer nenhum amigo se não tratarmos todas as nossas tarefas como algo sério que mereça a nossa atenção. Não interessa se achamos que um grupo de casos é trivial. Para os investigadores, eles são importantes. Para as vítimas, eles são importantes.
— Isto aqui era só um exercício — protestou Leon. — Não existe investigador de polícia nenhum. É a hora do recreio. Não dá pra ficar muito estimulado com isso! — O lamento em sua voz dizia “Isto não é justo!” mais alto do que as palavras que usou.
— Da maneira que vejo, todos nesse caso são reais — opinou Carol em voz baixa. — Todas essas crianças estão na lista de desaparecidos. Algumas delas muito provavelmente estão mortas. A dor da incerteza pode muitas vezes ser mais nociva do que o conhecimento da verdade. Se ignorarmos a dor das pessoas, merecemos o desprezo delas.
Shaz observou o semblante impassível de Tony se transformar em um pequeno agradecimento pelas palavras de Carol, depois seguiu os olhos até Leon, cujos lábios comprimidos formavam uma pequena linha enquanto se sentava de lado na cadeira, evitando Carol.
— Certo — disse Tony. — Estamos cientes de que com a detetive inspetora-chefe Jordan não tem delicadeza. Quem é o próximo a se arriscar?
Shaz mal podia conter a impaciência durante o relatório de Kay, uma análise trivial, ainda que de um cuidado meticuloso, que moldou vários grupos possíveis com uma coleção de conexões. Uma delas era idêntica ao grupo de meninas de Shaz, mas ela não recebeu nenhuma atenção extra em comparação com as outras. Quando a exposição chegou ao final, Tony parecia mais contente.
— Um trabalho meticuloso — disse ele, porém o não dito “mas” ficou pairando no ar como um bastão de corrida de revezamento.
Carol aceitou o desafio.
— Concordo, mas parece que você está em cima do muro. O investigador de polícia quer informações apresentadas de uma maneira que justifique iniciativas específicas. Por isso você precisa hierarquizar suas conclusões. “Esta é muito provável, esta é menos provável, esta é tênue, esta é sinceramente improvável.” Isso vai fazer com que os policiais estruturem as investigações de maneira mais produtiva.
— Para sermos justos, é difícil fazer isso no vácuo de um exercício de sala de aula — completou Tony. — Mas devemos sempre nos empenhar para isso. Alguma ideia em relação à ordem de prioridades com que deveríamos trabalhar aqui?
Shaz mal contribuiu com a vigorosa discussão que se seguiu. Estava muito nervosa sobre o que estava por vir para se importar com a impressão que poderia estar dando. De vez em quando, percebia que Carol Jordan a encarava com um olhar interrogativo. Ela respondia com algum comentário inócuo.
Então, de repente, chegou sua vez. Shaz pigarreou e juntou os papéis à sua frente.
— Embora haja várias similaridades superficiais que unem uma variedade de agrupamentos possíveis, uma análise mais aprofundada revela que há um grupo conectado por um vínculo de fatores comuns — começou ela, com firmeza. — O que pretendo mostrar nesta tarde é que, além disso, esse grupo está ligado por um fator externo comum significativo e a inevitável conclusão é que os membros desse grupo são vítimas de um único serial killer.
Ela levantou o olhar, viu Kay se assustar e ouviu a gargalhada de Leon. Tony estava espantado, mas Carol Jordan se inclinava para a frente com as bochechas apoiadas nos punhos, a atenção capturada. Shaz permitiu que um pequeno sorriso contraísse o canto da boca.
— Não estou inventando isso, prometo a vocês — disse ela, distribuindo cópias de páginas grampeadas pela mesa.
— Sete casos — continuou ela. — A primeira página que vocês têm em mãos é uma tabela com a lista de características comuns desses desaparecimentos. Uma das conexões-chave, na minha opinião, é que todas levaram uma muda de roupa, mas não pegaram o tipo de coisas que se escolhe quando se está planejando fugir e viver na rua. Em todos os casos, sentiram falta das “melhores” peças, das roupas da moda que teriam usado se estivessem saindo para um encontro especial, nada de moletons de andar pelas ruas nem jaquetas de neve para se manterem quentes à noite. Sei que adolescentes nem sempre são sensatos quando o assunto é o que vestem, mas lembrem-se, a nossa amostra não é composta de garotas irresponsáveis e descontroladas, nem de festeiras desenfreadas.
Ela levantou o olhar e ficou satisfeita por ver que Tony estava tão arrebatado quanto Carol Jordan.
— Em todos os casos, elas não apareceram na escola e mentiram previamente sobre o que fariam depois, para ganharem uma nítida vantagem de aproximadamente doze horas. Somente uma delas tem passagem pela polícia ou pelo serviço social e foi por furto em loja quando tinha 12 anos. Não eram delinquentes, não bebiam ou usavam drogas em níveis significativos. Se virarem para a página dois, verão que reduzi as fotografias para que ficassem todas do mesmo tamanho. Não acham que há uma similaridade física extraordinária?
Shaz ficou em silêncio para causar impacto.
— Isso é sinistro — resmungou Simon. — Não acredito que não vi isso.
— É mais do que físico — disse Carol, ligeiramente perturbada. — Todas têm um olhar. Uma coisa... quase sexual.
— Estão implorando pra perderem a virgindade — Leon falou para a sala. — É isso. Não tem erro.
— Seja o que for — interrompeu Shaz. — Todas elas têm. Os casos são geograficamente esparsos, o período é de seis anos e os intervalos, regulares, mas as vítimas parecem praticamente intercambiáveis. Isso por si só é uma evidência poderosa. Mas Tony nos ensinou que também deveríamos procurar conectores externos; fatores fora do controle ou influência da vítima e que são comuns. Fatores que se ligam ao assassino, não à vítima. Perguntei a mim mesma onde poderia encontrar a ligação externa que uniria o meu grupo de supostas vítimas.
Shaz pegou outra pilha de cópias grampeadas e as distribuiu antes de seguir em frente:
— Jornais locais. Passei um pente fino nos jornais locais publicados duas semanas antes e duas depois de cada desaparecimento. E, nas primeiras horas da madrugada de hoje, achei o que estava procurando. Está na frente de vocês. Logo antes de cada uma dessas meninas morrerem, a mesmíssima personalidade pública estava na cidade delas. Cada uma dessas meninas, não nos esqueçamos disso, saiu com a única roupa que escolheria em seus armários se estivesse interessada em impressionar um homem.
O murmúrio de descrença já aumentava ao redor dela quando a monstruosidade da sugestão os atingiu.
— É isso mesmo — afirmou ela. — Eu também não acreditei. Quer dizer, quem vai acreditar que o herói do esporte favorito da nação e personalidade da TV é um serial killer? E quem vai autorizar a investigação de Jacko Vance?
Capítulo 6
O choro suave parecia estar sendo engolido pela fria escuridão. Donna Doyle nunca se sentira tão amedrontada em sua curta vida. Não percebera que o medo podia funcionar como anestésico, a apreensão entorpecia a agonia excruciante transformando-a em dor latejante. O que já tinha acontecido fora terrível o bastante. Mas não saber o que o futuro lhe aguardava era quase pior.
Tudo tinha começado tão bem. Ela mantivera o segredo, a despeito de como aquilo ficava borbulhando dentro dela e parecia estar quase empurrando seus lábios numa exigência por liberdade. Mas sabia que ele falara sério sobre a importância da confidencialidade, e aquela era uma oportunidade boa demais para se perder. O entusiasmo pelas novas possibilidades a tinha feito flutuar, permitindo que reprimisse a consciência de que o que estava fazendo causaria um rebuliço em casa. Justificou a sua desobediência em informar a mãe sobre os planos dizendo a si mesma que, quando tudo desse certo da maneira como ela sonhava, haveria tanta alegria que o problema seria esquecido. No fundo, sabia que era mentira, mas não se atreveria a deixar que isso interferisse na sua euforia.
