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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTROS DE SANGUE
RASTROS DE SANGUE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 10

Pauline Doyle observava o porta-retratos vazio sobre a televisão. Os policiais que a visitaram na noite do desaparecimento de Donna levaram a foto para fazer algumas cópias. Eles pareceram preocupados com Donna, fizeram muitas perguntas sobre ela, sobre a escola, se tinha namorado e o que gostava de fazer no fim de semana. Quando finalmente foram embora com a foto e uma descrição de Donna, sentia que a tinham ajudado a manter a histeria controlada. Seu instinto a dizia para percorrer as ruas da noite gritando o nome da filha, mas as reações serenas dos policiais que encheram sua cozinha a aliviaram e fizeram-na entender que aquele não era o momento de agir por impulsos irracionais.
— Melhor ficar aqui — orientou o mais velho. — Você não vai querer que ela não a encontre se tentar ligar pra casa. Deixe a busca por nossa conta. Somos os especialistas e sabemos como lidar com isso.
A mulher que fora à casa dela na manhã seguinte minara aquelas garantias ao persuadir Pauline a fazer um exame detalhado dos pertences de Donna. Quando deram falta da roupa preferida de Donna para sair para dançar — uma saia curta de lycra, uma camisa listrada de preto e branco justa com gola canoa e a bota de couro preta da Doc Martens —, a detetive ficou visivelmente mais relaxada. Pauline entendeu o motivo. Aos olhos da polícia, as roupas que faltavam indicavam que se tratava apenas de mais uma fuga adolescente. Podiam relaxar agora, parar de se preocupar com a suposição anterior de que poderiam muito bem ter que procurar por um corpo.
Como explicaria de uma maneira que eles entenderiam? Como poderia fazê-los ver que Donna não tinha nem necessidade, nem razão para fugir? Pauline e Donna não tinham desentendimentos. Muito pelo contrário. Eram próximas, muito mais do que qualquer mulher conseguia se aproximar das suas filhas adolescentes. A morte de Bernard impulsionara uma em direção à outra em busca de consolo e continuaram compartilhando suas confidências. Pauline fechou os olhos com força e fez uma feroz súplica para a Virgem em que perdera a fé anos antes. A polícia não a escutava; que mal rezar poderia fazer?
Capítulo 11

A aurora se elevou do lado esquerdo ao barulho da estrada e ao som da sua própria voz. Durante todo o percurso pela rodovia M1, Shaz ensaiou a conversa. Sempre invejara o conforto dos advogados, que só faziam perguntas para as quais sabiam as respostas. Encarar um profissional sem encenar e explorar todas as possíveis respostas teria sido loucura, então dirigia no piloto automático, ensaiando as perguntas e imaginando respostas. Quando chegou a West London, estava mais preparada do que nunca. Ou ele deixaria alguma coisa escapulir, e ela duvidava que seria amador o bastante para fazer isso, ou ela o faria entrar em pânico e tentar uma ação subsequente que confirmaria tudo o que elaborara para si mesma. Por fim, ela poderia estar errada e os outros, certos, e Jacko simplesmente apontaria um devotado fanático que ele vira com supostas vítimas. Seria um anticlímax, porém conseguiria conviver com ele se salvasse vidas e colocasse um assassino atrás das grades.
Que ela poderia estar se colocando em risco nunca lhe ocorreu seriamente, apesar das advertências de Chris Devine. Aos 24, Shaz não havia tido prenúncios de sua mortalidade. Nem os três anos de polícia, com as ocasionais agressões e os perigos regulares, danificaram seu senso de invencibilidade. Além disso, as pessoas que moravam nas mansões de Holland Park não atacavam policiais. Especialmente quando a esposa deles foi quem marcara o encontro.
Adiantada como sempre, Shaz ignorou as instruções que lhe foram dadas para que estacionasse na entrada da garagem deles. Em vez disso, encontrou um parquímetro em Notting Hill, caminhou até Holland Park e percorreu sem pressa a rua em que moravam. Observando com cautela os números, Shaz identificou a casa que pertencia a Jacko e Micky. Era difícil acreditar que um lugar enorme como aquele no coração de Central London ainda abrigava somente uma residência, mas Shaz sabia através da pesquisa que fizera, que aquela não era uma mansão dividida em apartamentos. Era tudo para Jacko e Micky e o único funcionário que também morava ali era a assistente pessoal de longa data, Betsy Thorne. Minha nossa, Shaz pensou ao passar pela casa branca chiquérrima de fachada impecável. Ela não conseguia ver muito do jardim, blindado do mundo por uma cerca viva bem aparada feita com vários tipos de planta, mas a parte atrás dos portões eletrônicos parecia ser tão imaculadas quanto uma exposição de flores. Shaz sentiu uma dúvida momentânea na boca do estômago. Como podia suspeitar que o morador de uma joia daquelas cometia os crimes medonhos que sua imaginação construíra? Pessoas como essas não faziam coisas como aquelas, faziam?
Mordendo o lábio de raiva devido à falta de autoconfiança, Shaz deu meia volta e caminhou com firmeza de volta para o carro, com sua determinação crescendo no mesmo ritmo que seus passos largos. Ele era um criminoso e, depois que tivesse acabado com ele, o mundo inteiro saberia. Shaz levou menos de cinco minutos para voltar de carro até a casa e virar no portão de entrada. Baixou o vidro e apertou o interfone.
— Detetive Bowman, vim para conversar com o sr. Vance — disse, com firmeza.
Os portões se abriram emitindo um zumbido eletrônico baixinho e Shaz adentrou no que não conseguiu deixar de pensar como território inimigo. Sem saber ao certo onde deixar o carro, optou por evitar bloquear a garagem dupla, continuou seguindo em frente e deu a volta até o outro lado da casa, passou por uma Range Rover estacionada à escada da entrada e parou ao lado de uma Mercedes conversível. Desligou o carro e ficou quieta por um momento, juntando as forças e focando no seu objetivo.
— É agora — disse, por fim, com a voz baixa e forte.
Subiu a escada correndo e tocou a campainha. Quase instantaneamente, a porta foi aberta e o rosto familiar de Micky Morgan sorriu para ela.
— Detetive Bowman — disse ela, ao dar um passo atrás, convidando-a para entrar com um gesto de braço. — Entra. Estou de saída.
Micky apontou para o lado onde havia uma mulher de meia idade, com mechas grisalhas no cabeço penteado para trás numa trança frouxa.
— Esta é Betsy Thorne, minha assistente pessoal. Estamos saindo pra pegar o Le Shuttle.
— Com uma parada à noite em Le Touquet — acrescentou Betsy.
— Muitos frutos do mar e uma agitada no cassino — completou Micky, esticando o braço para pegar com Betsy uma mala de couro.
— Jacko está te esperando. Só vai terminar de fazer uma ligação. Entra ali naquela primeira porta à esquerda que ele vai te encontrar lá num minuto.
Shaz finalmente conseguiu pronunciar uma palavra:
— Obrigada.
Micky e Betsy permaneceram imóveis na entrada, até que Shaz percebeu que não fechariam a porta antes de terem certeza de que ela estava no lugar certo. Com um sorriso desajeitado, Shaz se despediu com um gesto de cabeça e entrou pela porta que Micky indicara. Somente quando desapareceu de vista foi que escutou a porta da entrada sendo fechada. Movendo-se na direção da janela, viu a mulher entrando na Range Rover.
— Detetive Bowman?
Shaz rodopiou. Não escutara ninguém entrar. Do outro lado da sala, mais baixo na vida real do que na TV, Jacko Vance sorria. Estimulada por sua imaginação, Shaz viu o sorriso da pantera logo antes de sua presa virar carcaça. Indagou a si mesma se estava cara a cara com seu primeiro serial killer. Se sim, tinha esperança de que ele não se desse conta de que estava vendo Nêmesis.
Os olhos eram extraordinários. Por trás, ela parecia tão mediana. Cabelo castanho encostando-se à gola de um blazer azul-marinho feito sob medida, calça jeans e mocassim marrom-claro. Nada que merecesse uma segunda olhada em um bar lotado. Mas quando ela se virou ao se assustar com a chegada ele, o esplendor dos seus olhos azuis a transformou em uma criatura totalmente diferente. Vance sentiu uma picada de apreensão aliada a uma estranha satisfação. Não interessava o que ela procurava, aquela mulher não era uma ninguém. Era uma adversária.
— Desculpe-me por fazê-la esperar — disse, numa voz que continha o familiar carinho da TV.
— Cheguei cedo — comentou ela, com naturalidade.
Vance caminhou em direção a ela e parou quando restavam aproximadamente dois metros entre eles.
— Sente-se, policial — ofereceu ele, indicando o sofá atrás dela.
— Obrigada — agradeceu Shaz, ignorando a instrução dele e se movendo em direção à poltrona que ele planejava ocupar. Vance a escolhera porque o assento era mais alto e a luz ficava atrás dela. Tinha a intenção de colocá-la em desvantagem, mas ela virou a mesa. Uma irritação o ferroou como a picada de um inseto e, em vez de se sentar, foi até a lareira e apoiou-se no consolo esculpido dela. Jacko a encarou, seu silêncio demandando que ela começasse a negociação.
— Agradeço por disponibilizar um tempo para me atender — disse após um longo momento. — Tenho consciência do quanto é ocupado.
— Você não me deixou muita opção. Além disso, sempre fico feliz em poder ajudar a polícia. Pode inclusive conseguir com o seu subcomissário os detalhes sobre quantas vezes ajudei as instituições de caridade da polícia.
O sorriso dele não abandonava a voz, mas não chegava aos olhos.
O olhar azul nunca piscava.
— Tenho certeza disso, senhor.
— O que me faz lembrar. Sua identificação?
Vance não se moveu, o que forçou Shaz a se levantar e atravessar a sala depois de pegar a carteira onde ficava a sua credencial.
— Não acredito que fomos tão descuidados — disse Vance sociavelmente enquanto ela se aproximava. — Deixar uma estranha passar pela porta sem conferir se ela é quem alega ser.
Jacko deu uma olhada superficial na identificação da Polícia Metropolitana de Shaz.
— Tem outra, não tem?
— Como? Esta é a única identificação que a Polícia Metropolitana fornece aos policiais. É a nossa identidade — esclareceu Shaz, não deixando transparecer em seu rosto nem um pouco dos alarmes que soavam em sua cabeça, dizendo que ele tinha conhecimento demais e que ela deveria dar o fora enquanto as coisas ainda estavam bem.
Os lábios de Vance pareciam se retrair enquanto seu sorriso se tornava mais astuto. Hora de mostrar a ela quem dava as cartas, ele decidiu.
— Mas você não está na Polícia Metropolitana mais, está detetive Bowman? Viu só? Não é a única a fazer o dever de casa. Você fez o dever de casa?
— Ainda sou da Polícia Metropolitana — disse Shaz com firmeza. — Se alguém lhe falou alguma coisa diferente, essa pessoa está enganada, senhor.
Ele atacou:
— Mas não está alocada na área da Polícia Metropolitana, não é? Está vinculada a uma unidade especial. Por que não me mostra sua identidade atual para que eu saiba que você é quem diz ser, e então possamos ir ao que interessa?
Cautela, ele disse a si mesmo, não se anime demais só porque você é muito mais esperto do que ela. Ainda não sabe o que ela está fazendo aqui. Deu de ombros de forma vitoriosa, levantando as sobrancelhas e disse:
— Não quero ser uma pessoa difícil, mas, para um homem na minha posição, o cuidado nunca é demais.
Shaz o olhou de cima abaixo, seu rosto uma máscara.
— Isso é verdade — disse ela, mostrando a identidade com foto da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Ele esticou a mão para pegá-la, mas Shaz tirou-a do alcance dele.
— Nunca vi uma dessas aí antes — proseou ele, escondendo sua frustração por não ter sido capaz de visualizar mais do que a logo e a palavra “Perfis”, que saltou como ferro em brasa. — A força-tarefa sobre a qual tanto lemos, hein? Quando estiverem em pleno funcionamento, deveriam pegar um dos seus policiais mais experientes para ir ao programa da minha mulher e contar às pessoas o que tem sido feito para protegê-las.
Agora ela estava ciente de que ele sabia que era novata.
— Essa decisão não é minha, senhor.
Shaz deu-lhe as costas deliberadamente e caminhou de volta até a poltrona.­ — Agora podemos ir ao ponto?
— É claro.
Ele abriu o braço esquerdo num gesto dispendioso sem fazer um movimento sequer em direção à cadeira.
— Estou à sua disposição, detetive Bowman. Talvez possamos começar com você me contando exatamente sobre o que se trata tudo isso.
— Reabrimos o caso de algumas meninas adolescentes desaparecidas — começou Shaz, abrindo a pasta que estava carregando. — Inicialmente, identificamos sete casos com fortes similaridades. Os casos cobrem um período de seis anos e expandiremos nossas investigações para verificar se existem outros com características iguais que ainda não encontramos.
— Não estou entendendo bem o que eu... — Vance franziu as sobrancelhas convincentemente. — Meninas adolescentes?
— De 14 e 15 anos — disse Shaz com firmeza. — Não posso entrar nos detalhes que conectaram esses casos, mas temos razões para acreditar que eles podem estar ligados.
— Está dizendo que não são fugas comuns — perguntou ele, soando perplexo.
— Temos motivos pra acreditar que o desaparecimento delas foi planejado por uma terceira parte — disse Shaz cautelosamente, sem nunca tirar os olhos do rosto dele. A intensidade de seu olhar o deixou desconfortável. Quis esgueirar-se dele, retirar-se daquela inquietante linha de visão. Mas se forçou a manter a pose casual.
— Sequestro, é disso que você está falando?
As sobrancelhas e um leve movimento de cabeça indicaram que ela deu de ombros.
— Não estou na posição de liberar mais nenhuma informação — respondeu ela com um sorriso repentino.
— Tudo bem, mas ainda assim o que você está falando não faz muito sentido. O que um monte de adolescentes desaparecidas tem a ver comigo? — Ele fez com que sua voz soasse um pouco nervosa. O que não era difícil, havia muita tensão nervosa zumbindo em suas veias para inspirá-lo.
Shaz abriu a pasta e sacou um maço de cópias de fotos.
— Em todos os casos, alguns dias antes do desaparecimento das meninas, você fez uma aparição pública ou participou de um evento de caridade nas cidades em que elas moravam. Temos razões para acreditar que todas as meninas estiveram presentes nessas ocasiões.
Ele conseguia sentir a maré vermelha subindo pelo pescoço. Era incapaz de conter o rubor de raiva que ascendia até o rosto. Esforçava-se para manter a calma e a voz firme.
— Centenas de pessoas vêm aos meus eventos — disse ele, por fim. Sua voz possuía uma pontada de rouquidão. — Estatisticamente, algumas delas devem acabar desaparecendo. O tempo todo.
Shaz inclinou a cabeça como se ela também tivesse capturado uma mudança no seu tom. Parecia um cão de caça que acabara de farejar o vestígio daquilo que podia ser um coelho.
— Eu sei. Sinto muito por ter que incomodá-lo com isso. É que o meu chefe acha que existe a remota possibilidade de que alguém da sua comitiva, ou alguém que tenha um interesse doentio em você, possa estar envolvido no desaparecimento dessas meninas.
— Peraí, você acha que tem alguém me perseguindo e que essa pessoa captura minhas fãs?
Dessa vez, ele não achou difícil parecer incrédulo. Como história de fachada, era ridícula. Um imbecil conseguia ver que a pessoa em que ela estava realmente interessada não era um maluco nem um membro da comitiva dele. Era nele. Ele conseguia afirmar isso pelos olhos de Shaz, fixados obsessivamente nele, registrando todos os seus movimentos, percebendo o fraco brilho de suor que ele sentia na testa. E aquele papo de chefe era evidentemente um blefe. Ela era um lobo solitário, assim como ele. Jacko conseguia farejar isso.
Shaz confirmou com um gesto de cabeça e respondeu:
— Pode ser. Transferência, é como os psicólogos a chamam. Como John Hinckley. Lembra? O cara que atirou no Ronald Reagan porque queria que a Jodie o notasse? — A voz dela era agradável, amigável, cuidadosamente aguda para que ele não se sentisse ameaçado. Ele a odiava por achar que ele deixaria passar despercebida uma técnica tão simples.
— Isso é bizarro — disse ele, desencostando-se da cornija e caminhando de um lado para o outro sobre o tapete em frente à lareira, um Bokhara feito à mão que ele mesmo escolhera. Observar o enredamento cinza e creme debaixo dos seus pés fez com que se acalmasse até que estivesse novamente pronto para enfrentar os olhos intensos daquela mulher. — E é um absurdo. Se não fosse uma insinuação tão estarrecedora, seria engraçado. Ainda não consigo perceber o que isso tem a ver comigo.
— É simples, senhor — disse Shaz com um tom tranquilizador.
Sentindo-se menosprezado, Vance parou abruptamente e a encarou com a cara fechada.
— O quê? — Exigiu ele com o charme desintegrado por um segundo.
— A única coisa que quero é que veja algumas fotos e me diga se notou as meninas por alguma razão. Quem sabe elas não o abordaram com muita insistência e alguém as quis punir. Talvez você tenha percebido algum dos seus funcionários conversando com elas. Ou talvez nunca tenha visto nenhuma delas. Serão somente alguns minutos do seu tempo, e vou embora — persuadiu Shaz. Ela se inclinou para a frente e espalhou as cópias sobre um escabelo do tamanho de uma mesa de centro coberto por um tapete persa.
Ele se moveu em direção a ela, petrificado pelas fotos que Shaz tinha organizado para afrontá-lo. Apenas uma fração de seu trabalho, era tudo o que ela capturara. Mas ele tinha destruído cada um daqueles olhares sorridentes.
Vance forçou um riso.
— Sete rostos entre milhares? Desculpe detetive Bowman, está perdendo seu tempo. Nunca vi nenhuma delas antes.
— Olhe de novo — pediu ela. — Você tem certeza absoluta? — Havia uma contundência na voz dela que não estava ali antes, afiada e entusiasmada. Teve que fazer força para tirar os olhos dos pálidos reflexos da carne viva que ele punira e enfrentar os olhos implacáveis de Shaz Bowman. Ela sabia. Podia não ter a prova ainda, mas ele tinha ciência de que agora ela sabia. Também sabia que Shaz não pararia até que o destruísse. Aquilo passara a ser regido pela lei do cão, e ela não tinha chance. Não seria decepado pela lei.
Ele negou com um gesto de cabeça e um sorriso pesaroso nos lábios.
— Tenho certeza, sim. Nunca botei os olhos em nenhuma delas antes.
Sem nem mesmo olhar, Shaz empurrou a imagem do meio para mais perto dele.
— Você fez um apelo em um tabloide de circulação nacional para que Tiffany Thompson ligasse para os pais — comentou sem mudar a entonação.
— Meu Deus — exclamou ele, forçando uma expressão de surpresa feliz. — Nossa, tinha me esquecido disso completamente. Você tem razão, é claro, agora eu lembrei.
Ela focava toda a sua atenção no rosto de Jacko enquanto ele falava. Com um movimento rápido, ele girou a prótese fazendo um arco curto e golpeou violentamente o lado da cabeça de Shaz. Os olhos dela demonstraram um choque momentâneo, depois pânico. Quando caiu da cadeira, a testa atingiu em cheio o escabelo. No momento em que bateu no chão, estava inconsciente.
Vance não perdeu tempo. Correu até o porão e pegou um rolo de fio de alto-falante e uma caixa de luvas de látex. Em dez minutos, Shaz estava de braços e mãos amarrados como um bezerro no parquete encerado. Jacko correu até o andar de cima, abriu seu guarda-roupa e vasculhou o chão até encontrar o que procurava. De volta ao andar de baixo, cobriu a cabeça de Shaz com o saco de flanela macio que envolvia sua maleta de couro nova. Deu algumas voltas de fio no pescoço dela, apertando-o o bastante para que se sentisse desconfortável, mas não o suficiente para impedir que respirasse. Ele a queria morta, mas não ainda. Não ali, e não acidentalmente.
Assim que teve certeza de que ela não seria capaz de se libertar, pegou a bolsa dela, sentou-se no sofá, sem deixar as fotos e a pasta onde elas estavam para trás. Meticulosamente, começou a analisar tudo, iniciando pela pasta. Apenas passou os olhos pelos resumos dos relatórios policiais, pois sabia que teria a oportunidade de lê-los mais detalhadamente depois. Ao chegar na análise que Shaz apresentara aos colegas, não se apressou; pesou e calculou que perigo ela representava para ele. Não muito, decidiu. As cópias do material recolhido de jornais sobre as visitas dele aos lugares em questão não significavam nada; para cada uma delas conectadas a um desaparecimento, ele conseguiria apresentar vinte que não eram. Deixou aquilo de lado e pegou a checklist de um criminoso organizado. Ler a conclusão o deixou com tanta raiva que levantou de uma vez e chutou violentamente a barriga da detetive duas vezes.
— O que você sabe, sua puta do caralho? — gritou, furioso. Desejou poder ver os olhos dela naquele momento. Eles não o estariam julgando, estariam implorando por misericórdia.
Furioso, enfiou os papéis de volta na pasta juntamente com as fotos. Teria que estudar tudo com mais cuidado, mas não tinha tempo naquele momento. Estava certo em cortar aquilo pela raiz antes que mais alguém prestasse atenção nas alegações daquela puta. Voltou-se para a espaçosa bolsa dela e pegou um caderno espiralado. Uma rápida folheada não revelou nada capaz de interessá-lo, com exceção do telefone de Micky e do endereço deles. Já que não poderia negar que ela esteve ali, era melhor que aquilo ficasse ali. Mas arrancou um punhado de páginas depois da última anotação, como se alguém tivesse arrancado detalhes pertencentes a um compromisso subsequente, depois o recolocou na bolsa.
Um gravador foi o que encontrou em seguida, com a fita ainda rodando. Desligou o equipamento, tirou a fita e a colocou junto com as folhas em branco ao seu lado. Ignorou um livro de capa dura de Ian Rankin e pegou uma agendinha. Naquela data, a única anotação era “JV 9:30”. Pensou em adicionar uma anotação abaixo do encontro dela com ele apenas com a letra “T”. Deixar que ficassem pensando naquilo. Dentro da capa encontrou o que estava procurando. “Se encontrar, devolver para S. Bowman, Hyde Park Hill, 17, apartamento 1 Headingley, Leeds. RECOMPENSA. Ele tateou todo o fundo da bolsa. Nenhuma chave.
Vance enfiou tudo de volta na bolsa, pegou a pasta e foi até Shaz. Revistou-a até encontrar um molho de chaves no bolso da calça. Sorrindo, subiu ao andar de cima, foi até o seu escritório e encontrou um envelope acolchoado em que cabia a pasta. Escreveu o endereço do seu refúgio em Northumberland, selou-o e lacrou a pesquisa de Shaz ali dentro.
Uma rápida olhada em seu relógio lhe informou que eram dez e dez. Foi até o seu quarto e vestiu calça jeans, uma das poucas camisas de manga curta que tinha e uma jaqueta também jeans. Escolheu uma bolsa de viagem no fundo do armário embutido com portas de correr que iam até o teto. Pegou um boné de beisebol da Nike em que havia uma peruca entremeada de fios grisalhos colada a ele, de qualidade profissional, que ia até a altura da gola, e o colocou. O efeito era incrível. Quando pôs os óculos aviador de lentes transparentes e almofadinhas de espuma para preencher suas bochechas magras, a transformação foi completa. A única coisa que o denunciava era o seu braço protético. E Jacko tinha a solução perfeita para ele.
Saiu de casa, tomando cuidado para não se esquecer de trancar a porta, e abriu o carro de Shaz. Observou atentamente a posição do banco, depois entrou e o ajustou para que ficasse adequado para suas pernas longas. Passou um tempo se familiarizando com os controles, garantindo assim que conseguiria lidar com a alavanca de marcha e dirigir ao mesmo tempo. Depois arrancou e parou somente para colocar o envelope acolchoado em uma caixa do correio na Ladbroke Grove. Quando chegou à subida de acesso para a rodovia M1 pouco depois das 11 horas, permitiu-se um pequeno e reservado sorriso. Shaz Bowman lamentaria muito por ter cruzado com ele. Mas não por muito tempo.
A primeira dor foi um grito de câimbra na perna esquerda que penetrava sua inconsciência turva como uma faca serrilhada atravessando uma articulação. O instintivo esforço de esticar e flexionar o músculo disparou um açoite de agonia ao redor dos pulsos. Aquilo não fazia sentido para uma mente desorientada que começara a pulsar como um polegar golpeado por um martelo. Shaz se esforçou para abrir os olhos, mas a escuridão não se desfez. Então identificou o material abafando seu rosto. Um tipo de capuz, feito de tecido grosso e com toque macio. Cobria toda a sua cabeça e estava preso com firmeza ao redor da garganta, fazendo com que fosse difícil engolir.
Gradualmente tomou consciência da sua posição. Deitada de lado sobre uma superfície dura, tinha as mãos amarradas atrás das costas com algum tipo de atadura que agredia cruelmente a carne dos seus pulsos. Os pés também estavam amarrados na altura dos tornozelos, e as duas amarras estavam conectadas para permitir o mínimo movimento. Qualquer audácia como esticar as pernas ou tentar mudar de posição lhe causaria muita dor.
Não tinha ideia do tamanho da área a que estava confinada, nem desejava explorá-la, pois já experimentara o tormento de tentar se virar. Não tinha ideia de quanto tempo ficara inconsciente. A última coisa de que se lembrava era do sorriso no rosto de Jacko Vance avultando-se sobre si, como se ele não desse a mínima, seguro de que jamais alguém levaria a sério aquela detetive insignificante. Não, não era só isso. Algo mais queria ser arrancado de sua memória. Shaz respirou fundo, usando técnicas de relaxamento e tentou reconstituir a imagem que vira. A memória se agitou e tomou forma. Na beirada da sua visão periférica, o braço direito dele se levantava, depois a golpeava violentamente como um porrete. Era a última coisa de que conseguia se lembrar.
Com a memória veio o terror, mais agudo do que quaisquer das suas aflições físicas. Ninguém sabia onde ela estava a não ser Chris que, de qualquer maneira, não estava esperando que ela entrasse em contato. Não contara a mais ninguém, nem mesmo a Simon. Não fora capaz de encarar a zoação deles, ainda que amigável. Agora o medo de que rissem dela lhe custaria a vida. Shaz não tinha nenhuma dúvida disso. As perguntas a Jacko Vance fizeram-no perceber que ela sabia que ele era um serial killer e ele não entrara em pânico como Shaz acreditava que aconteceria. Em vez disso, chegara à conclusão de que ela estava trabalhando sozinha. Que, apesar das suas deduções serem uma ameaça, ele poderia suspender sua execução ao se livrar dela, a policial renegada que perseguia sua intuição solitária. Eliminar Shaz, na pior das hipóteses, lhe daria tempo para apagar as pistas ou até mesmo deixar o país.
Shaz sentiu uma onda de suor ensopar sua pele. Não havia dúvida quanto a isto. Ela morreria. Só restava saber como.
Estava certa. E estar certa iria matá-la.
Capítulo 12

