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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REGRESSO A MADISON COUNTY / Robert James Waller
REGRESSO A MADISON COUNTY / Robert James Waller

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

    

 

Alguns anos depois de As Pontes de Madison County, Robert James Waller leva-nos de volta ao cenário dessa paixão inesquecível, num melancólico romance sobre o amor, a solidão e as escolhas que marcam uma vida.

  1. Passaram dezasseis anos desde que Francesca Johnson e Robert Kincaid se conheceram, se apaixonaram e passaram juntos quatro dias que mudaram as suas vidas para sempre. Robert vive das recordações das suas viagens e da memória da única mulher que amou e a quem não voltou a ver; Francesca, agora viúva, vive, também ela, totalmente imersa nas memórias desse intenso romance. Decidido a relembrar a felicidade que o marcou tão irreversivelmente, Robert decide regressar a Madison County...

"Após um intervalo de dez anos, Robert James Waller leva-nos de volta às Pontes de Madison County – uma viagem que vale a pena."                            

 

Há canções que vêm das pradarias de flores azuis e dopo de mil caminhos. Esta é uma delas.

Foi com estas palavras que comecei um livro intitulado As Pontes de Madison County. Mas, para dizer a verdade, havia duas histórias. As histórias, por vezes, têm de esperar pela sua vez, não vá estorvarem outras coisas que estão em primeiro lugar. Ao longo dos anos, recebi cartas dos leitores de As Pontes, homens e mulheres, adolescentes de ambos os sexos, camionistas, donas de casa, advogados, pilotos e trabalhadores de plataformas petrolíferas. Centenas de cartas, provavelmente milhares, de todo o mundo, com pensamentos amáveis e votos de felicidade.

Uma boa percentagem das pessoas que escreveram queria saber mais sobre Robert Kincaid e Francesca Johnson, sobre as suas vidas, sobre o que lhes aconteceu depois dos quatro dias que passaram juntos em Madison County, Iowa. Vivendo uma vida sossegada, uma existência feliz num rancho remoto em pleno deserto, e tendo retomado os meus estudos de economia, matemática e guitarra de jazz, não sentia necessidade de desenterrar as notas da pesquisa, nem qualquer impulso para escrever mais. Contudo, algures, num dado momento, por razões pouco claras, depois de ler mais uma carta a pedir informação, decidi contar o resto da história.

E questiono-me sempre acerca das improbabilidades, da natureza do acaso. As Pontes de Madison County, uma história insignificante passada numa época insignificante, um livro originalmente escrito como um presente para a família e para os amigos, um livro que nunca tive esperança de que fosse publicado nem tencionava publicar quando o escrevi, existe agora em trinta e cinco ou mais línguas. Um livro que saiu de uma impressora barata, quando eu usava software de cinco dólares num vagaroso computador Zenith 286.

Portanto, para todos quantos o pediram e para quem mais sinta essa curiosidade, aqui vai o resto da história. Para quem não leu As Pontes, é possível que o livro não tenha um valor autónomo. Quem leu As Pontes ficará, entre outras coisas, creio, surpreendido com a alegria inesperada que Robert Kincaid descobriu tardiamente na vida. Pelos vistos, o viajante solitário de terras distantes não estava tão solitário como outrora pensou.

ROBERT KINCAID

 

Portanto:

Faz girar de novo o grande laço,

talvez não tão alto, não tão impetuosamente

como no passado,

mas sempre

com o sibilar

e a percepção

do círculo

sobre ti

e o sol a incidir através do laço,

sombras no solo

onde o grande laço gira

enquanto tudo começa a reduzir-se

às últimas coisas,

às coisas vividas mais uma vez...

...à inevitabilidade e o infindável e sinuoso trajecto desde o lugar em que baloiçaste nas trevas da tua mãe até aqui: as brumas sobre Puget Sound e um lugar no bar de Shorty, nas noites de terça-feira, a ouvir o saxofone tenor de Nighthawk a tocar Autumn Leaves.

Portanto, eis o ponto de situação: chegaste ao fim da linha e continuas só, com o zumbir do frigorífico a sobrepor-se ao som das tuas memórias. Os últimos cowboys e tudo isso. Aqueles que fizeram de ti quem és, agora desaparecidos, esvaneceu--se o arco-íris da tua vida e os sábios do crepúsculo estão mortos. Agora, apenas o som das tuas recordações, o zumbir do frigorífico e o tenor de Nighthawk nas noites de terça-feira.

Poderia ter sido diferente numa vida diferente. Poderia ter dado certo contigo e com a mulher. Ela foi a tua única oportunidade e, no entanto, olhando em retrospectiva para o que se passou, não havia hipótese nenhuma. Sempre o soubeste, é provável que já o soubesses então.

O acto de partir, de abandonar o que ela tinha, só por si tê-la-ia tornado numa pessoa diferente daquela com quem passaste esses dias e essas noites. Tanto a decisão como o acto teriam operado isso. Mesmo assim, terias corrido o risco de tentar resolver as coisas e logo se veria, se ela se tivesse voltado para ti.

Agora, manhã cedo em Novembro de 1981, nevoeiro frio sobre a água. E montes de correspondência sobre a mesa da cozinha que compraste por cinco dólares numa venda de quintal. Transportaste-a para aqui num ferry, há anos, depois de terem demolido o prédio de apartamentos em Bellingham para construir um centro comercial. Envelopes com uma aparência oficial — material do governo — a gente da VA1 e da

 

1 Veteran's Administration (Administração dos Veteranos de Guerra). (N. da T.)

 

Segurança Social sempre à tua procura. Não conseguem perceber que talvez não queiras saber deles, que não queres seja o que for que te queiram oferecer. Esses envelopes com a indicação: «Devolver ao Remetente».

Seja como for, sempre é correio quando pouco mais está na caixa além de publicidade de pessoas tentando convencer--te a comprar coisas que não queres possuir, sistemas de cinema em casa e coisas semelhantes. A pensar: que raio é um sistema de cinema em casa, afinal? E se tivesses dinheiro para comprá-lo, que não tens, o que fazias com ele?

Aos sessenta e oito anos, Robert Kincaid puxou por um suspensório cor de laranja esfiapado e passou a outra mão pelo pescoço de um golden retriever chamado Highway. Acendeu um Camel e aproximou-se da janela. Algures no nevoeiro ou para lá do nevoeiro, o prolongado e distante ronco de um rebocador a manobrar no porto de Seattle.

Kincaid abriu a gaveta de cima de um armário de arquivo de quatro gavetas próximo da janela. As filas de diapositivos nas suas bolsas plásticas, a sua vida nessas bolsas, cinco por fila e vinte por bolsa. A vida de um homem que passara os anos à procura de uma boa luz. Escolheu uma bolsa à sorte e ergueu-a à luz de um candeeiro de leitura. O primeiro diapositivo era de um estivador, em Mombaça, com os músculos salientes e um grande sorriso debaixo de um boné de malha. Seria o ano de 1954, vinte e sete anos atrás.

O segundo era de uma foca da gronelândia bebé a olhar directamente para a objectiva: 1971 e os gelos flutuantes da Terra Nova. Depois, ao longo do estreito de Malaca, homens a fazer-se ao mar num barco de seis remos, para pescar com anzóis iscados, depositando cada vez menos esperança em águas dura e longamente exploradas. Depois disso, um plano estival no País Basco rural. E um Junho frio no mar de Beaufort onde Amundsen outrora navegara. E um tigre a emergir das ervas altas nas margens do lago Periyar na índia meridional. Outra bolsa mostrava uma garça a voar em círculos sobre a água, perto de Port Townsend, a fotografia evocando o som do saxofone de Nighthawk no quarto compasso de «Sophisticated Lady».

Mais. A campesina no México, de pé num campo e a olhar para ele por cima do ombro, com um chapéu de palha descaído e um vestido de serapilheira, o nome e a aldeia nitidamente escritos ao longo de uma margem do diapositivo: María de la Luz Santos, Celaya, México, 1979. Tinha sido a sua última missão de peso para uma revista, uma reportagem fotográfica de baixo orçamento em que ele acabou por usar dinheiro do seu bolso para fazer o trabalho em condições. Pensou no que seria feito de Maria de la Luz Santos, se ainda viveria na mesma aldeia e trabalharia nos campos estivais.

Na bolsa seguinte, o sol a pôr-se lentamente num dia outonal de North Dakota e um rosto rude e tisnado a olhar da janela de uma enorme máquina cor de laranja: Jack Carmine, Ceifeira Debulhadora, campo agrícola a sul de GrandForks, 1975.

Milhares de fotografias no arquivo. Robert Kincaid só guardara as melhores e o seu nível de exigência era refinadamente elevado. O refugo descartado e queimado no processo de selecção. Para cada uma das que guardara, era quase capaz de se lembrar da hora e do lugar exactos e das condições de luz quando premiu o obturador. Até os odores que o tinham envolvido. Periyar evocava-lhe caril, a fotografia basca recordava carne de cabra condimentada. A reportagem de Beaufort tinha sido uma experiência culinária menos interessante, sobretudo tédio da comida de campanha, por vezes peixe, sempre ingerido debaixo de mosquiteiros.

O último diapositivo da bolsa era uma imagem desfocada de falésia e água. Estava a fotografar os penhascos de Acádia, em 1972, e tinha escorregado e caído na areia, de uma altura de quase dez metros, no momento em que premiu o obturador. Guardou a imagem como um símbolo da ousadia e da estupidez e da linha ténue que as separa. O tornozelo partido nunca tinha sarado devidamente, sobretudo porque ignorou as recomendações do médico e retomou arduamente o trabalho antes de o osso ter tido o tempo necessário para se restabelecer. Repôs a bolsa no sítio e apoiou-se na gaveta aberta, com as mãos unidas sobre as pastas, os dedos entrelaçados.

Na parte anterior da gaveta encontrava-se um grande envelope de papel pardo, contendo cartas escritas a Francesca Johnson, ao longo dos anos, mas nunca expedidas. Atrás do envelope estava uma caixa de arquivo com impressões fotográficas. Robert Kincaid retirou a caixa e desimpediu a mesa da cozinha, afastando para o lado pratos sujos, publicidade e cartas da VA com a indicação «Devolver ao remetente». Sentando -se numa cadeira e abrindo cuidadosamente a caixa, colocou os óculos bifocais de aros de metal e retirou uma folha de papel de protecção. Fitou a mulher na fotografia de cima.

Dezasseis anos atrás, Francesca Johnson sorria-lhe, encostada à estaca de uma vedação em Iowa, com os seus velhos jeans e t-shirt. O preto e branco tinha sido a escolha certa para ela, realçava-lhe as linhas do corpo e do rosto, exactamente com a aparência que ela tinha nesse tempo. Da primeira vez que revelou a fotografia, ela surgiu no papel como o fantasma que era do seu passado. Primeiro o papel em branco, depois os contornos suaves do prado, da vedação e de uma figura humana, depois Francesca em alto contraste, ao nascer do dia, numa quarta-feira de Agosto de 1965. Francesca, a avançar para ele de dentro da tina.

Robert Kincaid estudou a fotografia, como já fizera centenas de vezes, ao longo dos anos, desde que lá estivera com ela. A caixa continha mais vinte e seis imagens dela, mas esta era a sua favorita. Nada de rebuscado, apenas Francesca e a manhã, os seios dela contra algodão fino, claramente delineados contra o tecido.

Pôs as mãos na mesa ao lado da caixa, abriu os dedos compridos e delgados e sentiu o contacto da pele dela através do tempo. Sentiu-lhe a forma do corpo, alguma recordação táctil viajando da sua mente às suas mãos, ou o inverso. Sem mover as mãos, apenas a mente, era capaz de passá-las, livre e suavemente, por ela, de cima a baixo ou de um lado ao outro, por Francesca Johnson.

Francesca e a sua única oportunidade de se libertar de todos os momentos solitários, a sua única maldita oportunidade de ter qualquer coisa que não os intermináveis anos de silêncio e solidão, a estrada e o estridor dos motores a jacto a caminho dos lugares em que a luz era boa. Teria abandonado tudo por ela, as viagens e a fotografia, tudo. Mas entre eles interpuseram-se escolhas, escolhas difíceis para ela. E ela tinha tomado a sua decisão, a decisão acertada na sua perspectiva, e manteve-a. Ficou com a família, em Iowa, em lugar de partir com ele.

Céus, como conseguia conjurar tudo, converter imagens em sensações, torná-las nesse momento angustiosamente reais e certas para ele. O seu ventre contra o dela, o arco do corpo dela ao unir-se a ele, o relampejar de uma opressiva noite de Verão através das cortinas do quarto. O doce sorriso dela e o facto de não conseguir parar de tocá-lo, ali na cama, na manhã seguinte, sempre com as mãos nele.

«Se não te tocar, tenho medo que tudo isto desapareça», disse-lhe, sorrindo e encostando-se a ele.

Mas desapareceu na mesma. Desapareceu numa sexta de manhã quando ele se afastou pelo caminho da quinta dela no sul de Iowa, quando o sol abrasava e as árvores estavam imóveis e o mundo palpitava em silêncio. Quando se pôs de pé no estribo de uma carrinha chamada Harry e voltou os olhos para ela, a olhou durante muito tempo antes de conduzir Harry lentamente até à estrada principal. E as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos quando olhou mais uma vez para trás, para Francesca sentada no princípio do caminho, de pernas cruzadas com a cabeça nas mãos, no calor e na poeira de um Verão de Iowa.

Quem diabo diz que os fogos se consomem? Talvez tremulem um pouco, mas nunca se apagam por completo. São velhos mitos, uma questão de conveniência para quem deixa de querer a pressão de uma mulher contra si e todas as responsabilidades que isso acarreta. Olhando para a fotografia de Francesca Johnson, as mãos a moverem-se sobre ela através da distância e dos anos, desejou tudo outra vez, desejou-a nua, a mexer-se debaixo de si e a pronunciar palavras que nem sempre entendia, mas que entendia na mesma. Sentiu-se começar a endurecer e sorriu. Só a ideia dela ainda o punha assim.

Robert Kincaid retirou a carteira do bolso da frente dos jeans e extraiu um pequeno pedaço de papel dobrado. O papel estava manchado e meio desfeito por ter sido mil vezes desdobrado e terem sido mil vez lidas as palavras de Francesca Johnson, que incluíam uma citação de W. B. Yeats.

 

Se quiseres vir outra vez jantar quando «as mariposas estão em pleno voo», aparece logo à noite quando ficares livre. Qualquer hora é conveniente.

A caligrafia dela de um Verão distante em que Agosto fora escaldante e assim continuara e ele bebericara chá gelado na modesta cozinha da casa da quinta dela. Mais tarde, nessa noite, ela prendeu o convite à ilharga de uma ponte coberta, Roseman Bridge, em Madison County, Iowa.

Só conversar com ela, voltar a dizer o que sentia, como toda a sua vida tinha sido plena durante alguns dias. Agradecer-lhe, quanto mais não fosse, olhar para ela, voltar a ver o seu rosto. Um momento para poder dizer que ainda estava por ali e que continuava a amá-la. Não era possível e nunca seria possível, ela com família e tudo. Reclinou-se, passou as mãos pelo cabelo grisalho que estava, como habitualmente, desgrenhado, batendo cinco centímetros abaixo do colarinho da camisa. Últimas coisas, coisas vividas mais uma vez, e a estrada sempre aí. Os últimos cowboys deviam poder girar novamente o grande laço. Deviam fazê-lo. Montar o cavalo estafado até ele cair, deixar o teu percurso truncado acabar com a tua morte.

Acocorado ali com o nevoeiro sobre a água, o nevoeiro à porta, e as pegadas de todos os anos que carregava no corpo. Acocorado à beira de... de quê? De nada.

Serviu-se de uma chávena de café, aproximou-se do armário e abriu-o. Nas prateleiras estava o seu equipamento: as cinco objectivas com as capas, guardadas em estojos de couro macio, as duas Nikon F e a câmara telemétrica, embrulhadas em tecido grosso. Os instrumentos de um profissional, velhos instrumentos, velhos e gastos, arranhados e marcados por botões metálicos e fechos de correr, por areia e pedras sopradas pelo siroco nos Irish Barrens, pelos atropelos e fricções de quilómetros no Harry e em jactos transcontinentais a caminho de África ou da Ásia ou de outro lugar qualquer.

No congelador do frigorífico estava o seu último rolo de película Kodachrome II, índice de exposição de 25. Quando deixaram de o fabricar, comprou quinhentos rolos e manteve-os congelados, racionando-os e acarinhando-os, guardando-os para uso pessoal enquanto as revistas adoptavam o Koda-chrome 64.

Foi, pois, aqui que tudo chegou, como ele sempre soube. Nevoeiro sobre a água, nevoeiro à porta e o seu último rolo de filme. A essência: sangue, carne e osso e ideias na cabeça, tudo desfeito em cinzas, chegado o fim das coisas. Nada mais, e impossível de mudar, o grande ímpeto daquilo que foi inabalavelmente escrito no princípio de tudo e guardado pelos Zeladores do rumo que as coisas tomam. Que vida estranha, solitária, silenciosa! Desde o início que assim foi e assim continuou. Excepto durante esses dias radiosos, esses quatro dias, em 1965.

Para chegar a isto, depois dos anos a palmilhar os penhascos de Acádia e as praias do Corno de África, depois de crepúsculos numa aldeia alpina onde o universo faz suavemente sentido, o riso nada em lagoas na selva com a filha de um negociante de sedas, o riso dela a afastar o silêncio por um instante apenas.

E sempre, sempre consciente do uivo do tempo, do esvaimento e da extinção desta estranha coisa chamada vida, da compreensão de que tudo foi absolutamente transitório. Trabalhar, comer, caminhar direito e, mais tarde, cambalear. Assistir ao fim de tudo num arquivo de quatro gavetas de emulsões tão passageiras como tu. Só as imagens permanecem, testemunho secreto das tuas celebrações anteriores.

 

A Índia

ou o Corno de África,

ou o Estreito de Malaca,

sempre a mesma coisa:

homens na areia,

ou a manobrar barcos

nas ondas costeiras.

Alguns partem

enquanto outros observam.

Amanhã

fá-lo-ão

... novamente.

 

Uma vez ocorrida, a ideia recusava-se a abandoná-lo. Aproximou-se da janela e olhou para o nevoeiro. Até a manhã parecia cansada, embora tivesse acabado de romper.

Robert Kincaid abriu uma gaveta da cozinha. Três cheques por levantar de enfadonhas sessões fotográficas em escolas e exposições de arte, num total de 742 dólares. Os dias de glória tinham acabado, como as longas reportagens errantes para a National Geographic que o tinham levado para onde quer que a luz fosse boa.

Mais oitenta e sete dólares em notas. A lata do café cheia de trocos tinha talvez mais cinquenta. O novo motor da Harry só percorrera cento e oito mil quilómetros. Não dar nas vistas, viajar com pouca bagagem, dormir na carrinha, se necessário. Podia fazer isso, podia lá ir mais uma vez, ele e Highway.

— Então, Highway, achas que devemos? Ir lá, visitar Roseman Bridge, recordar uma série de coisas passadas? Só isso, ir simplesmente ocupar o espaço dela outra vez. É melhor do que estar aqui de braços cruzados cheio de autocomiseração, a assistir ao que o Outono faz às folhas e às borboletas, a chorar o que nunca há-de acontecer.

Highway, a arfar levemente e a abanar a cauda, foi sentar-se ao lado de Robert Kincaid.

— Gostava de saber que aspecto ela tem agora. Achas que mudou muito?

Os pinheiros lá fora, envoltos na neblina, a pingar. Pancada da cauda do cão no soalho de pinho. Nova pancada.

Vive-se sozinho durante quase sessenta e oito anos, por opção e por acidente, e os pensamentos enovelam-se em si mesmos porque não há mais ninguém para escutá-los ou para compreendê-los se os escutasse. Mas um dia acabam por correr de um modo aleatório do pensamento para a língua. Como se o mecanismo cerebral não pudesse mais conter-se no silêncio e as palavras tivessem de sair para dar lugar a outros pensamentos.

Um dia ou dois, horas talvez, de absoluta solidão, a mover-se através de um silêncio contínuo, são suficientes para desatar o processo na maioria das pessoas. Ele falava consigo mesmo enquanto planeava uma fotografia que pretendia tirar ou enquanto cozinhava as refeições, tartamudeando a propósito de tempos de exposição ou de especiarias, de máquinas fotográficas ou de queijo. O cão transformara-se num recipiente prazenteiro dos pensamentos exteriorizados de Kincaid e, que se dane o significado, contentava-se apenas com o som das palavras que lhe eram dirigidas, directa ou indirectamente.

— Os filhos hão-de estar crescidos, se calhar já saíram de casa. Seja como for, não podia arriscar-me a vê-la. Ficava sem saber o que fazer se a visse. Também não sei o que ela faria. É, às tantas foram só esses quatro dias e ela já se esqueceu de tudo. Uma mera recordação em que às tantas já nem gosta de pensar.

Mas Robert Kincaid sabia perfeitamente. Ele e Francesca Johnson estariam ligados um ao outro enquanto as suas memórias o permitissem. Nunca duvidou realmente disso. Por todas as estradas que percorrera nos últimos dezasseis anos, ela acompanhou-o. Sabia, tinha a certeza de que tinha de passar--se o mesmo com ela. Mas, por vezes, a dor era mitigada se imaginasse que ela deixara de pensar nele, tornava mais fácil suportar o aperto no peito quando pensava nela.

Atrás dele, o frigorífico ressuscitou com um grunhido e Robert Kincaid fumou outro Camel, tossiu duas vezes e olhou para a manhã diante de si. Evocou a velha cozinha da casa da quinta de Iowa. Como a derradeira e quase infalível testemunha que fora da vida em geral, o olho natural e treinado do fotógrafo como uma câmara autónoma, ainda era capaz de vê-la, a cozinha, os pormenores. O linóleo estalado e a mesa de fórmica, o rádio ao pé do lava-loiça e as mariposas em redor da luz.

E Francesca ali, a olhar para ele, com o seu vestido rosa e sandálias brancas. Francesca Johnson, correndo o maior risco da sua vida e inclinando-se para ele e ele para ela. Se o pecado existe, o deles foi recíproco, equitativamente dividido e compartilhado. Nessa noite, ele ficou ali, encostado ao frigorífico dela, a contemplá-la, a olhar para o ponto onde a bainha do vestido repousava sobre a coxa da sua perna fina e morena. E, depois, o impulso insistente das velhas sensações — louvemo-las e amaldiçoemo-las em simultâneo — as velhas sensações a levar a palma e os tangos da rua a soar à distância, mas a aproximar-se.

As velhas sensações, enredadas nos lençóis da cama ensarilhados de uma noite quente de Verão e a deslizar no suor do ventre de Francesca e pelas suas faces e seios, e o suor nos ombros e no rosto dele, e também nas costas e no ventre. As velhas sensações e as suas doces verónicas, o movimento rasgado da capa escarlate do toureiro e o clamor de multidões distantes incapazes de ver a tourada, mas mesmo assim a aplaudir. Todos os anos dela de desejo reprimido, e os dele também, os dois atingindo simultaneamente o clímax vezes sem conta enquanto as velas pingavam e a chuva ia e vinha e uma alvorada receosa banhava o campo do sul de Iowa.

Ao nascer do sol, ele tinha-a levado para o prado e pedido que se encostasse à estaca de uma vedação. E aí transformou-a numa imagem a preto e branco, que estava agora numa caixa numa mesa, numa outra cozinha, numa manhã nebulosa em Seattle.

Fazer girar de novo o grande laço. Harry estava molhada e cheirava a tabaco. A mesma rotina, deliberadamente a mesma como há dezasseis anos atrás. A mala entalada contra o pneu sobresselente na caixa da carrinha e amarrada com um pedaço de corda da roupa. Sem guitarra desta vez; havia anos que não tocava. Reconsiderou, voltou à cabana e retirou a guitarra do seu espaço ao lado do frigorífico. Como o estojo estava coberto de bolor e era difícil dizer em que estado estava a guitarra, nem se deu ao trabalho de abrir o estojo. Encolheu os ombros e levou-a para a carrinha, amarrando-a ao lado da mala e estendendo um oleado por cima da guitarra e da mala. A guitarra tinha emitido um ténue som átono, do interior do estojo, quando apertou a corda com força, como se pudesse deixar-se convencer a tocar de novo se fosse arrancada à escuridão, afinada e afagada.

Noutro tempo, Robert Kincaid teria descido de um salto da caixa da carrinha, mas agora sentou-se na traseira e deslizou suavemente para o solo, pousando primeiro a perna boa e depois a outra que podia ceder se não tivesse cuidado.

Só uma mochila com uma Nikon F e apenas uma objectiva — a sua preferida, de 105 milímetros — e o seu único rolo de Kodachrome II. Esse único rolo de película para uma expedição chamada Última Vez.

Garrafa-termo, câmara, mala, três volumes de Camel, uma grade de cerveja chinesa que tinha encontrado à venda numa loja da zona portuária. Saco-cama velho. Se começasse a ficar sem dinheiro, podia ter de dormir na carrinha. O exemplar amassado de As Verdes Colinas de África, o livro que levou consigo em 1965, e que nunca mais leu. Inspeccionou a sua figura: as botas militares Red Wing com o seu quarto par de solas, jeans desbotados, camisa caqui e os suspensórios cor de laranja. A parka de montanha castanha-clara atrás do assento, com um bolso rasgado e uma nódoa de café na manga direita.

O uniforme inalterável e funcional de um nómada de trouxa às costas.

Highway no banco ao seu lado. O frasco de água e o prato de metal de Highway no chão, do lado do passageiro, junto a um saco de comida para cão, e a lata do café cheia de trocos.

Um percurso alternativo, porém. Manter-se afastado do frio nocturno que, nesta época do ano, estaria a instalar-se na remota região nordestina. Na verdade, nenhum percurso em particular, pois já não fazia qualquer sentido fazer planos. Para começar, para sul em direcção ao Oregon, a seguir para a Califórnia, e depois para leste. Iowa não ia mudar de lugar, tanto quanto sabia, e uma direcção geral para leste a partir da Califórnia do norte servia perfeitamente.

Talvez atravessar South Dakota nas calmas e visitar novamente os Black Hills, como na sua última viagem a Madison County, Iowa. Tinha lá voltado em 1973 e tirado fotografias numa estação arqueológica para uma reportagem, um dos seus últimos trabalhos para uma publicação de renome. Talvez o velho intratável que lhe tinha servido de guia ainda por lá andasse. Talvez parar para o cumprimentar, ir até à taberna, de cujo nome não se lembrava, ouvir o acordeonista se ele ainda lá tocasse. Robert Kincaid sentou-se direito no banco da carrinha e olhou através do pára-brisas, deixando-se impregnar da sensação de tudo o que estava lá fora e de tudo o que nunca vira.

— Sabes, cão, estou a ficar um tanto cansado desta depressão em que me deixei cair. Tu também, se calhar. Numa lamúria constante sobre as velhas sensações e os velhos tempos, a arrastar-me por aqui a ver arquivos das coisas que eu fazia e que eu era. A amaldiçoar o barbarismo da senescência, a desistir e a fazer da minha vida uma autêntica cagada. Nem parece meu. A realidade é uma coisa, mas da extinção gradual dos sonhos à morte lenta só vai um passo.

Calou-se por um momento e olhou para o cão. — Alguma vez ouviste esses versos maravilhosos do outro Cummings? Não o nosso amigo Nighthawk, mas Mr. e. e. cummings que gostava de escrever o nome com letras minúsculas. Deixa ver... bem, não me lembro deles todos... qualquer coisa a propósito de médicos e casos desesperados e mundos melhores noutro sítio se fôssemos à procura deles.

Sorriu ao cão: — Volto já.

Na cabana, Robert Kincaid tirou uma mochila do seu lugar na prateleira do armário e pegou num tripé Gitzo amolgado, encostado à parede do fundo atrás das quatro camisas lá penduradas. Vasculhando no chão do armário, descobriu um pólo de lã preta que tinha comprado na Irlanda há anos e embrulhou o Gitzo na camisola. O seu colete de fotógrafo estava pendurado numa cruzeta. Pegou nele e vestiu-o.

Do armário da cozinha tirou câmaras e acessórios que enfiou na mochila, embalando cada um deles meticulosamente no sítio respectivo. Ainda tinha quarenta e três rolos de película Tri-X a preto e branco, numa gaveta, espalhados por cima de uma placa de uma reputada revista fotográfica:

 

A ROBERT L. KINCAID

EM RECONHECIMENTO DE UMA VIDA DE EXCELÊNCIA

AO SERVIÇO DA FOTOGRAFIA

Animus non integritatem sed facinus cupit

O coração não aspira à pureza, mas à aventura

Meteu os rolos num saco de plástico, olhou em volta, colocou o tripé com a camisola num ombro e a mochila no outro. Fechando a cabana à chave, teve o cuidado de não deixar o guarda-vento bater ao fechá-lo.

Novamente na carrinha. — Pronto, cão? — perguntou e pôs o motor a trabalhar. — Vamos lá ver o que podemos ter perdido entretanto.

Um sol débil debatia-se com o nevoeiro matinal enquanto Robert Kincaid atravessou, no ferry, o Sound até à terra firme da baía de Elliot. Água levemente encrespada. Meteu por ruas periféricas, circulando ao longo do porto, passando pelo parque onde se sentava por vezes com Nighthawk num banco e onde contavam um ao outro o que acreditavam ser a verdade sobre as suas vidas. Em Olympia, levantou os cheques da escola e mandou um postal a Nighthawk, a dizer que estava de partida e que o veria dentro de duas semanas. Os velhos preocupam-se uns com os outros e o seu amigo Nighthawk podia estranhar e afligir-se.

Decidiu enveredar pelas estradas costeiras para sul e virar para oeste próximo de Maytown, por campo raso, o seu género de relevo, estradas secundárias e pequenas vilas. Highway, com a cabeça de fora da janela e as orelhas a bater ao vento.

E assim foi que, em Novembro de 1981, reduzido às últimas coisas e às coisas vividas mais uma vez, apanhado entre os cantos da rede, Robert Kincaid fez girar novamente o grande laço e rumou a Iowa, às pontes de Madison County.

 

FRANCESCA

Francesca Johnson não se sentia velha e não aparentava os sessenta anos que tinha. Os amigos diziam-lho com frequência, como o tempo tinha sido excepcionalmente indulgente para com ela. O seu cabelo preto nunca tinha embranquecido, para além das raras farripas que surgiram aos quarenta anos, a sua figura conservava as proporções.

Richard tinha feito a mesma observação. «Frannie, enquanto nós todos simplesmente envelhecemos, acho que tu nunca vais mudar muito.»

Mas ela tinha, evidentemente, mudado. Olhando-se ao espelho da cómoda, sabia que a roupa disfarçava bem o longo processo de declínio. Mesmo assim, uma boa dieta e uma boa atitude, chapéus de abas largas e a caminhada diária, uma caminhada que, por vezes, a levava a fazer os mais de seis quilómetros até Roseman Bridge e a volta, mantinham-na em forma. Mais do que isso, havia sempre o pensamento de que talvez voltasse a vê-lo, de que Robert Kincaid pudesse, de alguma maneira, voltar para ela. E talvez mais do que qualquer outra coisa, isso alimentava o desejo de se manter o mais fiel possível à sua imagem de outrora. Queria que ele a reconhecesse, queria que ele a desejasse tanto como desejara todos esses anos atrás.

A sua bitola era um vestido rosa-claro que comprou em 1965. Durante os últimos dezasseis anos, experimentava-o ocasionalmente. Quando parecia estar um pouco apertado, esforçava-se afincadamente por perder peso até o vestido lhe assentar com leveza e naturalidade. Com ele posto, rodava lentamente diante do espelho do quarto, sorria e dizia ao seu reflexo: «É o melhor que consigo, mas não está nada mal para uma rapariga do campo». Depois, enchia as bochechas de ar e ria baixinho das suas palavras de congratulação pessoal. E o vestido dobrado era novamente embrulhado em plástico e colocado numa das prateleiras de cima do armário.

Richard tinha morrido no ano anterior e a quinta já não era a mesma coisa. Gado vendido, terra arrendada. Os filhos crescidos, já partidos para onde os filhos partem quando chega o momento. O dinheiro não abundava, mas chegava para sobreviver com a renda das terras, as poupanças e o pequeno seguro de vida de Richard.

E agora Richard jazia no cemitério de Winterset, ao lado dos pais. As solenes filas cada vez mais compridas com pais e filhos em linha, marcas na terra para assinalar o fim das coisas. Richard tinha comprado duas campas, partindo do princípio de que Francesca seria enterrada ao seu lado. Enganou-se nessa presunção, como revelariam ocorrências posteriores.

Richard. O terno e bondoso Richard. Inquestionavelmente decente, carinhoso até, à sua maneira desastrada. Mas não fora suficiente para ela. A Francesca que Richard conhecera ao passava de camuflagem, da superfície de outra mulher que escondia atrás da mulher cumpridora e da mãe extremosa.

Tantas camadas, tantas mentiras, por assim dizer. Uma mulher inteiramente diferente da que estrelava ovos e virava o bacon na frigideira, de manhã, enquanto Richard ouvia as informações comerciais matutinas no rádio da cozinha. O mesmo rádio que tinha passado Tangerine e Autumn Leaves, numa noite tórrida de Agosto, em 1965, enquanto ela dançava na cozinha com o homem chamado Robert Kincaid, que tinha irrompido na sua vida como um vento estival com um propósito só seu.

Ali de pé, junto do fogão, pensava: meu Deus, se ele soubesse. Se Richard soubesse o que se tinha passado naquela cozinha. Seria capaz de imaginá-la ali, no passado, nua e a fazer amor com um fotógrafo cabeludo de um outro lugar? Guardanapos de papel a flutuar pela cozinha e a voar até ao chão enquanto Robert Kincaid a deitava sobre a mesa? Não. Nunca passaria sequer pela cabeça de Richard. Tantas mentiras e mentiras, tantas camadas, por assim dizer.

Mas Richard pressentia tudo. As suas palavras no leito de morte, um som abafado e arranhado vindo do fundo da garganta, algumas horas apenas antes de perder a consciência: «Francesca, eu sei que também tiveste os teus sonhos. Sinto muito por não os ter realizado».

Nesse momento, a custo, com quase tudo o que restava da sua força, Richard moveu a mão lentamente pela cama de hospital, quando disse essas palavras, e ela viu nos seus olhos húmidos e envelhecidos que ele tentava dizer mais do que as suas palavras exprimiam. Pegou na sua mão grande e rude e pousou o rosto nela, lamentando nesses instantes, só nesses instantes, o que fizera com Robert Kincaid. E lamentando igualmente que Richard nunca viesse a saber o que se escondia no seu âmago, tão fundo que ela própria quase não tivera consciência até o homem chamado Kincaid ter invadido a sua vida.