Matar aula fora fácil. Saíra como sempre, depois, em vez de virar na rua que a levava para a escola, seguira para o centro da cidade, onde escapulira para dentro de um banheiro público e vestira as roupas que dobrara cuidadosamente e colocara na mochila no lugar dos livros. Sua melhor roupa, que ela sabia que a fazia parecer mais velha, parecida com uma jovem mulher que vira na MTV, legal pra caralho. À luz fosca do banheiro, passou maquiagem e fez biquinho para o espelho. Meu Deus, como estava bonita. Mas será que seria o suficiente para ele?
Nem estava muito produzida quando ele a escolhera, lembrou-se. Ele tinha visto a sua qualidade de estrela. Jacko morreria quando a visse assim. Certo?
A memória daquela autoconfiança impassível era como uma piada doentia para Donna, agora que estava soterrada pela dor e pelo medo na escuridão. Mas, naquele momento, era o suficiente para que continuasse. Pegara um ônibus para Manchester, esperara até que estivesse prestes a sair, garantindo que não havia nenhum dos seus vizinhos ou dos amigos chatos da sua mãe a bordo. Então subira correndo e se sentara no fundo para que conseguisse ver quem entrava e saía.
Ficar algumas horas sozinha em Manchester em um dia de semana já era por si só uma aventura. Perambulou pelas lojas de departamento, jogou nas máquinas caça-níquel dos fliperamas, comprou algumas raspadinhas em uma banca de jornal perto da estação e disse a si mesma que ganhar dez vezes seguidas não era só um resultado, mas um presságio. No momento em que embarcou no trem, estava irreprimivelmente eufórica, mais do que capaz de ignorar o nervosismo que ainda alvoroçava de forma irritante o seu estômago quando pensava no que sua mãe falaria.
Mudar de trem não foi tão divertido. Estava ficando escuro e ela não conseguia entender uma palavra do que as pessoas falavam pelo sistema de som da estação de Newcastle. Não soavam como as pessoas da televisão. Soavam como alienígenas. De alguma maneira, conseguiu encontrar a plataforma para Five Walls Halt e, nervosa, embarcou no trem, ciente de que estava entre estranhos com caras curiosas, que metiam seus olhos predatórios na saia curta que vestia e na maquiagem dramática que fizera. A imaginação de Donna começou a fazer hora-extra e transformava desconfiados passageiros em perseguidores e agressores carregando machados.
Fora um alívio sair do trem e encontrá-lo aguardando no estacionamento, bem como dissera. Era fascinante. Ele falara o que ela quisera ouvir, tranquilizando-a e a convencendo de que tinha feito a coisa certa. Jacko era um amor, dissera a si mesma, nem um pouco parecido com o que ela esperava que seria alguém da TV.
Enquanto passavam de carro por estreitas estradas do interior, ele explicava que não seria capaz de fazer o teste de filmagem até a manhã seguinte, mas que jantariam juntos. Disse que tinha uma casa de campo, onde ela poderia passar a noite, pois havia um quarto de hóspedes. Isso evitaria que ele dirigisse depois de ter tomado uma ou duas taças de vinho. Se ela não se importasse, é claro. Caso contrário, poderia levá-la para um hotel.
A parte dela que fora bem criada e adestrada para desconfiar quis imediatamente ir para um hotel de onde ligaria para a mãe e revelaria que estava em segurança e bem. Porém, não era uma imagem sedutora passar a noite em um quarto solitário num lugar estranho onde não conhecia ninguém, sem nenhuma companhia a não ser a TV e a mãe reclamando pelo telefone. A outra voz na sua cabeça, a que era tentadora e aventureira, dizia que ela jamais teria uma chance como aquela para realmente mostrar quem era. Tê-lo para si durante uma noite inteira seria a oportunidade perfeita para impressioná-lo de tal maneira que o teste de filmagem se tornaria apenas uma formalidade.
A voz que reprimiu, com uma mistura de apreensão e expectativa, enfatizou que poderia nunca mais haver um momento tão propício para que perdesse a virgindade.
— Ficar com você está ótimo — concordou ela.
Ele sorriu e, retirando rapidamente os olhos da estrada, disse:
— Juro que a gente vai se divertir.
E não estava mentindo. Pelo menos não no início. A comida estava maravilhosa, como as coisas caríssimas de lojas chiques que a mãe dela sempre dizia que não tinham dinheiro para comprar. E beberam vinho. Vários tipos diferentes. Champanhe pra começar, depois vinho branco com as entradas, depois tinto com o prato principal e um aromático, dourado e licoroso com o pudim. Ela não tinha ideia de que havia tantos sabores diferentes. Ele fora um amor durante todo o jantar. Engraçado, galanteador e cheio de histórias que a faziam sorrir e se abraçar por dentro porque estava aprendendo todos aqueles segredos sobre as pessoas da TV.
Ele também parecia achá-la divertida. Ficava perguntando o que ela achava, o que sentia, de quem gostava na TV e quem odiava. Estava interessado, encarava profundamente os olhos dela, realmente prestando atenção, como os homens supostamente faziam quando gostavam de você, não como os rapazes da escola com quem saíra e que só estavam interessados em futebol e até onde ela os deixava ir. Era óbvio que ele a desejava, mas não estava babando nela toda como um velho nojento. Era atencioso e a tratava como se fosse uma pessoa. Com toda a conversa, telefonar para a mãe fora a última coisa a passar pela sua cabeça.
Ao final da refeição, estava agradavelmente embriagada. Não bêbada, não como na festa de Emma Lomas, quando bebera cinco garrafas de cidra extraforte e vomitara durante horas. Só um pouco alta, repleta de felicidade e desejo de sentir a carne quente dele contra a sua, de enterrar o rosto no cheiro cítrico e amadeirado da colônia dele, de transformar suas fantasias em realidade.
Quando ele se levantou para fazer café, ela o seguiu com os pés um pouquinho instáveis, consciente da tontura que fez a sala balançar não de maneira desagradável, mas gentilmente. Ela se aproximou por trás e passou os braços ao redor da cintura dele.
— Eu te acho lindo — elogiou ela. — Fantástico.
Ele se virou, deixando que ela se apoiasse em seu corpo, e enterrou o rosto no seu cabelo. Aninhando-se na orelha da menina, murmurou:
— Você é muito especial. Muito especial.
Ela sentiu a ereção dura contra a sua barriga. Por um momento, sentiu uma onda de medo se contorcer através do seu corpo, depois os lábios dele se juntaram aos dela, e ela se perdeu naquele que parecia ser o seu primeiro beijo.
A sensação era de que o beijo durava a vida inteira, um vertiginoso desfile de cores girava por trás dos seus olhos enquanto a excitação fazia o sangue disparar pelas veias.
Quase sem que ela percebesse, Jacko girou-a gradualmente para que as costas dela ficassem contra a bancada e ele, de frente para ela, ainda a beijando, dardeava a língua para dentro e para fora da sua boca. De repente, sem aviso, ele agarrou seu pulso e puxou com força o braço para o lado. Donna sentiu o metal frio contra a carne e escancarou os olhos. Na mesma hora, as bocas se separaram.
