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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REI RATO / James Clavell
REI RATO / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A época é a da Segunda Grande Guerra - mas o local fica longe dos sons de batalha. Aqui, bem no interior do território ocupado pelos japoneses, um brutal campo de prisioneiros contém mais de dez mil soldados - e entre esta massa de humanidade efervescente, um homem, um cabo americano, tenta dominar tanto cativos como captores. As suas armas são a coragem física, a compreensão das fraquezas humanas, a total prontidão para explorar qualquer oportunidade de alargar o seu poderio e subornar ou destruir quem quer que se atravesse no seu caminho. Um romance épico que despe os seres humanos até às mais nuas paixões e necessidades elementares de sobrevivência, à medida que todas as distinções entre Oriente e Ocidente se apagam perante o ímpeto omnipotente dum homem que busca um império pessoal...

 

 

 

 

Para aqueles que lá estavam e já não estão, para aqueles que lá estavam e ainda estão.

Para ele. Mas sobretudo para ela.

Havia uma guerra. As prisões de Changi e Utram Road, em Singapura, existem - ou existiam. Obviamente, o resto da história é ficção, e nenhuma semelhança com alguém vivo ou morto existe ou se pretende.

Changi estava encastoada como uma pérola na extremidade leste da ilha de Singapura, iridescente sob céus tropicais. Ficava numa ligeira elevação e, à sua volta, havia uma faixa de verdura que, mais além, cedia a vez a mares de um verde-azulado e, por fim, ao infinito horizonte.

Alais de perto, Changi perdia a beleza e mostrava aquilo que era: uma prisão suja e sinistra. Celas em pátios crestados pelo sol e isolados por enormes muros.

Para lá dos muros, dentro dos blocos de celas, piso sobre piso, celas com capacidade para dois mil prisioneiros. Agora, nas celas, nos corredores e em qualquer canto ou fenda viviam uns oito mil homens. Na sua maior parte ingleses e australianos -alguns neozelandeses e canadianos -, aqueles que restam das forças armadas da campanha do Extremo Oriente.

Estes homens eram também criminosos. E era grande o seu crime. Tinham perdido uma guerra. E tinham sobrevivido.

As portas das celas estavam abertas, os portões dos blocos de celas estavam abertos e o monstruoso portão que rasgava os muros estava aberto, e os homens podiam entrar e sair-quase livremente. Mesmo assim, havia uma sensação de clausura, um cheiro claustrofóbico.

Depois do portão havia uma estrada alcatroada. Cerca de cem metros para oeste era cortada por um emanharado de barreiras de arame farpado, e, a seguir às barreiras, havia uma casa da guarda ocupada pelos restos das hordas conquistadoras. Passadas as barreiras, a estrada corria alegremente e, com o decurso do tempo, perdia-se na grande cidade de Singapura. Mas para os homens a estrada para oeste acabava a uns cem metros do portão principal.

A leste, a estrada acompanhava o muro, voltando depois para sul e acompanhando o muro novamente. De ambos os lados da estrada havia filas de compridos godowns, como chamavam aos toscos barracões. Eram todos iguais - sessenta passos de comprido, com paredes feitas de folhas de coqueiro toscamente pregadas aos postes e telhados da mesma folhagem, camada sobre camada. Todos os anos era posta uma nova camada, ou devia ser posta. É que o sol, a chuva e os insectos torturavam a folhagem e deitavam-na abaixo. Tinham simples aberturas como janelas e portas. Os barracões tinham longas coberturas de colmo para proteger do sol e da chuva e estavam construídos em cima de placas de betão para escapar às inundações, às cobras, sapos, lesmas e caracóis, escorpiões, centopeias, baratas, escaravelhos - qualquer espécie de coisa rastejante.

Os oficiais viviam nestes barracões.

A sul e leste da estrada havia quatro fileiras de pequenas casas de betão, vinte em cada fileira, traseiras com traseiras. Os oficiais seniores - majores, tenentes-coronéis e coronéis - viviam aí.

A estrada virava para oeste, de novo acompanhando o muro, e dava com outra fila de barracões. Aqui estavam os presos que não cabiam na prisão.

E num deles, mais pequeno que a maior parte dos outros, vivia um contingente americano de vinte e cinco homens.

Onde a estrada virava para norte mais uma vez, abraçando o muro, estava parte das hortas. As restantes - que forneciam a maior parte da comida do campo - estendiam-se para norte, ao longo da estrada, oposta ao portão da prisão. A estrada continuava através da horta mais pequena, numa extensão de uns duzentos metros, e acabava à frente da casa da guarda.

À volta de toda a área de exploração, talvez uns oitocentos metros por oitocentos metros, havia uma vedação de arame farpado. Fácil de cortar. Fácil de atravessar. Mal guardada. Sem holofotes. Sem postos com metralhadoras. Mas, uma vez do lado de fora, que fazer? O lar ficava para lá dos mares, para lá do horizonte, para lá de um mar sem fim ou de uma selva hostil. Do lado de fora estava a desgraça para aqueles que iam e para aqueles que ficavam.

Por esta altura, 1945, os Japoneses tinham aprendido a deixar a direcção do campo aos prisioneiros. Os Japoneses davam ordens e os oficiais eram responsáveis por fazê-las cumprir. Se o campo não causasse problemas, também não os teria. Pedir comida era um problema. Pedir medicamentos era um problema. Pedir fosse o que fosse era um problema. O facto de estarem vivos era um problema.

Para os homens, Changi era mais que uma prisão. Changi era a génese, o lugar para começar de novo.

 

VOU apanhar aquele grande filho da mãe, ainda que me fiquem lá os ossos.

O tenente Grey estava contente por ter finalmente deitado cá para fora aquilo que há tanto tempo lhe punha um nó nas tripas. O veneno que se sentia na sua voz arrancou o sargento Masters ao seu devaneio. Estava ele a pensar numa boa garrafa de cerveja australiana, bem gelada, e num bife com um ovo a cavalo e na sua casa em Sidney e na mulher, nos seus seios e no cheirinho que ela deitava. Não se deu ao incómodo de seguir o olhar do tenente para fora da janela. Sabia quem tinha de ser, entre aqueles homens meio nus, que se deslocavam no caminho lamacento que rodeava o arame farpado. Mas ficou espantado com aquela explosão de Grey. Habitualmente, aquele chefe da polícia de Changi era tão mudo e intratável como um inglês.

- Poupe as suas forças, tenente - disse Masters com um ar enfastiado. - Os Japs não tardam a tratar-lhe da saúde.

- Quero que os Japs se lixem - disse Grey. - Quero apanhá-lo. Quero metê-lo nesta cadeia. E, quando lhe tiver abatido a proa, quero-o na cadeia de Utram Road.

Masters olhou para ele, de respiração suspensa.

- Para a cadeia de Utram Road?

- Olarila!

- Caramba, percebo que queira apanhá-lo - disse Masters-, mas isso eu não desejaria a ninguém.

- É lá que ele deve estar. E é lá que eu vou metê-lo. Porque é um ladrão, um mentiroso, um crava e um vigarista. Um sacana de um vigarista que vive à custa de nós todos.

Grey levantou-se e aproximou-se da janela da sufocante barraca da P. M. Sacudiu as moscas, que vinham em nuvens do soalho, e piscou os olhos contra a forte luz do meio-dia, refractada pela terra batida.

- Assim Deus me valha - disse ele -, tenho vingança que chega para todos nós.

Devolveu-lhe o relógio, um relógio que podia dar quase seis meses de comida.

O Rei pôs o relógio no pulso e começou a apanhar a carteira e as outras coisas.

- Ah, é verdade, o seu anel!-disse Grey.-Vamos verificar isso.

Mas o anel também conferia com a lista. A rubrica era: "Um anel de ouro, sinete do Clã Gordon." Ao lado da descrição estava um exemplo do selo.

- Como é que um americano tem um anel Gordon? - Grey fizera aquela pergunta muitas vezes.

- Ganhei-o. Poker - respondeu o Rei.

- Tem uma boa memória, cabo - disse Grey, devolvendo o anel.

Bem sabia ele que o relógio e o anel confeririam. Servira-se apenas da revista como pretexto. Sentia-se compelido, quase masochistamente, a estar perto da sua vítima, ainda que só por um momento. Sabia também que o Rei não se assustava facilmente. Muitos tinham tentado apanhá-lo e haviam falhado, porque ele era esperto, cauteloso e muito astuto.

- Porque será - perguntou Grey bruscamente, a ferver de inveja por causa do relógio, do anel, dos cigarros, dos fósforos e do dinheiro - que você tem tanto e todos os outros nada?

- Não sei, Sir. Penso que é porque tenho sorte.

- Onde arranjou esse dinheiro?

- A jogar, Sir. - O Rei era sempre bem-educado. Dizia sempre "Sir" aos oficiais e fazia a continência aos oficiais, ingleses ou australianos. Mas sabia que eles tinham consciência da amplidão do seu desprezo pelo "Sir" e pela continência. Não era à maneira americana. Um homem é um homem, independentemente do seu meio, família ou categoria. Se se lhe tem respeito, diz-se-lhe "Sir". Se não se lhe tem respeito, não se diz, e são só os filhos de puta que se opõem. Que vão para o Inferno!

O Rei voltou a pôr o anel no dedo, abotoou os bolsos e sacudiu a poeira da camisa.

- Mais alguma coisa, Sir? - E viu a cólera flamejar nos olhos de Grey.

Depois, Grey levantou os olhos para Masters, que observara a cena nervosamente.

- Sargento, é capaz de me arranjar um copo de água, por favor? Enfadadamente, Masters dirigiu-se à garrafa de água que estava

pendurada na parede.

- Aqui tem, Sir.

- Essa é de ontem - disse Grey. - Encha-a de água fresca.

- Ia jurar que a primeira coisa que fiz hoje foi encher a garrafa- disse Masters, e depois, abanando a cabeça, saiu.

Grey deixou que o silêncio pesasse e o Rei ficou descontraído, à espera. Uma lufada de vento fez sussurrar os coqueiros que se erguiam sobre a selva, logo a seguir à vedação, trazendo uma promessa de chuva. Já nuvens negras debruavam o céu, lá para leste, para em breve o cobrirem todo. Em breve transformariam a poeira num lodaçal e tornariam o húmido ar respirável.

- Quer um cigarro, Sir? - -perguntou o Rei, oferecendo o maço. A última vez que Grey saboreara um cigarro feito fora dois anos

antes, no dia dos seus anos. Dos seus 22 anos. Olhou para o maço e desejou um. Desejouos todos.

- Não - disse -, não quero um dos seus cigarros.

- Importa-se que eu fume, Sir?

- Importo-me!

O Rei manteve os olhos fixos nos de Grey e calmamente tirou um cigarro. Acendeu-o e aspirou profundamente.

- Tire isso da boca! - ordenou Grey.

- com certeza, Sir. - O Rei tirou uma longa e lenta fumaça aintes de obedecer. Depois assumiu um -ar duro. - Não estou sob as suas ordens e não há nenhuma lei que diga que não posso fumar quando me apetecer. Sou um cidadão americano e não estou sujeito a nenhuma safada bandeira inglesa. Isto também já lhe foi dito. Largue-me da mão, Sir!

- Tenho-o debaixo de olho, cabo - rugiu Grey. - Um dia destes você vai dar uma escorregadela, e, quando o fizer, eu cá estarei à espera. E você vai para ali. - O dedo tremia-lhe enquanto apontava para a gaiola de bambu que servia de prisão. - Ali é que é o seu lugar.

- Não infrinjo nenhuma lei...

- Então, onde arranjou o dinheiro?

- A jogar. - O Rei aproximou-se mais de Grey. A sua cólera estava dominada, mas mostrava-se mais perigoso que de costume. Ninguém me dá nada. O que tenho é meu e fui eu que o consegui. Como o consegui é comigo.

- Não enquanto eu for o chefe. - Grey cerrou os punhos. Foram roubadas muitas drogas durante os últimos meses. Talvez você saiba alguma coisa sobre isso.

- Ouça bem...-disse o Rei furiosamente.-Eu nunca roubei nada na minha vida. Nunca vendi drogas na minha vida. E não se esqueça disso. Raios me partam... se você não fosse um oficial...

- Mas sou e gostava que você experimentasse. Por Deus que gostava. Você julga que é um duro. Mas eu sei que não é!

- Vou dizer-lhe uma coisa. Quando tiver acabado esta merda de Changi, venha procurar-me, que o racho em dois!

- Não me esqueço! - Grey tentou acalmar o seu coração galopante. - Mas até lá não se esqueça de que o tenho debaixo de olho. Nunca vi sorte que durasse sempre. E a sua vai acabar!

- Não, não vai, Sir!

Mas o Rei sabia que ele tinha razão. Tivera sorte. Muita! Mas a sorte é muito trabalho, um plano e qualquer coisa mais. Não é jogar. Pelo menos, se não for um jogo calculado. Como hoje, com o diamante. Quatro quilates. Sabia, finalmente, como deitar-lhe a mão. Quando estivesse pronto. E, se pudesse fazer este negócio, seria o último, e não seria preciso jogar mais... pelo menos aqui, em Changi.

- A sua sorte vai desaparecer - disse Grey com malevolência. E sabe porquê? Porque você é como todos os criminosos: ambicioso...

- Olha quem fala!-disse o Rei, e a sua cólera espumava.- Não sou mais criminoso que...

- Ah, isso é que é. Não faz senão infringir a lei.

- Infrinjo uma figa! A. lei japonesa pode dizer...

- Quero que a lei japonesa se lixe. Falo da lei do acampamento. A lei do acampamento proíbe as negociatas, e você não faz outra coisa!

- Era preciso prová-lo.

- Fá-lo-ei a seu tempo. Você há-de dar uma escorregadela. E, quando a der, veremos como sobrevive com o resto de nós. Na minha jaula. E, depois da minha jaula, eu me encarregarei pessoalmente de que o mandem para Utram Road!

O Rei sentiu um calafrio de horror passar-lhe pelo coração e pelos testículos.

- Jesus! -exclamou. - Você é o género de filho da mãe capaz de fazer isso!

- No seu caso - disse Grey, e a boca espumava-lhe - seria um prazer. Os Japs são os seus amigos!

- Seu filho de puta! - O Rei acenou-lhe um punho, grande como um presunto, e deu um passo em direcção a Grey.

- Mas que é que se passa aqui? - E o coronel Brant galgou as escadas e entrou na barraca.

Era um homem baixo, pouco mais de metro e meio, com uma barba estilo sikh por baixo do queixo. Usava uma bengala de passeio, uma badine, e o seu boné militar, de pala, já não tinha pala e estava todo remendado com pano de saco; ao centro dele, o emblema do regimento brilhava como ouro, de muitos anos de polidura.

- Nada... nada, Sir. - Grey sacudiu o súbito enxame de moscas, tentando dominar a respiração. - Estava só a revistar o cabo...

Ora, ora, Grey - interrompeu o coronel Brant, com severidade - eu ouvi o que você disse sobre Utram Road e sobre os

japoneses. Está perfeitamente certo que o reviste e que o interrogue, todos sabemos isso, mas não há nenhuma razão para que o ameace ou o insulte. - E voltou-se para o Rei, com a testa perlada de

SUOr. E você, cabo, anda com muita sorte em eu não participar

de si ao capitão Brough por indisciplina. Você devia ter o bom senso de não se passear por aí assim vestido. É o bastante para fazer qualquer homem perder a cabeça. É procurar sarilhos.

- Sim, meu coronel - disse o Rei, exteriormente calmo mas amaldiçoando-se intimamente por ter perdido a cabeça, justamente o que Grey desejava.

- Olhe para a minha roupa - dizia o coronel Brant. - Como diabo pensa você que eu me sinto?

O Rei não respondeu. Reflectia. "O problema é teu, Mac. Olha por ti, que eu olho por mim." O coronel trazia apenas uma tanga feita de meio sarong amarrado à volta da cintura - à maneira de kilt - e por baixo não havia nada. O Rei era o único homem em Changi que usava cuecas. Tinha seis pares.

- Você pensa que eu não tenho inveja dos seus sapatos - perguntou o coronel Brant, com certa irritação -, quando tudo o que tenho são estes trapos?

Trazia as chinelas do regulamento: um pedaço de madeira com uma tira de lona por gáspea.

- Não sei, Sir - disse o Rei com velada humildade, tão grata aos ouvidos dos oficiais.

- Está certo, está certo. - E o coronel Brant voltou-se para Grey. - Creio que lhe deve uma desculpa. Não está certo que o ameace. Devemos ser justos, eh, Grey?

Limpou de novo o suor da cara.

Custou a Grey um enorme esforço suster a praga que lhe borbulhava nos lábios.

- Peço desculpa.

As palavras foram pronunciadas em voz baixa e o Rei teve dificuldade em apagar o sorriso dos lábios.

- Muito bem - disse o coronel Brant, acenando com a cabeça, e depois olhou para o Rei. - Pode ir-se embora, mas vestido dessa maneira está a procurar sarilhos! Não pode dar as culpas senão a si próprio!

O Rei fez a continência com extrema correcção.

- Muito obrigado, Sir.

Afastou-se e, uma vez de novo ao sol, respirou fundo e amaudiçoou-se de novo. Céus, estivera por pouco. Por pouco não batera no Grey, e teria sido o gesto de um louco. Para se recompor, parou ao lado do carreiro e acendeu outro cigarro. Muitos homens que passaram viram o cigarro e aspiraram-lhe o aroma.

- Que raio de tipo - disse por fim o coronel, ainda a olhar para a fronte e a limpar a testa. Depois voltou-se para Grey. - Realmente, Grey, você não deve estar bem da cabeça para o provocar assim.

- Peço desculpa. Creio... creio que ele...

- Seja ele o que for, não é próprio de um oficial e de um gentleman perder assim a cabeça. É muito mau, .não acha, Grey? Não acha?

- com certeza, Sir.

Grey nada mais tinha a dizer.

O coronel Brant resmungou qualquer coisa e depois apertou os lábios.

- Muito bem. Ainda bem que eu ia a passar. Não se pode admitir que um oficial se ponha a discutir com um soldado raso. - Olhou de novo pela porta, com ódio ao Rei, desejando-lhe o cigarro.

- Raios o partam! - gritou, sem olhar para Grey. - Raios partam aquele indisciplinado! Como o resto dos Americanos. Má raça. Porque tratam eles os oficiais pelo primeiro nome? - Arqueou as sobrancelhas. - E os oficiais jogam às cartas com os soldados! Santo Deus! Piores que os Australianos. Miserável! Não é como o exército indiano, hem?

- Não, Sir - respondeu Grey, sem convicção. O coronel Grey voltou-se rapidamente.

- Eu não queria... bem, Grey, só porque...-calou-se e subitamente os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Porque haviam eles de fazer aquilo? - disse com a voz entrecortada. - Porquê, Grey? Eu... nós todos gostávamos deles.

Grey encolheu os ombros. Se não fosse aquele pedido de desculpa, ter-se-ia sentido compassivo.

O coronel hesitou, depois voltou-se e saiu da barraca. Baixara a cabeça e lágrimas silenciosas corriam-lhe pela face.

Quando Singapura caiu, em 1942, os seus soldados sikhs tinham ido para o inimigo, os Japoneses, quase sem excepção, e voltaram-se contra os oficiais ingleses. Os sikhs estavam entre os primeiros guardas dos prisioneiros de guerra e eram ferozes. Os oficiais dos sikhs não tinham sossego. É que tinham os sikhs en masse e ainda uns poucos de outros regimentos indianos. Os gurkhas eram leais a um homem, mesmo na tortura e na indignidade. E, assim, o coronel Brant chorou pelos seus homens, os homens por quem teria morrido. Os homens por quem morria ainda.

Grey viuo partir, e depois viu o Rei, a fumar ao lado do carreiro. "Ainda bem que eu disse que a partir de agora és tu ou eu", segredou para si próprio.

Sentou-se no banco e uma dor aguda atravessou-lhe os intestinos, lembrando-lhe que a disenteria não o abandonara naquela semana. "Que vá para o diabo!", disse baixinho, amaldiçoando o coronel Brant e o pedido de desculpa.

Masters voltou com a garrafa da água e deu-lha. Bebeu um gole, agradeceu-lhe e começou a pensar como havia de apanhar o Rei. Mas a fome pelo almoço começava a chegar e ele deixou divagar o pensamento.

Um gemido frouxo atravessou o ar. Grey olhou abruptamente para Masters, que estava sentado, inconsciente de ter produzido esse som, a observar os lagartos, em constante movimento, que se precipitavam a apanhar insectos ou que fornicavam.

- Tens disenteria, Masters?

Masters enxotou frouxamente as moscas que lhe salpicavam o rosto.

- Não, Sir, graças a Deus. Pelo menos mão tenho há quase cinco semanas.

- Enterite?

- Também não. A filha da mãe da minha palavra! E não tenho malária há quase três meses. Tenho muita sorte. E muita saúde, vendo bem.

- É verdade - disse Grey. - Você parece de boa saúde.

Mas ele sabia que teria de ser em breve substituído. Olhou de novo para o Rei, vendo-o fumar, nauseado com a sua própria necessidade de tabaco.

Masters gemeu de novo.

- Mas que diabo tem você? - perguntou Grey irritado.

- Nada, Sir. Nada. Devo ter...

Mas o esforço para falar era excessivo e ele deixou que as palavras se fundissem com o zumbido das moscas. As moscas dominavam os dias, os mosquitos as noites. Nunca havia silêncio. Nunca. Como será viver sem moscas, sem mosquitos, sem pessoas? Masters tentou lembrar-se, mas o esforço era excessivo. Por isso, deixou-se estar sentado, sossegado, quase nem respirando, uma sombra de um homem. E a sua alma torcia-se-lhe, inquieta.

- Pode ir-se embora, Masters. Eu espero pelo que vem rendê-lo. Quem é?

Masters espremeu os miolos e disse, passado um momento:

- O Bluey... O Bluey White.

- Oh, homem, você precisa de se tratar! O cabo Bluey morreu há três semanas!

- Peço desculpa, Sir - disse Masters frouxamente. - Peço desculpa. Devo ter... Ah... julgo que é o Peterson. O Pommy, quero eu dizer, inglês. De infantaria, creio.

- Está bem. Agora pode ir jantar. Mas não se atrase ao voltar.

- Muito bem, Sir.

Masters pôs o chapéu, fez a continência e saiu pela saída sem porta, dando um puxão aos farrapos das suas calças à volta dos rins. "Meu Deus", pensou Grey, "o gajo cheira mal a vinte metros. Têm de fornecer mais sabão."

Mas sabia que não era só Masters. Eram todos. Se não se tomasse banho seis vezes por dia, o suor pairava à volta dos corpos como uma mortalha. E, por pensar em mortalhas, voltou a pensar em Masters... e na marca que ele trazia em si. Talvez Masters também o soubesse, e, nesse caso, que sentido faria lavar-se?

Grey vira morrer muitos homens. O azedume começou a brotar quando pensou no regimento e na guerra. "Diabos me levem!", quase ele gritou. "Vinte e quatro anos e ainda tenente! E guerra por todos os lados e por todo o mundo. Promoções todos os dias do ano. Oportunidades. E eu ainda aqui enterrado e ainda tenente. Oh, Cristo! Se ao menos não tivéssemos sido transferidos para Singapura em 1942! Se ao menos tivéssemos ido para onde devíamos ir! Para o Cáucaso! Se ao menos..."

- Pára com isso! - disse alto. - És tão bera como o Masters, meu parvalhão!

Era normal, no acampamento, que cada um falasse sozinho consigo mesmo, de vez em quando. Era melhor deitar as coisas cá para fora, diziam os médicos, que mantê-las abafadas lá dentro: desse modo ia-se à loucura. Na maior parte, os dias não eram tão maus. Podia-se parar de pensar na nossa outra vida, nos gostos dela: comida, mulheres, casa, comida, comida, mulheres, comida. Mas as noites eram a parte perigosa. À noite sonhava-se. Sonhava-se com comida e com mulheres. com a nossa mulher. E em breve se apreciava mais o sonho que a vigília e, se não se tivesse cuidado, sonhava-se quando se estava acordado, e os dias tornavam-se noites e as noites dias. Então, havia apenas a morte. Macia. Suave. Era fácil morrer. Agonia a viver. Excepto para o Rei. Ele não tinha agonia.

Grey continuava a vigiá-lo, tentando ouvir o que ele dizia ao homem que estava ao seu lado, mas estavam muito distantes. Grey tentou identificar o outro homem, mas não conseguiu. Via, pelo galão da manga, que era major. Pelo regulamento japonês, todos os oficiais tinham de usar galões, com a insígnia do posto, na manga esquerda. Em todas as ocasiões. Mesmo nus.

As negras nuvens de chuva acumulavam-se agora rapidamente. Relâmpagos iluminavam a oriente, mas o Sol ainda se mostrava.

Uma brisa fétida varreu a poeira momentaneamente, depois deixou-a assentar.

Automaticamente, Grey serviu-se do mata-moscas de bambu. Um torcer hábil, semi-inconciente do pulso, e mais uma mosca caía no chão, estropiada. Matar uma mosca era estúpido. Estropiá-la fazia que a filha da mãe sofresse e pagasse em pequena percentagem do próprio sofrimento deles. Estropiada e, então, ela gritará insonorizada, até que as formigas e outras moscas venham bater-se sobre a sua carne viva.

Mas Grey não participava do gozo habitual em assistir ao tormento do atormentador. Estava demasiado ocupado com o Rei.

- Côa breca! - dizia o major ao Rei com uma jovialidade forçada. - E depois veio o tempo em que estive em Nova Iorque. Em 1933. Belos tempos! Um país estupendo, os Estados Unidos. Já lhe contei da viagem que fiz à Albânia? Era eu oficial subalterno...

- Já, Sir, já me contou - respondeu o Rei com um ar fatigado. Sentia que já fora bem-educado bastante tempo e sentia ainda os olhos de Grey pousados nele. Embora se sentisse seguro e sem medo, queria sair do sol e do alcance dos seus olhos. Tinha muito que fazer. E, se o major queria chegar ao assunto, que o Diabo o levasse. - Bem, Sir, se me dá licença... Tive muito gosto.

- Só mais um minuto - disse o major Barry rapidamente, e olhou em volta, nervoso, consciente dos olhos curiosos dos homens que passavam, consciente da sua pergunta não proferida: "Para que diabo estará ele a falar ao Rei?"-Eu... anh... podia falar-lhe em particular?

O Rei mediu-o com um ar pensativo.

- Estamos aqui em particular... se falar baixo.

O major Barry transpirava de embaraço. Mas havia vários dias que tentava apanhar o Rei. E a oportunidade era boa de mais para que a perdesse.

- Mas a barraca do chefe da polícia fica...

- Que têm os xuis com o que se fala em particular? Não compreendo, Sir. - E o Rei estava um veludo.

- Não há necessidade... anh... bem, o coronel Sellars disse que você podia ajudar-me.

O major Barry tinha só o coto do braço direito e passava o tempo a coçá-lo, a tocar-lhe, a moldá-lo.

-Você poderia... anh... vender-me uma coisa? - Esperou até que não houvesse ninguém ao pé. - É um isqueiro - disse baixinho. - Um isqueiro Ronson. Em perfeito estado.

Agora, que desembuchara, sentia-se um pouco mais á vontade. Porém, ao mesmo tempo, sentia-se nu ao dizer estas palavras a um americano, ao sol, num caminho público.

O Rei pensou um momento.

- Quem é o dono?

- Sou eu. - O major levantou os olhos, assustado. - Santo Deus! Você não pensa que o roubei, pois não? Nunca faria isso. Deus do Céu! Tenho-o guardado todo este tempo, mas agora... bem, agora tenho de o -vender. Toda a unidade concorda. - Passou a língua pelos lábios secos e afagou o toco. - Por favor. Faz-me isso? Você pode conseguir o melhor preço.

- Negociar é contra o regulamento.

- Pois é. Mas, por favor, faz-me isso? Pode confiar em mim. O Rei voltou-se de forma a ficar de costas para Grey e voltado

para a vedação, para o caso de Grey saber ler pelos lábios.

- Eu mando alguém depois do rancho - disse calmamente. A senha é: "O tenente Albany disse-me que falasse consigo." Percebido?

- Percebido. - O major Barry hesitou, com o coração como um cavalo no peito. - Você disse quando?

- Depois do rancho. Do almoço.

- Está muito bem.

- Dê-lho. E, quando eu o tiver examinado, entro em contacto consigo. A mesma senha. - O Rei esmagou a ponta incandescente do seu cigarro e atirou a beata ao chão. Ia mesmo a pôr-lhe um pé em cima, quando viu a cara do major. -Ah! Quer a beata?

O major Barry baixou-se, todo contente, e apanhou-a.

- Obrigado, muito obrigado.

Abriu a sua lata de tabaco, rasgou o papel da beata, pôs a meia polegada de tabaco entre as folhas de chá secas e fez a mistura.

-Nada como uma boa fumaça - disse ele, sorrindo. - Muito obrigado. Vou fazer pelo menos três bons cigarros.

- Virei procurá-lo, Sir - disse o Rei, fazendo a continência.

- Ah... anh... bem... - O major Barry não sabia muito bem como dizer. - Não acha - disse nervosamente, baixando a voz que... bem, entregá-lo assim, a um estranho, como é que eu sei se... bem, que tudo está certo?

O Rei disse friamente:

- Primeiro, a senha. Outra coisa: eu tenho uma reputação. Outra coisa ainda: estou a confiar em si, a confiar que não foi roubado. É melhor esquecer isto.

- Ok, não, por favor, não leve a mal-disse o major rapidamente - Estava só a perguntar. É que... bem, é a última coisa que

me resta Tentou sorrir. - Muito obrigado. Depois do almoço.

Quanto tempo pensa que vai levar... anh... a despachá-lo?

O menos tempo possível. Condições habituais. Eu recebo dez por cento do preço de venda - disse o Rei, áspero.