Seja como for, apesar de tudo o que não era e nunca seria, Richard Johnson soubera mais do que ela imaginara. Sabia qualquer coisa que o magoava intensa e profundamente, sabia que não entrava nos sonhos de Francesca, que fora casado com ela durante mais de trinta anos e que, mesmo assim, nunca seria capaz de tocar a mulher para além da mulher exterior que partilhava a sua vida de trabalho e lhe dera filhos.

A velha casa estava silenciosa. Francesca desdobrou a última edição de The Madisonian e leu as notícias sobre as andanças das gentes da terra, virando as páginas que noticiavam jantares da igreja e jogos de futebol de fim de época, matrimónios, nascimentos e mortes, os acontecimentos de um mundo em que vivia há trinta e seis anos e em que continuava a não se sentir integrada.

Seis meses depois de Marge Clark morrer, Floyd tinha-a convidado para jantar. Apresentou delicadamente as suas desculpas e declinou o convite. Ele voltou a convidá-la, por ocasião da feira do condado, falando da avaliação de vitelos e do churrasco. Ela procurou ser simpática com ele, desculpando--se novamente com o facto de estar ocupada e ter os filhos de visita. Floyd Clark não voltou a convidá-la. Mas era cortês quando os seus carrinhos das compras se cruzavam na loja de Fareway. Floyd estava a perder cabelo e tinha ar de quem sentia a falta da comida de Marge.

Pousou o jornal e tirou os óculos, contemplando demoradamente os campos de Outono cobertos de restolho, deixando Robert Kincaid vir-lhe à ideia. Ele estava sempre presente embora, em certos momentos passageiros, em certos dias passageiros, parecesse não ser mais do que uma fantasia que ela imaginara tantas vezes que se tornara real. Mas havia as fotografias dela que ele lhe enviara e as fotografias dele e tiradas por ele na National Geographic.

Perguntou a si mesma se ele continuaria a andar na estrada ou se se teria fixado num lugar qualquer. Por vezes, olhava para a esteira de um avião a jacto e imaginava Kincaid nas alturas, rumo a Jacarta ou a Nairobi. Talvez pudesse ter viajado para noroeste à procura dele. Ou talvez fosse melhor limitar-se a viver com o que recordava dele. Talvez esses quatro dias que tinham vivido juntos fossem tudo quanto estavam destinados a possuir.

Podia tê-lo encontrado e, depois de alguns olhares inquiridores e de dar voltas à memória («Ah, pois, a mulher de Iowa no tempo das pontes cobertas»), ele se mostrasse educado e plácido, como era típico dele. Talvez tivessem tomado café num restaurante e conversado durante alguns minutos antes de ele olhar para o relógio e se desculpar, invocando que tinha de fazer isto ou aquilo.

E ela teria ficado ali sentada sozinha, num reservado de vinil vermelho, desejando nunca ter partido à sua procura. E vivendo, a partir de então, com a tristeza de saber que não passara de um interregno agradável e passageiro na vida de um nómada. Vivendo, a partir de então, com a destruição de tudo o que a tinha sustentado ao longo dos anos. Vivendo, a partir de então, no silêncio de uma vida amorfa.

Não. Não era verdade. Tinha a certeza disso, quase sempre. Mas tinha acontecido há muitos anos e, se não fossem as fotografias na National Geographic, sabia que o seu rosto teria perdido a definição na sua recordação dele. Contudo, eram fotografias velhas e podia até nem o reconhecer. Ele teria sessenta e oito anos. O leopardo aos sessenta e oito anos, era difícil de imaginar. Podia estar doente ou, por qualquer outra razão, diminuído e não havia de querer que ela o visse assim.

Francesca subiu ao quarto e tirou o vestido cor-de-rosa da prateleira do armário onde o guardava. No canto do quarto, estava o gira-discos que Carolyn deixara ficar. Com o vestido cor-de-rosa posto, baixou a agulha do fonógrafo, escutou novamente Autumn Leaves e mirou-se ao espelho, sorrindo e recordando o homem chamado Robert Kincaid que a amara mais do que alguma vez podia ter imaginado ser amada.

Eram horas do seu passeio a pé. Vestiu umas jeans e uma camisa de ganga e desceu as escadas, olhou de relance para o calendário e lembrou-se de que estava a chegar o seu aniversário.

E enquanto estivera a rodar diante do espelho, Robert Kincaid estava a chegar ao Oceano Pacífico, seguindo calmamente viagem na velha carrinha chamada Harry, contemplando a paisagem rural e conversando com um cão chamado Highway. Ao aproximar-se da água e ao virar para sul, Robert Kincaid, escritor-fotógrafo, ou pelo menos assim se intitulara noutro tempo, flectiu o tornozelo doente e voltou a desejar, como já desejara vezes sem conta, todas as coisas que nunca aconteceram.

 

CARLISLE MCMILLAN

Através das curvas e ziguezagues de uma vida um tanto irrequieta, Carlisle McMillan fixara-se em Yerkes County, na região ocidental de South Dakota. A forma tortuosa como. chegou a esse lugar desolado e os acontecimentos extraordinários em que acabou por se ver envolvido — o que veio ai ser conhecido como a Guerra de Yerkes County — constituem, todavia, uma história que fica para outra ocasião.

Por agora, basta dizer que Carlisle McMillan era um mestre carpinteiro que tinha aprendido o ofício com um velho na Califórnia do norte. Cansado da vida citadina, deprimido com o declínio da sua arte e da sua auto-estima causado por trabalhos em projectos de habitação atamancados, Carlisle tinha pegado nas suas poupanças e tinha-se lançado numa viagem interminável e incerta pela América. Em Yerkes County, encontrou o que procurava, um lugar o mais remoto possível em relação à investida de um mundo que não compreendia ou que, com o avanço do tempo, não se preocupava muito em compreender. Passou o primeiro ano da sua vida em South Dakota a reconstruir uma casa antiga num terreno de doze hectares, quase catorze quilómetros a norte de uma vila a que chamaremos Salamander.

Como acontece com a maioria das vidas, a sua tinha sido moldada pela contingência e pelo desígnio, pelo acaso e pela astúcia, em medidas iguais. Uma decisão aqui, outra ali. Algumas

boas, em retrospectiva, outras más. Os resultados das suas opções, determinadas por um esforço racional, fundiam-se com ocorrências imprevistas, que vinham abater-se-lhe sobre os ombros, nos dias em que menos as esperava. Por outras palavras, os sobressaltos de uma existência comum.

Noutra palavra, a incerteza.

E tinha, desde o princípio, vivido com mais incertezas do que a maioria das pessoas. Trinta e cinco anos antes tinha nascido filho ilegítimo de uma mulher chamada Wynn McMillan e de um homem cujo apelido ela nunca soube ou não conseguia recordar. Do pouco de que a mãe se lembrava e lhe contou, não possuía mais do que uma imagem vaga e inconsistente do homem que fora seu pai.

Assim, nas suas cogitações de infância e até de anos mais tardios, apenas via o homem como uma silhueta sombria e recortada sobre uma motorizada potente, uma das grandes, concebidas para longas viagens. A silhueta circulava pela estrada principal a sul de Carmel, iluminada de trás por um sol poente, a atravessar uma ponte alta onde o Pacífico penetrava fundo nos penhascos. E a mulher atrás do motociclista? Os braços dela a cingir-lhe a cinta, o cabelo a esvoaçar para trás com o vento? Essa terá sido a mãe de Carlisle McMillan há muito tempo atrás.

Ela e o homem estiveram juntos alguns dias apenas, mas foi o bastante. O bastante para gerar um menino chamado Carlisle.

Ela recorda que sentiu a areia quente contra as costas onde se deitou com ele. Nunca esqueceu isso, de como a areia estava quente no fim de Setembro. E recorda os seus modos estranhos e discretos. Modos obsessivos, quase, alguns dos mesmos traços que mais tarde veio a reconhecer no filho.

Disse que os movimentos dele evocavam os de uma gaivota, que ele sabia coisas secretas e ouvia ténues fragmentos de música de um passado distante que era exclusivamente seu. Contudo, o seu apelido escapava-lhe. Acha que ele lho disse uma vez, mas estavam sentados em redor de uma fogueira à noite, aturdidos no limbo das suas vidas, a beber cerveja caseira. E não se recorda.

Como ela disse um dia: «Naquele tempo, os nomes não pareciam importantes. Sei que deves ter dificuldade em compreender, Carlisle, mas era assim que pensávamos. Sofro com isso, mais por ti do que por mim».

E era esse o esboço da história. Ela contou-lha quando ele tinha doze anos, estavam ambos sentados nos degraus da frente da casa alugada de Mendocino. Ela pôs os braços à volta do rapaz franzino e reservado e encostou a sua cabeça à dele enquanto falava, o cabelo acabado de lavar sobressaindo naquela mistura de fragrâncias maternais. Ele escutou e amou-a pela inabalável honestidade com que falou, pela felicidade que experimentava por tê-lo trazido ao mundo, até pelas sugestões exaltadas de abandono místico e sexual que ela transmitia ao falar sobre esse homem, embora, com a idade que tinha, fosse difícil para Carlisle imaginar coisas desse género, particularmente as que envolvessem a mãe.

Tudo isto era bom, a honestidade e a afeição dela, mas não chegava. Nessa época, Carlisle McMillan desejava secretamente um pai, um homem que pudesse transmitir-lhe a segurança de que todos os sentimentos confusos e poderosos que se debatiam dentro de si podiam um dia ser sintetizados num homem adulto, coerente e útil.

E, durante muito tempo, viveu com raiva. Raiva pela ambiguidade, por Wynn McMillan ter copulado casualmente com uma criatura indistinta que depois partiu para norte, através das árvores que se coloriam de um Outono perdido no tempo, e simplesmente desapareceu. Foi precisa a experiência da vida, alguma reflexão, para acabar por se reconciliar, ainda que de um modo frágil, com tudo isso. Bem, com quase tudo.

A mãe e o homem tinham-se conhecido no Outono de 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Estava tudo mergulhado num estado de confusão estonteante que emanava do doce vapor da vitória aliado às vidas adiadas e às paixões temporariamente suspensas. Se se juntasse tudo isso à alegre improvidência da vida boémia de Big Sur, aos poetas e aos artistas, incluindo Henry Miller, acabado de chegar de Paris, a percorrer, corcovado, a estrada desde Partington Ridge e a impingir as suas aguarelas, tornava-se compreensível. Quando fez trinta anos, já Carlisle tinha concluído que provavelmente teria feito o mesmo.

Seja como for, a ambiguidade persistia, a sensação de estar incompleto e a curiosidade acerca da cadeia particular do banco de genes de que provinha. Havia quem dissesse que ele tinha traços índios, as maçãs do rosto e o nariz proeminente, e o cabelo castanho comprido que às vezes atava com uma fita vermelha, ao estilo apache. A ideia não lhe desagradava, embora não tivesse maneira de confirmar a sua veracidade. Quando as pessoas perguntavam: «Tens sangue índio?», ficava em silêncio, encolhendo os ombros e deixando-as tirar as suai próprias conclusões.

E havia o tamborilar. Era como lhe chamava. Tinha corneçado cedo e acompanhou-o ao longo dos anos. Qualquer coisa antiga e profunda, de fonte desconhecida. Sinais intermitentes, ténues e distantes, talvez das hélices do seu ADN, que surgiam quando se instalava dentro de si a tranquilidade, sinais que eram mais fáceis de sentir do que ouvir. Como se alguma coisa peluda brincasse com uma tecla de telégrafo poeirenta na estação ferroviária de uma cidade fantasma: batimento... pausa... batimento... pausa... batimento, batimento... repetição da sequência.

Este era um dos padrões; havia outros. Inicialmente, pareceu-lhe implausível, quimérico talvez, mas imaginou que o pai lhe enviava uma mensagem estrangulada através dos vasos sanguíneos. Pensou no assunto neste termos: O meu pai, enquanto pessoa, não sabe que eu existo, mas os códigos genéticos dele sabem porque fazem parte de mim. Os códigos sabem que eu existo, a espécie sabe que eu existo. Pertenço à espécie dele e transporto a sua impressão genética. Portanto, de algum modo, ele sabe. A lógica era um tanto obscura, mas fazia sentido se ele não insistisse muito.

Assim, Carlisle passou a acreditar que o pai estava de volta, ali, em algum lugar, e escutava quando os sinais começavam. Escutava atentamente e respondia-lhes. «Quem és, pá? Porra, aumenta o volume, continua no ar. Fala-me de ti para eu saber mais sobre mim. Que é que eu sei que não sei que sei?» Mas os sinais eram ténues, começando a extinguir-se mal principiavam e ele sentia-se sempre ligeiramente abandonado e com pena de si mesmo a seguir.

Em lugar de um pai que existiu mas nunca existiu e, subsequentemente, de um padrasto com quem nunca estabeleceu uma relação, Carlisle encontrou um carpinteiro de idade, chamado Cody Marx, que se tornou um pai substituto. E com Cody Marx, Carlisle McMillan tinha aprendido o ofício de carpinteiro e uma atitude, a pulsão para fazer bem as coisas. Trabalhar sempre dentro de tolerâncias limitadas, costumava Cody dizer.

Um ano depois de se radicar em Yerkes County, com a casa praticamente concluída, Carlisle sentou-se a um pequeno cavalete que tinha construído com madeira de refugo e escreveu à mãe.

 

14 de Outubro

Olá Wynn,

Espero que estejas bem. Tens estudantes de violoncelo novos? Continuas a trabalhar na galeria de arte? A casa ficou muito bonita, como sempre graças ao que aprendi com o Cody, e tenho arranjado algum trabalho por fora. De facto, muito trabalho por fora. Há por aqui edifícios antigos com madeira bem curada nas vigas e fachadas e os agricultores, que parecem, na sua maioria, preferir construções metálicas, não se importam que eu fique com ela só a troco da demolição e transporte dos materiais em bom estado, juntamente com o entulho. Tenho arranjado montes de madeira excelente e antiga.

Embora tenha ameaçado fazê-lo durante anos, talvez tenha chegado a altura de procurar alguma pista sobre o meu Pai. Sei que já passaram muitos anos, mas tenta outra vez, pensa bem. Qualquer coisa de que consigas lembrar-te ajuda. Ele disse para onde ia depois de partir de Big Sur? Recordas-te de que marca era a motorizada que tinha? Uma vez disseste que tinha estado nas Forças Armadas na Segunda Guerra Mundial. Em que ramo?

Dá os meus cumprimentos a Mrs. Marx. A propósito, chegaste mesmo a conhecer o Henry Miller?

Um beijo.

Carlisle.

 

MAIS UMA VEZ, O VIAJANTE

O ruído surdo dos pneus de borracha e das árvores a desfilar, como se se movessem e Harry estivesse parada. Sabia bem andar de novo na estrada, apesar de as baixas formações nebulosas mergulharem tudo na obscuridade e despejarem uma chuva miudinha.

Numa área de descanso, imediatamente a norte do rio Columbia, Robert Kincaid fez uma paragem. O tornozelo doente tinha ficado perro nas últimas duas horas e precisava de exercício. Highway saltou para fora e começou a farejar a erva, as árvores e as mesas de piquenique, levantando a perna para marcar território que nunca mais veria.

Kincaid caminhou lentamente pela erva húmida, baixou--se e massajou o tornozelo, caminhou um pouco mais até o sentir mais flexível e quase normal. Quinze minutos mais tarde, emitiu um assobio baixo para informar Highway que eram horas de se preparar para partir. Abriu a porta do passageiro para o cão, deixando-o saltar para dentro da carrinha, e deu a volta até ao lugar do condutor, para onde entrou facilmente com uma longa passada como fazia havia quase três décadas. Se não fosse o maldito do tornozelo e as tonturas inesperadas que tinham começado a aparecer nos últimos meses, Robert Kincaid ter-se-ia sentido em quase tão forma como há vinte anos atrás, e continuava rijo e magro fruto do exercício e de uma dieta de manutenção.

De início, ignorou as tonturas, imaginando que eram uma recorrência do que tinha apanhado na índia anos atrás, um vírus que afectava o ouvido interno. Durante esse achaque, esteve quatro dias acamado, numa aldeia a sul de Mysore, sofrendo de vertigens e incapaz de se aguentar em pé e de rastejar até a um buraco no chão que servia de sanita.

Há dois meses, um médico de Seattle tinha enfiado as mãos nos bolsos da bata e olhado para Robert Kincaid que estava sentado na marquesa. Kincaid não consultava o médico desde que partira o tornozelo nove anos antes.

«Não sei ao certo o que está a causar-lhe tonturas. Possivelmente é labirintite, que foi talvez o que contraiu na índia. Contudo, esse problema parece ter ficado debelado há muitos anos e os seus sintomas actuais vêm e vão, o que me leva a pensar que será mais provavelmente um problema circulatório. Para um homem da sua idade, o seu peso está bem e o estado físico geral parece excelente, mas por amor de Deus, homem, deixe o maldito do cigarro. Isso é a primeira coisa. As tonturas são acompanhadas de dores?»

«Nem por isso», respondeu Robert Kincaid. «Um certo mal-estar no peito por vezes.»

«Podemos fazer uma série de exames que nos ajudarão a identificar o seu problema. Pode sofrer de uma forma de angina que, em si mesma, não é uma doença, mas antes um conjunto de sintomas, muitas vezes augurando um ataque cardíaco causado por uma doença latente.»

Robert Kincaid abotoou a camisa e agradeceu ao médico.

«Então, que vamos fazer?», perguntou o médico. «Nada», respondeu Robert Kincaid. «Não devia tê-lo incomodado.»

«Nada? É possível que possa ajudá-lo, mas preciso dos resultados de mais exames.»

Robert Kincaid não tinha dinheiro para fazer mais exames nem qualquer interesse em fazê-los. Na sua perspectiva, a vida vinha e a vida ia. Para alguns era curta, para outros mais longa, e o verdadeiro caminho encontrava-se algures entre um medo poltrão e um mergulho suicida.

Durante o tempo que serviu na Segunda Guerra Mundial como fotógrafo de guerra no Pacífico, esteve várias vezes à beira da morte. Tinha na parede, em casa, uma fotografia de fuzileiros navais a sair de uma lancha de desembarque na ilha de Betio, no atol de Tarawa, em Novembro de 1943, pouco depois das nove horas da manhã. Cumprindo ordens («Queremos fotos deles a chegar a terra, porra!»), Kincaid tinha sido dos primeiros, na primeira vaga de desembarque, saltando para a rebentação à frente das tropas de assalto. Com a película em sacos impermeáveis, a máquina fotográfica ao alto, desembarcou a trezentos metros da costa, a lancha Higgins encalhada num recife. Iam a caminho de Beach Red One. A maioria não chegou a terra.

Tinha-se ouvido o som de metralhadoras e, por todo o lado à sua volta, géiseres de água nos pontos em que explodiam salvas de morteiro e de peças de campanha de 75 mm. E as expressões dos rostos nessas fotografias: o medo terrível e nauseante de rapazes novos, muito longe de casa, muitos deles em vias de morrer, as espingardas acima das cabeças, a vadear para terra. Em Betio, quase doze hectares de areia coralígena semeada de abrigos de betão e troncos de coqueiro, a Segunda Divisão de Fuzileiros Navais viria a sofrer perto de três mil baixas em três dias. Quase no fim desse primeiro dia, o assistente de Kincaid, um rapaz do campo de Nebraska, que estava ajoelhado na areia a menos de um metro de distância a recarregar a máquina, tinha apanhado uma bala de um atirador furtivo na testa, caindo para trás sem emitir um som.

Ao sair do consultório do médico, Kincaid encaminhou-se para a carrinha no parque de estacionamento, entrou e acendeu um Camel. Debruçado sobre o volante, o comprido cabelo grisalho em desalinho, como habitualmente, disse: «Que se lixe!» Endireitou-se e pôs Harry a trabalhar. Depois, recordou-se dos versos de e. e. cummings sobre médicos e outros universos por esse mundo fora e, saindo do parque de estacionamento, riu de mansinho consigo mesmo.

Robert Kincaid sabia que era um anacronismo, uma criatura desfasada do seu tempo. Um vestígio do que era antigamente, sem função nem finalidade, no estado actual das coisas. Era assinante de uma revista de fotografia técnica e de um jornal regional, mas a televisão sempre fora para ele uma noção estranha. Dois anos antes, enquanto comprava um novo par de jeans, deteve-se na secção de electrónica de um armazém de Seattle e, durante alguns minutos, assistiu a um concurso que estava a ser simultaneamente transmitido em trinta e dois televisores de diferentes tamanhos. Kincaid ficou ali, a pestanejar, como se tivesse sido arrancado a um longo sono e acordado para as arremetidas de um mundo estrangeiro e queixoso.

Um empregado aproximou-se do homem de suspensórios cor de laranja e delicadamente perguntou se estava interessado em comprar uma televisão, informando que os modelos de consola de sessenta e dois centímetros e meio estavam com um desconto de 20%. Kincaid voltou-se e pestanejou na direcção do rapaz, sentindo-se desorientado como se o homem que falava com ele estivesse ligado por fios invisíveis aos ecrãs de televisão e tivesse sido enviado pelas próprias máquinas. Atrás dele os espectadores do concurso começaram aos gritos, aparentemente dirigidos aos concorrentes.

O empregado olhou de relance para os ecrãs e disse: «Não há dúvida de que se pode ganhar muito dinheiro e prémios nesses concursos».

Kincaid tentou alinhavar uma resposta qualquer, mas não conseguiu. Saiu apressadamente da loja, pensando como parecia longínquo o tempo que passara nos Grandes Gelos, numa outra vida, de arpão na mão e a tiritar com o frio. Mas tinha sido um frio real e natural, e não o frio que sentia continuamente nos rostos à sua volta, no clamor do tráfego urbano. Quando saiu da loja, três rapazes novos iam a dançar pelo passeio, avançando na sua direcção. Um levava um aparelho de música portátil, enquanto os outros dois levavam altifalantes ligados à máquina. A música tocava em altos berros e era ininteligível para Robert Kincaid. Regressando a casa, em Puget Sound, onde vivia, pôs-se na proa do ferry a receber o vento cortante e a chuva directamente no corpo.

Ao fim da tarde, com o tempo a amainar, Robert Kincaid atravessou o rio Columbia, em Astoria, Oregon. Sob o comprido arco da ponte, o tráfego fluvial e marítimo circulava em ambos os sentidos na água, a cadência do grande comércio debaixo das rodas de uma carrinha com vinte e sete anos chamada Harry.

— Uma vez passei por aqui de mota a caminho do norte, Highway— disse ele ao cão que dormia no banco ao seu lado. Highway espevitou as orelhas e olhou com curiosidade para Robert Kincaid.

— Foi em 1945. A ponte ainda não tinha sido construída, tive de apanhar o ferry do Oregon para Washington. A mota era um mimo duma Ariel Square Four, mal a punha a trabalhar chegava como manteiga a uma velocidade de cruzeiro decente. Comprei-a em segunda mão com uma parte dos meus salários em atraso quando saí dos fuzileiros navais; quem me dera nunca a ter vendido. Vinha de Big Sur, à procura de um sítio onde assentar arraiais, mais ou menos permanentemente, e voltar a trabalhar. Foi muito antes do teu tempo, Highway, e eu era muito mais novo, muito mais novo.

Encontrou uma pequena mercearia e comprou fruta e pão, queijo e legumes variados, continuando a subsistir com a dieta simples e barata que o aguentava há décadas. O empregado da caixa estava entediado e fixou os olhos no tecto enquanto contava 4.63 dólares em trocos miúdos tirados da lata do café dele.

O gerente de um motel de terceira, de calças de bombazina encorrilhadas, camisa de flanela e uma barba de três dias, disse que não se importava que o cão ficasse no quarto desde que fosse sossegado. Kincaid assegurou-lhe que Highway era mais educado do que muita gente.

O gerente respondeu: — Isso é dizer pouco, amigo, e até pode ser um insulto para o cão. Quando se dirige um motel destes durante um certo tempo, fica-se muito céptico em relação à condição humana. — Empurrou uma chave sobre o balão — Número oito, vire à esquerda ao sair da porta.

Robert Kincaid, novamente na estrada e, à excepção do cão, sozinho como sempre. Ele e Highway jantaram no quarto, nenhum deles falando com o outro enquanto comiam. Mastigar ruidoso de comida para cão, tinir de uma faca a cortar queijo. Mais tarde, deambularam pela zona portuária e observaram o tráfego fluvial, o golden retriever encontrando grande motivo de interesse em bidões de gasolina enferrujados e rolos de corda. Harry encontrava-se numa enfiada de trinta lugares de estacionamento diante do motel. Não havia mais veículos no parque.

Novamente no quarto, Kincaid estendeu-se no chão, rejeitando as tentativas de Highway de lhe lamber a cara. Fez uma série de elevações de pernas seguidas de trinta abdominais. Em seguida, já um pouco sem fôlego, pôs-se em t-shirt e boxers, untou o tornozelo doente com bálsamo de tigre e enfiou-se na cama com As Verdes Colinas de África. Highway esparramou-se no chão ao lado de Kincaid.

A colcha da cama tinha um buraco. Kincaid levantou-a, olhou através do buraco para uma nódoa no papel de parede e retomou a leitura. No momento em que o bwana se aproximava de um terreno salino em África, uma pancada leve na porta sobressaltou Kincaid e provocou um grunhido de Highway. Kincaid levantou-se e perguntou quem era.

— Sou eu, Jim Wilson, o gerente.

Kincaid vestiu as jeans e abriu a porta. Jim Wilson mostrou duas garrafas de cerveja. — Está uma noite morta como o raio, achei que era capaz de gostar de uma cerveja, antes de se deitar, e de um dedo de conversa. Ou, se estiver a chateá-lo, mande-me embora que eu vou sem ressentimentos. — Relanceou para a cama. — Oh, caramba, desculpe lá, pelos vistos já estava no quente.

— Estava só a ler. — Kincaid abriu completamente a porta e deu uma palmada no cão que estava ao seu lado. High-way continuava desconfiado e a emitir sons graves e guturais. — Chiu, rapaz, está tudo em ordem.

Jim Wilson usou uma chave de igreja para abrir as cervejas e passou uma a Kincaid. Encostou-se à porta e deixou-se deslizar naturalmente por ela, até ficar sentado na alcatifa puída. Kincaid sentou-se na única cadeira que havia no quarto, um objecto rangente com vinil castanho estalado no assento e no espaldar. Highway sentou-se junto da cama e cravou os olhos em Wilson, esticando-se depois com a cabeça em cima das patas, sempre a observar.

O gerente levantou a cerveja. — A dias melhores.

Kincaid, em resposta, ergueu a garrafa dele alguns centímetros.

— Para onde é que vai se é que posso perguntar?

— Bem, ando mais ou menos a passear por aqui e por ali. Estava a ficar deprimido por estar dentro de portas há demasiado tempo e decidi fazer-me à estrada. — Kincaid bebeu um gole de cerveja e acendeu um Camel. Embora não fosse excessivamente desconfiado por natureza, sempre fora vago quando as pessoas lhe perguntavam onde tinha estado ou para onde ia. Era o género de precaução que se adquiria em lugares menos povoados do mundo onde informações desse tipo podiam ser usadas de formas nefandas.

O gerente perguntou se lhe podia cravar um cigarro e Kincaid atirou-lhe o maço e o isqueiro Zippo.

— Dá ideia que tem este isqueiro há muito tempo — disse Wilson, acendendo o cigarro e passando o polegar pela superfície riscada do Zippo, reparando nas iniciais RLK gravadas, quase ilegíveis.

— Comprei-o na cooperativa do exército em Manila, nos anos quarenta, quando estava de regresso a casa depois da guerra.

— É, eu falhei a grande guerra por uns anos. — Voltou a atirar o isqueiro e os cigarros a Kincaid. — Cresci a tempo do Vietname. Não me importava de também ter falhado essa, não me tinha feito mossa nenhuma.

Jim Wilson tinha um ar cansado, com papos debaixo dos olhos e uma postura geral corcovada, gasto e sujo como a alcatifa do motel. Embora tivesse à vontade menos vinte e cinco anos do que Kincaid, parecia mais velho. Um alcoólico, deduziu Kincaid.

Wilson fez a primeira pergunta que todos os antigos soldados fazem uns aos outros. — Em que unidade esteve?

— Andei a saltar de um lado para o outro, mas quase sempre nos Segundos Fuzileiros Navais. No Pacífico. Fotógrafo de guerra.

— A sério? Nunca conheci um fotógrafo de guerra. Encontrei uns poucos no Vietname, mas nunca cheguei a conhecê-los bem. Alguns eram doidos a valer, corriam mais riscos que os maçaricos.

Kincaid não respondeu, foi bebericando da garrafa.

— Chegou inteiro ao fim, hein? — Jim Wilson estava a olhar para ele. — Não sofreu ferimentos de guerra nem nada?

- Tive sorte. Não há outra palavra. Apanhei com estilhaços de granada no lado esquerdo, logo abaixo das costelas. Foi em Betio. Entraram e saíram cinco centímetros mais à frente. Como os médicos tinham problemas mais graves que o meu arranhão, despejaram-me sulfamida nos buracos, fizeram-me o curativo em cinco minutos e foram pela praia fora com a morfina e os torniquetes. Ao fim de uma semanita já me sentia porreiro. Nem sequer cheguei a ser condecorado.

Kincaid soltou uma risadinha e, distraidamente, massajou com a mão a velha ferida, sentindo as cicatrizes por baixo da t-shirt.

O gerente esticou as pernas à sua frente e depois levantou um joelho e pousou os braços nele, com a garrafa de cerveja dependurada na mão direita. — Livra! Eu estive na intendência, por isso o Vietname não foi assim tão mau para mim, andava por Saigão a jogar voleibol e a evitar doenças sociais, sempre que possível, a cumprir o tempo de serviço e a contar os dias. Mas, porra, alguns dos maçaricos apanharam porrada da grossa no mato. Imagino que também não foi nada meigo no sítio onde esteve.

— Não, não foi nada meigo. Se não fossem os japoneses a deitar-nos a unha, era a malária e mil outras doenças tropicais. Para alguma da rapaziada as condições foram duras, duras a valer. Chegávamos às praias com o inimigo bem escondido em abrigos e a única coisa em que pensávamos era como sair da praia e arranjar protecção. Convém lembrar que eram tipos que, ainda pouco tempo antes, tinham sido vendedores de automóveis, agricultores, mecânicos.

— Que é que acha de o Harry S. Truman largar a bomba em cima deles?

Kincaid fez uma pausa, olhou para a cerveja, olhou para Jim Wilson. — Alguns de nós, muitos de nós, estiveram lá três anos. Há fotógrafos e jornalistas que gostam da guerra; acho que tem a ver com pôr à prova a coragem, estabelecer riscos pessoais mais ou menos artificiais... não sei exactamente o que é. Mas nunca descobri nenhum lado romântico nessa treta.

Sorveu um grande trago de cerveja. — Os japoneses eram soldados implacáveis. Eu, por mim, não estava minimamente interessado em atravessar o mar do Japão e enfiar-me nas garras do império. Só queria voltar para casa e pôr-me a milhas da matança. E havia muitos outros tipos que queriam a mesma coisa, quase todos, custasse o que custasse.

Kincaid encolheu os ombros e fixou um ponto indistinto acima da cabeça de Jim Wilson, deixando a resposta evasiva diluir-se no fumo dos dois cigarros.

Continuou, numa voz pouco mais audível do que um sussurro. — Voltei para casa, comprei uma motorizada, fiz-me à estrada até Big Sur, voltei pela costa, passando por aqui, para tentar esquecer tudo. Mas nunca se esquece verdadeiramente. As imagens persistem, nítidas e claras. E os cheiros, a cordite e a gangrena, a fumos de gasóleo, a óleo queimado e a pó de coral. A caminho dessas praias em veículos anfíbios, à espera nos recifes ao largo, sabendo que não havia mais nada a fazer senão metermo-nos à água e vadear até à praia. Patos num lago, como a gente dizia.

Jim Wilson decidiu concluir o tema da guerra e passar a outro assunto. — Big Sur é muito bonito. Já lá fui várias vezes quando dava aulas na Universidade de São Francisco. Montes de turistas com caravanas a fazerem aquelas curvas em cotovelo na estrada nº 1. Devia ser muito diferente quando lá esteve, muito mais sossegado.

— Pois era. Não devia haver mais de cem pessoas que lá viviam o ano inteiro. Mas havia bastante gente de passagem, vinda de todo o lado. Muitos diziam-se artistas e músicos. Nunca vi nem ouvi muita arte. À excepção de uma mão-cheia deles que, pelos vistos, se dedicavam seriamente à escrita ou faziam outras coisas, dava ideia de que havia muita conversa sobre arte, mas pouca obra. Os residentes permanentes, na sua maioria, pareciam debater-se para tentar sobreviver. Mas como só lá estive uns dias posso ter ficado com uma impressão errada.

Pode ter sido a cerveja, pode ter sido a noite ou a simples necessidade de falar com outro ser humano, de dizer coisas há muito enterradas e nunca ditas que levou Robert Kincaid a continuar. Os estranhos assim não representam riscos e, pela manhã, Jim Wilson ficaria para trás, sempre um estranho e faltando-lhe outras peças necessárias para completar um todo que Kincaid guardava para si próprio. À excepção de Francesca Johnson, que conhecia quase tudo quanto havia para conhecer, Kincaid nunca tinha deixado mais do que uma pequena peça de si mesmo antes de seguir caminho.

Puxou o cabelo para trás com ambas as mãos e fixou por um momento o chão, olhando em seguida de novo para Jim Wilson. — Conheci lá uma mulher, em Big Sur, uma violoncelista. Levei o violoncelo dela para uma praia deserta. Caminhámos um quilómetro e meio ou coisa assim para norte, pela borda da água, e contornámos um promontório. Ela disse que a maré ia subir e que ficávamos encurralados nessa tal praia e que só podíamos passar outra vez o promontório quando a maré vazasse. Mas eu não quis saber e ela também não. Nunca me fez perguntas sobre a guerra. O irmão dela tinha morrido em Itália, durante a tomada de Salerno, portanto a dor e o medo não lhe eram estranhos.