Pauline Doyle estava desesperada. A polícia se recusava a considerar o desaparecimento de Donna como qualquer coisa além de uma típica fuga adolescente.
— Ela provavelmente foi para Londres. Não faz sentido a gente ficar procurando por aqui. — Um dos policiais se irritou com ela no balcão da delegacia em uma noite.
Pauline podia gritar do alto dos telhados que alguém sequestrara sua filha, mas a evidência da roupa desaparecida era mais do que suficiente para convencer os policiais sobrecarregados de que Donna Doyle era apenas mais uma adolescente entediada com sua vida em casa e se convencera de que as ruas de outro lugar eram pavimentadas de ouro. Bastava olhar para a fotografia dela, com aquele sorriso astuto, para entender que não era assim tão inocente como a pobre e desorientada mãe queria acreditar.
Como a polícia não demostrava interesse algum em Donna, fora incluí-la na lista de pessoas desaparecidas, Pauline se sentia frustrada. A televisão não queria chamar a atenção para a filha desaparecida, não tinha apoio oficial. Nem mesmo o jornal local estava interessado, apesar de a editora ter cogitado a ideia de publicar um artigo sobre adolescentes que fugiam de casa. Mas, assim como a polícia, repensou ao ver a foto de Donna. Havia algo na menina que desafiava qualquer tentativa de retratá-la como uma inocente perdida no mundo e seduzida por sonhos castos. Algo no traçado da sua boca e na inclinação do seu queixo dizia que ela tinha ultrapassado uma fronteira. A editora do jornal considerou que Donna Doyle era o tipo de Lolita que faria a maioria das mulheres colocar viseiras nos seus maridos.
Quando sua frustração se transformou em tempestades noturnas de lágrimas, Pauline decidiu que chegara a hora de agir com as próprias mãos. Seu trabalho em uma imobiliária não lhe dava uma renda assim tão boa. Era o suficiente para a alimentação e o vestuário dela e de Donna, e para manter um teto sobre suas cabeças, mas não muito mais do que isso. Ainda lhe restava uns dois mil do seguro de Bernard. Pauline estava economizando o dinheiro para quando Donna fosse para a universidade, pois sabia o quanto as coisas ficariam apertadas.
Mas, se Donna não voltasse, não fazia sentido guardá-lo, Pauline racionalizou. Melhor gastar o dinheiro tentando trazê-la de volta para casa e deixar para pensar na educação superior depois. Ela, então, levou a foto de Donna para a gráfica local e mandou fazer milhares de panfletos com a imagem da filha ocupando inteiramente um dos lados. O texto no verso era o seguinte: “VOCÊ VIU ESTA MENINA? Donna Doyle desapareceu na quinta-feira, dia 11 de outubro. Foi vista pela última vez às oito e quinze da manhã, a caminho da Glossop Girls Grammar. Usava uniforme de colégio com saia e cardigã marrom e blusa branca de gola aberta. O sapato era um Kickers preto e carregava um casaco de capuz também preto. Mochila preta da Nike. Caso a tenha visto em qualquer momento depois disso, por favor, contate Pauline Doyle, sua mãe.” Havia também o endereço na Corunna Street e os telefones de casa e da imobiliária.
Pauline tirou uma semana de folga e encheu as caixas de correio de folhetos do amanhecer ao anoitecer. Começou no centro da cidade, enfiando as reproduções do rosto de Donna em qualquer pessoa que as aceitasse, e gradualmente começou a percorrer as ruas dos bairros residenciais mais afastados sem notar a inclinação das subidas por onde passava nem as bolhas que inchavam dentro do seu sapato.
Ninguém ligou.
Capítulo 13

Enquanto Shaz Bowman estava deitada no chão duro em Londres consciente somente do seu medo e da sua dor, Jacko Vance explorava o domínio dela. Não precisou de muito tempo para chegar a Leeds e parou apenas para abastecer e ir ao banheiro estropiado de uma parada na beira da estrada. Queria usar o lixo desse tipo de lugar para se livrar da fita que estava no microcassete de Shaz. No estacionamento, estraçalhou a parte de fora da fita com o pé, deixando os fragmentos para serem espalhados pelo tempestuoso vento que soprava pelas Midlands.
Encontrar a casa de Shaz foi ainda mais fácil com o mapa que comprara há pouco tempo e que, convenientemente, tinha a rua circulada de um chamativo azul. Estacionou o carro na esquina e se esforçou para combater os nervos agitados caminhando lentamente pela rua praticamente vazia, onde apenas alguns garotos jogavam críquete na calçada oposta. Entrou pelo portão número 17 e experimentou uma das duas chaves na pesada porta vitoriana da frente. Ter conseguido de primeira o convenceu de que os deuses estavam realmente ao seu lado.
Chegou no corredor de entrada iluminado apenas por duas estreitas janelas lancetas em cada um dos lados da porta. Espreitando pela escuridão, viu uma larga e graciosa escada se elevando ao seu lado. Parecia haver um apartamento térreo de cada lado. Escolheu o da esquerda e acertou novamente. Respirando com mais calma, convencido de que tudo estava correndo a seu favor, Vance entrou no apartamento. Não planejava ficar muito tempo, apenas o suficiente para explorar o território, então se moveu ligeiramente pelos cômodos. Assim que viu a sala, concluiu que Shaz não poderia ter escolhido um apartamento mais adequado ao seu propósito. As portas-balcão levavam ao jardim cercado por muros altos, sombreado por todo tipo de árvores frutíferas. No fundo, discerniu o contorno de uma porta de madeira no muro de tijolos.
Só restava uma coisa a fazer. Tirou a jaqueta e desatou a prótese. Pegou um objeto na bolsa de viagem, um que ele persuadira o departamento de próteses a fazer alegando que usaria em pegadinhas. Usando o encaixe de um dos seus braços artificiais anteriores, um modelo antigo já descartado, eles fizeram um molde de gesso com pontas de dedos perturbadoramente realistas se projetando da ponta. Uma vez encaixado, especialmente com uma jaqueta sobre ele e uma tipoia o apoiando, parecia um braço quebrado. Quando ficou satisfeito com a maneira como o tinha posicionado, Vance arrumou a bolsa de viagem, respirou fundo e decidiu que era hora de ir.
Saiu pelas portas-balcão e as fechou, depois percorreu confiante o caminho de brita até o portão. Ele sentia o cabelo debaixo da peruca pinicando seu pescoço, e imaginava se havia olhos atrás das janelas às suas costas, olhos que pudessem lembrar o que viram assim que sua obra estivesse terminada e exposta à apreciação do público. Numa tentativa de se tranquilizar, lembrou-se de que qualquer descrição que pudessem sugerir não se pareceria nada com o Jacko Vance que o público conhecia.
Ele desaferrolhou o portão de trás, convencido de que ninguém o trancaria de novo antes que retornasse. Chegou a uma viela que se estendia por entre dois conjuntos de jardins, saiu numa das ruas principais que levavam para o centro da cidade. Caminhar até a estação levou quase uma hora, mas não ficou sequer dez minutos esperando o trem para Londres. Estava de volta a Holland Park, transformado novamente em Jacko Vance às sete e meia.
Antes de providenciar seus preparativos finais, meteu uma pizza média no forno. Não era a ideia que geralmente tinha para um jantar de sábado à noite, mas o carboidrato deveria fazer com que seu estômago parasse de dar cambalhotas. A tensão sempre golpeava suas entranhas. Sempre que a febre da expectativa o agarrava, ele precisava suportar cólicas e contrações, nós e náuseas. Aprendera no início da carreira como comentarista esportivo ao vivo que a única maneira de acabar com a turbulência no estômago era se empanturrando com antecedência. O que funcionava para a TV funcionava também para o assassinato, não demorou para descobrir. Adquiriu então o hábito de sempre comer antes de escolher seus alvos. E, é claro, sempre comia com eles antes do ato propriamente dito.
Enquanto a pizza assava, carregou o Mercedes. Era mais fácil fazer esforço de estômago vazio. Agora estava tudo pronto para a última atuação de Shaz Bowman. A única coisa que ele tinha que fazer era levá-la até o palco.
Capítulo 14

Donna Doyle também estava sozinha. Mas, desarranjada pela agonia, não tinha o luxo da introspecção. A primeira vez que acordou do seu sono picotado, sentiu-se forte o bastante para explorar sua prisão. O medo continuava esmagador, mas não era mais paralisante. Onde quer que estivesse, era escuro como uma sepultura e tinha o cheiro úmido do pequenino depósito de carvão da sua casa. Ela usava o braço bom para ajudar a ter ideia de onde se encontrava e o que havia ao seu redor. Estava, deu-se conta, deitada em um colchão coberto com plástico. Seus dedos exploraram as extremidades e sentiram os ladrilhos frios. Não tão lisos quanto os de cerâmica do banheiro da sua casa, mais parecidos com as terracotas esmaltadas na escada do jardim de inverno da casa da mãe de Sarah Dyson.
A parede atrás de si era de pedra bruta. Lutou para ficar de pé e percebeu pela primeira vez que suas pernas estavam acorrentadas. Abaixou-se e deixou que seus dedos rastreassem o contorno de algemas de ferro ao redor de cada tornozelo. Estavam presas a uma corrente pesada. Com apenas uma mão, era impossível medir seu comprimento. Quatro passos hesitantes ao longo de uma parede fizeram com que chegasse a um canto. Ela virou noventa graus e seguiu em frente. Dois passos e sua canela se chocou dolorosamente contra algo sólido. Não demorou muito, devido tanto ao cheiro quanto ao tato, para identificar que era uma privada química. Com um patético sentimento de gratidão, Donna despencou nela e esvaziou a bexiga.
Isso serviu para a lembrar de como estava com sede. Não tinha muita certeza sobre a fome, mas a sede definitivamente era um problema. Levantou-se e prosseguiu ao longo da parede por mais alguns centímetros, mas a corrente ao redor dos tornozelos a deteve. O solavanco emitiu em espasmo de dor que disparou de seu braço, subiu para o pescoço e a cabeça e a fez prender a respiração. Vagarosamente, curvada como uma senhora idosa, refez seus passos e seguiu até a outra ponta do colchão com a mão roçando a parede.
Depois de alguns centímetros, a questão da comida e da bebida foram solucionadas. Uma torneira de metal fornecia um esguicho de água gelada que bebeu com avidez, depois caiu de joelhos para colocar a cabeça debaixo do fluxo. Ao fazer isso, derrubou algo à sua frente. Com a sede saciada, tateou cegamente procurando pela coisa com a qual tinha trombado. Dedos investigativos encontraram quatro caixas, todas grandes e leves. Ela as chacoalhou e escutou o familiar farfalhar de sucrilhos.
Uma hora de investigação mais tarde foi obrigada a concluir que aquilo era tudo. Quatro caixas de sucrilhos — ela provara cada uma delas — e quanta água fresca quisesse. Tentou jogar água no braço estilhaçado, mas a dor fizera sua cabeça ficar atordoada. Era isso. O desgraçado a deixara acorrentada como um cachorro. Para morrer?
Ela se sentou em seus calcanhares e chorou como uma mãe de luto.
Mas isso acontecera alguns intermináveis dias antes. Agora, delirando de dor, gemia e falava descoordenadamente, às vezes desmaiava, às vezes era levada pela exaustão a cair num sono atormentado. Se fosse capaz de compreender o estado em que estava, Donna não iria querer viver.
Capítulo 15

O carro parou. Shaz não resistiu e se arrastou até o anteparo que isolava os estreitos confins do porta-malas traseiro, esmagando novamente seus pulsos e ombros. Tentou forçar o corpo para cima e bater a cabeça na mala numa desesperada tentativa de atrair a atenção de alguém, mas só o que conseguiu foi uma nova onda de dor. Tentou não chorar por temer que o muco entupisse seu nariz e ela sufocasse; não conseguia respirar através da mordaça que Vance amarrara por cima do capuz. Em agonia, fora rolada pelo chão duro, por áreas carpetadas e por um curto lance de escadas antes dele erguê-la e colocá-la dentro do porta-malas do carro. Ficou horrorizada com a força e agilidade daquele homem de um braço só.
Respirou o mais fundo que conseguiu; tanto que a expansão do peito fez os tensos músculos do ombro protestarem. A ânsia de vômito, por causa do fedor da própria urina, só era segurada por pura força de vontade. Quero ver você tirar isto do carpete do seu porta-malas, pensou, triunfante; não podia fazer nada para salvar sua vida, mas ainda estava determinada a agarrar qualquer oportunidade para impedir que Jacko Vance se safasse com seus crimes. Se a perícia criminal conseguisse avançar até ali onde estava, um carpete manchado de mijo alegraria o dia deles.
Abruptamente, a música abafada parou. Escutara hits dos anos 1960 desde que arrancaram. Shaz se esforçara para prestar atenção e contar as músicas. Com uma média de três minutos por música, calculou que tinham andado algo em torno de três horas no que lhe pareceu uma rodovia depois dos primeiros vinte minutos mais ou menos. O que significava que provavelmente tinham ido para o norte. Se tivessem ido na direção oeste, teriam chegado à rodovia mais depressa. É claro que ele podia tê-la confundido fazendo um percurso contornando a M25, orbitando Londres para criar uma trilha falsa. Mas ela achava que não; duvidava que ele tivesse qualquer necessidade de iludi-la. Não ficaria viva para contar a alguém, afinal de contas.
Já deveria estar escuro. Ela ficara amarrada e caída na casa durante o que lhe parecera várias horas antes de Vance retornar para se ocupar dela. Se estivessem nas profundezas da área rural, não haveria ninguém para vê-la ou escutá-la. De alguma maneira, acreditava que esse era o plano. Ele deve ter levado suas vítimas para algum lugar isolado, evitando ser descoberto. Shaz não via razão para tratá-la de forma diferente.
Ao ser fechada, a porta do carro emitiu um baque macio e um clique baixinho. Ouviu um som metálico mais próximo de si seguido do macio suspiro hidráulico de um porta-malas se abrindo.
— Meu Deus, você está fedendo — disse Vance desdenhosamente, arrastando-a para a frente sem o menor cuidado. — Escuta só — continuou ele, falando mais de perto. — Vou libertar os seus pés. Vou desamarrá-los. A faca é muito, muito afiada. Na maior parte das vezes eu a uso para cortar carne. Se é que me entende.
A voz dele era quase um sussurro, sua respiração quente penetrava no capuz perto da orelha dela. Shaz sentiu outra onda de náusea.
— Se tentar correr, eu te estripo igual a um porco no gancho de um açougueiro. Não tem pra onde correr, entendeu? Estamos no meio do nada.
Não era o que os ouvidos de Shaz a diziam. Para sua surpresa, havia ruído de trânsito não muito distante, o latente murmúrio da vida na cidade. Se tivesse meia chance, a agarraria.
Sentiu a lâmina fria da faca tocar rapidamente seu tornozelo e seus pés ficaram milagrosamente livres. Por um segundo, pensou que conseguiria dar um chute e fugir correndo. Mas sua circulação voltou e espasmos de excruciante formigamento espremeram um gemido na boca seca atrás da inflexível mordaça. Antes que a câimbra passasse, Shaz foi arrastada por cima da beirada do porta-malas, onde desmoronou como um amontoado descoordenado antes de ele fechá-lo e levantá-la com um puxão. Meio arrastando, meio carregando, ele a fez entrar por um vão ou portão, onde Shaz bateu com o ombro na parede, então desceram por um caminho e subiram alguns degraus. Em seguida ele deu um empurrão nela, que desabou em um chão carpetado, suas pernas, moles como borracha, eram inúteis.
Mesmo numa bruma de desorientação e dor, o fechamento da porta e o ruído das cortinas sendo puxadas pareceram estranhamente familiares a Shaz. Um renovado pavor a acometeu, fazendo-a tremer incontrolavelmente e perder o controle da bexiga pela segunda vez em uma hora.
— Meu Deus, você é uma puta muito da nojenta — reclamou Vance com um sorriso de escárnio. Mais uma vez ela foi irresistivelmente puxada para cima. Dessa vez, para ser jogada sem cerimônia em uma cadeira dura e reta. Antes de conseguir se acostumar com a nova dor nos ombros e braços, sentiu sua perna ser novamente amarrada à cadeira da forma como um membro quebrado seria preso a uma tala. Numa desesperada tentativa de se libertar, esforçou-se para chutar com a outra perna, regozijando-se com a dissonante conexão com o corpo de Vance e se entusiasmando com o grito surpreso de dor que ele deu.
O soco no maxilar jogou bruscamente sua cabeça para trás e um estalo emitiu ondas de dor aflitiva através da coluna.
— Vaca burra do caralho. — Foi a única coisa que falou antes de agarrar sua outra perna e forçá-la contra a cadeira para prendê-la.
Shaz sentiu a perna dele entre os joelhos. O calor do corpo de Vance beirava o pior sofrimento que tivera que tolerar até então. Ele levantou os braços de Shaz de modo agonizante e os abaixou com força por cima das costas da cadeira para que ela, independentemente da sua resistência, ficasse na posição vertical. O capuz foi desencostado da sua carne e ela ouviu o sussurro de uma lâmina afiada pelo tecido. Piscando por causa da estarrecedora luminosidade, o estômago de Shaz foi tomado por uma cólica gelada ao descobrir que o seu pior medo era a realidade. Estava sentada na sala da própria casa, amarrada a uma das quatro cadeiras da mesa de jantar que comprara há apenas dez dias na Ikea.
Vance pressionou seu corpo contra o dela enquanto cortava o capuz logo acima da mordaça, deixando-a ver e escutar, mas incapaz de fazer algum barulho além de um grunhido abafado. Ele recuou, dando um beliscão cruel no peito de Shaz com a mão artificial enquanto se afastava.
Ficou de pé a encarando, batendo de leve a lâmina na ponta da mesa. Shaz julgou nunca ter visto um ser humano tão arrogante. A pose, a expressão, tudo fedia a uma presunçosa retidão.
— Você fodeu meu fim de semana direitinho — comentou secamente. — Pode acreditar, não era assim que eu tinha planejado passar o sábado à noite. Ficar vestido com uma porra de roupa de cirurgia e uma luva de látex num apartamento fodido em Leeds não é o que eu chamaria de diversão, sua puta. — Balançou a cabeça em tom de lástima. — Você vai pagar, detetive Bowman. Vai pagar por ser essa putinha burra do caralho.
Ele soltou a faca e tateou a camisa. Shaz o viu abrir o zíper de uma pochete e pegar um CD-ROM. Sem outra palavra, saiu da sala. Shaz escutou o familiar zumbido seguido da barulheira de quando primeiro seu computador depois sua impressora eram ligados. Concentrando-se na audição, teve a impressão de escutar o clique do mouse e o som de teclas sendo digitadas com força. Então, inequivocamente, o vibrante tamborilar do papel sendo puxado e da impressão.
Quando voltou, carregava na frente do rosto uma única folha de papel. Ela reconheceu o que estava impresso, um artigo ilustrado de enciclopédia. Não precisou ler as palavras para entender o simbolismo do desenho no alto da página.
— Sabe o que é isto? — indagou ele.
Shaz simplesmente o encarou, os olhos rajados de sangue ainda arrebatadores. Estava determinada a não se entregar de jeito nenhum.
— É uma ferramenta de ensino, aluna-detetive Bowman. São os três macacos sábios. Não veja o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal. Este deveria ter sido o seu lema de aprendizado. Devia ter ficado longe de mim. Não devia ter enfiado o nariz nos meus negócios. Não vai fazer isso de novo.
Deixou o papel esvoaçar até o chão. De repente, lançou-se para a frente e empurrou a cabeça dela para trás com as mãos. Depois colocou o dedo protético sobre o olho de Shaz e o empurrou para baixo e puxou, resgando músculos e despedaçando os ligamentos do oco globo ocular. O grito ficou apenas dentro da cabeça de Shaz, alto o bastante para transportá-la para a abençoada inconsciência.
Jacko Vance estudou sua obra e decidiu que estava boa. Por seus assassinatos usuais serem estimulados por um conjunto diferente de necessidades, nunca os havia contemplado sob um prisma puramente estético. Aquilo, entretanto, era obra de arte carregada de simbolismo. Ele se perguntou se alguém seria inteligente o suficiente para decifrar a mensagem que deixara; caso decifrassem, pensou se dariam devida importância a ela. Por alguma razão, duvidou.
Inclinou-se para a frente e deu uma ajeitadinha na posição da folha de papel no colo de Shaz. Depois, satisfeito, permitiu-se o luxo de um sorriso. A única coisa com que tinha que se preocupar a partir de então era a possibilidade dela ter deixado mensagens. Começou a vasculhar o apartamento metodicamente, centímetro por centímetro, incluindo as lixeiras. Estava acostumado com a companhia de cadáveres, então a presença dos restos mortais de Shaz não lhe causavam estresse algum. Estava tão relaxado enquanto vasculhava meticulosamente a cozinha que se pegou cantando baixinho enquanto trabalhava.
No quarto que ela transformara em escritório, encontrou mais do que previa: uma caixa de cópias de jornal, um bloco com anotações preliminares. Arquivos no disco rígido do laptop e back-ups em disquetes, impressões de vários rascunhos da análise que encontrara mais cedo na pasta que levara à casa dele. O pior era que muito do que estava impresso não parecia ter arquivos correspondentes no computador. Havia cópias em disquete, mas não no disco rígido. Era um pesadelo. Quando localizou o modem, quase entrou em pânico. Os arquivos não estavam no disco rígido porque se encontravam em outro lugar, presumivelmente num computador da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis. E não existia a possibilidade de acessá-lo. Sua única esperança era que Shaz tivesse sido tão paranoica com os arquivos do seu computador quanto parecia ter sido em relação a compartilhar com um colega a decisão de confrontá-lo. De um jeito ou de outro, não havia nada que pudesse fazer em relação a isso naquele exato momento. Livrara-se de todos os rastros e só lhe restava almejar que ninguém vasculhasse os arquivos do computador dela no trabalho. Se os policiais ludistas que conhecia servissem de parâmetro, nunca passaria pela cabeça deles que Shaz poderia ter uma queda por tecnologia. Além disso, ela não deveria estar trabalhando em nenhum caso, deveria? Não de acordo com os contatos que ele, de maneira muito cuidadosa e totalmente natural, explorara para descobrir o que sabia sobre ela antes de se encontrarem. Não havia razão para que alguém conectasse uma morte tão bizarra ao treinamento sobre criação de perfis que ela estava fazendo.
Como ele lidaria com todas aquelas coisas? Não podia levar o material consigo, pois havia a possibilidade se deparar com um policial de trânsito que cismasse de fazer uma revista no carro. Igualmente, não podia deixar o material para trás, porque apontaria um gigantesco dedo na direção dele. Parara de cantar.
Agachou em um canto do escritório e ficou furiosamente pensando. Não podia queimar. Demoraria demais e o cheiro chamaria a atenção dos vizinhos. A última coisa que precisava era do corpo de bombeiros. Não podia jogar na privada e dar descarga; entupiria os canos na mesma hora, a não ser que picasse tudo em pequeninos fragmentos, e, para isso, precisaria ficar ali até de manhã ou mais. Não podia nem cavar um buraco no jardim e enterrar, já que a descoberta do corpo da puta seria apenas o início de uma gigantesca e meticulosa investigação, começando pelos arredores imediatos ao corpo.
No final, a única solução que concebeu não deixava outra opção a não ser levar todas as evidências incriminatórias consigo. Era um pensamento assustador, mas ele continuava a dizer para si mesmo que a sorte e os deuses estavam com ele, que permanecia intocável até então porque tomara todas as precauções humanamente possíveis e deixara apenas uma fração do risco para o destino benevolente.
Vance encheu dois sacos de lixo com o material e cambaleou ao carregá-los até o carro, cada passo um esforço. Trabalhava no descarte da detetive Shaz Bowman havia aproximadamente quinze ou dezesseis horas, e estava ficando sem energia mental e física. Nunca usava drogas nesses momentos; a falsa sensação de poder e capacidade que elas provocavam eram passos certeiros na direção da falibilidade e dos erros estúpidos. Porém, apenas desta vez, gostaria de ter um papelzinho de cocaína impecavelmente dobrado no bolso. Algumas linhas e ele tiraria de letra as tarefas que ainda restavam, em vez de arrastar seu corpo esgotado por aquela porcaria de caminho de brita no cu de Leeds.
Com um pequeno gemido de alívio, largou o segundo saco de lixo no porta-malas. Ficou parado por um momento, torcendo o nariz com nojo. Inclinando-se para a frente e cheirando, confirmou a suspeita. A puta mijara no carro dele e ensopara o carpete. Um item a mais do qual ele teria que se desfazer, pensou, contente por já ter uma solução para o problema. Tirou a roupa e a luva de cirurgia e as enfiou dentro do vão do estepe, depois fechou gentilmente a tampa com um suave estalo de metal.
— Tchau, detetive Bowman — murmurou ao se abaixar cuidadosamente para sentar no banco do motorista. O relógio no painel lhe mostrava que já eram quase duas e meia. Desde que não fosse parado pela polícia por estar em um carro elegante altas horas da madrugada, estaria em seu destino por volta das quatro e meia. A única dificuldade seria lutar contra o seu instinto de meter o pé no acelerador para que se distanciasse o máximo possível da sua façanha. Com uma mão suada e a outra tão fria quanto o ar da noite, saiu da cidade e seguiu na direção norte.
Chegou dez minutos antes do planejado. A área de manutenção do Hospital Royal Newcastle estava deserta, do jeito que ele sabia que estaria até que a equipe reduzida do turno da manhã de domingo chegasse, às seis. Vance entrou de ré em uma vaga na garagem de serviço, ao lado da porta dupla que dava acesso aos incineradores de resíduos cirúrgicos do hospital. Frequentemente, quando terminava o trabalho voluntário com seus pacientes, descia até ali para tomar um chá ou café e fofocar com o pessoal da manutenção. Tinham orgulho de considerar amiga uma celebridade como Jacko Vance, e ficaram mais do que honrados em conceder a ele seu próprio cartão de acesso aos setores de manutenção, permitindo-o ir e vir sempre que desejasse. Sabiam também que ele descia até lá sozinho no meio da noite quando não havia ninguém por perto e ajudava o pessoal metendo a mão na massa ao fazer ele mesmo o trabalho de incineração, enchendo a fornalha com os sacos lacrados de resíduos que chegavam das clínicas, enfermarias e salas de operação.
Nunca lhes ocorrera que ele adicionava seu próprio combustível às chamas.
Era uma das muitas razões pelas quais Jacko Vance nunca temia ser descoberto. Não era nenhum Fred West, que usara corpos para fazer a fundação de sua casa. Quando o prazer que desfrutava com suas vítimas acabava, elas desapareciam para sempre, desintegradas pelo feroz calor do incinerador do Hospital Royal Newcastle. Para um equipamento que rotineiramente engolia o lixo do hospital de uma cidade inteira, dois sacos de lixo cheios com a pesquisa de Shaz Bowman seriam um mero amuse bouche. Em vinte minutos faria o que tinha que fazer e ia embora. O fim estava visível. Poderia cair na sua cama preferida, a que ficava no coração do seu matadouro, ignorar todas as outras distrações e dormir o sono dos justos.
PARTE DOIS