- Com certeza. Muito obrigado e obrigado também pelo tabaco.

Agora, que tudo fora dito, o major Barry sentia que um peso enorme lhe saíra de cima. "Com um pouco de sorte", pensava ele, enquanto descia apressadamente a colina, "ainda posso arranjar uns seiscentos ou setecentos dólares. O suficiente para comprar comida durante meses, com cuidado." Não pensou nem uma vez no homem que fora o dono do isqueiro, que lho dera a guardar quando, meses atrás, fora para o hospital, para nunca mais voltar. Isto pertencia ao passado. Hoje, era ele o dono do isqueiro. Era dele, podia vendê-lo.

O Rei sabia que Grey estivera a observá-lo todo o tempo. A excitação de saber que estava a fazer um negócio em frente da barraca da P. M. aumentava o seu bem-estar. Satisfeito consigo, subiu uma pequena ladeira, correspondendo automaticamente às continências dos homens - oficiais e soldados, ingleses e australianos - que conhecia. Os importantes tinham direito a um tratamento especial, os outros a um aceno amigável. O Rei tinha consciência da inveja malévola que despertava, mas que nada o incomodava. E estava satisfeito por os homens lhe chamarem Rei. Orgulhava-se do que fizera como homem, como americano. Graças à astúcia, construíra um mundo. Vigiava agora esse mundo e estava satisfeito.

Parou junto da barraca nº 24, uma das barracas australianas, e meteu a cabeça pela janela.

- Olá, Tinker - chamou. - Preciso de fazer a barba e de arranjar as unhas.

Tinker Bell era baixo e delgado. Tinha a pele castanha, os olhos eram pequenos e muito castanhos e o nariz estava a pelar-se. Era tosquiador de carneiros por profissão, mas era o melhor barbeiro de t-nangi.

- Que vem a ser isto? Fazes anos? Tratei-te das unhas ainda anteontem.

- E vais tratar hoje.

Tinker encolheu os ombros e saltou -pela janela. O Rei estava sentado ao abrigo do beiral do telheiro da barraca, descontraindo-se, satisfeito, quando Tinker lhe pôs a toalha em volta do pescoço e o instalou confortavelmente.

- Olha-me para isto, pá. - E pôs um pequeno rolo de sabão de barba debaixo do nariz do Rei. - Cheirame esta maravilha.

- Eh, pá - disse o Rei com um esgar-, é McCoy autêntico.

- Não percebo disso, pá, mas são violetas de Yardley. Um gajo meu amigo fanou-o mesmo nas ventas de um xui. Custou-lhe trinta dólares - disse ele, com uma piscadela, dobrando o preço. - Se quiseres, guardo-o só para ti, especial.

- Vou dizer-te uma coisa. Dou4e cinco dólares de cada vez, em lugar de três, enquanto durar - disse o Rei.

Tinker fez rapidamente o cálculo. O sabão daria talvez para oito barbas, talvez dez.

- Vai-te matar, pá. Mal recupero o que me custou. O Rei resmungou.

- Foste levado, pá. Posso comprar isso a peso, a quinze cada um.

- Uma ova! - exclamou Tinker com simulada cólera. - Este gajo julga que sou algum aldrabão. Não está certo! - Furiosamente, juntou um pouco de água quente e fez espuma. Depois riu-se. Não há dúvida de que és o Rei, meu velho.

- Claro- tornou o Rei, satisfeito. Ele e Tinker eram velhos amigos.

- Estás pronto, pá? - perguntou Tinker, de pincel na mão.

- Claro. - Depois, o Rei viu Tex a descer pelo caminho. - Eh, Tex! - gritou.

Tex olhou através da barraca, viu o Rei e dirigiu-se para ele.

- Então?

Era um tipo afadistado, de grandes orelhas e com um nariz esborrachado, e era alto, muito alto.

Sem que lho pedissem, Tinker afastou-se para onde não ouvisse a conversa, quando o Rei fez sinal a Tex para se aproximar.

- Fazes-me uma coisa?

- Com certeza.

O Rei abriu a carteira e extraiu dela uma nota de dez dólares.

- Vai à procura do coronel Brant. Aquele que tem uma barbicha por baixo do queixo. Dá-lhe isto.

- Sabes onde ele poderá estar?

- À esquina da prisão. É o dia de ele ter o Grey debaixo de olho.

Tex arreganhou a favola.

- Ouvi dizer que tiveste uma pega com ele.

- O filho da mãe revistou-me outra vez.

- É bera - disse Tex secamente, coçando a cabeça.

- É. - O Rei riu-se. - E diz ao Brant que para a próxima não chegue tão atrasado. Mas só queria que lá estivesses. Eh, pá, aquele Brant é um grande actor! Até fez o Grey pedir desculpa.

- Okay. É tudo?

Disse-lhe a senha e também onde podia encontrar o major Rarry; depois, Tex seguiu o seu caminho e o Rei encostou-se para trás. Feitas as contas, o dia fora rendoso.

Grey desceu, açodado, o caminho de terra batida e subiu os degraus da barraca nº 16. Eram quase horas do almoço e tinha uma fome dos diabos.

Já os homens começavam a formar uma bicha impaciente para o rancho. Rapidamente, Grey foi até à cama, pegou nas duas latas para a comida, na caneca, na colher e no garfo e foi para a bicha.

- Por que é que ainda cá não está? - perguntou, chateado, ao homem que estava à frente dele.

- Como raio queres que eu saiba? - disse Dave Daven laconicamente.

O seu sotaque era de public school -Eton, Harrow ou Gharterhou-se - e ele era alto como um bambu.

- Estava só a perguntar - disse Grey irritado, desprezando Daven pelo seu sotaque e pela sua nobreza.

Depois de terem esperado uma hora, a comida chegou. Um homem trouxe dois contentores para a frente da bicha e ali os pousou. Os contentores tinham primitivamente contido cinco galões de gasolina de oito octanas. Agora, um estava meio cheio de arroz seco, transparente. O outro estava cheio de sopa.

Hoje, a sopa era de tubarão. Pelo menos um tubarão fora dividido em bocadinhos, em sopa, para dez mil homens. Estava quente e sabia vagamente a peixe; tinha também bocados de beringela e de couve, uns cinquenta quilos para dez mil. O elemento forte da sopa era constituído por folhas, verdes e vermelhas, amargas e nutritivas, cultivadas com muitos cuidados nas hortas do acampamento. Sal, um -pouco de caril e pimenta serviam-lhe de condimento.

Em silêncio, cada homem dava um passo em frente, um de cada vez, vendo o homem que vinha à frente e o que vinha atrás serem servidos e comparando as rações deles com a sua. Mas agora, passados três anos, as porções eram todas iguais.

Uma chávena de sopa por homem.

O arroz fumegava enquanto o serviam. Hoje era arroz de Java, cada grão separado, o melhor do mundo. Uma chávena por homem.

Uma caneca de chá.

Os gorgulhos do arroz eram um alimento extra e vermes ou insectos na sopa eram retirados sem asco, se se dava por eles. Mas a maior parte dos homens não olhava para a sopa depois do primeiro olhar rápido para ver se havia nela algum bocado de peixe.

Hoje sobrou um pouco, depois do serviço; a lista foi verificada e os três homens que estavam à cabeça -receberam um extra e agradeceram. Depois, a comida fora retirada, o almoço acabara e o jantar era ao pôr do Sol.

Porém, embora houvesse só sopa e arroz, aqui e ali, pelo acampamento fora, um homem podia ter um pedaço de coco ou meia banana, ou um pedaço de sardinha, ou um bocado de carne, ou até um ovo, para misturar ao arroz. Um ovo inteiro era raro. Uma vez por semana, se as galinhas do acampamento agissem de acordo com o plano, havia um ovo para cada homem. Era então um grande dia. Alguns homens recebiam um ovo todos os dias, mas ninguém queria pertencer a esse grupo especial.

- Eh, escutem, camaradas! - O capitão Spence estava no meio da barraca, mas a sua voz ouvia-se cá fora. Era o oficial de semana, o ajudante da barraca, um homem escuro e baixo, com as feições torcidas. Esperou até que todos tivessem entrado. - Temos de fornecer mais três homens para o destacamento da lenha, amanhã.

- Verificou a sua lista, chamou os nomes e depois levantou os olhos. - Marlowe? - Não houve resposta. - Há aqui alguém que saiba onde está o Marlowe?

- Creio que está lá em baixo com a unidade dele - gritou Ewart. - Dizes-lhe que faz parte do destacamento da lenha para amanhã, está bem?

- Está bem.

Spence começou a tossir. A sua asma, hoje, não estava boa e, quando passou o espasmo, ele continuou:

- O comandante do acampamento teve outra entrevista com o general japonês esta manhã. Pediu que as rações fossem aumentadas e fornecidos remédios. - No silêncio momentâneo pigarreou, e a sua voz era uniforme. - Levou a tampa habitual. A ração de arroz mantém-se nuns cem gramas por dia e por homem.

Spence espreitou pela porta e verificou que os dois vigias estavam nos seus lugares. Depois baixou a voz e todos os homens escutaram atentamente.

- Os Aliados estão a cerca de cem quilómetros de Mandalay, ainda em força. Puseram os Japoneses em fuga. Os Aliados continuam a entrar na Bélgica, mas o tempo está muito mau. Tempestades de neve. Na frente de leste, a mesma coisa, mas os Russos estão a bater-se como uns danados e esperam tomar Cracóvia dentro de poucos dias. Os Americanos portam-se bem em Manila. Estão perto... -hesitou, tentando recordar o nome - creio que é de Agno R ver, em Luzon. E é tudo. Mas é bom.

Spence estava contente por ter acabado a sua missão. Aprendia as notícias de cor todos os dias, na reunião de sargentos e, de cada vez que se levantava para as repetir publicamente, sentia um suor gelado e um vazio no estômago. Um dia, um informador podia apontar um dedo para ele e dizer ao inimigo que era ele quem publicava as notícias, e Spence sabia que não era suficientemente forte para ficar ralado. Ou, um dia, um japonês podia ouvi-lo dizer aos outros e então, então...

- É tudo, amigos.

Spence dirigiu-se à sua tarimba, enojado. Tirou as calças e saiu da barraca com uma toalha no braço.

O sol fustigava. Faltavam duas horas para a chuva. Spence atravessou a rua de asfalto e pôs-se na bicha para o chuveiro. Tinha sempre de tomar um duche depois de dar as notícias, porque o cheiro do seu suor era acre.

- Estão bem, pá? - perguntou Tinker.

O Rei olhou para as unhas. Estavam bem tratadas. Sentia a cara tensa das toalhas quentes e frias e ardia-lhe da loção.

- Bestial - respondeu, ao pagar-lhe - Obrigado, Tinker. Saiu da cadeira, pôs o chapéu e fez um aceno a Tinker e ao coronel, que esperara pacientemente por um corte de cabelo.

Ambos os homens olharam fixamente para ele.

O Rei subiu o carreiro com passo rápido, passando por entre as barracas em direcção a casa. Sentia uma fome agradável.

A barraca americana estava separada das outras, bastante próxima dos muros, para apanhar a sombra da tarde, e muito próxima do carreiro circundante, que era a corrente de vida do acampamento, e próxima da vedação. Estava onde devia. O capitão Brough, da Força Aérea dos Estados Unidos, o oficial americano mais velho, insistira em que os soldados americanos tivessem a sua barraca própria. A maior parte dos oficiais americanos teria preferido mudar-se para lá também -era-lhes difícil viver entre estrangeiros -, mas isto não foi permitido, porque os Japoneses tinham ordenado que os oficiais estivessem separados dos soldados. As outras nacionalidades achavam isto duro de aceitar, os Australianos menos que os Ingleses.

O Rei estava a pensar no diamante. Não ia ser fácil resolver aquele negócio, e aquele negócio tinha de ser resolvido. De repente, ao aproximar-se da barraca, viu um homem novo acocorado, a falar com um nativo' em malaio. A pele do homem era fortemente pigmentada e, por baixo da pele, notavam-se-lhe os músculos. Ombros largos. Ancas esguias. O homem trazia apenas um sarong e a forma como o trazia era de quem estava habituado. Tinha o rosto ossudo e, embora tivesse uma magreza de Changi, havia graciosidade nos seus movimentos e uma faísca de espírito.

O malaio -castanho-escuro e delgado- escutava atentamente o melodioso discurso do homem; depois riu-se, mostrando uns dentes estragados pela noz de bétele, e respondeu, sublinhando a melodiosa linguagem com um aceno da mão. O homem riu também e interrompeu com um chorrilho de palavras, indiferente ao olhar fixo do Rei.

O Rei só conseguia apanhar uma palavra aqui, outra acolá, pois que o seu malaio era mau e tinha de se desenvencilhar com uma mistura de malaio, japonês e inglês de terceira classe. Prestou atenção ao rico riso e teve a certeza de que era uma coisa rara. Quando este homem ria, via-se que o riso lhe vinha de dentro. E isto era muito raro. Precioso.

Pensativo, o Rei entrou na barraca. Os outros homens lançaram-lhe um olhar rápido e saudaram-no amavelmente. Retribuiu as saudações sem favor. Mas ele sabia e eles sabiam.

Dino estava deitado na sua barraca, meio a dormir. Era um homem bem arranjado, de pele escura e cabelo escuro, prematuramente salpicado de cinzento, e olhos claros e líquidos. O Rei sentiu esses olhos, sacudiu a cabeça e viu o sorriso de Dino. Mas os olhos não sorriam.

No canto oposto da barraca, Kurt levantou os olhos das calças que estava a tentar remendar e cuspiu para o chão. Era um homem enfezado, com mau aspecto, dentes acastanhados, que estava sempre a cuspir para o chão. E ninguém gostava dele, porque nunca tomava banho. Perto do centro da barraca, Byron Jones in e Miller jogavam a sua interminável partida de xadrez. Ambos estavam nus. Quando o navio mercante de Miller fora torpedeado, dois anos antes, ele pesava cento e trinta quilos e tinha mais de um metro e noventa de altura. Agora levava a balança aos setenta e poucos e as peles da barriga topavam-lhe o sexo. Os seus olhos, azuis, acenderam-se quando ele estendeu a mão para tomar um cavalo. Byron Jones In retirou rapidamente o cavalo e agora Miller viu que o seu castelo estava ameaçado.

- Aí tem, Miller - disse Jones, coçando as feridas das pernas.

- Vá para o diabo! Jones riu com vontade.

- A Armada pôde sempre apanhar a marinha mercante.

- E vocês, seus filhos da mãe, ainda vão a pique. E é um barco de guerra.

- É verdade - disse Jones pensativo, brincando com a pala do olho e lembrando-se da morte do seu barco, o Houston, e da morte dos seus amigos e da perda do seu olho.

O Rei passeou de uma -ponta à outra da barraca. Max estava ainda sentado ao lado da cama e da grande caixa preta que estava presa a ela por uma corrente.

- Okay, Max - disse o Rei. - Obrigado. Agora podes ir.

- Com certeza.

Max tinha uma cara bem tratada. Vinha do West Side de Nova Iorque e aprendera as lições da vida nessas ruas, ainda muito novo. Tinha os olhos castanhos e inquietos.

Automaticamente, o Rei puxou da sua caixa de tabaco e ofereceu-a a Max para que se servisse.

- Ena, obrigado! - disse Max. - Ah, é verdade, o Lee pediu-me que te dissesse que te lavou a roupa. Ele hoje vai ao rancho (estamos no segundo turno), mas pediu-me que te dissesse.

- Obrigado.

O Rei sacou do seu maço de Kooas e fez-se na barraca um súbito silêncio. Antes que o Rei tivesse tempo para sacar dos fósforos, Max accionava o seu isqueiro de pederneira.

- Obrigado, Max. - O Rei aspirou profundamente. Então, após uma pausa, ofereceu: - Queres um Kooa?

- Jesus! Obrigado - disse Max, ignorando a ironia da voz do Rei. - Queres mais alguma coisa?

- Se precisar, chamo-te.

Max foi sentar-se na sua cama, ao lado da porta. Os olhos viram o cigarro, mas as bocas nada disseram. Era de Max. Max ganhara-o. Quando fosse o dia de eles guardarem os bens de Max, talvez apanhassem também um.

Dino sorriu para Max, que lhe ipiscou o olho em resposta. Repartiriam o cigarro depois do rancho. Repartiam sempre o que achavam, roubavam ou faziam. Max e Dino eram uma unidade.

E era o mesmo em todo o mundo de Changi. Os homens comiam e confiavam por unidades. Aos dois, aos três, raramente aos quatro. Um homem só nunca podia cobrir terreno bastante ou encontrar qualquer coisa comestível e fazer lume, cozinhar e comer - sozinho, não. Três eram a unidade perfeita. Um para forragear, um para guardar o que fora forrageado e outro para poupar. Quando o que poupava não estava doente, também ele forrageava ou guardava. Tudo era dividido em três partes: se um tinha um ovo, ou roubava um coco ou achava uma banana, tudo ia para a unidade. A lei -como todas as leis naturais - era simples. Só se podia sobreviver por esforço mútuo. Retirar-se da unidade era fatal, porque, se se fosse expulso de uma unidade, a coisa sabia-se, e era impossível sobreviver sozinho.

Mas o Rei não tinha uma unidade. Bastava-se a si próprio.

A cama dele estava no melhor canto da barraca, debaixo de uma janela, posta de maneira a apanhar a mais ligeira brisa. A cama mais próxima estava a oito pés de distância. A cama do Rei era boa. De aço. As molas eram fortes e o colchão era de sumaúma.

Tinha dois cobertores, e a pureza dos lençóis espreitava do cobertor de cima, junto do travesseiro, corado ao sol. Por cima da cama havia um mosquiteiro. Impecável.

O Rei tinha também uma mesa e duas cadeiras de braços e um tapete de cada lado da cama. Numa prateleira, por trás da cama, estavam os seus apetrechos de barba -navalha, pincel, lâminas, sabão- e, além deles, os seus pratos e chávenas e fogão eléctrico, de fabrico caseiro, e objectos para cozinhar e para comer. Na parede de canto estava pendurada a sua roupa - quatro camisas, quatro pares de calças e quatro calções. Seis pares de peúgas e cuecas estavam numa prateleira. Debaixo da cama havia dois pares de sapatos, chinelos de banho e um par de reluzentes sandálias indianas.

O Rei sentou-se numa das cadeiras e assegurou-se de que tudo estava ainda no seu lugar. Notou que o cabelo que tão delicadamente colocara na sua navalha de barba já lá não estava. "Filhos da mãe!", pensou. "Por que diabo hei-de arriscarme a apanhar-lhes a sarna?" Mas nada disse. Limitou-se a tomar uma nota mental para passar a fechá-la.

- Eh! - gritou Tex. - Estás ocupado?

"Ocupado" era outra senha. Significava: "Estás preparado para receber uma encomenda?"

O Rei sorriu e fez que sim com a cabeça. Tex passou-lhe cuidadosamente o isqueiro Ronson.

- Obrigado - disse o Rei. - Gostaste da minha sopa hoje?

- Se se parece! - respondeu Tex, e afastou-se. Preguiçosamente, o Rei examinou o isqueiro. Como o major

dissera, estava quase novo. Não tinha um risco. Não falhava uma vez. E muito limpo. Tirou o parafuso que segurava a pedra e examinou-a. Era uma pedra nacional, quase gasta. Por isso, abriu a caixa de charutos que estava na prateleira, encontrou as pedras Ronson e pôs uma nova. Carregou na mola e o isqueiro funcionou. Um ajustamento cuidado da torcida e deu-se por satisfeito. O isqueiro não era uma imitação e valia oitocentos ou novecentos dólares. Do sítio onde estava sentado via o rapaz e o malaio.

- Max! - chamou calmamente. Max atravessou a barraca..

- Que é?

- Vês aquele tipo? - perguntou o Rei, fazendo um gesto com a cabeça para fora da janela.

-Qual? O Wog?

- Não. O outro. És capaz de mo ir chamar? Max saiu e atravessou o caminho.

- Eh, Mac!-disse abruptamente para o rapaz. - O Rei quer falar-te. - E apontou com um polegar para a barraca.

O homem abriu a boca para Max e depois seguiu a linha do polegar para a barraca americana.

- A mim? - perguntou o rapaz, incrédulo, olhando para Max.

- Sim, a ti - insistiu Max impacientemente.

- Para quê?

- Como diabo queres que eu saiba?

O homem franziu o sobrolho para Max, mal-encarado. Pensou um momento, depois voltou-se para Suliman, o malaio.

- Nanti-lah - disse ele.

- Bik, tuan - disse Suliman, preparando-se para esperar, e depois acrescentou em malaio: - Tem cuidado contigo, tuan. E vai com Deus.

- Nada receies, meu -amigo... mas agradeço-te o teu pensamento- disse o homem, sorrindo.

Levantou-se e seguiu Max para a barraca.

- Querias falar-me? - perguntou, dirigindo-se ao Rei.

- Queria - respondeu o Rei, sorrindo.

Viu que os olhos do homem estavam precavidos. Isto agradou-lhe, porque os olhos precavidos são raros.

- Senta-te. - Fez um aceno a Max, que saiu.

Sem que lho pedissem, os outros homens que estavam perto afastaram-se, para que o Rei pudesse falar à vontade.

- Vá, senta-te - tornou o Rei.

- Obrigado.

- Um cigarro?

Os olhos do homem abriram-se mais quando viu o Kooa que lhe ofereciam. Hesitou e depois pegou-lhe. O seu espanto cresceu quando o Rei acendeu o Ronson, mas tentou escondê-lo e aspirou voluptuosamente o cigarro.

- É bom, muito bom - disse com prazer. - Obrigado.

- Como te chamas?

- Marlowe. Peter .Marlowe.- E acrescentou, ironicamente: E tu?

O Rei riu-se. "Óptimo", pensou, "o tipo tem o sentido do humor e não é lambe-botas." Forneceu a informação e depois perguntou:

- És inglês?

- Sou.

O Rei nunca reparara em Peter Marlowe, mas isso nada tinha de estranho, quando havia dez mil caras e todas tão parecidas. Estudou em silêncio Peter Marlowe, e os frios olhos azuis estudaram-no por sua vez.

- Os Kooas devem ser os melhores cigarros que por aí há disse o Rei, por fim. - Claro que não se comparam com os Camels. Cigarro americano. Os melhores do Mundo. Já experimentaste?

- Já - disse Peter Marlowe-, mas, na verdade, pareceram-me um pouco secos. A minha marca é o Gold Flake. - E acrescentou, polidamente: - É uma questão de gosto, suponho.

-De novo caiu o silêncio e esperou que o Rei atacasse o assunto. Enquanto esperava, pensou que gostava do Rei, a despeito da sua reputação, e gostava dele pelo humor que brilhava por trás dos seus olhos.

- Falas muito bem malaio - disse o Rei, abanando a cabeça para o malaio, que esperava pacientemente.

- Sim, penso que não falo muito mal.

O Rei abafou uma praga por causa do inevitável inglês subjacente.

- Aprendeste aqui?

- Não. Em Java. - Peter Marlowe hesitou e olhou em redor. Tem aqui uma boa casa.

- Gosto de estar bem instalado. Que tal essa cadeira?

- Óptima. - E houve um ligeiro sinal de surpresa.

- Custou-me oitenta dólares - disse o Rei com orgulho. - Há um ano.

Peter Marlowe olhou vivamente para o Rei, para ver se aquela do preço era brincadeira, assim sem mais nem menos, mas viu apenas satisfação e orgulho evidentes. "Estranho", pensou, "dizer isto a um desconhecido."

- É muito cómoda - disse, disfarçando o embaraço.

- Vou preparar a comida. És servido?

- Acabei de almoçar - disse Peter Marlowe cuidadosamente.

- O que não te impede de voltar a comer. Queres um ovo? Agora, Peter Marlowe já não podia disfarçar a sua surpresa e abriu muito os olhos. O Rei sorriu e viu que valera a pena convidá-lo para comer, só para ter uma reacção como aquela. Ajoelhou junto da caixa preta e deu a volta à chave cuidadosamente.

Peter Marlowe baixou os olhos para o conteúdo, aturdido. Meia dúzia de ovos, sacos de café em grão, boiões cheios de gula malacca, os deliciosos rebuçados do Oriente. Bananas. Pelo menos uns quatrocentos e cinquenta gramas de tabaco de Java. Dez ou onze maços de Kooas. Um boião cheio de arroz. Azeite. Muitas guloseimas em folhas de bananeira. Havia muitos anos que não via tesouro assim.

O Rei tirou o azeite e dois ovos e voltou a fechar a caixa. Quando olhou de novo para Peter Marlowe, viu que os seus olhos estavam de novo precavidos, a face composta.

- Como queres o teu ovo? Estrelado?

- Bem, não me parece justo aceitar. - Peter tinha dificuldade em falar. - Quer dizer, você não pode andar a oferecer ovos a toda a gente dessa maneira

O Rei sorriu. Era um bom sorriso e reconfortou Peter Marlowe.

- Não tem importância. Põe isso à conta de "dar-se as mãos através do mar"... empréstimo e arrendamento.

Um assomo de enfado percorreu o rosto do inglês e os músculos da face endureceram-lhe.

- Que há? - perguntou o Rei abruptamente. Depois de uma pausa, Peter Marlowe disse:

- Nada. - E olhou para o ovo. Havia oito dias que não comia nenhum. - Se tem a certeza de que não estou a privá-lo, preferia estrelado.

- Já venho - disse o Rei.

Sabia que cometera um erro qualquer, porque o enfado era real. "Os estrangeiros são estranhos", pensou, "nunca se sabe como vão reagir." Pôs o fogão eléctrico em cima da mesa e ligou-o à ficha.

- Bonito, hem!-disse, gracejando.

- É.

- Foi o Max que lhe pôs os fios - disse, indicando com um aceno o fundo da barraca.

Max levantou os olhos, sentindo um olhar sobre si:

- Queres alguma coisa?

- Não - respondeu o Rei. - Estava só a dizer que foste tu que arranjaste o fogão.

- Ah! Está a trabalhar bem?

- Claro.

Peter Marlowe levantou-se e foi debruçar-se da janela, gritando lá para fora, em malaio:

- Peço-te que não esperes. Amanhã volto a falar contigo, Suliman.

- Muito bem, tuan, que a paz seja contigo.

- E contigo. - E Peter Marlowe sorriu e voltou a sentar-se, enquanto Suliman se afastava.

O Rei partiu os ovos com uma grande limpeza e deitou-os no azeite quente. A gema era de um dourado rico e a clara crepitou e chiou contra o azeite quente, começando a solidificar. A chiadeira logo encheu a barraca, como encheu as mentes e os corações e fez correr as salivas. Mas ninguém disse nada, ninguém fez nada, excepto Tex. Pôs-se em pé com relutância e saiu da barraca.

Muitos homens que passavam pelo carreiro aspiraram aquela fragrância e de novo odiaram o Rei. O perfume desceu a vertente e entrou na barraca da P. M. Grey e Masters souberam imediatamente donde ele vinha.

Grey levantou-se, enjoado, e dirigiu-se à porta. Ia dar uma volta ao acampamento para evitar o aroma. Depois mudou de ideias e voltou para trás.

- Venha daí, sargento - disse. - Paga-se uma cerveja na barraca americana. Seria uma boa altura para falar dessa história do Sellars!

- Boa ideia - disse Masters, quase desfeito por causa do cheiro. O filho da mãe podia, ao menos, cozinhar antes do almoço, e não logo a seguir... quando ainda faltam cinco horas para a ceia.

- Os americanos estão hoje no segundo turno. Ainda não comeram.

Dentro da barraca americana, os homens puxavam os cordelinhos do tempo. Dino tentava voltar a dormir, Kurt continuava a coser e o jogo do poker continuava; Miller e Byron Jones in continuavam o seu interminável xadrez. Mas, por causa da chiada, Kurt espetou a agulha no dedo e soltou uma praga obscena, o sono de Dino abandonou-o e Byron Jones in viu, consternado, como Miller lhe apanhava uma rainha com um miserável peão.

- Jesus! - exclamou Byron Jones in para ninguém. - Quem me dera que chovesse!

Ninguém respondeu. É que ninguém ouviu o que quer que fosse, a não ser a chiada da frigideira.

Também o Rei estava concentrado. Na frigideira. Orgulhava-se de que ninguém estrelava um ovo melhor que ele. Para ele, um ovo estrelado tinha de ser feito com olhos de artista... e rapidamente, mas não demasiado depressa.

O Rei levantou os olhos e sorriu para Peter Marlowe, mas os olhos de Marlowe estavam nos ovos.

- Santo Deus!-disse ele baixinho, e era uma prece, não uma praga. - Cheira tão bem!

O Rei estava satisfeito.

- Espera até eu acabar. Verás então o ovo mais maravilhoso da tua vida.

Polvilhou delicadamente com pimenta e depois com sal.

- Gostas de cozinhar? - perguntou.

- Gosto - respondeu Peter Marlowe, e a voz não lhe parecia a dele. - Sou eu que cozinho quase sempre para o meu grupo.

- Como gostas mais que te chamem? Pete? Peter?

Peter Marlowe disfarçou a surpresa. Só velhos e verdadeiros amigos tratavam as pessoas pelo nome próprio. De outro modo, como se distinguiriam os amigos dos conhecidos? Olhou para o Rei e viu apenas amizade; por isso, um pouco contra a sua vontade, respondeu:

- Peter.

- Donde é que és? Onde é a tua terra?

"Perguntas e mais perguntas", pensou Peter Marlowe. "Daqui a nada está a querer saber se sou casado e quanto tenho no banco." A sua curiosidade levara-o a aceitar as ordens do Rei e quase se amaldiçoava por ser tão curioso. Mas estava pacificado pela bem-aventurança do chiar dos ovos.

- De Portchester- respondeu. - É um lugarejo na costa sul. Em Hampshire.

- Casado?

- E você?

- Não.

O Rei teria continuado, mas os ovos estavam prontos. Tirou a frigideira do fogão e fez um aceno de cabeça para Peter Marlowe.