«Ficámos muito tempo ali, ela a tocar violoncelo, com as ondas a rebentar na areia e as aves marinhas a gritar, as sombras dos penedos isolados a moverem-se pela água em direcção à praia à medida que o sol ia baixando. Chamava-se Wynn, lembro-me. Uma rapariga bonita, de traços invulgares, pouco mais de vinte anos, se tanto, e a transbordar de vida. Lembro--me de estar ali deitado na areia, a ouvi-la tocar, Schubert, acho que foi o que ela disse, e a recordar tudo o que tinha visto nos últimos anos e a esforçar-me por esquecer ao mesmo tempo.

«Não me saía da cabeça que alguma da água a enrolar na areia, a vinte metros de mim, talvez fosse a mesma água que atravessámos para chegar a Tarawa e outros sítios. Não sei durante quanto tempo ela tocou, nem durante quanto tempo ali fiquei com uma garrafa de vinho tinto a pensar e a tentar não pensar ao mesmo tempo. Mais tarde, quando o sol se tinha praticamente posto, ela encostou o violoncelo a uma rocha e sentou-se ao meu lado na areia... nunca esqueci de como a areia estava quente e ela se reclinou, se apoiou no braço e me olhou na cara. Fiz uma fogueira com madeira lançada à costa e ficámos ali toda a noite.

Wilson reconheceu que estava em curso uma espécie de terapia no deprimente quarto de motel, que este homem, Kincaid, não procurava simplesmente contar histórias por contar. O que estava exactamente a fazer não era claro, mas havia uma espécie de reconciliação essencial com o passado, no fim da vida de um homem. O relato necessário de um momento importante, talvez por nenhuma outra razão que não fosse o de reinscrever memórias, como aborígenes em redor de uma fogueira a manter vivos os velhos contos e lendas.

— Dá ideia de que era uma mulher interessante. Kincaid pegou na cerveja e bateu com a mão contra o abat-jour durante o movimento. Vacilaram através do quarto sombras rápidas e Highway levantou os olhos, alarmado. Kincaid estabilizou o abat-jour.

— Falámos da possibilidade de eu ficar por Big Sur e cheguei a pensar nisso, mas dava-me ideia que havia todo um mundo à minha espera. O meu espírito estava cheio de tudo o que eu ainda queria fazer, ver, experimentar. Acabado de sair da guerra, estava como uma mola, em tensão máxima, a milhas de distância de qualquer centro interior, tinha a sensação de que a minha vida me passava ao lado e de que ainda havia muitas coisas para ver e fazer.

— Partiu então ao fim de alguns dias?

— Parti. Foi muito breve, eu sei. Houve um momento, quando estava pronto ao pé da mota e ela estava a olhar para mim com os dedos enfiados numa das presilhas do meu cinto, em que me senti seriamente inclinado a ficar. Dez minutos mais tarde saí dali, mas não senti que fosse um verdadeiro fim. Achei que ficaríamos em contacto, que voltaríamos a ver--nos. Foi o que dissemos um ao outro e acho que, nesse momento, fomos sinceros. Mas, como geralmente acontece, o tempo e a distância não deixaram. Escrevi-lhe duas ou três vezes a dizer que tinha decidido instalar-me na zona de Seattle e que andava à procura de casa.

«Mas, aparentemente, ela tinha-se mudado para outro sítio qualquer e, nessa época, eu andava constantemente em viagem; portanto, se ela me escreveu, as nossas cartas provavelmente perderam-se pelos correios, acabaram em alguma caixa desactivada. Como ela era muito senhora de si e uma mulher realmente independente para a idade e para a época, acho que a vida lhe deve ter corrido bem. Nesse tempo, não estava mais preparada do que eu para assentar.

«Livra, parece que se passou tudo numa outra vida. — Robert Kincaid fez uma pausa e respirou fundo, expirando lentamente. — Disse que era professor universitário?

— É, ensinei psicologia durante nove anos. Não aguentava a vida académica, se é que se pode chamar-lhe vida. Um bando de socialistas a pregar filosofias solenes sobre a igualdade enquanto protegiam a estrutura de classes mais rígida de qualquer grupo social ou profissional que existe. Demiti-me e andei por aí durante alguns anos. Acabei a dirigir este motel. Mas não sei quanto tempo vou cá ficar.

Jim Wilson, gerente de motel, levantou-se e espreguiçou--se. — É melhor ir deitar-me; a canalização rebentou na unidade seis e consertá-la vai-me levar quase toda a manhã. Gostei de falar consigo. E tem razão quanto ao cão, quando disse ser mais educado do que muita gente. Pode cá ficar sempre que quiser, consigo ou sozinho. — Estendeu a mão a Robert Kincaid.

— Boa sorte. Gostei de conversar consigo. — Kincaid apertou a mão de Wilson e fechou a porta atrás dele. Depois de voltar para a cama e de pegar no livro, Kincaid descobriu que o grande bwana estava agora a examinar pegadas de rinoceronte junto do terreno salino e se preparava para liquidar uma ou mais criaturas multiformes. Pousou o livro e apagou o candeeiro da mesinha-de-cabeceira.

Mais tarde, enquanto dormia e tinha um estranho sonho, em parte memória e em parte fantasia, qualquer coisa ligada a uma conversa com um marinheiro no velho Raffles Bar de Singapura, o seu braço descaiu para fora da cama. Highway lambeu a mão que acidentalmente se estendeu para ele e o tocou.

Lá fora, um barco chamado Pacific Vagabond passou por baixo da ponte e dirigiu-se para o seu ancoradouro. Entre os objectos amontoados no cavernoso porão, encontrava-se um carregamento de televisores da Coreia que tinham sido descarregados no Pacífico e transferidos para outro barco nas modernas instalações portuárias de Tarawa.

 

A BUSCA

South Dakota estava mergulhado em pleno Outono e, numa manhã pardacenta e ventosa, a carrinha de distribuição postal da terra parou numa caixa com o nome de Carlisle McMillan, Estrada nº 3. A cinquenta metros na estrada de terra batida, Carlisle estava a carregar madeira, dobrando a esquina da que ainda se chamava propriedade do velho Williston. Segundo a duradoura tradição da América rural, as propriedades conservavam o nome da primeira pessoa que tinha construído no terreno.

O carteiro avistou Carlisle e buzinou para lhe dar conhecimento de que tinha chegado uma carta. Não recebia muito correio, este McMillan, e assim parecia boa ideia avisá-lo de que tinha qualquer coisa na caixa para variar. Carlisle levantou os olhos, acenou e meteu pela estrada, enquanto o carteiro continuava para norte em direcção à quinta de Axel e Earlene Looker. Axel estaria provavelmente encostado à caixa do correio, pensou o carteiro, à espera do cheque do subsídio à produção agrícola. Tinha estado exactamente nesse sítio nos últimos dois dias e protestava contra a ineficiência do maldito governo sempre que o cheque chegava atrasado.

Durante a reconstrução da casa do velho Williston, Carlisle arranjou um sócio. Um enorme gato apareceu a meio do trabalho e decidiu colar-se. Carlisle estudou o gato peludo e malhado com a orelha esquerda ratada e olhos amarelos. O gato estudou Carlisle e ficou para o almoço e depois para o jantar e acabou por decidir que o melhor seria assentar permanentemente arraiais.

«Pois é, matulão, acho que o nome de Dumptruck te assenta», disse Carlisle no quinto dia. «Portanto, se não te importas, ficamos assim.» Dumptruck pestanejou. Carlisle sorriu.

Dumptruck estava sentado na balaustrada do alpendre quando Carlisle regressou da caixa do correio. Entraram ambos, Dumptruck dirigindo-se ao seu lugar favorito debaixo do fogão a lenha, Carlisle servindo-se de uma chávena de chá do bule rachado que tinha comprado na loja de artigos em segunda mão em Falls City. Pousou a chávena na mesa extensível da serra radial que estava montada na sala de estar há três meses, altura em que projectava os pormenores da casa.

A carta era da mãe, Wynn, a quem tinha escrito três dias antes. Grande reviravolta para Wynn, que exibia uma tendência para perder correspondência, cheques do ordenado e receitas médicas. Mas, honra lhe seja feita, conseguia lembrar--se das coisas importantes, como passagens complexas nas composições de Schubert e pormenores obscuros da história da escultura.

 

20 de Novembro de 1981

Querido Carlisle,

Boa, tens caixa do correio e tudo. Parece que estás perfeitamente instalado. Gostei de saber da casa antiga que compraste e que estás a reconstruir. Talvez dê aí um salto, um dia destes, para ver. Seja como for, fico muito feliz.

Alguma mulher interessante na tua vida? Desculpa a pergunta, mas as mães, mesmo as mães estranhas como eu, pensam nessas coisas. Custa-me acreditar que não faltam muitos anos para fazeres quarenta e não me importava de ter um ou dois netos, sabes?

Pois bem, quanto às perguntas da tua última carta a respeito do teu pai e do que recordo dele, só posso repetir o que já disse antes. Tinha feito o serviço militar, trabalhou como fotógrafo antes da guerra e também no Pacífico durante a guerra, e pouco antes tinha sido desvinculado (acho eu) dos Fuzileiros Navais. Não parecia interessado em falar muito da guerra. Fiquei, aliás, com a impressão de que não queria falar de todo. O primeiro nome dele era Robert e o apelido, se alguma vez o soube, varreu-se-me completamente da memória.

Conheci-o em finais de Setembro de 1945, no mesmo dia em que o Bela Bartok morreu. A motorizada dele era vermelha, com algumas partes cromadas. No depósito da gasolina, tinha um emblema prateado com a marca da mota e só me lembro que o nome começava por «A». A memória é uma coisa muito imperfeita e incrivelmente selectiva. Uma vez enchi-lhe o depósito de gasolina e, ali de pé, fiquei a olhar para o emblema, mas só me recordo da primeira letra. E, no entanto, ainda me lembro de uma história que ele me contou de um marinheiro que tinha conhecido em Singapura. Estranho, não é?

Outras coisas. Usava uma pulseira, no pulso direito, acho eu. Era alto e magro e vestia-se com simplicidade. Usava suspensórios. Embora já não me lembre dos pormenores da cara dele, tenho a impressão de que não era especialmente bonito, mas também não era feio. Mas esses extremos vulgares não se aplicam realmente porque ele tinha qualquer coisa de característico, era um homem de feições fora do comum. Há uma coisa de que me lembro: os olhos e a expressão deles. Olhos fatigados, como se fosse muito mais velho do que a idade que tinha (devia ter trinta e poucos anos).

Que mais? Parece que se passou tudo há tanto tempo, eu era tão nova, só tinha dezanove anos e era rebelde como uma poldra por domar, cheia de sonhos malucos sobre o mundo artístico e a vida perto da natureza. Mas ainda consigo vê-lo. Estava a deixar crescer o cabelo depois de sair da tropa e atava-o atrás com uma fita azul quando andava de mota. Como disse, não era muito bonito pelos padrões de beleza a que nos habituámos, mas mesmo assim tinha uma figura atraente, com o casaco de couro, as jeans, as botas e os óculos de sol quando andávamos pelas pontes altas de Big Sur.

Conta-me como corre o teu projecto de construção da casa. Aqui está tudo sossegado. Vem visitar-me um dia destes. Seja como for, ainda recordo o teu pai como um homem adorável e terno, apesar de só termos estado juntos três ou quatro dias. Não estou arrependida de nada porque sem ele tu não existirias.

Um beijo da tua mãe, Wynn

 

P.S. Estive com Mrs. Marx, no outro dia, e dei-lhe cumprimentos teus. Manda-te um abraço e ainda pensa em ti como num filho, sempre a falar do Cody e de ti. Vê se lhe escreves. O nosso querido Jonathan, o teu bem-amado padrasto de seis anos quando eras pequeno, passou por cã a caminho de São francisco. Fomos tomar café e ele falou-me do fundo que constituiu, do romance que está a tentar publicar e das duas mulheres mais recentes. Convidou-me para jantar, mas eu disse que não, obrigada. Só gostava de saber o que vi nele.

 

Carlisle McMillan pegou numa folha de papel e tirou um lápis de carpinteiro do bolso da camisa. A lista era bem reduzida, mas ele tomou nota de todas as pistas que Wynn lhe tinha dado:

Primeiro nome «Robert»

Motorizada que começa por «A»

Pulseira?

Segunda Guerra Mundial - Pacífico. Fuzileiros Navais?

Fotógrafo antes e durante a guerra

Singapura = muito viajado?

Idade = trinta e poucos anos

 

Esta lista podia constituir as linhas de uma tabela. Em cima, nas colunas, podia escrever nomes à medida que os descobrisse e procurar correspondências entre os nomes e as pistas. Mas por onde começar? Precisava de uma pista inicial, mas não lhe ocorria nada a não ser o que poderia tornar-se numa pesquisa sem fim em velhas revistas e jornais.

Carlisle deixou-se estar sentado, a pensar, e sobressaltou--se um pouco quando o telefone tocou. Era Buddy Reems, seu parceiro da má vida do tempo dos projectos de urbanização em Oakland. Uma espécie de estoira-vergas, mas um carpinteiro decente e, de um modo geral, boa pessoa.

 

— Carly, meu grande malandro, gosto de ouvir a tua voz. A tua mãe deu-me este número. Que diabo estás a fazer e onde estás? A Wynn falou em Dakota a sul do Dakota do norte. Isso vem no mapa? Consegue-se chegar aí de onde estou? Preciso de algum passaporte interplanetário para entrar?

Carlisle riu. Buddy continuava o mesmo. Quando se tinham separado dois anos antes, Buddy tinha partido para integrar uma comuna no Novo México.

— Onde é que estás, Buddy?

— Oakland. Estou outra vez metido na construção e a beber como uma esponja aos fins-de-semana para esquecer o trabalho péssimo que fiz durante a semana. Ouvi dizer que tinhas construído uma casa ou reconstruído uma antiga, qualquer coisa assim.

Carlisle falou-lhe do projecto na propriedade de Williston. Disse que tinha corrido tão bem que tinham passado a palavra e ele arranjara trabalho num par de localidades vizinhas.

— Que tal te estás a safar no capítulo das mulheres? Alguma obra dessa dimensão ou são só virgens e prisioneiros que mandam para aí?

— Há possibilidades. Tenho saído com uma mulher que trabalha num café daqui. Ei, Buddy, que aconteceu aos teus grandes ideais de vida comunitária?

— Livra, Carly, nem imaginas o disparate que aquilo foi. Deves lembrar-te que fui para lá por causa daquela rapariga. Lembras-te? Escrevi-te a dizer que ela tinha pernas mais compridas que o mês que passou. Até me ofereci para a partilhar contigo se aparecesses.

Carlisle abanou a cabeça, sorrindo. Lembrava-se da carta de Buddy sobre a rapariga e o facto de essa aventura comunitária ser o melhor projecto de sempre.

— Sim, lembro. Que aconteceu?

— Bem, aconteceu que a rapariga desarvorou para outra comuna, com um guitarrista que estava sempre a aparecer com substâncias químicas de todo o género e a cantar canções já com barbas dos anos sessenta sobre flores e paz e amor livre. Este último era a única coisa que me interessava. Por outro lado, eu era a única pessoa em todo o projecto que tinha competências em alguma coisa. Vai daí, puseram-me a construir cozinhas, cantinas e dormitórios tipo quartel enquanto os outros ficavam todos sentados a fumar droga e a falar do... como é que se diz?... Ni-xi? Não interessa, um gajo alemão. Um filósofo qualquer ou coisa parecida.

— Que tal Ni-tcha, Friedrich Nietzsche?

— É, isso mesmo. Detesto meninos universitários como tu, Carly. Se não fosses o melhor carpinteiro que eu conheço, não queria ter nada a ver contigo. Bem, seja como for, podes imaginar como me caiu essa treta toda do Ni-xi e da paz, amor e flores... por isso, assim que a rapariga se pirou com o guitarrista hippie, pus-me a andar. Nem adeus lhes disse, e ela também não. O gajo também não valia pevide à guitarra. Lembras-te quando a gente ia ouvir o Jesse Lone Cat Fuller? O senhor paz e amor nem as pontas soltas das cordas novas da guitarra do Jesse era capaz de prender,

A conversa continuou nesta direcção e Carlisle acabou por mencionar a sua procura do pai. Buddy, apesar de toda a sua conversa estouvada e comportamento igualmente estouvado, era um homem pragmático quando havia um problema a resolver. E, como era hábito, tinha confiança na sua capacidade para lidar com assuntos destes.

— Deixa-me vasculhar por aqui, talvez em Sacramento. Daqui a uma hora parto para lá, vou visitar uma mulher que conheci num concerto dos Fleetwood Mac no mês passado. Não é a coisa mais bonita do mundo, mas sabe usar o corpo, é uma verdadeira máquina.

Carlisle sorriu. O mesmo Buddy de sempre, cheio de energia, a quem nunca faltava actividade ou conversa, nem aos quarenta e tal anos.

— Conheço um par de tipos em Sacramento que são capazes de ter acesso aos registos automóveis. Foi há mais de trinta anos, mas os malditos burocratas guardam tudo até ao fim dos tempos e pode ser que se descubra qualquer coisa por aí. Pronto, vou tomar nota. Primeiro nome, Robert. Certo? A mota começava pela letra «A». Comprou-a logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, talvez Agosto ou Setembro de 1945 ou por volta disso. Gostava de saber quantas motorizadas foram vendidas na Bay Área depois da guerra... dois, talvez três, triliões.

— Não tenho a certeza se ele a comprou logo a seguir guerra. Podia tê-la guardada enquanto esteve fora.

— Boa, Carly. Isso reduz a coisa aí para metade de toda as motas que alguma vez foram vendidas. Mas vou tentar Coisas tão antigas não estão em computador. É uma pesquis manual. Mas vou ver o que consigo. Dizes que ela trabalha num restaurante?

— Quem?

— A mulher que andas a comer, quem havia de ser?

— É, mas não diria que a ando a «comer». É num sítio chamado Danny's Café. As melhores sanduíches de peru quentes entre Omaha e Cheyenne. Montes de molho e puré de batata.

— Deve ser porreiro. Perus quentes e mulheres bonitas, ou será ao contrário? Bem, vou dando notícias. Mais uma coisa, Carly. Não morras duma morte estúpida. É o meu novo lema.

— O quê?

— Estou a fazer uma lista das formas como não quero morrer e a evitar situações em que elas me possam acontecer.

— Por exemplo?

— Não morras num hospital, não deixes que isso aconteça. É a primeira, é básica. Mais vale caíres dum telhado assim que colocares a última telha na melhor casa que alguma vez construíste. Uma segunda morte estúpida é apanhar com a traseira dum Cadillac ferrugento de 68, com pneus carecas, à porta do K mart quando está a começar uma promoção especial de roupa interior de homem.

Carlisle ria, sentindo saudades de Buddy Reems e da sua loucura.

— Ouve mais esta: ser atingido por detritos voadores de um cortador de relva rotativo operado por um rotário obeso de sessenta e quatro anos, numa urbanização projectada para reformados. Ainda só cheguei aqui, mas hei-de ter mais. Depois mando-te a lista completa. Fica bem, Carly. Foi porreiro falar contigo. Se descobrir alguma coisa, contacto-te.

— Obrigado, Buddy. Igualmente. Agradeço a tua ajuda. Sete horas mais tarde, Buddy voltou a telefonar. Ruído de tráfego em fundo.

— Sou eu, Carly. Estou numa cabina telefónica em Sacramento. Uma miúda muito gira, chamada Nancy, da burocracia dos registos automóveis ajudou-me. Não foi muito fácil, mas foi mais fácil do que eu pensava. Levou três horas a escarafunchar e a separar, mas descobrimos umas coisas. Tens papel e lápis? Vinte e oito ex-combatentes com o primeiro nome Robert registaram motorizadas em São Francisco, entre Agosto e Setembro de 1945. Montes de Harleys e Indians, mas só uma máquina começada por «A», uma coisa chamada Ariel Square Four, registada como uma motorizada em segunda mão, em 24 de Setembro de 1945. Essa história do «Square Four» deve ter a ver com o alinhamento dos cilindros e...

Carlisle interrompeu-o. — Buddy, o nome. Quem a registou?

— Ah, pois, o que interessa. Já me esquecia. Chama-se Robert L. Kincaid. A morada não consta, só a posta-restante em São Francisco. Também não há nenhum número de telefone. Também não adiantavam de nada, já passou uma data de tempo, trinta e seis anos.

— Soletra o apelido.

Carlisle escreveu cuidadosamente o nome soletrado por Buddy.

— Tenho de me despachar, Carly. A senhora Máquina está à espera na minha carrinha a metro e meio de mim. Boa sorte, e diz se há mais alguma coisa que eu possa fazer deste lado.

— Mais uma vez obrigado, Buddy. É capaz de ser uma grande ajuda.

— Deixa isso. Adeus.

Depois de desligar, Carlisle reviu imediatamente a lista de pistas:

Primeiro nome «Robert» — apelido pode ser «Kincaid», inicial do segundo nome «L».

Motorizada que começa por «A» — possivelmente Ariel Square Four.

Estudou a lista, foi à cozinha e tirou uma cerveja do frigorífico. Novamente ao cavalete, começou a garatujar.

Era claro que todos os percursos no diagrama eram becos sem saída, excepto a profissão de fotógrafo e possivelmente a folha de serviço militar. Ligou à mãe, no dia seguinte de manhã cedo, e perguntou-lhe se conhecia fotógrafos idosos com quem pudesse falar.

— Carlisle, é por causa do teu pai?

— É. — Contou-lhe o que Buddy Reems tinha descoberto em Sacramento.

— Kincaid? Quem me dera poder dizer-te que era o apelido dele. Mas não me recordo, pura e simplesmente, se é que alguma vez soube. Embora me pareça que ele mo disse uma vez, como já referi. Tens a certeza que queres ir avante com isto, Carlisle? Poderás apanhar uma grande desilusão, podemos os dois.

— Sim, tenho a certeza. Então, Wynn, pensa lá nalgum fotógrafo com quem eu possa falar, alguém que possa saber alguma coisa sobre a história e a evolução da fotografia neste país.

— Bem, há o Frank Moskowitz que vive numa cabana nos arredores da cidade, nas colinas perto de Russian Gulch. Acho que está na casa dos setenta e parece que tem uma conversa interessante quando aparece na galeria. O trabalho dele é banal, mas continua a tirar fotografias. Espera aí que vou ver o número dele.

Deu-lhe o número e depois acrescentou: — Há um incidente que nunca te contei. Não sei porquê. Não me ocorreu, suponho, até me teres posto a pensar em tudo isto. Eu e o teu pai fomos na mota dele até à costa a um sítio onde se juntavam leões-marinhos. Quando lá chegámos, estavam dois homens com uma espingarda a atirar às focas, passando a arma entre si.

«Fiquei terrivelmente perturbada com aquilo tudo. O teu pai mandou-me ficar ao pé da motorizada e dirigiu-se ao sítio onde os homens estavam a disparar. Limitou-se a chegar junto deles, a agarrar na espingarda e a atirá-la para o mar. Eles ficaram aos berros com ele e obviamente estavam furiosos. Um deles tentou começar uma briga, mas o teu pai deixou-se estar simplesmente ali a fitá-los. Ao fim de algum tempo, eles desapareceram pela praia fora e o teu pai veio ter comigo.

«Percebi que ele estava danado e perguntei-lhe o que lhes tinha dito. Ele respondeu: ' Só lhes disse que já tinha presenciado demasiada matança sem sentido e que, se queriam levar a coisa mais longe, os atirava para onde atirei a espingarda porque isso fazia sentido '. Se já não estava parcialmente apaixonada por ele, fiquei depois da história das focas.»

Conversaram durante mais algum tempo. Quando terminaram, Carlisle ligou imediatamente para o número que ela lhe tinha dado. Respondeu uma voz mal-humorada de velho: — Moskowitz.

Carlisle apresentou-se e pediu informações sobre fotógrafos americanos. Mr. Moskowitz já tinha ouvido falar de um fotógrafo chamado Kincaid?

— O nome não me é estranho. Não posso dizer com segurança. Se for muito conhecido, é capaz de figurar na Who's Who.

Carlisle não se tinha lembrado disso e anotou o nome.

— Mr. Moskowitz, se um fotógrafo viajasse muito nos anos trinta, para quem é que estaria a trabalhar nesse tempo?

— É difícil dizer. Houve sempre um grupo dos nossos a deambular por aí por conta própria. Nessa época não havia muitas revistas com meios para mandar alguém para o estrangeiro. O número reduz-se às grandes. Time, Life, Look, National Geographic, e por aí fora.

Moskowitz pareceu começar a divagar e a falar de equipamento fotográfico e película, das suas frustrações por não conseguir publicar o seu trabalho. Carlisle ouviu educadamente e, quando o velho parou para tomar fôlego, agradeceu-lhe a ajuda e disse que tinha de desligar.

— A sua mãe é uma excelente pessoa, Mr. McMillan, uma excelente pessoa, apesar de não apresentar as minhas imagens lá na galeria onde trabalha.

— Bem, quem sabe, Mr. Moskowitz? Talvez um dia.

— E, talvez um dia — disse o velho, desligando.

Carlisle atiçou o fogo no fogão a lenha e foi-se deitar. Ao começar a mergulhar no sono, o vento uivante lá fora soprava com o som do roncar de uma motorizada potente a fazer as longas curvas de Big Sur, há muito tempo atrás.

Uma hora após o nascer do dia, um ligeiro frio no ar, Robert Kincaid saiu do motel do Oregon e pôs Harry a trabalhar, pondo-se a escutar o motor. Havia um problema qualquer, outra vez o diabo do estrangulador. Pegou numa pequena caixa de ferramentas detrás do assento e vestiu a parka leve. Highway debruçou-se sobre a janela, tentando ver pelo lado da capota quando Kincaid a levantou. Kincaid rodou o parafuso do estrangulador e ouviu o ruído do motor, assentiu com a cabeça e voltou a fechar a capota devagar.

Novamente na carrinha. — Zen e a arte da manutenção de carrinhas velhas, Highway. Não é tão romântico como Mr. Pirsig nos quis fazer crer nesse livro que escreveu sobre intervenções em motorizadas. Uma coisa é certa, por baixo da capota a Harry não tem lá muito de zen. Que eu detecte, pelo menos. Mas as carrinhas também não são como as motorizadas. Aqui a Harry é especial à sua maneira, mas não dá a mesma sensação duma boa mota debaixo do rabo. Não me devia ter desfeito da Anel. Podia amarrar-te atrás e deixar aqueles 500 de cilindrada levar-nos pela estrada fora.

Highway farejou o casaco de Kincaid à procura de odores matinais estranhos, não encontrou nenhum e instalou-se no seu lugar no assento da carrinha enquanto Kincaid punha os óculos de ver ao perto, estudava um mapa das estradas e deixava o radiador aquecer a cabina e desembaciar o pára-brisas.

Decidiu continuar na estrada 101, dirigir-se para a Califórnia do norte e cortar depois para leste. Este trajecto levá-lo-ia um pouco para sul dos Black Hills, mas podia sempre virar para norte outra vez ou passar pelos Black Hills no regresso.

Com o Pacífico a mostrar-se entre montanhas baixas e verdejantes, Robert Kincaid não conduziu a mais de setenta pela sinuosa estrada costeira. Monte acima e monte abaixo, curvas para a esquerda e curvas para a direita, avançando em piloto automático.

Tentou recuperar a essência do sonho que tivera. Enquanto o corpo repousava, a mente regressava a Singapura, quando esse país insular ainda estava em bruto e por controlar, uma encruzilhada do mundo. Piratas, soldados de fortuna, contrabandistas. Homens com navalhas à cinta, mapas nos bolsos e planos desprovidos de moralidade mal eram formulados. O género de mundo com que Robert Kincaid sonhara em rapaz.

Todos os clichés que, nesse tempo, ainda não eram clichés. No tecto, ventoinhas a girar lentamente em espeluncas turbulentas e uma mulher, chamada Juliet, que usava um vestido curto preto e tocava bem piano enquanto entoava canções de Kurt Weill. Uma noite, dois homens quase se mataram pelo privilégio das atenções dela, embora ela não tivesse feito nada para encorajar a disputa e, ao que se veio a saber, não estivesse interessada em nenhum deles.

Kincaid lembrava-se dela e da sua música. Tinha vinte e muitos anos, acabava de fazer-se ao mundo para ir onde o trabalho o levasse, e a mulher chamada Juliet era mais velha, quarenta anos talvez. Nada se passou entre ambos. Nessa idade, teria tido medo de uma mulher assim e do que ela pudesse saber que ele não sabia sobre a cama e afins. Sentou-se no Raffles Bar, acabou a cerveja e olhou pelo fundo do copo como se fosse uma objectiva. A imagem dela surgira deformada mas, na sua opinião, continuava a ser muito bonita. Perguntou-se se ela teria conseguido escapar antes da invasão dos japoneses alguns anos antes. O mais provável era que sim. Pessoas como Juliet conseguiam sempre escapar de onde era necessário. Também ela era uma espécie de último cowboy.

Avançando para a Califórnia, começou a trautear uma canção que Juliet tinha cantado todas as noites, quarenta e tal anos antes. Sailor's Tango, julgava recordar-se. E um rosto no sonho voltou-lhe à lembrança, mas só o primeiro nome, Aabye. Primeiro-imediato num navio chamado Moroccan Wind. Por que carga de água me lembro do nome do navio do homem?, pensou Kincaid sorrindo. Há coisas que ficam, outras não. Tinham bebido umas cervejas juntos no Raffles.

Aabye, apelido esquecido, tinha falado da sua grande aspiração de possuir uma escuna, mas sabia que não conseguiria o dinheiro necessário. Robert Kincaid mencionou que tinha acabado de concluir uma reportagem fotográfica sobre o antigo tráfego de escunas no mar da China em que dedicou grande atenção a um capitão idoso perto da reforma que andava à procura de alguém para manter o barco em actividade. Kincaid disse ao homem chamado Aabye que talvez chegassem a um acordo em termos de dinheiro porque o capitão adorava o barco. A escuna chamava-se Paladin e Kincaid tinha conduzido o homem ao sítio onde estava atracada. O imediato tinha apertado a mão a Kincaid e tinha-lhe agradecido, afastando-se depois para localizar uma escuna chamada Paladin.

E tinham sido essas as recordações ressuscitadas pelo sonho. Robert Kincaid tinha centenas, milhares, de recordações destas. Circulando para sul ao longo da costa do Oregon, olhou para oeste na direcção de Singapura e pensou se o homem chamado Aabye alguma vez teria encontrado um barco, ali nos derradeiros dias do tráfego de escunas, e esperou que sim. Sempre a pensar nas Juliets e nos Aabyes, nas Marías e nos Jacks, e nos outros todos do tempo em que percorria o mundo. Lembrava-se de todos eles com afecto e estava-lhes grato pelas recordações.

À sua direita surgiu um farol, que ele enquadrou automaticamente na cabeça, considerando uma fotografia. Desistiu da ideia; já havia demasiadas fotografias de faróis em manhãs soalheiras.

Avançou pela estrada, ainda a pensar no farol, nas várias possibilidades. Num desvio onde os turistas podiam estacionar as autocaravanas e tirar uma foto das longínquas paisagens marítimas, parou e remexeu nos rolos de Tri-X. À mistura com os Tri-X, estava um único rolo de Kodak Technical-Pan, com a velocidade nominal de 25 ASA, um filme de exposição lenta concebido para copiar desenhos a pena e outras representações gráficas.

Mas o T-Pan tinha uma característica peculiar. Quando exposto a uma velocidade muito mais rápida e revelado de forma pouco ortodoxa, fazia praticamente desaparecer todas as gradações intermédias de tonalidade e tornava a imagem de um preto e branco altamente contrastados, dando a ideia de que o motivo saltava aos olhos do observador. Tinha usado essa técnica uma vez na Escócia, nas ilhas de Glencoe. Havia um pequeno castelo a cem metros da costa, numa ilha em que cabia à justa, o reflexo do castelo perfeitamente nítido na água circundante. Na impressão final, os muros e os torreões cinzentos do castelo tinham saído de um branco puro, a água em redor preta, e a fotografia transmitia a impressão de que o castelo estava assente no seu próprio reflexo. Talvez pudesse tratar o farol da mesma maneira, mas dar à imagem uma particularidade própria.

Voltou para trás pela marginal, observando o farol a mover-se através do enquadramento imaginário na sua cabeça, até ficar correctamente posicionado para a fotografia. Estacionando, tirou uma das Nikon F da mochila e introduziu nela o T-Pan. Quando Kincaid vestiu o colete e armou o tripé, Highway saltou da carrinha e deu início à sua táctica habitual de procura e descoberta, de nariz colado ao chão.

Kincaid deu às pernas do tripé um pequeno pontapé bem treinado com a bota e as pernas abriram. Ajustou automaticamente a altura, sabendo inconscientemente onde queria que a máquina assentasse. Prendeu a câmara ao tripé e tirou um obturador de cabo do bolso lateral direito do colete.

A cabeça de Kincaid estava novamente a trabalhar, retomando o processo de eliminação e reflexão, sintetizando em simultâneo a imagem e analisando a técnica necessária para a conseguir. Enquanto prendia o obturador de cabo à Nikon, o seu rosto abriu-se num sorriso, a que se seguiu uma sonora gargalhada. Highway olhou para ele, intrigado.

— Cão, só me estou a rir porque estou aqui a fazer aquilo que faço melhor e a aperceber-me de que ultimamente não o tenho feito que chegue. — Sentia o corpo fortalecer-se com a energia e o poder que haviam estado dormentes nos últimos anos de depressão e autocomiseração.

Robert Kincaid, um dos velhos fabricantes de imagens, um ilusionista consumado que levara a sua visão das coisas a milhões de leitores de livros e de revistas, estava novamente a trabalhar. Inclinou-se, olhou através do visor, fez pequenos ajustes à inclinação da máquina e ficou pronto para disparar. Viu o castelo na Escócia e cartografou essa imagem na que agora criava, recorrendo a procedimentos técnicos e traçando o seu plano de ataque.

Como sempre, o teste que o decidia a tirar ou não uma fotografia era imaginá-la encaixilhada e pendurada numa parede. Seria capaz de viver com ela durante meses, anos, sem se aborrecer? Se fosse, a fotografia valia a película e o esforço. Se não fosse, arrumava a tralha e seguia caminho.

Imaginou a forma exacta como queria a impressão final. Pensou o que seria necessário em termos de revelação e impressão para conseguir esse efeito. Pegou no fotómetro de luz incidente e fez uma primeira leitura. A sombra projectada pelo farol contrastava acentuadamente com o betão branco do edifício. Uma imagem de alto contraste com película de alto contraste; exigia cuidado particular. Robert Kincaid introduziu as compensações na máquina. Sobreexpor ligeiramente, captar um pouco do pormenor de sombra e recuperar as zonas luminosas sem cor quando revelasse o filme, fixar o resto quando imprimisse. Accionou com o dedo o obturador de cabo, o espelho reflexo produziu um estalido e ele sabia que a imagem seria provavelmente boa. Outra, as mesmas configurações, só para ter mais um negativo com que jogar.