Capítulo 16

— Alguém sabe onde a Bowman está? — perguntou Paul Bishop com impaciência, olhando seu relógio pela quinta vez em dois minutos. Cinco rostos inexpressivos o encararam.
— Deve estar morta, né não? — riu Leon. — Nunca chega atrasada, não a Shazinha querida.
— Haha, Jackson — riu Bishop, sarcasticamente. — Seja um bom menino e ligue pra recepção pra ver se receberam alguma mensagem dela.
Leon desinclinou a cadeira, colocou-a sobre as quatro pernas, e saiu pela porta com seu caminhar desleixado. Os ombros largos da sua jaqueta de formato bem afunilado faziam com que seus um metro e oitenta e três de magreza tivessem uma aparência desafiadora. Bishop tamborilou os dedos na ponta do controle remoto do vídeo. Se não desse início àquela sessão logo, se atrasaria. Precisava passar uma série de vídeos de cenas de crime antes da reunião com o ministro do Interior, que estava agendada para o horário do almoço. A Bowman é foda. Por que tinha que escolher justamente hoje para se atrasar? Esperaria até Jackson voltar e depois seguiria adiante. Azar o dela perder algo crucial assim.
Simon falou suavemente com Kay:
— Conversou com a Shaz depois de sexta-feira?
Kay negou com um gesto de cabeça, o cabelo castanho claro caía como uma cortina sobre uma das bochechas criando a imagem de um rato selvagem espreitando através da vegetação de inverno.
— Como ela não apareceu no restaurante indiano, mandei uma mensagem, mas ela não respondeu. Achei que a encontraria na natação feminina ontem, mas ela também não foi. Não era um compromisso imperdível que a gente tinha ou coisa assim.
Antes que Simon pudesse falar alguma coisa, Leon voltou.
— Sem notícias dela — anunciou. — Não ligou pra avisar que estava doente nem nada.
Bishop deu um muxoxo.
— Bom, vamos ter que começar sem ela.
Ele resumiu a programação da manhã, depois deu play. A sequência de incontrolável violência e depravação que se revelava à frente deles quase não impactou Simon. Ele também não teve muito com que contribuir para a discussão subsequente. Não conseguia tirar a ausência de Shaz da cabeça. Passara no apartamento dela para saírem para tomar alguma coisa antes de irem ao restaurante indiano como tinham combinado, mas ninguém atendeu quando tocou a campainha. Reconhecia que tinha chegado cedo e, por isso, imaginou que ela podia não ter escutado por causa do chuveiro ou do secador de cabelo, caminhou de volta até a rua principal e encontrou uma cabine telefônica. Deixou o telefone tocar até a ligação cair, depois tentou mais duas vezes. Incapaz de acreditar que ela tinha dado o bolo nele, subiu mais uma vez a rua até o apartamento e tocou a campainha outra vez.
Ele sabia qual dos apartamentos térreos era o de Shaz — dera uma carona para ela depois de terem saído para tomar alguma coisa numa noite e, já desejando ansiosamente arranjar coragem para chamá-la para sair, aguardou tempo suficiente para ver quais luzes foram acesas. Só de olhar dava para ver que as cortinas estavam fechadas no vão profundo do quarto principal na parte da frente da casa, embora ainda não estivesse escuro. Concluiu que aquilo significava que ela estava se aprontando para sair. Apesar de, aparentemente, não ser com ele. Estava prestes a desistir e ir para o pub sozinho afogar sua humilhação em Tetleys quando notou a passagem estreita que existia na lateral da casa. Não dando tempo a si mesmo para pensar se era algo justificável ou sensato, passou sorrateiramente pelo portão de ferro forjado e caminhou às escondidas pelo beco entre os prédios até a escuridão do jardim do quintal.
Deu a volta pelo canto da casa e quase tropeçou em um curto lance de escada que saía do quintal e levava até à porta-balcão.
— Puta que pariu — resmungou com raiva, surpreendendo-se a si mesmo antes de esticar o pescoço para a frente. Espreitou pelo vidro, colocando as mãos levemente dobradas ao redor dos olhos para protegê-los dos desgarrados feixes de luz da casa ao lado. Conseguia ver as sombrias formas do mobiliário contra uma fraca luminosidade que parecia vir de outro cômodo que dava abertura para a sala, mas não havia sinal de vida. Repentinamente uma luz irrompeu do andar de cima, arremessando um retângulo irregular de luz bem ao lado de Simon.
Instantaneamente ciente de que, para qualquer observador casual, ele devia parecer muito mais um ladrão do que um policial, deslizou de volta para a escuridão contra a parede e retornou à rua, esperançoso de que não tivesse chamado a atenção de ninguém. A última coisa que precisava era da zoação dos policiais locais sobre o voyeur do esquadrão de criação de perfis. Desconcertado pela aparente rejeição, caminhou sentindo-se miserável até o Sheesh Mahal para se encontrar com Leon e Kay no jantar que combinaram. Não estava a fim de se juntar à especulação deles de que Shaz tivera uma proposta melhor e se concentrou em jogar goela abaixo a maior quantidade possível de cerveja.
Agora, segunda-feira de manhã, estava preocupado. Sejamos realistas, ela provavelmente não precisaria se esforçar muito para se sair bem melhor do que ele. Mas perder uma sessão de treinamento não era do seu feitio. Sem prestar atenção nas palavras de sabedoria de Bishop e com um par de linhas de expressão dividindo suas sobrancelhas escuras, Simon não conseguia relaxar. Assim que o barulho irritante do arrastar de cadeiras anunciou o fim da sessão, foi procurar Tony Hill.
Encontrou o psicólogo na cantina, sentado à mesa de que o esquadrão de criação de perfis tinha se apoderado.
— Tem um minutinho, Tony? — perguntou com uma expressão tão intensa e sombria quanto a de seu tutor.
— Claro. Pega um café e senta aí.
Simon olhou para trás um pouco hesitante e disse:
— É que o pessoal vai chegar aqui a qualquer minuto, e... bom... é um pouco... você sabe... meio particular.
Tony pegou seu café e a pasta que estava lendo.
— Vamos pra uma das salas de interrogatório um minutinho.
Simon o seguiu por um corredor até a primeira sala que luz vermelha não estava acesa. O ar fedia a suor, ranço de cigarro e, obscuramente, açúcar queimado. Tony se esparramou em uma das cadeiras e observou Simon dar alguns passos antes de se recostar em um dos cantos da sala.
— É a Shaz — disse Simon. — Estou preocupado. Ela não apareceu hoje de manhã e não telefonou nem nada.
Sem que nada precisasse ser dito, Tony sabia que havia algo mais ali. Era o trabalho dele descobrir o quê.
— Concordo, não é a cara dela fazer isso. Ela é muito aplicada. Mas pode ter acontecido algum imprevisto. Um problema na família, talvez?
Um canto da boca de Simon repuxou para baixo.
— Creio que sim — consentiu, relutante. — Mas ela teria ligado pra alguém se fosse isso. Ela não é só aplicada, é obsessiva. Você sabe disso.
— Talvez tenha sofrido um acidente.
Simon agarrou a oportunidade.
— Exatamente. É exatamente disso que estou falando. A gente deveria estar preocupado com ela, não?
Tony deu de ombros.
— Se ela tiver sofrido um acidente, não vai demorar muito pra gente ficar sabendo. Ou ela ou outra pessoa vai nos ligar.
Simon cerrou os dentes. Teria que explicar por que era mais urgente do que isso.
— Se ela tiver sofrido um acidente, não acho que foi hoje de manhã. A gente tinha tipo um encontro no sábado à noite. O Leon, a Kay, eu e a Shaz. Temos saído sábado à noite para comer curry e tomar umas cervejas. Mas combinei de sair pra beber alguma coisa com a Shaz primeiro, só nós dois. Era pra gente ter se encontrado no apartamento dela.
Depois que começou, as palavras passaram a jorrar dele.
— Quando passei lá, não tinha sinal dela. Achei que tinha pensado melhor. Desistido, sei lá. Mas hoje é segunda-feira, e ela não apareceu. Acho que aconteceu alguma coisa com ela e, seja o que for, não é trivial. Ela pode ter se acidentado em casa. Pode ter escorregado no banho e batido a cabeça. Ou do lado de fora. Pode estar largada em algum hospital por aí e ninguém sabe quem ela é. Não acha que a gente tem que fazer alguma coisa em relação a isso? Deveríamos ser uma equipe, não deveríamos?
Um terrível pressentimento centelhou na superfície da mente de Tony. Simon estava certo. Dois dias era tempo demais para uma mulher como Shaz desaparecer de vista quando isso envolvia desapontar um amigo e faltar ao trabalho. Levantou.
— Já tentou ligar pra ela?
— Uma porrada de vezes. A secretária eletrônica dela não está ligada também. Por isso acho que ela sofreu um acidente em casa. Sabe? Pensei assim, ela deve ter desligado a secretária quando chegou em casa e aí aconteceu alguma coisa e... eu não sei — acrescentou, impacientemente.
— Isso é muito constrangedor, entende? Estou me sentindo um adolescente. Fazendo estardalhaço por nada.
Ele deu um impulso com o ombro para se desapoiar da parede e foi até a porta.
Tony colocou a mão no braço de Simon.
— Acho que está certo. Você tem o instinto policial para quando alguma coisa não está cheirando bem. É uma das razões pelas quais está no esquadrão. Vem, vamos até o apartamento da Shaz ver o que a gente descobre.
No carro, Simon se inclinou para a frente, como se isso os fizesse ir mais rápido. Percebendo que qualquer tentativa de conversa seria inútil, Tony se concentrou em seguir o caminho que o jovem policial indicava de maneira concisa. Pararam em frente ao apartamento de Shaz e Simon estava na calçada antes mesmo de Tony desligar o carro.
— A cortina ainda está fechada — comentou, aflito, assim que Tony se juntou a ele na entrada. — Ali à esquerda é o quarto dela. A cortina estava fechada no sábado à noite quando estive aqui.
Simon tocou a campainha que indicava “Apartamento 1: Bowman”. Os dois conseguiam ouvir o zumbido irritante lá dentro.
— Pelo menos a gente sabe que a campainha está funcionando — comentou Tony.
Deu um passo para trás, olhou para cima e observou o imponente casarão, com sua estrutura de pedras enegrecidas por um século de funcionamento do motor de combustão interna.
— Dá pra dar a volta por trás — disse Simon, finalmente parando de apertar a campainha.
Sem esperar por uma resposta, saiu em direção ao beco entre os prédios. Tony o seguiu, mas não rápido o suficiente. No canto, escutou um gemido parecido com um gato agonizante no meio da noite. Chegou a tempo de ver Simon se afastando de costas de uma porta-balcão como se tivesse sido golpeado no rosto. O jovem policial desabou sobre os joelhos e esvaziou as entranhas na grama, grunhindo incoerentemente.
Chocado, Tony deu alguns passos hesitantes à frente. Quando chegou ao degrau nivelado com a porta, a visão que despiu Simon McNeill da sua masculinidade transformou seu próprio estômago em gelo. Além da imaginação e da emoção, Tony olhava através do vidro para algo que mais parecia com um pastiche de uma pintura de Bacon executada por um psicopata do que com um ser humano. A princípio, era mais do que ele conseguia compreender.
Quando a compreensão lhe veio um momento depois, ele preferia ter trocado a alma por aquela incompreensão prévia.
Não era o primeiro cadáver mutilado que Tony via, mas era a primeira vez que tinha qualquer ligação pessoal com a vítima. Momentaneamente, colocou a mão sobre os olhos e massageou as sobrancelhas com o polegar e o dedo indicador. Não era o momento de chorar pela morte. Havia coisas que podia fazer por Shaz Bowman que mais ninguém era capaz de fazer, e ficar rastejando pela grama como um filhotinho de cachorro ferido não era uma delas.
Respirando fundo, ele se virou para Simon e disse:
— Reporte isto. Depois vá lá na frente e isole a cena do crime.
Simon, com sua desnorteada dor impossível de ser ignorada, levantou um suplicante olhar para ele e perguntou:
— É a Shaz?
— É a Shaz — confirmou Tony. — Faça o que estou falando. Reporte isto. Vá lá na frente. É importante. Precisamos de policiais aqui, agora. Faça isso.
Esperou Simon se levantar tropegamente e cambalear até o beco entre os prédios como um bêbado. Então se virou e olhou através do vidro para a ruína que era Shaz Bowman. Almejou estar mais próximo, rodear o corpo e colher os horríficos detalhes do que fora feito com ela. Mas tinha muito conhecimento sobre contaminação de cena de crime para sequer considerar a possibilidade.
Contentou-se com o que conseguia ver. Seria mais do que suficiente para a maioria das pessoas, mas, para Tony, era uma tentadora imagem parcial. A primeira coisa que tinha que fazer era deixar de pensar naquela carcaça como Shaz Bowman. Tinha que ser imparcial, analítico e lúcido se quisesse ser de alguma utilidade para os investigadores. Olhando novamente para o corpo na cadeira, descobriu que não era tão difícil se distanciar das memórias de Shaz. A cabeça bizarramente deformada que o encarava guardava pouquíssima semelhança com qualquer coisa humana.
Via os buracos negros de onde seus surpreendentes olhos o miraram pela última vez. Arrancados, supôs ele, com base no que pareciam filamentos e fibras pendurados nas feridas. Sangue escorrera e secara ao redor dos orifícios, fazendo com que a hedionda máscara que era o rosto dela ficasse ainda mais grotesca. A boca parecia uma massa de plástico com uma dúzia de matizes de roxo e rosa.
Não tinha orelhas. Seu cabelo possuía mechas salientes para cima e para trás onde as dela deveria estar, seguros no lugar pelo sangue ressecado que espirrara e escorrera sobre eles.
Baixou os olhos para o colo dela. Uma folha de papel estava apoiada no peito. Tony estava muito longe para visualizar as palavras, mas distinguia o desenho com facilidade: os três macacos sábios. Um tremor o abalou da cabeça aos pés. Era cedo demais para afirmar, mas, de acordo com o que Tony via, não havia sinal de agressão sexual. Juntamente com a avaliação mortal dos três macacos sábios, Tony leu a cena. Não era um assassinato relacionado a sexo. Shaz não tinha chamado a atenção de um psicopata qualquer. Aquilo foi uma execução.
— Você não fez isso por prazer — disse para si mesmo, suavemente. — Queria ensinar uma lição a ela. Ensinar uma lição a todos nós. Está dizendo que é melhor do que a gente. Está se exibindo, está nos menosprezando, porque está convencido de que nunca vamos achar nada pra te incriminar. E está falando pra gente ficar fora dos seus negócios. Você é um canalha arrogante, não é?
A cena diante de si dizia a Tony coisas que nunca se revelariam a um policial treinado para procurar somente pistas físicas. Para o psicólogo, revelava uma mente incisiva e decisiva. Era um assassinato a sangue frio, não um ataque desvairado de motivação sexual. Para Tony, isso sugeria que o assassino identificara Shaz Bowman como uma ameaça. Então agira. Brutal, fria e metodicamente. Mesmo antes da perícia criminal chegar, Tony podia afirmar para eles que não encontrariam pista material alguma relacionada à identidade do criminoso. A solução desse caso residia no intelecto, não no laboratório forense.
— Você é bom — murmurou Tony. — Mas serei melhor.
Quando as sirenes despedaçaram o silêncio e pés fardados entraram martelando o beco entre os prédios, Tony ainda estava de pé à porta, memorizando a cena, bebendo de cada detalhe para que permanecessem consigo mais tarde quando precisasse deles. Depois, e só depois, deu a volta e foi até a frente da casa oferecer todo o consolo que podia a Simon.
— Urgente pra cacete — resmungou o médico legista, abrindo sua maleta e pegando um par de luvas de látex. — No estado em que ela está, que diferença faz uma hora a mais, uma hora a menos? Não é a mesma coisa que tratar de gente viva, né não? Bosta de pager. Perdição da porcaria da minha vida.
Tony resistiu ao impulso de dar um murro naquele médico gordo.
— Ela era policial — falou com rispidez.
O médico lhe lançou um olhar perspicaz.
— A gente não se conhece, conhece? É novo por aqui?
— O dr. Hill trabalha pro Ministério do Interior — disse o detetive inspetor local. Tony já tinha esquecido o nome do sujeito. — Ele administra aquela força-tarefa de criação de perfis nova da qual você deve ter ouvido falar. A moça era um dos trainees dele.
— É, bem, ela vai receber de mim o mesmo tratamento que qualquer moça de Yorkshire — disse o médico com desdém, voltando à sua tarefa repugnante.
Tony estava sentado fora da agora aberta porta-balcão, olhando para a cena do crime lá dentro, onde o fotógrafo e a equipe de peritos criminais trabalhavam. Não conseguia tirar os olhos dos destroços de Shaz Bowman. Independentemente do quanto tentasse, não conseguia evitar que ocasionalmente lhe viesse à cabeça a imagem do que ela tinha sido. Isso aumentava sua determinação, mas era uma provocação e podia muito bem passar sem ela.
Pior para Simon, pensou com amargor. Fora levado, branco como cera e trêmulo, de volta à sede para dar seu depoimento sobre a noite de sábado. Tony sabia muito bem como funcionava o modo de pensar policial e sabia que o departamento de homicídios estava provavelmente o tratando como principal suspeito. Teria que fazer alguma coisa a esse respeito o quanto antes.
O detetive inspetor de quem não conseguia lembrar o nome desceu a escada e ficou parado atrás dele.
— Confusão dos infernos — comentou.
— Ela era uma boa policial — Tony contou a ele.
— A gente vai pegar o desgraçado — disse o detetive inspetor com confiança. — Não se preocupa com isso.
— Quero ajudar.
O detetive inspetor levantou uma sobrancelha e disse:
— A decisão não é minha. Não é um serial killer, você sabe. A gente nunca viu um negócio desse tipo aqui na nossa área.
Tony lutou para suprimir sua frustração.
— Inspetor, não é o primeiro assassinato dessa pessoa. Quem quer que tenha feito isso é um expert. Pode não ter matado na sua área ou usado esse método específico antes, mas esse não é produto da noitada de um amador.
Antes que o inspetor pudesse responder, foram interrompidos. O médico legista tinha terminado seu pavoroso trabalho.
— Bom, Colin — disse, caminhando em direção a eles —, ela está morta mesmo.
Com uma olhadinha rápida de soslaio, o policial disse:
— Poupa a gente do humor negro pelo menos uma vez, doutor. Tem ideia de quando foi?
— Pergunta pro seu patologista, inspetor Wharton — disse o médico com um tom de ressentimento.
— Vou perguntar. Mas, enquanto isso, pode me dar uma estimativa?
O médico tirou as luvas fazendo com que o látex estalasse.
— Hora do almoço de segunda-feira... deixa eu ver... em algum momento entre as sete horas da noite de sábado e as quatro da manhã de domingo. Isso depende se o aquecedor estava ligado e por quanto tempo.
O detetive inspetor Colin Wharton suspirou.
— Essa janela de oportunidade é grande pra cacete. Não dá pra diminuir um pouquinho?
— Sou médico, não adivinho — disse de forma cáustica. — Agora vou voltar pro meu jogo de golfe, se você não se importa. Vão receber meu relatório pela manhã.
Tony colocou a mão no braço dele impulsivamente.
— Doutor, o senhor bem que podia me dar uma ajuda. Sei que não é a sua área de atuação específica, mas o senhor obviamente desenvolveu muita expertise nesse tipo de coisa. — Quando estiver em dúvida, elogie. — Os ferimentos... Sabe se ela ainda estava viva ou se foram feitos depois da morte?
O médico fez um bico com os lábios vermelhos e deu uma olhada avaliativa para o corpo de Shaz. Parecia um garotinho fazendo cara de pidão para a tia solteirona, calculando quanto aquilo lhe renderia.
— Uma mistura das duas coisas — afirmou, por fim. — Calculo que os dois olhos foi enquanto ela ainda estava viva. Imagino que devia estar amordaçada ou teria derrubado este lugar com os gritos. Provavelmente desmaiou depois, devido a uma combinação de choque e dor. O que quer que tenha sido derramado na garganta dela era muito cáustico e foi o que a matou. Total desintegração das vias respiratórias, é isso o que vão descobrir quando abrirem a moça. Aposto minha aposentadoria nisso. Vendo a quantidade de sangue, calculo que as orelhas foram arrancadas mais ou menos enquanto ela estava morrendo. Foram cortadas com esmero. Nenhuma tentativa de imprimir sofrimento costuma começar com mutilação. Ele deve ter uma faca afiada pra cacete e muito sangue-frio. Se estivesse tentando garantir que ela acabasse igual aos três macacos sábios, fez a coisa certa — mencionou antes de cumprimentar os dois homens com a cabeça. — Estou indo, então. Deixar você trabalharem. Boa sorte pra encontrar o cara. Vocês têm um maníaco e tanto aí.
Saiu com seu andar de pato pela lateral da casa.
— Aquele filho da mãe é o pior médico quando o assunto é o trato com os pacientes — comentou Colin Wharton, indignado. — Desculpa por isso.
Tony abanou a cabeça.
— Qual o sentido em adornar algo brutal como aquilo com palavras sofisticadas? Nada altera o fato de que alguém desmantelou Shaz Bowman e se certificou de que soubéssemos o porquê.
— O quê? — indagou Wharton. — Perdi alguma coisa? O que você quer dizer com soubéssemos o porquê?
— Você viu o desenho, não viu? Os três macacos sábios. Não veja o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal. O assassino destruiu os olhos, as orelhas e a boca dela. Isso não quer dizer nada pra você?
Wharton deu de ombros e comentou:
— Ou o namorado é o assassino, caso em que ele é um maluco comprovado, e aí não interessa que merda fodida está passando pela cabeça dele. Ou então foi algum outro maluco que tem raiva da polícia porque acha que a gente fica metendo o nariz em coisas em que era melhor não interferirmos.
— Não acha que pode ser um assassino que fez isso especificamente com a Shaz porque ela estava metendo o nariz em algum lugar que não deveria? — sugeriu Tony.
— Não vejo como pode ser isso — desprezou Wharton. — Nunca trabalhou em nenhum caso aqui, trabalhou? O seu pessoal ainda não está trabalhando em casos de verdade, então ela ainda não tinha tido a oportunidade de meter o bedelho nos negócios de algum maluco daqui.
— Apesar de não estarmos pegando casos novos, estivemos trabalhando em alguns casos reais mais antigos. A Shaz desenvolveu uma teoria outro dia sobre um serial killer ainda não identificado...
— A história do Jacko Vance? — Wharton não conseguiu evitar o riso de escárnio. — A gente deu umas boas gargalhadas por causa disso.
Tony fechou a cara.
— Não era pra vocês terem ficado sabendo disso. Quem deu com a língua nos dentes?
— De jeito maneira, doutor, não vou entregar ninguém. Além disso, você sabe que não existe segredo dentro da delegacia. Era uma piada boa demais pra ficar em segredo. Jacko Vance, um serial killer. A próxima vai ser a Rainha Mãe! — E caiu na gargalhada dando um tapinha indulgente no ombro de Tony. — Vamos ser realistas, doutor, é bem provável que a gente pegue o safado quando enquadrar o namorado. Você não precisa que eu te fale que nove em cada dez vezes a gente acaba não procurando além da pessoa com quem o defunto estava dando uma trepadinha. — Ele ergueu uma sobrancelha especulativa. — Isso pra não mencionar a pessoa que encontrou o corpo.
Tony bufou com sarcasmo.
— Vai perder o seu tempo se tentar atribuir isso a Simon McNeill. Ele não fez aquilo.
Wharton se virou para encarar Tony, tirando um Marlboro do maço com os dentes. Deixou-o entre os lábios e o acendeu com um isqueiro descartável.
— Eu vi uma palestra sua uma vez, doutor — disse ele. — Lá em Manchester. Você falou que os melhores caçadores são os mais parecidos com a sua preza. Dois lados da mesma moeda. Acho que você estava certo. Só que um dos seus caçadores virou a casaca.
Jacko cumprimentou seu assistente pessoal com um gesto de mão indiferente e apertou o botão do controle remoto. O rosto da sua mulher preencheu a tela da enorme TV, onde, da redação, ela conduzia a audiência pelas manchetes do meio-dia. Nada ainda. Quanto mais demorar, melhor, ele não conseguiu deixar de pensar. Quanto menos preciso o patologista fosse em relação à hora da morte, mais a distanciaria da visita à casa dele. Ao desligar a TV e se virar para o roteiro em frente a si, perguntou-se momentaneamente como deveria ser esse tipo de vida em que ninguém notava que você está morto por dias. Isso nunca aconteceria com ele, pensou, sentindo-se mais satisfeito do que nunca. Passara muito tempo desde que fora tão insignificante assim na vida de alguém.
Até mesmo sua mãe notaria se ele desaparecesse. Provavelmente ficaria contentíssima com isso, mas notaria. Pensou em como a mãe de Donna Doyle estava reagindo ao desaparecimento da filha. Ele não vira nada no jornal, mas não havia razão para que ela causasse mais estardalhaço do que as outras.
Ele as fizera pagar, todas elas, pelo que fizeram com ele. Sabia que não poderia fazer aquilo com quem realmente merecia; seria óbvio demais, apontariam o dedo diretamente para ele. Mas encontrava Jillies substitutas em tudo quanto era lugar, tão suculentas e deliciosas quanto ela havia sido quando, pela primeira vez, ele a segurou no chão e sentiu sua virgindade se render ao poder dele. Conseguia fazer com que elas entendessem aquilo pelo que passara, sentissem o ele tinha sentido de maneiras que aquela puta traiçoeira jamais compreendera. As suas meninas nunca o abandonariam; era com ele que estava o poder sobre a vida e a morte. E ele podia fazê-las liquidar a dívida quantas vezes quisesse.
Certa vez, acreditara que chegaria a ocasião em que essas mortes substitutas o purgariam para sempre. Porém a catarse nunca durava. A necessidade sempre voltava rastejando.
Com sorte, ele realmente tinha elevado aquilo ao patamar das belas-artes. Todos aqueles anos, todas aquelas mortes, e somente uma policial excêntrica e independente suspeitara.
Jacko deu um sorriso muito privado, um sorriso que seus fãs nunca viram. A forma de pagamento teve que ser diferente para Shaz Bowman. Fora satisfatória, contudo. Isso o fazia pensar se não era hora de providenciar algumas mudanças.
Nunca teve propensão para se tornar escravo da rotina.
A frustração fez com que Tony subisse a escada de dois em dois degraus. Ninguém permitia que se aproximasse de Simon. Colin Wharton estava embarreirando ao alegar que não tinha autorização para permitir que Tony colaborasse com a investigação. Paul Bishop estava fora em uma de suas intermináveis e sempre convenientes reuniões, e o superintendente-chefe de divisão estava supostamente atarefado demais para atender Tony.
Abriu com força a porta da sala de seminário na esperança de encontrar os quatro membros restantes da força-tarefa ocupados com alguma atividade significativa. Em vez disso, Carol Jordan levantou o olhar, antes compenetrado em um arquivo de documentos em frente a ela.
— Já estava começando a achar que eu tinha vindo no dia errado — comentou ela.
— Ah, Carol — suspirou Tony, afundando na cadeira mais próxima. — Esqueci completamente que você ia voltar hoje à tarde.
— Parece que não foi o único — disse ela, ironicamente gesticulando para o restante das cadeiras vazias. — Cadê o restante da equipe? Matando aula?
— Ninguém te contou, não é? — Tony perguntou, olhando para ela com olhos furiosos num rosto atormentado. — Lembra da Shaz Bowman?
Carol fez que sim com um sorriso pesaroso.
— A ambição em pessoa. Ardentes olhos azuis, usa as orelhas e a boca na correta proporção de dois por um.
Tony estremeceu.
— Não, ela não faz mais isso.
— O que aconteceu? — A preocupação na voz de Carol estava mais voltada para Tony do que para Shaz.
Ele engoliu em seco e fechou os olhos, concentrando-se na imagem da morte dela e se esforçando para retirar toda a emoção da voz.
— Um psicopata a pegou. Alguém que achou que seria divertido arrancar aqueles ardentes olhos azuis, cortar aquelas orelhas bem abertas e encher aquela boca inteligente com algo tão corrosivo que ela acabou ficando parecida com um chiclete multicolorido. Está morta, Carol. Shaz Bowman está morta.
O rosto de Carol expressou um incrédulo horror.
— Não — suspirou ela. Ficou em silêncio durante um longo momento. — Que terrível — disse, por fim. — Havia tanta vida nela.
— Era a melhor do grupo. Desesperada pra ser a melhor. E não era arrogante por causa disso. Conseguia trabalhar com os outros sem deixar óbvio que era o cavalo de corrida em meio aos jumentos. O que ele fez com a garota, aquilo está intimamente relacionado com quem ela era.
— Por quê? — Assim como fizera com muita frequência em seu caso anterior, Carol fez a pergunta importante.
— Deixou uma folha impressa do computador. Um desenho e um verbete de enciclopédia sobre os três macacos sábios — revelou Tony.
A compreensão reluziu nos olhos de Carol e foi seguida rapidamente por uma expressão de perplexidade.
— Não é sério que você está achando... A teoria que ela apresentou outro dia? Não pode ter nada a ver com isso, pode?
Tony esfregou a testa com a ponta dos dedos.
— Fico voltando a isso. O que mais temos? O único caso verdadeiro com que tivemos alguma coisa foi o do seu incendiário, e ninguém sugeriu alguma coisa que pudesse ameaçar alguém.
— Mas Jacko Vance? — Carol sacudiu a cabeça. — Não dá pra acreditar nisso. As vovozinhas de norte a sul são loucas por ele. Metade das mulheres que conheço acham que ele é tão sexy quanto o Sean Connery.
— E você? O que você acha? — indagou Tony. Não havia indireta na pergunta.
Carol revirou a pergunta na cabeça para garantir que escolheria as palavras certas antes de falar.
— Não confiaria nele. É muito lustroso. Escorregadio. Não tem nada que deixe um impacto duradouro. É charmoso, simpático, caloroso, compreen­sivo. Mas, assim que passa pra próxima entrevista, é como se o encontro anterior nunca tivesse acontecido. Tendo dito isso...
— Você nunca pensou nele como um serial killer — disse Tony, sem rodeios. — Nem eu. Existem algumas pessoas na vida pública que não nos deixariam surpresos se as víssemos com um punhado de acusações de assassinato. Jacko Vance não é uma delas.
Cada um num canto da sala, ficaram em silêncio se encarando.
— Pode não ser ele — opinou Carol, enfim. — Alguém da comitiva dele? Um motorista, um guarda-costas, um pesquisador. Um desses parasitas. Cha­mam esse pessoal de quê mesmo?
— Faz-tudo.
— Isso, faz-tudo, isso mesmo.
— Mas isso ainda não responde à sua pergunta. Por quê?
Tony deu um impulso, ficou de pé e começou a caminhar ao redor da sala.
— Não vejo como alguma coisa que ela tenha dito aqui possa ter chegado aos círculos de Jacko Vance. Então como o nosso hipotético assassino sabia que ela estava na cola dele?
Carol girou desajeitadamente na cadeira para que conseguisse vê-lo enquanto atravessava atrás dela.
— Ela queria ser a menina destaque, Tony. Não acho que deixaria aquilo pra lá. Acho que decidiu ir em frente com aquela ideia. E, de um jeito ou de outro, alertou o assassino.
Tony chegou ao canto e parou.
— Você sabe... — Foi tudo o que teve tempo de dizer antes de o detetive superintendente-chefe McCormick abrir a porta. Seus volumosos ombros quase preencheram toda a abertura.
Natural de Aberdeen, ele lembrava um boi angus preto do seu território nativo: cachos pretos caídos pela testa, olhos pretos límpidos, sempre vigilantes à capa vermelha, largas maçãs do rosto que pareciam espalhar seu nariz carnudo pela cara, lábios carnudos sempre úmidos. A única incongruência era a voz. Em vez de um profundo rosnar estrondear em seu peito, o que emergiu foi um tenor leve e melódico.
— Dr. Hill — disse ele, fechando a porta atrás de si sem olhar para ela. Os olhos brilharam na direção de Carol, depois voltaram-se questionadores para Tony.
— Detetive superintendente-chefe McCormick, esta é a detetive inspetora-chefe Carol Jordan, da força de East Yorkshire. Nós a estamos ajudando numa investigação de incêndio criminoso — informou Tony.
Carol levantou-se.
— É um prazer conhecê-lo, senhor.
O movimento de cabeça com que McCormick a cumprimentou foi quase imperceptível.
— Se nos permite, preciso de um momento com o dr. Hill — comentou ele.
Carol sabia quando estava sendo dispensada.
— Vou esperar lá embaixo na cantina.
— O dr. Hill não vai ficar nestas dependências — afirmou McCormick. — Será melhor pra você esperar no estacionamento.
Carol arregalou os olhos, mas disse apenas:
— Tudo bem, senhor. Vejo você lá fora, Tony.
Assim que Carol fechou a porta, Tony se virou para McCormick:
— E o que exatamente quer dizer com isso, sr. McCormick?
— O que disse. Esta divisão é minha e estou conduzindo uma investigação de assassinato. Uma policial foi... destruída e é meu trabalho descobrir quem é o responsável. Não há sinal de arrombamento no apartamento de Sharon Bowman e, conforme a opinião geral, ela não era nenhuma idiota. Então é provável que ela conhecesse o assassino. E, de acordo com o que sei, até agora, as únicas pessoas que Sharon Bowman conhecia em Leeds eram os colegas policiais, e você, dr. Hill.
— Shaz — interrompeu Tony. — Ela odiava que a chamassem de Sharon. Shaz, era assim que a chamavam.
— Shaz, Sharon, não interessa, faz pouca diferença agora. — O sr. McCormick ignorou a objeção com toda a polidez casual de um touro sacudindo o rabo para espantar um mosquito.
— A questão é que vocês eram as únicas pessoas que ela teria deixado entrar na casa dela. Então não quero vocês falando uns com os outros até que os meus policiais do departamento de homicídios tenham tido a oportunidade de interrogar cada um de vocês. Até segunda ordem, esta força-tarefa está suspensa. Vocês não podem ocupar dependências policiais e não se comunicarão uns com os outros. Já discuti isso com o comandante Bishop e o Ministério do Interior, e todos concordamos que é o caminho certo a seguir. Está claro?
Tony sacudiu a cabeça. Aquilo era demais. Shaz estava morta, terrivelmente morta. E agora McCormick queria prender uma das pouquíssimas pessoas que poderia realmente ser capaz de providenciar um caminho até o assassino dela.
— Você pode, por algum exagero de imaginação, ter autoridade sobre os policiais do meu esquadrão. Mas não sou policial, McCormick. Não sou subordinado seu. Você deveria estar usando os nossos talentos, não sacaneando a gente. Podemos ajudar, cara, não consegue entender isso?
— Ajudar? — A voz de McCormick era desdenhosa. — Ajudar? Ouvi algumas das ideias malucas que a sua turma inventou. Meus homens vão perseguir pistas, não piadas. Jacko Vance, pelo amor de Deus. Depois vocês vão pedir pra gente prender o Ursinho Pooh.
— Estamos do mesmo lado — afirmou Tony com manchas vermelhas lhe subindo pelas maçãs do rosto.
— Pode até ser, mas alguns tipos de ajuda acabam funcionando mais como obstáculo. Quero vocês fora daqui agora e não quero que fique importunando os meus homens. Você vai à delegacia amanhã às dez da manhã para que os meus policiais possam interrogá-lo formalmente sobre Sharon Bowman. Eu me fiz entender com clareza, sr. Hill?
— Escuta, posso te ajudar nisso. Entendo os assassinos; sei por que fazem as coisas que fazem.
— Isso não é uma coisa difícil de descobrir. Eles são doentes da cabeça, é por isso.
— Com certeza, mas cada um é doente da cabeça de maneira particular — argumentou Tony. — Este, por exemplo. Aposto que ele não a agrediu sexualmente, agrediu?
O sr. McCormick fechou a cara.
— Como você sabe disso?
Tony passou a mão no cabelo e falou apaixonadamente:
— Eu não sei por alguém ter me contado. Sei porque consigo ler coisas numa cena de crime que os seus homens não conseguem. Não foi um homicídio sexual comum, superintendente, foi uma mensagem proposital pra nós, e esse assassino acha que está tão à nossa frente que nunca vai ser pego. Posso te ajudar a pegá-lo.
— Me parece que está mais interessado em acobertar as coisas — suspeitou McCormick, sacudindo a cabeça. — Você apanhou algumas informações na cena do crime e as transformou numa teoria esdrúxula. Vai precisar mais do que isso pra me convencer. E não tenho tempo pra esperar você tentar a sua próxima intriga. No que diz respeito a este departamento, vocês agora são história. E os seus chefes no Ministério do Interior concordam comigo.
A fúria fez com que as habilidades de conciliação e bajulação de Tony fossem soterrados.
— Você está cometendo um erro enorme, McCormick — acusou ele, com a voz rouca de raiva.
O robusto detetive deu uma risada debochada.
— Vou assumir o risco, filho. — Ele apontou o polegar em direção à porta. — Hora de ir embora, agora.
Tomando consciência de que não tinha como ganhar naquele campo de batalha, Tony mordeu com força a carne da bochecha. O sabor da humilhação era semelhante ao gosto cuprífero de sangue fresco. Desafiadoramente, caminhou até o seu armário, pegou a maleta e a encheu com os arquivos das pessoas desaparecidas e as análises do esquadrão. Trancou com força a fechadura, deu meia volta e saiu andando. Os policiais se mantiveram em silêncio enquanto ele atravessava a delegacia. Estava feliz por Carol não estar ali para testemunhar sua expulsão. Ela jamais teria sido capaz de manter o silêncio, que era a única arma que lhe restava.
Quando a porta da delegacia se fechou depois que ele saiu, Tony escutou uma inidentificável voz gritar atrás de si:
— Até que enfim, hein?
Capítulo 17

Em um raro momento de lucidez no oceano de dor, Donna Doyle contemplou sua curta vida e a crença idiota que a tinha levado até aquele lugar. O arrependimento crescia dentro dela como um tumor que devorava tudo o que encontrava. Um equívoco, uma tentativa de seguir o arco-íris até o pote de ouro, um ato de fé não mais disparatado do que aquele sobre o qual falava o padre todo domingo, e ali estava ela. Era uma vez a época em que dissera que faria qualquer coisa para ter uma oportunidade de se tornar uma estrela. Agora ela sabia que isso não era verdade.
Não era justo. Não que quisesse ser famosa só para si mesma. Com a fama viria o dinheiro, e a mãe não precisaria se preocupar em economizar e poupar cada centavo como fazia desde que seu pai morrera. Donna queria que fosse uma surpresa, uma maravilhosa, irada e empolgante surpresa. Agora isso não aconteceria. Ainda que saísse dali, sabia que não seria uma estrela, nunca. Poderia ter seus quinze minutos de fama, como dizia a música, mas não seria uma estrela de TV de um braço só como Jacko Vance. Mesmo que a encontrassem, estava acabada.
Ainda poderiam encontrá-la, falava para si mesma. Não estava apenas tentando tapear o medo, pensou desafiadoramente. Deviam a estar procurando àquela altura, com certeza. A mãe tinha ido à polícia, sua foto devia estar nos jornais, quem sabe até na TV. As pessoas em todo o país a viam e buscavam na memória. Alguém se lembraria dela. Havia um montão de gente nos trens. Meia dúzia de passageiros desceram com ela em Five Walls Halt. Pelo menos um deles deve tê-la notado. Toda produzida com sua melhor roupa, ela sabia que estava gostosa. Certamente a polícia estava fazendo perguntas, procurando entender de quem era a Land Rover em que tinha entrado. Certo?
Gemeu. No coração, sabia que aquele seria o último lugar onde se deitaria. Sozinha em sua tumba, Donna Doyle chorou.
Capítulo 18