- Os pratos estão atrás de ti - disse. E acrescentou, cheio de orgulho: - Olha-me bem para isto.

Eram os melhores ovos estrelados que Peter Marlowe alguma vez vira, de modo que prestou ao Rei o maior elogio do mundo inglês.

- Não estão maus - disse em tom neutro. - Creio que não estão maus. - E olhou para o Rei com uma expressão tão impassível como a sua voz, dando assim mais calor ao elogio.

- Mas de que raio estás para aí a falar, meu grande filho da mãe? - disse o Rei, furioso. - São os melhores ovos que viste na puta da tua vida!

Peter Marlowe ficou chocado e fez-se um silêncio de morte na barraca. Então, um súbito assobio quebrou o encantamento. Instantaneamente, Dino e Miller estavam em pé, precipitando-se para o Rei, e Max guardava a porta. Miller e Dino empurraram a cama do Rei para um canto, tiraram os tapetes e meteram-inos debaixo do colchão. Empurraram também outras camas para junto da do Rei, de modo que agora, como todas as outras pessoas em Changi, o Rei dispunha apenas de um espaço de cerca de um metro e vinte por cerca de um metro e oitenta. O tenente Grey estava de pé, à porta. Nervoso, um passo atrás dele estava o sargento Masters.

Os americanos olharam para Grey e, depois de uma pausa suficientemente longa para marcar uma atitude, todos se levantaram. Depois de uma pausa igualmente insultuosa, Grey fez uma breve continência e disse:

- À vontade!

Só Peter Marlowe não se mexera e continuava sentado numa cadeira.

- Levanta-te! - sibilou o Rei. - Ele atira-te com o livro. Levanta-te!

Sabia, por longa experiência, que Grey estava agora fora de si. Por uma vez, os olhos de Grey não o sondavam, estavam fixos em Peter Marlowe, e até o Rei se retraiu.

Grey caminhou ao longo da barraca, sem pressas, até estar junto de Peter Marlowe. Desviou os olhos de Peter Marlowe e olhou longamente para os ovos. Depois olhou para o Rei e de novo para Peter Marlowe.

- Estás muito longe de casa, não estás, Marlowe?

Os dedos de Peter Marlowe tiraram a caixa dos cigarros e puseram um pouco de tabaco numa tira de rota. Enrolou um cigarro, afumilado, e levouo aos lábios. A duração da sua pausa era uma bofetada ma cara de Grey.

- Não sei, meu velho - disse docemente. - A casa de um inglês é onde ele se encontra, não achas?

- Onde está a tua braçadeira? -No cinto.

- Mas devia estar no braço. São essas as ordens.

- São ordens dos Japoneses. Não gosto de ordens dos Japoneses- disse Marlowe.

- São também ordens do acampamento - tornou Grey.

As vozes eram perfeitamente calmas e apenas um pouco irritadas para ouvidos americanos, mas Grey sabia-o e Peter Marlowe também o sabia. E houve uma súbita declaração de guerra entre eles. Peter Marlowe detestava os Japoneses, e Grey representava para ele os Japoneses, pois Grey fazia cumprir as ordens no acampamento, que eram também ordens japonesas. Implacavelmente. Entre eles havia o ódio mais fundo, o ódio inato de classe. Peter Marlowe sabia que Grey o desprezava pelo seu nascimento e pelo seu sotaque, aquilo que Grey desejava acima de todas as coisas e que nunca poderia ter.

- Põe-na! - Grey estava no seu direito de o ordenar.

Peter Marlowe encolheu os ombros, puxou a braçadeira e fê-la escorregar até o cotovelo direito. Na braçadeira figurava o seu posto: tenente aviador, R. A. F.

Os olhos de Grey esgazearam-se. "Santo Deus! Um oficial!", pensou. "E eu ia pedir-lhe que..."

- Desculpe interromper Lhe o almoço - dizia Grey -, mas parece que alguém perdeu alguma coisa.

- Perdeu alguma coisa?-"Jesus Cristo!", quase gritou o Rei. "O Ronson! Oh, meu Deus!"

O medo doíaLhe. Libertar-se do maldito isqueiro!

- Que aconteceu, cabo? - perguntou Grey secamente, notando o suor que perlava a cara do Rei.

- Está calor, não está? - disse o Rei, contrafeito.

Sentia a camisa, engomada, encharcada de suor. Sabia que fora apanhado. Sabia que Grey se divertia à sua custa. Pensou rapidamente se se atreveria a dar uma corrida pelo isqueiro, mas Peter Marlowe estava entre ele e a janela, e Grey podia facilmente apanhá-lo. E correr era admitir a culpa.

Viu Grey dizer qualquer coisa e sentiu-se pendurado entre a morte e a vida.

- Que disse, Sir? - E aquele "Sir" não era um insulto, porque o Rei estava a olhar para Grey incredulamente.

- Disse que o coronel Sellars comunicou o roubo de um anel de ouro! - repetiu Grey sinistramente.

Por um momento, o Rei sentiu-se mais leve. Não se tratava do Ronson! Pânico injustificado! Apenas o anel de ouro de Selars. Fora ele que o vendera, havia três semanas, a pedido de Sellars... com bom lucro. E, então, Sellars comunicara um roubo, hem? "Filho de puta de mentiroso!"

- Olha, olha - disse, com um fio de riso na voz. - Olha, essa é boa. Roubado. Pode perceber isso?

- Posso - disse Grey secamente. - E você?

O Rei não respondeu. Mas apetecia-lhe sorrir. Não era o isqueiro! Salvo!

- Conhece o coronel Sellars? - perguntava Grey.

- Vagamente, Sir. Joguei brídege com ele, uma ou duas vezes. E o Rei estava agora perfeitamente calmo.

- Alguma vez ele lhe mostrou o anel? - perguntou Grey com rispidez.

O Rei consultou a sua memória. O coronel Sellars mostrara-lhe o anel duas vezes. Uma quando pedira ao Rei que lho vendesse e uma segunda vez quando ele fora pesar o anel.

- Não, Sir - disse inocentemente.

O Rei sabia que estava seguro. Não havia testemunhas.

- Tem a certeza de que nunca o viu? - perguntou Grey.

- Nunca, Sir.

O Rei sentiu-se subitamente enjoado daquele jogo do gato e do rato e estava nauseado com a fome pelos ovos. Teria feito qualquer coisa, qualquer coisa por um só deles.

- Tens lume, Grey, meu velho?-perguntou Peter Marlowe. Não trouxera consigo o seu isqueiro nativo. E precisava de uma

cigarrada. À brava! O seu ódio por Grey secara-lhe os lábios.

- Não. - "Arranja tu o lume", pensou, furioso, voltando-se para se ir embora.

Foi então que ouviu Peter Marlowe dizer para o Rei:

- Posso pedir-te o teu Ronson emprestado?

Lentamente voltou-se para trás. Peter Marlowe sorria para o Rei.

As palavras pareciam gravadas no ar. Correram para todos os cantos da barraca.

Aterrado, procurando ganhar tempo, o Rei começou por encontrar alguns fósforos.

- Está no teu bolso esquerdo - disse Peter Marlowe.

E nesse momento o Rei viveu, morreu e nasceu outra vêz. Os homens da barraca nem respiravam. É que iam ver o Rei tramado. Iam ver o Rei apanhado, preso, expulso, uma coisa que, mais que tudo, era uma impossibilidade. Contudo, aqui estava Grey e aqui estava o Rei. E aqui estava o homem que apanhara o Rei... e o pusera como um cordeiro no altar de Grey. Alguns dos homens estavam horrorizados, alguns regozijavam-se perversamente, alguns tinham pena, e Dino pensou, irritado: "Céus! E amanhã era o meu dia de guardar a arca!"

- Por que não lho acendes? - perguntou Grey.

A fome passaraLhe e, em seu lugar, sentia apenas calor. Grey sabia que não havia qualquer isqueiro Ronson na lista.

O Rei tirou o isqueiro e acendeu-o para Peter Marlowe. A chama que ia queimá-lo era erecta e límpida.

- Obrigado. - E Peter Marlowe sorriu e só então compreendeu a enormidade do que fizera.

- Ah!-exclamou Grey, pegando no isqueiro, e a exclamação soou majestosa, definitiva e violenta.

O Rei não respondeu, porque não havia resposta. Limitou-se a esperar e, agora que estava comprometido, não sentiu medo, mas apenas amaldiçoou a sua estupidez. Um homem que falha por causa da sua própria estupidez não tem direito a chamar-se homem. E não tem nenhum direito a ser rei, porque o mais forte é sempre o rei, não só pela força, mas rei pela astúcia, pela força e pela sorte juntas.

- Donde veio isto, cabo? - E a pergunta de Grey era uma carícia.

Peter Marlowe sentiu o estômago voltar-se-lhe do avesso e a mente trabalhou-lhe terrivelmente. Depois disse:

- É meu.

Sabia que (aquilo soava à mentira que era e, por isso, acrescentou rapidamente:

- Estivemos a jogar poker. Perdi-o. Pouco antes do almoço. Grey e o Rei e todos os homens olharam para ele estupefactos.

- Tu quê? - perguntou Grey.

- Perdi-o - repetiu Peter Marlowe. - Estivemos a jogar poker. Eu tinha um straight. Conta-lhe-acrescentou, falando abruptamente para o Rei, passando-lhe a bola.

O espírito do Rei estava ainda em choque, mas os seus reflexos eram bons. Abriu a boca e disse:

- Estávamos a jogar stud. Eu tinha um full e... - Que cartas eram?

- Ases e duques - interrompeu Peter Marlowe sem hesitação. "Que raio será stud?", perguntou a si próprio.

O Rei estremeceu. A despeito do seu magnífico autodomínio. Estivera quase a dizer reis e damas e sabia que Grey dera pelo seu arrepio.

- Estás a mentir, Marlowe!

- Porquê, Grey, meu velho? Acho estranho que digas isso!

- E Peter Marlowe estava a tentar ganhar tempo. Que raio seria stud? - Foi patético - disse, sentindo o prazer-horror do grande perigo. - Pensei que o tinha na mão. Tinha um straight. Foi por isso que apostei o isqueiro. Conta-lhe - disse abruptamente para o Rei.

- Como é que jogas stud, Marlowe?

Um trovão cortou o silêncio, ribombando no horizonte, e o Rei abriu a boca, mas Grey deteve-o.

- Foi ao Marlowe que eu perguntei - disse ameaçadoramente. Peter Marlowe sentiu-se perdido. Olhou para o Rei e, embora

os seus olhos nada dissessem, o Rei sabia.

- Vá lá - disse Peter Marlowe rapidamente-, vamos mostrar-lhe.

O Rei voltou-se imediatamente para pegar nas cartas e disse, sem hesitação:

- Era a minha carta...

Grey rodopiou, furioso, sobre si próprio.

- Eu disse que queria que fosse o Marlowe a dizer-me. Mais uma palavra e meto-te na cadeia por interferires com a justiça.

O Rei não disse nada. Só pedia a Deus que a "deixa" tivesse sido suficiente.

"Carta hole" estava registado na distância da memória de Peter Marlowe. E ele lembrou-se. E agora, que conhecia o jogo, começou a jogar com Grey.

- Bem - disse com ar preocupado -, é como qualquer outro jogo de poker, Grey.

- Mas explica como jogas o jogo! - E Grey pensava que os apanhava na mentira.

Peter Marlowe olhou para ele com olhos duros. Os ovos estavam a arrefecer.

- Que estás a querer provar, Grey? Qualquer maluquinho sabe que são quatro cartas voltadas para cima e uma para baixo... uma no hole.

Um suspiro percorreu o compartimento. Grey sabia que não podia agora fazer nada. Seria a sua palavra contra a de Marlowe, e ele sabia que até aqui, em Changi, teria de fazer melhor que isso.

- Está certo - disse, carrancudo, olhando do Rei para Peter Marlowe -, qualquer maluquinho sabe isso. - Entregou o isqueiro de novo ao Rei. - Trata de que o Aponham na lista.

- Yes, Sir.

Agora que tudo passara, o Rei deixou transparecer um pouco do seu alívio.

Grey olhou para Peter Marlowe uma última vez e esse olhar era ao mesmo tempo uma ameaça e uma promessa.

- A velha escola havia hoje de ter muito orgulho em ti - disse com um ar de desprezo, dirigindo-se para a barraca, com Masters a arrastar os pés atrás dele.

Peter Marlowe seguiu Grey com os olhos até ele chegar à porta e depois disse, um pouco mais alto do que era necessário, para o Rei, que ainda observava Grey:

- Posso servir-me do teu isqueiro? A minha beata apagou-se. Mas o passo de Grey não vacilou nem ele olhou para trás. "bom

tipo", pensou Peter Marlowe, sinistramente, "bons nervos: um bom gajo para ter ao nosso lado numa batalha de morte. E um inimigo a estimar."

O Rei estava sentado, naquele silêncio eléctrico, e Peter Marlowe tirou-lhe o isqueiro da mão, frouxa, e acendeu o cigarro. O Rei encontrou automaticamente o seu maço de Kooas e meteu um nos lábios sem o sentir. Peter Marlowe inclinou-se para a frente, acendeu o isqueiro e deu lume ao Rei. O Rei levou muito tempo para dar pela chama e depois viu que a mão de Peter Marlowe estava tão insegura como a sua própria mão. Percorreu com os olhos o comprimento da barraca, onde os homens estavam como estátuas, de olhos fixos nele, por sua vez. Sentia o suor gelado nos ombros e a humidade na camisa.

Lá fora houve um restolhar de latas. Dino levantou-se e olhou para fora com esperança.

- Rancho! - gritou alegremente.

O encanto quebrou-se e os homens saíram da barraca com os seus utensílios para comer. E Peter Marlowe e o Rei ficaram inteiramente sós.

Os dois homens ficaram sentados um momento a recompor-se. Depois, Peter Marlowe disse, ainda a tremer:

- Livra! Esteve por pouco!

- Esteve - confirmou o Rei, depois de uma pausa sem pressas.

Involuntariamente, teve novo arrepio, depois encontrou a carteira, tirou duas notas de dez dólares e pô-las em cima da mesa.

- Aqui está - disse. - Deve chegar por agora. Mas daqui em diante estás na lista de pagamentos. Vinte por semana.

- Quê?

- Vou dar-te vinte por semana. - O Rei pensou um momento. Acho que tens razão - disse com um ar agradável e sorridente. Vale mais. Pois serão trinta. - Foi neste ponto que os olhos lhe caíram na braçadeira e acrescentou: - Sir!

- Podes continuar a chamar-me Peter - disse Peter Marlowe, falando lentamente. - E, para teu governo, não quero o teu dinheiro.

Levantou-se e fez menção de sair.

- Obrigado pelo cigarro.

- Eh, espera um minuto! - disse o Rei espantado. - Que diabo te mordeu?

Peter Marlowe baixou os olhos para o Rei e a cólera flamejava-lhe nos olhos:

- Guarda o teu dinheiro, que pensas tu que eu sou? Guarda o teu dinheiro e podes comê-lo.

- Há algum mal no meu dinheiro?

- Não. Só nos teus modos!

- Desde quando é que os modos têm alguma coisa a ver com o dinheiro?

Peter Marlowe voltou-se bruscamente para se ir embora. O Rei pôs-se em pé de um salto e interpôs-se entre Peter Marlowe e a porta.

- Só um minuto - disse ele, e a voz era tensa. - Quero saber uma coisa. Por que é que quiseste cobrir-me?

- Acho que era evidente. Meti-te numa alhada. Não podia deixar-te com a "criança" nos braços. Que pensas tu que eu sou?

-Não sei. Estou a tentar descobrir.

- Foi erro meu. Peço desculpa.

- Não tens nada de que pedir desculpa - disse o Rei vivamente. - O erro foi meu. Fui estúpido. Não tem nada a ver contigo.

- Não tem mal. - O rosto de Peter Marlowe era de granito, como os seus olhos. - Mas deves achar que eu sou um pedaço de merda se pensas que vou deixar que te crucifiquem. E maior ainda se pensas que quero o teu dinheiro... quando fui eu que arranjei a alhada. Não vou receber dinheiro de ninguém!

- Senta-te, por favor. Só um minuto.

- Porquê?

- Raios me partam! Porque quero falar contigo!

Max hesitava à entrada da porta, com as latas do rancho do Rei nas mãos.

- Desculpa - disse ele. - Tens aqui o teu rancho. Queres chá?

- Não. E o Tex fica hoje com a minha sopa. - E pegou na lata do rancho e pô-la em cima da mesa.

- Okay - disse Max, ainda hesitante, perguntando a si próprio se o Rei precisaria de ajuda para rachar aquele filho da mãe.

- Cava, Max. E diz aos outros que nos deixem sossegados durante um minuto.

- Com certeza.

Max saiu, bem-disposto. Pensou que o Rei tinha razão em não querer testemunhas. Não deve haver testemunhas, quando se quer arrear num oficial.

O Rei voltou a olhar para Peter Marlowe.

- Estou a pedir-te. Queres sentar-te um minuto? Por favor.

- Está muito bem - disse Peter Marlowe secamente.

- Ouve - começou o Rei pacientemente. - Tu tiraste-me de uma enrascada. Ajudaste-me. É apenas justo que eu te ajude. Ofereci-te o caroço, porque queria agradecer-te. Se não o queres, óptimo. Mas não quis insultar-te. Se o fiz, peço-te desculpa.

- Sou eu que peço desculpa - disse Peter Marlowe, cordato. Tenho um génio dos diabos. Não compreendia.

O Rei estendeu a mão.

- Aperta estes ossos.

Peter Marlowe apertou-lhe a mão.

- Não gostas do Grey, pois não? - perguntou o Rei cautelosamente.

- Não.

- Porquê?

Peter Marlowe encolheu os ombros. O Rei dividiu o arroz cuidadosamente e deu-lhe a maior parte.

- Vamos comer,

- Mas então... e tu?-disse Peter Marlowe, pegando na maior porção.

- Não tenho fome. O meu apetite voou. Céus! Esteve por um triz! Julguei que estávamos os dois tramados.

- Pois é - disse Peter Marlowe, com o esboço de um sorriso. Mas foi muito giro, não foi?

- Ah?!

- Quero referir-me à emoção. Penso que há anos que não passava por uma coisa assim. A emoção do perigo.

- Há uma porção de coisas em ti que eu não entendo - disse o Rei em voz baixa. - Queres dizer que gostaste?

- com certeza. Tu não? Eu achei que foi quase tão bom como voar num Spit. Sabes, na altura assusta, mas ao mesmo tempo dá gozo. E, enquanto lá estamos, parece que nos sentimos mais leves...

- Tenho a impressão de que não estás bom da cabeça.

- Se não estavas a gozar a coisa, então, porque é que quiseste atrapalhar-me com aquela do stud? Eu ia morrendo...

- Eu não quis atrapalhar-te. Por que diabo havia eu de querer atrapalhar-te?

- Para tornar a coisa mais emocionante e para me pores à prova. O Rei limpou os olhos e a cara.

- Queres dizer que pensas que fiz de propósito?

- Claro. Eu fiz o mesmo quando te passei o interrogatório.

- Vamos lá a ver se nos entendemos. Tu fizeste aquilo para pôr à prova os meus nervos? -perguntou o Rei, ofegante.

- Claro, meu velho - respondeu Peter Marlowe. - Não percebo onde está o problema.

- Jesus! - disse o Rei, de novo com um suor nervoso. - Então nós estávamos com a corda ao pescoço e tu com brincadeiras?

- O Grey também pensou isso. Eu estava só a brincar com ele. Só acabei depressa porque os ovos estavam a arrefecer. E não se apanha um ovo estrelado assim todos os dias. Palavra de honra que não.

- Pensei que tinhas dito que não prestava.

- Eu disse que não estava "mau". - E Peter Marlowe hesitou. Olha. Dizer que "não está mau" quer dizer que está excepcional. É uma maneira de fazer um elogio a um parceiro sem o embaraçar.

- Tu não estás bom da cabeça! Pões em perigo o meu pescoço, e até o teu, para aumentar o perigo atiras a albarda ao ar quando te ofereço dinheiro que era trigo limpo e dizes que uma coisa não está má quando queres dizer que está óptima. Santo Deus! - E acrescentou, estupefacto: -Devo ser eu que estou parvo.

Levantou os olhos, viu o ar perplexo de Peter Marlowe e não pôde deixar de rir. Peter Marlowe começou a rir também e em breve os dois homens pareciam histéricos.

Max lançou um olhar para a barraca, e os outros americanos estavam logo atrás dele.

- Mas que raio de bicho lhe mordeu? - disse Max, admirado. Eu agora julgaria que ele andava para aí a dar com a cabeça pelas paredes!

- Madonna! - soluçou Dino. - Primeiro, o Rei ia sendo tramado e, agora, está a rir com o gajo que o queria tramar.

- Não bate certo. - E o coração de Max não parara de bater desde o assobio de aviso.

O Rei levantou o olhar e viu os homens de olhos fixos nele. Tirou o que restava do seu maço de cigarros.

- Toma, Max. Serve-te e passa. Vamos comemorar!

- Ena! Obrigado. - Max pegou no maço. - A coisa esteve feia. Ficámos todos tão contentes por tua causa!

O Rei leu nos diversos esgares. Alguns eram puros, e ele apontou esses. Outros eram falsos, e esses não o enganavam. Os homens correspondiam aos agradecimentos de Max.

Este conduziu de novo os homens lá para fora e começou a distribuir o tesouro.

- É um choque. Tem de ser - disse ele calmamente. - Não falta muito para que salte a cabeça do Limey.

Estendeu o olhar ao estalar uma outra risada na barraca; depois encolheu os ombros.

- Já não tem cabeça, e não é de admirar.

-Por amor de Deus! -dizia Peter Marlowe, agarrado ao estômago. - Vamos comer. Se não como já, depois já não posso.

Por isso começaram a comer. Por entre espasmos de riso. Peter Marlowe lamentou que os ovos estivessem frios, mas o riso aqueceu os ovos e tornou-os soberbos.

- Falta-lhes um pouquinho de sal, não achas? - perguntou, procurando manter a voz neutra.

- Acho que sim. Pensava que tinha posto o bastante.

O Rei voltou-se para pegar no sal e viu aquele sobrolho franzido.

- Que raio é que há mais agora? - perguntou, e recomeçou a rir sem poder parar.

- Por amor de Deus! Era uma brincadeira. Vocês, os Americanos, não têm muito sentido do humor, pois não?

- Vai para o diabo! E, por amor de Deus, pára. de rir! Depois de acabarem os ovos, o Rei pôs café na chapa quente e

começou a procurar os cigarros. Lembrou-se então de que os dera e baixou-se para abrir a caixa preta.

- Experimenta um pouco deste - disse Peter Marlowe, oferecendo a caixa de tabaco.

- Obrigado, mas não suporto essa droga. Dá-me cabo da garganta.

- Experimenta. Foi tratado. Aprendi a fazê-lo com uns javaneses. Suspeitoso, o Rei pegou na caixa dos cigarros. O tabaco era a

mesma erva barata, mas em vez de ser amarelo-palha, era dourado-escuro, em vez de ser seco, era húmido e tinha textura, em vez de ser inodoro, cheirava a tabaco forte-doce. Encontrou o seu livro de mortalhas, tirou uma dose generosa da erva tratada e enrolou um cigarro, cortando com as unhas o tabaco das pontas, que atirou, desleixado, para o chão.

"Deus todo-poderoso", pensou Peter Marlowe. "Eu disse experimenta', e não fuma o filho da mãe todo'." Sabia que devia ter apanhado o tabaco do chão e voltado a pô-lo na caixa, mas não o fez. "Há coisas que um gajo não pode fazer", pensou de novo.

O Rei acendeu o isqueiro e riram ambos à vista dele. O Rei tirou uma fumaça e depois outra. A seguir aspirou profundamente.

- Mas é óptimo - disse, espantado. - Não tão bom como um Kooa... mas isto...-Parou para se corrigir. - Não é nada mau, quero eu dizer.

- Mas mesmo nada mau - riu Peter Marlowe.

- Como diabo é que fazes?

- O segredo é a alma do negócio.

O Rei sabia que ele tinha uma mina de ouro nas mãos.

- Deve ser um longo e complicado processo - disse delicadamente.

- Oh, na realidade, é facílimo. Basta mergulhar a erva crua em chá e espremer. Depois espalha-se por cima um pouco de açúcar branco e amassa-se. Quando estiver todo absorvido, coze-se numa frigideira em lume brando. É preciso mexer sempre, senão estraga-se. Tem de ser a conta certa. Nem muito seco nem muito húmido.

O Rei ficou surpreendido por Peter Marlowe lhe ter ensinado o processo tão facilmente, sem primeiro negociar. "É claro", pensou, "que está só a aguçar-me o apetite. Não pode ser assim tão simples, ou toda a gente o fazia. E ele deve saber que sou o único que podia fazer o negócio."

- Só assim? - perguntou o Rei, sorrindo.

- Só assim. Não tem nada que saber.

O Rei via já ali um negócio próspero. E legítimo também.

- Suponho que toda a gente na tua barraca trata o tabaco da mesma maneira...

Peter Marlowe abanou a cabeça.

- Eu faço-o para a minha unidade. Há meses que lhes dou cabo da paciência a contar-lhes milhentas aldrabices, mas nunca descobriram o verdadeiro processo.

O Rei teve um enorme sorriso.

- Então, és tu o único que sabe!

- Ah, não - disse Peter Marlowe, e uma nuvem toldou a esperança do Rei. - É um costume nativo. Toda a gente em Java faz isso.

O Rei animou-se.

- Mas aqui ninguém sabe, pois não?

- Não sei. A verdade é que nunca pensei nisso.

O Rei deixou que o fumo lhe saísse pelo nariz, e o seu cérebro trabalhou rapidamente. "Não há dúvida", disse para si próprio, "é o dia da minha sorte."

- Vou dizer-te uma coisa, Peter. Tenho um negócio a propor-te.

Tu mostras-me exactamente como se faz e eu dou-te... - hesitou- dez por cento.

- Quê?

- Está bem. Vinte e cinco por cento.

- Vinte e cinco por cento?

- Está bem - disse o Rei, olhando para Peter Marlowe com novo respeito. - Tu és um bom negociante e está certo. Eu organizo todo o negócio. Compramos por grosso. Vamos ter de montar uma fábrica. Tu podes orientar a produção e eu ocupo-me das vendas.

- Estendeu a mão. - Vamos ser sócios. Partimos o bolo ao meio. Fifty-fifty. Está combinado.

Peter Marlowe olhou para a mão do Rei e depois olhou-lhe para a cara.

- Ah, não está, não! - disse com decisão.

- Raios me partam! - explodiu o Rei. - É a oferta mais recta que jamais tiveste. Que é que pode haver de mais justo? Eu adianto o bago... Que remédio! - E um súbito pensamento o deteve. Peter - disse um momento depois, ferido, mas sem o mostrar -, ninguém precisa de saber que somos sócios. Tu mostras-me como se faz e eu trato de que recebas a tua parte. Podes confiar em mim.

- Eu sei - disse Peter Marlowe.

- Então, partimos a meias. - E o Rei rejubilava.

- Não, não partimos!

- Santo nome de Cristo! - exclamou o Rei, ao sentir apertar os parafusos.

Mas dominou o génio e pensou no negócio. E quanto mais pensava... Olhou em redor para se assegurar de que ninguém estava à escuta. Depois baixou a voz e propôs:

- Sessenta e quatro por cento, e nunca ofereci tanto a ninguém em toda a minha vida. Pois serão sessenta e quatro por cento.

-Não, não serão.

- Não?! - exclamou o Rei com espanto. - Tenho de tirar alguma coisa para mim. Mas quanto queres pelo processo? A pronto pagamento?

- Não quero nada - disse Peter Marlowe.

- Nada? - E o Rei sentou-se, desfeito. Peter Marlowe estava desnorteado.

- Sabes - disse ele, hesitante -, não compreendo porque é que te excitas tanto com certas coisas. O processo não é meu para que eu o venda. É um simples costume nativo. Eu não podia receber nada de ti. Não seria justo. De modo nenhum. E, de qualquer modo, eu...-Peter Marlowe deteve-se e disse rapidamente: - Queres que te mostre agora?

- Só um minuto. Queres dizer que não desejas receber nada por me ensinares o processo? Quando eu me ofereci para te dar sessenta e quatro por cento? Quando te digo que posso tirar dinheiro do negócio?

Peter Marlowe fez que sim com a cabeça.

- Mas isso é loucura - disse o Rei, desiludido. - Não compreendeu. Não está certo.

- Não é para compreender. Pensa que é da insolação - disse peter Marlowe, sorrindo.

O Rei ficou a estudá-lo um longo momento.

- És capaz de me dar uma resposta directa a uma pergunta directa?

- Sou. Claro que sou.

- É por minha causa, não é?

As palavras ficaram suspensas no ar quente que os separava.

- Não - disse Peter Marlowe, quebrando o silêncio. E havia verdade entre eles.

Uma hora mais tarde, Peter Marlowe estava a observar Tex, que preparava a segunda dose de tabaco. Desta vez estava a fazê-lo sem ajuda, e o Rei andava por ali a cacarejar como uma galinha velha.

- Tens a certeza de que ele pôs a quantidade exacta de açúcar?

- perguntou o Rei, ansiosamente, a Peter Marlowe.

- Exactíssima.

- Quanto tempo leva agora?

- Quanto tempo pensas, Tex?

Tex sorriu em resposta, mas acrescentou:

- Cinco, seis minutos. Peter Marlowe pôs-se em pé.

- Onde é a casinha, o "escritório"?

- A secreta? Lá nas traseiras. - E o Rei apontou. - Mas não podes esperar que o Tex acabe? Quero ter a certeza de que ele não se engana.

- O Tex está a fazer tudo como deve ser - disse Peter Marlowe, e afastou-se.

Quando voltou, Tex tirou a frigideira do lume.