Desnorteada, olhou para o braço, sem entender porque ele estava preso entre as duas faces de um grande torno de metal. Ele deu um passo para trás e rapidamente girou a alavanca, fazendo com que os mordentes se fechassem na carne ruborizada do braço nu de Donna. Em vão, ela tentou puxá-lo, mas não tinha como escapar. Estava presa ao torno da bancada.
— O que você está fazendo? — gritou. A única coisa que seu rosto revelava era uma perplexidade dolorosa. Estava cedo demais para ter medo.
Não havia expressão no rosto dele. Uma máscara impassível substituíra o interesse e a afeição que vira ali a noite inteira.
— Vocês são todas iguais, não são? — disse ele, desapontado. — Dão tudo o que têm pra conseguir o que querem.
— Do que você está falando? — suplicou Donna. — Me solta. Isto não tem graça. Tá doendo.
Ela atravessou o braço livre pelo corpo em direção à alavanca do torno. Jacko levantou o braço e deu um soco com as costas da mão no rosto dela, fazendo-a cambalear.
— Vai fazer o que eu mandar, sua puta traiçoeira — disse ele, ainda calmo.
Donna sentiu gosto de sangue. Um choro rasgado irrompeu da sua garganta.
— Não estou entendendo — gaguejou. — O que fiz de errado?
— Você se jogou em mim porque acha vou te dar o que você quer. Falou que me ama. Mas, se acordar amanhã e eu não der exatamente o que você quer, vai se jogar no próximo otário que puder usar.
Ele se inclinou, pressionando o corpo contra o dela, seu peso impedindo que a menina tentasse novamente se soltar .
— Não sei do que você está falando — choramingou Donna. — Eu nunca... Aaah. — A voz se transformou em um berro de dor no momento em que ele apertou ainda mais o torno. A dor disparou em seu braço quando músculos e ossos foram compactados e as beiradas do torno cortaram profunda e cruelmente o tecido do seu braço. Quando seu grito enfraqueceu e virou uma súplica lacrimosa, ele se virou um pouco, deixando seu peso ainda sobre o braço livre dela, e rasgou o vestido de cima a baixo com um poderoso puxão.
Só então ela ficou realmente com medo. Não conseguia entender por que ele estava fazendo aquilo. A única coisa que queria era amá-lo, ser escolhida por ele para aparecer na televisão. Não era para ser daquele jeito. Era para ser romântico e afetuoso e bonito, mas aquilo era irracional, absurdo e ela não conseguia acreditar no quanto o braço doía, só queria que aquilo acabasse.
Mas ele mal começara. Em instantes, a calcinha dela virou um amontoado rasgado aos seus pés. Marcas profundas apareciam na lateral do seu corpo, onde o tecido ferira a pele antes de a costura ceder à força dele. Tremendo e aos soluços, a voz um murmúrio suplicante sem sentido, não tinha mais forças para resistir quando ele baixou o zíper da calça e a penetrou.
Não era da dor de perder a virgindade que Donna se lembrava. Era da agonia que a atravessava quando ele pressionava o torno num ritmo conjunto com as investidas do quadril. O rompimento do hímen passou despercebido em meio ao estilhaçar dos ossos do seu pulso e antebraço e à pulverização da sua carne entre as placas de metal.
Deitada no escuro, a única satisfação que sentia era por ter desmaiado depois. Não sabia onde estava nem como chegara ali. Só sabia que era uma bênção estar completamente sozinha. E isso era o suficiente. Por enquanto, era o suficiente.
Capítulo 7
Tony caminhava pela Briggate com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos da sua jaqueta por causa do frio, desviando-se dos últimos compradores e dos cansados vendedores que se dirigiam aos pontos de ônibus. Ele merecia uma bebida. Tinha sido uma tarde difícil. Por um tempo, parecera que o espírito de grupo nutrido desde o primeiro dia estava prestes a se tornar uma lembrança. As diferenças de opinião aumentavam, transformavam-se em discussões e ficavam a um fio de descambarem para a ofensa.
A primeira resposta à dramática hipótese de Shaz fora um silêncio atordoado. Então Leon deu um tapa na perna e ficou arrastando a cadeira pra lá e pra cá antes de gritar:
— Shazinha, meu amor. O tanto de merda que você fala não cabe numa usina de tratamento de esgoto, mas é o melhor que você faz! É isso aí, querida, continua assim!
— Espera aí, Leon — objetou Simon. — Você está se precipitando muito em detonar a menina. E se ela estiver certa?
— Ah tá — Leon desdenhou, pronunciando lentamente as palavras. — Como se fosse óbvio que o Jacko Vance é um serial killer psicopata. É só ver o cara na televisão. Ou ler sobre ele nos tabloides. Isso mesmo, O Bacana, um casamento perfeito, o orgulho da Inglaterra, o herói que sacrificou o braço e uma medalha olímpica pra que outras pessoas pudessem viver. Bem Jeffrey Dahmer, bem Peter Sutcliffe. Não.
Tony mantivera meio olho em Shaz durante o acesso de Leon e percebeu o aparente escurecimento dos olhos e a tensa linha na boca. Ela não conseguia lidar com a gozação da mesma maneira que lidava com a crítica direta, percebeu. Quando Leon parou para respirar, Tony aproveitou e entrou, com uma dose de ironia.
— Eu simplesmente adoro o pega de um debate intelectual. Então, Leon, que tal você parar de se exibir e apresentar algum argumento convincente contra o caso que Shaz está propondo?
A raiva ficou estampada no rosto de Leon que, como de costume, não conseguia disfarçar suas emoções. Escondido atrás da brasa do cigarro, ele murmurou algo.
— Será que pode compartilhar isso conosco de novo? — interveio Carol com suavidade.
— Falei que não acho que a personalidade de Jacko Vance se encaixa nas características básicas de serial killers — repetiu ele.
— Como você sabe disso? — interveio Kay. — Só o que a gente vê do Jack Vance é a imagem manufaturada pela mídia. Alguns serial killers foram superficialmente charmosos e manipuladores. Tipo Ted Bundy. Se você vai ser um atleta de ponta, precisa desenvolver um autocontrole fenomenal. Quem sabe não é isso o que vemos em Jacko Vance? Uma carcaça totalmente sintética cobrindo uma personalidade psicopática.
— Bem observado — disse Simon, energicamente.
— Mas ele é casado há 12 anos ou mais. A mulher ficaria com ele se o cara fosse um psicopata? Ele não conseguiria manter a máscara permanentemente — alguém contestou.
— Sonia Sutcliffe sempre afirmou que ignorava completamente o fato de que o marido saía pra pegar prostitutas do mesmo jeito que alguns homens saem pra jogar futebol. Rosemary West ainda alega que não tinha ideia de que Fred estava usando corpos pra fazer a fundação da ampliação do quintal — destacou Carol.
— É mesmo, e pensa bem — instigou Simon —, casais com empregos como os de Jacko Vance e Micky Morgan não são como o restante de nós. Metade do tempo, Jacko está na estrada fazendo o Vance Visita. E tem todo aquele trabalho voluntário em hospital. Enquanto a Micky deve estar no estúdio praticamente de madrugada, se preparando para o programa dela. Eles provavelmente se encontram menos do que os policiais com os filhos.
— É um ponto interessante — comentou Tony, intervindo em meio a algumas interjeições em voz alta. — O que acha, Shaz? É a sua teoria afinal de contas.
O maxilar de Shaz se moveu de maneira insubordinada antes de começar:
— Não vejo ninguém se opondo à identificação do grupo de meninas ser uma realidade significativa.