Tony se sentou encurvado para a frente na poltrona e ficou observando as bruxuleantes chamas de gás da lareira falsa. Continuava bebericando lentamente o mesmo copo de Theakston desde que chegara ao chalé de Carol, que recusara o não que ele deu como resposta. Tony sofrera um choque, precisava de alguém com quem discutir o caso, e ela precisava da contribuição dele sobre o caso do incendiário. Carol tinha um gato para alimentar, ele, não, portanto, logicamente, o destino deles devia ser uma hora de rodovia até os arredores de Seaford.
Desde que chegaram, ele mal dissera uma palavra. Ficou sentado com os olhos no fogo e sua mente projetando o filme da morte de Shaz Bowman. Carol o deixara sozinho e aproveitou a oportunidade para juntar um pacote de peito de frango que estava no freezer com algumas cebolas fatiadas e um pote de cidra com molho de maçã pronto. Colocou o resultado disso no forno com algumas batatas para assar e deixou em fogo baixo enquanto preparava o quarto de hóspedes. Sabia que não fazia muito sentido esperar de Tony qualquer coisa a mais ou a menos.
Serviu-se um grande gim-tônica, acrescentou dois pedaços de limão congelados e voltou para a sala. Sem falar coisa alguma, dobrou as pernas debaixo de si e deixou a poltrona oposta a ele engoli-la. Deitado entre eles, Nelson, todo esticado, parecia um comprido tapete de lareira.
Tony levantou o olhar para Carol e conseguiu dar um leve sorriso.
— Obrigado pela paz e tranquilidade — agradeceu ele. — Tem um ambiente bem acolhedor, o seu chalé.
— Essa é uma das razões pelas quais o comprei. Isso e a vista. Que bom que gostou.
— Eu... não paro de ficar imaginando — disse ele. — Todo o processo. Amarrando-a, amordaçando-a. Torturando-a com a informação de que ela não ia sair daquela viva, não sabendo o que ela sabia.
— Seja lá o que for que ela sabia.
— Seja lá o que for — concordou ele.
— Imagino que essa situação faz você se lembrar de tudo aquilo — sugeriu Carol suavemente.
Ele deu um longo suspiro e disse, sem abrir muito os lábios:
— É inevitável.
Ele a encarou, seus ávidos olhos brilhavam sob a saliência das suas sobrancelhas franzidas. Quando falou novamente, sua voz era um contraste brusco, indicando que ele queria fugir das memórias que às vezes eram quase tão ruins quanto a própria experiência.
— Carol, você é detetive. Escutou a apresentação da Shaz, foi uma das que a avaliou. Imagine que estivesse na outra ponta das nossas críticas. Imagine que estivesse de volta ao início da sua carreira, com tudo à frente para provar. Não pensa muito sobre isso. Me dá a sua reação instintiva. O que você faria?
— Eu ia querer provar que vocês estavam errados e eu, certa.
— Isso, isso mesmo — aprovou Tony com impaciência. — Esse é um dado. Mas o que você faria? Como agiria em relação a isso?
Carol deu um gole na bebida e considerou:
— Sei o que faria agora. Juntaria uma pequena equipe, só um sargento e uns dois detetives, e atacaria todo mundo naqueles casos. Ia voltar lá e falar com amigos, família. Checar se as meninas desaparecidas eram fãs de Jacko Vance, se tinham ido ao evento em que ele apareceu. Se foram, com quem foram. O que as companhias notaram.
— A Shaz não tinha nem o tempo, nem a equipe pra esse tipo de operação. Pensa em como você agiria quando era jovem e voraz — encorajou Tony.
— Com relação ao que eu teria feito então... considerando a falta de recursos, você usa aquilo que tem.
Tony a encorajou com um gesto de cabeça e perguntou:
— O que significa?
— Significa que você acha que é o dono da verdade e que tem a manha de fazer tudo. Sabe que está certo, esse é o ponto principal. Sabe que a verdade está lá fora esperando para ser desvendada. Eu? Eu balançaria umas árvores pra ver o que ia cair.
— Então você faria o quê, especificamente?
— Hoje em dia, provavelmente pingaria um veneninho na orelha de um amigo jornalista e plantaria uma história que significaria alguma coisa mais pro nosso assassino do que pra um leitor casual. Mas não vi nenhum sinal de que a Shaz tinha esse tipo de contato, ou, se tinha, que os usou. O que eu provavelmente teria feito se estivesse no lugar dela, se tivesse coragem, seria marcar um encontro com o sujeito em pessoa.
Tony se recostou na poltrona e deu um longo gole de cerveja.
— Fico contente por você ter dito isso. É o tipo de ideia que sempre fico relutante em expor porque existe a grande possibilidade das pessoas com quem trabalho começarem a dar gargalhadas, já que nenhum policial com amor-próprio sonharia em fazer uma coisa tão arriscada nem com a própria vida, nem com a carreira.
— Acha que ela fez contato com Jacko Vance?
Ele assentiu com a cabeça.
— E você acha que o que quer que ela tenha falado pra ele...
— Ou para alguém próximo dele — interrompeu Tony. — Pode não ser o Vance. Pode ser o seu empresário ou o guarda-costas ou até a esposa. Mas, é isso mesmo que estou pensando, acho que ela falou alguma coisa para alguém naquele grupo de pessoas que fez o assassino ficar com medo.
— Seja quem for, não perdeu muito tempo.
— Não perdeu nenhum tempo e é óbvio que teve muita coragem para matá-la na sala da casa dela. Arriscar um grito, um berro, o barulho de mobília batendo, qualquer coisa inoportuna em uma casa que foi transformada em apartamentos.
Carol deu um gole na bebida, saboreando o crescente amargor do limão à medida que a fruta descongelava.
— E, pra começar, tinha que levá-la até lá.
Tony ficou intrigado.
— O que faz você falar isso?
— Ela nunca teria concordado em se encontrar com alguém que suspeitava ser um serial killer na própria casa. Nem mesmo com o excesso de confiança da juventude. Seria como convidar uma raposa para um galinheiro. E, se ele aparecesse lá mais tarde, depois do interrogatório oficial, ela dispararia o alarme e não o deixaria entrar. Não, Tony, ela já era prisioneira dele na hora em que chegou em casa.
Foram esses lampejos de percepção sustentados por uma lógica impecável que fizeram de Carol Jordan uma pessoa com quem fora tão prazeroso trabalhar anteriormente, lembrou Tony.
— Você está certa, é claro. Obrigado.
Ele levantou o copo e a brindou silenciosamente. Agora sabia por onde começar. Terminou a cerveja e falou:
— Dá pra tomar mais uma? Depois acho que a gente tem que conversar sobre o seu probleminha.
Carol se desenrolou da poltrona e se espreguiçou como Nelson.
— Tem certeza de que não quer falar mais sobre a Shaz?
A expressão distante de Tony disse a ela tudo o que precisava saber. Foi até a cozinha pegar outra cerveja.
— Vou deixar isso pros seus colegas de West Yorkshire amanhã de manhã. Se não tiver entrado em contato com você até a hora do chá, é melhor assegurar pra mim um resumo dos fatos decente — gritou para Carol.
Depois que ela se ajeitou novamente na poltrona, Tony arrastou seus taciturnos olhos para longe do fogo e tirou algumas folhas de papel pautado da maleta.
— No finalzinho da semana, coloquei o esquadrão pra trabalhar em um perfil pra você. Tiveram um dia pra desenvolver um perfil individual, aí, na sexta, fizeram um esforço colaborativo conjunto. Tenho uma cópia aqui comigo. Vou te mostrar mais tarde.
— Não quis falar nada antes, mas também estive trabalhando em um perfil. Vai ser interessante fazer uma comparação entre eles. — Ela tentou manter a voz branda, mas, mesmo assim, Tony percebeu o desejo por seu elogio. O que fez com que aquilo que tinha para dizer ficasse ainda mais embaraçoso. Às vezes gostaria de ser fumante. Isso lhe daria algo para fazer com as mãos e a boca em momentos como aquele.
Em vez disso, passou a mão pelo rosto.
— Carol, tenho que te falar que suspeito que vocês estejam perdendo tempo.
Inconscientemente, o queixo dela se projetou para a frente.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que não acho que seus incêndios se classificam em nenhuma categoria conhecida.
— Quer dizer que eles não são incêndios criminosos?
Antes que ele pudesse responder, uma batida forte reverberou pelo chalé. Surpresa, Carol derramou algumas gotas da bebida.
— Está esperando alguém? — perguntou Tony, virando-se na direção da escura janela atrás de si para ver se alguma coisa penetrava a escuridão do lado de fora.
— Não — disse ela, ficando de pé num pulo e atravessando a sala até a pesada porta de madeira que levava à pequena varanda de pedra. Assim que a destrancou, uma rajada de vento frio encheu a sala com sua lufada gelada de lodo do estuário. Carol ficou surpresa. Além dela, Tony vislumbrou o contorno de uma grande figura masculina.
— Jim — exclamou ela. — Não estava esperando te ver por aqui.
— Tentei te ligar à tarde, e o sargento Taylor não parava de ficar me enrolando. Aí achei que podia dar uma chegada aqui pra ver se conseguia te encontrar.
Assim que Carol deu um passo atrás, Pendlebury entrou com ela.
— Ah, desculpa... você está acompanhada.
— Não, você não poderia ter chegado em melhor hora — disse ela, gesticulando para que ele seguisse em direção à lareira. — Este é o dr. Tony Hill, do Ministério do Interior. Estamos falando do caso do incendiário. Tony, este é Jim Pendlebury, o comandante do corpo de bombeiros de Seaford.
Tony submeteu sua mão a um aperto competitivo e de esmagar os ossos.
— Prazer em conhecê-lo — disse ele, calmamente, recusando o convite para o combate.
— O Tony é o responsável pela Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais, em Leeds — explicou Carol.
— Trabalho pesado.
Pendlebury enfiou as mãos nos fundos bolsos de um casaco na moda e excessivamente grande. Cada uma delas emergiu dali com uma garrafa de shiraz australiano.
— Presente de casa nova. Agora podemos discutir nosso incendiário com um pouco de lubrificação.
Carol buscou taças e o saca-rolhas e serviu vinho para si e para Pendlebury, Tony levantou seu copo para mostrar que ficaria na cerveja.
— Então, Tony, o que os seus intelectuaizinhos têm pra falar pra gente? — perguntou Pendlebury, esticando suas longas pernas para a frente, forçando Nelson a se mover para o lado. O gato lhe lançou um olhar maligno e se enrolou de tal maneira que virou uma bola ao lado da poltrona de Carol.
— Nada que a Carol não pudesse desenvolver sozinha. O problema é que suspeito que o que eles fizeram seja irrelevante.
A risada de Pendlebury soou alta demais nos confins do chalé.
— Eu estou ouvindo coisas? — perguntou ele. — Um criador de perfis admitindo que é tudo uma besteira do cacete? Carol, você está gravando isso?
Perguntando-se quantas vezes mais teria que sorrir educadamente enquanto o trabalho da sua vida era denegrido, Tony esperou Pendlebury se acalmar antes de falar:
— Você usaria uma chave de fenda para derrubar uma cerca?
Ele inclinou a cabeça para o lado.
— Está falando que a criação de perfis é a ferramenta errada para o serviço?
— É exatamente isso que estou falando. A criação de perfis funciona em crimes nos quais a motivação é psicopática em algum nível.
— O que quer dizer? — perguntou Pendlebury, encolhendo as pernas novamente e se inclinando para a frente, muitíssimo interessado, e com o rosto inteiramente cético.
— Você quer a versão de trinta segundos ou a palestra inteira?
— Melhor você me dar a versão com manual pra idiota, sendo eu um mero bombeiro.
Tony passou a mão pelo cabelo cheio e escuro, um reflexo que sempre o fazia ficar parecido com um cientista maluco de desenho animado.
— Ok. A maioria dos crimes neste país são cometidos ou por ganho, ou no calor do momento, ou sob a influência de bebida ou drogas. Ou uma combinação de todas as anteriores. O crime é um meio para se chegar a um fim: conseguir grana ou drogas, vingar-se, pôr um fim a um comportamento inaceitável. Uma quantidade menor de crimes tem suas raízes num solo mais estranho. Crescem de uma compulsão psicológica interior da parte do criminoso. Algo o conduz, quase sempre alguém do sexo masculino, a executar certos atos que são quase um fim em si mesmos. O ato criminal pode ser tão insignificante quanto roubar a calcinha de um varal. Pode ser tão sério quanto o assassinato em série. O incêndio em série é um crime assim.
“E se isto com o que estamos lidando aqui fosse um incendiário em série, eu seria o primeiro a defender o valor de um perfil psicológico. Mas, como estava comentando com a Carol logo antes de você chegar, não acho que tenham um incendiário convencional ou comum em busca de emoção em Seaford. Também não é um incendiário de aluguel. O que vocês têm aqui é um predador de cores diferentes todas misturadas. Algo mais híbrido.”
Pendlebury não parecia convencido.
— Quer falar pra gente o que você tá tentando dizer com esse negócio?
— Adoraria — respondeu Tony, ao se recostar envolvendo seu copo com os dedos cruzados. — Vamos eliminar o incendiário de aluguel pra começar. Embora seja verdade que um punhado de incêndios tenham provavelmente sido resposta às preces dos proprietários, na maioria dos casos, não parece ter havido ganho financeiro. O que mais vemos é um gigantesco inconveniente e, em alguns casos, danos positivos para os negócios e setores da comunidade envolvidos. Também não são incêndios cometidos por ressentimento; são seguradoras diferentes, não há razão para alguém fazer isso com um espectro tão amplo de prédios. Não existe nenhum ponto comum, com exceção de que todos os incêndios foram à noite e, até o último deles, aconteceram em dependências desertas. Portanto, não há razão alguma para se pensar que existe um incendiário profissional de aluguel por trás desses incêndios. De acordo?
Carol se curvou para pegar o vinho e encher sua taça novamente, depois disse:
— De mim você não vai conseguir discussão nenhuma.
— E se houvesse uma mistura de motivos por trás da contratação? E se às vezes a contratação do incendiário de aluguel fosse pra obter ganho, outras, por ressentimento? — teimou Pendlebury.
— Ainda assim, muitos continuam sem explicação — disse Carol. — Minha equipe descartou que fosse um incendiário de aluguel praticamente desde o início. Então, Tony, por que não é um retardado emocional fazendo isso por prazer?
— Posso estar errado — respondeu.
— Ah, é, o seu histórico está amontoado de erros — comentou Carol ironicamente.
— Obrigado. Sabe por que não acho que seja um doido? Todos esses incêndios foram feitos de forma cuidadosa. Na maioria dos casos, quase não deixaram vestígios forenses, apenas a identificação de onde o incêndio foi iniciado e a indicação de fluído de isqueiro e rastros do sistema de ignição. Na maioria deles, também não houve sinal de arrombamento. Se não fosse essa enxurrada de incêndios em um período tão curto, a maioria deles provavelmente teria sido enquadrada como acidente ou descuido. Isso apontaria para um incendiário profissional, porém nós já descartamos isso por outras razões.
Ele pegou os papéis que colocara ao lado da sua poltrona mais cedo e deu uma olhada rápida nas suas anotações.
— Ou seja, temos alguém que é controlado e organizado, características que quase nunca os incendiários possuem. Ele usa coisas que leva consigo e também materiais que estão disponíveis nos locais dos incêndios. Sabe o que está fazendo, embora não haja sinal de que tenha mudado gradativamente de pequenos incêndios em lixeiras para cabaninhas de jardim e para canteiros de obras.
“Depois disso, levamos em consideração que a maioria dos incendiários tem motivações sexuais. Quando incendeiam, geralmente se masturbam, ou urinam, ou defecam nos lugares. Não há vestígios disso nem de algum material pornográfico. Se ele não bate uma no lugar do incêndio, provavelmente faz isso em um lugar com vista privilegiada de onde observa o fogo. Novamente, não há registros de pessoas indignadas por terem visto alguém se expondo nas adjacências dos incêndios. Portanto, outra negativa.
— O que me diz da alteração na regularidade das ocorrências? — interrompeu Carol. — Ele está agindo com mais frequência do que quando começou. Isso não é típico de serial killers?
— É, isso está em todos os livros sobre serial killers — complementou Pendlebury.
— É menos verdadeiro em relação a incendiários — informou Tony. — Especialmente os que partem para incêndios mais sérios como estes. Os intervalos são imprevisíveis. Eles podem ficar semanas, meses e até anos sem incendiarem alguma coisa. Mas, dentro da série, você pode ter umas farras, então, sim, a alteração na regularidade das ocorrências pode servir de base para a ideia de que vocês estão procurando um criminoso serial. Mas não estou tentado sugerir que esses incêndios são trabalho de vários indivíduos. Acho que é uma pessoa. Só não acho que seja um caçador de emoção.
— Então o que você está falando? — indagou Carol.
— Quem quer que seja o responsável por esses incêndios não é um psicopata. Acredito que ele tenha um motivo criminal convencional para o que está fazendo.
— Então qual é esse suposto motivo?
— É isso que a gente ainda não sabe.
— Só um detalhezinho — bufou Pendlebury.
— Na verdade, de certa forma, é, sim, Jim — contribuiu Carol. — Porque, uma vez que estabelecermos que não é um psicopata operando com uma lógica única e pessoal, seremos capazes de usar a razão para desvendar o que está por trás dos incêndios. E, feito isso... bom, passa a ser um trabalho que depende simplesmente de sólida ação policial.
Um olhar de desapontado aborrecimento se apoderou do rosto de Pendlebury como uma obscura frente fria no mapa do clima.
— Olha, não consigo pensar em outra razão pra fazer esses incêndios a não ser ficar muito excitado com eles.
— Ah, eu não sei — disse Tony com um tom de casualidade, quase começando a se divertir.
— Compartilha, então, Sherlock — instigou Carol.
— Pode ser uma firma de segurança que está se reestabelecendo no encalço dos incêndios e oferecendo preços baixos por vigilantes noturnos. Pode ser uma empresa de alarme contra incêndio ou de sistema de extinção de incêndio passando por um momento difícil. Ou... — Sua voz enfraqueceu e ele lançou um olhar especulativo para o comandante dos bombeiros.
— O quê?
— Jim, vocês têm algum bombeiro que trabalha meio período?
Pendlebury ficou horrorizado. Em seguida, acolheu o meio sorriso que repuxava o canto da boca de Tony e o interpretou de forma completamente equivocada. O comandante dos bombeiros ficou visivelmente relaxado e abriu um sorriso.
— Você está brincando comigo — disse ele, sacudindo o dedo para Tony.
— Se é o que você acha — falou Tony. — Mas vocês têm? Só de curiosidade.
Os olhos do bombeiro mostravam hesitação e suspeita.
— A gente tem, sim.
— Quem sabe amanhã você não me passa o nome deles? — pediu Carol.
Pendlebury esticou a cabeça para a frente e encarou atentamente o rosto de Carol, que estava próximo ao dele. Seus ombros largos pareciam expandir à medida que ele cerrava os punhos.
— Meu Deus, você está falando sério, não está, Carol?
— Não podemos ignorar nenhuma possibilidade — justificou ela, calmamente. — Não é pessoal, Jim. Só que o Tony abriu uma linha de investigação válida. Estaria negligenciando o cumprimento do meu dever se não a seguisse.
— Negligenciando o cumprimento do dever? — Pendlebury levantou. — Se a minha equipe de bombeiros tivesse negligenciado o cumprimento do dever, não teria um prédio de pé nesta cidade. O meu pessoal põe a vida em risco toda vez que esse doido sai pra dar uma curtida pela noite da cidade. E você senta aqui e fala que um deles pode estar por trás disso?
Carol levantou e o encarou.
— Eu ia me sentir do mesmo jeito se fosse um policial com problemas. Não tem acusação contra ninguém neste estágio. Já trabalhei com o Tony antes, e aposto a minha carreira que ele não faz insinuações perniciosas ou mal-elaboradas. Por que não se senta e toma mais uma taça de vinho? — Carol colocou a mão no ombro dele e sorriu. — Qual é, não tem razão pra gente brigar.
Pendlebury relaxou aos poucos e cautelosamente se recostou na poltrona. Permitiu que Carol completasse a sua taça e chegou até mesmo a dar um meio sorriso para Tony.
— Sou muito protetor quando o assunto é o meu pessoal — comentou.
Tony, impressionado com a maneira amena com que Carol lidou com a situação potencialmente explosiva, dera de ombros.
— Eles têm sorte de ter você. — Foi tudo o que disse.
De alguma maneira, os três conseguiram mudar de assunto e passaram a falar sobre a adaptação de Carol em East Yorkshire, um território mais neutro. O chefe dos bombeiros partiu para a especialidade do habitante de Yorkshire: manter todo mundo alegre com várias piadas. Para Tony, foi um abençoado alívio dos pensamentos sobre Shaz Bowman das últimas horas.
Mais tarde, envolvido pela madrugada e pela solidão no quarto de hóspedes de Carol, não havia distração para abafar as chamas da imaginação. Enquanto afastava o rosto distorcido e devastado de Shaz Bowman que povoava seus pesadelos, prometia a ela que desmascararia o homem que fizera aquilo. Não interessava a que preço.
E Tony Hill era um homem que sabia tudo sobre pagar o preço.
Jacko Vance estava sentado em sua sala de projeção à prova de som e blindada eletronicamente no topo da casa, atrás de portas trancadas. Obsessiva e repetidamente, passava a fita que gravara com as muitas reportagens de jornais noturnos de vários canais abertos e fechados. Todos eles tinham a morte de Shaz Bowman em comum. Os olhos azuis dela na tela incendiavam sobre ele novamente, uma vez atrás da outra, um excitante contraste em comparação à última memória que tinha dela.
Não mostrariam fotos de Shaz naquele estado. Nem mesmo depois do horário nobre. Nem mesmo com autorização para transmissão de programas liberados para maiores de 18 anos.
Imaginava como Donna Doyle estava se sentindo. Não havia nada na TV sobre ela. Todas achavam que tinham qualidades para se tornarem estrelas, porém a verdade era que nenhuma delas acendeu a menor centelha de interesse em ninguém a não ser nele. Para Jacko, eram perfeitas, a representação suprema da mulher ideal. Adorava a maleabilidade delas, a disposição para acreditarem exatamente naquilo que ele queria que acreditassem. E a perfeição do momento em que percebiam que o encontro não era sobre sexo e fama, mas sobre dor e morte. Ele adorava aquela expressão nos olhos delas.
Quando via aquela adoração sendo transformada em alerta, seus rostos pareciam perder toda a individualidade. Não mais lembravam Jillie; transformavam-se nela. Com isso, a punição ficava muito fácil e perfeitamente certeira.
O que também fazia com que fosse adequada era a deslealdade. Quase todas as meninas falavam das famílias com afeição. Isso poderia estar amortalhado atrás do véu da frustração e exasperação adolescente, mas ficava óbvio que, enquanto ele as escutava, suas mães, seus pais ou seus irmãos se preocupavam com elas, ainda que sua sórdida disposição para fazer qualquer coisa que ele quisesse demonstrasse que elas não valorizavam a preocupação. Ele merecera a vida delas, e o que tinha ganhado?
A raiva ondeou dentro dele, mas, como um termostato, o autocontrole interviu e abafou o fogo. Não era a hora nem o lugar adequado para aquela energia, lembrou a si mesmo. Sua raiva podia ser canalizada para uma variedade de direções úteis; enfurecer-se enlouquecidamente sem propósito por aquilo de que fora destituído não era uma delas.
Respirou fundo várias vezes e se esforçou para fazer com que suas emoções adquirissem um molde diferente. Satisfação. Isso era o que deveria estar sentindo. Satisfação por um trabalho bem feito, um perigo neutralizado.
Little Jack Horner
Sat in the corner
Eating his pudding and pie
He put in his thumb
And pulled out a plum
And said, “What a good boy am I!”
Vance deu uma gargalhada. Tinha enfiado seu polegar e tirado uma ameixa resplandecente dos olhos de Shaz Bowman; sentiu o berro silencioso vibrando bem dentro de si. Fora mais fácil do que ele esperava. Era surpreendente como desgrudar um olho das suas raízes demandava pouca força.
A única desvantagem era que, depois disso, não dava para ver a expressão dela quando derramou o ácido e fatiou suas orelhas. Não previa nenhuma necessidade de haver uma próxima vez, mas, se houvesse, teria que pensar cuidadosamente na ordem da cerimônia.
Suspirando de satisfação, rebobinou a fita.
Se Micky não fosse tão metódica em relação à sua rotina matinal, poderiam ter escutado a notícia sobre a morte de Shaz Bowman no rádio ou a visto em algum canal da televisão fechada. Mas Micky insistia em não ficar exposta às notícias do dia até que estivesse atrás da porta fechada de seu escritório no estúdio. Sendo assim, tomavam café com Mozart e, no carro, ficavam na companhia de Wagner. Ninguém do programa era idiota o bastante para enfiar um tabloide em Micky enquanto ela caminhava a passos largos do estacionamento até sua mesa. Não duas vezes, pelo menos.
Ter que acordar muito cedo as forçava a ir dormir antes dos últimos noticiários, aqueles que alertaram Jacko, por isso foi Betsy quem teve o primeiro choque ao reconhecer a foto de Shaz. Mesmo atenuados pela impressão no jornal, seus olhos azuis ainda eram a primeira coisa que chamava a atenção.
— Meu Deus — assustou-se Betsy, dando a volta por trás da mesa de Micky, o melhor lugar para examinar as primeiras páginas.
— O que foi? — perguntou Micky sem parar de executar o seu processo matinal de tirar a jaqueta, pendurá-la no cabideiro e verificar criteriosamente se ele tinha alguma parte amarrotada.
— Olha, Micky. — Betsy empurrou o Daily Mail na direção dela. — Não é aquela policial que foi lá em casa no sábado? Bem na hora em que a gente estava saindo?
Antes de passar para a fotografia, Micky observou a grossa fonte preta: BRUTALMENTE ASSASSINADA. Seus olhos se moveram para o sorridente rosto de Shaz Bowman sob a aba do quepe da Polícia Metropolitana e ela disse:
— Não podem existir duas delas. — Sentou com força em uma das cadeiras de visitantes que ficavam de frente para a sua mesa e leu o texto melodramático que compunha o epitáfio de Shaz. Palavras como “pesadelo”, “sangrento”, “ensopada de sangue”, “agonia” e “repulsivo” saltavam para emboscá-la. Sentiu um estranho enjoo.
Em uma carreira na televisão que se estendia sobre zonas de guerra, massacres e tragédias individuais, ninguém na vida de Micky jamais fora pessoalmente tocado pelas catástrofes que ela relatara. E uma conexão tão tangencial quanto a dela com Shaz Bowman se tornava ainda mais chocante exatamente porque não havia precedente.
— Jesus — exclamou, alongando as sílabas. Levantou o olhar para Betsy, que percebeu o choque em seu rosto. — Ela estava lá em casa no sábado de manhã. De acordo com a matéria, acham que ela foi assassinada sábado bem tarde ou domingo de manhã. Nós falamos com ela. Depois de algumas horas, ela estava morta. O que a gente vai fazer, Bets?