- Agora - disse nervosamente e olhou para Peter Marlowe, para ver se ele confirmava o tempo.

- Exacto - disse Peter Marlowe, examinando o tabaco tratado. Muito excitado, o Rei enrolou um cigarro em papel de arroz.

O mesmo fizeram Tex e Peter Marlowe. Acenderam-nos. com o Ronson. Mais outra risada de prazer. Depois, o silêncio, ao mesmo tempo que cada homem se tornava um connoisseur.

- Óptimo - disse Peter Marlowe com decisão. - Bem te disse que era muito simples, Tex.

Tex soltou um sorriso de alívio.

- Não está mau - disse o Rei pensativamente.

- Que estão vocês para aí a dizer? - perguntou Tex, aspirando o ar. - Está melhor que bom!

Peter Marlowe e o Rei agarravam-se à barriga. Explicaram por quê e também Tex se escangalhou a rir.

- Temos de arranjar uma marca. - E o Rei pensou um momento.

- Já achei. Que tal Três Reisf Um como rei da R. A. F., outro como rei do Texas e o outro sou eu.

- Nada mal - disse Tex.

- Temos de começar a fábrica amanhã. Tex abanou a cabeça:

- Estou num grupo de trabalho.

- O grupo de trabalho que vá para o diabo. Vai o Dino substituir-te.

- Eu peço-lhe. - Tex levantou-se e sorriu para Peter Marlowe. Muito gosto em conhecê-lo, Sir.

- Esquece lá o "Sir", está bem? - disse Peter Marlowe.

- com certeza. Obrigado. Peter Marlowe viu-o partir.

- É engraçado - disse ele para o Rei -, nunca vi tantos sorrisos numa barraca.

- Não há motivo para não sorrir, não é verdade? As coisas podiam ser muito piores. Foste abatido sobre a Bossa?

- Queres dizer a estrada Cakulá-Chungking? Sobre os Himalaias?

- Isso. - O Rei acenou para o tabaco. - Enche a tua caixa.

- Obrigado. Se não te importas...

- Sempre que tenhas falta, vem cá servir-te.

- Obrigado. vou aceitar. És muito amável.

Peter Marlowe tinha vontade de outro cigarro, mas sabia que estava a fumar de mais. Se fumasse outro agora, então a fome ainda doeria mais. Era melhor ir devagar. Olhou para a sombra e prometeu a si próprio que não fumaria até que ela tivesse avançado duas polegadas.

- Eu não fui abatido. O meu papagaio... o meu avião foi atingido num ataque aéreo a Java. Não consegui pô-lo no ar. Uma chatice. .. - E tentou esconder o amargor.

- Não é assim tão mau - disse o Rei. - Podias estar lá dentro. Estás vivo, e isso é que importa. Voavas em quê?

- Hurricane. Bombardeiro de um lugar. Mas o meu avião regular é um Spit... Spitfire.

- Ouvi falar deles. Nunca vi nenhum. Não há dúvida de que a vossa rapaziada pôs os Boches à rasca.

- Pois é. Acho que sim - disse Peter Marlowe em voz baixa. O Rei ficou surpreendido.

- Não estiveste na Batalha da Inglaterra, pois não?

- Estive. Ganhei as minhas asas em 1940. Mesmo na altura.

- Que idade tinhas?

- Dezanove.

- Pois é. Devia ter adivinhado pela tua cara que devias ter pelo menos 38, e não 24!

- E tu? - Peter Marlowe riu. -Quantos tens?

- Vinte e cinco. Filho da mãe! - disse o Rei. - Os melhores anos da minha vida e aqui fechado nesta prisão malcheirosa!

- Fechado é força de expressão. E a minha ideia é de que estás aqui muito bem.

- Veja-se a coisa como se vir, a verdade é que estamos fechados. Quanto tempo pensas que isto vai durar?

- Os Boches já fogem. Esta cegada devia estar a (acabar.

- Acreditas nisso?

Peter Marlowe encolheu os ombros. "Cuidado", disse para si próprio, "nunca se tem cuidado de mais."

- Sim, penso que sim. Mas nunca se pode acreditar em boatos.

- E a nossa guerra?

Porque a pergunta fora feita por um amigo, Peter Marlowe falou livremente:

- Penso que a nossa vai durar sempre. Ah, vamos vencer os Japoneses. Sei isso agora. E nós, aqui? Não penso que escapemos.

- Porquê?

- Bem, porque não creio que os Japoneses cedam. Isso significa que teremos de desembarcar no continente. E, quando isso acontecer, penso que eles vão eliminar-nos a todos aqui, a todos. Se a doença não nos levar antes.

- E por que raio fariam isso?

- Para poupar tempo, creio eu. Creio que, à medida que a rede se aperta no Japão, eles vão começar a deitar os tentáculos. Para quê perder tempo com alguns milhares de prisioneiros? Os Japoneses têm sobre a vida uma ideia diferente da nossa. E a ideia das ilesas tropas no solo deles deve pô-los malucos. - A sua voz era calma e uniforme. - Creio que estamos liquidados. Claro que espero estar enganado. Mas isto é o que eu penso.

- És um filho da mãe cheio de esperança - disse o Rei amargamente, e, quando Peter Marlowe se riu, perguntou: - De que raio tás tu a rir? Parece que te ris sempre quando não deves.

- Desculpa, é um mau hábito.

- Vamos sentarnos lá fora. As moscas estão a tornar-se insuportáveis. Eh, Max! -gritou o Rei. - Queres limpar isto?

Max chegou e começou a dar uma arrumadela, e o Rei e Peter Marlowe saíram facilmente pela janela. Mesmo em frente da janela do Rei havia outra mesa pequena e um banco, debaixo de um toldo de lona. O Rei sentou-se no banco. Peter Marlowe agachou-se sobre os joelhos, no estilo nativo.

- Nunca fui capaz de fazer isso - disse o Rei.

- É muito cómodo. Aprendi em Java.

- Como conseguiste falar malaio tão bem?

- Vivi durante uns tempos numa aldeia.

- Quando?

- Em 1942. Depois do cessar-fogo.

O Rei esperou pacientemente que ele continuasse, mas nada mais saiu. Esperou um pouco mais e depois perguntou:

- Como é que viveste numa aldeia de Java depois do cessar-fogo de 1942, quando toda a gente estava então num campo de prisioneiros de guerra?

O riso de Peter Marlowe foi contagioso.

- Tenho muita pena, mas não tem muito que contar. Não me agradava a ideia de estar num campo de prisioneiros. Na realidade, quando a guerra acabou, perdi-me na selva e, por acaso, descobri essa aldeia. Tiveram pena de mim. Fiquei lá seis meses, ou coisa parecida.

- Como era aquilo?

- Maravilhoso. Eram muito simpáticos. Eu era exactamente como um dos deles. Vestido à javanesa, pintava a pele de escuro, no fundo um disparate, porque a minha altura e os meus olhos me teriam denunciado. Trabalhava nos campos de arroz.

- No teu próprio campo?

Depois de uma pausa, Peter Marlowe respondeu:

-Era eu o único europeu que lá estava, se é isso que queres dizer.

Estendeu o olhar pelo campo, vendo o sol bater na poeira e o vento levantá-la e fazê-la rodopiar. O redemoinho fê-lo lembrar-se dela.

Olhou lá para oriente, para um céu nervoso. Mas ela fazia parte desse céu.

O vento agitava docemente as copas das palmeiras. Mas ela fazia parte do vento e das palmeiras e das nuvens distantes.

Peter Marlowe desviou o espírito e observou o guarda coreano que passeava ao longo da sebe, suando sob o calor, que baixava. O uniforme do guarda era miserável e mal tratado, o seu boné tão amarrotado como o seu rosto, a arma a tiracolo. Tão desgracioso quanto ela era graciosa.

Mais uma vez Peter Marlowe olhou para o céu, procurando a distância. Só então pôde sentir que não estava dentro de uma caixa, uma caixa cheia de homens e de cheiros de homens e de imundície de homens e barulho de homens. "Sem mulheres", pensou Peter Marlowe, desesperado, "os homens são apenas um gracejo cruel." E sangrou na torreira do sol

- Eh, Peter! - E o Rei estava a olhar pela vertente acima, de boca escancarada.

Peter Marlowe seguiu o olhar do Rei e o estômago deu-lhe uma volta, quando viu Sean aproximar-se.

- Jesus!

Teve vontade de se meter pela janela e desaparecer. Mas sabia que isso apenas o faria dar mais nas vistas. Por isso esperou, descoroçoado, mal respirando. Pensou que tinha uma boa probabilidade de não ser visto, pois Sean estava empenhado numa conversa com o chefe de esquadrão Rodrick e com o tenente Frank Parrish. As suas cabeças estavam muito juntas e as suas vozes eram resolutas.

Então, Sean olhou para além de Frank Parrish, viu Peter Marlowe e parou.

Rodrick e Frank pararam também, surpreendidos. Quando viram Peter Marlowe, pensaram: "Oh, meu Deus!" Disfarçaram, porém, a sua ansiedade.

- Olá, Peter! - chamou Rodrick.

Era alto e bem arranjado, com uma cara feita a cinzel, tão alto e bem arranjado quanto Frank Parrish era alto e desmazelado.

- Olá, Rod! - respondeu Peter Marlowe.

- É só um momento - disse Sean calmamente para Rodrick, encaminhando-se para Peter Marlowe e para o Rei.

Agora, que o primeiro choque passara, Sean permitiu-se um sorriso de boas-vindas.

Peter Marlow sentiu pele de galinha no pescoço, levantou-se e esperou. Mas sentia que os olhos do Rei o penetravam.

- Olá, Peter - disse Sean. - Olá, Sean.

- Estás muito magro, Peter.

- Não dei por isso. Não estou mais magro que qualquer outro. Sinto-me bem, obrigado.

- Há tonto tempo que não te via! Por que não vens ao teatro de vez em quando? Há sempre um pequeno extra em qualquer parte, e já sabes como eu sou, nunca comi muito. - E Sean sorriu, esperançado.

- Obrigado - disse Peter Marlowe, extremamente embaraçado.

- Bem, já sei que não vens - disse Sean com um ar infeliz -, mas serás sempre bem-vindo.- Houve uma pausa.-Já nunca te vejo.

- Bem sabes como é, Sean. Tu tens os espectáculos e eu estou em grupos de trabalho e coisas dessas.

Como Peter Marlowe, Sean trazia um sarong, mas, ao contrário do de Peter Marlowe, que estava no fio e era multidesbotado, o de Sean era novo e branco, com a orla bordada a azul e prata. E Sean trazia um casaco baju de mangas curtas, que terminava acima da cintura, cortado justo para marcar o relevo dos seios. O Rei olhava fascinado para o decote, aberto, do baju.

Sean reparou no Rei, teve um sorriso frouxo, acamou um tufo de cabelo que o vento desarrumaria e brincou com ele até que o Rei olhasse. Sean sorriu para dentro, quente por dentro, enquanto o Rei corava.

- Está... anh... está a ficar quente, não está? - disse o Rei, pouco à vontade.

- Acho que sim - disse Sean simpaticamente, fresco e sem suor como sempre, por mais intenso que fosse o calor.

Houve um silêncio.

- Ah! Desculpa - disse Peter Marlowe ao ver que Sean olhava para o Rei e esperava pacientemente.-Conheces...?

Sean riu.

- Meu Deus! Peter, como tu estás! Claro que conheço o teu amigo, embora nunca nos tivéssemos encontrado.

Sean estendeu a mão.

- Como está? É uma grande honra conhecer um rei.

- Ah! Obrigado - disse o Rei, mal tocando a mão que lhe ofereciam, tão pequena ao pé da sua. - Quer um cigarro?

- Muito obrigado, mas não fumo. Se não se importa, no entanto, fico com um. Aliás, dois, se me dá licença? - E Sean acenou com a cabeça para o caminho. - É que o Rod e o Frank fumam, e eu sei que vão apreciar.

- com certeza - disse o Rei -, com certeza.

- Muito obrigado. É muito amável da sua parte.

Contra a sua própria vontade, o Rei sentia o calor do sorriso de Sean. Contra a sua vontade, disse, e era sincero:

- Você ia muito bem no Otelo.

- Muito obrigado-disse Sean radiante. - Gostou do Hamlet? -Gostei. E eu nunca fui grande apreciador de Shakespeare. Sean riu.

- Isso é um verdadeiro elogio. Vamos levar uma nova peça em breve. Foi o Frank que a escreveu especialmente e deve ser muito divertida.

- É apenas normal que o seja - disse o Rei, mais a propósito -, e você vai ter um êxito.

- É muito amável da sua parte. Muito obrigado. - Sean olhou para Peter Marlowe e os olhos ganharam um brilho novo. - Mas receio bem que o Peter não concorde consigo.

-Pára com isso, Sean - disse Peter Marlowe em tom áspero. Sean não olhava para Peter Marlowe, apenas para o Rei, e sorria, mas o furor escondia-se sob o sorriso.

- Peter não me aprova.

- Pára com isso, Sean - disse Peter Marlowe asperamente.

- E porquê? - ripostou Sean. - Tu detestas desviados... Não é assim que chamas aos esquisitos? Disseste-o muito claramente. E eu não esqueci.

- Nem eu.

- Bem, já é alguma coisa! Não gosto de ser desprezado. E menos ainda por ti!

- Disse que parasses com isso. Não é a altura nem o lugar. E já discutimos isso antes, e tu já disseste tudo o que tinhas a dizer. Eu pedi desculpa. Disse que não quis ofender!

- Não. Mas ainda me odeias. Porquê? Porquê?

- Eu não te odeio.

- Então, porque é que me evitas sempre?

- É melhor assim. Por amor de Deus, Sean, deixa-me em paz! Sean olhou fixamente para Peter Marlowe, e, tão subitamente

como flamejara, a sua cólera morreu.

- Desculpa, Peter. Tu tens provavelmente razão. Eu é que sou parvo. É que, de tempos a tempos, sinto-me só. - Sean estendeu a mão e tocou no braço de Peter Marlowe. - Desculpa. Quero que voltemos a ser amigos.

Peter Marlowe não conseguiu dizer nada. Sean hesitou.

- Bem, creio que vou indo.

- Sean - chamou Rodrick do carreiro-, já estamos atrasados.

- É só um momento. - Sean olhou para Peter Marlowe, depois suspirou e estendeu a mão ao Rei. - Tive muito gosto em conhecê-lo. Por quem é, desculpe as minhas maneiras.

O Rei não pôde evitar apertar-lhe a mão outra vez.

- Tive prazer em conhecê-lo - disse.

Sean hesitou, de olhos graves e inquisitivos.

- É amigo do Peter?

O Rei sentiu que todo o mundo o ouvia, quando disse, gaguejando:

- Ah, claro, sou, creio que sim.

- Estranho, não é verdade, como uma só palavra pode querer dizer tantas coisas diferentes. Mas, se é amigo dele, não deixe que ele se tresmalhe, por quem é. Você tem a reputação de homem perigoso, e eu não queria o Peter magoado. Sou muito amigo dele.

- Pois, sim, com certeza.

O Rei tinha os joelhos em geleia, a espinha dorsal a fundir. Mas o magnetismo do sorriso de Sean invadiu-o. Era diferente de tudo o que até ali sentira.

- Os espectáculos são o que há de melhor mo -acampamento

- disse. - Fazem que valha a pena viver a vida. E você é a melhor coisa que há neles.

- Muito obrigado. - E depois, para Peter Marlowe: - Isso faz, de facto, que valha a pena viver a vida. Estou muito contente. E gosto do que estou a fazer. Faz que as coisas valham a pena, Peter.

- É verdade - disse Peter Marlowe, atormentado. - Também estou contente.

Sean sorriu hesitantemente uma última vez, depois voltou-se rapidamente e desapareceu. O Rei sentou-se.

- Diabos me levem!

Peter Marlowe também se sentou.

-Diabos me levem! - E abriu a sua caixa e enrolou um cigarro.

- Se não se soubesse que era um homem, iria jurar-se que era uma mulher - disse o Rei. - Uma linda mulher.

Peter Marlowe fez que sim com a cabeça. Melancolicamente.

- Ele não é como os outros gajos - disse o Rei. - Isso é que é certo. Não, senhor. Nada disso. Céus! Há qualquer coisa nele que não é...-O Rei parou, hesitou e continuou, sucumbido: - Não sei como hei-de dizer. É... é uma mulher, raios me partam! Lembras-te de quando ele fez de Desdémona? Meu Deus, o ar dele com o roupão! Aposto que não havia um só homem em Changi que não torcesse. Ninguém censure um homem por ser tentado. Eu sinto-me tentado, toda a gente se sente tentada. Se algum homem disser o contrário, está a mentir. - E depois o Rei olhou para Peter Marlowe e estudou-o cuidadosamente.

- Oh, por amor de Deus! - disse Peter Marlowe irritado. Achas que também sou esquisito?

- Não - disse o Rei calmamente. - E não me importo se o fores. Tanto quanto sei.

- Pois bem, não sou.

- Mas era muito parecido - disse o Rei com um esgar. - Arrufo de namorados?

- Vai para o diabo!

Um minuto depois, o Rei perguntou:

- Conheces o Sean há muito tempo?

- Esteve comigo na minha esquadrilha - disse Peter Marlowe por fim. - O Sean era o bebé. E eu estava como destacado para olhar por ele. Cheguei a conhecê-lo muito bem. - Abriu a ponta incandescente do cigarro e meteu o tabaco na caixa. - Na realidade, fez-se o meu melhor amigo. Era um excelente piloto. Apanhou três Zeros sobre Java. - Olhou para o Rei. - Eu gostava muito dele.

- Ele... ele era assim dantes?

- Não.

- Oh, eu sei que ele não se vestia sempre de mulher, mas, cos diabos, devia ser evidente que ele era assim.

- O Sean nunca foi assim. Era apenas um rapaz muito bonito e simpático. Não havia nele nada de efeminado, apenas uma espécie de... compaixão.

- Alguma vez o viste sem roupa?

- Não.

- Isso condiz. Ninguém o viu. Nem sequer meio nu.

Sean tinha um quartinho lá em cima, no teatro, um quarto particular, coisa que mais ninguém em Changi inteira tinha, nem sequer o Rei. Mas Sean nunca dormia no quarto. A ideia de Sean sozinho num quarto com um cadeado na porta era demasiado perigosa, porque havia muitos no acampamento cuja concupiscência era evidente e outros que estavam cheios de concupiscência por dentro. Por isso, Sean dormia sempre numa das barracas, mas mudava de roupa e tomava duche no quarto particular.

- Que houve entre vocês os dois? - perguntou o Rei.

- Eu ia-o matando. Uma vez.

De súbito, a conversa parou e ambos os homens escutaram atentamente. Tudo o que conseguiram ouvir foi um suspiro, como um fluido. O Rei olhou rapidamente em redor. Não vendo nada de extraordinário, pôs-se em pé e trepou pela janela, com Peter Marlowe logo atrás. Os homens que estavam na barraca tambem se puseram à escuta.

O Rei espreitou em direcção à esquina da prisão. Não parecia estar a acontecer nada. Passavam ainda homens para cima e para baixo.

- Que te parece? - perguntou o Rei, baixinho.

- Não sei - respondeu Peter Marlowe, concentrando-se. Continuavam a passar homens junto da prisão, mas agora o seu

passo parecia levemente acelerado.

- Olha - disse Tex, baixinho.

Passando pela esquina da prisão e encaminhando-se para eles, vinha o capitão Brough. Depois, outros oficiais começaram a aparecer atrás dele, todos dirigindo-se às diversas barracas.

- Por certo que há sarilho - disse Tex, azedo.

- Talvez seja uma busca - respondeu Max.

Num instante, o Rei estava de joelhos a abrir a caixa preta. Peter Marlowe disse, apressado:

- Vemo-nos mais tarde.

- Toma - disse o Rei, atirando-lhe um maço de Kooas. - Até à noite, se quiseres.

Peter Marlowe saiu a correr da barraca, pela ladeira abaixo. O Rei tirou os três relógios que estavam enterrados entre o café em grão e pôs-se em pé. Reflectiu um momento e depois subiu a uma cadeira e meteu os três relógios entre o colmo do telhado. Sabia que todos os homens conheciam o novo esconderijo, mas não se preocupou, pois agora nada se podia fazer. Depois fechou a caixa preta, e Brough estava à porta.

- Eh, malta, tudo lá para fora!

Peter Marlowe não pensava em mais nada senão na sua garrafa de água, enquanto abria caminho por entre o enxame de homens suados e formados na estrada de asfalto. Tentava desesperadamente lembrar-se se enchera a garrafa, mas não conseguia ter a certeza.

Subiu a correr as escadas da rua para a sua barraca. Mas a barraca estava já vazia e um sujo soldado coreano guardava a porta. Peter Marlowe sabia que não seria autorizado a passar e, por isso, ao abrigo da barraca, correu para a outra porta e estava ao lado da sua tarimba e com a garrafa na mão antes que o guarda o visse.

O coreano praguejou, mal-humorado, e num instante estava ao lado dele e fazia-lhe sinal para que pusesse de novo a garrafa onde estava. Mas Peter Marlowe fez-lhe uma continência floreada e disse em malaio, que a maior parte dos guardas compreendia:

- As minhas saudações, Sir. Podemos ter de esperar muito tempo, e, peço-te, deixa-me levar a minha garrafa de água comigo, porque tenho disenteria.

Enquanto falava, sacudia a garrafa. Estava cheia.

O guarda arrancou-lhe a garrafa das mãos e cheirou-a, desconfiado. Depois deitou um pouco de água no chão e atirou de novo a garrafa a Peter Marlowe, praguejando de novo e apontando para os homens que estavam lá em baixo em parada.

Peter Marlowe fez a continência, com as pernas moles de alívio, e correu a juntar-se ao seu grupo na formatura.

- Onde diabo te meteste tu, Peter? - perguntou Spence com uma ansiedade que a disenteria aumentava.

- Não te importes, já estou aqui.-Agora, que Peter Marlowe tinha a sua garrafa de água, sentia vertigens. - Vá lá, Spence, manda formar a malta - disse, espicaçando-o.

- Vai para o diabo! Eh, malta, para a forma! Spence contou os homens e perguntou:

- Onde está o Bonés?

- No hospital - disse Ewart. - Foi logo depois do pequenoalmoço. Fui eu mesmo que o levei.

- Por que diabo não me disseste antes?

- Estive a trabalhar nos jardins todo o dia. Cos diabos! Escolha outro!

- Veste esse raio dessa camisa!

Mas Peter Marlowe não dava ouvidos a pragas, conversas ou boatos. Esperava que o coronel e Mac tivessem também as suas garrafas de água.

Depois de o seu grupo ser verificado, o capitão Spence caminhou ao longo da estrada até junto do tenente-coronel Sellars, nominalmente responsável por quatro barracas, e fez a continência.

- Sessenta e quatro. Tudo certo, Sir. Dezanove aqui, vinte e três no hospital e vinte e dois em grupos de trabalho.

- Okay, Spence.

Logo que Sellars obteve os números de todas as suas barracas, somou-os e levouos ao coronel Smedly-Taylor, que era responsável por dez barracas. Depois, o coronel Smedly-Taylor levou-os ao seu superior. Depois, o oficial seguinte levou-os ao seu superior, e este processo repetiu-se através do acampamento, dentro e fora da prisão, até que os totais foram entregues ao comandante do acampamento. O comandante do acampamento somou os números de homens no interior do acampamento ao número de homens no hospital e ao número de homens nos grupos de trabalho e passou os totais ao capitão Yoshima, o intérprete japonês. Yoshima amaldiçoou o comandante do acampamento, porque faltava um homem ao total.

Houve uma hora dolorosa de pânico, até que o homem em falta foi encontrado no cemitério. O coronel Dr. Rofer amaldiçoou o seu assistente, coronel Dr. Kennedy, que tentou explicar-lhe que era difícil manter uma lista actualizada a cada momento, e o coronel Rofer amaldiçoou-o por sua vez e disse que esse era o seu ofício. Então, Rofer, em ar de desculpa, foi ter com o comandante do acampamento, que amaldiçoou a sua ineficiência, e, depois, o comandante do acampamento foi ter com Yoshima e tentou explicar-lhe delicadamente que o cadáver fora encontrado, mas que era difícil manter uma lista em dia, com rigor, até ao último segundo. E Yoshima amaldiçoou o comandante do acampamento por ineficiência e disse-lhe que ele era responsável - se ele não era capaz de reter um simples número, talvez fosse a altura de outro oficial tomar o acampamento a seu cargo.

Enquanto a cólera se espalhava nos dois sentidos da hierarquia, os guardas coreanos revistavam as barracas, principalmente as dos oficiais. Devia estar ali o rádio que procuravam. A ligação, a esperança dos homens. Queriam encontrar o rádio, como tinham encontrado o outro, cinco meses atrás. Mas os guardas suavam, como os guardas em parada suavam, e a sua busca era ineficiente.

Os homens suavam e praguejavam. Alguns desmaiavam. Os disentéricos corriam para as latrinas. Os que estavam muito doentes agachavam-se onde estavam ou deitavam-se onde estavam, deixando que a dor os revolvesse e se consumasse. Os que estavam bons não notavam o fedor. O fedor era normal, a diarreia era normal e a espera era normal.

Algumas horas depois, a busca estava terminada. Os homens dispersaram. Procuraram as suas barracas e a sombra, ou deitaram-se nas tarimbas, ofegantes, ou meteram-se debaixo dos chuveiros, para que a água fresca lhes aliviasse a dor de cabeça.

Peter Marlowe saiu do chuveiro. Enrolou o sarong à roda da cintura e dirigiu-se ao bungalow de cimento dos seus amigos, a sua unidade.

- Puki mahlu! - disse Mac, arreganhando a tacha.

O major McCoy era um pequeno escocês, duro, que caminhava sempre muito direito. Vinte e cinco anos nas selvas malaias tinham-lhe gravado profundamente o rosto - isso e muita bebida, jogatana e acessos de febre.

- Mahlu senderis - disse Peter Marlowe, agachando-se de gozo. A obscenidade malaia sempre o deleitava. Não tinha tradução absoluta em inglês, embora puki fosse uma parte da mulher com quatro letras e mahlu significasse "envergonhado".

- Vocês não poderão, seus sacanas, falar por uma vez o inglês de Sua Majestade? - disse o coronel Larkin.

Estava deitado no colchão, que, por sua vez, assentava no soalho. Larkin sentia faltar-lhe o fôlego, por causa do calor, e doía-lhe a cabeça das sequelas da malária.

Mac piscou o olho a Peter Marlowe.

- Por mais que lhe expliquemos, nada consegue penetrar a espessura daquela cabeça. Não há nenhuma esperança para o coronel!

- Tens toda a razão, amigo - disse Peter Marlowe, macaqueando o sotaque australiano de Larkin.

- Por que raio viria eu a encontrar vocês os dois? Nunca o saberei.

Mac arreganhou a tacha.

- Porque ele é preguiçoso, não é, Peter? Tu e eu fazemos o trabalho todo, hem? E ele finge que está preso à cama, lá porque tem um niquinho de malária.

- Puki mahlu. E arranja-me um pouco de água, Marlowe!

- Sim, Sir, meu coronel, Sir! - E deu a Larkin a sua garrafa de água.

Quando Larkin a viu, sorriu, apesar da dor.

- Estás melhor, meu rapaz? - perguntou gentilmente.

- Estou. Meu Deus! Cheguei a estar em pânico.

- O Mac e eu também.

Larkin sorveu a água e devolveu cuidadosamente a garrafa.

- Melhor, meu coronel? - E Peter Marlowe estava preocupado com a cor de Larkin.

- Não é nada - disse Larkin. - Nada que uma garrafa de cerveja não curasse. Amanhã estou fino.

Peter Marlowe fez que sim com a cabeça.

- Pelo menos, a febre já passou. - E tirou um maço de Kooas, com estudada negligência.

- Santo Deus!-disseram Mac e Larkin numa só voz. Peter Marlowe abriu o maço e deu um cigarro a cada um.

- Um presente do Pai Natal!

- Onde diabo os arranjaste, Peter?

- - Espera até teres fumado um niquinho - disse Mac, soturno -, antes de ouvirmos as más notícias. Provavelmente vendeu as nossas camas, ou coisa parecida.

Peter Marlowe contou-lhes do Rei e de Grey. Ouviram com espanto crescente. Contou-lhes do processo de tratamento do tabaco e eles ouviram em silêncio, até ele falar nas percentagens.

- Sessenta e quatro por cento! - explodiu Mac encantado. Sessenta e quatro! Meu Deus!

- Isso mesmo - disse Peter Marlowe, interpretando mal Mac. Imaginem! De qualquer modo, eu só lhe mostrei como se fazia. Ele pareceu espantado quando eu não quis nada em troca.

- Revelaste o processo? - perguntou Mac, desolado.

- Claro. Algum problema, Mac?

- Porquê?

- Bem, eu não podia meter-me em negócios. Os Marlowes não são comerciantes - explicou Peter Marlowe, como se falasse a uma criança. - É uma coisa que não se faz, meu velho.

- Santo Deus! Tens uma óptima oportunidade de ganhar algum dinheiro e deita-la fora com um sorriso de desprezo. Suponho que sabes que, com o Rei por trás do negócio, podias ter ganho o suficiente para comprar rações dobradas daqui até ao Dia do Juízo. Por que raio não fechaste a boca e não me disseste, deixando-me fazer...

- Que estás para aí a dizer, Mac? - interrompeu Larkin com vivacidade. - Ele fez muito bem e teria sido mau para ele meter-se em negócios com o Rei.

- Mas...

- Mas nada - disse Larkin.

Mac acalmou-se imediatamente, detestando-se pela sua explosão. Forçou um sorriso nervoso.

- Era só a brincar, Peter.

- com certeza, Mac? Meu Deus! - disse Peter Marlowe com um ar infeliz. - Achas que fui parvo?

- Não, rapaz, é a minha maneira de brincar. Continua, conta-nos o que aconteceu.