— É... é — disse Ken. — Fico pensando se é realmente tão significativo assim. Reuni vários grupos que talvez tenham conexões com a mesma legitimidade. O das garotas que a polícia achou que podiam ter sido molestadas sexualmente, por exemplo.
— Não — disse Shaz, com firmeza. — Não com a quantidade de fatores de ligação quanto os deste grupo. Vale a pena reafirmar que algumas das coisas que as conectam são características incomuns, incomuns o bastante para que investigadores de polícia as notassem, mas não as identificassem como importantes. Como, por exemplo, que elas levaram as melhores roupas que tinham.
Tony ficou satisfeito por ver como ela não se deixou intimidar por esse último exemplo de Kay, cujos comentários sempre eram pedantes.
Sua réplica, contudo, não lhe rendeu uma folga.
— É claro que eles notariam isso — cutucou Leon, que não conseguia ficar quieto por muito tempo. — É o único fator que indica que você está atrás de alguém que fugiu de casa, e não de uma vítima de serial killer. Se você não percebe isso, é um bosta de um detetive.
— Tipo o que, só pra começar, nem sequer identificou o grupo? — interpelou Shaz, agressivamente.
Leon lançou os olhos para cima e apagou o cigarro.
— Vocês, mulheres, quando enfiam uma ideia na cabeça...
— Jesus Cristo, às vezes vocês só falam merda — reclamou Simon. — Será que a gente pode voltar a falar do que interessa... Fico me perguntando quanta coincidência existe no fato de Vance ter visitado essas cidades. Não sabemos quantas aparições públicas ele faz por semana. Caso esteja constantemente na estrada, isso não significaria muita coisa.
— Exatamente — apoiou Kay. — Você procurou nos jornais locais por crianças desaparecidas que não estão no seu grupo para ver se Vance também apareceu por lá?
Os lábios franzidos deram a resposta antes que abrisse a boca:
— Eu não tive tempo — admitiu relutantemente. — Talvez você queira assumir essa pequena tarefa, Kay?
— Se fosse uma operação real, você teria que fazer o que a Kay sugeriu — observou Carol. — Mas você teria o pessoal e o tempo pra fazer isso, o que não tem aqui. Preciso confessar, estou impressionada com o que conseguiu com o tempo e os recursos limitados que tinha à sua disposição.
O elogio de Carol fez com que Shaz endireitasse os ombros, porém, quando a detetive inspetora-chefe continuou, ela ficou temerosa:
— Entretanto, mesmo que seja uma conexão genuína, apontar o dedo direto para Jacko Vance é um salto no escuro grande demais. Se esses desaparecimentos e pretensos assassinatos estão conectados às aparições dele, é muito mais provável que o criminoso seja um membro da comitiva dele ou mesmo alguém do público que tenha um estímulo desencadeador de estresse em seu passado que se conecta a Vence. O mais óbvio talvez seja que ele tenha sido rejeitado por uma mulher que era muito fã do Jacko. Essas seriam as minhas primeiras áreas de interesse antes de chegar à hipótese de que o próprio Jacko está envolvido.
— É um ponto de vista — disse Shaz, momentaneamente mortificada por ter ficado tão entusiasmada com a sua teoria sensacionalista que não considerara aquela possibilidade. Era o mais próximo que Tony chegaria de vê-la fazendo uma concessão. — Mas você acha que vale a pena continuar desenvolvendo esse grupo de meninas?
Carol olhou desesperadamente para Tony e titubeou:
— Eu... hum...
Para salvá-la, Tony disse:
— Isso é só um exercício, Shaz. Não temos autoridade para levar adiante nenhum desses casos.
Ela ficou arrasada.
— Mas há um grupo aqui. Sete desaparecimentos suspeitos. Aquelas meninas têm famílias.
Leon se intrometeu novamente, o sarcasmo em pleno funcionamento:
— Qual é, Shazinha. Coloca esses neurônios pra funcionar. A gente deveria estar esclarecendo as coisas pros policiais lá na rua, não arrumando mais trabalho pra eles. Acha mesmo que alguém vai agradecer a gente por incitar uma acusação da pesada com base numa teoria que é fácil pra cacete classificar como o produto das mentes entusiasmadas de um bando de novatos em um esquadrão especial que, pra começar, ninguém queria dentro da polícia?
— Beleza — disse Shaz, amargamente. — A gente vai simplesmente esquecer o que eu falei, né? Quem é o próximo a vir aqui pra ser totalmente fuzilado? Simon? Vamos ser abençoados com as suas palavras de sabedoria agora?
Tony considerou a aparente capitulação de Shaz como um sinal para seguir em frente. As análises dos outros membros da equipe foram consideravelmente menos controversas, o que permitiu que ele desse dicas úteis e mostrasse armadilhas na seleção de dados e no desenvolvimento de conclusões a partir de matéria-prima. À medida que a tarde progredia, notara que Shaz se recuperava lentamente da receptividade hostil que deram às suas ideias. Gradualmente, deixava de parecer desapontada, e saía de um estado de desalento para assumir uma postura de determinação teimosa que ele considerou levemente preocupante. Em algum momento dos dias por vir, teria que encontrar tempo para conversar com ela e destacar a qualidade de grande parte da análise dela, explicando a importância de se manter conclusões aparentemente malucas em segredo até que pudesse sustentá-las com algo mais sólido do que a intuição.
Tony saiu da rua principal e entrou no beco estreito que acomodava o pub Whitelocks, uma relíquia fora de moda que, de alguma maneira, sobreviveu aos anos em que o centro da cidade morria às cinco e meia. Para ser honesto, a última coisa que sentia vontade de fazer era tomar alguma coisa com Carol. A história entre eles fazia com que seus encontros nunca fossem inteiramente fáceis, mas, naquela noite, ele tinha algo para contar que ela gostaria de ouvir.
No bar, pediu uma cerveja e encontrou uma mesa tranquila em um canto. Nunca fora de se esquivar das obrigações. Mas o fracasso de Shaz em considerar um dos fãs de Jacko Vance ou um membro da sua comitiva como uma possibilidade tinha o lembrado da importância de aguardar os dados antes de expor suas teorias ao severo escrutínio das outras pessoas. Pelo menos uma vez, Tony achou que usaria aquele conselho mental que tinha para a Shaz e não diria nada sobre suas ideias até que ele mesmo tivesse mais evidências.
Foi necessária meia hora para Carol fugir das perguntas das duas policiais da força-tarefa. Tinha a nítida sensação de que, se não tivesse sido tão enfática em lhes informar que precisava ir embora, a menina dos olhos, Shaz, a teria pregado na parede até que tivesse arrancado dela toda e qualquer informação pertinente além de uma boa quantidade de informação impertinente. Quando abriu a porta de vidro jateado do pub, estava convencida de que ele já teria desistido e ido embora.
Shaz o viu acenando assim que chegou ao bar. Estava sentado em um cantinho onde as paredes eram revestidas de madeira bem no fundo do pub, havia resto de cerveja no copo em frente a ele.
— Mais uma? — Foi o que o movimento sem som dos lábios perguntou enquanto ela fazia o gesto universal de alguém segurando um copo. Tony colocou um dedo indicador cruzado sobre o outro e fez um T. Carol abriu um sorrisão. Pouco depois ela colocou um copo liso com Tetley em frente a Tony e sentou no lado oposto com uma cerveja pequena.
— Dirigindo — justificou sucintamente.
— Vim de ônibus. Saúde — brindou ele, levantando o copo.
— Saúde. Bom te ver.
— Você também.
O sorriso que Carol deu em resposta foi debochado.
— Ficava pensando se algum dia você e eu conseguiríamos nos sentar um em frente ao outro sem a sensação de uma terceira pessoa na mesa.