Quando acabou, pôs a máquina ao ombro e virou o tripé ao contrário, soltando as pernas e deixando os tubos deslizar para dentro uns dos outros. Serviu-se de um café da garrafa-termo que tinha na carrinha, desembrulhou um Milky Way e sentou-se num penedo, olhando demoradamente o Pacífico enquanto afagava as orelhas de Highway e recordava o casal idoso em casa de quem ficou quase duas semanas durante a reportagem na Escócia. As bodas de ouro deles tinham tido lugar enquanto lá estava e a aldeia tinha organizado uma bela festa com rabecas, gaitas-de-foles e muita folia. Uma jovem tinha tentado ensinar-lhe uma dança tradicional e todos se tinham rido das suas tentativas de imitar os passos vitoriosos de um guerreiro das terras altas escocesas. Também Robert Kincaid se rira.

Ofereceu ao casal idoso duas chávenas de chá com pires em porcelana. Durante os nove anos seguintes, foi trocando correspondência com eles até deixar de ter notícias. Um vizinho do casal acabou por lhe escrever a informar que tinham ambos morrido com uma diferença de dois meses. Primeiro a mulher, o homem pouco depois. Ela de causa não indicada, o marido, segundo o vizinho, simplesmente de desgosto.

Tinha-se formado um castelo de nuvens à distância, sobre a água, talvez a trinta quilómetros, mas o sol estava quente no ponto em que Robert Kincaid estava sentado; deixou-se ali ficar por muito tempo, trincando lentamente o chocolate, e quanto tempo ali ficou, nunca soube nem quis saber.

 

FRANCESCA

Mais uma manhã de mais um dia numa vida que declina, e Francesca Johnson calçou botas de cowboy com os tacões gastos, preparando-se para o seu passeio diário. Prendeu o cabelo comprido, enfiou uma boina na cabeça e tirou o casaco de lã de um cabide junto à porta da cozinha. O caminho de acesso à casa estava cheio de sulcos e, ao percorrê-lo em direcção à estrada principal, tomou mentalmente nota para pedir a Tom Winkler que trouxesse a niveladora para reparar o caminho antes do Inverno. Quando a neve intensa de Iowa começasse a cair, não se poderia reparar estradas até à Primavera.

Novembro, e a luz do sol tinha passado do laranja ardente do Verão para uma tonalidade amarela pálida. Mas até agora o dia estava sem vento e o seu passeio seria agradável, ainda que o ar estivesse fresco.

Hoje, virou à direita, dirigindo-se para Roseman Bridge. Durante os primeiros oitocentos metros, a estrada esteve deserta, de cada lado as colheitas dos campos ceifados um mês antes e Iowa a começar a encolher-se para outro Inverno interminável. Um camião de cereal passou por ela, com destino a Winterset. O condutor acenou e Francesca retribuiu o aceno. Alguns minutos mais tarde, ouviu o som de um veículo atrás de si e afastou-se da estrada para deixá-lo passar.

Floyd Clark, na sua nova carrinha Chevy, abrandou e parou.

— Bom-dia, Frannie. Como é que vai a vida?

— Bom-dia, Floyd. Vai bem, sempre na mesma, sabes como é. Ando a pôr plástico nas janelas a norte, estou a calafetar outras. A preparar a casa para mais um Inverno. — Esperava que Floyd não aproveitasse a oportunidade para convidá-la outra vez para sair.

— Bem, se precisares de ajuda para carregar com alguma coisa, eu e o meu filho Matt temos todo o gosto em dar lá um salto e dar-te uma mão. Ele tem bom lombo, ao contrário de nós, os mais velhos, que passámos a vida a tentar transportar mais do que devíamos.

Francesca agradeceu-lhe, sabendo que ele falara com sinceridade. Os problemas de coluna eram endémicos entre os agricultores do Iowa rural. Havia sempre qualquer coisa pesada que exigia transporte, imediatamente ao que parecia, e nunca havia ninguém por perto para ajudar. Assim, transportavam-na eles e arcavam com as consequências. Richard tinha sofrido das costas nos últimos dez anos de vida.

Outro exemplo, pensou, do desejo a sobrepor-se ao discernimento, um assunto que conhecia de cor e salteado. Mas, por outro lado, também compreendia o inverso, e nestas questões quem podia saber onde estava a verdade?

Floyd estava irrequieto, às voltas com o espelho lateral da carrinha. Ela pensou em diversas oportunidades futuras que podiam servir de pretexto para ele a convidar para sair, como o baile de fim de ano na Legião.

Não havia nada de errado com Floyd Clark, mas também nada de especialmente certo. Os sentimentos dela resumiam--se mais ou menos a isso e preferia simplesmente não estabelecer qualquer relação com ele, por mais casual e inofensiva que fosse. Não era porque começasse a correr falatório pelos cafés («O Floyd Clark anda a cortejar a Frannie Johnson. Faz ele muito bem. Para a idade que tem, ela ainda é uma brasa e a Marge quase que o matou com conversa enquanto foi viva.» «Não sei, Arch, há qualquer coisa que não bate certo com a senhora Johnson, tem qualquer coisa de diferente, e eu não sei ao certo o que é, parece que não é como nós»). Francesca não estava pura e simplesmente interessada e procurava transmiti-lo com simpatia.

Decidiu atalhar o mal pela raiz dizendo uma meia mentira. — Sou capaz de fugir ao frio este ano por algum tempo. O Michael convidou-me para ir passar os feriados à Flórida. Parece-me boa ideia, portanto acho que vou aceitar. — Michael ainda não a tinha convidado, mas ia convidar. Ela já tinha lá ido uma vez e tinha chegado. Os netos eram divertidos, mas todo o espírito artificial da quadra tinha-a constrangido e a nova mulher de Michael, a segunda, tinha demonstrado uma

certa frieza para com ela.

O rosto de Floyd Clark ensombrou-se quase imperceptivelmente, mas recompôs-se. — Bem, não te censuro. Eu e a Marge passámos vários Invernos em Brownsville, no Texas, e ficámos muito satisfeitos por escapar ao frio por algum tempo. Francesca recordou Marge Clark que não se calava com as suas migrações de Inverno para Brownsville. As actividades organizadas, os torneios de mareias e de golfe, as quadrilhas e festas promovidas pela Câmara de Comércio de Brownsville.

Não respondeu a Floyd, baixou os olhos para as botas e o silêncio entre ambos intensificou-se em proporções confrangedoras.

— Bem — disse ele, por fim —, é melhor ir andando para casa não vá o Matt ter hipotecado a quinta para financiar algum dos intermináveis esquemas de expansão dele. Vais continuar com a tua propriedade, Frannie?

— Acho que sim, Floyd. Nunca pensei em vendê-la, apesar de receber cerca de uma chamada por semana de algum agente imobiliário que quer pô-la no mercado. Parece que os preços dos terrenos estão incrivelmente altos hoje em dia.

Não referiu as razões para continuar na propriedade, para ficar em Madison County. Não disse que, num lugar qualquer no mundo, havia um homem chamado Robert Kincaid que talvez um dia viesse à sua procura. Era uma esperança romântica e fantasiosa, o género de coisa a que as raparigas novas se entregavam, mas mesmo assim agarrava-se a ela.

— É, os terrenos estão a preços astronómicos. O de dez hectares adjacente ao nosso está à venda e se calhar o meu Matt tem razão, sempre a dizer-me que devíamos comprá-lo para investimento. Como ele diz, não vão fazer mais nada com ele.

Francesca sorriu, não em sinal de concordância, mas antes para indicar que estava a ouvir. Estava também enfadada e queria que Floyd engatasse a velocidade e seguisse caminho.

Foi o que ele fez pouco depois. — Cuida de ti, Frannie. Até um dia destes.

— Adeus, Floyd. Obrigada por teres parado para dizer olá.

— Paro sempre. É sempre bom ver a tua cara sorridente.

Floyd Clark conduziu a Chevy pelos sulcos na lama gelada, afastando-se dela às sacudidelas rumo aos planos de expansão do filho Matt. Viria a saber-se que acabou por ceder e concordar com Matt e, em consequência, viriam a pagar quase o dobro do que o terreno de dez hectares valia, em termos de valor intrínseco de produção agrícola. Dezoito meses mais tarde, os preços dos terrenos em Iowa cairiam 40% com o período de recessão que se seguiu no Midwest, e Floyd culparia os banqueiros locais de o terem metido nessa embrulhada.

Pouco tempo depois da sua conversa com Floyd, Francesca dobrou uma curva e avistou Roseman Bridge. E sempre, neste momento, ganhava e perdia o ânimo. Lembrava-se de fazer a curva numa carrinha chamada Harry, em pleno Agosto, com o sol a banhar esplendorosamente a paisagem, minutos depois de um homem chamado Robert Kincaid ter entrado na sua vida.

Recordou como ele sorriu quando viu, pela primeira vez, a ponte e disse: «É fantástica. Uma fotografia ao nascer do sol». E como avançou na estrada, com a mochila ao ombro, e estudou a ponte, planeando como havia de fotografá-la. E recordou a mão-cheia de margaridas amarelas que ele tinha colhido para ela por lhe ter mostrado a ponte.

E, mais tarde, tinham tomado chá gelado na cozinha e conversado alegremente sobre a vida dele, sobre a vida dela. E depois cerveja gelada da geleira dele, e guisado de legumes que ela tinha cozinhado e um passeio pela pradaria quando acabaram de jantar. E por fim conhaque e café.

Roseman Bridge erguia-se, silenciosa, numa manhã de Novembro que começava a esfriar, um vento de noroeste a levantar e a agitar cardos castanhos e as folhas que restavam do Outono. A ponte estava colorida de um cinza a descamar e um vermelho desbotado e ainda mais inclinada do que em 1965, como se estivesse a tentar tocar a água em baixo. Parecia estar a sucumbir a uma morte lenta ao fim de cem anos de vida e, aparentemente, ninguém se preocupava que estivesse moribunda.

O rio Middle corria pouco fundo e límpido nesta estação, antes de desistir e gelar durante o Inverno. Borbulhava e espumava em redor do penedo a que Robert Kincaid subira e de onde olhara para Francesca Johnson que espreitava por uma fenda no travejamento lateral.

Há coisas que perduram, pensou ela, penedos e rios, velhas pontes cobertas. Há outras que não, tórridas noites de Agosto e tudo quanto trazem, e nós prosseguimos sem elas e acabamos por morrer sem deixar marcas de nós próprios nem da irmã dissoluta e estimada que partilhou o mesmo espírito e o mesmo corpo de uma esposa de uma quinta de Iowa.

Sorriu ao recordar uma história que Robert Kincaid lhe contara. Tinha estado noutra ponte, noutro tempo, com as galochas pelo joelho, usando uma grande angular para dar à ponte a impressão de que se sumia na distância sobre ele. Quando acabou de fotografar, as galochas estavam profundamente atoladas na lama. Perdeu o equilíbrio e começou a cair para trás, segurando a câmara ao alto para a proteger. Caiu de costas em cheio na lama com as botas ainda enterradas no lodo na vertical.

«Ali fiquei, estendido na lama, a olhar para o céu e a rir da minha figura. Saí dali de meias e lavei-me mais acima na corrente. Mas consegui a imagem. É tudo o que importa.»

Ela observou com que facilidade ele ria de si próprio. Tinha-o feito várias vezes durante o tempo que passaram juntos.

Kincaid sorrira e dissera: «Sempre me pareceu que há dois grandes indicadores de maturidade. Um é a capacidade para rirmos de nós próprios. Quase toda a gente se leva, a si e à sua vida, mais a sério do que as circunstâncias exigem e tem dificuldade em ver a suprema absurdidade de toda a história. Eu divirto-me a rir de todas as coisas estúpidas que faço. E faço muitas, o que me mantém quase sempre muitíssimo entretido.»

Francesca tinha-lhe perguntado qual era, na sua opinião, o outro sinal de maturidade.

«A capacidade para sorrir de admiração perante a obra dos outros em lugar de fazer má cara de inveja», disse ele sem hesitar. «Lembro-me da primeira vez que ouvi Bach e a minha reacção imediata foi sorrir. Mais tarde, recordei melhor a minha reacção do que a composição que estava a ouvir, senti-me bem com isso e tenho tentado manter essa atitude. Uma vez sentei-me num café em Paris, antes da guerra, e ouvi um guitarrista, um cigano chamado Django Reinhardt, que só tinha dois dedos em condições... os outros dois tinham ficado inutilizados num incêndio... mas continuava a tocar com uma velocidade e pureza incríveis. Nessa altura tive a mesma reacção. Admiração e não inveja.»

Levantou a mão esquerda com os dedos anelar e mindinho encolhidos, dobrando o polegar e os outros dois dedos como se tocasse guitarra. «Nos meus arquivos tenho uma fotografia do Django Reinhardt encostado a um prédio, a fumar um cigarro, com a gabardina ao ombro. Só dois dedos e um polegar. Inacreditável.»

«Depois há as fotografias da revolução mexicana tiradas por outro fotógrafo qualquer, de que não sei o nome, com equipamento e película muito mais primitivos do que nós usamos. Fotografias fabulosas, um trabalho incrível. As esculturas de Theodore Roszak, as coisas do Picasso, tudo o resto. Em lugar de sentir inveja, segue-se em frente e tenta-se melhorar aquilo que se faz. Competir com as nossas próprias limitações em vez de nos preocuparmos a encontrar defeitos na obra dos outros. Mas não funciona assim com a maioria das pessoas; parece que agem precisamente ao contrário. Deve ser porque custa muito mais trabalhar do que desfiar rosários de lamentações.»

Fez uma pausa e voltou a sorrir. «Faz uma pergunta simples a alguém que vive sozinho como eu e recebes uma palestra em resposta, mais do que querias saber sobre o que começaste por perguntar. Desculpa.»

Agora, dezasseis anos mais tarde, Francesca pôs a mão do lado esquerdo da ponte onde deixara a mensagem para ele. Se quiseres vir outra vez jantar quando «as mariposas estão em pleno voo», aparece logo à noite quando ficares livre. Qualquer hora é conveniente.

Meu Deus, que é que lhe tinha dado para fazer uma coisa daquelas, pensou, como pensara tantas vezes. O risco, o único grande lançamento de dados corruptos numa vida de resto irrepreensível. O abrir da capa, altura em que essa irmã dissoluta e estimada surgiu e tomou o seu lugar durante esses quatro dias de um drama tão estranhamente concentrado e, no entanto, nunca resolvido.

Ah, sorriu ela consigo mesma, mas voltaria a fazê-lo com ele, por causa dele. Suponho que o meu grande pecado foi o de, tirando um momento aqui e ali, nunca sentir remorso e de nunca vir a sentir.

Um pombo a levantar voo do seu poleiro dentro da ponte sobressaltou-a. Retirou a mão do sítio onde tocara a madeira velha e começou a longa caminhada de regresso a casa, com passos idênticos ao que fora a sua vida, uma cadência tão medida que, por vezes, lhe dava vontade de gritar. À sua maneira, Robert Kincaid tinha-a ajudado a silenciar o grito e, a partir daí, ela conseguira aguentar-se.

 

A ELEGÂNCIA DA BANALIDADE

Robert Kincaid rumou a sul através do Oregon, acompanhando o litoral. Tinha feito o percurso em várias ocasiões, se bem que não nos últimos sete ou oito anos, e este segmento da América surgia novamente aos seus olhos como se fosse a primeira vez.

Em Coos Bay, estavam homens a carregar um cargueiro e Kincaid usou a objectiva de 200 milímetros para apanhar um estivador completamente esticado a orientar uma rede de carga. Em Bandon, uma velha excêntrica passava as praias a pente fino havia décadas e exibia os seus tesouros dentro, à volta e em cima de uma pequena casa de madeira. Tinha oitenta e tal anos e cabelo grisalho a brotar de todos os lados, carregando a dura evidência de anos à mercê do vento salgado. Mas tinha a energia e o fulgor de alguém muito mais novo.

Viu Kincaid a perscrutar o exterior onde cinquenta bóias, pelo menos, de várias cores desbotadas estavam penduradas numa paliçada. — Chegue aqui, amigo, dê uma vista de olhos. Tenho montes de coisas boas que pode levar de recordação.

Tinha garrafas da Austrália, despejadas pelo mar na costa durante tempestades e marés altas. Pedaços de madeira flutuante cobertas de fragmentos de rede. Uma talhada do casco de um barco de pesca encontrava-se encostada à balaustrada do alpendre onde estava o cabo de um remo partido. Um dente de tubarão estava suspenso num fio do cabo do remo. O lote parecia interminável e provavelmente não andava longe embora, para além de certos conceitos na física, na matemática e nos sentimentos humanos, poucas coisas sejam verdadeiramente dessa ordem.

Kincaid reparou como a luz do sol do fim da manhã captava um aglomerado fortuito de garrafas de vários tamanhos numa das janelas e perguntou se podia fotografá-las. Ela respondeu que sim, desde que não desse cabo de nada, e atarefou-se a limpar conchas.

Ele estudou as garrafas. A luz atravessava um frasco de vidro lapidado numa prateleira e era refractada em direcção a uma grande garrafa verde, curvando seguidamente e penetrando uma esguia garrafa de vinho com as palavras Itália 1940 gravadas de um lado. O efeito geral era uma série de prismas onde a luz do sol se fundia com as diferentes cores do vidro. Nenhum fotógrafo de naturezas-mortas, com todo o tempo e controlo de um estúdio sofisticado, as poderia ter disposto melhor e a elegância da banalidade sempre fascinara Kincaid. A beleza do arbítrio, como lhe chamava. Havia padrões destes por todo o lado quando se sabia vê-los. Kincaid demorou quinze minutos a preparar a fotografia e vinte segundos a executar os aspectos mecânicos de disparar o obturador e bobinar o filme1.

 

1 A fotografia das garrafas de Kincaid acabou por ser adquirida por um coleccionador e, em 1993, foi emprestada ao Museu de Belas-Artes de São Francisco para uma exposição intitulada «Fotografia Americana: Vidas Errantes e Achados Inesperados». (N. do A.)

 

Depois de arrumar o equipamento, Kincaid perguntou à mulher quanto pedia pela garrafa de vinho italiana. Ela semicerrou os olhos na direcção dele, com a sua roupa simples, e disse que por dois dólares a deixava ir. Embrulhou a garrafa em plástico de bolha e prendeu-o com fita.

— Tenho nas traseiras umas vértebras de baleia muito bonitas, se é que gosta desse género de coisa.

Kincaid agradeceu-lhe, mas disse que a sua necessidade actual de vértebras de baleia era reduzida e continuou pela rua, encaminhando-se para sul ao longo do mar.

Surgiu à vista Gold Beach, na foz do rio Rogue. Fotografou um barco meio afundado, gastando mais cinco imagens da película Technical-Pan. Um homem parou para conversar, disse que ia entregar mantimentos a um restaurante turístico a montante do rio e, se Kincaid quisesse fazer-lhe companhia, convidava-o para almoçar. Highway demonstrou uma certa falta de confiança na lancha, mas Kincaid pegou nele e meteu-o lá dentro e partiram com um ronco, as orelhas do cão a abanar com o vento e um terror evidente nos seus olhos. Três horas mais tarde, estavam de regresso à foz do Rogue. Kincaid encontrou um motel à beira-mar e, no dia seguinte de manhã cedo, fez-se novamente à estrada.

Ao fim da tarde estava em plena Califórnia do norte, a rolar por território florestal. Meia hora depois surgiu Mendocino, que, em certos aspectos — tais como os telhados e paliçadas batidos pelo tempo e os canteiros de flores cobertos com pedras e madeira vinda do mar — era uma aldeia piscatória de Nova Inglaterra transportada para a costa oeste. Estendia-se tranquila numa pequena península que se projectava no Pacífico, com florestas de sequóias-sempre-verdes que acompanhavam a estrada nacional nº 1 do lado do interior.

Kincaid deteve-se numa estação de serviço da Chevron na rua principal e encheu o depósito da carrinha. Contornou Harry e ficou preocupado com o aspecto do pneu dianteiro da esquerda. O empregado da estação verificou o pneu e disse que estava com a pressão muito baixa.

— É capaz de ter um furo lento. Quer que verifique?

Kincaid disse que sim e encaminhou-se indolentemente pela rua principal, olhando para as montras das lojas. Livros e antiguidades e dois bares, vários cafés e algumas galerias de arte. Virou para norte em Kasten e deteve-se a olhar para as fotografias expostas na montra de uma galeria. O nome da fotógrafa era Heather Michaels. O seu trabalho era convencional, mas bom tecnicamente, com a tónica posta em paisagens a preto e branco. O grão e o pormenor disseram-lhe que Heather Michaels trabalhava com uma máquina de grande formato, provavelmente uma 4x5.

Robert Kincaid ficou ali de mãos nos bolsos a estudar as fotografias. Highway sentou-se junto à sua perna direita e olhou para Kincaid que olhava para o que estava exposto na montra. Lá dentro, uma mulher magra de cinquenta e tal anos, com uma saia cinzenta comprida, blusa branca abotoada até ao pescoço e xaile preto, estava a falar com uma cliente. Kincaid não conseguia vê-la nitidamente através do vidro, e ela estava de perfil para ele, mas qualquer coisa na forma como tinha o cabelo comprido atado em cima e como enfatizava com as mãos as virtudes de uma obra de arte captou a sua atenção. Uma sombra de reconhecimento veio-lhe à mente, deixou-o, voltou outra vez. Um levíssimo formigueiro percorreu-lhe os recônditos da memória. Onde? Quando? O cabelo comprido, a gesticulação quase musical das mãos.

A mulher mudou de posição, mostrando outra peça à cliente. Kincaid conseguiu ver-lhe melhor a cara, embora os reflexos do vidro ainda lhe toldassem um pouco a imagem.

No interior, Wynn McMillan olhou para além da cliente com quem estava a conversar e viu um homem de aspecto estranho na montra. A impressão geral que transmitia foi o que primeiro lhe prendeu a atenção. Era velho, mas ao mesmo tempo não era. Alto e magro, vestido com jeans, camisa caqui e suspensórios. Gente esquisita de todos os géneros passava por Mendocino, mas este homem tinha qualquer coisa que era fora do comum, qualquer coisa de quase familiar.

A luz do sol bateu-lhe na parte direita do rosto e captou o cabelo comprido grisalho com risca ao meio e penteado para trás em cima e dos lados. O vento marítimo soprou-lhe o cabelo e ele estendeu a mão para o afastar da cara, puxou um suspensório cor de laranja para cima no ombro, ajustou o estojo de couro do canivete suíço que trazia no cinto. O sol foi encoberto por uma nuvem e ele ficou na sombra durante alguns segundos antes de a luz do sol voltar a incidir sobre ele.

Ela sentiu um estremecimento involuntário e um poderoso impulso para sair e falar com o homem. Mas, nesse momento, a cliente tomou uma decisão, segurando numa pequena estatueta de madeira, e apontou para uma das fotografias de Heather Michaels na parede. Na caixa registadora, Wynn continuou a relancear na direcção da montra onde o homem parecia estar de olhos cravados nela. A mulher que fazia as compras reparou no comportamento dela e voltou-se para a montra.

— Conhece o homem que está lá fora? — perguntou, dando a impressão geral de não estar a receber a plena atenção de Wynn McMillan.

— Oh, peço desculpa, por... por um momento pensei que conhecia, mas acho que não.

— Um indivíduo algo peculiar, não é? — A cliente bem--posta, com quem já fizera negócio muitas vezes no passado, tinha tendência para afectar um estilo de vida e um modo de falar britânicos.

— Sim, realmente é. Mas já conhece Mendocino. Passa por aqui todo o tipo de gente estranha. — Wynn começou a embrulhar a obra de arte. Quando voltou a olhar para a montra, o homem tinha desaparecido.

Depois de voltar à estação da Chevron, Robert Kincaid deteve-se com os dedos no puxador da porta de Harry e quase regressou à galeria. Sempre tivera uma certa falta de jeito com mulheres que não conhecia, embaraçado com a sua própria presença quando lhe dirigiam a palavra. Recapitulou mentalmente os quandos e os ondes, abanou a cabeça como que a desanuviá-la e pôs o motor a trabalhar.

Depois de a loja fechar às seis, Wynn McMillan encaminhou-se para casa, ainda abalada pela imagem do homem que tinha olhado para ela pela montra da galeria. Saiu e deambulou pelas ruas de Mendocino durante duas horas, na esperança de avistá-lo. Não encontrando nada, regressou pelos promontórios, deixando-se envolver pela escuridão e escutando o som dos seus passos por sobre o rebentar das ondas na maré baixa e do vento através dos ciprestes. Recordou um tempo longínquo quando o mar batia contra a costa de Big Sur e ela tocou Schubert para um homem acabado de chegar da guerra.

A oitenta quilómetros mais adiante na costa, Robert Kincaid olhava em frente e ouvia o chiar dos pneus de borracha numa estrada que acabaria por o conduzir a Big Sur, se continuasse nela até de manhã. Estava a pensar nas encruzilhadas de vidas, lugares e acontecimentos, recordações traçadas num espaço tridimensional. E nesse espaço, secções interceptadas pelo tempo, como uma faca a cortar uma laranja. Uma faca desgastada pelas várias décadas de existência, mas ainda com vigor suficiente para o impelir a olhar pelo retrovisor e pensar em Mendocino. Os ondes e os quandos tinham formado uma vaga hipótese. Coincidência, sim. Talvez. Mas se pusesse de lado a coincidência como implausível, então como interpretar a quase totalidade da vida, para não falar da própria existência? A elegância da banalidade está em toda a parte e o facto de sequer vivermos é implausível, pensou. E em algum lado, nas oficinas do Quem ou do Quê onde trabalha o Mestre, o acaso e o grande desígnio são inseparáveis, um lugar onde o improvável se torna provável e a surpresa é a regra.

Nessa noite, depois de a presença de Highway ter sido recusada em dois locais, Robert Kincaid alojou-se num pequeno hotel em Sonoma, onde se deitou no escuro e mais uma vez pensou em Mendocino. E reflectiu sobre a época em que era jovem e estava bronzeado e endurecido do tempo passado nas praias de Tarawa. Tendo escapado ou sido libertado, dependendo da perspectiva, tinha percorrido as curvas de Big Sur com uma mulher atrás dele, cujo cabelo o vento emaranhava e atirava para trás como um homem mais velho tentando agora alcançar o que desejava recordar e quase conseguia.

Talvez conseguisse recordar, se se esforçasse por pensar demorada e honestamente.

E antes de sucumbir ao sono, nessa noite, os últimos pensamentos de Robert Kincaid foram dois: negar a coincidência ao mesmo tempo que quase a desejava, aliado a um desejo simultâneo de ser novamente jovem e, no entanto, morrer em breve.

 

BIG SUR, 1945

Wynn McMillan, carregando o violoncelo e o estojo, viajou para Big Sur na carrinha postal. Juntamente com uma maneira de ser encantadora adquirida cedo, mais por hereditariedade do que por experiência de vida, estava rapidamente a atingir uma graciosidade semelhante de forma e conduta. Essas qualidades compensavam o que, na base, era uma certa simplicidade nos traços angulosos da sua aparência física. Como tal, com a sua figura esbelta e o cabelo castanho comprido, a maioria das pessoas teria considerado Wynn McMillan atraente.

Com dezanove anos e sem outros objectivos específicos para além de tocar música e viver o que encarava como uma vida romântica, Wynn gozava de um optimismo que derivava da sua juventude e de saber que o mundo estava a melhorar. A Alemanha tinha capitulado perante os Aliados três dias antes e a América estava num estado de euforia em massa que raiava o êxtase. Podia ver-se o fim da luta de um ponto de observação distante e elevado. Mas do outro lado do Pacífico, em Okinawa, o Décimo Exército de Buckner continuava a avançar para sul enfrentando a pesada resistência dos japoneses. A quinhentos quilómetros a montante do Décimo Exército, situava-se a base territorial japonesa, a ilha de Kyushu, cujo assalto estava previsto para Novembro.

Jake, o carteiro, conduzia a carrinha por curvas em cotovelo onde a dinamite tinha esculpido uma estrada no que fora montanha, a face agreste da cordilheira de Santa Lúcia à esquerda e um precipício de cento e vinte metros para o oceano a uns escassos dois metros à direita. Por vezes, o emblema da capota parecia apontar apenas para o infinito e, por cima dele, Wynn McMillan via os penhascos de Big Sur a projectar-se no Pacífico, marchando para sul como as pregas de uma cortina escura e pesada.

Por baixo deles, o nevoeiro pairava nos desfiladeiros e o mar estava encrespado com a fila das oito mil ondas diárias que quebravam na costa. Quando Jake desceu a estrada para uma extensão de pradaria através do vale de Big Sur, Wynn viu papoilas e lilases silvestres em flor. O futuro não podia parecer-lhe mais risonho.

Nesta viagem, ia lavada e fresca para uma nova fase da sua vida. Do outro lado do Pacífico e a uma latitude inferior a Big Sur, Robert Kincaid não tomava um banho a sério há semanas e o seu uniforme de combate agarrava-se-lhe ao corpo como carne em decomposição. Embora não o soubesse, três fotografias suas tinham aparecido nas capas de revistas importantes nos últimos dois meses. A única menção de autoria que acompanhava as imagens fora «Fotografia de Fuzileiro Naval dos E.U.».

Na companhia de Jake, Wynn McMillan levava um exemplar da Life enfiado numa bolsa lateral da sua enorme carteira. A capa mostrava uma foto de um fuzileiro naval a varrer um abrigo com um lança-chamas enquanto outros soldados surgiam numa colina atrás dele. Kincaid tinha tirado a fotografia dez dias antes. O fuzileiro naval com o lança-chamas tinha morrido ao pisar uma mina terrestre três horas depois de Kincaid tirar a fotografia1.

O chapéu de feltro descaído, enfiado nos compridos cabelos castanhos de Wynn, parecia um pouco pesado comparado com o leve vestido primaveril que trazia. Mesmo assim, tinha preferido pôr o vestido e levar o chapéu, chegando a um compromisso e ignorando o choque entre as texturas.

O pai de Wynn McMillan, um camiseiro respeitado de Monterey, não teria aprovado a sua escolha de vestuário, mas também pouco aprovara do que a filha fizera nos últimos anos da sua vida. O violoncelo era uma excepção e ele adorava que ela tocasse para ele à noite, quando acabavam de jantar, e a mãe, Irene, que fora pianista de filmes mudos, lavava a louça. Sentava-se na poltrona, de laço, camisa engomada e calças de flanela bem brunidas, sorrindo, fechando os olhos e movendo a cabeça ao ritmo da música. Sentia-se especialmente

 

1 Sete das fotografias de Kincaid do teatro do Pacífico foram subsequentemente publicadas numa colectânea intitulada «A Arte Visual da Guerra». A autoria do trabalho foi atribuída a outro fotógrafo que adquiriu os negativos ao Corpo de Fuzileiros Navais e reivindicou ser o autor das fotografias. Kincaid não sabia disto, evidentemente, ou talvez, como era a sua natureza, limitou-se a encolher os ombros e partiu do princípio de que tal desonestidade receberia o devido castigo. Cinco anos mais tarde um estudioso, que se dedicava à história da fotografia, descobriu a cavilação e publicou um curto artigo a corrigir o erro, embora continuem doze mil exemplares do livro original em diversas bibliotecas e em mãos privadas, perpetuando o erro. O homem que plagiou o trabalho de Kincaid tornou-se um fotógrafo famoso num jornal importante e alegou que a responsabilidade pelo embuste se devia a uma confusão editorial, embora nunca tivesse apresentado desculpas a Kincaid e tivesse continuado a referir o livro no seu curriculum vitae, afirmando que todas as fotografias nele contidas eram de sua autoria. (N. do A.)

 

orgulhoso no domingo de Páscoa, todos os anos, quando o quarteto da filha tocava no serviço religioso matinal na igreja presbiteriana. Quando o violoncelo de Wynn se elevava em Mi maior, Malcolm McMillan virava-se, sorria e acenava com a cabeça a quem lhe retribuía o gesto.

Tirando o violoncelo, contudo, o comportamento de Wynn era um mistério para ele. À semelhança de Robert Kincaid, a educação formal nunca a tinha interessado muito e fingia-se doente, com frequência, para evitar a penosa caminhada para mais um dia do que considerava trabalho escolar enfadonho. Wynn passava esses dias a tocar violoncelo, a ler e a aprender a pintar a óleo. Apesar das aparentes enfermidades da semana, aos sábados e domingos trabalhava horas intermináveis a ajudar a Cruz Vermelha a embalar medicamentos para a frente europeia.

Na adolescência, começou a usar o que o pai considerava fatiotas esquisitas, uma mistura de lenços e blusas e, valha-o Deus, calças largas de homem com a sua constituição alta e esguia (outros diriam ossuda). Nenhum dos rapazes que a visitavam ocasionalmente lhe parecia suficientemente convencional para o satisfazer.

«Irene, a nossa filha não conhece nenhum rapaz simpático com um bom futuro?»

«Ela é muito senhora se si, Malcolm. Acho que herdou o carácter rebelde desses escoceses todos que estás sempre a elogiar. Já falei várias vezes com ela sobre esse assunto e ela só ri e diz: 'Ora, mãe, francamente. Não tenho pressa nenhuma em casar-me. Existe um mundo de música e arte à minha volta que quero explorar. Se fosse como o papá quer, aos vinte anos já estava casada com um médico ou um advogado, tinha assentado, tinha filhos e estava a tocar canções de embalar ao violoncelo'.»

Assim, Malcolm McMillan, suportando dolorosamente com a mulher as recordações do filho, morto em combate em Salerno dois anos antes, limitou-se a abanar a cabeça, desiludido, quando Wynn anunciou que ia para um lugar chamado Big Sur, para estudar composição com o pianista Gerhart Clowser. A única coisa que Malcolm conhecia sobre Big Sur era a sua ligação a livres-pensadores e inconformistas. Uma subsequente partida perpetrada por alguns dos residentes de Big Sur, jogando com a ávida necessidade de sensacionalismo da imprensa e respectivos leitores, só viria a contribuir ainda mais para a sua infelicidade quando leu que Big Sur era o centro de um culto que promovia o sexo e a anarquia.

As cartas de Wynn não apaziguaram o estado de espírito de Malcolm.