Peter Marlowe contou-lhes o que acontecera e durante todo o tempo perguntava a si próprio se fizera algum disparate. Mac era o seu melhor amigo, era esperto e nunca perdia a calma. Contou-lhes o que se passara com o Sean e, quando acabou, sentia-se melhor. Depois foi-se embora. Era a sua vez de dar de comer às galinhas.

Depois de ele ter saído, Mac disse a Larkin:

- Diabos me levem! Estou arrependido. Não tinha razão nenhuma para falar assim.

- Não te censures, pá. Ele é um cabeça no ar. Aquele rapaz tem umas ideias estranhas. Mas nunca se sabe. Talvez o Rei lá tenha a sua ideia.

- Pois é - disse Mac pensativamente.

Peter Marlowe trazia uma gamela cheia de folhas que tinham sido apanhadas. Passou pelas latrinas e foi até às cercas onde estavam as galinhas do acampamento. Havia galinheiros pequenos e grandes, capoeiras para uma só galinha, escanzelada, e um galinheiro enorme para cento e trinta galinhas, as que pertenciam a todo o campo e cujos ovos iam para o fundo comum. Os outros galinheiros eram pertença de unidades ou de comunas de unidades que tinham reunido -os seus recursos. Só o Rei é que era proprietário sozinho.

Mac construíra o galinheiro para a unidade de Peter Marlowe. Nele havia três galinhas, a fortuna da unidade. Larkin comprara as galinhas sete meses antes, quando a unidade vendera a última coisa que possuía, a aliança de casamento de Larkin, que era de ouro. Larkin não quisera vendê-la, mas Mac estava doente nessa altura e Peter Marlowe tinha disenteria, e duas semanas antes as rações do acampamento haviam sido cortadas de novo; por isso, Larkin vendeu-a. Mas não por intermédio do Rei. Por intermédio de um dos seus homens, Tiny Timsen, o comerciante australiano. com o dinheiro comprara quatro galinhas, por intermédio do negociante chinês a quem os Japoneses tinham feito essa concessão, e, com as galinhas, duas latas de sardinhas, duas latas de leite condensado e um litro de óleo de palma cor de laranja.

As galinhas eram boas e punham os seus ovos a tempo. Mas uma delas morreu e os homens comeram-na. Guardaram os ossos e puseram-nos numa panela com ias miudezas, a cabeça e as patas, e ainda com a papaia verde que Mac roubara num grupo de trabalho, e fizeram um guisado. Durante uma semana inteira os seus corpos tinham-se sentido grandes e limpos.

Larkin abrira uma lata de leite condensado no próprio dia em que a comprara. Todos tiveram direito a uma colher pequena enquanto ela durou. O leite condensado resistiu ao calor. No dia em que não havia mais para tirar à colher, ferveram a lata e beberam o líquido. Era muito bom.

As duas latas de sardinhas e a última lata de leite condensado eram a reserva da unidade. Para um caso de extrema pouca sorte As latas guardavam-se num esconderijo, que era constantemente vigiado por um membro da unidade.

Peter Marlowe olhou em redor antes de abrir o fecho do galinheiro e assegurou-se de que não estava ninguém ao pé que pudesse ver como esse fecho funcionava. Abriu a porta e viu dois Ovos.

- Tudo bem, Nonya - disse baixinho para a galinha premiada. - Não te vou tocar.

Nonya estava deitada num ninho de sete ovos. Custara à Unidade um grande esforço de boa vontade deixar os ovos debaixo dela mas, se tivessem sorte e tirassem sete frangos e se os sete frangos vivessem para se tornar galinhas e galos, então o seu galinheiro estaria bem povoado. Nesse caso, poderiam ter uma das galinhas permanentemente no choco. E nunca teriam de recear a enfermaria 6.

A enfermaria 6 albergava os que não viam, os que cegavam com beribéri.

Qualquer vitamina era mágica contra esta ameaça constante e os ovos eram uma poderosa fonte de vitaminas, geralmente a única de que podiam dispor. Era por isso que o comandante do acampamento pedia, praguejava e suplicava mais ao suserano. Mas a maior parte do tempo havia apenas um ovo por homem e por semana. Alguns dos homens recebiam um ovo extra todos os dias, mas nessa altura era quase sempre demasiado tarde.

Era por isso que as galinhas eram guardadas noite e dia por um guarda oficial. Era por isso que tocar numa galinha pertencente ao campo ou a outrem era crime grave. Uma vez, um homem fora apanhado com uma galinha estrangulada na mão e fora sovado até à morte pelos seus captores. Isso foi considerado pelas autoridades homicídio justificável.

Peter Marlowe estava ao fundo da sua capoeira ia admirar as galinhas do Rei. Eram sete, rotundas e gigantescas, se comparadas com as outras. Havia um galo na capoeira, orgulho do campo. O seu nome era Pôr do Sol. O seu esperma criava belos filhos e filhas e ele podia ser empregue como garanhão por qualquer um. Por um preço: escolha da cama.

Até as galinhas do Rei eram invioladas e guardadas como as outras.

Peter Marlowe viu o Pôr do Sol prender uma galinha à terra e montá-la. A galinha libertou-se e correu por ali, cacarejando e dando bicadas nas outras. Peter Marlowe desprezou-se por ficar a ver. Sabia que era uma fraqueza. Sabia que ia pensar na N'ai e que depois os rins lhe doeriam.

Voltou ao galinheiro, verificou se o fecho estava bem preso e foi-se embora, levando os ovos com grande cuidado até ao bungalow.

- Peter, meu velho - sorriu Mac com arreganho-, este é o nosso dia de sorte!

Peter Marlowe -encontrou o maço de Kooas e dividiu os cigarros em três montinhos.

- Vamos tirar à sorte pelos outros dois.

- Fica tu com eles, Peter - disse Larkin.

- Não, vamos tirar por eles. A carta baixa perde. Mac perdeu e fingiu-se desolado.

Abriram cuidadosamente os cigarros e puseram o tabaco nas suas caixas, misturando-o com toda a erva de Java que tinham. Depois dividiram as porções em quatro e puseram, as outras três porções noutra caixa e entregaram as caixas à guarda de Larkin. Ter tanto tabaco ao mesmo tempo era uma tentação.

De repente, os céus abriram-se e começou um dilúvio.

Peter Marlowe tirou o seu sarong, dobrou-o cuidadosamente e pô-lo em cima da cama de Mac.

Larkin disse, pensativamente:

- Peter, tem cuidado com o Rei. Ele pode ser perigoso.

- Claro. Não te preocupes. - E Peter Marlowe saiu para a torrente que vinha das nuvens.

Num momento, Mac e Larkin tinham-se despido e juntaram-se aos outros homens nus que glorificavam o dilúvio.

Os seus corpos abençoavam aquele ferrão, os pulmões respiravam o ar refrescado e as cabeças aliviavam-se.

E o fedor de Changi foi varrido para longe.

Depois da chuva, os homens sentaram-se a gozar a frescura que pairava, esperando que fosse a hora de comer. A água escorria do colmo, jorrando pelos regos abertos pela tempestade, e a poeira era lama. Mas o Sol mostrava-se glorioso no céu azul.

- Meu Deus! -disse Larkin, agradecido.-Já me sinto melhor.

- Pois é - disse Mac, quando se sentaram na varanda, mas o seu espírito estava longe, na sua plantação de borracha, em Kedah, muito lá para norte. - Ainda bem que há calor. Faz-nos apreciar a frescura, como a febre.

- A Malásia cheira mal, a chuva cheira mal, o calor cheira mal, a malária cheira mal, os percevejos cheiram mal e as moscas cheiram mal -disse Larkin.

- Mas não em tempo de paz, pá. - E Mac piscou o olho a Peter Marlowe.-Nem numa aldeia, eh, amigo Peter?

Peter Marlowe riu-se. Tinha-lhes contado quase tudo a respeito da sua aldeia. Sabia que o que não lhes dissera, Mac devia saber, porque Mac vivera a sua vida de adulto no Oriente e gostava tanto dele quanto Larkin o detestava.

- Assim o julgo - disse ele condescendente. E todos sorriram.

Não conversaram muito. Todas as histórias tinham sido contadas e recontadas, todas as histórias que eles queriam contar.

Por isso esperaram pacientemente. Quando eram horas, voltaram ao bungalow. Comeram a sopa rapidamente. Peter Marlowe ligou o fogão eléctrico caseiro e estrelou um ovo. Eles puseram as suas porções de arroz na tigela e ele pôs o ovo em cima do arroz, com um pouco de sal e pimenta. Cozinhou-o de maneira que a gema e a clara se espalhassem igualmente sobre todo o arroz, depois dividiram-no e comeram com deleite.

Quando acabaram, Larkin levou os pratos e lavou-os, pois era a sua vez, e sentaram-se de novo na varanda para esperar a chamada da noite.

Peter Marlowe observava ociosamente os homens que passavam na rua, gozando a plenitude do seu estômago, quando viu Grey, que se aproximava.

- Boa noite, coronel - disse Grey a Larkin, fazendo uma continência perfeita.

- noite, Grey - suspirou Larkin. - Quem é desta vez?

De cada vez que Grey vinha procurá-lo era sinal de que havia sarilho.

Grey baixou os olhos sobre Peter Marlowe. Larkin e Mac aperceberam-se da hostilidade entre eles.

- O coronel Smedly-Taylor pediu-me que lhe dissesse, Sir - disse Grey-, que dois dos seus homens tiveram uma briga. O cabo Townsend e o soldado Gurble. Meti-os agora na cadeia.

- Muito bem, tenente - disse Larkin friamente. - Pode soltá-los. Diga-lhes que se apresentem aqui a inim, depois da chamada. Eu lhes direi por quê! - Fez uma pausa. - Sabe por que lutaram?

- Não, Sir. Mas creio que foi por causa do cara-ou-coroa.

(Jogo ridículo", pensou Grey. "Pôr duas moedas num pau, atirá-las ao ar e apostar se caem as duas cara, as duas coroa' ou uma cara e uma coroa'."

-Acho que você tem razão - rosnou Larkin.

- Talvez você pudesse proibir o jogo. Há sempre sarilhos quando...

- Proibir o jogo cara-ou-coroa? - interrompeu Larkin abruptamente. - Se eu o fizesse, diriam que endoidecera. Não ligariam nenhuma a semelhante ordem, e com muita razão. O jogo faz parte da natureza australiana, e você já deveria saber isso. O cara-ou-coroa dá-lhes qualquer coisa em que pensar, e um pouco de luta, de vez em quando, também não é mau. - Levantou-se e fez mexer os ombros, para sacudir o reumatismo. - Jogar, para um australiano, é como respirar. Qualquer um arrisca um xelim ou dois na jogatana. A sua voz era cortante. - Eu próprio gosto de uma partida de cara-ou-coroa de vez em quando.

- com certeza, Sir - disse Grey.

Ele vira Larkin e outros oficiais australianos, com os seus homens, a chafurdarem na lama e a proferirem obscenidades como qualquer tarimbeiro. Não admirava que a disciplina fosse má.

- Diga ao coronel Smedly-Taylor que eu trato deles. Juro pela puta da minha sorte!

- Foi chata aquela coisa do isqueiro do Marlowe, não foi, Sir? disse Grey, observando Larkin atentamente.

Os olhos de Larkin endureceram subitamente.

- Ele devia ter tido mais cuidado, não é verdade?

- com certeza, Sir - disse Grey, depois de uma pausa suficientemente longa para dar a entender a sua opinião.

"Bem", pensou ele, "vale a pena tentar. Que o Larkin e o Marlowe vão para o diabo, há muito tempo!" Estava prestes a fazer a continência e a ir-se embora, quando um fantástico pensamento o embalou. Dominou a sua excitação e disse com o ar mais natural:

- Ah, a propósito, Sir, corre o boato de que um dos australianos tem um anel com diamantes. - Deixou pairar a afirmação. - Por acaso, sabe de alguma coisa?

Os olhos de Larkin estavam escondidos por espessas sobrancelhas. Olhou pensativamente para Mac antes de responder:

- Também ouvi dizer. Tanto quanto sei, não é nenhum dos meus homens. Porquê?

- Só para saber, Sir - disse Grey com um sorriso forçado. Por certo compreende que um anel desses seria dinamite. Para o dono e para um ror de pessoas. - E acrescentou: - Estaria melhor fechado a sete chaves.

- Não creio, meu velho - disse Peter Marlowe, e o "meu velho" era discretamente maldoso. - Isso seria a pior coisa a fazer... se o diamante realmente existe. Do que eu duvido. Se estiver num lugar conhecido, então muita gente quererá dar-lhe uma olhadela. E, de qualquer modo, os Japoneses tirá-lo-iam logo que soubessem.

Mac disse pensativamente:

- Concordo.

- Está melhor onde está. No limbo. Provavelmente é mais um boato - disse Larkin.

- Espero que seja - disse Grey, certo, agora, de que o seu palpite batera certo. - Mas o boato parece muito forte.

- Não é um dos meus homens.

O espírito de Larkin partia à desfilada. Grey parecia saber qualquer coisa... Quem seria? Quem?

- Bem, se souber de alguma coisa agradecia que me dissesse, Sir.

- Os olhos de Grey abateram-se sobre Peter Marlowe com desprezo. Gosto de deter o mal antes que se manifeste. - Fez então a continência a Larkin com toda a correcção, fez um aceno a Mac e afastou-se.

Houve um longo silêncio reflexivo no bungalow. Larkin olhou para Mac.

- Gostava de saber porque é que ele fez aquela pergunta.

- Pois é - disse Mac. - Também eu. Reparou como a cara se lhe incendiou como uma fogueira?

- É verdade - disse Larkin, com as rugas da cara mais marcadas que nunca. - O Grey tem razão numa coisa. Um diamante podia custar a uma porção de homens uma quantidade de sangue.

- É apenas um boato, coronel - disse Peter Marlowe. - Ninguém podia guardar uma coisa dessas tanto tempo. Impossível.

- Espero que tenha razão. - Larkin franziu o sobrolho. - Deus Permita que não seja um dos meus rapazes que o tem.

Mac espreguiçou-se. Doía-lhe a cabeça e sentia uma ponta de febre. (Bem, ainda faltam uns três dias", pensou calmamente. Tinha tanta febre que já a achava tão natural como a respiração. Agora a uma vez de dois em dois meses. Lembrou-se de que fora obrigado a reformar-se em 1942, por ordem do médico. "Quando a malária te chegar ao baço, meu velho... para casa, para a Escócia, para o clima frio, a comprar a pequena quinta perto de Killin, dominando a glória de Loch Tay. Então poderás viver."

- Sim - disse Mac fatigadamente, sentindo o peso dos seus 50 anos.

Larkin enrolou um cigarro e acendeu-o, tirando uma grande fumaça. Passou-o a Mac, que fumou e passou a Peter Marlowe. Quando o tinham quase acabado, Larkin arrancou a ponta acesa e pôs o resto do tabaco de novo na caixa. Rompeu então o silêncio.

- vou dar um passeio. Peter Marlowe sorriu.

- Salamat-disse, o que significava "que a paz seja contigo".

- Salamat-disse Larkin, e saiu para o sol.

Enquanto Grey subiu a colina em direcção à barraca da P. M., o seu cérebro fervia de excitação. Prometeu a si próprio que, logo que chegasse à barraca e soltasse os australianos, faria um cigarro para festejar. O seu segundo de hoje, embora tivesse apenas erva de Java suficiente para mais três cigarros até ao dia do pré, na semana seguinte.

Trepou os degraus e fez um aceno ao sargento Masters.

- Pode soltá-los!

Masters retirou a pesada tranca da porta da gaiola de bambu e os dois homens, carrancudos, puseram-se em sentido em frente de Grey.

- Vocês os dois têm de se apresentar ao nosso coronel Larkin, depois da chamada.

Os dois homens fizeram a continência e partiram.

- Raio de arruaceiros- disse Grey laconicamente. Sentou-se e tirou a caixa e as mortalhas. Este mês fizera uma

extravagância. Comprara uma página inteira de papel da Bíblia, que fazia os melhores cigarros. Embora não fosse um homem religioso, parecia-lhe uma blasfémia fumar a Bíblia. Grey leu a escritura no pedaço de papel que se preparava para enrolar: "E assim Satanás retirou da presença do Senhor e feriu Job com uma lepra maligna, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. E Job raspava o pus com um caco de telhas e sentava-se sobre as cinzas. E a sua mulher disse-lhe [...]."

"'Mulher'! Por que raio tenho eu de tropeçar nesta palavra?" Grey praguejou e voltou o papel.

A primeira frase do outro lado era: "Porque não morri eu no seio da minha mãe ou não pereci ao sair das suas entranhas?"

Grey pôs-se em pé de um salto, quando uma pedra silvou pela janela, bateu na parede e rebolou pelo chão.

A pedra vinha embrulhada num pedaço de papel. Grey apanhou-a e precipitou-se para a janela. Não havia, porém, ninguém por ali perto. Grey sentou-se e alisou o papel. Estava lá escrito:

Faço-lhe uma proposta. Dou-lhe o Rei numa bandeja se o senhor fechar os olhos quando eu negociar um pouco nesta terra depois de o senhor o apanhar. Se estiver de acordo, apareça um minuto fora da barraca com esta pedra na mão esquerda. Depois liberte-se do outro xui. A malta diz que o senhor é honesto; por isso confio em si.

- Que é que diz, Sir? - perguntou Masters, fixando no papel uns olhos remelosos.

Grey amarrotou o papel numa bola.

- É alguém que pensa que trabalhamos demasiado para os Japoneses - respondeu ele rudemente.

- Filho da mãe! - Masters foi à janela. - Que é que eles pensam que aconteceria se não reforçássemos a disciplina? Os ladrões estariam agarrados às gargantas uns dos outros todo o santo dia.

- É verdade - disse Grey, apertando a bola de papel na mão. "Se esta oferta é verdadeira", pensou, "o Rei pode ser derrubado." Não era uma decisão fácil de tomar. Tinha de manter a sua posição no negócio. A sua palavra era a sua garantia; era um "xui" honesto e muito orgulhoso da sua reputação. Grey sabia que daria tudo para ver o Rei por trás das grades de bambu, despido dos seus luxos, daria tudo, inclusive fechar um pouco os olhos a uma infracção das regras. Perguntava a si mesmo qual dos americanos seria o informador. Todos eles odiavam o Rei e o invejavam... Mas quem faria o papel de Judas, quem sofreria as consequências se fosse descoberto? Quem quer que fosse o homem, nunca podia ser tão grande ameaça como o Rei.

Assim, saiu a porta com a pedra na mão esquerda e observou os homens que passavam. Mas nenhum lhe fez qualquer sinal.

Atirou fora a pedra e despediu Masters. Depois sentou-se na barraca e esperou. Perdera a esperança, quando outra pedra voou pela janela, com uma segunda mensagem amarrada:

Procure numa lata que está no fosso, junto da barraca nº 16. Duas vezes por dia, de manhã e depois da chamada. Será o nosso meio de comunicação. Ele vai negociar com o Turasan esta noite.

Nessa noite, Larkin estava deitado no seu colchão, debaixo do mosquiteiro, muito preocupado com o cabo Townsend e com o soldado Gurble. Falara com eles depois da chamada.

- Por que diabo se bateram vocês? - perguntara ele repetidamente.

De cada vez, ambos respondiam, obstinados:

- Cara-ou-coroa.

Mas Larkin sabia instintivamente que eles mentiam.

- Quero a verdade - dissera ele, zangado. - Vamos lá, vocês os dois são compinchas. Por que é que andaram à luta?

Mas os dois homens tinham conservado obstinadamente os olhos no chão. Larkin interrogara-os individualmente, mas cada um, por sua vez, fizera cara de amuado e respondera:

- Cara ou coroa.

- Pois bem, seus filhos da mãe - acabara por dizer Larkin-, vou dar-vos uma última oportunidade. Se não me disserem, transfiro-os para fora do meu regimento. E, pelo que me diz respeito, vocês deixam de existir!

- Mas, meu coronel - arquejou Gurble -, o meu coronel não fazia uma coisa dessas!

- Dou-vos trinta segundos - disse Larkin perversamente, mas com sinceridade.

E os homens sabian-no. E sabiam que a palavra de Larkin fazia lei no seu regimento, porque Larkin era como o pai deles. Ser mandado embora significaria que não existiriam para os seus amigos, e sem os seus amigos morreriam.

Larkin esperou um minuto. Depois disse:

- Muito bem, amanhã...

- Eu digo, meu coronel - deixou escapar Gurble. - Este filho da mãe acusou-me de roubar a comida dos meus camaradas. O grande sacana disse que eu estava a roubar...

- E estavas, seu filho da mãe!

Só a ordem de Larkin "Sentido!" os impediu de se atirarem às goelas "um do outro.

O cabo Townsend contou primeiro a sua versão da história.

- Este é o meu mês na cozinha. Hoje temos de cozinhar para cento e oitenta e oito...

- Quem falta? - perguntou Larkin.

- Rilly Donahy, Sir. Foi para o hospital esta tarde.

- Muito bem.

- Bem, Sir. Cento e oitenta e oito homens a cento e vinte e cinco gramas de arroz faz vinte e três quilos e meio. Eu vou sempre lá acima ao armazém com um camarada, para ver pesar o arroz e trazê-lo para baixo e ter a certeza de que recebemos a sacana da nossa parte. Pois bem, hoje, quando estava a ver pesar, deu-me a caganeira. Por isso pedi ao Gurble que o trouxesse para a cozinha. Ele é o meu melhor amigo e pensei que podia confiar nele...

- Eu não toquei num sacana de um grão, seu filho da... Juro por Deus!

- Faltava arroz quando eu voltei! - gritou Townsend. - Quase meia libra, e isso é a ração de dois homens!

- Bem sei, mas eu não...

- Os pesos não estavam errados. Verifiquei-os debaixo do sacana do teu nariz!

Larkin foi com os homens e verificou os pesos. Estavam certos. Não havia dúvida de que, à partida, estava certo o peso do arroz, porque as rações eram pesadas publicamente pelo tenente-coronel Jones. Só podia haver uma resposta.

- Pelo que me diz respeito, Gurble, você está fora do meu regimento. Morreu.

Gurble afastou-se, cambaleante, a choramingar, e Larkin disse para Townsend:

- Nem uma palavra a respeito disto.

- Pela minha saúde, meu coronel - disse Townsend. - A malta esfolava-o se soubesse. E com razão. Só não lhes disse porque ele é o meu melhor amigo.

Os olhos encheram-se-lhe subitamente de lágrimas.

- Pela minha saúde, meu coronel, assentámos praça no mesmo ano. Estivemos com o meu coronel em Dunquerque, nesse maldito Médio Oriente e na Malásia. Conheci-o quase toda a minha vida e ia jurar...

Agora, ao pensar em tudo isso de novo, no crepúsculo do sono, Larkin sentiu um calafrio. "Como pode um homem fazer semelhante coisa?", perguntou a si mesmo, sem resposta. "Como?" E logo Gurble, que ele conhecia havia tantos anos e que chegara a trabalhar no seu gabinete em Sidney!

Fechou os olhos e varreu Gurble do espírito. Fizera o seu dever, e o seu dever era proteger o maior número. Deixou que o espírito lhe vagueasse para sua mulher, Betty, e para os bifes que ela fazia, com um ovo a cavalo, para a sua casa sobre a baía, para a sua filhinha, para o tempo que iria passar depois da guerra. Mas quando? Quando?

Grey subiu sem ruído os degraus para a barraca nº 16, como um gatuno ma noite, e dirigiu-se para a cama. Tirou as cuecas e meteu-se debaixo do mosquiteiro, nu, em cima do colchão, muito satisfeito consigo próprio. Acabava de ver Turasan, o guarda coreano, passar furtivamente pela esquina da barraca americana e sob o toldo de lona; vira o Rei saltar cautelosamente pela janela e juntar-se a Turasan. Grey esperara só um momento na sombra. Estava a verificar as informações do espião e não havia necessidade de cair sobre o Rei por enquanto. Não. Ainda não, agora que o informador estava posto à prova.

Grey voltou-se na cama e coçou a perna. Os seus dedos, experimentados, apanharam um percevejo e mataram-no. Ouviu-o rebentar e sentiu o cheiro adocicado do sangue que ele continha, o seu próprio sangue.

Em roda da sua rede zumbiam nuvens de mosquitos em busca do buraco inevitável. Grey recusara transformar a sua cama em beliche, porque detestava a ideia de dormir por cima ou por baixo de alguém.

Os mosquiteiros estavam pendurados de um arame que atravessava a camarata de ponta a ponta. Até a dormir, os homens estavam ligados uns aos outros. Quando um homem se voltava ou puxava a rede para a entalar melhor debaixo do colchão encharcado, todas as redes mexiam um pouco e cada homem sabia que não estava só.

Grey esmagou outro percevejo, mas o seu espírito não se ocupava dele. Esta noite sentia-se cheio de felicidade, por causa do informador, por causa do seu empenho em apanhar o Rei, por causa do anel com o diamante, por causa de Marlowe. Estava muito satisfeito porque decifrara o enigma.

i"É simples", voltou a dizer a si próprio. "Larkin sabe quem tem o diamante. O Rei é o único homem do acampamento que poderia promover a sua venda. Só os contactos do Rei são eficientes." Larkin não queria dirigir-se directamente ao Rei; portanto, mandou Marlowe. Marlowe vai ser o intermediário.

A cama de Grey estremeceu quando o moribundo Johnny Hawkins tropeçou contra ela, ao dirigir-se às latrinas.

- Tenha cuidado, por quem é - disse Grey, irritado.

- Desculpe - respondeu Johnny, às apalpadelas para a porta. Dentro de poucos minutos, quando regressava, Johnny voltou a tropeçar. Ouviram-se várias pragas sonolentas. Mal Johnny chegou à sua tarimba, já precisava de voltar. Desta vez, Grey não deu pelo abanão, porque estava fechado nos seus pensamentos, antevendo os movimentos prováveis do inimigo.

Peter Marlowe estava bem acordado, sentado nos duros degraus da barraca nº 16, sob um céu sem lua, com os olhos, os ouvidos e o espirito rebuscando as trevas. Donde estava sentado, podia observar as duas estradas: a que dividia o campo em dois e a que rodeava os muros da prisão. Japoneses e coreanos, guardas e prisioneiros, sem distinção, utilizavam as duas estradas. Peter Marlowe era a sentinela de norte.

Atrás de si, nos outros degraus, ele sabia que o tenente aviador Cox estava tão concentrado como ele, procurando o perigo nas trevas. Cox guardava o sul.

Leste e oeste não estavam cobertos, porque a barraca nº 16 só podia ser alcançada por -norte ou por sul.

Do interior da barraca, a toda a volta, havia os ruídos daquele sono de morte -gemidos, risos fantasmagóricos, ressonar, lamúrias, semigritos sufocados-, misturados com a suavidade dos sussurros dos que não tinham sono. Estava uma bela noite, fresca, ali no outeiro acima da estrada. Tudo estava normal.

Peter Marlowe deu um salto, como um cão que avista caça. Sentira o guarda coreano, antes que os seus olhos o distinguissem na escuridão; na altura em que realmente viu o guarda, já dera o sinal de aviso.

No outro extremo da barraca, Dave Daven não ouviu o primeiro assobio, absorvido como estava no seu trabalho. Quando ouviu o segundo, mais urgente, respondeuLhe, atirou com as agulhas, deitou-se de costas no catre e susteve a respiração.

O guarda percorria o campo de olhos baixos, carabina ao ombro, e não viu Peter Marlowe nem os outros. Mas sentiu-lhes os olhos. Acelerou o passo e desejou-se longe daquele ódio.

Depois de uma eternidade, Peter Marlowe ouviu Cox dar o sinal de caminho livre e distendeu-se mais uma vez. Mas os seus sentidos ainda registavam a noite.

No canto oposto da barraca, Daven começou de novo a respirar. Ergueu-se cuidadosamente sob o mosquiteiro, no beliche de cima. com infinita paciência, ligou as duas agulhas às extremidades do fio isolado que trazia a corrente. Depois de uma busca esfalfante sentiu as agulhas penetrarem nos buracos do caruncho da viga de oito por oito que era a travessa principal do beliche. Uma gota de suor lhe escorreu para o queixo e caiu sobre a travessa, quando ele encontrou as outras duas agulhas que estavam ligadas ao auscultador, e de novo, depois de muito procurar, encontrou os buracos para elas e enfiou as agulhas com perícia na travessa. O auscultador ganhou vida: "[...] e as nossas forças avançaram rapidamente pela selva para Mandalay. Aqui terminam as notícias. Fala Calcutá. Sumário das notícias: forças americanas e inglesas estão a repelir o inimigo para a Bélgica e, no sector central, para St. Hubert, sob tempestades de neve. Na Polónia, os exércitos russos estão a cerca de trinta quilómetros de Cracóvia, também sob fortes nevões. Nas Filipinas, forças americanas montaram uma testa de ponte através do rio Agno, no seu avanço para Manila. A Formosa foi bombardeada durante o dia por aviões americanos B-29, sem uma perda. Em Burma, exércitos vitoriosos ingleses e indianos estão a cinquenta quilómetros de Mandalay. O próximo noticiário terá lugar às seis da manhã, hora de Calcutá."

Daven pigarreou baixinho e sentiu o fio isolado mexer levemente e depois soltar-se, quando Spence, no beliche do lado, arrancou as suas agulhas da tomada. Rapidamente, Daven desligou as suas quatro agulhas e pô-las de novo no seu estojo de costura. Limpou o suor da face e coçou os percevejos que lhe mordiam. Depois desenroscou os fios do auscultador, apertou cuidadosamente os terminais e escondeu-o numa bolsa especial do seu slip, por trás dos testículos. Abotoou as calças, dobrou o fio, passou-o pelas presilhas do cinto e deu-lhe um nó. Encontrou o farrapo, limpou cuidadosamente as mãos e depois empurrou o pó para cima dos minúsculos buraquinhos da travessa, tapando-os perfeitamente.