Ela não conseguia evitar. Era como a casca de uma ferida que tinha que arrancar, sempre segura de que dessa vez não sairia sangue.
Ele desviou o olhar e disse:
— Na verdade, você é praticamente a única pessoa que não me faz sentir assim. Obrigado por ter vindo hoje. Sei que provavelmente não era desse jeito que você queria retomar...
— Nosso contato? — disse Carol, incapaz de evitar um tom ácido.
— Nossa amizade?
Foi a vez de ela desviar o olhar.
— Espero que sim — disse. — Espero que seja amizade.
Não era bem a verdade e ambos sabiam disso, mas serviu ao propósito. Carol encontrou um sorriso frágil e comentou:
— Interessante a sua turma filhotes de analistas criminais.
— São, não são? Imagino que você tenha visto o que todos eles têm em comum.
— Se ambição fosse ilegal, todos eles estariam cumprindo prisão perpétua. Na cela ao lado da de Paul Bishop.
Tony quase engasgou com a boca cheia de cerveja, molhou a mesa e por pouco não acertou a jaqueta de sarja creme de Carol.
— Estou vendo que você não perdeu seu instinto assassino — balbuciou ele.
— Falsa modéstia pra quê? É impossível não perceber. Ambição de alta octanagem. Isso enche aquela sala igual a testosterona em uma boate. Não fica preocupado por eles verem a força-tarefa como um trampolim para carreiras brilhantes?
Tony sacudiu a cabeça.
— Não. Talvez metade deles a use como trampolim para aquilo que acreditam ser coisas maiores. A outra metade acha que está fazendo isso, mas vai se apaixonar pela criação de perfis e nunca mais vai querer fazer outra coisa.
— Dê nome aos bois.
— Simon, o rapaz de Glasgow. Tem aquele modo de pensar cético e não aceita nada cegamente. Dave, o sargento. Gosta da ideia de que aquilo é metódico e lógico, e que mesmo assim existe espaço para instinto. Mas a verdadeira estrela vai ser a Shaz. Ainda não sabe disso, mas já foi picada pelo mosquito da criação de perfis. Você não acha?
Carol assentiu e disse:
— Ela é uma workaholic obsessiva e não vê a hora de atacar as mentes destrambelhadas nas ruas. — Inclinando a cabeça para o lado, ela soltou: — Quer saber de uma coisa?
— O quê?
— Ela me lembra você.
Tony não conseguia decidir se ficava ofendido ou entretido e acabou escolhendo perplexo.
— Que estranho — disse ele. — Ela me lembra você.
— O quê? — exclamou Carol, espantada.
— Na apresentação de hoje à tarde. O trabalho básico foi consistente. O grupo que ela identificou definitivamente merece consideração como fenômeno. — Ele estendeu as mãos e arregalou os olhos. — Pular disso para a conclusão de que Jacko Vance é um serial killer foi um salto imaginativo só comparável à sua performance virtuosa no caso de Bradfield!
Carol não conseguiu ficar sem rir da teatralidade dele.
— Mas eu estava certa — protestou Carol.
— Você pode ter tido razão de fato, mas quebrou todas as leis da lógica e das probabilidades para chegar àquilo.
— Talvez a Shaz esteja certa. E talvez a gente simplesmente seja melhor que os meninos em criar perfis — provocou Carol.
Tony resmungou.
— Eu não negaria a possibilidade das meninas serem melhores nisso — disse ele. — Mas não consigo acreditar que você acha que a Shaz está certa.
— Depois de seis meses de trabalho, ela vai se sentir mortificada só de ter sugerido aquilo.
— Como conheço os policiais, sei que alguém daquela turma vai armar um cara a cara pra ela no Vance Visita.
Carol sentiu um arrepio.
— Já consigo até ver. Jacko Vance prensado contra a parede por aqueles olhos extraordinários e a Shaz falando: “Onde você estava na noite de 17 de janeiro de 1993?”
Quando os dois pararam de gargalhar, ela completou:
— Eu ficaria fascinada de ver o que ela inventaria sobre o meu incendiário em série.
— Hmmm — disse Tony.
Ela ergueu o copo para brindar.
— Ao esquadrão da feitiçaria.
— Que estejamos há muito tempo no céu antes que o diabo perceba que a gente já foi embora — respondeu ironicamente e esvaziou o copo. — Outra?
Carol olhou o relógio e considerou. Não que devesse estar em algum lugar; só queria um tempinho pra decidir se era melhor deixar as coisas naquela situação agradável ou ficar para tomar mais uma com o risco de acabarem reinstaurando a distância novamente. Decidida a não arriscar, ela negou com um gesto de cabeça pesaroso.
— Não posso, infelizmente. Quero pegar o turno da noite do Departamento de Investigação Criminal antes que eles desapareçam na zona crepuscular. — Ela bebeu o último restinho de sua cerveja e levantou. — Que bom que a gente teve a oportunidade de bater um papo.
— Bom mesmo. Volta na segunda, aí já vamos ter alguma coisa pra você.
— Ótimo.
— Vai com cuidado na estrada — aconselhou ele.
Ela ficou de lado e disse:
— Vou, sim. E você se cuida.
E foi embora. Tony ficou sentado por um tempo olhando para dentro do seu copo vazio, avaliando porque alguém começava um incêndio sem a recompensa da excitação sexual. Quando um vislumbre de ideia rastejou dentro da cabeça, ele levantou e caminhou sozinho pelas ruas ressoantes.
Não foi a risada dos colegas de Shaz que fizeram seus olhos arderem como se estivessem com xampu. Nem foi o metafórico tapinha na cabeça de Carol Jordan. Foi a gentileza de Tony. Em vez de ficar impressionado pela qualidade do seu trabalho e pelo quanto suas análises eram incisivas, Tony fora gentil. Ela não queria ouvir que foi preciso coragem para colocar a tapa a cara, que demonstrou muita iniciativa, mas que caíra na armadilha de se deixar levar pela coincidência. Teria sido mais fácil se ele tivesse sido desdenhoso ou até mesmo arrogante, mas a camaradagem na compaixão era óbvia demais para que ela escondesse sua esmagadora decepção com raiva. Tony inclusive contara algumas histórias sobre como ele tinha chegado a conclusões equivocadas quando começou na criação de perfis.
Era uma generosidade de espírito com a qual Shaz não tinha ferramentas para lidar. Sendo a única, e acidental, filha de um casal tão devotado um ao outro que as necessidades emocionais da filha mal importavam, aprendera a sobreviver sem expectativa de ternura e indulgência. Fora chamada atenção por mau comportamento, recebera elogios distantes e negligentes por seu sucesso, porém, na maior parte das vezes, fora ignorada. Sua ambição determinada tinha raízes numa infância em que trabalhara desesperadamente para ganhar o que almejava: o reconhecimento dos pais. Em vez disso, os professores ofereceram aprovação e as avaliações profissionais informais tinham sido a única generosidade com a qual aprendera a se sentir à vontade. Hoje em dia, gentileza pessoal genuína a deixava confusa e desconfortável. Conseguia lidar com a avaliação eficiente que Carol Jordan fizera do seu trabalho, mas a gentileza de Tony a desconsertou e acendeu nela a vontade de fazer algo que pudesse tornar aquilo redundante.
Na manhã depois do fracasso, suportou a zoação dos colegas e foi capaz até mesmo de se juntar às provocações, em vez de encará-los com seu frio olhar azul e esvaziar-lhes totalmente a autoconfiança. Debaixo da superfície afável, contudo, a cabeça dela estava turbulenta e não parava de pensar em uma maneira de mostrar que estava certa.