 

Estou a viver num barraco de uma divisão construído com caixas de dinamite descartadas durante a construção da Estrada Nacional nº 1. Não tenho frigorífico nem luz eléctrica, e a casa de banho é exterior. Jake, o carteiro, traz querosene, carvão, ovos e todo o género de coisas quando vem entregar o correio de Monterey.

As pessoas aqui são absolutamente fascinantes. Budistas zen, um especialista em folclore irlandês e mais gente que parece saber montes de coisas sobre arte, arqueologia, linguística e por aí fora. Quase todos praticam actividades artísticas desde a escultura à poesia e ao trabalho em madeira. Mas não é o que a maior parte das pessoas pensa. Quem vive aqui permanentemente tem de lutar todos os dias para satisfazer as suas necessidades básicas. Não falta o que o papá chamaria «aves raras», mas os impostores são os que aparecem aqui dizendo-se artistas, mas que não criam arte nenhuma e não ficam por cã muito tempo. Na semana passada, um desses aldrabões fez a curva em cotovelo em Hurricane Point demasiado depressa e caiu pelo penhasco abaixo. Pode ver-se os destroços do carro nos penedos lã no fundo. Fomos todos em excursão até ao local só para ver o estardalhaço. O corpo nunca foi encontrado.

Estou a aprender imenso sobre composição e música em geral com Mr. Clowser, cujos concertos, por falar nisso, o tornaram famoso na Europa. Adivinhem onde o encontrei? A tocar num piano vertical à porta da cabana de Emil White, próximo da estrada principal. Diz que é o único piano a que tem acesso.

Tenho de ir ajudar umas pessoas a rachar lenha e depois vamos até às águas termais de Slate onde toda a gente se despe e mergulha.

Estou a divertir-me à brava e a ganhar algum dinheiro com biscates e aulas de violoncelo que dou a uma senhora nova e a um poeta de oitenta anos. E adivinhem quem vive numa cabana em Partington Ridge. O Henry Miller em pessoa. Ainda não o conheci, mas espero conhecer em breve.

Beijos da Wynn

 

«Quem é o Henry Miller?», perguntou Malcolm McMillan à mulher.

«É um escritor.»

«Que género de coisas escreve?»

«Malcolm, não me parece que queiras saber.»

«Quero, pois.»

«Escreveu, entre outras coisas, Trópico de Câncer. Mas não se encontra à venda nos Estados Unidos.» «Porquê?»

«Foi proibido por ser obsceno.» «Obsceno? Como?» «Malcolm, já te disse que não me parece que queiras saber.»

 

Quatro meses depois de Wynn McMillan chegar a Big Sur, apareceu um viajante solitário que, como ela, tomara a estrada para sul, passando por Yankee Point e descendo o Sur Hill Thrust. Para quem estivesse nas elevações vulcânicas de Point Sur, próximo do farol e a olhar para o interior por sobre os renques de tremoceiros prateados, o viajante teria sido apenas visível como uma mancha escura contra os penhascos de Santa Lúcia ou como uma silhueta ao atravessar as pontes altas. Talvez um reflexo brilhante das partes cromadas da sua motorizada Ariel Four tivesse cintilado aqui e ali.

Desde os seus primórdios, em 1929, a Ariel Four era uma máquina extraordinária para quem se interessava mais pelo rendimento do motor do que pela concepção mecânica em geral. Robert Kincaid não era nenhum conhecedor de motorizadas; gostava simplesmente do seu aspecto e da sensação que transmitia. Depois dos anos de guerra, em que não podia deslocar-se sem cautelas e receios, a viver ao lado de milhares de homens em navios e abrigos, a y4n'e/surgira-lhe na montra de um stand em São Francisco como um instrumento de liberdade.

«Esta é uma raridade, comprei-a a um inglês que estava de partida para defender o seu país», tinha dito o vendedor. «Leve-a para sul por essas curvas e penhascos e há-de ter uma boa oportunidade para lhe tomar o pulso. Mas cuidado. Rode o acelerador e, quando der por si, ela está a rolar a mais de cem.»

No seu apogeu, Big Sur estendia-se entre as brumas do Verão e as chuvas do Inverno e os plátanos-bastardos, os aceres e os carvalhos-negrais estavam em plena cor quando Robert Kincaid atravessou a ponte alta sobre Bixby Creek. Bem amarrados atrás de si, ao contrário das recordações da guerra que acabava de deixar, estavam o saco-cama, uma pequena mochila com roupa e o resto do seu equipamento.

Mais adiante, na costa, parou quando viu um homem idoso e uma mulher nova envolvidos num dueto ao piano e ao violoncelo à porta de uma cabana. Desligou o motor e ficou a ouvir. A restolhada das folhas dos carvalhos-negrais fundia-se com a música e as sensações que lhe inundavam o cérebro quase o fizeram sentir tonturas. Algures, não há muito tempo, houvera morteiros, gritos e o estrépito de engrenagens de tanques e agora havia música e o agitar de folhas coloridas. O velho sacudiu o cabelo grisalho ao debruçar-se sobre o piano enquanto a mulher nova segurava o violoncelo entre as pernas, atenta ao pianista que, de vez em quando, erguia a mão direita e dirigia a música.

A certa altura, o pianista calou-se completamente e falou com a mulher, gesticulando: «Allegro, Miss McMillan, sim, mas Rachmaninov não é um cavalo de corrida, não é presto, e com muito mais suavidade, por favor. Vamos retomar no compasso quarenta e dois». Marcando primeiro o tempo, o homem começou de novo a tocar e a mulher juntou-se a ele. Com trinta e dois anos, exausto da mortandade, Robert Kincaid encostou-se à Ariel e escutou.

Passado algum tempo, mais algumas pessoas foram sentar-se na relva a ouvir a música. Estavam vestidas com simplicidade, os homens parecendo mais lenhadores do que os artistas alucinados que supostamente residiam em Big Sur. Quando a aula de música acabou, aproximaram-se e apresen-taram-se, aberta e amigavelmente. A violoncelista arrumou o instrumento num saco de lona e juntou-se a eles.

Um dos homens disse: «Os cirros altos, nesta época do ano, proporcionam um pôr-do-sol magnífico. Vamos até à praia observar. Anda daí, por favor, se quiseres. O Harvey vai cozinhar na praia truta fresca do rio e posso garantir-te que vai ser fabuloso. Uma vez até cozinhou um pinguim morto na estrada e digo-te que estava uma delícia».

E, à noite, enquanto comiam a truta de Harvey e ficaram durante muito tempo a conversar e a ouvir um homem chamado Hugh a tocar harpa irlandesa, as ondas a bater contra os penedos isolados soavam como o retumbar de canhões de couraçados distantes. Para Robert Kincaid, apenas recentemente afastado do sangue e da matança, era como outro mundo, simultaneamente real e irreal. Passava bruscamente da calma da alegria espontânea, das vozes que falavam de filosofia, de arte e de música, para uma sensação sobressaltada de onde estivera e do que vira. A sua pele tinha um tom de cobre e os olhos estavam fatigados e, quando alguém lhe fazia perguntas sobre a sua vida, limitava-se a dizer que tinha andado a viajar.

A violoncelista, que se chamava Wynn, reparou que ele falava pouco e foi sentar-se ao seu lado para o arrancar ao silêncio. Apresentou-se e apertou-lhe a mão. Ele disse-lhe o nome mas, como em todos os encontros deste tipo, os nomes de estranhos não ficam nitidamente registados e guardados na memória permanente.

Depois de vinte minutos de conversa, ela perguntou: «Como é que te chamas afinal?»

«Robert», respondeu. «E tu chamas-te... Wynn, não foi o que disseste?»

«É. Um nome escocês.» Soletrou-lho. «O meu pai tem muito orgulho na sua descendência.»

Fixou Robert Kincaid através do bruxulear de uma fogueira de praia e reparou no que toda a gente tinha logo reparado nele: os olhos. Olhos que davam a aparência de olhar através e para além do que estivesse à sua frente. Nesses olhos e também nos seus movimentos, havia um atributo que era simultaneamente aterrador e adorável, um lado de guerreiro e uma sugestão de poeta, como se ele se identificasse com outra época qualquer longínqua e para sempre desaparecida. Ela teve a sensação de que, se lhe pusesse um espelho diante do rosto, seria reflectida uma imagem estranha e primitiva.

«Que é que fazes? Para viver, quero dizer. Ouvi-te dizer há pouco que tens andado a viajar.»

«Estive no Pacífico sul, nos Fuzileiros Navais. Acabo de sair. Era fotógrafo antes da guerra e vou tentar retomar essa actividade.»

«Que é que fazias nos Fuzileiros Navais?» «A mesma coisa, fotografia.»

Robert Kincaid fitou a areia e achou espantoso estar ali calmamente sentado, em lugar de arrastar o seu metro e oitenta e cinco por ela, debaixo de um fogo intermitente de rajadas de metralhadora. Por um momento, regressou aos recifes, debruçado sobre o seu assistente, a chamar por um médico. Depois, uma voz de mulher falou novamente com ele.

«Às vezes venho até aqui à tarde praticar violoncelo. Se quiseres vir comigo amanhã, podíamos fazer um piquenique.»

A fogueira quase se extinguia, as pessoas começavam a ir embora para casa nas serranias ou nos desfiladeiros.

Uma voz à sua direita dizia: «Hei-de arranjar-me. O Jake traz querosene na quarta-feira. Encomendei o suficiente para vários meses, posso emprestar-te algum».

As pessoas apertaram a mão a Kincaid, disseram que tinham gostado de o conhecer e desapareceram na noite. Um homem chamado Lawrence aproximou-se e disse a Kincaid que ele podia dormir em sua casa, oferta que ele aceitou, agradecido.

As ondas batiam contra os penedos isolados, com um som, como antes, semelhante ao dos compridos canhões dos vasos de guerra americanos. Em Betio, um médico tinha-se inclinado sobre o assistente de Kincaid e dito: «Sinto muito, está morto, já estava morto quando caiu ao chão. Malditos franco-atiradores». E depois tinha arrancado a chapa de identidade ao rapaz que tinha estado a aprender fotografia com Kincaid. «Ande de cabeça baixa, andam por aí franco-atiradores nesse gigantesco navio mercante japonês.»

«Então?», disse a voz da rapariga. «Piquenique ou não?»

«Ah, pois. Hum... é uma... é uma bela ideia. Com muito prazer.»

«Óptimo. Espero por ti no desvio da estrada amanhã, digamos, às duas da tarde. Depois de amanhã vamos visitar o Henry Miller. Podes vir connosco se quiseres.»

Kincaid tinha ouvido falar de Henry Miller. Embora os seus livros estivessem proibidos nos Estados Unidos, tinham sido um produto útil e familiar entre os soldados além-mar.

«É capaz de ser interessante. Não morro propriamente de amores por ele mas é capaz de ser... enfim, como disse... interessante.»

«Ora, o Henry Miller é perfeitamente inofensivo no estado em que está. Passeia-se por aqui como toda a gente e tenta evitar essa gente crédula que faz peregrinações para o visitar à espera de ver corpos nus espalhados por todo o lado em estados diferentes de indecência.»

Malcolm McMillan ainda via a filha como quando ela tinha quinze anos, um pouco desajeitada e magra.

«Essa rapariga precisa de comer mais», dizia ele à mulher.

«Malcolm, não tens andado com atenção. Nos últimos dois anos, desenvolveu um corpo de mulher e começou a encher a roupa. É a maneira como se veste que esconde quase sempre isso. E já não é desajeitada, na minha opinião até está muito elegante.»

Mesmo por baixo das calças largas e da camisola leve que ela usava, Robert Kincaid reparou na forma e na curva da figura de Wynn McMillan quando abrandou e parou a Ariel no sítio onde ela o esperava na estrada principal. Só recentemente é que recuperara um pouco da sua antiga avidez. Num estado de continência imposto pelas circunstâncias da guerra em ilhas remotas, tinha-se concentrado em defender a vida e em fazer o seu trabalho. Nessas condições, à excepção das enfermeiras que andavam tão exaustas e esgotadas como a infantaria, as mulheres tinham sido abstracções: o cartaz de Rita Hayworth nos alojamentos exíguos de um navio de tropas, a imagem dobrada de Lauren Bacall com que um fuzileiro andava no bolso da frente, as fotografias de mulheres e namoradas passadas aos outros para serem admiradas e partilhadas na solidão. E, naturalmente, a voz radiofónica, aveludada e insinuante, das diferentes mulheres, genericamente chamadas Tokyo Rose, incitando os soldados-rasos a desertar perante uma causa desesperada.

Mas o sol estava quente e a tarde estendia-se diante de Robert Kincaid como uma outra vida, um prémio atribuído pela providência e pouco mais, a seu ver, julgando-se nem mais nem menos merecedor do que aqueles que tinham tombado no próprio momento em que os fotografava. Dezasseis milhões de americanos tinham sido mobilizados para a guerra, quatrocentos mil tinham morrido em combate ou por causas associadas. Os japoneses tinham perdido dois milhões.

«Olá», disse ela quando a perna dele galgou a motorizada. Estava a sorrir e Kincaid achou-a muito bonita.

«Olá. Está um dia fantástico, hein?», disse ele, apercebendo-se subitamente que era altura de sorrir. O acto de sorrir e o riso dos sãos eram dons que ele estava a tentar reaprender.

«Em Big Sur é raro não estar bonito. Fica por cá e vais ver.» Inclinou a cabeça de um jeito que enfatizava o convite.

Kincaid continuou a sorrir e deu uma palmada no selim da Ariel, olhando de relance para o violoncelo e para o cesto de vime pousado ao lado dela. «Dá ideia que precisamos de um oficial de logística, parece que estamos a desembarcar em Guadalcanal, embora dessa vez tenha sido uma desgraça. Como preciso das duas mãos para conduzir a mota, vou amarrar o teu cesto e a minha mochila atrás. Se conseguires pôr a alça do estojo do violoncelo ao ombro, podes sentar-te atrás de mim que eu vou muito devagar e tento parar esta coisa toda antes de entrarmos na água.»

A paisagem alongava-se sob um toldo de plátanos-bastardos e descia até à praia, o sol filtrando-se através das folhas e sarapintando a estrada mergulhada em sombra. Kincaid estacionou a Ariel contra a face de um penedo a trinta metros do Pacífico, bem acima do que lhe pareceu ser a linha da maré alta.

Wynn McMillan apontou para norte. «Podíamos ir a pé pela borda de água, contornar aquele promontório além, do outro lado há uma praiazinha abrigada do vento. Mas temos de estar com atenção à maré. Agora está vaza, mas quando subir a única maneira de contornar o promontório é trepar aos penhascos ou esperar outra vez pela maré vaza.»

Com o cantil militar pendurado de um lado do cinto e o canivete suíço preso do outro, Robert Kincaid enfiou o violoncelo no ombro direito e içou a mochila para o esquerdo. Ela levava o cesto de vime com sanduíches de fiambre, salada de batata e duas garrafas de vinho tinto. A princípio, embalou só uma garrafa, mas pensando no aspecto do homem à luz da fogueira na noite anterior, decidiu que convinha uma segunda garrafa. Nunca se sabia.

Wynn falou de música, do mar, do seu amor crescente por Big Sur e ele reparou na forma como ela se servia das mãos, movimentos como arabescos rápidos, quase musicais.

Observou-a a apanhar conchas e pensou que há muito tempo que não prestava atenção a conchas a não ser pelos cortes feios que faziam quando se caía ou se rastejava por cima delas a caminho das praias.

Ela olhou para ele por cima do ombro, sorriu afavelmente, depois voltou-se e perguntou: «Porque é que usas cinto e suspensórios largos ao mesmo tempo? É sinal de alguma ansiedade interior?»

Kincaid riu. «Nem sempre uso. Depende do que vou fazer. Quando acabo de pendurar o cantil, um fotómetro, canivete e mais umas tantas coisas ao cinto, as minhas calças começam a descair. Por isso uso suspensórios para contrariar essa tendência.»

Depois de meia hora a caminhar sobre areia dura e compacta, Kincaid saboreando a curiosidade e entusiasmo da rapariga por tudo quanto a rodeava, desfrutando o menear das ancas dela, contornaram o promontório.

Mais tarde, ele escreveria o seguinte:

 

Chegámos a uma pequena praia a meio da tarde, tirámos os sapatos e atravessámos a vau um riacho de montanha pouco fundo que corria através da areia para o Pacífico. O riacho era de uma estranha cor roxa azulada que mais tarde vim a saber ser causada pelo seu curso sobre rocha vulcânica até ao mar. Observando as ondas a bater nos penedos da praia, quase me escapava um trilho invulgar na areia aos meus pés. As marcas tinham cerca de noventa centímetros de largura e eram lisas, com entalhes côncavos de cada lado a intervalos regulares.

Acocorando-me, toquei nas marcas como se elas pudessem falar do que as tinha criado. À excepção das ondas a rebentar e do som da minha própria respiração, estava tudo silencioso. Deixei os olhos seguir o trilho até à água. Havia uma coisa grande e castanha no fim daquela estranha pista. Olhei de relance para a mulher. Também ela tinha visto o que era.

Só tinha na mochila uma pequena máquina fotográfica telemétrica e peguei nela enquanto avançava. Aproximei-me com cautela. Não era território familiar e eu não conhecia a vida selvagem que habita a floresta e o mar e o mero tamanho deste animal era intimidante. Dando a volta, procurei passar à frente do que quer que estivesse ali na areia, apenas a trinta metros de distância.

Podia ver-lhe o focinho, montado num corpo com quatro metros e meio de comprimento e pesando vários milhares de quilos. Era um focinho estranho e triste com olhos castanhos semelhantes a seixos de praia lisos e com uma probóscide parecida com uma tromba. Usando as barbatanas, o animal foi-se propulsionando pela areia em direcção à água. Viu-me e ergueu a cabeça como um cão estendido num tapete, o queixo baixo, observando-me, a pestanejar.

A seis metros, os olhos castanhos apareciam nítidos na objectiva. Estavam a olhar directamente para mim com uma expressão de medo ou, pelo menos, de interrogação receosa quando me acocorei e tentei arranjar um bom ângulo. Comecei apor em ordem os sentimentos que sempre me assaltam quando perturbo as vidas de outras criaturas vivas com as minhas intrusões e, claramente, euea mulher tínhamos invadido um momento de tranquilidade que passaria muito bem sem nós.

Debati-me mentalmente para recordar as imagens de todos os livros sobre vida selvagem que tinha lido ao longo dos anos. Devia conhecer a criatura, mas não conhecia, não me lembrava. Não era um leão-marinho. O nariz não batia certo, era grande de mais. Não era uma morsa, embora tivesse esse aspecto em dimensão e comportamento. Apesar de nunca ter tido uma propensão fervorosa para recordar os nomes das coisas e de ter sempre, alias, acreditado que estamos demasiado obcecados em rotular o mundo à nossa volta, sentia-me frustrado por não conseguir lembrar-me do nome desta criatura defronte de mim.

O animal estava mal posicionado para uma boa fotografia. Muito baixo na areia, com penedos imediatamente atrás dele da mesma cor da pele. Não importava. Baixei a máquina e desisti. Depois lembrei-me. A criatura era um elefante-marinho, espécie que os caçadores quase exterminaram no século XIX e que ainda era raramente avistada. Tinha passado o dia e talvez a noite anterior na praia longe do mar e, como parece que todos nós acabamos por fazer, debatia-se para chegará água.

Ondas de quase dois metros atiravam-se contra velhos penedos enquanto a foca se lançava para os baixios, detendo-se momentaneamente para olhar para trás, para mim e para a mulher. A água tornou-se mais funda e a falta de jeito do animal começou a desaparecer. Em terra era uma massa enorme de lama. Na água, era outra coisa. Subitamente, luzidia e rápida, mergulhando fundo, desapareceu num instante por um canal estreito entre dois penedos.

Endireitei-me e olhei para a mulher. Ela aproximou-se de mim e pôs-me o braço à volta da cinta. Eu ainda estava a observar a água. Ela puxou-me pela manga da camisa e eu olhei para ela.

«Foi uma coisa especial, Robert», disse ela. «É raro serem avistadas por aqui.» Sorriu e olhou-me directamente nos olhos. Pouco depois, acrescentou: «Acho que é um pouco como tu... talvez, raramente avistado.»

Permaneceu na areia um rasto de um metro com marcas de barbatanas de cada lado, em direcção ao Pacífico. Voltei a meter a câmara na mochila, continuando apensar nos olhos castanhos da Mirounga angustirostris, enquanto a foca me estudava, vasculhando na memória e nos manuais dela, reconhecendo-me por fim e depois rolando pela espuma para a profundeza das águas. Desaparecendo.

A mulher estendeu um pano no chão, perto de um penedo do tamanho e da altura exactos de uma cadeira. Tirou o violoncelo do estojo, afinou-o, sentou-se no penedo e começou a tocar. Eu deitei-me na areia e pensei onde tinha estado nos últimos três anos e depois tentei não pensar. A areia estava quente e eu fiquei ali durante muito tempo sem vontade de estar em mais lugar nenhum.

A manhã seguinte nasceu com nevoeiro denso. Robert Kincaid apanhou galhos secos e voltou a atear a fogueira que tinha acendido ao fim da tarde do dia anterior e que tinha ardido durante quase toda a noite. Ele e Wynn McMillan ficaram deitados na areia, abraçados um ao outro, e ele sentiu-se rejuvenescer, afastando os efeitos de uma guerra que transformara homens novos em velhos.

Ela estava com frio e o seu cabelo comprido tinha caído parcialmente da travessa que o prendia bem penteado ao alto.

Mesmo assim, sorriu e beijou-o, e tornou a beijá-lo. E ali ficaram deitados, tocando-se um ao outro até que o céu tomou uma tonalidade cinzenta-clara e o sol se tornou uma luz pálida e difusa rompendo o nevoeiro. Era a terceira vez que faziam amor desde que tinham chegado à praia.

«Ficas por cá então?», perguntou ela mais tarde.

Ele sentou-se e sacudiu areia das mãos, calçou as botas e começou a apertar os atacadores. «Não posso. Preciso de arranjar trabalho e tenho de contactar a National Geographic a saber se têm alguma coisa para mim. Fiz muitas reportagens para eles antes da guerra. Estou a pensar fixar-me na área de São Francisco. Não é longe. Podemos encontrar-nos com frequência.»

«Eu sei. Mas às vezes gostava que a vida fosse sempre assim, como ontem à noite, como hoje de manhã.» Encostou-se à camisa húmida de Kincaid e começou a mexer-lhe no colarinho.

Ele tinha a cabeça inclinada contra o alto da cabeça dela e sentia-lhe a maresia no cabelo. Do nevoeiro irrompeu um bando de pelicanos, voando para sul numa linha irregular, a escassos centímetros da água. Desapareceram na neblina, dando lugar a gaivotas que iniciavam os seus afãs matinais. Por mais agradável que o momento fosse, Robert Kincaid sabia que não podia ser congelado nem perpetuado intacto. E sentia dentro de si uma certa inquietação. Estendia-se à sua frente uma segunda vida e ele estava impaciente por começar a vivê-la.

Wynn McMillan desapertou os dois primeiros botões da camisa dele, beijou-o no peito, deixando a cara pousada contra a sua pele por alguns momentos, enquanto Robert Kincaid lhe afagava o cabelo e sentia os grãos de areia espalhados por ele. Ela virou a cabeça e repousou contra ele, apontando para o oceano e sussurrando: «Dizem que as baleias cinzentas aparecem em Março.»

 

OUTONO DE 1981

Trinta e seis anos e três meses depois das praias outonais de Big Sur, Novembro em South Dakota prolongava-se, severo e desagradável, um prelúdio revelador do Inverno agreste que aguardava. Já grande parte do que voava ou corria tinha rumado a sul ou se tinha enfiado na terra. Carlisle McMillan notou que as atitudes das pessoas tinham mudado, os rostos chupados de resignação, preparando-se para meses a viver dentro de portas. Até as suas posturas pareciam ter-se vergado como se lhes tivesse crescido uma carapaça, as cabeças se tivessem encolhido e suspendessem as suas vidas até ao degelo de Março e Abril.

A biblioteca em Falis City estava superaquecida, com os radiadores, na etapa final de um sistema arcaico de aquecimento a carvão, a chocalhar e a sibilar. O edifício estava praticamente vazio, a meio da manhã, e os únicos sons, à excepção do sistema de aquecimento, eram o do folhear de um jornal que uma mulher idosa consultava e o trabalho quase silencioso de um bibliotecário que colocava livros em prateleiras. O bibliotecário tinha olhado duas vezes na direcção de Carlisle, interrogando-se se teria chegado um índio de Rosebud ou de Wounded Knee.

Carlisle procurou o nome de Robert L. Kincaid no Wbo's Who e não encontrou nada. O bibliotecário encarregado da secção de consulta verificou no directório dos directórios e informou Carlisle que existia um guia separado, semelhante ao Who's Who, especificamente para os fotógrafos profissionais.

— Julgo que deve estar na segunda enfiada de prateleiras na secção de consulta, próximo do sítio onde encontrou o Who's Who.

Sentado a uma mesa bem polida de construção sólida e de um estilo antigo que lhe agradava, Carlisle passou os dedos pelo carvalho-branco e fitou o livro à sua frente. Abriu-o na secção «K» e deixou os olhos descer lentamente pelas colunas.

 

Kincaid, Robert L, nascido a 1 de Agosto de 1913, em Barnesviile, Ohio; pai, Thomas H, mãe Agnes, casou com Marian Waterson em 1953, divorciou-se em 1957. Serviço militar, 1931 -35; Corpo de Fuzileiros Navais dos E.U., 1943-45. Prémios dignos de nota: «Carreira Notável», Sociedade dos Fotógrafos Americanos; «Uma Vida de Excelência», International Journal of Photography. Fotógrafo independente sobretudo para a National Geographic. Outras reportagens para a Life, Time, Globetrotter e outras revistas de renome idênticas. Fotojornalista especializado em localizações exóticas e por vezes perigosas. Conhecido por interpretações poéticas de motivos mundanos e outros. Morada: desconhecida.

 

Robert Kincaid, quem quer que fosse, teria sessenta e oito anos, pensou Carlisle, estudando a informação existente. Dirigiu-se às estantes da National Geographic e carregou uma braçada de revistas, datadas a partir de 1978, para outra mesa. Demorou quase uma hora a folhear as páginas, examinando entretanto dois artigos de interesse geral para ele. Mas não havia nada sobre alguém chamado Robert Kincaid.

Deu início a uma pesquisa metódica, procurando de trás para a frente pelas edições, ano a ano. Na edição de Fevereiro de 1975, havia um artigo sobre ceifeiras debulhadoras nas Grandes Planícies com fotografias de Kincaid. Encontrou outras peças em 1974 e 1973. Uma nota de rodapé num artigo de 1972 sobre o Parque Nacional de Acadia indicava que Kincaid tinha partido um tornozelo durante a reportagem. Carlisle não só sentiu admiração pela fotografia deste Kincaid, como apreciou igualmente a perseverança e genica do velhote. Aos cinquenta e nove anos, Kincaid ainda andava pelo mundo a escalar penhascos com as câmaras.

Depois do almoço, num café na praça da cidade, Carlisle regressou à biblioteca e continuou a pesquisa. Enquanto recuava nos anos, apareciam cada vez mais trabalhos de Kincaid na revista. Por fim, relacionado com um artigo de 1967 sobre as selvas em vias de desaparecimento da África oriental, Carlisle McMillan descobriu o que queria: uma fotografia do homem, na última página da revista. Robert Kincaid estava de cócoras junto a um rio africano, visivelmente a estudar qualquer coisa à sua frente, com a máquina fotográfica ao nível do peito. O cabelo comprido caía-lhe bem sobre o colarinho da camisa e tinha uma corrente de prata à volta do pescoço, com uma espécie de medalhão preso à corrente.

E foi nesse momento que Carlisle sentiu um arrepio e se recostou na cadeira, por um momento, fitando o tecto alto do edifício Carnegie. O homem na fotografia usava suspensórios cor de laranja largos. Wynn recordava os suspensórios.

Um grande grupo de crianças de escola estava a entrar na biblioteca, a pairar e a derrapar pelo chão apesar dos melhores esforços de um professor para controlá-las. Carlisle ficou sentado mais alguns minutos, fixando a fotografia de um homem de cócoras na África oriental, um homem que segurava numa câmara e usava suspensórios. Marcou a página com uma tira de papel de consulta da biblioteca e começou a folhear os volumes anteriores.

Ao todo, encontrou vinte e oito artigos, alguns com data do fim dos anos trinta, para os quais Robert Kincaid tinha feito as fotografias. Em seis dos artigos, o texto também lhe era atribuído. Havia quatro fotografias distintas de Kincaid, uma de uma edição de 1948. O cabelo comprido ainda não se tinha tornado grisalho, nessa época, e embora Carlisle soubesse que podia ser imaginação sua, o cabelo parecia ser exactamente do mesmo tom de castanho que o seu. O nariz e maçãs do rosto eram igualmente parecidos, quase com traços de índio americano. No entanto, Carlisle era claramente de constituição mais entroncada do que Kincaid, fruto da sua ascendência selvagem e guerreira de clãs escoceses, como a mãe gostava de dizer.

Carlisle fotocopiou todas as páginas de todos os artigos em que Robert Kincaid tinha participado, e ainda as quatro fotografias dele. A sua intenção era examinar outras revistas de renome a partir dos anos trinta, mas a biblioteca ia fechar mais cedo, nesse dia, por causa de uma reunião do pessoal. Acabou de tirar as fotocópias e voltou para a carrinha. Enquanto percorria os sessenta quilómetros até casa a noroeste de Salamander, Carlisle tomou consciência de que a sua pesquisa se tinha concentrado tanto em Robert Kincaid que tinha excluído outras possibilidades. Havia com certeza outros «Robert», mas, por qualquer razão, Kincaid parecia ter o domínio do pensamento de Carlisle de tal maneira que se tinha esquecido de verificar se quaisquer outros fotógrafos com esse nome tinham artigos na National Geographic.

Olhando o feixe dos faróis a iluminar a escuridão de Novembro, reflectiu sobre este facto, sobre o tamborilar antigo e profundo que poderia estar a fazê-lo concentrar-se neste homem esquivo chamado Kincaid. Convenceu-se de que era por causa da estreita correspondência entre o que Wynn dissera sobre o homem que conhecera em Big Sur e as informações de Buddy sobre o homem da motorizada.

Nessa noite, Carlisle espalhou as fotocópias no chão e agrupou-as segundo a localização. Na maioria, eram de lugares distantes como a índia, África, Guatemala, Espanha, Austrália. Duas eram do Canadá. Nos Estados Unidos, uma era de Iowa, outra dos braços fluviais pantanosos de Louisiana, uma de Maine e outras duas do faroeste.

Dumptruck levantou-se do sítio onde estava debaixo do fogão a lenha e foi deitar-se a ronronar em cima de uma pilha de fotocópias.

— Horas do jantar, matulão? Desculpa, tenho-me esquecido de ti.

Enquanto Dumptruck comia uma lata de atum, Carlisle segurou numa das fotocópias directamente por baixo da luz da cozinha e estudou-a. A reprodução era nítida e o homem chamado Robert Kincaid olhava para ele da imagem. Pousou-a, voltou a pegar nela fitando-a intensamente.

Caramba, tinha-lhe escapado qualquer coisa, e ali estava: a pulseira no pulso direito do homem. Wynn tinha mencionado uma pulseira. Suspensórios, pulseira, um «A» no depósito da gasolina da motorizada e um Robert L. Kincaid que tinha registado a mota em 1945.

Carlisle voltou à escrivaninha, estudando o diagrama que tinha elaborado antes e a lista de pistas escrita inicialmente, e depois desenhou uma tabela num bloco de notas amarelo, tremendo um pouco quando começou a assinalar as pistas. Quando terminou, não havia um único espaço em branco à frente da lista inicial.

 

Robert L. Kincaid

«A» = Mota Ariel Four

Reg. S.F. 9/45    

Fotógrafo     

Muito viajado

Independente     

Revistas

Segunda Guerra Mundial  

Fuzileiros Navais

Pulseira

Suspensórios     

«30 e poucos» = 32 anos em 1945

 

— Dumper, isto está a ficar arrepiante — disse ele ao gato, que estava sentado no soalho da sala de estar, a lavar-se com longas lambidelas húmidas. Carlisle debruçou-se no peitoril da janela a contemplar a escuridão de South Dakota.

Nessa noite ficou acordado durante muito tempo. Ao som do crepitar agradável do fogão de lenha na sala de estar, pensou em Robert Kincaid e nos artigos que lera. O homem de jeans, camisa caqui e suspensórios tinha vivido uma vida verdadeiramente itinerante, um nómada a atravessar a face da Terra. Se era o homem das recordações de Wynn, não admirava que tivessem perdido o rasto um ao outro. A mãe tinha saltado bastante de poiso em poiso quando era nova e Kincaid, pelos vistos, nunca tinha ficado muito tempo no mesmo sítio. Evocou mentalmente os olhos de Robert Kincaid e o homem devolveu-lhe o olhar algures da África oriental.

 

Dois dias após a sua pesquisa na biblioteca de Falis City, Carlisle McMillan fez uma chamada para os escritórios da National Geographic em Washington D.C. Tinha-se esquecido da diferença de uma hora de fuso horário e uma secretária informou-o de que tinham saído todos para almoçar, mas talvez ela pudesse ajudá-lo. — Pode repetir? Está à procura de quem?

— Chama-se Robert Kincaid. Pelo número de artigos que tenho, fez muitos trabalhos para a revista entre 1930 e 1975. Estou a tentar localizá-lo. É possível que seja meu parente.

— É, hoje em dia dá ideia que toda a gente se dedica à genealogia. O meu marido anda a fazer a árvore genealógica dele. Vai demorar um bocadinho. Pode esperar?

— Posso, claro. — Carlisle tamborilou com o lápis num caderno e esperou. Dumptruck saltou para o colo de Carlisle e começou a dar patadas no lápis. Carlisle moveu rapidamente o lápis para trás e para a frente pela borda da mesa, a cabeça do gato seguindo atentamente os movimentos entre patadas. Lá fora, o céu estava baixo e sombrio e batiam contra as janelas gotas de chuva gelada.

A secretária voltou ao telefone. — Desculpe a demora. Tive de ir ver nos arquivos mortos. Se estivermos a falar do mesmo Robert Kincaid, tem razão. Fez muitos trabalhos para a revista durante vários anos. Os nossos registos indicam que a última reportagem foi em 1975. Pelos vistos, era um andarilho e tanto. Alguém escreveu no cimo da pasta dele: «Vai para qualquer lado e fica até o trabalho estar feito. É bem sucedido naquilo que faz.»