Betsy deu a volta na mesa e agachou ao lado de Micky, as mãos abertas sobre as coxas, a cabeça levantada olhando para o rosto dela.
— Não vamos fazer nada — disse ela. — Não cabe a nós fazer alguma coisa. Ela foi lá pra ver o Jacko, não a nós. Ela não tem nada a ver com a gente.
Micky ficou estarrecida.
— Não podemos não fazer nada — protestou ela. — Quem quer que a tenha matado deve ter encontrado com ela depois que saiu lá de casa. No mínimo, a polícia vai ficar sabendo que ela estava viva, bem e andando por Londres no sábado de manhã. Não podemos ignorar isso, Bets.
— Querida, respira fundo e pensa no que você está falando. Não é uma vítima qualquer de assassinato. Ela era policial. Seus colegas não vão ficar satisfeitos com uma declaração de uma página dizendo que ela foi lá em casa e nós fomos embora. Vão escarafunchar nossas vidas até o osso apenas pela mínima possibilidade de haver alguma coisa sobre a qual eles deveriam ter conhecimento. Você sabe e eu sei que não temos como resistir a esse tipo de escrutínio. Sugiro que a gente deixe isso pro Jacko. Vou ligar pra ele e pedir pra falar que a gente já tinha saído quando ela chegou. É mais simples desse jeito.
Micky se jogou pra trás violentamente. A cadeira deslizou pelo carpete e Betsy quase caiu para a frente. Com um pulo, Micky ficou de pé e começou a andar agitada.
— E o que acontece se começarem a fazer perguntas aos vizinhos e alguma velhinha enxerida lembrar de ter visto a detetive Bowman chegar e depois a gente sair? Afinal, fui eu quem falou com ela primeiro. Eu que marquei o encontro. E se ela tiver anotado isso no caderninho dela? E se tiver gravado a conversa, pelo amor de Deus? Não acredito que você acha que a gente simplesmente não precisa falar nada sobre isso.
Betsy se esforçou para ficar de pé, seu queixo recuou para revelar uma teimosia expressa em seu maxilar firme.
— Se você parar com a porcaria desse dramalhão, vai ver que estou sendo sensata — falou com a voz baixa e nervosa. Tinha passado muito tempo alertando Micky sobre ela rotineiramente agir abandonando a encenação logo nesse momento em que ela se tornara tão crucial. — Essa atitude não vai levar a gente a nada de bom — complementou de forma preocupada.
Micky parou ao lado da mesa e pegou o telefone.
— Vou ligar pro Jacko — informou, olhando para o relógio. — Ele não vai estar acordado ainda. Pelo menos posso dar a notícia mais gentilmente do que os tabloides.
— Bom. Quem sabe ele não consegue colocar algum juízo na sua cabeça — disse Betsy com sarcasmo.
— Não estou ligando pra pedir permissão, Betsy. Estou ligando pra avisar que estou prestes a ligar pra polícia. — Enquanto socava o número do telefone pessoal do marido, Micky olhava com tristeza para a amante. — Meu Deus, não acredito que você está com tanto medo a ponto de conseguir enganar a si mesma e achar que pode desistir de fazer a coisa certa.
— O nome disso é amor — disse Betsy amargamente, virando-se para esconder as lágrimas de raiva e humilhação que brotaram sem aviso.
— Não, Betsy. O nome disso é medo... Oi, Jacko? Sou eu. Escuta, tenho uma notícia terrível pra você...
Betsy virou a cabeça e olhou para o rosto volúvel de Micky emoldurado pelo contorno de seu sedoso cabelo louro. Era uma imagem que lhe havia dado prazer além do que podia sonhar ao longo dos anos. A única coisa que sentia naquele momento era um desmedido e insondável sentimento de iminente desastre.
Jacko se recostou nos seus travesseiros e refletia sobre o que acabara de ouvir. Estivera em dúvida sobre ele mesmo ligar ou não para a polícia. Por um lado, isso contribuía para a sua inocência, já que, até onde sabia, ninguém fora da sua casa sabia que a detetive Bowman tinha chegado nem perto dele. Por outro, fazia com que parecesse um pouquinho ansioso para se envolver em uma investigação de assassinato com muita visibilidade. E uma das coisas que todo mundo que tinha lido livros sobre psicopatas homicidas sabia era que o assassino sempre tentava se inserir na investigação.
Deixar aquilo para Micky era, de muitas formas, bem mais seguro. Demonstrava sua inocência em segunda mão; ela era sua dedicada esposa, repleta de probidade pública e, portanto, seus relatos sobre o ocorrido seriam considerados confiáveis. Ele sabia que estava certo ao presumir que ela iria direto à polícia assim que visse a foto de Shaz, o que aconteceria bem antes do horário normal de Vance acordar, então não haveria perguntas sobre o porquê dele saber e não ter dito nada. Porque, é claro, policial, ele estava muito ocupado para ficar vendo jornal no dia anterior. Ora, às vezes mal tinha tempo para assistir ao próprio programa, quem diria o da mulher!
Agora cabia a ele focar na sua estratégia. Não haveria pedido para que se despencasse até Leeds para conversar com os investigadores; a polícia viria até ele, tinha certeza. Se estivesse enganado, não tinha pedido nenhum favor ainda. Cooperaria, o magnânimo homem que não tinha o que esconder. É claro que dou um autógrafo para a sua mulher, policial.
O importante nesse momento era planejar. Imaginar cada eventualidade e calcular com antecedência qual a melhor maneira de lidar com ela. O planejamento era o segredo do seu sucesso. Uma lição que teve que aprender quase da maneira mais difícil. Na primeira vez, não calculara as eventualidades prematuramente como deveria. Ficara intoxicado pelas possibilidades que viu se abrindo diante de si e não se deu conta do quanto era necessário projetar todos os resultados concebíveis e planejar como lidaria com eles. Não tinha o chalé em Northumberland nessa época e confiou imprudentemente em uma decrépita cabana para trilheiros de que se lembrava por causa das trilhas que fizera quando jovem.
Achou que ninguém a estaria usando no auge do inverno e sabia que poderia subir de carro direto para lá por um caminho usado para a condução de gado. Por não ter ousado deixá-la viva, teve que acabar com ela na noite em que a levara. Era quase alvorada quando ela dera o último suspiro. Trêmulo e exausto pelo esforço de aprisioná-la, de carregar o torno pesado que esmagaria seu braço, transformando-o em uma pasta sangrenta, e depois matá-la com uma ligadura perversa feita com cordas de guitarra simbólica, caso ele tivesse feito essa consideração, pois se tratava de outra façanha que ele perdera , o planejado enterro estava além de suas forças. Decidiu deixá-la onde estava e voltar na noite seguinte para dar um jeito na carcaça.
Jacko tragou o ar com essa lembrança. Estava na estrada principal, apenas alguns quilômetros depois de ter saído do caminho usado para a condução de gado, quando o jornal local anunciou que o corpo de uma jovem mulher fora descoberto há não mais de uma hora por um grupo de pessoas que faziam caminhada. O choque quase fizera a Land Rover sair da estrada.
De alguma maneira, controlou-se e continuou dirigindo até em casa envolto por uma pegajosa espuma de suor. Por incrível que pareça, não tinha deixado vestígios forenses com algum rastro que levasse até ele. Nunca foi interrogado. Até onde sabia, sequer o consideraram. A conexão anterior era mínima a ponto de ser insignificante.
Aprendera três coisas cruciais com aquela experiência. Primeiro, precisava encontrar uma maneira de fazer com que durasse mais para que pudesse saborear o sofrimento delas enquanto passavam pelo que ele tinha sofrido.
Segundo, ele na verdade não tinha gostado do ato de matar. Achou bom o que levava a isso, a agonia e o terror, e adorou a sensação de controle que ser responsável por tirar uma vida lhe deu, mas despachar uma mulher forte, saudável e jovem não tinha graça. Parecido demais com trabalho duro, decidira. Não se preocupava muito se elas morriam de septicemia ou de desespero, preferia isso do que ter ele mesmo que matar.
E terceiro, precisava de um lugar com segurança, tanto metafórica quanto literalmente. Micky, Northumberland e o trabalho voluntário com os doentes terminais tinham sido a resposta tripartite. Durante os seis meses que levara para juntar as partes dessa resposta, tivera simplesmente que ser paciente. Não tinha sido fácil e, por isso, a próxima vítima seria muito mais doce.
Não estava disposto a desistir do doce e secreto prazer só porque Shaz Bowman pensara que era mais esperta do que ele. Precisaria apenas de um pouquinho mais de planejamento.
Jacko fechou os olhos e refletiu.
Carol respirou fundo e bateu à porta. Uma voz familiar respondeu e ela entrou na sala de Jim Pendlebury como se nunca tivesse havido um momento de tensão entre eles.
— Bom dia, Jim — cumprimentou com vigor.
— Carol. Trouxe novidades pra mim?
Ela sentou no lado oposto ao dele abanando a cabeça.
— Vim pegar a lista dos bombeiros que trabalham meio período da qual falamos ontem à noite.
Os olhos dele se arregalaram.
— Você não continua com essa ideia maluca em plena luz do dia, né? — comentou desdenhosamente. — Achei que estava fazendo uma graça pro seu convidado.
— Quando o assunto é investigação criminal, vou sempre apoiar as ideias do Tony, em vez das suas.
— E acha que vou ficar sentadinho aqui e te ajudar a transformar meus homens em bodes expiatórios — começou em voz baixa—, quando são eles que enfrentam o risco todas as vezes que recebemos um chamado?
Carol suspirou irritada.
— Estou tentando colocar um fim nesse risco. Não só pros seus bombeiros, mas pros pobres coitados como Tim Coughlan, que nem sabem que estão em risco. Não entende isso? Não é uma caça às bruxas. Não estou aqui pra enquadrar gente inocente. Se acha que é isso que estou pretendendo, então com certeza não me conhece o suficiente pra ter o direito de aparecer na minha casa sem avisar e sem ter sido convidado e esperar entrar por aquela porta de novo.
Longos segundos se arrastaram enquanto eles encaravam um ao outro. Finalmente, com a boca formando uma linha fina, Pendlebury abanou a cabeça num gesto de resignação.
— Vou te dar a lista — concordou ele, odiando cada palavra. — Mas você não vai achar o seu incendiário nela.
— Espero que não — disse ela, calmamente. — Sei que não acredita em mim, mas não quero que seja um dos seus da mesma maneira que não gosto da possibilidade de descobrir corrupção policial. Isso corrói a todos nós. Mas não posso ignorar uma possibilidade que foi levantada de maneira tão convincente.
Ele virou e arrastou a cadeira até um arquivo. Abriu a gaveta de baixo e pegou uma folha de papel. Com um rápido movimento de pulso, fez com que ela flutuasse através da mesa até Carol. As únicas coisas que tinha eram os nomes, endereços e números de telefone dos doze bombeiros de Seaford que trabalhavam meio período.
— Obrigada — disse Carol. — Fico muito grata. — Estava terminando de virar para ir embora, mas parou e olhou para trás como que golpeada por uma ideia nova. — Mais uma coisa, Jim. Esses incêndios acontecem somente dentro da área sob responsabilidade de uma divisão ou são mais espalhados?
Ele contraiu os lábios.
— Estão todos na área da Central de Seaford. Se não estivessem, você não estaria saindo por essa porta com esse pedaço de papel.
Aquilo confirmou o que ela já pensava.
— Imaginei que devia ser isso mesmo — disse ela, com armistício na voz. — Acredite em mim, Jim, ninguém vai ficar mais feliz do que eu se todos os seus rapazes se safarem.
Ele desviou o olhar.
— Vão se safar. Conheço esses rapazes. Confio minha vida a eles. O seu psicólogo... ele não sabe nada sobre isso.
Carol caminhou até a porta. Ao abri-la, olhou para trás.
— É o que a gente vai ver, Jim.
O salto encapado com metal de suas botas marrons ecoavam nos degraus enquanto descia para a anônima segurança do seu carro. Doía-lhe profundamente a convicção de Jim Pendlebury de que ela usaria um dos seus companheiros de serviço emergencial como bode expiatório.
— Vai se ferrar — xingou Carol, batendo a porta do carro depois de entrar, apunhalando com raiva a ignição com a chave. — Vai todo mundo se ferrar.
Trabalhando com o princípio de que qualquer psicólogo que se preze perceberia na hora uma tentativa de manipulação, tinham nitidamente decidido dispensar a delicadeza. Entretanto cumprimentaram Tony, fazendo questão de deixar clara a hierarquia dali. O detetive superintendente-chefe McCormick e o detetive inspetor Colin Wharton estavam com os ombros encostados à mesa estreita na sala de interrogatórios. A fita estava gravando. Sequer se deram ao trabalho de fazer a espúria afirmação de que aquilo era para a segurança dele.
Primeiro quiseram saber sobre a descoberta do corpo, e obviamente as perguntas eram feitas com a intenção de induzi-lo a afirmar que nunca tinha estado no apartamento de Shaz antes e de que não tinha ideia de quais eram as janelas dela. Agora se moviam em direção às áreas nas quais as justificativas eram menos óbvias. Tony não estava despreparado. Tinha certeza de que lhe dariam uma canseira. Em primeiro lugar, ele não era policial, então, se estivessem procurando um bode expiatório, ele seria uma opção melhor do que alguém da equipe deles. Adicione a isso a indignação da força policial local em ter que ceder espaço e recursos para um bando de gente de fora, todas lideradas por um intelectualzinho do Ministério do Interior que eles consideravam estar a um passo de liderar rituais satânicos, e Tony estava inevitavelmente num beco sem saída. Com isso em mente, ele vinha desenhando cenários alternativos na tela de projeção dentro da sua cabeça quase antes de abrir os olhos. A preocupação em relação ao interrogatório o tinha ocupado durante o café da manhã, apesar dos esforços de Carol para lhe assegurar que aquilo não passaria de rotina.
No trem de volta para Leeds, ficou olhando pela janela sem registrar nada exceto a necessidade de encontrar uma maneira de convencer os interrogadores de que eles precisavam procurar fora do círculo de amigos e colegas de Shaz Bowman para encontrar quem quer que tenha feito aquilo com ela. Agora que estava sendo confrontado pela realidade, Tony gostaria, na verdade, de ter pegado um trem para Londres. Os músculos nos seus ombros estavam travados tamanha a sua tensão. Conseguia até mesmo sentir a rastejante rigidez escalar a parte de trás do pescoço em direção ao couro cabeludo. Teria uma dor de cabeça daquelas.
— Leva a gente lá pro início — exigiu McCormick bruscamente.
— Quando você se encontrou com a detetive Bowman pela primeira vez? — perguntou Wharton. Pelo menos não estavam fazendo o joguinho de policial bacana, policial escroto. Estavam ambos confortáveis em mostrar suas verdadeiras caras de agressores opressivos.
— O comandante Bishop e eu a entrevistamos em Londres há umas oito semanas. A data exata está na agenda no nosso escritório. — Sua voz estava regular e imparcial, mantida assim apenas por causa da força de vontade. Somente um analisador de estresse de voz detectaria os microtremores saltitando baixo da superfície. Felizmente para Tony, a tecnologia não tinha chegado tão longe.
— Vocês a entrevistaram juntos? — McCormick perguntou.
— Entrevistamos. No decorrer da entrevista, o comandante Bishop se retirou e eu apliquei alguns testes psicológicos. Depois a detetive Bowman foi embora e não a vi de novo até o início do período de treinamento da força-tarefa.
— Quanto tempo você ficou sozinho com a Bowman? — McCormick novamente. Wharton estava reclinado na sua cadeira, olhando fixamente para Tony com uma mistura profissional de especulação, desprezo e suspeita.
— Leva aproximadamente uma hora para aplicar os testes.
— Tempo suficiente para se conhecer alguém, então.
Tony negou com um gesto de cabeça e disse:
— Não há tempo para conversa casual. Na verdade, seria contraproducente. Visávamos manter o processo seletivo o mais objetivo possível.
— E a decisão de aceitar Bowman no esquadrão foi unânime?
Tony hesitou por um momento. Se ainda não tivessem falado com Paul Bishop, fariam isso. Não havia nenhuma razão para que houvesse algum desvio da verdade.
— Paul tinha algumas restrições. Ele achava que ela era intensa demais. Argumentei que precisávamos de alguma diversidade na equipe. Então ele concordou com a Shaz e eu cedi em uma das escolhas com que eu estava menos empolgado.
— E quem era? — perguntou McCormick.
Tony era muito esperto para cair.
— Isso é melhor você perguntar ao Paul.
Wharton de repente se inclinou para a frente, mantendo seu semblante pesado e grosseiro na direção de Tony.
— Você a achou atraente, não achou?
— Que tipo de pergunta é essa?
— A mais direta possível. Sim ou não. Achou a moça atraente? Gostou dela?
Tony ficou calado por um tempo, montando sua cuidadosa resposta.
— Eu notei que a aparência dela seria atraente para muitos homens, sim. Eu pessoalmente não estava atraído sexualmente por ela.
Wharton sorriu com escárnio.
— Como você pode falar isso? Pelo que fiquei sabendo, você não reage do mesmo jeito que a maioria dos camaradas viris por aí.
Tony se retraiu como se tivesse sido golpeado. Um tremor percorreu seus músculos tensos e seu estômago revirou. Na investigação que inevitavelmente acontecera após o caso em que trabalhara com Carol Jordan um ano antes, seus problemas sexuais tiveram que ser expostos. Fora prometida confidencialidade absoluta e, levando em consideração as reações dos policiais com quem tinha se encontrado desde então, estava certo de que tinham cumprido o prometido. Agora, do dia para a noite, a morte de Shaz Bowman parecia ter arrancado dele esse direito. Por um momento, ficou se perguntando onde eles conseguiram a informação, desejando que aquilo não significasse que sua impotência se tornaria uma fofoca generalizada.
— Minha relação com Shaz Bowman era puramente profissional — disse ele, forçando para que a voz continuasse calma. — A minha vida pessoal não tem nada a ver com essa investigação, nada mesmo.
— Isso é a gente que decide — declarou McCormick, sem rodeios.
Sem pausa, Wharton continuou:
— Você diz que sua relação era puramente profissional. Mas temos relatos de que você passava mais tempo com a Bowman do que com outros membros do esquadrão. Policiais chegavam de manhã e encontravam vocês dois cheios de conversa. Ela ficava depois que terminavam os seminários em grupo pra conversar em particular. Uma relação bem próxima parece ter brotado entre vocês dois.
— Não havia nada inconveniente entre Shaz e eu. Sempre comecei a trabalhar muito cedo. Pode conferir isso com qualquer pessoa que já trabalhou comigo. A Shaz estava tendo dificuldade pra dominar o software de computador que estávamos usando e por isso chegava com antecedência, para dedicar um tempo extra a ele. E é isso mesmo: ela ficava depois do término dos seminários em grupo pra fazer perguntas, o que acontecia porque era fascinada pelo trabalho, não por algum outro motivo sórdido oculto. Se a investigação de assassinato que estão fazendo tiver ensinado a vocês alguma coisa sobre Shaz Bowman, é que a única coisa pela qual ela estava apaixonada era o trabalho na polícia. — Ele respirou fundo.
Houve um grande momento de silêncio. Então McCormick indagou:
— Onde você estava no sábado?
Tony abanou a cabeça.
— Estão perdendo tempo com isto. Deveriam estar nos usando para pegar o assassino, não tentar fazer com que pareça que um de nós é o culpado. Deveríamos estar falando sobre o significado do que esse assassino fez com a Shaz, porque ele deixou a imagem dos três macacos sábios no corpo, porque não houve interferência sexual com o corpo nem vestígio forense algum.
McCormick apertou os olhos.
— Me interessa saber por que você está tão certo da ausência de vestígios forenses. Como sabe disso?
Tony gemeu.
— Eu não sei disso. Mas vi o corpo e a cena do crime. De acordo com a minha experiência com assassinos psicopatas, calculo que é o cenário mais provável.
— Um policial ou alguém que trabalha próximo da polícia reconheceria a importância das evidências forenses — disse McCormick astuciosamente.
— Qualquer um que tem uma televisão ou que saiba ler reconhece a importância disso — reagiu Tony.
— Mas nem todos sabem o jeito de apagar os traços da presença deles como pessoas acostumadas a ver a perícia criminal evitando a contaminação das evidências numa cena de crime, não é?
— Então está dizendo que não há evidência forense? — desafiou Tony, agarrando-se à informação que parecia significante.
— Eu não falei isso, não — retrucou McCormick triunfantemente. — Quem quer que tenha matado Shaz Bowman provavelmente acha que não deixou vestígio. Mas pode estar errado.
A cabeça de Tony disparou. Não podia ser impressão digitais ou pegadas; isso seria totalmente divergente com a precisão organizada do assassino. Podia ser cabelo ou fibras. Cabelo só seria útil se tivessem um suspeito importante para fazerem a comparação. As fibras, por outro lado, poderiam ser rastreadas por um especialista forense. Ele tinha a esperança de que West Yorkshire usasse o melhor.
— Bom. — Foi a única coisa que disse.
McCormick fechou a cara.
Wharton abriu uma pasta e colocou uma folha de papel em frente a Tony.
— Para ficar registrado, estou mostrando ao dr. Hill uma cópia da agenda da detetive Bowman no período da semana da sua morte. Há duas anotações no dia em que ela foi assassinada. JV, nove e trinta. E a letra T. Relaciono isso a você, dr. Hill, que combinara de se encontrar com a Shaz Bowman no sábado. Que você realmente se encontrou com ela no sábado.
Tony passou a mão pelo cabelo. A confirmação da ideia de Carol de que Shaz confrontaria Vance com o que ela sabia não lhe deu satisfação alguma.
— Inspetor, não marquei esse encontro. A última vez que vi Shaz viva foi no final do dia de trabalho na sexta-feira. O que eu estava fazendo no sábado não tem como ser menos relevante para esta investigação.
McCormick se inclinou para a frente e falou com suavidade:
— Não tenho tanta certeza disso. T de Tony. Ela podia estar se encontrando com você. Pode ter se encontrado com você depois do horário de trabalho e fora da sala do esquadrão, e o namorado pode ter descoberto e ficado irritado com isso. Quem sabe ele não a confrontou com isso e ela admitiu que gostava mais de você do que dele?
O lábio de Tony contorceu de desprezo.
— Isso é o melhor que você conseguiu inventar? É patético, McCormick. Já tive pacientes que inventaram fantasias mais verossímeis. Certamente você reconhece que a anotação mais importante no diário é a JV, nove e trinta. A Shaz pode ter tido a intenção de falar comigo depois da conversa, mas não chegou a fazer isso. Se você está interessado no que o assassino estava fazendo no sábado, deveria na verdade estar investigando o Jacko Vance e sua comitiva. — Assim que o nome saiu da sua boca, Tony soube que tinha estragado tudo. McCormick abanou a cabeça em tom de lástima. Wharton levantou num pulo, a cadeira dele fez um barulho no piso de vinil barato.
— Jacko Vance tenta salvar vidas, não tirá-las. É você que tem um histórico aqui — gritou Wharton. — Já matou uma pessoa, não matou, dr. Hill? E como vocês psicólogos estão sempre nos dizendo, uma vez violado o tabu, já era. Uma vez assassino... preenche a lacuna, doutor. Preenche essa porra dessa lacuna.
Tony fechou os olhos. Seu peito doeu como se um soco em seu diafragma tivesse roubado seu ar. Todo o progresso que fizera no ano anterior fora eliminado e, mais uma vez, sentiu o cheiro de suor e sangue, sentiu-os escorregarem pelos seus dedos, escutou os gritos rasgando da própria garganta, provou o beijo de Judas. Seus olhos se arregalaram de uma vez e ele encarou Wharton e McCormick com um ódio que tinha se esquecido de que era capaz de sentir.
— Chega — disse ele se levantando. — Na próxima vez que quiserem falar comigo, terão que me prender. E é bom se certificarem de que meu advogado esteja presente quando fizerem isso.
O seu desejo de não dar satisfação a eles foi a única coisa que o impedia de desmoronar enquanto saia com passos fortes da sala de interrogatório, atravessava a delegacia e chegava ao ar fresco do lado de fora. Ninguém fez um movimento sequer para impedi-lo. Ele atravessava o estacionamento desesperado para chegar à rua antes que seu estômago perdesse a batalha contra o café da manhã. Assim que chegou à calçada, um carro parou ao seu lado e o vidro do passageiro abaixou. Uma cabeça escura se precipitou na direção dele.
— Quer uma carona?
Tony recuou como se tivesse levado um soco.
— Não... eu... não, obrigado.
— Qual é — instigou Simon. — Eu estava te esperando. Eles me deixaram aí durante metade da noite. Vão colocar a culpa em mim na primeira oportunidade que tiverem. A gente tem que descobrir quem matou a Shaz antes que decidam que é hora de prender alguém.
Tony se inclinou para dentro do carro.
— Simon, me escuta com muita atenção. Você está certo de achar que querem que seja um de nós. Não tenho certeza se vão chegar ao ponto de forjar provas contra alguém. Mas não pretendo ficar sentado e esperar pra ver o que vai acontecer. Pretendo descobrir quem está por trás disso, e você não pode fazer isso comigo. É perigoso demais enfrentar um homem capaz de fazer o que esse cara fez com Shaz. Conseguir proteger a mim mesmo sem ter que fazer o mesmo por você já vai ser muito difícil. Você pode ser um ótimo detetive, mas não tem experiência nenhuma quando se trata de ficar de igual pra igual com psicopatas como esse. Faça um favor pra nós dois. Por favor. Vai pra casa. Vá lidar com a sua perda. Não tente ser um herói, Simon. Não quero enterrar outro de vocês.
A impressão era de que Simon queria começar a chorar e espancar Tony.
— Não sou criança. Sou um detetive treinado. Trabalhei em departamentos de homicídio. Não pode me impedir de pegar esse filho da puta.
Um longo suspiro.
— Não, não posso. Mas a Shaz era uma detetive treinada. Tinha trabalhado em casos de homicídio e sabia que estava irritando um assassino. E mesmo assim foi trucidada. Não foi simplesmente morta, foi aniquilada. Não são os métodos convencionais da polícia que vão resolver isso, Simon. Já fiz isso antes. Acredita em mim, sei como é e não desejaria isso para nenhuma outra alma viva. Vai pra casa, Simon.
Com o barulho do pneu derrapando no asfalto, o carro de Simon se afastou da calçada, deixando uma listra preta no chão. Tony o viu pegar a primeira à esquerda com velocidade demais e o spoiler traseiro sumir depois de uma derrapada. Desejou que aquele fosse o maior risco que Simon teria que correr até que o assassino de Shaz fosse pego. Ele sabia que um acidente de trânsito seria a menor das suas preocupações.
Capítulo 19