Passar um pente fino nos registros das pessoas desaparecidas, numa tentativa de encontrar outros casos que se encaixassem no padrão estava fora de questão. Shaz sabia, devido aos dias de patrulha, que algo em torno de 250 mil pessoas desapareciam todos os anos, aproximadamente 100 mil tinham menos de dezoito anos. Muitas delas simplesmente deixavam para trás as pressões dos empregos que odiavam e as famílias que não lhes ofereciam nada. Outras fugiam de vidas que se tornaram intoleráveis. Algumas eram seduzidos por promessas de ruas pavimentadas com ouro. E poucos eram arrancadas do seu mundo familiar contra a vontade e arrastadas para o Inferno. Mas era quase impossível dizer em qual categoria uma pessoa se enquadrava por uma análise ligeira do resumo do relatório. Ainda que conseguisse persuadir seus colegas indecisos a se juntarem a ela na busca para desenterrar outras possíveis vítimas do serial killer de Shaz, isso requereria muito mais recursos do que tinham disponíveis.
Quando Tony anunciou que a tarde seria dedicada a estudos individuais, Shaz sentiu a ânsia da sua impaciência diminuir. Pelo menos poderia fazer alguma coisa. Rejeitou a sugestão de Simon para almoçarem em um pub e foi direto para a maior livraria da cidade. Minutos depois, estava em frente à caixa registradora com uma cópia de Jack, uma caixinha de surpresas: a biografia não autorizada, de Tosh Barnes, um colunista da Fleet Street famoso por sua escrita cáustica, e Coração de leão: a verdadeira história de um herói, de Micky Morgan, uma versão atualizada do relato que escrevera pela primeira vez pouco depois do casamento. Tony sugerira que mesmo que Shaz estivesse certa sobre a ligação, era mais provável que o assassino fosse alguém da comitiva de Vance do que o homem em pessoa. Os livros ajudariam ou a eliminá-lo ou a propiciar apoio corroborante para a sua teoria.
Depois de uma rápida viagem de ônibus, estava em casa. Sentou-se à mesa abrindo uma lata de Coca-Cola, o que emitiu um estalo, e imergiu na perspectiva adorável da esposa de Jacko Vance sobre a brilhante carreira do marido. Grande atleta, herói altruísta, lutador indomável, apresentador de TV inigualável, trabalhador voluntário incansável e marido sublime. Ao se esforçar para continuar lendo a hagiografia, Shaz pensou que, na verdade, seria um prazer demolir uma figura revoltante de tão perfeita. Se sua primeira suposição estivesse certa, ele não tinha somente o interior oco, mas toda uma fachada falsa.
Foi um alívio chegar ao final, ainda que isso significasse encarar a pergunta que estava empurrando para as profundezas da cabeça; a apreensão clássica dos inquéritos sobre serial killers: como era possível a esposa não saber? Mesmo levando aquelas vidas atarefadas e independentes uma da outra, como Mick Morgan poderia compartilhar a cama e a existência com um sequestrador e assassino de adolescentes e não perceber que algo na cabeça dele era pervertido e fora do lugar? E, se sabia, ou mesmo desconfiava, como podia se sentar em frente às câmeras dia após dia entrevistando vítimas da vida e pessoas consideradas vencedoras sem uma centelha que apontasse para outra coisa que não fosse compaixão profissional e compostura?
Uma pergunta para a qual não havias resposta. A não ser que Tony estivesse certo e não fosse o próprio Jacko, mas um fã ou um membro da equipe. Eliminando as apreensões, Shaz mudou para Jack, uma caixinha de surpresas, que se provou uma mera e irrelevante versão do mesmo mito. Os casos narrados eram diferentes, mas não revelava nada mais sinistro além do fato de que, quando estava usando sua máscara profissional, Jacko Vance era um perfeccionista com uma postura corrosiva e invectiva capaz de despir a armadura protetora até mesmo dos casos mais difíceis da TV. Isso estava longe de servir como sinal de que era um maníaco homicida.
Porém, para alguém em busca de elementos que se encaixassem nas características de um serial killer, havia sinais e pistas que poderiam apontar para a possibilidade dela não estar completamente enganada. Com certeza havia ali mais fatores do que uma pessoa mediana exibiria e isso, até então, mantinha Jacko Vance como suspeito principal. Poderia muito bem ser alguém ligado a ele, mas, até esse momento, a pesquisa que fizera não fornecera nada que contradissesse sua teoria original.
Shaz tomava notas à medida que lia os dois livros. No final da pesquisa inicial, abriu o notebook e clicou em um arquivo que tinha preparado mais cedo no curso de criação de perfis. Nomeado de Checklist de criminoso organizado, era exatamente o que o nome sugeria: uma lista de indicadores potenciais para revelar a um investigador que um suspeito era um sério candidato. Fez uma cópia do arquivo; depois, usando as anotações para se orientar e vez e outra retornando aos livros, percorreu todo o inventário. Quando terminou, quase ronronava de satisfação. Não estava louca no fim das contas. Aquilo era algo que Tony Hill não poderia ignorar quando disposto na Parte Um do dossiê novo que planejava apresentar. Ela o imprimiu e sorria de satisfação enquanto o conferia.
Estava particularmente satisfeita com o parágrafo de conclusão. Ainda que conciso e direto ao ponto, informava aos leitores que sabiam o que procurar tudo o que precisavam saber, pensou. Gostaria colocar as mãos nas matérias de jornais sobre Vance e Micky Morgan, particularmente nos tabloides e nas colunas de fofoca. Mas entrar com um requerimento formal para qualquer uma das bibliotecas especializadas em jornal faria disparar muito alarmes. Em uma história grande como essa, não podia nem ousar confiar em um contato pessoal.
Ponderou se apresentava ou não essa nova análise a Tony Hill. Em seu coração, sabia que não era o suficiente para mudar o que ele pensava. Mas alguém estava matando meninas e, na balança das probabilidades, dado o tempo a que isso vinha acontecendo e a quantidade de indicadores escondidos no histórico dele, Shaz chegou à conclusão de que Jacko era esse sujeito. Em algum lugar, havia algo que iria expor a sua fraqueza, e ela descobriria o que era.
Capítulo 8
O sargento da recepção colocou uma segunda colherada de açúcar na caneca de chá preto e misturou languidamente, observando o moroso redemoinho que se formava, como se desejasse que ele fizesse alguma coisa interessante o bastante para desviar sua atenção da pilha de papéis ao lado dele na mesa. A espiral desacelerou até parar. Nada mais aconteceu. Com um suspiro que começou na boca do estômago, pegou o primeiro arquivo e o abriu.
O alívio veio quando estava na segunda página do relatório. A mão dele disparou para o telefone como se estivesse presa a um elástico solto de repente.
— Polícia de Glossop, sargento Stone — atendeu animadamente.
A voz no telefone falhava de tão nervosa e estava bem descontrolada. Era uma mulher, nem jovem, nem velha, Peter Stone notou automaticamente enquanto puxava um pedaço de papel para perto de si.
— É a minha filha — disse a mulher. — Donna. Ela não voltou pra casa. Só tem 14 anos. Não foi pra casa da amiga dela. Não sei onde ela está. Me ajuda! Você tem que me ajudar! — Ela aumentou o tom e sua voz se transformou num berro assustado.