Deitou-se um momento na cama para recuperar as forças e coçou-se. Quando se recompôs, saiu da rede e saltou para o chão. A esta hora da noite nunca se incomodava a pôr a perna; por isso só procurou as muletas e foi calmamente até à porta, balouçando-se. Não fez qualquer sinal quando passou pelo beliche de Spence. Essa era a regra. Todo o cuidado era pouco.

As muletas chiavam, madeira contra madeira, e, pela décima milionésima vez, Daven pensou na sua perna. Agora, já não o incomodava muito, embora o coto doesse como diabo. Os médicos tinham-lhe dito que em breve teriam de o amputar outra vez. Seria a terceira. A primeira, a amputação real, fora em 1942, em consequência da explosão de uma mina terrestre. A segunda, acima do joelho, sem anestesia. A recordação ainda lhe fazia ranger os dentes e jurara nunca mais passar por outra. Desta vez, porém, a última, não seria tão mau. Aqui, em Changi, havia anestésicos. Seria a última vez, porque não havia mais coto para cortar.

- Oh, olá, Peter!-exclamou, enquanto quase caía por cima dele, nos degraus. - Não te via.

- Olá, Dave.

- Bonita noite, não é? - E Dave oscilou cuidadosamente o corpo a descer os degraus. - A bexiga está a fazer das suas.

Peter Marlowe sorriu. Se ele dizia aquilo era sinal de que as notícias eram boas. Se dissesse "sou eu que vou fazer chichi", significaria que nada estava a acontecer no mundo. Se dissesse "as minhas tripas matam-me esta noite", seria porque houvera um revés, algures no mundo. Se dissesse "segura-me aqui na muleta por um momento", quereria dizer que houvera uma grande vitória.

Embora Peter Marlowe devesse ouvir as notícias no dia seguinte em pormenor e decorá-las com Spence para contar nas outras barracas, gostava de saber como iam as coisas esta noite. Por isso sentou-se e observou Daven, que se dirigia ao urinol com as suas muletas, sentindo que era amigo dele, que o respeitava.

Daven fez uma paragem. O urinol era feito de um pedaço de chapa ondulada. Daven observou a sua urina, que corria serpenteando para a parte baixa e ia depois cair, em cascata espumosa, do cano enferrujado para um velho tambor, aumentando a espuma que se juntava na superfície do líquido. Lembrou-se de que o dia seguinte era o dia dos despejos. O contentor seria levado e junto a outros contentores, antes de ser levado para as hortas. O líquido seria misturado com água e a mistura seria tirada concha a concha e despejada junto às raízes das plantas, acarinhadas e protegidas por aqueles que cultivavam os alimentos do campo. Este fertilizante faria mais verdes os legumes que eles comiam.

Daven detestava as hortaliças. Mas eram comida e era preciso comer.

Uma brisa arrefecia-lhe o suor das costas e trazia consigo o gosto do mar, a cinco quilómetros de distância, quais cinco anos-luz de distância.

Daven pensou como o rádio estava a trabalhar bem. Sentia-se satisfeito consigo mesmo ao lembrar-se de como, delicadamente, levantara uma delgada tira do topo da travessa e escavara por baixo dela um buraco de quinze centímetros de profundidade. De como isto fora feito em segredo. De como levara cinco meses a construir o rádio, trabalhando à noite e de madrugada e dormindo de dia. De como a tampa ficara tão perfeita que, quando se metia poeira nas frinchas, a mais rigorosa inspecção não a detectava. E de como os buracos das agulhas eram também invisíveis quando cobertos pela poeira.

O pensamento de que ele, Dave Daven, era o primeiro a ouvir as notícias em todo o campo enchia-o de justificado orgulho. E o único. A despeito da sua perna. Um dia ouviria que a guerra acabara. Não apenas a guerra europeia. A sua guerra. A guerra do Pacífico. Graças a ele, o campo estava ligado com o exterior, e ele sabia que o terror e o suor e o sofrimento valiam a pena. Só ele, Spence, Cox, Peter Marlowe e dois coronéis ingleses é que sabiam onde o rádio realmente estava. Isto era sensato, pois, quanto menos soubessem, menor era o perigo.

Claro que existia perigo. Havia sempre olhos curiosos, olhos em que não se podia confiar. Havia sempre a possibilidade de existirem informadores. Ou de alguma fuga involuntária.

Quando Daven voltou à porta, já Peter Marlowe regressara ao seu beliche. Daven viu que Cox estava ainda sentado nos degraus, mas isto era vulgar, pois era regra que as sentinelas não saíssem ao mesmo tempo. O coto de Daven começou a fazer-lhe uma comichão dos diabos, mas não era bem o coto e sim o pé que lá não estava. Trepou para o seu beliche, fechou os olhos e rezou. Rezava sempre antes de adormecer. Depois viria o sonho, a figura viva do querido tom Cotton, o australiano que fora apanhado com o outro rádio e marchara sob escolta para a prisão de Utram Road, com o seu chapéu de coolie posto à banda sobre um olho, a cantar A Valsa de Matilda, e o coro fora Vamos Lixar os Japoneses. Porém, no sonho de Daven, era ele, e não Tommy Cotton, que ia com os guardas. Ele ia com eles, e ele encontrava-se sob abjecto terror.

"Oh, meu Deus", disse Daven "o fundo de si mesmo, "dá-me a paz da Tua coragem! Sinto-me tão aterrado e tão cobarde!"

O Rei estava a fazer a coisa de que mais gostava no mundo: a contar um maço de notas novas. O produto de uma venda.

Turasan segurava delicadamente a sua lâmpada de algibeira, com o foco cuidadosamente velado e dirigido para a mesa.

Estavam na "loja", como o Rei lhe chamava, mesmo ao pé da barraca americana. Agora, do toldo de lona, um outro pedaço de lona caía até ao chão, ocultando a mesa e os bancos dos olhos sempre presentes. Era proibido aos presos e aos guardas negociar, por ordem dos Japoneses e, portanto, do campo.

O Rei afixara a sua expressão "de comerciante" e contava com ar soturno.

- Okay - suspirou finalmente, quando as notas totalizaram quinhentos dólares. - Ichi-bon!

Turasan fez um aceno de concordância. Era um homem baixo e atarracado, com uma cara chata de lua cheia e uma boca cheia de dentes de ouro. A sua arma estava negligentemente encostada à parede da barraca, em frente dele. Pegou na Parker de tinta permanente e reexaminou-a com cuidado. A pinta branca lá estava. O aparo era de ouro. Aproximou mais a caneta da luz velada e entortou os olhos para se certificar, mais uma vez, de que o aparo tinha gravado "14 quilates".

- Ichi-bon - resmungou por fim, aspirando o ar através dos dentes.

Também ele usava a sua expressão "de comerciante" e dissimulava o seu prazer. Por quinhentos dólares japoneses, a caneta era excelente compra, e ele sabia que podia facilmente obter o dobro dos chineses em Singapura.

- Meu sacripanta de negociante ichi-bon - disse o Rei, carrancudo.

- Para a semana, talvez relógio ichi-bon. Mas sem pilim, não negócio. Tenho de levar algum pilim.

- Muito pilim - disse Turasan, acenando para o maço de notas. - Relógio perto, talvez?

- Talvez.

Turasan ofereceu os seus cigarros. O Rei aceitou um e deixou que Turasan lho acendesse. Depois, Turasan tirou uma última fumaça e sorriu, no seu sorriso de ouro. Pôs a arma ao ombro, fez uma vénia cortês e mergulhou na noite.

O Rei estava radiante quando acabou o seu cigarro. "Boa noite de trabalho", pensou. Cinquenta dólares pela caneta, cento e cinquenta ao homem que falsificou a pinta branca e gravou o aparo e trezentos dólares de lucro. Que a cor desaparecesse do aparo dentro de uma semana não preocupava o Rei. Sabia que, por essa altura, já Turasan a teria vendido a um chinês.

O Rei trepou pela janela para a sua barraca.

- Obrigado, Max - disse ele baixinho, porque a maior parte dos americanos já estava a dormir.-Agora podes ir-te embora. Toma. - Deu-lhe duas notas de dez dólares. -Dá a outra ao Dino.

Geralmente não dava tanto aos seus homens por tão pouco trabalho, mas esta noite sentia-se generoso.

- Ena, obrigado! - E Max apressou-se a sair e disse a Dino que se descontraísse, dando-Lhe uma nota de dez dólares.

O Rei pôs a cafeteira no fogão eléctrico. Despiu-se, pendurou as calças e pôs a camisa por baixo das calças e as peúgas no -saco da roupa suja. Enfiou um slip corado ao sol e meteu-se debaixo do mosquiteiro.

Enquanto esperava que a água fervesse, reviu o seu dia de trabalho. Primeiro, o Ronson. Regateara com o major Barry até quinhentos e cinquenta dólares, menos cinquenta e cinco que eram a sua comissão, e registara o isqueiro junto do capitão Brough como "ganho ao poker". Valia pelo menos novecentos, sem esforço, de modo que fora um bom negócio. Pela maneira como ia a inflação, era sensato ter o máximo possível de dinheiro em mercadoria.

O Rei lançara a empresa do tabaco tratado com uma conferência de vendedores. Decorrera de acordo com o plano. Todos os americanos se tinham oferecido como vendedores e os contactos ingleses e australianos do Rei tinham sido frutíferos. Mas isso era normal. Já combinara comprar uns novecentos gramas de erva de Java a Ah Lee, o chinês que tinha a concessão do armazém do campo, e conseguira-a com um bom desconto. Uma cozinha australiana concordara pôr de lado um dos seus fornos uma hora por dia, de modo que toda a fornada de tabaco pudesse ser tratada ao mesmo tempo, sob a supervisão de Tex. Uma vez que os homens estavam a trabalhar à percentagem, o Rei apenas adiantava o custo do tabaco. No dia seguinte, o tabaco tratado estaria à venda. Da forma que ele imaginara, teria cem por cento de lucro. O que era apenas justo.

Agora que o projecto do tabaco estava lançado, o Rei achava-se pronto a ocupar-se do diamante...

O assobio da cafeteira que fervia interrompeu as suas meditações.

Escorregou de sob o mosquiteiro e abriu a caixa preta. Pôs três

colheres bem cheias de café na cafeteira com água e juntou-lhe uma

pitada de sal. Quando a água começou a ferver, tirou-a do fogão e

esperou até que o café assentasse.

O aroma do café espalhou-se pela barraca, atormentando os homens que ainda estavam acordados.

- Jesus! - disse Max involuntariamente.

- Que aconteceu, Max? - perguntou o Rei. - Não podes dormir?

- Não. Tenho muitas coisas na cabeça. Tenho estado a pensar. Podemos fazer um grande negócio com aquela história do tabaco.

Tex mexeu-se, pouco à vontade, perturbado pelo cheiro do café.

- Esse cheiro faz-me lembrar a angustiante desolação do Texas.

- Porquê? - E o Rei pôs um pouco de água fria para assentar o pó, depois pôs uma colher bem cheia de açúcar na sua caneca e encheu-a.

- A melhor parte dos exercícios é de manhã, depois de uma longa noite de suadouro. Quando a gente se senta com a malta para a primeira caneca de café, de madrugada. E o café fumega de quente e é doce e, ao mesmo tempo, um bocado amargo. E talvez se deite uma olhadela ao Sol a nascer sobre o Texas. - Houve um longo suspiro. - Homem, isto é viver.

- Nunca estive no Texas - disse o Rei. - Estive em toda a parte, menos no Texas.

- É a terra de Deus.

- Queres uma chávena?

- Bem sabes que sim. - E Tex estava ali com a sua caneca.

O Rei serviu-se de uma segunda chávena. Depois deu a Tex meia chávena.

- Max?

Max apanhou também meia chávena. Bebeu o café rapidamente.

- Eu arranjo-te isto de manhã - disse, pegando na caneca com o seu fundo de borras.

- Okay. noite, malta.

O Rei meteu-se de novo debaixo da rede e mais uma vez se assegurou de que ela estava bem presa debaixo do colchão. Depois deitou-se com prazer entre os lençóis. Do outro lado da barraca viu Max juntar um pouco de água aos grãos de café e pô-lo ao lado do beliche para marinar. Sabia que Max faria nova infusão dos grãos para o pequeno-almoço. Pessoalmente, o Rei nunca gostara de café requentado. Era demasiado amargo. Mas os rapazes diziam que era bom. "Se o Max quer voltar a fervê-lo, óptimo", pensou, divertido. O Rei não aprovava desperdícios.

Fechou os olhos e concentrou-se no diamante. Sabia, finalmente, quem o tinha e como apanhá-lo e, agora, que a sorte lhe trouxera Peter Marlowe, sabia como um negócio tão complicado podia realizar-se.

"A partir do momento em que se conhece um homem", dizia o Rei para si mesmo, satisfeito, "em que se conhece o seu calcanhar de Aquiles, sabe-se como lidar com ele, como adaptá-lo aos nossos planos." Olá, o seu palpite não o enganara quando vira pela primeira vez Peter Marlowe, fazendo Woglike lamber o pó, falando malaio.

Agora, pensando na conversa que tivera com Peter Marlowe depois da chamada da tarde, o Rei sentia o calor da antecipação percorrê-lo.

- Não acontece nada nesta piolheira - disse o Rei inocentemente, quando estavam sentados ao abrigo da barraca, sob um céu sem lua.

- É verdade - disse Peter Marlowe. - É de morrer. Cada dia que passa é igual aos outros. Ê quanto basta para pôr uma pessoa maluca.

O Rei concordou com um aceno de cabeça e esmagou um mosquito.

- Conheço um tipo que se diverte à brava.

- Ah?! E que faz ele?

- Atravessa o arame farpado, de noite.

- Meu Deus! Isso é mesmo procurar sarilhos. Deve ser maluco. Mas o Rei vira um brilho de excitação nos olhos de Peter Marlowe. Esperou em silêncio.

- Porque é que ele faz isso?

- A maior parte das vezes, por mada.

- Só porque é excitante?

O Rei fez que sim com a cabeça.

Peter Marlowe assobiou baixinho.

- Eu penso que não teria coragem para isso.

- Às vezes, o tipo vai à aldeia malaia.

Peter Marlowe olhou para lá do arame farpado, vendo, no seu espírito, a aldeia que todos eles sabiam que existia na costa, a uns cinco quilómetros de distância. Uma vez, ele fora à cela mais alta da prisão e trepara à janela gradeada. Espreitara para fora e vira o panorama da selva e a aldeia, aninhada na costa. Havia navios na costa nesse dia. Navios de pesca e navios de guerra – grandes e pequenos-, colocados como ilhas no espelho do mar. Arregalara os olhos, fascinado pela proximidade do mar, pendurado das barras, até lhe doerem as mãos e os braços. Depois de descansar um pouco ia saltar para cima outra vez e espreitar de novo. Mas não olhou. Fazia doer muito. Ele sempre vivera perto do mar. Longe dele sentia-se perdido. Agora estava de novo perto. Mas não lhe podia tocar.

- É muito difícil confiar numa aldeia inteira - disse Peter Marlowe.

- Não, se conhecermos bem as pessoas.

- É verdade. Esse homem vai realmente à aldeia?

- Foi o que ele me disse.

- Eu não acredito que o próprio Suliman se arriscasse a isso.

- Quem?

- Suliman, o malaio com quem eu estava a falar. Esta tarde.

- Parece que isso foi há mais de um mês - disse o Rei.

- Parece, não parece?

- Que raio faz um homem como Suliman nesta lixeira? Porque é que não se foi embora quando acabou a guerra?

- Foi apanhado em Java. Suliman era apanhador de borracha na plantação do Mac. O Mac faz parte da minha unidade. Bem, o batalhão do Mac, o regimento malaio, saiu de Singapura e foi mandado para Java. Quando a guerra acabou, Suliman teve de se agarrar ao batalhão.

- Que diabo, podia ter-se perdido! Há milhões deles em Java...

- Os Javaneses tê-lo-iam logo reconhecido e provavelmente prendido.

- E, então, que é que se faz do lema "a Ásia para os Asiáticos")?

- Receio bem que isso não signifique grande coisa. E também é verdade que não serviu para grande coisa aos Javaneses. Não, se eles não obedecessem.

- Que queres dizer com isso?

- Em 1942, Outono de 1943, eu estava num campo logo às portas de Bandung - disse Peter Marlowe. - Isso é lá para o cimo das colinas de Java, no centro da ilha. Nessa altura estavam connosco uma data de amboneses e menadoneses e uma porção de javaneses, homens que estavam no exército holandês. Pois bem, o campo era duro para os Javaneses, porque muitos deles eram de Bandung e as suas mulheres e filhos viviam logo ali, do outro lado do arame farpado. Durante muito tempo, eles atravessavam o arame de noite e voltavam ao campo de madrugada. O campo era ligeiramente guardado e, por isso, era possível. No entanto, era muito perigoso para europeus, porque os Javaneses os entregavam aos Japoneses, o que era uma triste sorte. Um dia, os Japoneses emitiram uma ordem do dia pela qual quem quer que fosse apanhado fora do campo seria fuzilado. É claro que os Javaneses pensavam que a ordem se aplicava a todos, excepto a eles. Tinham-lhes dito, em todo o caso, que dentro de poucas semanas todos seriam libertados. Uma manhã, sete deles foram apanhados. Mandaram-nos formar na parada no dia seguinte. Todo o campo. Os sete javaneses foram encostados a um muro e fuzilados. Assim mesmo, em frente de nós. Os sete cadáveres foram enterrados, com honras militares, no sítio em que tombaram. Depois, os Japoneses fizeram um pequeno jardim à volta das suas campas. Plantaram flores e fizeram uma frágil cerca com corda branca à volta de toda a área e uma tabuleta em malaio, japonês e inglês: "Estes homens morreram pelo seu país."

- Estás a brincar!

- Não, não estou. Mas o mais engraçado é que os Japoneses puseram uma guarda de honra na campa. Depois disso, todo o guarda japonês ou todo o oficial japonês que passasse pelo "sepulcro" fazia a continência. Por essa altura, os prisioneiros tinham de se levantar e fazer uma vénia se um simples soldado japonês aparecesse à distância. Se não o fizesse, apanhava uma coronhada na tola.

- Não faz sentido. O jardim e a continência.

- Faz para eles. É a mentalidade oriental. Para eles é tudo lógico. Isso, evidentemente, não é um inferno. De maneira nenhuma!

- É por isso que não gosto deles - disse Peter Marlowe pensativamente. - Tenho medo deles porque não há medida para os julgar. Não reagem como se espera. Nunca.

- Não sei nada disso. Mas sei que sabem o valor de um dólar e que, a maior parte das vezes, se pode confiar neles.

- Queres dizer nos negócios? - E Peter Marlowe riu-se. - Bem, disso não sei. Mas quanto às pessoas em si... Vá outra coisa. Num outro campo em Java (lá andavam sempre a mudar-nos de um lado para outro, não era como em Singapura), era também em Bandung. Havia um guarda japonês, um dos melhores, não nos chateava como a maior parte deles. Pois bem, esse homem, chamávamos-lhe "Risonho", porque estava sempre a sorrir. Pois o Risonho adorava cães. E quando andava pelo campo levava sempre meia dúzia atrás dele. O seu preferido era um cão de pastor, por sinal uma cadela. Um dia, a cadela teve uma ninhada de cachorrinhos, os cães mais -espertos que já vi na minha vida, e o Risonho era o japonês mais feliz do mundo, a ensinar os seus cães, a rir e a brincar com eles. Quando eles já andavam, fez trelas para todos e andava pelo campo com eles a reboque. Um dia andava por ali com eles e um dos cachorritos sentou-se. Sabes como são os cachorros: ficam cansados e sentam-se. Então o Risonho arrastou-o um bocado e depois deu-lhe um bom puxão. O cachorro ganiu, mas fincou as patas.

Peter Marlowe calou-se e fez um cigarro. Depois continuou:

- O Risonho agarrou bem a trela e começou a girar com o cachorro por cima da cabeça, iia ponta da corda. Fê-lo girar para aí uma dúzia de vezes, a rir-se, como se fosse a melhor piada do mundo. Quando o canito, que não parava de ganir, ganhou velocidade, deu-lhe uma volta final e largou a corda. O canito deve ter ido uns cinco metros pelo ar. E quando bateu no chão rebentou como um tomate maduro.

- Filho da mãe!

Um momento depois, Peter Marlowe disse:

- O Risonho foi até junto do cão. Baixou os olhos sobre ele e rebentou em pranto. Um dos nossos camaradas foi buscar uma pá e enterrou o bicho. Durante todo o tempo, o Risonho desfazia-se em pranto. Quando a cova ficou tapada, limpou as lágrimas, deu ao homem um maço de cigarros, insultou-o durante cinco minutos, meteu-lhe a coronha da espingarda na virilha e foi-se embora radiante, com os outros cachorros.

O Rei abanou lentamente a cabeça. -Talvez fosse maluco. Sifilítico.

- Não, o Risonho não era nada disso Os Japoneses parecem agir como crianças, mas têm corpos de homem e força de homem. Apenas olham para as coisas como as crianças. A sua perspectiva é oblíqua, para nós, e distorcida.

- Ouvi dizer que as coisas não estavam boas em Java depois da capitulação - disse o Rei, para que o outro não parasse de falar, pois gastara quase uma hora antes que Peter Marlowe começasse e queria que ele se sentisse como em sua casa.

- De certa maneira. Claro que em Singapura havia mais de cem mil soldados; por isso os Japoneses tinham de ter um certo cuidado. A cadeia de comando ainda existia e uma porção de unidades estavam intactas. Os Japoneses estavam a fazer pressão na corrida para a Austrália e não se importavam muito desde que os prisioneiros de guerra se portassem bem e estivessem organizados em campos. A mesma coisa em Samatra e em Java durante algum tempo. A ideia deles era avançar e tomar a Austrália e depois íamos todos ser para lá mandados como escravos.

- És maluco - disse o Rei.

- Não sou, não. Foi um oficial japonês que mo disse, depois de eu ser apanhado. Mas, quando o avanço deles foi detido na Nova Guiné, eles começaram a limpar as linhas. Em Java não éramos muitos, de modo que eles podiam permitir-se ser duros. Diziam que nós não tínhamos honra, os oficiais, porque nos tínhamos deixado prender. Por isso não queriam considerar-nos prisioneiros de guerra. Raparam-nos o cabelo e proibiram-nos de usar as insígnias de oficial. Eventualmente autorizavam-mos a "tornar-nos de novo" oficiais, embora nunca nos permitissem o cabelo crescido. - Peter Marlowe sorriu. - E tu, como foi que chegaste aqui?

- A trapalhada do costume. Eu estava nas Filipinas. Tivemos de sair de lá à pressa. Como o primeiro navio que conseguimos apanhar vinha para cá, tomámo-lo. Imaginávamos que Singapura seria tão segura como Fort Knox. Na altura em que chegámos aqui, os Japoneses estavam quase em Johore. Houve um pânico de último minuto e toda a malta tomou o último barco que partia. Quanto a mim, pensei que era uma má jogada, e por isso fiquei. O barco explodiu no mar. Eu servi-me da cabeça e estou vivo. A maior parte das vezes, só os palermas é que morrem.

- Eu não creio que tivesse tido a sensatez de não ir, se tivesse tido a oportunidade - disse Peter Marlowe.

- Tu tens de olhar pelo número um, Peter. Mais ninguém tem. Peter Marlowe pensou nisto durante muito tempo. Farrapos

de conversas percorriam a noite. Ocasionalmente, uma explosão de cólera. Murmúrios. As constantes nuvens de mosquitos. Lá ao longe havia a chamada melancólica das sereias de navio para navio. As palmeiras recortavam-se no céu escuro, e restolhavam. Uma folha seca de palmeira caiu do cimo e bateu no duro chão da selva com estrondo.

Peter Marlowe quebrou o silêncio.

- Esse teu amigo... sempre vai à aldeia? O Rei olhou Peter Marlowe nos olhos.

- Gostavas de ir? - perguntou baixinho. - Da próxima vez que eu vá?

Um sorriso frouxo torceu os lábios de Peter Marlowe.

- Gostava...

Um mosquito zumbiu ao ouvido do Rei. com súbito crescendo. Ele sacudiu-o, encontrou a lâmpada de bolso e procurou no interior da sua rede. Por fim, o mosquito pousou na cortina. Habilmente, o Rei esmagouo. Depois verificou se não havia buracos na rede e deitou-se para trás outra vez.

Num momento varreu todos os pensamentos do seu espírito. O sono invadiu o Rei rápida e pacificamente.

Peter Marlowe estava ainda acordado no seu catre, coçando as mordidelas dos percevejos. Demasiadas recordações tinham sido evocadas por aquilo que o Rei dissera...

Lembrou-se do navio que o trouxera, assim como a Mac e a Larkin, de Java, um ano atrás.

Os Japoneses tinham ordenado ao comandante de Bandung, um dos campos de Java, que lhe fornecesse mil homens para uma equipa de trabalho. Esses homens deviam ser mandados para outro campo próximo durante duas semanas, com boa comida -rações dobradas - e cigarros. Depois seriam transferidos para outro lugar. Belas condições de trabalho.

Muitos homens tinham-se oferecido para ir, por causa das duas semanas. Outros foram obrigados. Mac fora como voluntário, assim como Larkin e Peter Marlowe. "Nunca se sabe, rapazes", raciocinara ele, quando o amaldiçoaram. "Se pudermos chegar a uma ilhazinha, bem, o Peter e eu sabemos a língua. Sim, e não pode ser pior que aqui."

E assim decidiram trocar o mal que conheciam pelo mal que não conheciam.

O navio era um barco pequeno, um cargueiro sem carreira certa. Junto da prancha estavam muitos guardas e dois japoneses vestidos de branco e com máscaras. Às costas tinham grandes contentores e nas mãos pulverizadores ligados a esses contentores. Todos os prisioneiros e os seus haveres eram esterilizados com os pulverizadores, contra os micróbios javaneses que pudessem transportar para o navio, limpo.

No pequeno porão da ré havia ratos e piolhos, assim como um espaço de seis metros por outros seis no centro do porão. À volta do porão, do chão ao tecto, havia cinco filas de profundas prateleiras. A altura entre as prateleiras era de cerca de um metro e a sua profundidade era de uns três metros.

Um sargento japonês ensinou aos homens como deviam sentar-se, com as pernas cruzadas. Cinco homens em coluna, depois cinco homens em coluna ao lado deles. Até que todas as prateleiras estivessem atafulhadas.

Quando começaram os protestos de pânico, o sargento japonês disse que era esta a maneira como os soldados japoneses eram transportados de barco e que, se servia para o glorioso exército japonês, tinha de servir para a escumalha branca. Um revólver fez precipitar os primeiros cinco homens, ofegantes, para o claustrófico negrume, e a pressão dos homens que desciam para o porão forçou os outros a entrar em massa para as prateleiras. Estes, por sua vez, eram forçados por outros. Joelhos com joelhos, costas com costas, flanco com flanco. Os que transbordavam da corrente humana -quase um cento- ficavam entorpecidos na pequena área de seis metros por seis, bendizendo a sua sorte por não estarem nas prateleiras. As escotilhas estavam ainda abertas e o sol entrava para o porão.

O sargento conduziu uma segunda coluna, que incluía Mac, Larkin e Peter Marlowe, para o porão da proa, o qual, por sua vez, começava a atulhar-se.

Quando Mac chegou ao asfixiante fundo, perdeu os sentidos. Peter Marlowe e Larkin apanharam-no e, por sobre a confusão, lutaram para o levar de novo para o convés. Um guarda tentou repeli-los. Peter Marlowe barafustou, suplicou e mostrou-lhe o aspecto de Mac. O guarda encolheu os ombros e deixou-os passar, acenando para a popa.

Larkin e Peter Marlowe, à força de súplicas, pragas e empurrões, conseguiram um espaço para o deitar.

- Que havemos de fazer? - perguntou Peter Marlowe a Larkin.

- vou tentar arranjar um médico. A mão de Mac agarrou Larkin.

- Coronel!-Os seus olhos abriram-se por um segundo e ele sussurrou:-Estou bem. Mas tínhamos de sair dali por qualquer forma. Por amor de Deus, mostrem-se atarefados e não se assustem se eu fingir que tenho um ataque.

Assim, eles agarraram-se a Mac, que gemia em delírio e lutava e vomitava a água que lhe chegavam aos lábios. Assim se manteve até que o navio levantou ferro. Agora, até o convés estava cheio de homens.

Não havia espaço suficiente para que todos os homens a bordo se sentassem ao mesmo tempo. Porém, como havia que fazer bichas

- bichas para a água, bichas para o arroz, bichas para as latrinas -, cada homem podia sentar-se parte do tempo.

Nessa noite, uma borrasca fustigou o navio durante seis horas. Os que iam no porão tentaram evitar o vómito e os que iam no convés tentaram evitar as vagas.

O dia seguinte surgiu calmo, sob um céu soalheiro. Um homem foi pela borda fora. Os que iam no convés -homens e guardas observaram-no por muito tempo, enquanto ele se afogava na esteira do navio. Depois disso, mais ninguém caiu ao mar.

No dia seguinte, três homens foram dados às vagas. Alguns guardas japoneses dispararam as suas armas para tornar o funeral mais militar. O serviço foi breve.

A viagem durou quatro dias e cinco noites. Para Mac, Larkin e Peter Marlowe foi uma viagem sem história...

Peter Marlowe estava deitado num colchão encharcado, morto de sono. Mas o seu espírito corria, indómito, dragando terrores do passado e receios do futuro. E recordações que melhor seria não serem lembradas. Não agora, não sozinhas. Recordações dela.

A aurora tingira já o céu quando ele adormeceu, por fim. Mas, mesmo então, o seu sono foi cruel.

Os dias seguiam-se aos dias, numa monotonia de dias.