Havia algo a ser dito a favor do delírio. Quando o suor febril lhe escorria rosto abaixo e adicionava outra camada do ranço azedo que cobria sua pegajosa pele, significava que ela podia fugir para dentro das alucinações, sempre infinitamente preferíveis à realidade.
Donna Doyle era um amontoado deitado contra a parede, segurando-se à quimera de memórias infantis como se elas pudessem de alguma forma salvá-la. Em um ano, a mãe e o pai a tinham levado à Valentine Fair, em Leeds. Algodão-doce, cachorro-quente com cebola, o caleidoscópio de luzes borradas do carrossel, a cintilante vitrine da joalheria da cidade se estendia abaixo dela, que balançava gentilmente no frio ar da noite no alto da roda-gigante, o brilho neon da feira era como um carpete debaixo dos seus pés.
O pai ganhara um enorme urso de pelúcia para ela, com um divertido pelo rosa-choque e um sorriso bobo costurado ao longo do rosto branco. O último presente que lhe dera antes de morrer. Era tudo culpa dele, Donna pensou chorosa. Se não tivesse morrido, nada daquilo estaria acontecendo. Eles não seriam pobres e ela não teria que pensar em ser uma estrela de TV; poderia ter escutado a mãe, ficado na escola e ido para a universidade.
Lágrimas caíram rastejando do canto dos olhos e ela bateu o pulso esquerdo na parede.
— Eu te odeio — gritou para a oscilante imagem de um homem de rosto fino que tinha adoração pela filha. — Eu te odeio, seu filho da puta!
Pelo menos os soluços descontrolados a deixaram extenuada, fazendo com que sua consciência a abandonasse misericordiosamente mais uma vez.
Capítulo 20