— Há alguma indicação nos registos de que esteve nas Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial? — perguntou Carlisle. Ouviu o folhear das páginas do outro lado.

— Sim, esteve nos Fuzileiros Navais. Há aqui um curriculum antigo; diz que passou à reserva em Setembro de 1945 aos trinta e dois anos. Foi a segunda comissão. Já tinha estado na tropa, acabou o período de serviço em 35 e veio trabalhar para nós, e depois as forças armadas, pelos vistos, voltaram a chamá-lo quando começou a Segunda Guerra Mundial, mas dessa vez alistou-se nos Fuzileiros Navais. Nasceu em Barnesville, Ohio, e acabou aí o liceu. Não há mais nada, a não ser uma longa lista das reportagens que fez para nós, mas parece que já tem essa informação.

Fez uma pausa momentânea. — Acabo de me lembrar duma coisa. Acho que tenho ideia de ter pegado na pasta deste Kincaid há cerca dum ano. Houve alguém que pediu informações sobre ele.

— Faz alguma ideia de quem possa ter sido? Homem, mulher?

— Deixe ver. Acho que é capaz de ter sido uma mulher, mas não tenho a certeza. Estava cá a trabalhar há pouco tempo e transferi a chamada para um dos editores adjuntos. Ele pediu-me a pasta. Não me lembro de mais nada. Passava-lhe o editor, mas ele já saiu da revista e não sei para onde foi.

— Tem alguma morada ou número de telefone de Mr. Kincaid?

— Vejo aqui uma morada de Bellingham, em Washington, e um número de telefone.

Carlisle tomou nota da morada e do telefone, agradeceu a ajuda da mulher e desligou. Reflectiu por um momento e, em seguida, marcou o número de Bellingham sem saber muito bem o que diria se Robert Kincaid atendesse. Não precisava de se preocupar. Atendeu-o o agente de uma companhia de seguros que lhe disse que o número tinha sido atribuído à companhia dois anos antes, altura em que abrira a nova delegação. Desculpe lá. Mas talvez Carlisle estivesse interessado em falar do programa inovador de pensões vitalícias que estavam a oferecer? Carlisle não estava interessado.

A seguir, tentou a Câmara de Comércio de Bellingham. Segundo o anuário da cidade, não residia em Bellingham nenhum Robert Kincaid. A morada que lhe deram era agora um centro comercial que tinha sido construído em 1979-Carlisle ficou frustrado, momentaneamente quase deprimido, sentindo-se como que a olhar pelo lado errado de um telescópio. Pareceu-lhe estar a aproximar-se, mas agora sentia o contrário. Afinal de contas, o homem chamado Robert Kincaid podia estar em qualquer sítio ou enterrado e bem enterrado.

Estava a ponto de desistir de todo o projecto. Esquadrinhando um passado demasiado antigo que abarcava tantos becos sem saída, perseguia uma sombra esquiva com provas que não valiam nada. O único meio de ter alguma certeza de alguma coisa seria encontrar este Kincaid e perguntar-lhe se tinha feito amor com uma mulher, numa praia de Big Sur, no Outono de 1945. E mesmo isso não provava nada conclusivamente, mesmo que tivesse acontecido. Se a vida era tão fácil e livre em Big Sur, como Wynn recordava, talvez ela se tivesse envolvido com outro homem por essa altura. Não tinha considerado essa possibilidade e não sabia bem como perguntar à mãe.

Ao fim da tarde, depois de rachar lenha durante duas horas e de tomar um duche, Carlisle saiu para o alpendre da frente e contemplou longamente a paisagem rural mergulhada em nevoeiro até Wolf Butte. Voltou a entrar em casa e sentou--se junto do fogão a reler os artigos que tinha fotocopiado na biblioteca de Falis City, à procura de uma pista, um indício, alguma coisa que lhe tivesse escapado.

 

A doze quilómetros do lugar onde Carlisle estava sentado junto do fogão a lenha, uma velha carrinha verde, com os dizeres «Kincaid Photography, Bellingham, Washington» em letras desbotadas e quase invisíveis pintadas em ambas as portas, descia ao fim da tarde a rua principal de Salamander, South Dakota. Robert Kincaid estacionou a carrinha e entrou numa taberna chamada Leroy's. Três homens com chapéus e botas de cowboy estavam no bar a rir, mas calaram-se e olharam para o recém-chegado com expressões pouco amigáveis.

Leroy apareceu por detrás do balcão e perguntou ao forasteiro o que desejava tomar.

Robert Kincaid respondeu que para já nada, obrigado, e perguntou pelo homem que tinha sido seu guia, há alguns anos, quando fez uma reportagem fotográfica numa estação arqueológica a oeste da vila.

— É, vive do outro lado da rua, por cima do que era antigamente a loja de electrodomésticos do Lester. Continua mesmo intratável de sempre.

Pensando melhor, Kincaid comprou seis garrafas de cerveja a Leroy e atravessou a rua. Havia uma luz na divisão por cima do Lester's. Kincaid subiu as escadas e bateu à porta, baixando-se para massajar o tornozelo doente enquanto esperava.

— Quem diabo está aí e que é que quer? — ouviu-se uma voz arranhada de velho lá de dentro.

Kincaid disse quem era e a porta abriu-se.

— Com mil raios, o fotógrafo hippie do oeste! — Deu uma palmada no ombro de Kincaid. — Eu sei que não é hippie, mas esse cabelo comprido faz-me sempre lembrar esses sacanas que não fazem nada senão foder. Entre e veja se traz essas cervejas consigo. Foi... há quanto tempo é que andou por aqui a fazer aquelas fotografias?

Kincaid disse-lhe que tinha sido há oito anos e perguntou se podia ir buscar Highway em lugar de o deixar na carrinha.

— Então não pode! — disse o velho. — Ainda não o vi, mas em geral gosto de cães. Ainda estou para conhecer um cão que não tenha todos os traços de um bom carácter... confiança, lealdade, honra, tudo isso. Não posso dizer o mesmo da maioria das pessoas que conheci.

Com este ponto de vista, o velho podia dirigir um motel em Astoria, Oregon, pensou Kincaid, enquanto levava Highway pelas escadas rangentes iluminadas apenas por uma lâmpada solitária em cima.

E assim passou a noite. Falaram da vida e da estrada, do tempo da guerra, quando as questões do bem e do mal não ofereciam dúvidas a ninguém, e das liberdades que eram manipuladas, como cristal delicado, por quem era novo de mais para a jogada, incluindo eles. Falaram do grande amor do velho por uma rapariga francesa do tempo em que combateu na Segunda Guerra Mundial após a libertação de Paris.

Kincaid perguntou pelo acordeonista que por vezes tocava no Leroy's.

— É, o Gabe ainda lá toca. Mas só ao sábado à noite, chegou um bocado cedo. Se puder ficar por cá até sábado, podemos lá ir apanhar uma piela e calar os labregos quando começarem a queixar-se que o Gabe toca tangos a mais e música de cowboys a menos. Por acaso, o Gabe esteve em Paris na mesma altura que eu e aprendeu os tangos com os músicos lá nos cafés. Ficou mesmo apanhado por aquela música. Fico sempre a fungar quando ouço essas canções do outro lado da rua aos sábados à noite. Faz-me pensar em Paris... e na Amélie. Kincaid disse que gostava de ficar, mas tinha de seguir viagem na manhã seguinte.

— Bem, nesse caso, pode dormir no meu sofá, se quiser, e passar a noite. Passe aí um desses cigarros que estou a ver no bolso da sua camisa. Os meus acabaram-se há dois dias e esta maldita perna que foi apanhada por uma retroescavadora, um ou dois anos depois de ter cá estado, tem andado a chatear-me e não consegui sair de casa nestes dois dias.

Kincaid levou Highwaya a passear à noite, deixando-o fazer o que Highway fazia. Tinha começado a cair chuva com pedacinhos de gelo à mistura e a rua principal de Salamander estava deserta à excepção de alguns veículos estacionados à porta do Leroy's. Detendo-se junto da carrinha, Kincaid pegou no saco-cama antes de voltar a subir as escadas para o apartamento do velho. A meio caminho, uma dor aguda atingiu-o no peito e ele encostou-se à parede, sentindo-se imediatamente sem fôlego e levemente enjoado como se todo o seu sistema ameaçasse parar. Ao fim de um ou dois minutos, a sensação dissipou-se e ele acabou de subir, pensando no que lhe estaria a acontecer.

Antes de se deitarem, o velho disse: — Alguma vez lhe chegou aos ouvidos aquela porcaria esquisita que se passou na estação arqueológica depois de a ter fotografado? Kincaid abanou a cabeça.

— Começou um mês depois de ter partido, no máximo. Tinham corrido uns rumores durante algum tempo sobre umas andanças estranhas, luzes a piscar em Wolf Butte, pessoas a afirmar que um pássaro gigante andava a sobrevoar a escavação em círculos à noite. Como disse, maluquices de todo o género. O encarregado da estação caiu de um penhasco e morreu. As outras pessoas que lá trabalhavam não demoraram muito a fazer as malas e a desandar.

Kincaid pensou um momento antes de responder: — História esquisita. Lembro-me de os arqueólogos falarem de um culto antigo dedicado à adoração de uma sacerdotisa qualquer, uma coisa ligada aos vestígios de uma civilização que tinha chegado da Ásia, atravessando as pontes terrestres.

— Bem, não interessa. Está arrumado — suspirou o velho. — Um rapaz novo instalou-se por lá na casa do velho Williston, não muito longe de Wolf Butte, e não parece estar preocupado. Seja como for, acho que estamos os dois prestes a cair, é capaz de ser melhor apagar a luz.

— Por mim tudo bem — disse Kincaid. — Estou estourado.

Na escuridão, tinha começado a nevar levemente e, de manhã, Robert Kincaid passou alguns minutos a limpar Harry. No segundo andar de um edifício próximo, o velho debruçou--se na janela e gritou-lhe.

— Para a próxima não demore tanto a aparecer. Tenho sempre aqui lugar para si.

Kincaid acenou-lhe, fez marcha atrás na rua e virou para leste, em direcção a Iowa.

 

OUTRAS POSSIBILIDADES

Carlisle McMillan ligou à mãe para a galeria de arte de Mendocino.

A voz dela estava vibrante. — Carlisle, estou a gostar. Já falei mais contigo nas últimas semanas do que nos últimos anos.

— Wynn, tenho de te perguntar uma coisa muito pessoal. Nem me passaria pela cabeça perguntar, mas é fundamental para a investigação que estou a fazer.

A voz de Wynn suavizou-se, matizada com uma sugestão de cautela. — Bem, faz lá a pergunta primeiro.

— Houve... quero dizer... bolas, é difícil perguntar isto a uma mãe... tiveste alguma relação com outro homem em Big Sur? — Carlisle respirou fundo. — O que quero dizer é: há alguma hipótese de eu andar à procura da pessoa errada?

De Mendocino, durante um momento, chegou o silêncio. — Carlisle, nunca te escondi muita coisa, mas agora pouco te falta para seres impertinente, sabes?

— Eu sei. Mas como disse, é importante. Posso estar a seguir uma pista completamente errada.

— Estou a perceber — respondeu Wynn McMillan, num tom ainda suave, mas claramente a reflectir.

Carlisle esperou, calculando pelo silêncio que não se tinha enganado.

Por fim, Wynn falou frontalmente. — A resposta é sim. Houve outros dois e, acredita, foi uma coisa que considerei cuidadosamente quando descobri que estava grávida. Para o senhor X, as datas não batiam certo. Tinha de estar grávida há onze meses para ter sido ele. O senhor Y apareceu depois de eu já estar grávida, mas quando ainda não tinha a certeza absoluta. É... é bastante difícil falar disto com o meu filho...

contigo.

— Wynn, ouve, eu não faço juízos sobre essas coisas, nem quando envolvem a minha mãe. Precisava da informação, mais nada, e peço desculpa por perguntar. Mas não havia outro meio de descobrir.

— Compreendo. Ui, está a entrar um cliente. Tenho de ir. Quando voltarmos a falar, conto-te uma coisa esquisita que aconteceu outro dia.

— Diz-me agora, se for importante.

— Acho que é só a minha criatividade a fazer horas extraordinárias.

— Está bem. Obrigado, Wynn.

— De nada. Da próxima vez, telefona-me a falar do tempo ou coisa parecida.

— Está... adeus.

— Adeus, Carlisle.

Sentado ao pé do telefone, Carlisle reflectiu durante muito tempo, fitando o rosto de Robert Kincaid nas fotocópias em cima da escrivaninha.

 

ROSEMAN BRIDGE

Francesca Johnson, de pé na sala de estar, contemplava a chuva. Desde o nascer do dia que chovia e deixava de chover, chovia novamente, tornando as pastagens amolecidas e planas. Elevava-se um nevoeiro do vale distante, por onde o rio Middle corria, que parecia aproximar-se inexoravelmente da casa à medida que o dia passava. Com a temperatura exterior a descer para valores negativos, era bem possível que nevasse ao princípio da noite, segundo a rádio WHO em Des Moines.

Tocou o telefone na parede da cozinha, soando longínquo e solitário na casa silenciosa. Francesca atendeu ao quarto toque.

— Olá, mamã. Estou só a ligar para saber como estás — disse Carolyn, do outro lado da linha, em Burlington, Vermont.

Francesca sorriu. Os filhos, ainda pequenos aos seus olhos, soavam sempre como adultos à distância. Carolyn com trinta e dois anos, Michael um ano mais velho, lutando com casamentos e vidas próprias. Carolyn estava no oitavo mês da sua segunda gravidez e os cinco minutos em que falaram uma com a outra foram dominados por conversas sobre bebés.

— Podes vir visitar-nos quando o bebé nascer? — perguntou Carolyn. — A altura deve ser perfeita. As minhas aulas acabam dez dias antes da data prevista. Posso tirar um tempo para olhar pela Melinda e orientar o bebé antes de começar a minha tese.

— Vou tentar. Não... quero dizer, é claro que vou.

— Óptimo. Tens de sair da quinta de vez em quando, mamã. Desde que o papá morreu, estou sempre a imaginar-te aí sentada sozinha, dia após dia.

— Não, estou a passar muito bem, Carolyn. Não te preocupes comigo. Tenho muita coisa com que me ocupar. — Não era bem verdade, mas não andava longe. — Estou a ler imenso e tenho dado aulas em Winterset, uma ou duas vezes por mês.

— Continuas a tentar enfiar poesia à força naquela gente?

— Sim, e continuo a falhar. — Não mencionou que, sempre que apresentava W. B. Yeats aos alunos, pensava em Robert Kincaid e na sua declamação de «Song of Wandering Aengus».

— O Floyd Clark ainda anda a tentar convencer-te a sair com ele?

— Anda. — Francesca riu suavemente. — Acho que já lhe dei com os pés tantas vezes que ele começou a perceber.

— Que nojo, o Floyd Clark. Arranjas muito melhor — admoestou Carolyn, demonstrando o sentido de protecção da filha adulta e a pequena crueldade dos ainda jovens e razoavelmente atraentes.

— Pois, talvez. Mas, seja como for, é simpático da parte dele convidar-me. Tenho uma certa pena do Floyd agora que a Marge morreu, mas não o suficiente, acho eu, para aceitar os convites dele. — Francesca olhou pela janela da cozinha para os campos cobertos de restolho, um Outono chuvoso dando rapidamente lugar a um Inverno que era bem capaz de começar antes do final do dia.

A conversa continuou, conversa de família, até que Carolyn disse: — Tenho de desligar, mamã. O David chega hoje cedo do trabalho para irmos juntos à aula de Lamaze. Falei ontem com o mano Michael na Flórida e ele pediu-me para te dizer que telefona nos teus anos.

— Que bom! Gosto sempre de falar com os dois e saber notícias das vossas vidas atarefadas.

— Está, mamã. Adeus. Cuida de ti. Amo-te. Falamos nos teus anos.

— Também te amo, Carolyn.

Pouco depois das três e meia da tarde, Francesca calçou as galochas e enfiou um impermeável amarelo por cima da camisola e do casaco leve, metendo o cabelo dentro do capuz. Desceu os degraus do alpendre e começou o seu passeio, virando à direita no fim do camir dirigindo-se mais uma vez para Roseman Bridge.

 

Robert Kincaid evitou atravessar Winterset a caminho de Roseman Bridge. Além da possibilidade de Francesca ter ido passar o dia à cidade, o trajecto principal de Winterset para a ponte passava directamente pela quinta dela. Não estava preparado para transformar uma última visita sentimental num acto deselegante de auto-satisfação que podia tornar-se embaraçoso para ele e para Francesca. Isto é, se ela ainda vivia em Madison County. Quem sabe, talvez se tivesse mudado com o marido para alguma comunidade de reformados no Arizona. Tinha ouvido dizer que as pessoas no Midwest tinham tendência para fazer isso.

A ponte situava-se aproximadamente a quinze quilómetros a sudoeste da cidade. Virou para sul na estrada 92, em Greenfield, e depois avançou para leste e novamente para norte por uma série de estradas secundárias que estavam alcatroadas durante uma certa extensão, acabando por se transformar em pisos de cascalho ao aproximar-se da ponte. A cada quilómetro, o fôlego parecia abandoná-lo, e não tinha nada a ver com angina ou fosse lá o que fosse que lhe atormentava as entranhas.

Subindo um outeiro para norte, chegou a uma pequena igreja e o rio Middle surgiu em baixo, a velha ponte erguendo--se no mesmo lugar onde se encontrava há cem anos. Estacionou Harry num renque de árvores a cem metros da ponte e saiu, enfiando uma máquina fotográfica debaixo da parka leve e puxando um boné de baseball para cima dos olhos.

— Higbway, acho que te vou deixar na carrinha. Isto é uma coisa que tenho de fazer sozinho. — O retriever ficou desapontado e ladrou duas vezes ao observar Kincaid a descer uma estrada de cascalho. Kincaid voltou-se, sorriu e voltou para a carrinha.

— Pronto, pronto, podes vir.

A farejar o chão, o cão ultrapassou-o ao dobrarem uma curva e começou a descer uma colina com uma inclinação suave, em direcção à ponte.

Alimentar ressentimento contra o destino não leva a nada: as coisas acontecem sem sentido e nada mais se pode dizer. Vituperar contra tal sorte é condenar o fumo ou o vento e sofrer durante todos os dias da existência. No final, nada resta senão arcar com tudo o que nos foi dado e seguir em frente.

 

Francesca Johnson ouviu o tamborilar da chuva no capuz do impermeável e lembrou-se de ter lido algures estas palavras, talvez num dos livros que recebia do seu clube de leitores por correspondência. E, à sua maneira, não alimentava tais ressentimentos e vivia razoavelmente contente. E quando sofria, não era por ter tomado a decisão, dezasseis anos antes, de ficar ao lado da família em lugar de partir com Robert Kincaid. O sofrimento provinha da necessidade que teve de fazer a escolha que o destino e as suas próprias acções lhe apresentaram.

Depois de Richard morrer, deixou de procurar repelir as suas recordações de Robert Kincaid, do tempo que passaram juntos, e começou simplesmente a recordá-lo sempre que desejava. Meu Deus, nessa época, ele pareceu-lhe a própria Vida, cheio de energia e de força física, falando das viagens, dos sonhos e da solidão. E, nas noites passadas juntos, e nos dias também, tinha-o acolhido dentro de si e amado com uma espécie de intensidade que decorria de todos os anos de um anseio reprimido e desesperado por qualquer coisa que não conseguia sequer articular antes de Robert Kincaid aparecer na sua vida.

Por vezes, no seu leito silencioso, com o velho fonógrafo de Carolyn a tocar Autumn Leaves, afagava os seios e imaginava-o novamente ali, movendo-se em cima dela e possuindo-a como o leopardo que ela lhe chamara nos diários que escrevia. Foi só há dezasseis anos? Parecia mais tempo. Outra vida. Outra forma de estar. E, no entanto, noutras noites, quando ele invadia o seu pensamento, parecia-lhe que estivera com ela ainda um momento antes.

Robert Kincaid era para ela, entre outras coisas, um homem delicado, que representava uma espécie de civilidade que ela via em declínio por toda a parte. Podia ter usado processos tortuosos para tentar contactá-la ao longo dos anos. Mas ouviu-a com atenção quando ela falou da família e da razão por que nunca poderia partir. E tinha a certeza de que o seu silêncio se devia unicamente ao facto de não querer causar-lhe sofrimento, expondo o que se passara entre ambos.

Procurou imaginar como seria se voltassem a encontrar-se. Mesmo com a sua idade, comportar-se-ia como uma colegial num primeiro encontro? Ele continuaria a ser um pouco desastrado e tímido, como quando se conheceram? Continuariam a desejar fazer amor ou talvez sentar-se apenas na cozinha dela a recordar? Esperava que fizessem amor.

Por mais que se esforçasse por ser realista com as suas imagens, por mais que tentasse uma extrapolação honesta daquilo que ele era para aquilo que poderia ser agora, continuava a ver Robert Kincaid a sair da carrinha, numa tarde de Verão. E suspeitava que o veria sempre assim. Nesse aspecto, supunha que era igual a qualquer outra pessoa que tivesse amado alguém durante muito tempo. Vê-lo sempre a uma luz favorável era uma forma de benigna protecção e não de desonestidade.

E havia uma parte de si que acreditava que ele já não era vivo. À medida que os meses, os anos, passavam, essa parte parecia avolumar-se nos seus pensamentos, embora nunca fosse capaz de se resignar a essa possibilidade.

Atrás de si ouviu um veículo a rolar na estrada. Harmon, o ajudante de Floyd Clark, abrandou ao passar por ela e teve o cuidado de não a borrifar de lama. Depois de se afastar o suficiente, Harmon acelerou em direcção à quinta de Clark a quase cinco quilómetros para leste. Francesca continuou a andar, as botas produzindo ruídos de sucção quando se enterravam na lama. Estava a quilómetro e meio de Roseman Bridge.

 

Robert Kincaid inspeccionou a ponte à distância, certificando-se de que não havia ninguém por perto, e começou a descer lentamente em direcção ao rio. De vez em quando, o nevoeiro quase envolvia a ponte, dissipando-se por um momento e adensando-se mais uma vez.

No interior, a ponte cheirava a madeira húmida, velha e bafienta, a excrementos de pombo e a folhas molhadas. Havia graffiti na parede, alguns novos, outros ali presentes há vinte anos, gravados por quem parecia não ter outro modo de anunciar ao mundo que também existia e tinha importância.

A temperatura estava a descer e o seu tornozelo doente retesou-se. Baixou-se para massajá-lo até a dor se tornar tolerável. Tirou um pequeno frasco de aspirina do casaco, pegou em dois comprimidos e engoliu-os em seco.

Em baixo, Kincaid ouvia o som do rio Middle a gorgolejar para leste. Olhou através de um espaço, onde uma prancha lateral se tinha desprendido, e viu o penedo a que subiu, tantos anos antes, quando olhou para cima para Francesca Johnson. Havia flores nas margens do rio Middle nesse Agosto e ele tinha colhido um punhado de margaridas amarelas para ela.

Estava contente por ter vindo. Não tinha sido um erro. Aqui, na velha ponte, experimentava uma espécie de serenidade, entregando-se à sensação e experimentando uma tranquilidade interior. Nesse momento, consolava-o saber que este lugar seria o seu território, o lugar onde as suas cinzas seriam um dia levadas pelo rio Middle. Esperava que uma parte do seu pó se unisse à ponte e à terra e que outra parte fluísse com o rio para jusante até rios maiores e, depois, até todos os mares que sulcara em navios de tropas apinhados ou em aviões a jacto através da noite, a caminho de um sítio qualquer.

A chuva gotejava do beiral da ponte através de brechas no telhado onde o revestimento a madeira fasquiada tinha há muito caído. Encostou-se a uma estaca de suporte e deixou-se simplesmente inundar por todas as sensações experimentadas dezasseis anos antes e agora. Sabia que isto era uma despedida, um abandono e um encerramento, o seu modo de dizer adeus a Francesca Johnson.

— Que se lixe tudo, a volta que as coisas dão — murmurou para si mesmo. Repetiu as palavras uma e duas vezes, «...volta que as coisas dão». A sua voz assumiu o zumbido distante do motor de um navio a norte do Cairo, o canto de cigarras nas selvas da Nova Guiné, e recordou algumas das palavras que tinha escrito, ainda há um ano, para um capítulo de Colectânea de Ensaios sobre a Vida na Estrada de Michael Tillman.

Foi a única coisa em que pensei durante muito tempo, na partida, e desde cedo o destino nunca importou. Desde o princípio, e hoje em dia vejo-o com clareza, o meu trabalho fotográfico foi, em parte, uma paixão e, em parte, um pretexto para viajar. E, no entanto, visitei uma centena de lugares— mais, provavelmente— onde desejei possuir uma vida diferente para cada um deles, para aí poder instalar-me e viver, para poder conhecer bem certas pessoas como outros, a maioria, conheceram. Podia ter gerido um minimercado naquela vilazinha poeirenta numa encosta do leste do Novo México; entrado para o ashram em Pondicherry, na índia; ou aberto uma garagem numa vila de montanha no sudoeste do Texas; ou criado ovelhas nos Pirenéus; ou sido pescador numa aldeia mexicana à beira-mar.

O corte é duplo e difícil em qualquer dos casos, uma questão de compromissos. A estrada contra uma vida segura. Nunca tinha pensado muito nisso antes dos cinquenta e poucos anos. Nessa altura, conheci uma mulher e teria abandonado tudo por ela, incluindo a estrada. Mas havia obstáculos pelo meio e essa foi a minha única oportunidade e, a seguir, voltei à estrada com as minhas câmaras. Agora, nos meus anos tardios, desisti das viagens, mas continuo só. Tantos anos passados afazer as malas e a seguir caminho (para além, suponho, da minha natureza insular e um tanto anti-social) não me muniram das ferramentas que me permitiriam aproximar-me das pessoas.

Assim, nessa vida em que lias à noite à luz de um candeeiro amarelo, pensando em todos os lugares longínquos e desejando talvez visitá-los, lugares onde eu estive dezenas de vezes, eu passava à tua janela e desejava exactamente o contrário. Desejava a tua cadeira e o teu candeeiro, a tua família e os teus amigos. Estava provavelmente uma noite chuvosa quando passei por tua casa, o equipamento no banco ao meu lado, à procura de um sítio onde pernoitar que não fizesse grande mossa no meu orçamento. Terei encontrado um, dormido e seguido caminho na manhã seguinte, recordando o teu nocturno candeeiro amarelo.

Ainda assim, fiz a escolha. Cedendo ao meu grande defeito de estar sempre de partida e de nunca olhar para trás, de nunca sentir o vazio daquilo que deixara ficar, à excepção da mulher, renunciei aos candeeiros de casa e escolhi a estrada. As consequências são da minha responsabilidade e não tenho o direito de lamentar aquilo de que só eu sou culpado.

 

Kincaid abanou a cabeça e sorriu interiormente. Suponho que não há nada mais ridículo do que o sentimentalismo de um velho, pensou. Por outro lado, contrapôs, talvez não passe da confirmação de que, em parte, ainda sou humano.

Decorridos alguns minutos, afastou-se da ponte. Basta. Tinha feito o que viera fazer, reafirmar o que a sua memória lhe dizia. Ocupar uma vez mais o espaço de Francesca, verificar se os sentimentos possuíam a mesma força de outrora. E possuíam. Um grande amor numa vida bastava a qualquer pessoa. Francesca fora o seu grande amor e continuava a ser. E ele viera despedir-se. Deu uma pancada na ilharga da velha ponte e começou a caminhar com um passo ligeiro de que há muito não era capaz.

Highway tinha desaparecido, partido nalguma expedição de caça, calculou Kincaid. Ao sair da ponte, virou para sul, assobiou uma vez e voltou a assobiar, confiante de que o cão iria ao seu encontro no regresso à carrinha. O retriever estava enclausurado na carrinha há dias e precisava de exercício. Perto do cimo da colina, Highway apanhou-o, esbaforido e satisfeito.

 

— Bolas, então não conheço o Robert Kincaid — atroou a voz segura de Ed Mullins, editor fotográfico do Seattle Times. — Vive algures na zona de Seattle.

— Conhece-o bem? — perguntou Carlisle McMillan, transferindo o telefone para a mão direita para poder tomar notas. Apoderou-se dele uma sensação de alívio. Finalmente alguém capaz de fazer viajar Robert Kincaid por um período de trinta e seis anos e de dizer que ele estava vivo.

— Bem, não posso dizer que o conheça pessoalmente, embora me tenha cruzado várias vezes com ele. É uma grande lenda em certas áreas da fotografia, por isso toda a gente por aqui ouviu falar dele, salvo esses rapazes emproados que andaram nas escolas chiques de fotografia. Nenhum de nós conhece bem o Kincaid. É um tipo esquisito, simpático, mas vive no canto dele; o trabalho dele é pouco ortodoxo e hoje em dia não vende bem. Temos usado algumas fotografias dele na nossa secção de reportagens especiais, quase tudo coisas de viagens. O trabalho dele é tão refinado e subtil que não sai muito bem impresso. E depois é demasiado abstracto para o gosto comum.

— Já vi algumas fotografias dele, quase todas em edições antigas da National Geographic — adiantou Carlisle, com esperança de que o editor tivesse mais para dizer.

E tinha. — É, deixe-me que lhe diga, o Kincaid esteve lá, e quando digo lá estou a falar das zonas mais inóspitas do mundo, vinte e cinco anos antes de qualquer um de nós ter a primeira câmara Brownie. Acho que foi a imagem dele de um vagabundo em cima de um comboio de mercadorias, algures no oeste do Texas... um velho vagabundo andrajoso, com óculos de protecção, mãos cheias de cicatrizes, a agarrar numa chapa de ferro em cima da carruagem... que me fez abraçar a fotografia. Percebi pela paisagem desfocada que o Kincaid tinha subido para o comboio em movimento com o vagabundo quando tirou a foto. Uma imagem tremenda, uma imagem tremenda. Apanhou todas as rugas da cara do homem com uma nitidez bestial e as cicatrizes dos dedos do velhote entravam-nos todas pelos olhos dentro. Apareceu numa revista obscura, num artigo chamado «Trilhos do Alto Deserto», há para aí uns trinta anos. Ainda tenho o artigo nos meus arquivos.

Carlisle escreveu «Trilhos do Alto Deserto» no seu bloco de notas. — Alguma hipótese de me arranjar uma cópia do artigo?

— Claro, se conseguir encontrá-lo. Dê-me a sua morada.

Carlisle deu-lhe a morada e continuou o interrogatório. — Tem alguma ideia de como hei-de fazer para localizá-lo? Estou a fazer um trabalho de pesquisa.

— Aguente aí, deixe-me perguntar ao Goat Phillips. Está mesmo a sair do laboratório. Acho que referiu que às vezes encontra o Kincaid num bar da terra.

Carlisle ouviu o baque do auscultador que o editor pousou numa superfície dura.

— Ei, Goat... Goat, chega aqui um minuto, quero perguntar-te uma coisa. — A voz de Mullins sumiu-se quando se afastou do telefone. Carlisle perguntou-se onde é que esse Goat tinha ido buscar o nome e descobriu que não estava minimamente interessado em descobrir1.

Um murmúrio de vozes indistintas em que Carlisle apanhou algumas palavras. «Na baixa?» «Na baixa onde?» «O quê?» «Estrada 99 e quê?»

A voz regressou, clara e distinta. — Ora bem. Aqui o Goat diz que viu o Kincaid num sítio chamado Shorty's, um clube de jazz antigo na baixa. Logo a leste do cruzamento da estrada 99 com Spring Street. Um saxofonista chamado Nighthawk Cummings toca lá às terças à noite e o Goat, como é um gajo todo cool, vai lá às vezes ouvir o Cummings e o trio dele. É nessas noites que encontra o Kincaid, embora nunca tenha falado com ele. Diz que se sente um bocado intimidado por ele. O Goat diz que o Kincaid está sempre sozinho, bebe cerveja e pelos vistos conhece este Nighthawk Cummings.

Carlisle escrevinhou notas: o nome do bar, a localização, o nome do saxofonista.

— Você é da zona de Seattle? — perguntou o editor. — Qual é o seu interesse no Kincaid? Diz que está a fazer um trabalho de pesquisa? É fotógrafo?

— Não, estou a falar de South Dakota. Estou a fazer um trabalho sobre a história de uma família e acho que o Robert

 

1 Goat significa bode, cabra. (N. da T)

 

Kincaid é capaz de ser um elo há muito perdido de um dos ramos. Ouça, agradeço-lhe imenso a informação.

— Ora essa, Mr. McMillan. Espero ter ajudado.

— Ajudou imenso. Obrigado outra vez. Pode dizer-me o seu nome?

— Claro. Ed Mullins. Estou atrás desta secretária há uma eternidade, praticamente já não tenho tempo para fazer trabalho de campo a sério. Boa sorte.

Carlisle desligou e imediatamente consultou a lista telefónica de Falis City à procura de uma agência de viagens. Discou o número e informou-se sobre itinerários e tarifas de Falis City para Seattle.

 

Com a temperatura a rondar os zero graus, Francesca Johnson aproximou-se de Roseman Bridge, a sua respiração transformando-se em vapor denso com o frio. Ao entrar na ponte, apossou-se dela uma inquietação e estacou, pondo-se atentamente à escuta. Não conseguiu distinguir nada a não ser o som dos pombos do outro lado e da água por baixo das pranchas do piso da ponte. Baixou os olhos para o pavimento e viu pegadas lamacentas que, pela humidade, pareciam recentes.

Aconchegando-se mais no impermeável e abraçando-se, Francesca estremeceu, não como se tiritasse com o frio, mas como se pressentisse uma presença numa sala às escuras.

— Ei — chamou a medo. — Está aí alguém?. — A sua voz reverberou no espaço cavernoso de Roseman Bridge.

— Ei — repetiu, a sua inquietação avolumando-se.

Na outra extremidade da ponte, via a chuva transformar-se em neve, grandes flocos que começavam a cair e a assentar na estrada. Dirigiu-se à entrada sul e deteve-se no limite da ponte, olhando para a neve no alto da colina. O pequeno maciço de árvores no cimo da colina começava a desaparecer rapidamente na nevasca branca e rodopiante. Tinha a nítida sensação de que estava ali alguém, alguma coisa, escondida ao pé das árvores. Cem metros mais acima na colina e quase obscurecido pela neve, um reflexo amendoado atravessou a correr a estrada e entrou no arvoredo, talvez o cão de um lavrador. Por sobre o vento, Francesca teve a certeza de ouvir o som de um motor a arrancar, no meio das árvores, no topo da colina.