Foi então que, uma noite, o Rei foi ao hospital do campo procurar Masters. Encontrou-o na varanda de uma das barracas, deitado numa cama molhada de suor, semiconsciente, com os olhos fixos na parede.

- Olá, Masters - disse o Rei, depois de se ter assegurado de que ninguém o ouvia. - Como te sentes?

Masters levantou os olhos, sem o reconhecer.

- Sinto?

- Com certeza.

Passou-se um minuto e Masters resmungou:

- Não sei. - E um pouco de saliva lhe correu pelo queixo.

O Rei tirou a sua caixa de tabaco e encheu a lata vazia que estava numa mesa ao lado da cama.

- Masters - disse o Rei. - Obrigado pela informação.

- Informação?

- Por me dizeres o que vinha escrito no pedaço de jornal. Queria só agradecer-te, dar-te um pouco de tabaco.

Masters fez um esforço para se lembrar.

- Oh, não está certo que um amigo espie um amigo. É miserável! - E morreu.

O dr. Kennedy aproximou-se e puxou delicadamente o cobertor para tapar a cabeça de Masters.

- Seu amigo? - perguntou ele ao Rei, com os seus olhos fatigados, impassíveis, sob um matagal de sobrancelhas.

- De certo modo, meu coronel.

- Teve sorte - disse o doutor. - Acabaram-se-lhe as dores.

- É uma maneira de ver as coisas, doutor - disse o Rei delicadamente, e pegou no tabaco e pô-lo de novo na sua caixa, pois Masters já mão precisava dele. - De que é que ele morreu?

- Falta de espírito - respondeu o médico, bocejando.

Tinha os dentes manchados e sujos, os cabelos secos e sujos e as mãos rosadas e impecáveis.

- Quer dizer vontade de viver?

- É uma maneira de encarar o problema. - E o médico levantou para o Rei uns olhos ameaçadores. - Isso é uma coisa de que você não vai morrer, não é verdade?

- Acho que tem toda a razão, Sir.

- Que é que o faz tão invencível? - perguntou o dr. Kennedy, detestando aquele corpo enorme, que respirava saúde e força.

- Não estou a compreender, Sir.

- Por que está você de tão boa saúde e os outros não?

- Só porque tenho sorte, Sir - disse o Rei.

Começou a afastar-se. Mas o médico agarrou-o pela camisa.

- Não pode ser só sorte. Não pode. Talvez você seja um diabo, mandado para nos tentar ainda mais! Você é um vampiro, um escroque, um gatuno...

- Ouça bem. Eu nunca roubei nem burlei ninguém na minha vida e não admito isso a ninguém.

- Então diga-me como faz? Como? É tudo o que quero saber. Pois não vê? Você é a resposta para todos nós. Você ou é bom ou mau, e eu quero saber a resposta.

- O senhor é maluco - disse o Rei, sacudindo o braço.

- Você pode ajudar-nos...

- Ajude-se a si mesmo. Eu preocupo-me comigo. Preocupe-se o senhor consigo.

O Rei notou como o casaco branco do dr. Kennedy lhe pendia do peito descarnado.

- Tome - disse, dando-lhe o que restava de um maço de Kooas. - Fume um cigarro. É bom para os nervos, Sir.

Rodou sobre os calcanhares e afastou-se, encolhendo os ombros. Odiava hospitais. Odiava o fedor e a doença e a impotência dos médicos.

O Rei sentia desprezo pela fraqueza. "Aquele médico deve estar com os pés para a cova, o filho da mãe. Um gajo maluco como aquele não vai durar muito. Como o Masters, pobre tipo!" Contudo, talvez Masters não fosse um pobre tipo. Era o Masters e era fraco e, portanto, não prestava. O mundo era uma selva, e os fortes sobreviviam e os fracos tinham de morrer. Éramos nós ou o outro tipo. Está certo. Não há outra maneira.

O dr. Kennedy olhou para os cigarros, bendizendo a sua sorte. Acendeu um. Todo o seu corpo bebeu o sabor da nicotina. Depois foi para a enfermaria, ver Johnny Garstairs, capitão do 1º Regimento de Tanques, que era quase um cadáver.

- Tome - disse ele, dandoLhe um cigarro.

- E então o senhor, dr. Kennedy?

- Eu não fumo. Nunca fumei.

- Tem sorte. - E Johnny tossiu ao engolir uma fumaça e veio-lhe um pouco de sangue com um escarro.

O esforço da tosse contraiu-lhe os intestinos, e um líquido ensanguentado esguichou dele, porque havia muito que os músculos do anus tinham perdido a elasticidade.

- Doutor - disse Johnny -, é capaz de me calçar as botas, por favor? Tenho de me levantar.

O velho olhou a toda a volta. Era difícil ver, porque a luz da enfermaria estava velada.

- Não há botas nenhumas - disse ele, piscando os seus olhos de míope para Johnny, que se sentava na beira da cama.

- Ah! É, então, assim!

- Que espécie de botas eram?

Um ténue fio de lágrimas correu dos olhos de Johnny.

- Conservei essas botas em bom estado. Essas botas serviram-me toda uma vida. A única coisa que me restava.

- Outro cigarro?

- Estou a acabar este. Obrigado.

Johnny deitou-se para trás na sua própria imundície.

- Ê pena, as minhas botas - disse.

O dr. Kennedy suspirou, tirou as suas próprias botas, sem atacadores, e calçou-as nos pés de Johnny.

- Tenho outro par - mentiu, pondo-se em pé descalço, com uma dor nas costas.

Johnny mexeu os dedos dos pés, satisfeito por sentir a aspereza do couro. Tentou olhar para os pés, mas o esforço era excessivo.

- Vou morrer - disse.

- Vais - respondeu o médico.

Tempo houvera - houvera? - em que ele teria arvorado o seu melhor ar "para moribundo". Nenhuma razão para isso agora.

- Simples e claro, não é, doutor? Vinte e dois anos e nada. Do nada para o nada.

Uma corrente de ar trouxe uma promessa de aurora à enfermaria.

- Obrigado por me emprestar as suas botas - disse Johnny. Uma coisa que sempre prometi a mim próprio: um homem tem de ter botas.

Morreu.

O dr. Kennedy tirou as botas a Johnmy e calçou-as nos seus próprios pés.

- Ordenança! - chamou, avistando uma na varanda.

- Meu coronel? - respondeu Steven, aproximando-se com um balde de diarreia na mão.

- Chama a brigada dos mortos para levar este. Ah! E podes também levar a cama do sargento Masters.

- O que não posso é fazer tudo, meu coronel - disse Steven, pousando o balde. - Tenho de arranjar três arrastadeiras para as camas nºs 10, 23 e 47. E o pobre coronel Hutton está tão desconfortável! Tenho de lhe mudar a roupa.-Steven baixou os olhos para a cama e abanou a cabeça. - Só mortos...

- É assim, Steven. O menos que podemos fazer é enterrá-los. E quanto mais depressa, melhor.

- Creio que sim. Pobres rapazes!

Steven suspirou e limpou delicadamente o suor da testa com um lenço limpo. Depois, meteu de novo o lenço no bolso da sua bata branca, pegou no balde, cambaleou um pouco sob o seu peso e caminhou para a porta.

O dr. Kennedy desprezava-o, desprezava o seu cabelo, preto e oleoso, desprezava os seus sovacos, rapados, as pernas, rapadas. Ao mesmo tempo, não podia censurá-lo. A homossexualidade era uma maneira de sobreviver. Os homens lutavam por causa de Steven, dividiam com ele as rações, davam-lhe cigarros - tudo pelo uso temporário do seu corpo. "E, afinal", perguntou o doutor a si próprio, "que há nisso de tão repugnante? Quando se pensa em sexo normal, bem, clinicamente, é igualmente repugnante."

A sua rugosa mão coçou o escroto, distraidamente, pois hoje a comichão era grande. Involuntariamente, tocou no sexo. Estava insensível. Cartilagem.

Lembrou-se de que havia meses que não tinha uma erecção. Bem, pensou, é apenas da dieta pouco nutritiva. Nada de preocupante. Logo que saiamos daqui e tenhamos comida normal, tudo estará bem. Um homem de 43 anos é ainda um homem.

Steven voltou com a brigada dos cadáveres. O corpo foi posto numa padiola e levado. Steven mudou o único cobertor. Dentro de um momento chegou outra padiola com outro doente, que foi ajudado a entrar para a cama.

Automaticamente, o dr. Kennedy tomou-lhe o pulso.

- A febre vai baixar amanhã - disse ele. - É apenas malária.

- É, doutor. - Steven levantou os olhos com um ar importante. - Dou-lhe um pouco de quinino?

- Claro que lhe dás quinino!

- Desculpe, meu coronel - disse Steven com azedume, abanando a cabeça. - Em princípio só os médicos autorizam remédios.

- Pois dá-lhe quinino e, por amor de Deus, Steven, pára de tentar fingir que és uma pobre mulher.

- Bem! - E as pulseiras de Steven tilintaram quando ele se voltou, empertigando-se. - É injusto implicar com uma pessoa quando ela está a tentar fazer tudo pelo melhor.

O dr. Kennedy teria caído sobre Steven, mas nessa altura o dr. Prudhomme entrou na enfermaria.

- "noite, coronel!

- Oh, olá! - O dr. Kennedy voltou-se para ele, grato, compreendendo que teria sido estúpido atacar Steven. - Tudo bem?

- Tudo bem. Pode dar-me um momento?

- com certeza.

Prudhomme era um homem baixo e sereno, de peito saliente, com as mãos manchadas por anos de contacto com produtos químicos. A sua voz era profunda e agradável.

- Há dois apêndices para amanhã. Um acaba de chegar às emergências.

- Muito bem. vou vê-los antes de sair.

- Quer operar? - E Prudhomme olhou para o extremo oposto da enfermaria, onde Steven segurava uma bacia para um homem vomitar.

- Quero. Dê-me alguma coisa para fazer - disse Kennedy, e espreitou para o canto escuro.

Na meia luz da lâmpada velada distinguiam-se as pernas esguias de Steven, assim como as suas nádegas, que lutavam contra as calças, apertadas e curtas. Sentindo-se examinado, Steven levantou os olhos e sorriu.

- Boa noite, dr. Prudhomme.

- Olá, Steven - respondeu Prudhomme gentilmente.

O dr. Kennedy viu, com espanto, que Prudhomme estava ainda a olhar para Steven.

Prudhomme voltou-se de novo para Kennedy e notou como ele estava chocado e enojado.

- Ah, a propósito, acabei a autópsia daquele homem que foi encontrado mo buraco da mina. Morte por asfixia.

- Se se encontra um homem metido em mais de metade num buraco de mina, é mais que provável que tenha morrido por asfixia.

- É verdade, doutor - disse Prudhomme distraidamiente. - Escrevi no atestado: "Suicídio em momento de perturbação psíquica."

- Identificaram o corpo?

- Claro. Esta tarde. Era um australiano. Um homem chamado Gurble.

O dr. Kennedy esfregou a cara.

- Não seria eu que me mataria assina. Horrível! Prudhomme fez que sim com a cabeça e os seus olhos pousaram

de novo em Steven.

- Concordo inteiramente. Claro que podia ter sido posto num buraco de mina.

- Havia marcas no corpo?

- Nenhumas.

O dr. Kennedy tentou parar ao anotar a maneira como Prudhomme olhava para Steven.

- Bem, seja assassínio ou suicídio, é uma maneira horrível. Horrível. Creio que nunca saberemos o que foi.

- Fizeram um pequeno inquérito esta tarde, logo que souberam quem era. Aparentemente, há alguns dias, este homem foi apanhado a roubar algumas rações às barracas.

- Ah! Compreendo.

- Por outras palavras, parece que o mereceu, não é isso?

- Creio que sim. - E o dr. Kennedy queria continuar a conversa, porque se sentia só, mas viu que Prudhomme estava apenas interessado em Steven. - bom - disse. - É melhor que eu vá fazer as minhas rondas. Quer vir daí?

- Obrigado. Mas tenho de preparar os doentes para a operação. Quando o dr. Kennedy ia a sair da enfermaria, viu, pelo rabo

do olho, Steven passar por Prudhomme e viu Prudhomme fazer-lhe uma carícia. Ouviu Steven rir-se e viu-o retribuir a carícia sem rebuço e com intimidade.

Tanta obscenidade ultrapassava-o e sabia muito bem que devia voltar à enfermaria, mandar separá-los e submetê-los a conselho de guerra. Mas estava muito cansado e foi apenas até ao extremo da varanda.

O ar estava calmo, a noite escura e sem sussurro de folhas, a Lua como um arco gigantesco suspenso das vigas do céu. Ainda passavam homens no carreiro, mas todos silenciosos. Tudo esperava a chegada da aurora.

Kennedy levantou os olhos para as estrelas, tentando ler nelas uma resposta à sua constante pergunta: "Quando, ó meu Deus, quando acabará este infernal pesadelo?"

Mas não houve resposta.

Peter Marlowe estava na latrina dos oficiais, gozando a beleza de uma falsa madrugada e a beleza de um movimento satisfeito dos intestinos. A primeira era frequente, a segunda era rara.

Escolhia sempre a fila de trás quando vinha às latrinas, em parte porque detestava aliviar-se ao ar livre, em parte porque detestava ter alguém atrás dele e em parte porque era divertido observar os outros.

Os buracos tinham sete metros e meio de fundo e sessenta centímetros de diâmetro e estavam a um metro e oitenta uns dos outros. Vinte filas ao longo do declive, a trinta por fila. Cada um tinha uma cobertura de madeira e uma tampa solta.

Ao centro desta área estava um trono isolado feito de madeira. Era a prerrogativa dos coronéis. Era uma monolatrina convencional. Todos os outros tinham de se agachar, no estilo nativo, com um pé de cada lado do buraco. Não havia divisórias de qualquer espécie e toda a área estava aberta ao céu e ao campo.

Sentado no trono, em isolado esplendor, estava o coronel Samson. Estava nu, a não ser na cabeça, coberta por um chapéu de coolie esfarrapado, que era o seu luxo. com excepção para quando estava a rapar a cabeça ou a esfregá-la com óleo de coco ou algum unguento milagroso para fazer crescer o cabelo, estava sempre com ele. Apanhara qualquer doença desconhecida e todo o cabelo lhe caíra um dia, incluindo pestanas e sobrancelhas. O resto dele era peludo como num macaco.

Outros homens estavam espalhados pela área, cada um tão distante dos outros quanto possível. Cada -um com uma garrafa de água. Cada um a sacudir as moscas que enxameavam o local.

Peter Marlowe mais uma vez repetiu para si próprio que um homem nu e agachado a aliviar-se era a mais feia criatura do mundo -talvez a mais patética.

Por enquanto havia apenas a promessa de um dia, uma névoa luminosa, dedos de ouro que se estendiam pelo céu de veludo. A terra estava fria, pois a chuva viera de noite e a brisa era fresca e delicada, com sal do mar e frangipana.

"Sim", pensou Peter Marlowe, com deleite, "vai estar um belo dia."

Quando acabou, inclinou a garrafa de água, enquanto estava ainda agachado, e lavou os vestígios de fezes, servindo-se habilmente dos dedos da mão esquerda. Sempre a esquerda. A direita era para comer. Os nativos não têm quaisquer palavras para mão esquerda ou mão direita, mas apenas mão para estrumar e mão para comer. E todos os homens usavam água em vez de papel, pois qualquer papel era demasiado valioso. Excepto o Rei. Este dispunha de autêntico papel higiénico. Tinha dado um bocado a Peter Marlowe e este, por sua vez, compartilhara-o com a sua unidade, pois faziam-se com ele excelentes mortalhas.

Peter Marlowe pôs-se em pé, voltou a atar o seu sarong e dirigiu-se de novo à sua barraca, antegozando o pequemo-almoço. Seria papa de arroz e chá fraco, como sempre, mas hoje a unidade tinha também um coco - outro presente do Rei.

Nos poucos dias em que conhecera o Rei, uma rara amizade se criara entre eles. Os laços eram em parte comida, em parte tabaco e em parte auxílio - o Rei tinha curado as úlceras tropicais dos tornozelos de Mac com salvarsan. Curou em dois dias aquilo que supurara durante dois anos. Peter Marlowe sabia também que, embora todos três abençoassem a riqueza do Rei e a sua ajuda, a sua simpatia era, sobretudo, devida ao próprio homem. Quando se estava com ele, sentia-se que ele exalava força e confiança. Até os outros se sentiam melhor e mais fortes, porque pareciam ser capazes de beber da magia que o rodeava.

- É um médico bruxo-, disse alto Peter Marlowe, involuntariamente.

Na maior parte, os oficiais da barraca nº 16 estavam ainda a dormir ou deitados nos seus catres à espera do pequeno-almoço quando ele entrou. Tirou o coco de debaixo do travesseiro e pegou no raspador e na machadinha. Depois saiu e sentou-se num banco.

Um golpe hábil com a machadinha abriu o coco em duas metades perfeitas e ele deitou o suco para uma marmita. Depois começou a raspar cuidadosamente metade do coco. Fragmentos de polpa branca começaram a cair no leite.

A outra metade do coco raspou-a para uma vazilha diferente. Pôs a polpa do coco num pedaço de rede de mosquiteiro e espremeu cuidadosamente o suco para uma chávena. Hoje era a vez de Mac juntar o suco ao seu arroz do pequeno-almoço. Mac pensou no manjar maravilhoso que era o miolo de coco. Rico em proteínas e perfeitamente insípido. Pusessem-se-lhe um dente de alho, porém, e era inteiramente alho. Um quarto de sardinha e tudo se tornava sardinha; e uma sardinha inteira daria sabor a muitas tigelas de arroz.

De repente sentiu-se esfomeado pelo coco. Tão esfomeado que não deu por que os guardas se aproximassem. Só sentiu a sua presença quando já estavam sinistramente à porta da barraca e todos os homens estavam de pé.

Yoshima, o oficial japonês, quebrou o silêncio:

- Há um rádio nesta barraca.

Yoshima esperou durante cinco minutos que alguém falasse. Acendeu um cigarro, e o som do fósforo foi como um trovão.

Então, a primeira reacção de Daven foi : "Oh, meu Deus! Quem foi o pulha que nos denunciou ou que escorregou? Peter Marlowe? Cox? Spence? Os coronéis?" A sua segunda reacção foi o terror terror incongruentemente misturado com alívio, pois este dia tinha de chegar.

O pavor de Peter Marlowe foi igualmente sufocante. Quem falhara? Cox? Os coronéis? Que diabo, até Mac e Larkin ignoram que eu sei! Santo Deus! Utram Road!

Cox ficou petrificado. Encostou-se ao beliche, olhando de olhos oblíquos para olhos oblíquos, e só a força das traves o impediu de cair.

O tenente-coronel Sellars era o encarregado da barraca, e as suas calças ficaram encolhidas de medo quando ele entrou na barraca com o seu ajudante, o capitão Forest.

Fez a continência, com o seu rosto de barbela enrubescido e suado.

- Bom dia, capitão Yoshima...

- Não é um bom dia. Há aqui um rádio. Um rádio é contra as ordens do Exército Imperial Japonês.

Yoshima era baixo, frágil e muito apurado. Uma espada de samurai pendia do seu espesso cinturão. As suas botas, altas, brilhavam como espelhos.

- Não sei nada disso. Nada. Absolutamente nada - esbravejou Sellars.- Você aí!-Um dedo paralisado apontava para Daven.- Sabe alguma coisa a esse respeito?

- Não, Sir.

Sellars deu uma volta e enfrentou a barraca.

- Onde está o rádio? Silêncio.

- Onde está o rádio? - Estava quase histérico. - Onde está o rádio? Ordeno-vos que o entreguem imediatamente. Vocês sabem que somos todos responsáveis pelo cumprimento das ordens do Exército Imperial.

Silêncio.

- vou mandá-los todos a conselho de guerra - gritou, com as bochechas a tremer. - Vão ter o que merecem. Você aí, o seu nome?

- Tenente aviador Marlowe, Sir.

- Onde está o rádio?

- Não sei, Sir. Então, Sellars viu Grey.

- Grey! Você é o preboste-geral. Se há aqui um rádio, é da sua responsabilidade e da de mais ninguém. Devia ter comunicado às autoridades. vou levá-lo a conselho de guerra e no seu currículo...

- Não tenho conhecimento de nenhum rádio, Sir.

- Pois, se não tem, devia ter - gritou-lhe Sellars, de rosto vermelho e desfigurado. Voltou-se para o canto da barraca onde dormiam os cinco oficiais americanos. - Brough! Que sabe você sobre isto?

- Nada. E sou capitão Brough, meu coronel!

- Não acredito em si. É o género de sarilhos que vocês, os Americanos, nos causam. Não passam de uma canalha indisciplinada...

- Ignoro esse insulto, vindo de quem vem!

- Não me fale assim. Diga "Sir" e ponha-se em sentido.

- Sou o oficial americano mais antigo e não recebo insultos, nem de si nem de ninguém. Não há nenhum rádio no contingente americano de que eu tenha conhecimento. Não há nenhum rádio nesta barraca de que eu tenha conhecimento. E, se houvesse, é certo como o inferno que eu não ia dizer-lho, meu coronel.

Sellars voltou-se e ofegou até ao centro da barraca.

- Nesse caso, vamos revistar a barraca. Cada um junto da sua cama! Deus se amerceie do homem que o tem. Encarregar-me-ei pessoalmente de que seja punido até ao limite da lei. Cambada de porcos sujos, indisciplinados ...

- Cale-se, Sellars.

Todos se perfilaram quando o coronel Smedly-Taylor entrou na barraca.

- Há aqui um rádio e eu estava a tentar...

- Cale-se.

O rosto bem conservado de Smedly-Taylor estava tenso quando ele avançou para Yoshima, que estivera a observar Sellars com espanto e desprezo.

- Que se passa, capitão? - perguntou ele, sabendo muito bem o que se passava.

- Há um rádio nesta barraca. - Então, Yoshima acrescentou com um sorrisinho trocista: - Segundo a Convenção de Genebra, os prisioneiros de guerra...

- Conheço o código ético perfeitamente bem - disse SmedlyTaylor, mantendo os olhos afastados da travessa de oito por oito. - Se acredita que há aqui um rádio, faça uma busca. Se sabe onde ele está, por favor, leve-o e acabamos com isto. Tenho hoje muito que fazer.

- O seu trabalho é fazer -respeitar as leis...

-O meu trabalho é fazer respeitar as leis civilizadas. Se querem invocar as leis, comecem por respeitá-las. Dêem-nos a comida e os remédios a que temos direito.

- Receio que um dia, coronel, o senhor vá longe de mais.

- Um dia estarei morto. Talvez morra de apoplexia ao tentar fazer cumprir leis ridículas impostas por administradores incompetentes.

- Comunicarei a sua impertinência ao general Shima.

- Por quem é. Aproveite para lhe perguntar quem deu a ordem para que cada homem do campo apanhasse vinte moscas por dia, que devem ser reunidas, contadas e entregues no seu gabinete todos os dias por mim, pessoalmente.

- Os senhores oficiais superiores estão sempre a gemer por causa da percentagem de mortes pela disenteria. As moscas propagam a disenteria...

- O senhor não precisa de me lembrar as moscas nem a taxa de mortalidade - disse Smedly-Taylor rudemente. - Dêem-nos medicamentos e autorização para reforçar a higiene nas áreas circundantes e teremos a ilha de Singapura dominada.

- Os prisioneiros não têm o direito...

-A vossa taxa de disenteria é antieconómica. A vossa taxa de malária é alta. Antes de vocês terem vindo para cá, em Singapura não havia malária.

- Talvez. Mas mós conquistámos-vos aos milhares e capturámos-vos aos milhares. Nenhum homem de honra permitiria que o capturassem. Vocês são todos animais e deviam ser tratados como animais.

- Parece que foram feitos no Pacífico alguns prisioneiros japoneses.

- Onde é que obteve essa informação?

- Coisas que correm, capitão Yoshima. Sabe como é. Obviamente incorrectas. Como é incorrecto que as esquadras japonesas já não estão nos mares, ou que o Japão está a ser bombardeado, ou que os Americanos tomaram Guadalcanal, Guam e Rabaul e Okinawa e estão agora inclinados para um ataque ao território japonês...

- Mentiras! - A mão de Yoshima estava agora no punho da sua espada de samurai e ele puxou-a uma polegada da bainha. - Mentiras! O Exército Imperial Japonês está a ganhar a guerra e em breve terá dominado a Austrália e a América. A Nova Guiné está nas nossas mãos e uma esquadra japonesa está neste momento ao largo de Sidney.

- Claro.

Smedly-Taylor voltou as costas a Yoshima e olhou para baixo, a todo o comprimento da barraca. Rostos brancos o fitaram.

- Todos lá para fora, por favor - disse ele calmamente. A ordem foi silenciosamente obedecida.

Quando a barraca ficou vazia, voltou-se para Yoshima:

- Queira fazer a sua busca.

- E se eu encontrar o rádio?

- O assunto está nas mãos de Deus.

Subitamente, Smedly-Taylor sentiu o peso dos seus 54 anos. Tremeu perante a responsabilidade do cargo, porquanto, embora se sentisse feliz por servir e contente por estar aqui em momento de necessidade e também por cumprir o seu dever, agora tinha de descobrir o traidor. Quando encontrasse o traidor teria de o punir. Esse homem merecia morrer, assim como Daven morreria se o rádio fosse descoberto. "Prouvesse a Deus que não o fosse", pensou desesperadamente, "pois é o nosso único elo com a saúde mental. Se há Deus no Céu, Deus queira que não seja encontrado. Por favor!"

Mas Smedly-Taylor sabia que Yoshima tinha razão numa coisa. Ele teria tido a coragem de morrer como um soldado - no campo de batalha ou na fuga. Vivo, devorava-o o cancro da memória, a lembrança de que a ambição, o poder e a cobiça tinham sido a causa do assalto do Oriente e de centenas de milhares de mortes inúteis.

"Mas então, se eu tivesse morrido", pensou, "que seria da minha querida Maisie, do meu querido John, o meu filho lanceiro, de Percy, o meu filho da Força Aérea, e de Trudy, casada tão nova, grávida tão nova e viúva tão nova? Que seria deles? Nunca mais os ver, nem senti-los, nunca mais sentir o calor do lar!

"O assunto está nas mãos de Deus", pensou de novo, mas, como ele próprio, as palavras eram velhas e muito tristes.

Yoshima disparou ordens aos quatro guardas. Estes puxaram os catres dos cantos da barraca e conseguiram, assim, um espaço livre. Depois, puxaram a cama de Daven para esse espaço livre. Yoshima foi para o canto e começou a examinar as travessas, o tecto de colmo e as grosseiras tábuas que estavam por baixo. A sua busca foi minuciosa, mas Smedly-Taylor compreendeu subitamente que era apenas simulação, que o esconderijo era conhecido.

Lembrou-se da noite, meses atrás, em que tinham vindo ter com ele. "Está sobre as vossas cabeças", dissera ele. "Se forem apanhados, são apanhados e não se fala mais nisso. Não posso fazer nada para vos ajudar: nada." Chamara à parte Daven e Cox e dissera-lhes calmamente: "Se o rádio for descoberto, tentem não implicar os outros. Devem tentar durante algum tempo. Depois devem dizer que eu autorizei esse rádio. Que eu vos ordenei que o fizessem." Depois mandou-os embora, abençoou-os à sua maneira e desejou-lhes boa sorte. Agora, o azar chegava-lhes às orelhas.

Esperou impacientemente que Yoshima começasse a trabalhar na travessa, horrorizado por aquela agonia do rato e do gato. Sentia o desespero dos homens lá fora. Mas nada mais podia fazer, além de esperar.

Por fim, Yoshima também se cansou do jogo. O fedor da barraca incomodava-o. Dirigiu-se à cama e fez uma inspecção superficial, para inglês ver. Depois estudou a travessa de oito por oito. Mas os seus olhos não deram pelos cortes. Tomando um ar ameaçador, examinou-a mais de perto, manipulando vigorosamente a madeira com os seus sensíveis dedos. Contudo, não conseguiu encontrá-los.

A sua primeira conclusão foi de que fora mal informado. Mas não podia acreditar nisso, porque o informador ainda não fora pago.

Resmungou uma ordem e um guarda coreano desmontou a sua baioneta e entregou-lha, de cabo para a frente.

Yoshima bateu na travessa, apurando o ouvido ao som de oco. Ah! Agora encontrara! Bateu de novo. De novo o som de oco. Não conseguiu, porém, encontrar as fendas. Irado, mergulhou a baioneta na madeira.

A tampa soltou-se.

- Ah!

Yoshima sentia-se orgulhoso por ter encontrado o rádio. O general la ficar satisfeito. Bastante satisfeito, talvez, para lhe atribuir uma Unidade de combate.

Smedly-Taylor avançou aterrado pelo engenho do esconderijo e pela paciência do homem que o concebera. "Tenho de recomendar o Daven", pensou. "Isto excede o cumprimento do dever. Mas recomendá-lo para quê?"

- A quem partence esta cama?

- Smedly.Taylor fez a mesma fita de fingir que não se lembrava e de, por fim descobrir.

Yoshima ficou muito penalizado, mas muito penalizado, por Daven ter só uma perna.

- Quer um cigarro? - perguntou, oferecendo o maço de Kooas.

- Muito obrigado. - e Daven tirou o cigarro e aeitou o lume, mas não provou o fumo.

-Qual é o seu nome? - perguntou Yoshima cortesmente.

- Capitão Daven, de infantaria.

- Como perdeu a sua perna, capitão Daven?

- Eu... Foi-me arrancada por uma mina. Em Johore.

- Foi o senhor que montou o rádio?

- Fui.

Semdly-Taylor ignorou o seu próprio receio. -Fui eu que ordenei ao capitão Daven que o fizesse. A responsabilidade é minha. Ele cumpriu as minhas ordens. Yoshima olhou para Daven. - É verdade isto?

- Não.