A impetuosidade que caracterizava o comportamento de Leon entre seus colegas desapareceu. Em vez disso, estava trancado atrás de um rosto vazio e insolente que vira em muitos jovens negros, tanto presos quanto na rua. Na sua rua. Podia ter o distintivo que dizia que era um deles, mas tinha experiência suficiente para saber que os dois homens de Yorkshire sentados do outro lado da mesa na sala de interrogatório ainda eram Autoridade.
— Então, Leon — Wharton falava de modo aparentemente expansivo —, o que você está nos falando bate com o que já escutamos da detetive Hallam. Vocês dois se encontraram às quatro horas e foram jogar boliche. Depois foram tomar uma no Cardigan Arms, em seguida você se encontrou com Simon McNeill para irem a um restaurante indiano — sorriu de modo encorajador.
— Então nenhum de vocês dois matou a Shaz Bowman — disse McCormick.
Leon chegara à conclusão de que McCormick era racista, seu carão rosado não demonstrava afinidade alguma, seus olhos eram duros e frios e sua boca molhada ficava permanentemente a uma mera contração de sorrir.
— Nenhum de nós matou Shaz Bowman, cara — disse Leon, esticando deliberadamente a última palavra. — Ela era uma de nós. A gente podia não ser uma equipe há muito tempo, mas estávamos nos dando bem. Estão perdendo tempo com a gente.
— Temos que cumprir nossas obrigações, rapaz, você sabe disso — disse Wharton. — Vai ser um criador de perfis, sabe que noventa por cento dos assassinatos são cometidos por familiares ou amantes. Então, quando Simon apareceu, como parecia estar?
— Não entendi o que você está querendo dizer.
— Ok. Ele parecia agitado, tenso, aflito?
Leon fez que não.
— Nada disso, não. Estava um pouco quieto, mas atribuo isso ao fato da Shaz não estar lá. Acho que ele gostava dela e ficava desapontado quando ela não aparecia.
— O que fez com que você achasse que ele gostava dela?
Leon abriu as mãos.
— Umas paradas. Vocês sabem? O jeito com que ele tentava impressioná-la. O jeito como estava sempre dando uma sacada nela. O jeito com que sempre a trazia para dentro da conversa. Paradas que os homens fazem quando estão interessados, vocês sabem do que estou falando.
— Acha que ela estava interessada nele?
— Pra mim ela não estava interessada em ninguém. Não pra dar uma trepadinha. Era muito obcecada pelo trabalho pra se incomodar com isso, na minha opinião. Não acho que Simon ia se dar bem e conseguir transar com ela. Não até que tivesse alguma coisa que ela quisesse muito, tipo informação privilegiada sobre o rastro de um serial killer.
— Ele disse alguma coisa sobre ter ido à casa dela?
— Não falou nada sobre isso, não. Mas ninguém faria isso, né? Se você achasse que uma mulher acabou de te dar o bolo, não ficaria contando pra todo mundo. Não falar nada não é um comportamento estranho. Contar uma coisa que vai fazer a galera toda do esquadrão te zoar pra cacete, isso sim seria um comportamento estranho.
Leon acendeu um cigarro e encarou McCormick de novo com o semblante de olhos inexpressivos.
— O que ele estava usando? — perguntou Wharton.
Leon franziu a sobrancelha, esforçando-se para lembrar.
— Jaqueta de couro, camisa polo verde-garrafa, calça jeans preta, bota preta.
— Não estava com camisa de flanela?
Leon abanou a cabeça.
— Não quando a gente se encontrou com ele. Por quê? Acharam fibras de flanela nas roupas dela?
— Não nas roupas — respondeu Wharton. — A gente acha que ela...
— Não acho que a gente deve entrar em detalhes sobre as evidências forenses agora — interrompeu McCormick com firmeza. — Não ficaram preocupados pela Shaz não ter aparecido pra essa noitada de vocês?
Ele deu de ombros e soltou uma baforada de fumaça.
— Não, preocupados, não. Kay achou que ela tinha um esquema melhor. Eu achava que ela provavelmente estava em casa no computador fazendo o dever de casa.
— Meio queridinha do professor, né? — perguntou Wharton, com a empatia vindo à tona novamente.
— Que nada. Ela era CDF, só isso. Olha só, vocês não deveriam estar lá fora pegando o desgraçado, em vez de ficar perdendo o tempo com a gente? Não vão achar o assassino dentro da força-tarefa. A gente foi contratado pra resolver merdas desse tipo, não pra cometer essas paradas, cara.
Wharton concordou com um gesto de cabeça.
— Então o quanto antes a gente resolver esse negócio, melhor. Precisamos da sua ajuda aqui, Leon. Você é um detetive treinado, mas seus instintos também são treinados, senão você não estaria nessa força-tarefa. Usa os seus instintos pra ajudar a gente. O que você acha de Tony Hill? Sabe que ele não te queria na força-tarefa, não sabe?
Tony encarava a tela azul-escura. McCormick e Wharton podiam tê-lo impedido de ir aos escritórios da força-tarefa, mas ou não sabiam sobre o sistema de computador em rede do grupo ou não tinham ideia de como bloquear seu acesso. A configuração era muito simples. Tinha que ser; as pessoas que o usavam sabiam menos de informática do que a média das criancinhas de 7 anos de idade. Todos os computadores do escritório estavam conectados por meio de um processador central e uma unidade de armazenamento. Uma conexão via modem tornava possível a qualquer um da equipe que estivesse trabalhando fora do escritório acessar seus arquivos com dados pessoais bem como o material que ficava disponível para todos. Por razões de segurança, ambos tinham logins e senhas individuais. Os trainees tinham sido instruídos a trocar as senhas semanalmente para evitar possíveis vazamentos. Agora, se eles de fato se preocupavam com isso eram outros quinhentos.
O que ninguém no esquadrão sabia era que Tony tinha uma lista com todos os logins individuais. De fato, ele podia se conectar ao computador do escritório e fingir que era qualquer um deles, já que as máquinas não eram nada inteligentes. É claro que, sem a senha, não avançaria muito no acesso ao material particular, mas estaria dentro do sistema.
Assim que chegou em casa depois do interrogatório, ligou seu computador. Primeiro, acessou o formulário de candidatura e as respostas dela nos testes, pois tudo havia sido escaneado assim que fora aceita no esquadrão. Imprimiu tudo, juntamente com os relatórios do progresso que ele e Paul Bishop compilaram.
Depois ele se desconectou e acessou novamente com o login de Shaz. Após quase duas horas e uma garrafa de café, não conseguira avançar nada. Tentou tudo aquilo em que conseguiu pensar. SHAZ, SHARON, BOWMAN, ROBIN, HOOD, WILLIAM, TELL, ARCHER, AMBRIDGE... Tentou todos os personagens epônimos de novelas de rádio. Tentou os nomes dos pais, e todas as cidadezinhas, vilas, instituições e nomes de rua mencionados no seu CV. Chegou até mesmo a tentar com as óbvias JACKO, VANCE e as menos óbvias MICKY, MORGAN. Ainda assim, continuava a ver escrito na tela: “Bem-vindo à Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Por favor, digite a sua senha: ” O cursor ficara piscando por tanto tempo que a única coisa que podia afirmar com certeza absoluta era que não tinha tendência à epilepsia.
Ele levantou e zanzou pela sala. Não conseguia ter uma ideia que o abençoasse.
— Chega — murmurou, exasperado.
Pegou a jaqueta na cadeira em que a jogara e a vestiu. Uma caminhada até a banca de revistas para comprar a edição noturna do jornal devia clarear suas ideias.
— Não se engane — murmurou ao abrir a porta da frente. — Você só quer ver o que aqueles vacilões disseram na última coletiva de imprensa.
Percorreu o caminhozinho ladeado por dois canteiros de flores nos quais roseiras sujas lutavam com todos os meios contra inimigos tanto humanos quanto industriais. Assim que chegou à rua, notou dois homens em um sedã comum do outro lado. Um se levantava do banco do passageiro acompanhado do barulho do motor sendo ligado com entusiasmo. Chocado, Tony reconheceu todas as características da vigilância policial amadora. Estavam mesmo desperdiçando recursos humanos o vigiando?
Na esquina, parou para olhar a vitrine da Bric’n’Brac, um brechó de tristes pretensões. Seu orgulhoso dono mantinha o vidro limpo, o que permitiu a Tony dar uma conferida do outro lado da rua. O homem que saíra do carro estava lá, e despistava no ponto de ônibus, fingindo ler o quadro de horários. Mais do que qualquer outra, aquela atitude indicativa que ele não era dali; o pessoal local conhecia muito bem as práticas anárquicas das companhias de ônibus rivais e sabiam que o quadro de horários não passava de uma piada de mau gosto.
Tony caminhou até a esquina. Com o pretexto de que atravessaria a rua, deu uma olhada cautelosa para trás. O carro dera a volta e estava andando lentamente a uns cinquenta metros de distância. Não tinha dúvida. Se aquilo era o melhor que a força local tinha a oferecer, o assassino de Shaz Bowman não tinha muito com o que se preocupar. Para desespero dos seus supostos colegas, Tony comprou a edição noturna do jornal na banca do bairro e caminhou lentamente para casa, lendo no caminho. Pelo menos a polícia não estava dizendo nada que expusesse Shaz ao ridículo. Na verdade, não estava falando praticamente nada. Ou estavam escondendo o jogo, ou não tinham carta nenhuma na mão. Ele sabia bem qual era a alternativa correta.
Depois que entrou, sob o pretexto de fechar a cortina para proteger a tela do computador do sol, deu uma conferida no pessoal que o vigiava. Ambos estavam de volta ao carro, estacionados no mesmo lugar de antes. O que estavam esperando? O que achavam que ele faria?
Se as potenciais consequências não fossem tão apavorantes, aquilo até que seria engraçado, pensou Tony ao pegar o telefone e ligar para o celular de Paul Bishop. Quando Bishop atendeu, ele foi direto ao assunto:
— Paul? Você não vai acreditar nisto. O McCormick e o Wharton enfiaram na cabeça que foi alguém ligado à força-tarefa que matou a Shaz, já que éramos as únicas pessoas que ela conhecia aqui.
— Eu sei — respondeu ele, soando deprimido. — Mas o que posso fazer? A investigação é deles. Vou te contar uma coisa que talvez faça você se sentir melhor. Sei que entraram em contato com a divisão antiga dela para pedir que verificassem se existia algum bandido lá que tivesse rancor suficiente em relação a ela a ponto de segui-la até aqui. Até agora, nenhum êxito. Parece que a sargento do Departamento de Investigação Criminal com quem ela trabalhou entrou em contato para contar que agiu como intermediária para marcar um encontro entre Jacko Vance e Bowman no sábado de manhã. Tudo indica que ela estava determinada a perseguir aquela ideia maluca sobre as adolescentes.
Tony deixou escapar um suspiro de alívio.
— Graças a Deus que isso aconteceu. Agora quem sabe vão começar a nos levar a sério. No mínimo têm que estar se perguntando por que Jacko Vance não se apresentou e revelou isso, já que a foto de Shaz tem aparecido em todos os jornais.
— Não é tão simples assim — disse Bishop. — A esposa do Vance telefonou alguns minutos depois da outra ligação pra contar que a Bowman tinha ido à casa dela no sábado de manhã. Disse que o marido ainda não tinha visto os jornais. Ou seja, na verdade, ninguém está escondendo nada.
— Mas vão pelo menos conversar com ele?
— Tenho certeza que sim.
— Então vão ter que tratá-lo como suspeito.
Tony escutou Bishop soltar o ar.
— Quem sabe? O problema, Tony, é que posso fazer sugestões sutis, mas não tenho autoridade pra impedir que conduzam isso desse jeitinho maravilhoso deles.
— Me disseram que você concordou que o esquadrão deveria efetivamente ser suspenso — ressaltou Tony.
— Poxa, Tony, você sabe como são difíceis as questões políticas que envolvem a força-tarefa. O Ministério do Interior determina que não criemos problemas na linha de frente e é inflexível em relação a isso. Foi uma pequena concessão. O esquadrão não foi extinto. Não tem ninguém sendo transferido de volta para as suas unidades antigas. Simplesmente demos uma pausa no ciclo operacional até que este caso ou seja resolvido ou deixe de ser manchete. Faz um esforço pra tratar a situação como uma licença sabática.
Exasperado, Tony voltou ao motivo inicial de sua ligação:
— Licença sabática bem estranha essa que inclui vigilância feita por policiais que parecem ter saído de uma comédia pastelão!
— Está brincando.
— Bem que gostaria. Saí do meu interrogatório com eles hoje de manhã depois que me acusaram de ser o suspeito número um porque, afinal, já sou assassino. E agora o Beavis e o Butthead estão aqui na minha cola. Isso é intolerável, Paul.
Conseguiu escutar Bishop respirar fundo.
— Concordo, mas vamos ter que aguentar as porradas até que fiquem entediados com a gente e comecem a fazer uma investigação adequada.
— Acho que não, Paul — discordou Tony com a voz firme e autoritária. — Um membro da minha equipe está morto e eles não vão nos deixar ajudar a encontrar a pessoa que o matou. Não perdem tempo em me lembrar que não sou um deles, que sou forasteiro. Bom, isso é uma faca de dois gumes. Se não conseguir persuadi-los a sair do meu encalço, eu mesmo vou convocar uma coletiva de imprensa amanhã. E prometo que, assim como o Wharton e o McCormick, você também não vai gostar nada dela. É hora de mexer uns pauzinhos e começarmos a assumir as rédeas, Paul.
— Já te entendi, Tony — suspirou Bishop. — Deixa comigo.
Tony colocou o telefone no gancho e abriu a cortina. Acendeu o abajur da sua mesa e ficou em frente à janela olhando sediciosamente para os vigilantes do lado fora. Revisou a informação que Paul Bishop lhe dera e a relacionou ao que vira na cena do crime. Aquele assassino estava furioso porque Shaz metera o nariz nos negócios dele. Isso indicava que ela estava certa sobre sua suposição de que havia um assassino de adolescentes à solta. Algo que ela fizera causou pânico no assassino e a transformou em seu próximo alvo. Aparentemente, a única coisa que Shaz fizera que tinha ligação com a teoria foi visitar Jacko Vance dentro do horário da sua morte.
Agora ele sabia que o assassino de Shaz Bowman não podia ser algum fã demente de Jacko Vance. Não existia a possibilidade de nem mesmo o mais dedicado admirador obsessivo descobrir, naquele curto intervalo entre a visita e o assassinato, quem Shaz era ou a razão pela qual visitara a casa de Vance.
Ele tinha que descobrir mais sobre o encontro entre Shaz e Vance. Se o assassino fosse alguém da comitiva dele, era possível que estivesse presente. Mas, se Vance estava sozinho quando Shaz o confrontou, o dedo só poderia ser apontado para ele. Mesmo que Jacko tivesse pegado o telefone no minuto seguinte à saída de Shaz e relatado a suspeita dela para outra pessoa, não tinha como uma terceira parte, com o pouco tempo disponível, localizar Shaz, descobrir onde ela morava e a persuadi-la a abrir a porta para ele.
Assim que chegou a essa conclusão, os vigilantes foram embora. Tony arrancou a jaqueta e se jogou como uma pedra na cadeira de frente para a tela. Era apenas uma pequena vitória, mas renovou o seu apetite pela batalha. Agora ele tinha que achar a prova para demonstrar que Shaz estava certa e que isso a tinha matado. O que Shaz Bowman tinha escolhido como senha? Um herói ficcional? Warshawski e Scarpetta eram longos demais. KINSEY, MILLHONE, MORSE, WEXFORD, DALZIEL, HOLMES, MARPLE, POIROT, nenhum funcionou. Um vilão ficcional? MORIARTY, HANNIBAL, LECTER. Nada ainda.
Normalmente, o som de um carro estacionando do lado de fora não teria penetrado sua concentração. Mas, depois do dia que tivera, o silenciar do motor lhe pareceu mais alto do que o barulho do alarme. Olhou para fora e seu coração pesou novamente. As três últimas pessoas que queria ver saíram do conhecido Ford vermelho. Em bando, Leon Jackson, Kay Hallam e Simon McNeill lotaram o caminhozinho da entrada e reconheceram sua cara fechada através da janela. Com um gemido, ele levantou, destrancou a porta, deu meia-volta e retornou para seu escritório.
Eles o seguiram, aglomerando-se no quartinho e, sem esperarem pelo convite, encontraram lugares para se acomodarem; Simon no peitoril da janela, Leon recostado elegantemente em um aparador, Kay em uma poltrona no canto oposto. Tony girou em sua cadeira e os olhou, tentando não deixar transparecer a resignação que sentia.
— Agora entendi por que as pessoas confessam crimes que não cometeram — disse ele, o que não era cem por cento piada.
Eles eram imponentes, apesar da juventude e instabilidade.
— Você não ia me levar a sério, então trouxe reforço — disse Simon.
Estava pálido demais para estar constrangido, registrou Tony, notando pela primeira vez as sardas ao longo da ponte do nariz dele.
— O tal do McCormick e o Wharton ficaram de onda com a gente — irrompeu Leon. — Fiquei lá a tarde inteira com os dois fazendo carinha bonitinha pra mim. “Vamos lá, Leon, você pode nos contar que realmente acha do Tony Hill e do Simon McNeill.” Cara, vou te contar uma parada, eles são dois doentes do caralho. “O McNeill gostava da Bowman, mas ela estava apaixonada pelo Hill, então ele a matou por ciúme, qual é a sua consideração? Ou então o Hill estava doido pra dar umazinha com a Bowman, mas ela estava mais interessada em sair com o McNeill e ele a matou num ataque de ciúme.” Um curral teria menos bosta do que as que saíram da boca daqueles caras. Me deu nojo. — Ele pegou o maço de cigarro e hesitou. — Tem problema?
Tony autorizou com um gesto de cabeça e apontou para uma plantinha em uma prateleira:
— Usa o cinzeiro.
Kay inclinou para a frente na cadeira e apoiou os cotovelos nas coxas.
— É como se não conseguissem ver além dos narizes deles. E, enquanto estão tentando encontrar provas contra vocês, não estão procurando em nenhum outro lugar. Muito menos naquilo que a Shaz estava vasculhando. Acham que a teoria sobre um serial killer estar vitimando adolescentes é o tipo de coisa ridícula que nós, mulheres, fazemos porque nossos hormônios são pirados. Bom, chegamos à conclusão de que se eles não vão fazer o que é preciso, melhor a gente fazer.
— Posso dar o meu pitaco?
— Sinta-se em casa — disse Leon, com um gesto expansivo.
— Valorizo o que estão sentindo. Conta muito a favor de vocês. Mas isto aqui não é um exercício de sala de aula. Não é um jogo tipo “Cinco Caçadores e Um Psicopata”. Este é jogo o mais perigoso de todos. Na última vez em que me envolvi com um psicopata, quase perdi a vida. E, com todo o respeito ao talento de vocês como policiais, tenho um conhecimento muitíssimo maior do que os três juntos me mostraram. Não estou preparado para assumir a responsabilidade de ter vocês trabalhando comigo clandestinamente. — Ele passou a mão pelo cabelo.
— Sabemos que o negócio é real, Tony — protestou Kay. — E sabemos que você é o melhor. Por isso viemos te procurar. Só que podemos fazer coisas que você não pode. Temos distintivos. Você, não. Policiais desconhecidos só confiam em outros policiais. Não vão confiar em você.
— Ou seja, se você não for ajudar a gente, vamos simplesmente ter que fazer o nosso melhor sem você — disse Simon, apertando os lábios e os transformando em uma linha de teimosia.
O estridente toque do telefone foi um alívio. Tony se aproximou do gancho.
— Alô — atendeu cuidadosamente, os olhos cravados nos outros como se fossem uma bomba que ainda não tinha explodido.
— Sou eu — disse Carol. — Liguei pra saber como você vai dar prosseguimento a essa situação.
— Prefiro conversar com você pessoalmente — respondeu.
— Não pode falar agora?
— Estou ocupado agora. Podemos nos encontrar mais tarde?
— No meu chalé? Seis e meia?
— Sete é melhor — sugeriu ele. — Tenho muito o que fazer aqui antes de poder sair.
— Estarei te esperando. Boa viagem.
— Obrigado.
Colocou com gentileza o telefone no gancho. Fechou os olhos momentaneamente. Não tinha percebido o quanto se sentia isolado. Era a existência de policiais como Carol e a teimosa crença de que um dia eles seriam a maioria que tornava seu trabalho tolerável. Reabriu os olhos e viu os três membros principiantes do esquadrão o olhando avidamente. O fantasma de uma ideia tomava forma no fundo da sua mente.
— E os outros dois? — escapuliu ele. — Tiveram bom senso, não tiveram?
Leon soltou fumaça e respondeu:
— Tudo frouxo. Estão com medo de dar merda e a promoção deles ir pro saco.
— Porra, quem é que fica preocupado com promoção quando alguém como a Shaz é assassinada e ninguém se esforça direito pra pegar o culpado? Quem ia querer ser policial numa força assim? — apelou Simon.
— Sinto muito — disse Tony. — Minha resposta continua sendo não.
— Ótimo — disse Kay. Seu sorriso era afiadíssimo. — Neste caso, a gente vai adotar o plano B. O protesto pacífico. Vamos ficar no seu encalço até você ceder. Aonde você for, a gente vai. Vinte e quatro horas por dia. Nós somos três, você, um.
— Suas chances não são nada favoráveis. — Leon acendeu outro cigarro sem que a brasa da guimba do anterior estivesse apagada.
Tony suspirou.
— Ok. Vocês não vão me escutar. Talvez escutem alguém que realmente conhece esse esquema.
O relógio do painel mostrava que passava de sete; o rádio tocava a música de abertura da novela The Archers, o que revelava que estava três minutos atrasado. Sacudindo pelo caminho de terra depois de ter saído da estrada, a suspensão do carro de Tony denunciava sua idade. Fez a última curva e viu com satisfação que as luzes no chalé de Carol estava acessas. Ela estava emoldurada pelo vão da porta quando ele saiu do carro. Não conseguia se lembrar da última vez que sentiu tanta felicidade por ficar na companhia de alguém, por adentrar o território de outra pessoa. O único sinal de que seus companheiros eram completamente inesperados foi a levantadinha de sobrancelhas que ela deu.
— A chaleira está no fogo e a cerveja, gelada — disse ela cumprimentando a todos e apertando gentilmente o braço de Tony. — São seus guarda-costas?
— Quase isso. No momento, estou sendo mantido refém — ironizou entrando depois dela. O esquadrão não esperou ser convidado. Estavam logo atrás dele.
— Lembra da Kay, do Leon e do Simon? Ficarão agarrados em mim igual a carrapatos enquanto eu não concordar em trabalhar com eles para descobrirmos quem matou a Shaz.
Na sala, ele apontou o polegar para o sofá e as poltronas. Os três sentaram.
— Queria que você me ajudasse a convencer esse pessoal a tirar isso da cabeça.
Carol abanou a cabeça, fingindo perplexidade.
— Eles querem trabalhar com você em um caso verídico? Meu Deus, a fábrica de boatos deve estar a toda ultimamente.
— Primeiro café — disse Tony, levantando uma das mãos, colocando-a de leve no ombro de Carol e a conduzindo em direção à cozinha.
— Já vai sair.
Ele fechou a porta depois que entraram e explicou.
— Desculpa envolver você nisso, mas eles não me escutam. O problema é que West Yorkshire está considerando Simon como principal suspeito e eu como o segundo da lista. Essa turma não vai deixar pra lá e aceitar isso. Você sabe o que acontece quando se está trabalhando em um caso de serial killer e a coisa fica pessoal. Eles não têm experiência pra lidar com isso. O Vance ou alguém próximo a ele já matou a melhor e mais brilhante deles. Não quero mais nenhuma morte na minha consciência.
Carol colocou café no filtro e ligou a cafeteira enquanto ele falava.
— Você tem toda razão — comentou ela. — No entanto... a não ser que eu os tenha julgado de maneira totalmente equivocada, vão continuar com isso de qualquer jeito. A melhor maneira de garantir que você não perca mais ninguém é assumindo o controle. E a maneira de se fazer isso é trabalhando com eles. Coloca o pessoal todo pra fazer o serviço pesado de segunda categoria que os detetives inexperientes caem matando. Alguma coisa duvidosa, alguma coisa que achamos perigosa ou que necessite de técnicas de interrogação especiais, a gente vai achar alguma coisa.
— “A gente”?
Carol bateu a palma da mão na testa e fez uma careta:
— Por que estou achando que acabei de ser feita de trouxa? — Ela deu um soquinho no braço dele. — Coloca açúcar, leite e a canecas numa bandeja e leva pra lá antes que eu fique brava de verdade.
Tony fez o que ela pediu, sentindo-se estranhamente satisfeito por ter feito a transição de Cavaleiro Solitário para capitão de time em uma questão de poucas horas. Quando Carol chegou com o café, ele tinha compartilhado o novo trato com a equipe, que estava satisfeita consigo mesma.
Tony abriu seu notebook na mesa de jantar de pinho que tinham esvaziado, plugou o modem na linha telefônica e ligou a fonte na tomada mais próxima. Enquanto os outros se ajeitavam de maneira que pudessem ver a tela, Carol perguntou a Tony:
— O interrogatório foi muito ruim?
— No final simplesmente levantei e fui embora — respondeu sucintamente enquanto o computador iniciava. — Foi o que se poderia chamar de hostil. Quando chegam ao estágio de “Cheguem aqui, meus camaradas” não acham que estou do mesmo lado que eles, sabe? Mas estão guardando o lugarzinho principal na lista de suspeitos pro Simon. Teve o azar de conseguir fazer com que Shaz aceitasse sair com ele bem na noite em que foi morta. Mas provavelmente sou o segundo favorito nas contas que algum cuzão orgulhoso da equipe do departamento de homicídios está fazendo.
Ele levantou o olhar e Carol viu a mágoa por trás do pretenso autocontrole.­ — Filhos da puta do cacete — xingou Carol, colocando sua caneca de café ao lado do computador. — Por outro lado, são sujeitos de Yorkshire. Não acredito que não estejam usando vocês.
Leon deu uma risada melancólica antes de dizer:
— Nem me fala. Posso fumar aqui?
Carol olhou para ele, notando a batidinha de dedos formando um desenho na coxa dele. Melhor a combustão do tabaco do que a dele.
— Tem um pires no armário acima da chaleira — indicou ela. — Só nesta sala aqui, por favor.
Quando ele saiu, Carol pegou a cadeira dele e se aproximou de Tony para observar a tela mudando à medida que ele digitava.
O psicólogo entrou no sistema da força-tarefa com o login de Shaz. Apontou para o cursor que piscava.
— Foi com isso que eu fiquei atormentando o meu cérebro a tarde toda. Posso acessar o sistema com o login da Shaz, mas não consigo descobrir a senha dela.
Revelou todas as tentativas que experimentara, eliminando com os dedos as categorias. Leon, Kay e Simon começaram a fazer suas sugestões baseadas naquilo que conheciam da falecida colega. Carol escutava atentamente, com a mão esquerda enrolando os cachos louros na parte de trás do pescoço. Quando Tony e os outros três esgotaram as forças e as ideias, ela falou:
— Esqueceram do óbvio, não esqueceram, não? O que Shaz almejava? O que queria ser?
— Comandar a Scotland Yard? Acha que eu deveria tentar comissários da Polícia Metropolitana?
Carol se aproximou e puxou o notebook para uma posição em que conseguisse digitar.
— Criadores de perfis famosos.
Ela digitou RESSLER, DOUGLAS, LEYTON. Nada aconteceu. Com uma tristeza peculiar nos lábios, digitou TONYHILL.
A tela fico momentaneamente vazia, depois um menu apareceu.
— Puta que pariu, eu devia ter apostado — zoou ela.
Ao lado de Carol, os trainees de criadores de perfil aplaudiam; Leon uivava e berrava.
Tony abanava a cabeça, abismado.
— O que eu tenho que fazer pra levar você por esquadrão nacional? — perguntou ele. — Está sendo desperdiçada ao fazer o trabalho comum do Departamento de Investigação Criminal com a qualidade que tem. Todo aquele trabalho administrativo quando você deveria estar investindo essa inspiração pra pegar psicopatas.
— Tá certo — disse Carol sarcasticamente, empurrando o notebook de volta para ele. — Se sou tão boa, como não cheguei à conclusão de que o meu incendiário é um pilantra qualquer e não um maluco?
— Porque está trabalhando sozinha. Essa nunca é a melhor maneira de operar quando se está lidando com análise psicológica. Acho que os criadores de perfis deveriam trabalhar em duplas, detetive e psicólogo, habilidades complementares.
Ele posicionou o cursor em “Diretório de arquivos” e pressionou ENTER.
A qualidade da sintonia das suas mentes não era uma conversa que Carol queria ter, especialmente na companhia tão voraz quanto a que estava presente. Ela habilmente deu prosseguimento ao assunto, atualizando Leon, Kay e Simon sobre a teoria de Tony de que o incendiário era um bombeiro que trabalhava meio expediente e que tinha um motivo comum para executar os crimes.
— Mas qual é o motivo? — perguntou Kay. — Essa é a parte relevante, não?
— Se é criminal, você vai sempre procurar saber quem se beneficia — observou Leon. — E já que não há problemas com propriedade nem com seguro, talvez seja alguém do alto escalão do corpo de bombeiros que não quer mais nenhum corte de verbas.
Tony tirou os olhos dos nomes dos arquivos que estava lendo.
— Boa ideia — elogiou. — Tortuosa, no entanto. Como adepto da Navalha de Occam, fico com a teoria mais objetiva. Dívida — afirmou, voltando os olhos para a tela.
— Dívida? — A voz de Carol estava repleta de dúvida.
— É. — Ele se virou para ficar de frente para ela. — Alguém que deve dinheiro pra todo mundo, alguém que está sem crédito nenhum na praça. Houve reintegração de posse da casa dele ou isso está prestes a acontecer. Está cheio de processos na justiça e tem vendido o almoço pra comprar o jantar.
— Mas um chamado noturno dá o quê? Cinquenta, cem pratas no máximo, dependendo de quanto tempo ficam fora. Não é possível que esteja achando que alguém colocaria a liberdade e as vidas dos colegas em risco por essa mixaria! — protestou Simon.
Tony deu de ombros e argumentou:
— Se você está contra a parede e continuamente fazendo malabarismo com credores, cenzinho extra por semana pode fazer toda a diferença entre continuar inteiro ou ter a perna quebrada, pode evitar que tomem o seu carro, cortem a energia elétrica e que seu nome fique sujo. Paga vinte contos de um débito, cinquenta de outro, dezinho aqui, cinco ali. Mostra que está correndo atrás. Tira todo mundo da sua cola. A justiça fica relutante em tomar ações drásticas se você mostra que está se esforçando. Qualquer pessoa sensata sabe que se está apenas postergando a má hora. Mas, quando se está com dívidas até o pescoço, para de pensar direito. A pessoa entra nessa ilusão fantasiosa de que, assim que conseguir passar por essa parte mais difícil, vai entrar na linha de novo. Ninguém melhor para enganar a si mesmo do que um sujeito muito endividado. Já vi idiotas patéticos que deviam quase vinte mil pratas a um agiota e mesmo assim continuavam mantendo a empregada doméstica e o jardineiro porque se livrar deles seria admitir que suas vidas estavam totalmente fora de controle. Procura alguém que esteja balançando à beira da falência, Carol.
Já de volta à comunhão com a tela do computador, murmurou:
— Vamos ver... DESAP.001. Deve ser o relatório que ela fez para o esquadrão, não acham?
— É provável. E DESAPJV.001 pode ser os interrogatórios de Jacko Vance.
— Vamos dar uma olhada. — Tony abriu o arquivo. As palavras de Shaz espalharam-se tela abaixo, dando-lhe uma estranha sensação de comunhão com os mortos. Era como se aqueles extraordinários olhos azuis estivessem pairando atrás da sua cabeça, cravando nele seu fitar inexorável.
— Meu Deus — sussurrou ele. — Ela não estava de brincadeira.
Leon se aproximou para olhar sobre o ombro dele.
— Porra — disse baixinho. — Shazinha, sua bruxa do caralho.
Comentário que resumiu perfeitamente o sentimento de todos que liam o briefing além-túmulo de Shaz.
CHECKLIST DO CRIMINOSO ORGANIZADO