 

Carlisle McMillan reservou lugar num voo de Falls City para Seattle, com escala em Denver, para a segunda-feira seguinte. Precisava de concluir um trabalho de renovação de uma cozinha em Livermore, que demoraria dois dias. Acalmava, assim, a impaciência do dono e ganhava o suficiente para o bilhete de avião.

Ligou às pessoas de Livermore a dizer que estaria lá na manhã seguinte para terminar a cozinha, acrescentando que o complicado tabuleiro giratório para o canto estava acabado e que o levaria consigo quando fosse. Ficaram satisfeitos e sublinharam que estavam cansados de cozinhar na garagem e de comer na sala de estar. Carlisle mostrou-se compreensivo e, depois de desligar, organizou as ferramentas e colocou-as na carrinha.

Francesca sobressaltou-se com o alarido da buzina de um automóvel. O som do vento e a sua concentração mental no que poderia estar nas árvores, no cimo da colina à sua frente, tinha abafado a aproximação da carrinha de Floyd Clark. Este estava estacionado do lado oposto da ponte, a berrar.

— Ei, Frannie! frannie! O HARMON VIU-TE NA ESTRADA E EU PENSEI QUE ERAS CAPAZ DE QUERER BOLEIA PARA CASA JÁ QUE ESTÁ A CHOVER A CÂNTAROS. DAQUI A NADA COMEÇA A NEVAR COMO O DIABO!

Ela rodou nos calcanhares e olhou pela ponte até ver Floyd Clark, que estava meio debruçado na janela da carrinha, a fazer-lhe sinal. Imediatamente se virou mais uma vez para sul, levantando os olhos para a colina.

— FRANNIE! DEIXA-ME DAR-TE BOLEIA. AINDA MORRES DE PNEUMONIA A andar na rua com este tempo. — Floyd voltou a buzinar.

Francesca Johnson saiu da ponte e ergueu mais uma vez os olhos para a colina, vendo unicamente neve branca no ar e na estrada. Floyd tinha saído da carrinha, caminhando até à ponte, e avançava na sua direcção. Ela voltou-se para olhar para ele, os flocos de neve já a assentar na cobertura de Rose-man Bridge. Ignorando as palavras de Floyd, Francesca começou a correr pela colina acima o mais depressa que conseguia, mas com grande esforço e falta de jeito por causa das galochas altas.

A três quartos da subida, tropeçou e caiu no cascalho enlameado. Conseguiu levantar-se com lama e água a cobrir--lhe a frente do impermeável e a pingar-lhe para as botas.

O capuz tinha-lhe caído e o cabelo estava molhado, pendendo em madeixas torcidas e desgrenhadas e colando-se-lhe à cara. Recomeçou a subida.

Floyd Clark seguia-a sempre a gritar. — Frannie, perdeste o juízo?

Francesca chegou ao topo e embrenhou-se nas árvores. Floyd estava apenas a alguns metros atrás dela, a arfar violentamente, mas sempre a gritar acerca de resfriados e pneumonias. No extremo mais distante do estreito arvoredo, havia marcas de pneus na lama e pairava no ar carregado e protegido das árvores o odor a vapores de escape. Francesca Johnson estacou ali, com neve no cabelo e a escorrer-lhe para o pescoço, avistando uma carrinha verde que desaparecia da sua visão, a quinhentos metros de distância, numa estrada de cascalho, na direcção contrária.

Floyd pegou-lhe no cotovelo e guiou-a pela colina abaixo, atravessando Roseman Bridge até onde a carrinha estava estacionada. Um pequeno fragmento de metal estava caído na neve na entrada norte da ponte. Ela apanhou-o e enfiou-o no bolso do impermeável.

Na nova Chevy de Floyd Clark, em direcção a casa, Francesca só conseguia fixar a neve que caía e dizer: — Pareceu--me ver uma pessoa conhecida. Por favor, Floyd, não me faças mais perguntas. Provavelmente foi só imaginação minha.

Ele estendeu a mão e deu-lhe uma palmadinha no braço. — Ora, Frannie, todos nós temos ideias esquisitas de vez em quando. Às vezes dá-me ideia que ouço a voz da Marge na cozinha a chamar-me para o pequeno-almoço.

Em casa, Francesca acendeu a luz da cozinha e tirou o impermeável pela cabeça. O objecto que tinha apanhado à entrada de Roseman Bridge caiu de um bolso, ressaltou uma vez e imobilizou-se no chão junto à perna de uma cadeira. Ela baixou-se e pegou na peça redonda de metal com uma argola presa. A chapa de identificação de um cão, sem nada escrito de um lado. Virou a chapa ao contrário e deixou-a pousada nos dedos, estendendo ao mesmo tempo a mão para pegar nos óculos de ver ao perto. As palavras gravadas na chapa eram difíceis de ler e ela aproximou-se da luz do lava-loiça.

 

1981

63704

Vacina contra a Raiva

Clínica Veterinária de Monroe

Bellingham, Washington

 

O endereço e o número de telefone da clínica estavam igualmente gravados na chapa. Francesca dirigiu-se à janela da cozinha e perscrutou a escuridão, a neve agora pesada a fustigar a casa obliquamente através da luz do pátio. Deixou-se ficar à janela, agarrada à chapa de identificação do cão, a olhar na direcção do rio Middle, e assim permaneceu por muito tempo.

 

A ESTRADA MAIS SOUTÂRIA DA AMÉRICA

Robert Kincaid atravessou o rio Missouri em Omaha, rumo a oeste. Mal se lembrava de ter conduzido os cento e sessenta quilómetros de Roseman Bridge até ao grande rio arrostando estradas cobertas de neve, com o pensamento ocupado por uma mulher, uma velha ponte e todas as suas lembranças sobre elas.

Pernoitou a oeste de Lincoln, Nebraska, olhando de relance para janelas iluminadas por candeeiros nocturnos amarelos enquanto entrava na cidade e procurava um motel que não fizesse grande mossa no seu já magro orçamento. Foi uma noite interminável, a neve a cair lá fora e o sono a chegar apenas às primeiras horas da madrugada. Uma frente de alta pressão avançava atrás da tempestade, trazendo consigo no dia seguinte uma manhã fria e soalheira. Levantou-se cedo vestiu o grosso pólo preto, limpou e aqueceu Harry e rumou a oeste com Highway no assento ao seu lado.

Dois dias mais tarde, abandonando por fim o que a tempestade deixara, e um pouco a leste de Salt Lake City, Robert Kincaid deteve-se numa encruzilhada durante vários minutos Podia tomar uma grande estrada para noroeste em direcção a Seattle ou virar para sul e viajar mais uma vez pela velha estrada 50. O segundo percurso levá-lo-ia por Reno e depois para o Norte da Califórnia. Virou à esquerda, dirigindo-se para sul para apanhar a estrada 50, a que as tabuletas chamavam a estrada mais solitária da América. Tinha realizado um extenso trabalho fotográfico sobre a estrada, vinte e cinco anos antes, quando ainda era uma estrada muito concorrida antes da construção das interestaduais.

Cogitou na peregrinação em que esta viagem estava a transformar-se, ao entrar na estrada 50 na pequena vila de Delta, e iniciou a longa estirada em direcção a Nevada e através do alto deserto. As tabuletas aconselhavam a manter o depósito da gasolina cheio por causa dos espaços imensos que se estendiam à sua frente. Chegou ao Nevada por volta do meio-dia, num desses dias indecisos em que as montanhas debatem com o céu no que as coisas se devem tornar. Sol por alguns minutos, depois nuvens agitadas e chuva, a luz a filtrar--se ocasionalmente através das nuvens, vestígios de neve nos altos desfiladeiros.

Logo após a fronteira do Nevada havia um restaurante para motoristas com duas bombas de gasolina no exterior. Encheu o depósito da Harry e entrou para pagar. Uma mulher alta e magra com um rabo-de-cavalo preto e curto e vestida à cowboy — botas, jeans, camisa de botões de mola — aceitou--lhe o dinheiro e deu-lhe o troco. À sua direita estavam duas filas de slot machines. Naquele momento, ninguém estava a introduzir moedas nelas. Quatro cowboys estavam sentados em redor de uma mesa de póquer, a fumar e a beber cerveja. O cheiro a hambúrguer frito pairava no ar e atrás, na cozinha, um cozinheiro mexia ruidosamente em panelas. Este sítio provavelmente não mudou em cinquenta anos, pensou ele, e por isso agradou-lhe.

— Já me esquecia. Que distância é daqui a Reno? — perguntou à mulher.

— Mais ou menos quinhentos e sessenta dos quilómetros mais intermináveis, desolados e solitários que já percorreu. Verifique os pneus, verifique o óleo, verifique o radiador e no fim verifique as intenções. Não há nada com vida por lá excepto cobras e cowboys e ao sábado à noite é difícil distinguir uns dos outros. — Disse isto suficientemente alto para os cowboys à mesa de póquer ouvirem.

Um deles virou a cabeça na direcção dela e disse numa voz arrastada: — Pois é, Mindy, parece que ontem à noite ninguém te obrigou a entrar para a carrinha do Hoot. Se bem me lembro, tinhas uma Coors Light em cada mão e foste toda entusiasmada e até dançaste pelo caminho.

— Ora, cala o bico, Waddy — disse ela a rir, corando ligeiramente. — Não se deve dizer essas coisas diante dos clientes.

Robert Kincaid sorriu, acenou ao de leve aos cowboys e voltou para Harry. Afastou-se de um dos últimos melhores sítios do mundo e dirigiu-se para Sacramento Pass. À sua frente estendia-se a erva verde prateada. Quem tinha escrito sobre ela? Alguém, com eloquência. Talvez em O Incidente de Oxbow, talvez tivesse sido aí que o tinha lido.

A luz era boa e quase toda a vida tinha perseguido uma boa luz. Com a erva verde prateada e velhos moinhos à distância, tinha muito que fotografar se quisesse. Mas, por razões que não compreendia inteiramente, faltava-lhe a vontade de tirar fotografias sérias, sentindo apenas uma necessidade cega de continuar a andar.

E foi o que fez. A estrada 50 avançava para oeste através de um cenário sem sinais de vida ou habitação, em nenhum dos lados, durante extensos troços, a desolação fazendo-o recuar no tempo para alcançar o passado e trazê-lo para o presente. O pai tinha morrido há cinquenta e um anos e esse facto só por si era suficiente para que Kincaid se sentisse velho. A mãe tinha morrido em 1937, sete anos mais tarde.

Recordou a sua juventude interminável e solitária, que prenunciou a forma como viveria a vida inteira. Sem interesse por desportos ou bailes, enfadado e quase antagónico em relação à educação formal com as suas tentativas incessantes para esmagar ou, pelo menos, controlar o seu espírito, tornou--se um leitor introvertido de tudo quanto havia na biblioteca de Barnesville, Ohio. Os livros, os rios e os prados eram os seus amigos de juventude. Reuniões de pais e professores e subsequentes esforços para o fazer entrar nos eixos e «realizar o seu potencial», como disse um professor, não serviram de nada. Mesmo assim, parecia sair-se com relativo sucesso nos exames oficiais, o que só aumentava a frustração dos outros com o seu comportamento, dada a sua aparente falta de atenção relativamente ao trabalho escolar.

«Se não soubesse, diria que o rapaz herdou directamente o sangue do velho Artemas Kincaid», observou o pai uma noite, quando chegou da fábrica de válvulas onde trabalhou a vida inteira. «É só recuar algumas gerações para ver o Artemas pelo rio Mississippi a ganhar a vida como tocador de banjo e artista de bilhar. Este rapaz tem os bichos-carpinteiros e as esquisitices do Artemas.»

Apesar de tudo, os pais tiveram poucas razões de queixa. Robert Kincaid cresceu reservado e cortês, não lhes dando consumições, à excepção das insistentes chamadas de atenção da escola local, e trabalhava no Verão nos empregos que conseguia arranjar. Quando andava no liceu, a serração local aceitou-o, dando-lhe trabalho nos dois últimos Verões que passou em Barnesville. A Grande Depressão estalou quando acabou o liceu e um mês após a morte do pai, alistou-se no serviço militar a fim de sustentar a casa. Aí, como assistente de fotógrafo, descobriu o que se tornaria a sua profissão.

Quanto às mulheres, tinha havido relativamente poucas. Poucas, mas suficientes. Robert Kincaid não era nenhum mulherengo embora pudesse tê-lo sido facilmente graças aos lugares que o seu trabalho o obrigava a frequentar e às oportunidades daí decorrentes. Algumas ligações passageiras, um casamento de pouca dura na meia-idade, que terminou devido às suas ausências prolongadas em missões fotográficas. E, por fim, Francesca Johnson. Depois de Francesca, deixou de sentir interesse por outras mulheres. Não foi uma fidelidade estudada nem um celibato penoso que viveu nos últimos dezasseis anos, nem uma questão de resistência. Depois de Francesca, deixou simplesmente de sentir interesse. O tempo vivido com ela tinha sido o seu momento marcante e, fora destes limites, não havia natureza romântica.

E assim tinha sido. Desde cedo, comboios e cargueiros, até que as grandes naves voadoras e os DC-3 tornaram possível galgar mais depressa as longas distâncias. Depois disso, os 707. Camelos e jipes nos desertos do Sara e do Rajastão. Uma mula duas vezes, um cavalo uma vez, embora Kincaid nunca tivesse aprendido muito bem a montar. Na Mongólia, não tinha havido alternativa, a não ser um cavalo, quando fez a reportagem, em 1939, sobre os impérios mongóis e calcorreou as vastas e infindáveis estepes durante nove semanas, seguindo a rota da guerra do Grande Cã.

Tinha tido o seu quinhão de maus tratos. No entanto, para além da guerra e de uma infinidade de arranhões e equimoses, no geral tinha tido sorte. Alguns músculos distendidos, o tornozelo partido no Maine, uma cabeça ensanguentada no Congo quando um barco tinha virado a jusante de Stanley Pool. E o episódio de febre-amarela, de que quase morreu, transmitida por um mosquito no Brasil. Uma freira católica tinha cuidado dele durante essa terrível clausura, assegurando--lhe nos momentos em que estava consciente: «Mr. Kincaid, os dias entre o quarto e o oitavo são os mais críticos. Tem de perseverar durante oito dias e depois, subitamente, fica bem.» E ficou, embora a pele tivesse guardado vestígios de icterícia durante várias semanas.

Robert Kincaid reflectia sobre todas estas coisas enquanto conduzia pela estrada 50, deixando a região da erva verde prateada e cruzando o vazio seco das montanhas de Shoshone.

Falou em voz alta com o cão: — Caramba, Highway, não foi nada má quando penso nela... a minha vida, com defeitos e tudo o mais... e tu tens sido das melhores partes. Sabes uma coisa? Quando chegarmos a casa, vou ligar para as informações em Winterset, Iowa, a perguntar pelo número de Mr. Richard Johnson. Só para ver que informação aparece. Se calhar devia ter feito isso quando lá estávamos. Não, não seria correcto. Não interessa, fiquei embrulhado em nostalgia e não me lembrei. Mas também, às tantas, por qualquer razão, não me quis lembrar.

Highway levantou-se e lambeu Robert Kincaid na face. Kincaid pôs o braço em volta do cão no momento em que saíam das Shoshone, com Reno ainda a uma boa distância. Kincaid e o cão pareciam estar a sorrir quando começaram a procurar um sítio onde dormir num domingo à noite.

 

SHORTY’S

Depois de mudar de avião em Denver, Carlisle McMillan viajou para Seattle numa segunda-feira à tarde. Terça à noite era o dia em que Nighthawk Cummings tocava no Shorty's. Carlisle tinha confirmado isto pelo telefone antes de reservar o voo.

«É, o Nighthawk tem actuado às terças à noite nos últimos cinco anos. Desconfio que há-de estar aqui como de costume na próxima», disse o empregado do bar.

Carlisle registou-se num hotel no centro e foi dar uma volta num desses raros dias de sol naquela estação, em Seattle, sentindo-se um pouco atordoado com o que lhe parecia ser gente a mais em todas as direcções. No espaço de dez minutos, viu mais pessoas a girar à sua volta do que veria durante dez anos em Salamander, South Dakota. O seu passo descontraído levou-o até Spring Street e, a meio do quarteirão, estava o Shorty's, exactamente onde lhe disseram que ficava.

 

Nessa mesma segunda-feira, do outro lado de Reno e avançando para oeste, para a Califórnia, Robert Kincaid parou numa cidade chamada Soda Springs, simplesmente porque o nome lhe agradou. Mudou o óleo a Harry e comprou mantimentos, carregando a geleira amassada de gelo, pão, fruta e legumes frescos e, naturalmente, tabletes de chocolate Milky Way. A meio da tarde, percorreu cinquenta ou mais quilómetros, passando por Clear Lake, e duas horas mais tarde alcançou o Pacífico em Fort Bragg. A escolha dos trajectos não tinha sido arbitrária. Podia ter atribuído as suas decisões a um desejo de se cingir às estradas menos concorridas, mas era claro para ele por que razão tinha tomado este percurso: Fort Bragg, Califórnia, ficava apenas a dezasseis quilómetros a norte de Mendocino.

Faltavam vinte minutos para cair a noite e as lojas estavam a fechar quando Robert Kincaid saiu da estrada nº 1 ao fim da tarde e entrou em Mendocino. Estacionou ao fundo do quarteirão da galeria de arte, deixou Highway na carrinha e avançou pelo passeio até ver a exposição de fotografias de Heather Michaels numa montra.

Kincaid deteve-se à porta, sem saber muito bem o que estava a fazer nem o que diria à mulher que vira na sua última visita a Mendocino, e sobressaltou-se quando a viu materializar-se do outro lado do vidro. Wynn McMillan tinha a mão no letreiro «Aberto», pendurado numa corda, e estava a virá-lo para «Fechado». Durante o movimento, parou, segurando o letreiro na mão esquerda. Através do vidro, ficou a olhar para o homem alto e magro, de cabelo comprido grisalho, registando os suspensórios, as jeans, a camisola preta que ele vestia, o canivete no cinto. E subitamente recordou-se de uma breve lição sobre a necessidade de usar suspensórios que alguém lhe dera, numa praia em Big Sur, havia quase quarenta anos.

E como se o próprio tempo recuasse, abriu lentamente a porta e deteve-se por um momento a olhar para os calmos olhos azuis, num rosto bronzeado e enrugado dos anos passados em sóis longínquos. O homem lambeu os lábios, em jeito de quem vai começar a falar, mas parecia não conseguir articular quaisquer palavras. Tentou falar novamente e falhou. Olhou para as botas e depois para a mulher com uma expressão séria e corando levemente.

— Chamo-me Robert Kincaid — disse ele, sem saber que mais dizer.

Wynn McMillan sorriu suavemente. — Acho que somos capazes de nos conhecer, talvez de há muito tempo atrás.

 

No restaurante-bar Sea Gull, Wynn McMillan sentou-se a uma mesa defronte de Robert Kincaid. Um incipiente vento noroeste formava carneiros no oceano e ouvia-se claramente o som das ondas contra os penedos na praia. Kincaid pediu uma cerveja, Wynn optou por vinho branco. Ele cruzou as mãos na mesa e fixou-as, levantando em seguida os olhos para Wynn McMillan e sorrindo, e procurou pensar em qualquer coisa para dizer. Mas só conseguiu soltar uma expiração longa e lenta como se estivesse a suster a respiração há algum tempo, e deixou que um sorriso hesitante lhe aflorasse à cara.

— És tu, não és? Não há dúvida? — perguntou Wynn, em parte para fazer conversa, em parte para confirmar definitivamente.

— Se te referes a um homem que chegou de motorizada a Big Sur, em 1945, e fez amor com uma violoncelista bonita e jovem numa praia escondida, a resposta é sim — respondeu ele. — Isto é um pouco difícil para mim, provavelmente para ti também.

Estavam sentados mais como velhos companheiros do que como amantes. Big Sur existia num passado distante e tinham passado apenas alguns dias juntos nesse tempo.

— Estiveste em Mendocino mais ou menos há uma semana, certo? — perguntou Wynn.

— Estive. Olhei pela montra da galeria e vi-te. Não te reconhecia se não fosse a maneira como mexeste as mãos e talvez como arranjas o cabelo, como fizeste naquele momento, a forma como tocas de vez em quando na travessa.

Robert Kincaid olhou Wynn McMillan nos olhos e ocorreu-lhe que a diferença de idades de treze anos parecia muito maior agora do que em 1945. Aos sessenta e oito anos, exibia as marcas do tempo e sabia-o. Mas ela tinha cinquenta e cinco e conservava alguns vestígios da sua juventude.

— Ainda tocas violoncelo? — perguntou.

— Toco, sobretudo com amigos. Às vezes damos pequenos concertos aqui. E tu? Fotografia, não é?

— É, passei praticamente estes anos todos na estrada. Fiz muito trabalho no estrangeiro. — Bebeu o resto da cerveja no momento em que apareceu um empregado a perguntar se estava tudo bem. O copo de Wynn ainda estava quase cheio. Kincaid pediu uma segunda cerveja. Pegou num maço de Camel, reparou que não havia cinzeiro na mesa e voltou a meter os cigarros no bolso.

— Escrevi-te duas ou três vezes depois de sair de Big Sur — disse ele quando o empregado se afastou.

— Eu também saí de lá pouco depois de ti. — Não disse mais nada e era suficiente como explicação das cartas nunca recebidas.

A parte seguinte ia ser mais difícil e Wynn McMillan pensou por um momento se seria necessário mencionar Carlisle. Decidiu que o homem à sua frente, cujo último nome não recordava até ele se ter apresentado, vinte minutos antes, tinha o direito de saber. Isso e o facto de Carlisle andar à procura dele.

— Casaste? Tens família? — perguntou ela, procurando entrar no assunto.

— Casei com uma boa mulher em 1953. Divorciámo-nos alguns anos mais tarde, não houve filhos. O meu trabalho não se coadunava muito bem com a vida de casado, comigo fora tanto tempo. E tu?

Era agora, o momento para falar. Wynn McMillan começou a brincar nervosamente com o copo de vinho e olhou por um momento pela janela para a água encrespada, o Pacífico tornando-se mais turbulento à medida que o vento noroeste se intensificava com a maré enchente. Dois homens e uma mulher, sentados juntos no bar, romperam em gargalhadas estridentes com qualquer coisa que o empregado do bar disse. Kincaid olhou para várias relíquias marinhas que decoravam as paredes do restaurante e voltou a concentrar-se em Wynn McMillan que começou a falar.

— Fui casada seis anos com um homem, dos trinta e muitos aos quarenta e poucos anos — estava ela a dizer. — O sonho de vir a ser violoncelista de orquestra tinha-se desvanecido talvez porque nunca fui suficientemente boa, do ponto de vista técnico, talvez por causa dos preconceitos em relação às mulheres que alguns directores artísticos tinham nessa época.

Seja como for, virei-me rapidamente para outra coisa e meti--me num casamento que foi má ideia desde o princípio e se tornou ainda pior com o tempo. Mas tenho sido feliz. Conheci vários homens simpáticos aqui na costa norte. — Estava a rodear o que tinha de ser dito e apercebia-se disso.

O empregado voltou com a cerveja de Kincaid e afastou-se.

— Não tens filhos? — perguntou Kincaid, endireitando um dos suspensórios, ajustando o cinto e tocando no canivete que lá tinha preso.

Wynn McMillan recordou estes gestos do tempo de Big Sur, Robert Kincaid a verificar se certos acessórios estavam no lugar, a certificar-se de que estava preparado para o que desse e viesse. Ela arranjou o guardanapo no regaço, tirou os óculos e pousou-os na mesa. Depois de o fitar demoradamente, estendeu o braço e pegou-lhe numa mão.

— Nós... nós temos um filho, Robert Kincaid... eu e tu temos um filho. Chama-se Carlisle.

 

Na terça-feira de manhã, Carlisle McMillan deu um salto ao Seattle Times e apresentou-se a Ed Mullins, o editor fotográfico com quem tinha falado ao telefone.

— Viva, Mr. McMillan. Ainda bem que cá veio. Não sabia que tencionava visitar Seattle. Ainda ontem à noite descobri o artigo do Kincaid, «Trilhos do Alto Deserto». Tinha-o arquivado em «comboios» por qualquer razão. Devia tê-lo guardado em «Kincaid». Fazia mais sentido. Vamos à fotocopiadora que eu tiro-lhe uma cópia.

O homem parecia extremamente ocupado, com o telefone constantemente a tocar e gente a passar pela secretária dele a fazer perguntas ou a oferecer sugestões sobre projectos. Copiado o artigo, Carlisle agradeceu novamente ao editor e foi-se embora. No hotel, bebeu uma cerveja com o almoço, lendo o artigo enquanto comia, e dormiu uma longa sesta a seguir. Estava simplesmente a matar tempo, o seu sentido de expectativa a atingir um ponto de ruptura. Nighthawk Cummings começava a tocar às nove horas. Quando Carlisle acordou, ainda tinha pela frente uma espera de seis horas. Decidiu ir para o Shorty's por volta das oito, caso Robert L. Kincaid chegasse cedo.

Entretanto, ensaiou o que diria, mas nada lhe parecia certo. Tudo lhe soava a uma intromissão, uma ingerência, se não um insulto. Pelo que tinha ficado a saber, depois da conversa com o editor e um rápido encontro com Goat Phillips, que saiu do laboratório de fotografia por alguns minutos para falar com Carlisle, Kincaid vivia quieto no seu canto e não parecia muito acessível. Na verdade, consideravam-no um tanto excêntrico.

Carlisle ensaiou o que poderia dizer a Kincaid, e quanto mais ensaiava, mais estúpido lhe parecia. Tornou-se, de facto, completamente ridículo.

«Olá, sou Carlisle McMillan, e tenho razões para crer que sou seu filho ilegítimo.»

Ou: «Olá, soube que teve em tempos uma motorizada Ariel Four. Uma grande máquina.»

Ou: «Viva, alguma vez fez amor com uma mulher em Big Sur, Califórnia?»

Ou talvez ainda: «Nunca ouviu falar numa violoncelista chamada Wynn McMillan?»

Com este nível de subtileza, Kincaid, compreensivelmente, era bem capaz de se levantar e se pôr a andar, se não a correr, pela porta fora, arrumando com o assunto de uma vez por todas.

Finalmente, Carlisle decidiu que seria muito semelhante à carpintaria. Daria uma vista de olhos ao trabalho, quando chegasse ao Shorty's, e começaria a fazer uma ideia a partir daí. Às sete horas, com as luzes citadinas do lado de fora da janela, vestiu um par de calças caqui desportivas, uma camisa de flanela e o casaco de cabedal.

O elevador levou-o ao átrio.

A rua levou-o ao Shorty's.

O porteiro disse que a entrada custava três dólares. — Só há uma mesa de dois lugares em toda a casa — acrescentou —, ali ao pé da parede, e o Nighthawk quer que a gente a reserve para um amigo dele que aparece quase todas as terças à noite. Como está sozinho, agradecíamos que se sentasse ao balcão.

Carlisle disse que compreendia, sentou-se ao balcão e pediu uma cerveja, olhando fixamente para a mesa junto da parede, com o letreiro «Reservada» pousado sobre a toalha de quadrados azuis. No pequeno palco próximo da mesa reservada, um baterista montava o equipamento.

Robert Kincaid e Wynn McMillan conversaram durante uma boa parte de segunda-feira à noite. A dada altura, ele lembrou-se subitamente, com remorso e autocensura, que Highway continuava na carrinha. Caminharam com Highwayao longo do promontório com um vento cortante e as nuvens a flutuar diante de um quarto crescente. Ela falou-lhe do crescimento de Carlisle e, de novo no restaurante para um jantar tardio, descreveu como o filho de ambos se tornara um carpinteiro exímio sob a orientação de um homem chamado Cody Marx.

E falou-lhe da procura de Carlisle de um homem chamado Robert Kincaid, de como tinha descoberto o nome através da sua própria investigação aliada ao que ela, Wynn, tinha recordado. Kincaid escutou, tentando fazer os ajustes mentais, a reorientação à vida que subitamente parecia estender-se à frente e atrás dele. O que até agora tinha sido uma verdade privada, a grande sensação de estar só no universo e tudo o mais, tornava-se agora uma confusão com o que Wynn McMillan passara quatro horas a contar-lhe.

Por volta das onze horas, ela disse: — Robert, acho que devíamos telefonar ao Carlisle a dizer-lhe que estás aqui.

Kincaid concordou e acompanhou-a a uma cabina telefónica ao fundo do bar. O local estava parcialmente cheio àquela hora e a fervilhar de conversas animadas. Wynn discou o número de Carlisle em South Dakota e ao fim do décimo toque pousou o auscultador.

— Sabe-se lá onde é que pode estar — disse ela, sorrindo. — Nisso sai ao pai, sempre a cirandar. Sinto-me um pouco cansada da atmosfera do bar; podíamos ir para minha casa continuar a conversa, se achares bem.

Já tarde, por volta da uma hora da manhã, ele pediu-lhe que tocasse violoncelo, o trecho que tinha tocado em Big Sur. Wynn sentou-se numa cadeira de espaldar direito e tocou Schubert. Robert Kincaid sentou-se numa cadeira de baloiço de madeira curva, a ouvir, de cabeça baixa e mãos cruzadas no regaço.

Quando ela acabou, agradeceu-lhe e disse: — Wynn, nunca me esqueci como a areia estava quente nesse mês de Setembro de 1945. É uma das coisas que nunca esqueci.

Wynn inclinou a cabeça e sorriu-lhe ternamente. — Eu sei, Robert Kincaid. Eu também não esqueci.

Kincaid tinha um pequeno trabalho para fazer, uma reportagem fotográfica de pouca importância para uma publicação mensal de Seattle. Ia render-lhe trezentos dólares e ele precisava do dinheiro. No entanto, ele e Wynn concordaram que, de uma maneira ou de outra, os três — Wynn, Kincaid e Carlisle — deviam encontrar-se e passar algum tempo juntos.

— Não sei bem se nos podemos considerar uma família — disse ela —, mas seria bom juntarmo-nos e contarmos uns aos outros as histórias das nossas vidas, o que fizemos e o que não fizemos, falar dos fracassos, recordar os triunfos.

Ele ofereceu-se para a levar a South Dakota, caso fosse necessário. Mas Wynn contrapôs que, por causa do trabalho, pediria a Carlisle que viesse a casa de visita e que o mais provável era que ele apanhasse o primeiro avião quando ela lhe contasse o que tinha acontecido.

Embora Wynn lhe tivesse oferecido o sofá para pernoitar, Kincaid declinou educadamente, mas disse que, se ela concordasse, gostava de se encontrar com ela cedo para o pequeno--almoço. Sentia necessidade de estar sozinho, de reflectir e pôr em perspectiva tudo o que Wynn lhe contara.

Na manhã seguinte, terça-feira, passaram os dois alguns momentos ao lado da carrinha de Kincaid que se preparava para partir para Seattle. À luz do dia, quando Kincaid, repousado, enfiou o braço pela janela da carrinha para afagar Highway, ela reparou nos traços característicos do nómada de Big Sur. Agora coxeava ligeiramente, mas os ombros largos e o corpo esguio continuavam intactos. Era igualmente patente a mesma intensidade. E os olhos que sempre recordara, olhos que trespassavam aquilo que via, que só ele via e que não sabia exprimir a não ser através das objectivas da sua câmara.

Ela sorriu-lhe. Ele estendeu a mão para apertar a dela e depois avançou um passo para abraçá-la, cheirando-lhe o cabelo como o cheirara numa praia em Big Sur, trinta e seis anos antes. Ela encostou-lhe a cabeça ao peito e apontou para o oceano. — As baleias continuam a aparecer em Março — sussurrou.

 

Nighthawk Cummings entrou em cena às nove horas e dois minutos ao som de aplausos dispersos de uma casa três quartos cheia, começando a fazer estalar os dedos e a marcar o ritmo. Pegou no velho saxofone tenor Selmer e começou a soprar as notas introdutórias na segunda batida do compasso seguinte. O quarteto pegou na deixa e lançou-se em Thisls a Lovely Way to Spend an Evening, o tenor de Nighthawk suave e leitoso com o potencial de um som áspero e hard-bop a espreitar por baixo da suavidade.

A mesa com o letreiro de reservada continuava vazia. Carlisle McMillan procurou concentrar-se na música, mas não conseguia. Olhou para a mesa e depois para a porta, repetindo o processo quase de minuto em minuto.

Criado como filho de Wynn McMillan, violoncelista, o ouvido de Carlisle era razoavelmente apurado, mas não para este género. Embora Nighthawk Cummings anunciasse as melodias, falava em voz baixa e indistinta ao microfone, como se todos os presentes já conhecessem os nomes das canções e o facto de ele mencionar os títulos fosse mais uma formalidade do que uma necessidade. Carlisle captou qualquer coisa como Green Dolphin Street e outra chamada Óleo, aparentemente escrita por alguém cujo apelido era Rollins e um primeiro nome que não percebeu quando Nighthawk o pronunciou.

Depois da primeira actuação, com a mesa solitária de dois lugares ainda vazia e reservada, Nighthawk Cummings dirigiu-se ao bar e pediu um Glenlivet. Ficou a menos de um metro de Carlisle e encostou-se ao balcão, bebericando a bebida e inspeccionando a assistência. Abordavam-no pessoas, velhos fãs, pela forma como se lhe dirigiam e lhe apertavam a mão, falando com conhecimento sobre a música.

— É — disse Nighthawk a um deles, num tom lento e arrastado —, o Joey tocou um acorde de sétima da dominante imediatamente antes da tónica... normalmente não faz isso em Stars Fell on Alabama... e na minha cabeça ouvi um som que nunca tinha associado a essa melodia.

Um outro pediu Autumn Leaves e Nighthawk respondeu: — Já lá vamos chegar, talvez na próxima série. Tenho um amigo que gosta sempre de ouvir essa canção e estou à espera a ver se ele aparece esta noite.

Novamente sozinho, Nighthawk olhou de relance para Carlisle e disse: — Boa-noite. Acho que nunca o vi aqui pelo clube.

— Vim cá por uma razão específica — disse Carlisle, sorrindo.

Nighthawk Cummings franziu os olhos. — E que razão é essa?

— Ando à procura de um homem chamado Robert Kincaid. A expressão de Nighthawk não se alterou. — E porque é que há-de andar à procura de um homem com esse nome?

Carlisle apresentou a explicação da árvore genealógica, com esperança de que Nighthawk adiantasse voluntariamente informação. Cummings bebeu outro gole de Glenlivet e não disse nada.

Depois de esperar um período de tempo razoável, Carlisle continuou. — Soube que ele costuma vir aqui e que é possível que seja seu amigo.