— Entendo o quanto isso é perturbador para você — disse Stone de maneira estoica. Sendo ele mesmo pai de duas meninas, recusou-se a deixar que sua imaginação se descontrolasse e começasse a fantasiar os desastres que poderiam acontecer a elas. Se não fizesse isso, nunca mais conseguiria dormir. — Precisarei de alguns detalhes para que possamos prestar-lhe algum auxílio. — A formalidade dele era proposital, uma tentativa calculada de desacelerar as coisas e instilar calma na frenética mulher do outro lado da linha. — O seu nome é...?
— Doyle. Pauline Doyle. Minha filha é a Donna. Donna Theresa Doyle. A gente mora na Corunna Street. Corunna Street, número 15. Só nós duas. O pai dela morreu, sabe? Teve uma hemorragia cerebral há três anos e caiu morto, assim, de repente. O que aconteceu com a minha Donna? — Sua voz estava embargada pelas lágrimas. Stone a ouvia fungar e soluçar apesar dela se esforçar muito para falar com coerência.
— Farei o seguinte, sra. Doyle, mandarei alguém aí para colher um depoimento da senhora. Enquanto isso, pode me dizer há quanto tempo Donna está desaparecida?
— Não sei — lamuriou Pauline Doyle. — Ela saiu de casa pra ir à escola hoje de manhã e falou que ia tomar um chá na casa da amiga dela, a Dawn. Elas estavam trabalhando num projeto de ciências. Como às dez horas ela ainda não tinha chegado em casa, liguei pra mãe da Dawn e ela me contou que a Donna não tinha ido lá e Dawn falou que ela não tinha aparecido na escola.
Stone olhou para o relógio. Isso significava que a menina tinha estado em um lugar diferente daquele em que deveria estar por quase quinze horas. Oficialmente, não era para se preocupar ainda, mas doze anos de serviço na polícia lhe deram um instinto para o que era importante.
— Vocês não brigaram, brigaram? — perguntou, gentilmente.
— Nã-ã-ã-o — disse a sra. Doyle, chorando. Ela soluçava e Stone a ouviu respirar fundo para acalmar a voz. — Ela é tudo que eu tenho. — Continuou com a voz macia e comovente.
— Pode haver uma explicação simples. Não é incomum garotas jovens desaparecerem de repente. Agora quero que a senhora coloque a chaleira para esquentar e prepare uma bule de chá, pois dois policiais estarão aí em dez minutos, ok?
— Obrigada.
Desolada, Pauline Doyle desligou o telefone e olhou com aflição para a foto sobre a televisão. Donna sorria de volta para ela, um sorriso deliberadamente sedutor que dizia que ela estava atingindo a fronteira que separa a criança da mulher. Sua mãe enfiou a mão entre os dentes para evitar que começasse a gritar, depois saiu cambaleando até entrar no brilho fluorescente da cozinha.
Nesse momento, Donna Doyle estava viva, bem e levemente bêbada.
Capítulo 9
Uma vez que a decisão fora tomada, só o que restava eram detalhes. Primeiro, o pedido oficial, planejado para gerar o máximo efeito durante a maratona televisiva que arrecadava milhões para instituições de caridade para crianças. Jacko se ajoelhou diante de oito milhões de espectadores e pediu a Micky que se casasse com ele. Ela adequadamente se fingiu surpresa, depois comovida. Com lágrimas nos olhos, aceitou. Assim como todos os outros aspectos do casamento deles, não havia nada em todo o processo que não pudesse ser televisionado no horário nobre.
O casamento aconteceu em um cartório, é claro, o que não era razão para não ostentar uma festa que inundaria as colunas de fofoca durante dias. O agente de Jacko e Betsy foram testemunhas, ambos agindo como supervisores oficiais, garantindo que ninguém bebesse champanhe a ponto de destruir a discrição. Então, depois, a lua de mel. Uma ilha particular em Seicheles. Betsy e Micky em um chalé, Jacko em outro. Diversas vezes, elas o viam na praia, com uma mulher diferente em cada ocasião, mas ninguém, com exceção do próprio Jacko, juntava-se a elas para fazer alguma refeição e elas nunca eram apresentadas a nenhuma das suas parceiras.
Na última noite, os três jantaram juntos sob a lua do Oceano Índico.
— Suas amigas já foram embora? — perguntara Betsy, encorajada pela quinta taça de champanhe.
— Amigas, não — respondeu Jacko cuidadosamente. Na boca, um sorriso estranho e retorcido. — Nem assistentes pessoais, infelizmente. Não durmo com amigas. O sexo é algo mantido no campo das transações. Depois do acidente, depois da Jillie, falei pra mim mesmo que nunca mais me colocaria numa posição em que alguém pudesse me tirar qualquer coisa que fosse importante pra mim.
— Que triste isso — comentou Micky. — Você perde muito por não estar preparado pra assumir riscos.
Os olhos dele pareciam ter se vitrificado, como o vidro fumê da janela de uma limousine se levantando para obscurecer quem estava ali dentro. Era um olhar que ela estava certa de que nunca seria visto por seu público, nem mesmo pelos doentes terminais e enfermos incuráveis que ele tranquilizava, dedicando com afinco tanto do seu tempo e energia. Se os detentores do poder tivessem algum dia visto aquela escuridão atrás dos seus olhos, teriam se certificado de que ele jamais chegaria a cem quilômetros de distância dos doentes e moribundos. Tudo o que o mundo recebia era o charme. Na verdade, era praticamente tudo que ela mesma sempre recebia. Só que ou ele a deixava ver mais, ou então não estava ciente de que ela o conhecia tão bem. Até mesmo Betsy disse a ela que era um exagero aquela história da escuridão que se avolumava dentro do marido. Somente Micky sabia que não era.
Jacko olhou sem sorrir para dentro dos olhos da sua esposa e disse:
— Eu assumo muitos riscos, Micky. Só minimizo a possibilidade de perda. Olha este casamento. É um risco, mas não o aceitaria se não tivesse certeza de que seria o mais seguro pra mim, porque você tem muito mais a perder do que eu se, em algum momento, ele for exposto como uma fraude.
— Talvez — reconheceu Micky dando uma inclinadinha em sua taça. — Mas acho triste você se privar da possibilidade de amar, que é o que faz desde que terminou com a Jillie e começou esse jogo comigo.
— Isto não é um jogo — disse Jacko, a cara fechada e intensa. — Mas se você está preocupada com a minha desnutrição, não se preocupa. Eu me responsabilizo pelas minhas próprias necessidades. E prometo que minhas soluções nunca vão constranger você. Sou o rei da negação. — Ele colocou a mão esquerda sobre o coração e sorriu solenemente.
Essas palavras sempre assombraram Micky, apesar dele nunca ter dado razão para que ela as jogasse na cara dele. Porém, às vezes, quando via algumas expressões cruzarem os olhos de Jacko, lembrava-se da primeira vez que vira sua fúria contida naquele quarto de hospital, e imaginava o que exatamente poderia estar escondido no mundo secreto de Jacko que pedisse por negação. Assassinato, entretanto, nunca teria feito parte na lista.
O problema de se trabalhar sozinha era que não se podia fazer tudo, percebeu Shaz depois de algumas noites de sono espasmódico. O dia não tinha a quantidade suficiente de horas, ela não tinha autoridade para fazer verificação de antecedentes, nem acesso à rede de informações dos policiais que trabalhavam nas áreas em que Jacko Vance crescera e naquela em que morava atualmente. Não havia ninguém com quem fofocar. Se ela quisesse fazer algum progresso sobre o qual valesse a pena falar, havia apenas uma rota possível a seguir.