Jacko Vance

Re: GRUPO DE DESAP.
Posição na ordem de nascimento
Filho único.
Trabalho estável do pai
Engenheiro civil — frequentemente longe de casa por períodos extensos devido a contratos de longo prazo.
Ausência do pai
Ver acima.
Disciplina parental percebida como inconsistente
Ver acima; além disso, mãe parece ter sofrido depressão pós-parto, rejeitou JV e depois o tratou de maneira muito severa.
QI mais alto do que o da média
Considerado brilhante por professores, mas nunca se desenvolveu academicamente como o esperado; desempenho fraco em provas.
Profissão que requer qualificação, histórico irregular de trabalho
Primeiro como campeão de lançamento de dardos, depois como apresentador de TV; perfeccionista, propenso a acessos de raiva e a demitir membros iniciantes da equipe; se não fosse pelo talento em ganhar medalhas popularidade com o público da TV, teria perdido vários contratos ao longo dos anos devido ao comportamento arrogante e dominador.
Comportamento social prático; pode ser gregário e comunicativo, mas não consegue se conectar emocionalmente
Ver acima; relaciona-se muito bem com pessoas do público no nível superficial; entretanto, uma das razões pelas quais seu casamento é visto como tão bem-sucedido está baseada em ele aparentar não ter relacionamentos íntimos com nenhum gênero fora do matrimônio.
Vida com a parceira
Está junto da esposa, Micky, há doze anos. Um casamento muito público, o casal de ouro da TV no Reino Unido. Contudo, frequentemente longe de casa tanto devido aos negócios quanto ao trabalho de caridade.
Controle emocional durante a prática do crime
Desconhecido: mas, nos negócios, Vance tem fama de agir com frieza sob pressão.
Uso de álcool ou drogas durante a prática do crime
Desconhecido. Nenhum histórico de problema com bebida. Palpite de que possa ter havido um problema com vício em analgésicos após o acidente em que Vance perdeu o braço.
Mobilidade; carro em boas condições
Vance tem um Mercedes conversível e uma Land Rover. Ambos automáticos e adaptados para a sua deficiência.
Acompanha crime na mídia
Está em posição perfeita para isso — tem acesso direto a todas as áreas da mídia. Conta com muitos jornalistas em seu círculo de conhecidos.
Vítimas compartilham características semelhantes
Sim — ver apêndice A sobre o grupo original de sete vítimas.
Conduta insuspeita
Milhões de pessoas confiariam a ele suas vidas e a de suas filhas. Em uma pesquisa de opinião há quatro anos, ele ficou em terceiro lugar na categoria de pessoas mais confiáveis na Grã Bretanha, atrás da Rainha e do Bispo de Liverpool.
Aparência mediana
Impossível comentar com objetividade. O verniz de celebridade, a produção e o guarda-roupa caro dificultam o julgamento além da fachada.
Doença mental em familiares próximos
Nada conhecido; mãe morreu há oito anos, câncer.
Álcool ou problema com drogas em familiares próximos
Nada conhecido.
Pais com ficha criminal
Nada conhecido.
Abuso emocional
Mãe, ao que consta, falava que ele era feio e desajeitado, “igualzinho ao seu pai”. Parece que o culpava pela ausência do pai.
Disfunção sexual — incapaz de relacionamento maduro e consensual com outro adulto
Nada que sustente isso: casamento muito público. Nenhuma indicação de MM infeliz no casamento ou de que tem amante ??? Verificar colunas de fofoca de jornais ??? Verificar com policiais da patrulha local — algum sinal ???
Mãe fria e distante; pouquíssimo contato afetivo ou calor emocional quando criança
Implícito nos dois livros.
Visão de mundo egocêntrica
Todas as evidências — mesmo nas declarações afetuosas de MM — apontam para isso.
Surras quando criança
MM se lembra dele falar do seu pai chegar em casa de viagem e espancá-lo por ter ido mal em um exame de qualificação escolar, além disso, nada conhecido.
Testemunhou situação estressante sexualmente quando criança, e.g., estupro marital, mãe envolvida com prostituição
Nada conhecido.
Separação dos pais na infância ou início da adolescência
Pais divorciaram-se quando tinha doze anos.
De acordo com o livro de MM, sua obsessão pelo atletismo era uma tentativa de chamar a atenção do pai.
Autoerotismo adolescente
Nada conhecido.
Fantasias de estupro
Nada conhecido.
Obsessão por pornografia
Nada conhecido.
Tendência para o voyeurismo.
Nada conhecido de maneira específica; mas Vance Visita é o maior programa do tipo “meter o nariz onde não é chamado” da televisão.
Tem consciência de que seus relacionamentos sexuais emocionais são anormais e se ressente disso
Nada conhecido.
Obsessivo
Atestado tanto por colegas quanto por rivais.
Fobias irracionais
Nada conhecido.
Mentiroso crônico
Vários casos em que ele “reinventou” incidentes passados; comparar os dois livros.
Estresse inicial

 

 


CONTINUA