— Se fosse, eu não tinha nada a dizer. Nunca falo sobre os meus amigos a não ser que eles queiram. É assim que se perdem bons amigos. Prazer em conhecê-lo. Tenho de me preparar para o próximo set.

Nighthawk Cummings afastou-se em direcção ao palco, pegou no saxofone tenor e descontraiu, os dedos escuros correndo ao longo das chaves douradas em escalas incrivelmente rápidas, em Mi bemol maior, enquanto os outros três músicos ocupavam os lugares.

 

Às oito horas da noite de terça-feira, já Robert Kincaid tinha regressado a casa, dando de comer a Highway e aninhando-o para dormir. Sentou-se na cozinha e passou em revista tudo o que Wynn McMillan lhe contara. Tudo se revestia de uma qualidade irreal. Nas últimas vinte e quatro horas, uma vida estranha tornara-se mais estranha ainda. Dirigiu-se ao armário de arquivo e tirou uma caixa de fotografias. Durante algum tempo, ficou sentado, a olhar para Francesca Johnson. Dias antes tinha ocupado o espaço dela e recordado. E, Deus do céu, como ainda a amava, admitindo mesmo a si próprio que coisas assim recordadas são melhores do que foram na realidade.

De alguma forma, Francesca tinha de saber de Wynn e Carlisle. Não sabia bem por que razão era necessário, nesse momento parecia-lhe simplesmente correcto, uma questão de verdade e honestidade. Três anos antes, entregara uma carta a um advogado. A carta continha instruções para que, caso lhe acontecesse alguma coisa, o advogado a enviasse, juntamente com outros objectos, para um endereço em Madison County, Iowa. Decidiu que voltaria a redigir a carta e a deixaria no consultório do advogado na primeira oportunidade.

Fitando a imagem de Francesca, começou a chorar e o choro transformou-se em soluços confusos e sufocantes. Kincaid debruçou-se sobre a mesa da cozinha e deixou as lágrimas correr com a força, a rapidez e a duração necessárias. E falou consigo mesmo por entre soluços. — Meu Deus... todo este tempo... todo este, todo este... todo este maldito tempo de solidão sem fim... nunca estive só. — Highway foi sentar-se ao seu lado, dando marradinhas no cotovelo de Kincaid.

Robert Kincaid tinha agora de confrontar o profundo sentido de culpa que experimentava. A culpa de ter feito um filho e não ter estado presente para ajudar Wynn McMillan a criar Carlisle. Wynn tinha feito os possíveis por mitigar a culpa, dizendo que nunca se tinha arrependido de trazer Carlisle ao mundo e que Kincaid não tivera maneira de saber.

As palavras dela ajudaram um pouco, mas Kincaid sabia que carregaria esta culpa até ao fim da vida. As circunstâncias eram uma coisa, mas a sua ausência era outra, e não havia forma de conciliar as duas. Talvez houvesse alguma maneira de compensar Wynn e Carlisle.

Trinta minutos mais tarde, olhou para o relógio. Nove horas. Fazia bom tempo lá fora e Nighthawk devia ter começado agora mesmo. Raios, um homem que acaba de se aproximar de Francesca Johnson novamente e que descobre ao mesmo tempo que tem um filho que nunca conheceu devia fazer qualquer coisa para celebrar ou, pelo menos, assinalar a ocasião. Um grande amor perdido, um filho encontrado. Não se trocava um pelo outro, eram coisas demasiado diferentes, mas um equilíbrio que nunca sentira antes entrara na sua vida. Podia apanhar oferry das dez horas.

Kincaid aproximou-se de Highway que estava deitado num cobertor velho. Acocorou-se e afagou o cão. — Vou sair, mas não demoro, meu amigo. Vou fazer uma visita ao nosso amigo, o Nighthawk. — Vestiu o casaco e fechou suavemente a porta atrás de si.

 

Carlisle afastou a manga do casaco de cabedal e consultou o relógio. Tinha os olhos a lacrimejar do fumo do tabaco que saturava o ar do Shorty's e pestanejou duas vezes para ver o mostrador. Dez e meia e a mesa de dois lugares junto à parede continuava vazia. Mudou de posição, pedindo a terceira cerveja da noite.

Nighthawk Cummings e o grupo dele estavam lançados e a tocar fabulosamente, atacando It Don't Mean a Thing de Ellington. Nighthawk tinha recuado para deixar o pianista fazer um prolongado solo enquanto o baixista se curvava sobre o instrumento, movendo mãos de aranha pelo braço da guitarra acústica vertical. O baterista sacudia a cabeça, pondo a tónica exactamente nos momentos certos. Carlisle viu Nighthawk sorrir e levantar a mão num cumprimento subtil em direcção à porta do Shorty's.

Carlisle rodou no banco e viu entrar um homem de cabelo comprido grisalho. As palmas das suas mãos começaram a transpirar enquanto observava o homem a abrir caminho entre as mesas e a sentar-se na de dois lugares junto à parede. Pelas fotografias que tinha visto na National Geographic, tinha a certeza absoluta de que era Robert Kincaid. Um empregado aproximou-se da mesa, entregou uma cerveja a Kincaid sem que este a tivesse pedido e retirou o letreiro «Reservada». Nighthawk retomou o saxofone e alternou compassos de quatro com o pianista, começando a concluir a melodia.

Depois de mais duas canções, Nighthawk falou ao microfone. — Vou tocar agora uma canção para um grande amigo meu. Uma melodia que compus há muito tempo chamada Francesca. — Nighthawk marcou um ritmo lento e depois soprou uma frase gutural e melódica no primeiro compasso, a melodia pronunciando o nome da mulher. O homem na mesa de dois lugares penteou o cabelo para trás com as duas mãos. Debruçou-se e cingiu a garrafa de cerveja com os dedos, fitan-do-a e escutando.

No segundo refrão, Nighthawk baixou o instrumento e começou a cantar num barítono áspero:

 

Francesca, lembro-me de ti

e das velhas sensações do Verão.

Vestias de prateado

quando os longos dias eram dourados...

 

No final da canção, o pianista fez a transição suave de Si bemol maior para Mi menor e deu a Nighthawk uma introdução a Autumn Leaves. Junto da parede, o homem de cabelo grisalho continuou a fitar a garrafa de cerveja. Enquanto Carlisle observava o homem, compreendeu o que Wynn quisera dizer ao recordar os olhos dele, olhos fatigados, mais velhos do que os de uma vida inteira. Tentou imaginar, e não teve dificuldade em fazê-lo, o homem na mesa como uma silhueta a andar numa motorizada grande e potente pelos relevos pedregosos de Santa Lúcia. Via-o atravessar as pontes altas a inclinar-se nas curvas, enquanto uma rapariga se agarrava à cinta do condutor, deixando o cabelo comprido esvoaçar para trás e emaranhar-se com o vento que levantavam ao passar.

Quando Nighthawk terminou Autumn Leaves com uma passagem plangente de meios-tons, olhou para Robert Kincaid, sentado sozinho, muito longe de tudo, num lugar que Nighthawk entendia. Kincaid levantou os olhos para Nighthawk, sorriu e indicou com um aceno de cabeça o seu apreço pelas canções.

— Muito obrigado. Volto dentro de minutos — disse Nighthawk ao microfone e colocou o saxofone no apoio. Saiu do palco e dirigiu-se à mesa de dois lugares, sentando-se e apertando a mão a Kincaid. Enquanto conversavam, Nighthawk olhou duas vezes para Carlisle McMillan, sentado no bar. Após um ou dois minutos, o homem de cabelo grisalho olhou para Carlisle.

Talvez tenha lidado com isto estupidamente, pensou Carlisle. Tornava-se-lhe claro que estes tipos, especialmente estes tipos, Nighthawk e Robert Kincaid, se é que era ele, viviam num universo completamente à parte da maioria das pessoas e sobretudo da sua geração. Menos progressistas, sem a atitude agressiva e desinibida que os anos sessenta e setenta tinham engendrado e que parecia estar rapidamente a entrar na moda.

Robert Kincaid virou-se mais uma vez e fixou Carlisle. Disse qualquer coisa a Nighthawk e o saxofonista levantou-se e dirigiu-se à ponta do balcão. Nighthawk encomendou um Glenlivet e encetou conversa com o empregado do bar. Kincaid olhou por um momento para a cerveja, recordando a fotografia que Wynn McMillan lhe tinha mostrado ao pequeno-almo-ço. Um telefone atrás do bar começou a tocar quando Kincaid se levantou e, a coxear ligeiramente, se encaminhou para Carlisle, com o sorriso caloroso e rasgado de um pai que não vê o filho há muito tempo.

 

HORAS ESTRANHAS

Carlisle ficou em Seattle mais dois dias e foram estranhas as horas que passou a falar sem fim com Robert Kincaid. Sentaram-se na pequena cabana de Kincaid, à mesa da cozinha, a conversar mais como amigos recentes do que como pai e filho. Se este último laço viesse alguma vez a ser forjado, seria preciso mais do que um aperto de mão e algumas horas de conversa. Mas cada um deles olhou demorada e intensamente para o outro, tentando encontrar sentido no que aparentemente era verdade, mas parecia irreal. Carlisle McMillan, o filho ilegítimo de um viajante solitário que estava agora sentado do outro lado de uma mesa de cozinha. Robert Kincaid, o viajante de lugares distantes e sonhos distantes, debatendo--se agora com a ideia de um filho cujo rosto podia ver e cuja voz podia ouvir.

Kincaid, pouco à vontade com as palavras, disse repetidamente como lamentava não ter estado presente para ajudar Wynn a criar Carlisle. — Eu escrevi-lhe, Carlisle, a sério que escrevi. Perdemos simplesmente o rasto um ao outro.

— É, quando era novo, a situação enfurecia-me e confundia-me. — Carlisle falou e escrutinou a pequena cabana. O tecto precisava de obras, exibindo manchas de uma fuga de água do telhado. — A Wynn foi uma mãe excelente, pouco convencional nos seus modos e no estilo de vida, mas rija à maneira dela. Nunca disse nada em teu desfavor, aceitou sempre a sua quota-parte de responsabilidade em toda a história.

Continuou a falar de Cody Marx, um professor de vida e carpintaria. Kincaid ouviu atentamente. — Bem, sinto-me grato a esse Cody Marx. Ainda é vivo?

— Não, morreu há algum tempo. Reagi muito mal à morte dele. Sem o Cody, não sei bem onde teria ido parar.

Hesitou por um momento e depois perguntou: — Amaste a Wynn nesse tempo? Ou é uma pergunta estúpida?

Kincaid brincou com o maço de Camel, tirou um e acendeu-o com um fósforo. A carteira de fósforos continha uma breve mensagem: Motel Sea View— O lugar ideal para pernoitar em Astoria, Oregon. Fumou o cigarro e passou a palma da mão esquerda pelo queixo.

— Não, estaria a faltar à verdade se dissesse que sim, Carlisle. Passámos pouco tempo juntos. Foram anos incertos para muitos de nós, a tentar organizar a vida e a cabeça depois da guerra. Passou-se mais qualquer coisa entre nós do que apenas umas brincadeiras numa praia, acho que sentimos isso os dois, mas nunca houve a oportunidade de desenvolver uma relação. As nossas intenções foram decentes, eu e a Wynn chegámos a acordo sobre isso no outro dia. Mas éramos novos e... bem, é difícil explicar e... —Abanou a cabeça, olhou para as mãos em cima da mesa.

— A Wynn disse-me a mesma coisa durante estes anos todos — disse Carlisle, falando directamente com Robert Kincaid. — Ouve, acabei por vencer a fúria. Reconciliei-me mais ou menos com tudo. — Por um momento, sentiu-se tentado a terminar a frase com «pai», mas não conseguiu forçar-se a usar a palavra. A sua ligação ao homem à sua frente era uma ligação de sangue e talvez um pouco mais depois do tempo passado com ele, mas ainda não tinha chegado a um ponto em que «pai» lhe soasse bem. Talvez nunca chegasse a esse ponto. Kincaid começou a esfregar os olhos com um lenço amarelo que tirou do bolso direito das jeans deslavadas. Olhou para Carlisle. — Porra, tantos anos desperdiçados, Carlisle, quando podíamos ter feito coisas juntos... tantos anos.

Sacudiu o lenço. — Desculpa, ultimamente parece que ando sempre a limpar os olhos.

Carlisle McMillan sentiu os seus próprios olhos húmidos e estendeu a mão sobre a mesa, apertando o ombro de Robert Kincaid. Apesar da idade e constituição magra de Kincaid, o ombro ainda continha uma boa dose de músculo. O medalhão de prata à volta do pescoço de Kincaid tinha deslizado para fora da camisa e oscilou à luz do candeeiro. O medalhão tinha uma inscrição, mas a palavra era indistinta entre riscos e manchas. Carlisle havia de querer um dia perguntar-lhe sobre o medalhão, mas por agora deixou passar.

— Ouve — disse Carlisle, ainda agarrado ao ombro de Kincaid —, acho que o homem que conhece a cara do pai é um felizardo. No que me diz respeito, sou um felizardo.

Pediu para ver algumas das fotografias de Kincaid. Robert Kincaid animou-se e começou a tirar folhas de diapositivos das gavetas do arquivo. Se tinha dificuldade com as palavras, as imagens eram uma forma de mostrar ao filho como vivera a sua vida. Foi buscar uma pequena mesa de luz portátil e instalou-a na mesa da cozinha. Passaram uma tarde inteira, no dia seguinte, a ver o trabalho de Kincaid, que falou sem cessar dos anos passados na estrada, dos lugares em que cada fotografia fora tirada, dos odores e da luz que cada fotografia lhe evocava. Carlisle reconheceu várias fotografias dos artigos da National Geographic que tinha copiado.

Surpreenderam-no aspectos do trabalho de Kincaid. Enquanto estava subjacente à maioria das fotografias uma visão poética grandiosa, algumas eram peças de contornos acentuados e de alto contraste a preto e branco. Ficou particularmente fascinado com as que Kincaid disse terem sido tiradas no âmbito de um projecto da UNICEF chamado «Os Bairros de Lata de Jacarta».

— Essa reportagem foi tramada — disse Kincaid, contraindo o maxilar ao estudar as fotografias espalhadas na mesa. — Fi-la mesmo sem lucro, porque valia a pena. De vez em quando é bom a gente envolver-se nesse tipo de trabalho. Ajuda a eliminar essa perspectiva retocada que as pessoas parecem ter sobre as zonas subdesenvolvidas do mundo. Nem tudo são orangotangos e elefantes nesses lugares, nem são cerimónias coloridas e pores-do-sol delico-doces com flamingos a sobrevoar a África.

— Olha aqui. — Abriu outra caixa de fotografias. — Esta série é de um trabalho particular que fiz no ano passado num lar da terceira idade no centro da cidade. Fiz um retrato de cada um deles e dei-lhes uma cópia, montada e encaixilhada, pronta a pendurar na parede ou a colocar na cómoda ou a oferecer à família, se a tivessem, e a maioria não tinha. Foi extremamente gratificante. Ficaram excitadíssimos e aperaltaram-se todos para as sessões. Alguns estavam acamados e eu tive de ser criativo para não dar o aspecto de hospital.

Robert Kincaid estava a sorrir de prazer ao separar as imagens, levantando uma de cada vez para Carlisle ver. — Este sujeito tinha sido engenheiro ferroviário numa linha de pequeno curso na parte ocidental do estado, teve dois enfartes, ficou parcialmente paralítico. Esta mulher tinha sido cantora de cabaret. Lixeiro, mecânico de camiões, ex-ilustrador de livros infantis, prostituta. Há um milhão de boas histórias neste lar, só à espera de alguém que as escreva. — Voltou a meter as fotografias na caixa e a sorrir.

Enquanto cozinhavam uma refeição simples, Kincaid virou-se para o filho. — Quero pedir-te um favor, Carlisle.

Carlisle esperou em silêncio, reparando na seriedade de Kincaid ao falar.

— Quando morrer, quero muito que queimes todos os negativos, diapositivos e fotografias. Vou deixar tudo neste armário de arquivo na cozinha e num do quarto.

Carlisle começou a protestar, mas Kincaid levantou uma mão, indicando que ainda não tinha acabado. — Tem a ver com uma visão da vida e da morte que é quase impossível de explicar por palavras. É mais uma sensação visceral de que eu e o tempo somos velhos parceiros, de que não passo de mais um viajante na grande seta do tempo. A minha vida não vale mais do que eu fiz com ela e sempre considerei a busca da imortalidade não só fútil, mas ridícula, da mesma maneira que os caixões cheios de adornos são uma tentativa patética para fugir ao ciclo do carbono.

Kincaid mexeu uma panela de sopa de legumes, olhando para Carlisle e falando enquanto rodava a colher.

— Isso e o facto de ter as minhas fotografias a circular por aí sem poder decidir como e quando são usadas. O estivador em Mombaça ou a rapariga num campo mexicano podem acabar em brochuras foleiras de agências de viagens. A dos homens a fazer-se ao mar no barco de seis remos pode ir parar a algum anúncio de máquinas de remo. É quase tão mau se forem parar a alguma exposição com gente a avaliar o meu trabalho enquanto mordisca queijo e bolachas, procurando um sentido interior profundo em fotografias que, para começar, nunca o tiveram. Afinal não passam de imagens.

— Eu podia garantir que nada disso acontecesse — disse Carlisle.

— Sim e eu confiava que o farias enquanto vivesses. Mas depois? — Kincaid tirou duas latas de cerveja do frigorífico e passou uma a Carlisle. — Além disso, ultrapassa o uso que possam fazer das imagens. Tem a ver com o que eu disse antes. Quando morrer, quero deixar a casa arrumada atrás de mim, todos os vestígios apagados, não quero que fique nada. Sou assim, Carlisle, é assim que vejo as coisas.

— Está bem. Eu faço-te a vontade, prometo, embora gostasse que pensasses de outro modo.

Kincaid agradeceu-lhe enquanto olhava para o chão, raspando-o com a bota. Subitamente arfou e dobrou-se ligeiramente, sentindo a dor no peito, a tontura e a sensação de náusea a invadi-lo novamente. Encostou-se ao frigorífico, com o rosto perlado de suor.

— Meu Deus, que se passa? — exclamou Carlisle, correndo para ele.

Kincaid fez-lhe sinal para que se afastasse. — Daqui a nada passa, é só uma das consequências idiotas da velhice — disse, ofegante. A sua cara bronzeada tinha empalidecido consideravelmente debaixo do bronzeado e esforçou-se por recuperar o fôlego.

Carlisle ajudou-o a sentar-se numa cadeira. Decorridos uns minutos, Kincaid conseguiu sorrir levemente e disse: — Já passou. De vez em quando tenho estes malditos ataques. Depois desaparecem e fico bem.

— Queres que te leve a um médico? — sugeriu Carlisle, preocupado.

Highway aproximou-se da mesa e pousou o queixo na perna de Kincaid.

— Não, já consultei um. — Kincaid baixou-se para passar a mão pelo pescoço do cão, enterrando os dedos no pêlo espesso. — O médico diz que estou bem, que é só um problema de pulsação irregular ou coisa parecida. Isto passa. Estou a aprender a viver com ele.

Carlisle não acreditou, mas não insistiu. Era evidente que Robert Kincaid tinha uma opinião própria a seu respeito e a respeito da sua vida, opinião que Carlisle ainda não compreendia inteiramente e talvez nunca viesse a compreender.

Uma hora mais tarde, riram juntos e abanaram as cabeças quando Carlisle descobriu que o pai tinha estado em Salamander uma semana antes. Carlisle perguntou se Kincaid gostaria de o visitar em South Dakota e ver o seu trabalho, que podia ajudar a pagar o bilhete de avião, se fosse caso disso. Kincaid disse que gostaria muito, talvez quando chegasse a Primavera, altura em que o tempo estava mais agradável e o velho por cima do Lester's podia mexer-se com mais facilidade para ir até ao Leroy's ouvir Gabe tocar tangos. Carlisle disse que um dia se ia meter no carro para vir até Seattle com as ferramentas fazer umas reparações na cabana.

Falaram de fotografia e do trabalho de carpintaria, de aprender a fazer bem as coisas. Robert Kincaid contou como uma vez passou vinte e quatro horas, no Outono, a observar uma única folha num ácer. Do nascer ao pôr-do-sol e durante a noite enquanto a lua a iluminava, estudou a folha, mediu a luz, enquadrou-a. Comparou-a com escalas de música ou talvez mesmo com estudos musicais, aprendendo como a luz só por si podia transformar um objecto.

Carlisle compreendeu e descreveu como Cody Marx o obrigava a executar as tarefas mais rotineiras vezes sem conta até ele as dominar na perfeição. Riu e disse: — Preparar a superfície, essas palavras que instilam o medo e o tédio no coração dos amadores, foi uma coisa que o Cody nunca me deixou esquecer. Passei quase todo o primeiro ano com ele sem fazer mais nada a não ser lixar com uma plaina manual e a raspar tinta velha.

No dia seguinte, Kincaid levou Carlisle na carrinha até ao aeroporto de Seattle-Tacoma, o equipamento fotográfico de Kincaid enfiado entre eles no banco. Quando se ouviu no sistema de altifalantes a chamada de embarque para o voo de Carlisle, levantaram-se os dois e olharam um para o outro.

— Cuida de ti — disse Carlisle com sinceridade, imprimindo às palavras o seu significado mais literal.

Robert Kincaid sorriu. — Tenho muitos quilómetros atrás das costas, Carlisle, mas sinto constantemente que ainda tenho mais alguns para percorrer. — Consultou o relógio. — Bem, é melhor ir tirar umas fotografias para ganhar algum dinheiro.

Carlisle começou a seguir a multidão que se dirigia para a manga. Virou-se, acotovelando por entre as pessoas até chegar ao ponto onde Robert Kincaid se encontrava. Kincaid olhou para ele, ajeitou um suspensório cor de laranja, tocou no cinto e lembrou-se que tinha achado prudente deixar o canivete na carrinha por causa dos regulamentos de segurança dos aeroportos.

— Fico à tua espera na Primavera — disse Carlisle, atropelando as palavras, com a voz embargada do aperto que sentia na garganta. Um funcionário ao balcão emitia a chamada final de embarque para o voo de Denver.

— Gostava que visses o meu trabalho — continuou Carlisle, a voz soando áspera. Pigarreou e falou em voz baixa. — Acho... acho que um filho deseja sempre a aprovação do pai.

Avançaram um para o outro. Carlisle pousou a mala e lançou os braços em volta de Robert Kincaid. Kincaid, por sua vez, abraçou o filho.

— Porra, velho, porra, que se lixe tudo. Aguenta aí, ouviste? — Esticou um dos suspensórios cor de laranja e deixou--o bater suavemente contra as costas de Kincaid.

A entrada para a manga, voltou-se e olhou para o pai mais uma vez, a expressão séria, pensando num viajante solitário a percorrer as estradas de Big Sur todos esses anos atrás, quando o mundo era mais simples e a liberdade tudo o que importava para uma certa geração. Robert Kincaid manteve o aprumo que os seus sessenta e oito anos permitiam, enfiou as mãos nos bolsos das jeans deslavadas e acenou com a cabeça na direcção de Carlisle, abrindo então o sorriso caloroso e rasgado de um pai que se despede de um filho que não vê há muito tempo e com quem não passou horas suficientes.

Atrás dele, na sala de embarque, ouviu a chamada para o voo de Singapura, e na pista um 747 tomava posição e começava a rolar, rumo a Jacarta ou talvez Banguecoque ou Calcutá. O funcionário fechou a porta da manga atrás de Carlisle McMillan e Kincaid desviou os olhos, observando o Boeing a subir e a desaparecer nas nuvens, satisfeito com a ideia de um grande avião a caminho de um lugar qualquer e com o facto de já não estar sozinho.

 

APAGAM-SE TODOS OS VESTÍGIOS

Durante algum tempo, o mundo novo e risonho de Robert Kincaid levantou o nevoeiro húmido de Puget Sound. Limpou a cabana, bruniu a roupa e passou horas intermináveis a contar a Nighthawk o que se passara, falando com entusiasmo de visitar Carlisle em South Dakota quando chegasse a Primavera. Trocou correspondência com Carlisle e Wynn, em que todos evocaram acontecimentos e episódios de que se tinham esquecido nas suas conversas. Marcou mesmo uma consulta médica para fazer um exame físico completo.

Mas as coisas dão as voltas que dão. Três semanas depois de se despedir de Carlisle em Denver e quatro dias antes do exame médico, Robert Kincaid morreu de um ataque cardíaco fulminante, sozinho na cabana, onde um vizinho, alertado pelo ladrar de Highway, o encontrou. Tinha deixado os números de telefone de Wynn e Carlisle ao amigo, Nighthawk Cummings. Nighthawk telefonou a Carlisle que, em seguida, telefonou à mãe a dar a notícia da morte de Kincaid. Wynn McMillan chorou baixinho e fez perguntas sobre o funeral. Carlisle disse que Kincaid já tinha sido cremado e as suas cinzas seriam dispersas num local não revelado por ordem da firma de advogados que se ocupava dos seus assuntos.

Como prometido, Carlisle regressou a Seattle. Uma nota escrita pelo punho de Kincaid estava presa ao armário de arquivo da cozinha: «Carlisle, encontra-se tudo neste armário e no do quarto. Usa o balde do lixo nas traseiras. Obrigado. Demorei algum tempo a habituar-me à ideia de seres meu filho, mas estou quase lá. E, pelo que consigo perceber, és tudo o que um pai podia desejar. Se me acontecer alguma coisa, o Nighthawk fica com o Highway.»

Carlisle sentou-se na velha mesa da cozinha durante uma hora, o zumbido do frigorífico sobrepondo-se às poucas recordações que guardava de Robert Kincaid, desejando que houvesse mais. Juntou um maço de jornais e acendeu uma fogueira no balde do lixo. Ao examinar novamente os arquivos, Carlisle considerou por um momento recuar na promessa feita a Robert Kincaid. Mas não era possível; tinha dado a sua palavra. Mais do que isso, tinha chegado a um entendimento aproximado do que Kincaid queria dizer com a finalidade das coisas. E recordou as palavras do pai: «...arrumar a casa, apagar os vestígios, não deixar nada para trás».

Nesse dia claro e cortante de Dezembro, Carlisle imobilizou-se diante do balde do lixo. Um após outro, lançou para o fogo diapositivos e negativos, observando a obra da vida de Robert Kincaid transformar-se em cinzas e fumo. O sorridente estivador de Mombaça, a rapariga num campo mexicano. O tigre a sair das ervas altas perto do lago Periyar na índia, o homem de traços duros a olhar de uma ceifeira debulhadora em North Dakota. Os picos distantes do País Basco e os homens a fazer-se ao mar no Estreito de Malaca. Todos se encaracolaram e morreram num balde do lixo, numa manhã de Dezembro, na América.

Carlisle levou três horas a executar a tarefa. Detinha-se muitas vezes e segurava um diapositivo contra a luz, olhando-o mais uma vez antes de lançá-lo no balde. No fim, apenas ficou um envelope em papel pardo e uma caixa branca na gaveta do fundo do armário do quarto. Carlisle abriu o envelope e espreitou para dentro. Estava cheio de cartas, cerca de vinte. Tirou uma e reparou que fora selada, mas nunca enviada. As outras eram iguais e estavam todas endereçadas a uma Francesca Johnson, RR 2, Winterset, Iowa.

Carlisle recordou a reportagem sobre pontes cobertas que o pai fizera nos anos sessenta. E o nome «Winterset» despertou-lhe uma lembrança. Recordou que a vila era referida na reportagem. E não havia uma canção chamada «Francesca» que Nighthawk Cummings tinha tocado? Carlisle tirou uma carteira de fósforos do bolso e escreveu nela o nome e a morada. A tentação começou a avolumar-se dentro de si e ele passou os dedos por uma das cartas, virando-a nas mãos. Não, não seria correcto, nada correcto. Reflectiu mais alguns segundos e lançou o envelope de papel pardo para o balde.

Carlisle observou o envelope a pegar fogo e depois abriu a caixa branca, removendo cuidadosamente uma folha de papel pousada sobre uma pilha fina de fotografias a preto e branco. A de cima era de uma mulher encostada à estaca de uma vedação num prado qualquer. Carlisle achou-a extraordinariamente bonita, de uma beleza só possível numa mulher madura, ali de pé com jeans justas e os seios claramente delineados contra a t-shirt. O cabelo negro esvoaçava levemente ao vento da manhã e ela parecia quase pronta a saltar da imagem na sua direcção.

Imediatamente por baixo desta fotografia, havia outra da mesma mulher, mas menos vívida, a mulher de capuz e a foto quase impressionista. Neste caso, ela estava pensativa como se estivesse prestes a perder qualquer coisa que nunca mais encontraria.

Carlisle pôs de lado estas duas fotografias e lançou as outras para o balde. As chamas espevitaram com o papel. Observou novamente as duas fotografias restantes da mulher.

Respirando profunda e demoradamente, Carlisle McMillan alongou o olhar por Puget Sound. À distância, viu uma garça-azul sobrevoar em círculos a água matinal. E, nesse dia, no mesmo momento em que uma mulher em Iowa dava início ao seu passeio até a um lugar chamado Roseman Bridge, deixou as fotografias de Francesca Johnson deslizar-lhe da mão para as chamas.

 

NOTAS FINAIS

Assim concluímos um livro de desfechos. Como narrei em As Pontes de Madison County, Francesca Johnson morreu em Janeiro de 1989- As suas cinzas foram dispersas em Roseman Bridge, no mesmo lugar em que as de Robert Kincaid tinham sido lançadas oito anos antes. Em 1981, depois de ajudar Carolyn quando o segundo filho desta nasceu, voltou para casa e ligou para a clínica veterinária de Bellingham, Washington. Foi informada de que Robert Kincaid se tinha transferido para outra clínica alguns meses antes. Consultando uma lista telefónica na biblioteca pública de Des Moines, obteve os nomes e os números de telefone de todas as clínicas da zona de Seattle. Na realidade, uma delas tinha uma morada actual, mas nenhum número de telefone, de uma pessoa chamada Robert Kincaid. Disseram-lhe que Mr. Kincaid tinha um golden retriever.

Quando Francesca fazia preparativos para viajar até Seattle, apareceu uma carrinha da UPS a entregar uma caixa. Na caixa estava uma carta de um advogado de Seattle que começava assim: «Representamos o património de Mr. Robert L. Kincaid, que faleceu recentemente».

Na caixa estavam ainda as câmaras de Kincaid, uma pulseira de prata e uma carta escrita por ele a Francesca, em 1978, que ele nunca reviu posteriormente para incluir Carlisle McMillan. Assim, Robert Kincaid acabou por nunca arrumar a casa, deixando alguns dos seus bens à guarda de Francesca Johnson, por razões que eram exclusivamente suas.

Quanto a Carlisle McMillan, a sua própria história respeitante ao que ficou conhecido como a Guerra de Yerkes County e a uma mulher que o transformou de rapaz em homem vale a pena ser contada. Talvez um dia destes o faça.

Nighthawk Cummings está quase a fazer oitenta e cinco anos e vive num apartamento em Tacoma. Um problema nas vértebras que lhe entorpece o braço acabou com a sua carreira de músico, mas de tempos a tempos ainda pega no saxofone, geralmente ao crepúsculo e rumina Autumn Leaves, pensando no seu bom amigo Robert Kincaid. Embora Nighthawk conheça a história de Robert Kincaid e de uma mulher chamada Francesca, Kincaid nunca mencionou o apelido dela nem de onde era. Pendurada na parede do apartamento de Nighthawk, está uma fotografia de uma ponte coberta, assinada por Robert Kincaid. Por razões pouco claras, Nighthawk sente-se atraído pela fotografia e normalmente contempla-a enquanto toca.

Highway, o golden retriever, foi adoptado pelo sobrinho de Nighthawk e viveu mais quatro anos depois da morte de Kincaid. E Harry, a carrinha Chevy de 54? Era um dos últimos segredos que eu tinha de revelar. Durante a minha pesquisa, Harry parecia tão viva como Francesca, Highway, Robert Kincaid e todos os outros. Por fim, localizei-a. Tinha sido afectuosamente reparada e agora vive em South Dakota. Carlisle McMillan teve a bondade de me deixar guiar Harry para cima e para baixo, numa estrada rural, perto de um lugar chamado Wolf Butte. Olhando pelo pára-brisas, aos solavancos, imaginei sem dificuldade todos os quilómetros, todos os grandiosos quilómetros de procura que ela e Robert Kincaid percorreram juntos e o que viram, perseguindo uma boa luz. Carlisle sugeriu-me ainda que abrisse o porta-luvas. Enfiado atrás do forro estalado do compartimento está um cartão de visita amarrotado. No cartão estão impressas estas palavras: Robert Kincaid, Escritor-Fotógrafo. Ah, mais uma pequena informação: no porta-luvas, embrulhado num trapo, está um único rolo de Kodachrome II, índice de exposição de 25, por usar.

Deixo-os com isto, um momento da minha vida e das minhas peregrinações:

 

Riacho de algures nas montanhas litorais

chegando aqui veloz

sobre areia vulcânica,

emprestando à água

um tom de azul a transformar-se em alfazema.

Mais adiante na praia,

uma hora antes,

vira um elefante-marinho macho,

toneladas dele.

 

Era assim a costa da Califórnia,

no Outono quando a areia era quente.

As galochas pelo joelho

davam-me impulso

e a liberdade de vadear.

Detive-me no riacho,

segui-o com os olhos

até onde o Pacífico começava.

 

A mãe de Carlisle McMillan

dormiu uma vez nesta praia

com um homem chamado

Robert Kincaid,

outro caçador que perseguia

a luz

porque a luz estava na estrada.

 

Foi em 1945.

Ele sobrevivera

à guerra

e mais tarde

passou por aqui de motorizada.

Aturdidos, no limbo das suas vidas,

riram

e beberam vinho tinto

à beira-mar.

E desse encontro

nasceu um filho, Carlisle.

 

Riacho azul,

e eu ajustei o tripé,

repeti o gesto, apontei a Nikon,

pensando em Kincaid,

em Wynn McMillan,

com água em redor das botas,

o primeiro vento da manhã

no cipreste.

 

A curadora de um museu

onde a fotografia acabou por ser exposta

ligou e perguntou

se era realmente

água sobre areia azul.

Não parecia

água sobre areia azul,

disse ela.

Eu disse-lhe

que fora obra

de um vulcão,

séculos antes.

 

Eu estava simplesmente de passagem mais tarde...

...eu e Robert Kincaid.

E como é longe de casa! Muito longe.

 

                                                                                Robert James Waller  

 

 

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