Teria que agitar as coisas. E isso significava pedir mais favores. Pegou o telefone e ligou para Chris Devine. A secretária eletrônica atendeu no terceiro toque. Foi um alívio não ter que explicar todo aquele empreendimento aparentemente insano para Chris. Quando escutou o bipe, Shaz disse:
— Chris? É a Shaz. Obrigada pela ajuda naquele dia. Foi útil demais. Estou precisando de outro favor. Será que você conseguiria o número da casa do Jacko Vance pra mim? Vou ficar em casa a noite toda. Você é uma estrela, obrigada.
— Peraí. — A voz de Chris se sobrepôs à dela.
Shaz deu um pulo e quase deixou a caneca de café cair no chão.
— Alô? Chris?
— Estava tomando banho. O que é que tá rolando? — A voz de Chris estava mais afetuosa do que Shaz achava que merecia.
— Quero esquematizar uma conversa com o Jacko Vance e não tenho o número dele.
— Tem algum problema com os canais oficiais, docinho?
Shaz pigarreou.
— Não é uma investigação exatamente oficial.
— Você vai ter que abrir um pouquinho mais o jogo. Isso tem alguma coisa a ver com a meia-dúzia de árvores que tive que assassinar no último favor que você pediu?
— Mais ou menos. Sabe o exercício de que falei? Parece que ele acabou gerando um grupo genuíno. Acho que existe um serial killer de verdade por aí pegando meninas adolescentes. E está conectado a Jacko Vance.
— Jacko Vance? O Jacko Vance? O Jacko Vance do Vance Visita? O que ele tem a ver com um serial killer?
— É o que estou tentando descobrir. Só que a gente não deveria estar fazendo isso agora, então ninguém está disposto a agir ainda a não ser que eu descubra alguma coisa mais concreta.
— Espera um pouquinho, querida. Volta um pouquinho até a parte em que fala da conexão com Jacko Vance. O que você quer dizer com isso?
Parecia que Chris estava começando a ficar preocupada, Shaz pensou. Hora de recuar um pouco. Hora também de adotar a sugestão menos dramática dos seus colegas.
— Pode ser alguma coisa, mas também pode não ser nada. Só que, nesse grupo que identifiquei, ele fazia uma aparição pública nas cidades de todas as meninas alguns dias antes delas desaparecerem. É uma coincidência curiosa e estou pensando que pode ser alguém da comitiva dele ou algum fã maluco que pira com meninas que têm uma queda muito forte por ele ou alguma coisa assim.
— Peraí, me deixa entender isso direito. Você quer abordar o Jacko Vance pra ver se ele notou algum maluco revirando os olhos nos shows dele? E quer fazer isso extra-oficialmente? — A voz de Chris misturava incredulidade e preocupação.
— O negócio é mais ou menos por aí, sim.
— Você é maluca, Bowman.
— Achei que isso fizesse parte do meu charme.
— Puta merda, docinho, o charme não vai tirar você da merda em que vai se meter se der uma bola fora com essa história.
— E acha que eu não sei? Vai me ajudar ou não?
Houve um longo silêncio. Shaz deixou que ela continuasse, ainda que seus nervos estivessem esticando-se a ponto de se romperem. Por fim, Chris cedeu:
— Se eu não ajudar, você simplesmente vai a outro lugar, não vai?
— Tenho que ir, Chris. Estou certa, alguém está matando as crianças. Não posso ignorar isso.
— É a possibilidade de você estar errada que me preocupa, docinho. Quer que eu vá com você, dê um pouquinho de apoio, faça com que pareça mais oficial?
Era tentador.
— Acho que não — respondeu Shaz, lentamente. — Se eu me der mal, não quero levar você comigo. Mas tem uma coisa que você pode fazer.
Depois de soltar um gemido, Chris falou:
— Se envolver biblioteca, nem pensar.
— Poderia me dar cobertura. Provavelmente vou precisar dar um número pra ele retornar a ligação. Pessoas como ele não confiam em qualquer coisa. Só que a gente não pode receber ligações no curso porque estamos sempre em palestras, ou sessões em grupo, ou qualquer coisa do tipo. Se eu pudesse usar o número da sua sala, pelo menos será um telefone da polícia, caso queira conferir quem eu sou.
— Combinado — concordou Chris com um suspiro. — Me dá cinco minutos.
Shaz tolerou a espera de maneira estoica. Havia momentos em que invejava os fumantes, mas não o suficiente para começar a fumar. Observava o ponteiro dos segundos no seu relógio, apertando os lábios à medida que ele se arrastava em direção ao sexto minuto. Quando escutou o telefone, atendeu antes do fim do primeiro toque.
— Tem uma caneta? — perguntou Chris.
— Tenho.
— Anota aí, então. — Ela ditou o número secreto, que não estava na lista telefônica e que, com muita adulação, conseguira persuadir o policial que a atendeu na delegacia de Notting Hill a dá-la.
— Não fui eu que te dei isso.
— Obrigada, Chris. Fico te devendo essa.
— Mais do que você algum dia vai me pagar, infelizmente. Fica na boa, docinho. A gente se fala em breve.
— Te mantenho informada. Tchau.
Shaz contemplou o pedaço de papel com um tranquilo sorriso de triunfo. Lá vou eu, pronta ou não, pensou, pegando o telefone novamente. Oito e meia não era muito cedo pra ligar.
O telefone tocou algumas vezes, depois uma gravação disse a Shaz: “Sua ligação está sendo transferida”.
Ouviu vários cliques, um som oco, depois o característico chamado de um telefone celular.
— Alô? — A voz que atendeu foi reconhecida instantaneamente. Shaz achou desconcertante o que normalmente era emitido pela TV estar saindo do seu celular, especialmente porque não era a voz que esperava ouvir.
— Sra. Morgan? — perguntou ela, hesitante.
— Isso. Quem está falando?
— Aqui é a detetive Sharon Bowman, da Polícia Metropolitana. Desculpe incomodá-la, mas preciso falar com o seu marido.
— Creio que ele não esteja em casa agora. Nem eu. Este telefone é meu. O número dele é outro.
Shaz sentiu um calor se arrastar pescoço acima.
— Desculpe o incômodo.
— Não tem problema. Posso te ajudar em alguma coisa, policial?
— Creio que não, sra. Morgan. A não ser que possa me passar o número em que falo com ele.
Micky hesitou:
— Melhor, não, caso não se importe. Posso dar o recado, se isso lhe for útil.
— Pode ser — disse Shaz, desanimada. Os ricos realmente faziam as coisas de maneira diferente. Por sorte, já tinha combinado tudo com Chris. — Acredito que ele possa ter alguma informação sobre uma investigação que estamos realizando. Tenho consciência de que é um homem muito ocupado, mas posso me encontrar com ele a qualquer momento amanhã, onde e quando for melhor para ele. Não estarei no trabalho o resto do dia, então, se ele puder ligar para este número... — Shaz ditou o número do telefone de Chris no trabalho — e pedir para falar com a sargento Devine, ele pode marcar com ela.
Micky leu o número novamente para ela e perguntou:
— Está certo? Amanhã? Certo, detetive Bowman. Vou passar o recado pra ele.
— Desculpe o incômodo — repetiu Shaz, com aspereza.
A famosa risadinha chegou até ela pela linha telefônica:
— Não é incômodo nenhum. É sempre um prazer ajudar a polícia. Você saberia disso se assistisse ao meu programa.
Era uma brecha tão óbvia que Shaz não resistiu.
— É um programa excelente. Vejo sempre que posso.
— A lisonja sempre faz com que suas mensagens sejam entregues — disse Micky com a voz igualmente sedutora à que sempre usava ao meio-dia.
— Espero que o sr. Vance entre em contato o mais rápido possível — disse Shaz. Ela nunca tinha falado tão sério em toda a sua vida.