- Quem mais sabe do rádio? - Ninguém. Foi minha a ideia e fui eu que o fiz. Sozinho.

- Sente-se, por favor, capitão Daven. - e Yoshima acenou com a cabeça na direcção de Cox, que soluçava de terror.

- Como é que ele se chama?

- Capitão Cox -disse Daven.

- Olhe para ele. Repugnante. Daven tirou uma fumaça.

- Estou tão receoso como ele.

- O senhor domina-se. Tem coragem. Tenho mais medo que ele. Daven coxeou laboriosamente em direcção ao Cox e sentou-se penosamente ao lado dele. - Tudo bem, Cox meu velho. Tudo bem - disse compassivamente, pondo-lhe a mão no ombro. - Tudo bem. - Depois olhou para Yoshima. - Cox ganhou a Cruz de Guerra em Dunquerrque, aos 20 anos. Agora é outro homem, construído por vocês, filhos da mãe, ao longo de três anos. Yoshima reprimiu um impulso de atacar Daven. Perante um homem, mesmo um inimigo, havia um código. Voltou-se para Smedly-Taylor e ordenou-lhe que fosse buscar os seis homens das camas mais próximas de Daven e que mantivesse o resto em parada, sob vigilância, até nova ordem.

Os seis homens puseram-se em frente de Yoshima. Só Spence tinha conhecimento do rádio, mas, como todos os outros, negou o conhecimento.

- Peguem na cama e sigam-me - ordenou Yoshima.

Quando Daven tacteou o chão à procura das suas muletas, Yoshima ajudou-o a pôr-se em pé.

- Muito obrigado - disse Daven.

- Quer outro cigarro?

- Não, muito obrigado. Yoshima hesitou.

- Teria muita honra em que aceitasse o maço.

Daven encolheu os ombros e pegou nele, depois coxeou para o seu canto e estendeu a mão para a sua perna de ferro.

Yoshima proferiu uma ordem e um dos guardas coreanos apanhou a perna e ajudou Daven a sentar-se.

Os seus dedos estavam firmes quando afivelou a perna e depois pôs-se em pé, apanhou as muletas e fitou-as um momento. Depois atirou-as para um canto da barraca.

Arrastou-se até à cama e olhou para o rádio.

- Tenho muito- orgulho nisto - disse, e fez a continência a Smedly-Taylor e saiu da barraca.

A minúscula procissão deslocou-se através do silêncio de Changi. Yoshima conduzia e adaptava a velocidade da marcha ao progresso de Daven. Ao seu lado ia Smedly-Taylor. Depois ia Cox, banhado de lágrimas e delas esquecido. Os outros dois guardas esperaram com os homens da barraca nº 16.

Esperaram onze horas.

Smedly-Taylor voltou e os seis homens voltaram. Daven e Cox não voltaram. Ficaram na casa da guarda e no dia seguinte iam para a prisão de Utram Road.

Os homens foram mandados dispersar.

Peter Marlowe tinha uma horrível dor de cabeça, provocada pelo sol. Foi aos tropeções até ao bungalow e, depois de um duche, Larkin e Mac massajaram-lhe a cabeça e deram-lhe de comer. Quando acabou, Larkin saiu e foi sentar-se ao lado da estrada de asfalto. Peter Marlowe agachou-se junto à entrada, sem porta, de costas para a sala.

A noite surgia no horizonte. Havia uma imensa solidão em Changi e os homens que passavam para cima e para baixo pareciam, mais que nunca, perdidos.

Mac bocejou.

- Acho que vou para dentro, rapaz. vou deitar-me cedo.

- Está bem, Mac.

Mac arranjou o mosquiteiro à volta da sua cama e prendeu-o debaixo do colchão. Amarrou um lenço à volta da cabeça, depois tirou o cantil de Peter Marlowe da sua capa de feltro e desatarrachou-lhe o fundo falso. Tirou as tampas e as bases do seu próprio cantil e do de Larkin e pô-las cuidadosamente umas por cima das outras. Dentro de cada um dos cantis havia um labirinto de fios, condensador e válvula.

Do cantil do topo tirou cuidadosamente uma ficha macho de seis pernos, com o seu complexo de fios, e adaptou-a cuidadosamente à fêmea do cantil do meio. Então tirou uma ficha de quatro pernos do do meio e adaptou-a ao suporte respectivo do último.

As mãos e os joelhos tremiam-lhe, pois fazer isto à média luz, na posição de deitado e apoiado num cotovelo, ocultando os cantis com o próprio corpo, não era tarefa fácil.

A noite invadia o céu, aumentando o isolamento. Os mosquitos começaram a atacar.

Quando todos os cantis estavam ligados, Mac distendeu-se para tirar a dor das costas e enxugou as mãos, húmidas. Então puxou o auscultador do seu esconderijo, no cantil de cima, e verificou as ligações, para se certificar de que estavam firmes. O fio isolado que ligava à corrente estava também no cantil superior. Desenrolou-o e verificou se as agulhas estavam bem soldadas às pontas do fio. De novo limpou o suor e reverificou rapidamente todas as ligações, pensando, enquanto o fazia, que o rádio ainda parecia tão puro e limpo como quando o acabara secretamente em Java, havia dois anos, enquanto Larkin e Peter Marlowe vigiavam.

Levara seis meses a planear e a construir.

Só a parte inferior da garrafa podia utilizar-se, -pois a parte superior tinha de conter água. Assim, ele tinha de comprimir o rádio em três minúsculas unidades e ainda de meter as unidades em contentores impermeáveis e soldar estes aos cantis.

Todos três tinham transportado os cantis durante dezoito meses. Na previsão de um dia como este.

Mac pôsse de joelhos e ligou duas agulhas aos fios que levavam a luz para o tecto. Então pigarreou.

Peter Marlowe pôs-se em pé e certificou-se de que não estava ninguém perto. Desenroscou rapidamente a lâmpada e ligou o interruptor. Então voltou para a porta e ficou lá de guarda. Viu que Larkin estava no seu posto, do outro lado, e deu o sinal de nada à vista.

Quando Mac o ouviu, aumentou o volume, pegou no auscultador e escutou.

Os segundos cresceram em minutos. Peter voltou-se rapidamente, de súbito assustado, quando ouviu Mac gemer.

- Que há, Mac? - segredou.

Mac pôs a cabeça fora do mosquiteiro, branco como a cal.

- Não funciona. Esta merda não funciona.

 

DOIS dias depois, Max encontrou um rato. Na barraca americana.

- Olha para o filho da mãe - murmurou o Rei. - O maior que já vi na minha vida.

- Meu Deus!-disse Peter Marlowe.- Tem cuidado não te arranque o braço!

Estavam todos à volta do rato, em que Max tinha os olhos fixos, com uma vassoura de bambu na mão. Tex tinha uma pá de basebol e Peter Marlowe outra vassoura. Os outros brandiam paus e facas.

Só o Rei estava desarmado, mas tinha os olhos fixos no rato e estava pronto a dar um salto para o lado. Estivera no seu canto a dar à língua com Peter Marlowe, quando Max deu o primeiro grito, e ele deu um salto como os outros. Foi logo depois do pequeno-almoço.

-Cuidado! - gritou ele, quando previu o súbito salto do rato em busca da liberdade.

Max atirou-lhe uma pancada valente, mas falhou. Outra vassoura apanhou-o de esguelha, deixando-o deitado de costas por um instante. Mas o rato voltou-se logo sobre as patas e correu de novo para o canto.

- Jesus! - disse o Rei. - Julguei que o sacana se raspava desta vez.

O rato tinha quase trinta peludos centímetros de comprimento. A cauda tinha outros trinta centímetros e na base tinha a espessura da parte mais fina de um polegar de homem e não tinha pêlos. Olhos pequeninos como contas giravam para a esquerda e para a direita, em busca de uma fuga. Cabeça que se afunilava num focinho agudo, dentes incisivos grandes, muito grandes. Peso total perto de novecentos gramas. Perverso e muito perigoso.

Max tinha a respiração ofegante do exercício e os olhos no rato.

- Santo Deus! - disse ele. - Odeio ratos. Detesto até olhar para um. Vamos matá-lo. Estás pronto?

- Espera um segundo, Max - disse o Rei. - Não há pressa nenhuma. Agora não pode fugir. Quero ver o que ele faz.

- Que há-de fazer? Vai voltar a fugir, é o que é.

- E nós agarramo-lo. Qual é a pressa? - O Rei voltou a olhar para o rato e riu-se. - Estás lixado, meu filho de puta. Morto.

Quase como se compreendesse, o rato fez uma avançada para o Rei, de dentes arreganhados. Só a saraivada de pancadas e de gritos o fizeram recuar.

- Aquele sacana era capaz de te pôr em farrapos se te pusesse os dentes - disse o Rei. - Nunca pensei que fossem tão rápidos.

- Eh! - disse Tex. - Talvez pudéssemos ficar com ele.

- Que estás para aí a dizer?

- Podíamos ficar com ele. Como mascote. Ou, quando não tivéssemos nada que fazer, podíamos soltá-lo e caçá-lo.

- Ena, Tex! - disse Dino. - Talvez não seja má ideia. Queres tu dizer como íazíamos antigamente com as raposas?

- Isso é uma ideia do caraças - disse o Rei. - Está bem que se mate o filho da mãe. Mas não é preciso torturá-lo, lá por ser um rato. Nunca vos fez nenhum mal.

- Talvez. Mas os ratos são uma merda. Não têm direito a viver.

- Lá isso é que têm - disse o Rei. - São necrófagos, como os micróbios. Se não fossem os ratos, o mundo seria todo uma lixeira.

- O raio que te parta! - tornou Tex. - Os ratos dão cabo das colheitas. Talvez fosse este sacana que roeu o fundo do saco de arroz. Tem a barriga bem grande.

- Tem - disse Max, malévolo. - Os gajos mamaram quase quinze quilos numa noite.

De novo o rato fez uma surtida em busca da liberdade. Rompeu o cerco e correu pela barraca abaixo. Só por sorte foi de novo encurralado. Mais uma vez os homens o cercaram.

- É melhor acabarmos com ele. Da próxima vez, talvez não tenhamos a mesma sorte - ofegou o Rei.

Foi então que ele teve uma súbita inspiração.

- Esperem um momento - disse, enquanto os outros começavam a fazer o cerco.

- Quê?

- Tenho uma ideia. - E para Tex:-Arranja-me um cobertor. Depressa!

Tex correu à cama e arrancou um cobertor.

- Agora - disse o Rei - tu e o Max pegam no cobertor e apanham o rato.

- Ha?!

- Quero-o vivo. Vamos a isto - ladrou o Rei.

- com o meu cobertor? Estás maluco? É o único que tenho!

- Eu arranjo-te outro. Mas apanhem-me o filho da mãe. Olharam todos de boca aberta para o Rei. Então, Tex encolheu os ombros. Ele e Max agarraram no cobertor, servindo-se dele como biombo, e começaram a convergir para o canto. Os outros seguravam as vassouras, para que o rato não se escapasse pelas bordas. Então, Tex e Max deram um súbito mergulho e apanharam o rato nas pregas do cobertor. Os seus dentes e patas lutaram pela liberdade, mas, no rebuliço, Max enrolou o cobertor, que se transformou numa bola. Os homens ficaram excitados e aos gritos com a captura.

- Mantem-no quieto - disse o Rei. - Max, tu segura-lo. E tem cuidado para que não fuja. Tex, liga o fogão. Vamos beber um pouco de café.

- Qual é a tua ideia? - perguntou Peter Marlowe.

- É boa de mais para que se perca, sem mais nem menos. Vamos primeiro tomar o café.

Enquanto tomavam o café, o Rei ficou de pé.

- Muito bem, rapazes. Agora escutem. Temos um rato, não é verdade?

- E depois? - E Miller estava tão -perplexo como os outros.

- E não temos comida, não é?

- com certeza, mas...

- Oh, meu Deus!-exclamou Peter Marlowe, aterrado. - Não estás a sugerir que o comamos?!

- Claro que não - respondeu o Rei, e depois sorriu seraficamente. - Nós não vamos comê-lo. Mas há muito quem queira comprar um pouco de carne...

- Carme de rato? - E os olhos de Byron Jones in queriam sair das órbitas.

- Não estás bom da cabeça. Pensas que alguém compra carne de rato? Claro que não - disse Miller com impaciência.

- Claro que ninguém compra carne de rato, se souber que é de rato. M'as se não souber, hem? - O Rei esperou que as palavras assentassem e depois continuou, calmamente: - Se não dissermos a ninguém? A carne terá o aspecto de outra carne qualquer. Diremos que é de coelho...

- Não há coelhos na Malásia, meu velho - disse Peter Marlowe.

- Bem, pensem noutro animal que haja, mais ou menos do mesmo tamanho.

- Suponho - disse Peter Marlowe, depois de um momento de reflexão - que podíamos chamar-lhe esquilo... ou veado! É isso: veado...

- Por amor de Deus! Um veado é muito maior - exclamou Max, ainda agarrado ao cobertor. - Já matei um, nos Alleghanies...

- Não falo desse tipo de veado. Falo dos rusa tikus. São pequenos, cerca de vinte centímetros de altura, e pesam talvez uns novecentos gramas. Mais ou menos o tamanho do rato. Os nativos consideram-nos

um petisco. - Riu-se. - Rusa tikus, traduzido, quer dizer "rato-veado".

O Rei esfregou as mãos, encantado.

- Muito bem, meu velho. - Olhou em volta da sala. - Venderemos coxas de rusa tikus. E não será mentira.

Todos riram.

- Agora, que já nos rimos, vamos vender o sacana do rato e as sacanas das coxas - disse Max. - O malandro vai fugir daqui a pouco. E diabos me levem se o sacana me morde!

- Nós temos um rato - disse o Rei, ignorando-o. - Tudo o que temos a fazer é descobrir se é macho ou fêmea. Depois arranjamos o contrário. Juntamo-los. Rapidamente, estamos metidos no negócio.

- Negócio? - perguntou Tex.

- Claro. - O Rei olhou em volta, feliz. - Rapazes, estamos metidos num negócio de criação. Vamos fazer uma quinta de ratos. com o caroço que ganharmos, compramos frangos... e os campónios podem comer os tikus. Enquanto ninguém der à língua, é limpinho.

Houve um silêncio aterrado. Depois, Tex disse frouxamente:

- Mas onde vamos guardar os ratos enquanto se criam?

- Na trincheira estreita, onde havia de ser?

- Mas supondo que há um ataque aéreo? Podemos precisar da trincheira.

- Tapamos uma das pontas. O bastante para não deixar sair os ratos. - Os olhos do Rei brilhavam. - Pensem só: cinquenta desses grandes sacanas por semana para vender. Mas é uma mina de ouro! Vocês conhecem o velho dito: parir como ratos...

- Quantas vezes têm eles crias? - perguntou Miller, coçando distraidamente o coiro.

- Não sei. Alguém sabe? - O Rei esperou, mas todos abanaram a cabeça. - Onde raio havemos de ir descobrir os hábitos deles?

- Eu sei - disse Peter Marlowe. - Na aula do Vexley.

- Ha?!

- Na aula do Vexley. Ele ensina botânica, zoologia, essas coisas. Podíamos perguntar-lhe.

Olharam uns para os outros, pensativamente. Depois, de súbito começaram aos vivas. Max quase deixou cair o cobertor, por entre gritos de "olha o ouro, meu grande sacana!", "não o deixes fugir!", "cuidado, Max!".

- Não se aflijam. Tenho aqui o sacana. - E Max calou os apupos e depois acenou a Peter Marlowe.

- Para oficial, você não está mal. Vamos então para a escola.

- Ai, não vais, não - disse o Rei, com vivacidade. - Tens trabalho para fazer.

- E que trabalho?

- Procurar outro rato. Do sexo de que este não for. O Peter e eu vamos colher a informação. Mãos à obra!

Tex e Byron Jones in prepararam a trincheira. Era logo por baixo da barraca, com um metro e oitenta de fundo, um metro e vinte de largo e uns nove metros de comprido.

- Óptimo - disse Tex, excitado. - Espaço para mil desses sacanas!

Levou-lhes poucos minutos a imaginar uma cancela eficiente. Tex foi roubar rede de galinheiro, enquanto Byron Jones in foi roubar madeira. Jones riu para si próprio ao pensar nuns bons pedaços que vira mal guardados; na altura em que Tex voltou, já ele tinha a divisória feita. Os pregos vieram do telhado da barraca, o martelo tinha também sido "pedido emprestado" a um mecânico descuidado de uma garagem, meses atrás, juntamente com chaves inglesas, chaves de parafusos e uma porção de coisas úteis.

Logo que a cancela ficou colocada, Tex foi chamar o Rei.

- Bem - disse este, ao inspeccioná-la. - Muito bem.

- Raios me partam se sei como fazes isso! - disse Peter Marlowe. - Trabalhas muito depressa.

- Quando há alguma coisa a fazer, faz-se. É o estilo americano. E o Rei fez sinal a Tex para que chamasse Max.

Max rastejou por baixo da barraca para ir ter com eles. Deitou cuidadosamente o rato na sua secção. O rato rodopiou e tentou desesperadamente fugir. Como não encontrou nenhuma saída, refugiou-se num canto e chiou-lhes violentamente.

- Parece de boa saúde - sorriu o Rei.

- Pois é. Temos de lhe dar um nome - disse Tex. -É fácil: Adão.

- Pois sim, mas se for uma fêmea?

- Então será Eva. - E o Rei saiu a rastejar de debaixo da barraca.

- Vem daí, Peter, vamos a isto.

A aula do chefe de esquadrão Vexley começara já quando, por fim, o descobriram.

- Que há? - disse Vexley admirado, quando viu o Rei e um jovem oficial, ao sol, junto da barraca, a olhar para ele.

- Nós pensámos...-começou Peter Marlowe, semiconscientenente - pensámos que podíamos... bem... entrar para a sua aula. Se, é claro, não transtornarmos - acrescentou rapidamente.

- Entrar para a aula? - Vexley estava confundido.

Era um homem triste, com um só olho, uma cara de pergaminho esticado, marcada por manchas e cicatrizes das chamas do seu último bombardeiro. A sua aula tinha apenas quatro alunos e eram idiotas que não tinham qualquer interesse pela sua disciplina. Ele sabia que apenas continuava a aula como uma consolação para a indecisão; era mais fácil fingir que ela era um êxito do que parar. Ao princípio fora entusiasta, mas agora sabia que era apenas um fingimento. E, se acabasse a aula, não teria qualquer objectivo na vida.

Muito tempo atrás, o campo inaugurara uma universidade. A Universidade de Changi. Organizaram-se aulas. O chefe ordenara-o. "É bom para as tropas", dissera. "Dêem-lhes qualquer coisa para fazer. Façam-nas melhorar. Obriguem-nas a estar ocupadas e não se meterão em sarilhos."

Havia cursos de línguas, de arte e de engenharia, porque entre os primeiros cem mil homens havia pelo menos um homem que conhecia qualquer disciplina.

O conhecimento do mundo. Uma grande oportunidade. Horizontes alargados. Aprender uma profissão. Preparar-se para a utopia que viria, uma vez acabada a maldita guerra e quando as coisas voltassem a ser normais. E a universidade seria ateniense. Nada de salas de aula. Apenas um professor que encontrava um lugar à sombra de uma árvore e juntava um grupo de alunos à sua volta.

Mas os prisioneiros de Changi eram apenas homens normais que se sentavam sobre os traseiros e diziam: "Amanhã vou entrar para uma aula." Ou entravam e, quando descobriam que o conhecimento é difícil de alcançar, faltavam a uma aula, depois a outra, e diziam: "Amanhã vou recomeçar. Amanhã vou começar a ser o que quero ser depois. Não devo perder tempo. Amanhã vou realmente recomeçar."

Mas em Changi, como em qualquer outra parte, só há o hoje.

- Querem realmente entrar para a minha aula? - repetiu Vexley incredulamente.

- Tem a certeza de que não lhe vamos causar problemas, Sir? perguntou o Rei cordialmente.

Vexley levantou-se com interesse crescente e arranjou lugar para eles à sombra.

Estava encantado por ver sangue novo. E o Rei! Meu Deus! Que conquista! O Rei na sua aula! Talvez quisesse uns cigarros...

- Encantado, meu rapaz, encantado. - Apertou a mão que o Rei lhe estendia muito cordialmente. - Comandante de esquadrão Vexley.

- Muito prazer, Sir.

-Tenente aviador Marlowe - disse Peter Marlowe, quando também lhe apertou a mão e se sentou à sombra.

Vexley esperou nervosamente que eles se sentassem e, distraidamente, carregava com o polegar nas costas da mão, contando os segundos, até que a depressão nas costas da mão lentamente desaparecia. A pelagra tinha as suas compensações, pensava ele. E, por pensar em pele e em osso, lembrou-se de baleias e o olhinho luziu-lhe.

- Bem, eu ia hoje falar de baleias. Vocês sabem alguma coisa sobre baleias? Ah...! -exclamou extatícamente, quando o Rei puxou de um maço de Kooas e lhe ofereceu um.

O Rei passou o maço a toda a classe.

Os quatro estudantes aceitaram os cigarros e deslocaram-se para darem mais espaço ao Rei e a Peter Marlowe. Perguntavam-se o que faria ali o Rei, mas, na realidade, pouco lhes importava - ele dera-lhes um autêntico cigarro feito.

Vexley preparou-se para continuar a sua prelecção sobre as baleias. Adorava as baleias. Adorava-as até à loucura.

- As baleias são, sem sombra de dúvida, a forma mais alta a que a Natureza aspirou - disse ele, satisfeito com a ressonância da sua voz. Notou que o Rei franziu o sobrolho. - Tem alguma pergunta? - inquiriu, ansioso.

- Realmente tenho. As baleias são interessantes, mas que dizer dos ratos?

- Como? -perguntou Vexley delicadamente.

- É muito interessante o que está a dizer sobre as baleias, Sir - disse o Rei -, mas eu estava a pensar em ratos, mais nada.

- Mas quê, em ratos?

- Perguntava a mim mesmo se o senhor saberá alguma coisa sobre eles - disse o Rei, que tinha muito que fazer e não queria perder tempo.

- O que ele quer dizer - disse Peter Marlowe rapidamente - é que, se as baleias têm reflexos quase humanos, não é isso também verdade a respeito dos ratos?

Vexley abanou a cabeça e disse com enfado:

- Os roedores são completamente diferentes. Agora, quanto às baleias...

- São diferentes como? - perguntou o Rei.

- Eu ocupo-me dos roedores no meu seminário da Primavera

- disse Vexley com certa irritação. - Animais detestáveis. Não têm nada de que se possa gostar. Nada. Agora tomemos o rorqual.

- E Vexley apressou-se a prosseguir: - Ah, aí temos a gigante das baleias! Mais de trinta metros de comprimento e pode pesar até cento e cinquenta toneladas. A maior criatura viva ou que alguma vez viveu na Terra. O animal mais poderoso que existe. E os seus hábitos de acasalamento... - apressou-se a acrescentar Vexley, pois bem sabia que a discussão da vida sexual mantinha sempre a classe desperta. - O seu acasalamento é maravilhoso. O macho começa a sua titilação soprando monstruosos borrifos. com a cauda fustiga fortemente a água junto da fêmea, que espera, com paciente desejo, à superfície do oceano. Então, ele mergulha fundo e logo volta a subir, elevando-se acima da superfície, grande, enorme, monstruoso, para de novo baixar, transformando a água em espuma. - E, ao dizer isto, baixou a voz para um tom sensual. - Depois desliza até à fêmea e começa a acariciá-la com as barbatanas...

A despeito da sua ansiedade quanto aos ratos, o Rei começou a escutar atentamente.

- Então, interromperá a sedução e mergulhará de novo, deixando a fêmea ofegante à superfície, deixando-a talvez para sempre. - Vexley fez uma pausa dramática. - Mas não, ele não a deixa. Desaparece durante talvez uma hora nas profundezas do oceano, reunindo forças, e então sobe mais uma vez, lançando-se para fora da água, para de novo cair com um estrondo de trovão, numa monstruosa nuvem de espuma. Rodopia uma vez e outra sobre a sua companheira, estreitando-a entre as barbatanas e possui-a até à exaustão.

Vexley estava também exausto perante a magnificência dos espectaculosos esponsais de gigantes. Ah, ter a sorte de tal presenciar, de lá estar, um pobre ser humano...

E prosseguiu:

- O acasalamento dá-se por volta de Julho, em águas quentes. O bebé pesa cerca de cinco toneladas à nascença e tem cerca de dez metros de comprimento. - O seu riso estava previsto. - Pensem nisto.

Houve sorrisos bem-educados e então Vexley veio com o argumento decisivo, sempre eficaz para uma boa risada:

- E, se pensarem no tamanho da cria, pensem também na baleia. De novo houve sorrisos polidos: os assistentes habituais tinham

ouvido a história muitas vezes.

Vexley prosseguiu com a descrição da maneira como a baleia pequena é amamentada durante sete meses pela mãe, que fornece o leite de duas tetas monstruosas colocadas perto do rabo, na sua parte de baixo.

- Como sem dúvida imaginam, a amamentação prolongada debaixo de água põe os seus problemas.

- Os ratos amamentam os filhos? - interveio o Rei rapidamente.

- Claro - disse o chefe de esquadrão com um ar infeliz. - Agora, a respeito de âmbar virgem...

O Rei suspirou, vencido, batido, e escutou Vexley, que preleccionava sobre âmbar virgem, ou âmbar cinzento, cachalotes, baleias brancas, baleias de bico de ganso, narvais, baleias assassinas, baleias corcundas, baleias de focinho de garrafa, baleias de barba de baleia e baleias cinzentas. Por esta altura, já toda a classe saíra, com excepção de Peter Marlowe e do Rei. Quando Vexley terminou, o Rei disse simplesmente:

- Eu quero saber coisas sobre ratos.

Vexley gemeu:

- Ratos?

- Fume um cigarro - disse o Rei, com ar benigno.

- Muito bem, malta, todos para os seus lugares - disse o Rei. Esperou até que houvesse silêncio na barraca e que o vigia da porta estivesse no seu lugar. - Temos problemas.

-O Grey? - perguntou Max.

- Não. É sobre a nossa quinta. - O Rei voltou-se para Peter Marlowe, que estava sentado à beira de uma cama. - Diz-lhes tu, Peter.

- Bem - começou Peter Marlowe -, parece que os ratos...

- Conta desde o princípio.

- Tudo?

- com certeza. Expõe os factos, para que todos possamos propor soluções.

- Muito bem. Estivemos com o Vexley. Ele disse-nos, e estou a citar: "O Rattus norvegicus, ou rato norueguês, por vezes chamado Mus decumanus..."

- Que raio de conversa é essa? - perguntou Max.

- Latim, Santo Deus! Qualquer burro sabe isso - disse Tex. - Tu sabes latim, Tex? - perguntou Max, atónito.

- Não, raio, mas esses nomes malucos são sempre em latim...

- Por amor de Deus, vocês querem saber ou não? - perguntou o Rei. E fez sinal a Peter Marlowe para que continuasse.

- Bem. De qualquer modo, Vexley descreveu-os em pormenor, peludos, sem pêlo no rabo, peso até uns mil e oitocentos gramas, mas o normal é até cerca de novecentos gramas nesta parte do mundo. Os ratos acasalam em promiscuidade em qualquer altura...

- Que raio quer isso dizer?

- O macho fornica qualquer fêmea sem mais aquelas - disse o Rei impacientemente-, e não há época especial.

- Como nós, queres tu dizer? - interveio Jones.

- Sim, creio que sim - disse Peter Marlowe. - De qualquer modo, o rato macho acasala em qualquer estação e a fêmea pode ter umas doze ninhadas por ano, mas talvez até catorze. Os filhos nascem cegos e sem recursos, vinte e dois dias depois... do contacto- Escolheu a palavra delicadamente. - Os filhos abrem os olhos catorze a dezassete dias depois e ficam sexualmente maduros dentro de dois meses. Deixam de procriar aos dois anos e são velhos aos três anos.

- com mil diabos!-disse Max encantado, no silêncio que caiu. - É certo que vamos ter problemas. Se os filhos têm filhos dentro de dois meses e se tivermos doze... digamos, em números redondos, dez por ninhada... calcula lá tu... Digamos que temos dez ratinhos num dado dia. Outros dez ao fim de trinta dias. Ao fim de sessenta dias, os primeiros cinco casais criaram e ficamos com cinquenta. Ao fim de noventa dias temos mais cinco casais a criar e mais cinquenta. Vinte e um dias depois temos duas cinquentenas, mais cinquenta e ainda mais cinquenta e uma nova fornada de duas cinquentenas. Santo Deus! Faz seis cinquentenas em cinco meses. No mês seguinte temos perto de seis mil e quinhentos...

- Jesus É uma mina de ouro - disse Miller, coçando-se furiosamente.

- Uma ova! - disse o Rei. - Não sem algumas medidas. Em primeiro lugar, não os podemos pôr todos juntos. São canibais. Quer isto dizer que temos de separar os machos das fêmeas, excepto quando queremos acasalá-los. Outra coisa: vão lutar entre eles todo o tempo. Quer dizer, temos de separar machos de machos e fêmeas de fêmeas.

- Pois separamo-los. Qual é o problema?

- Nenhum, Max - disse o Rei pacientemente. - Mas precisamos de gaiolas e de organizar a coisa. Não vai ser fácil.

- Qual quê! - disse Tex. - Podemos construir uma bateria de gaiolas. Não é nada do outro mundo.

- E achas, Tex, que podemos manter o sossego na quinta? Enquanto estivermos a construir a bateria?

- Não vejo por que não!

- Ah, outra coisa! - disse o Rei e estava a sentir-se satisfeito com os homens e mais que satisfeito com o plano. Era um negócio de acordo com a sua natureza, nada que fazer a não ser esperar. Eles comem tudo que se lhes der, morto ou vivo. Tudo. Por isso não temos problemas de cálculos.

- Mas são uns bichos "porcos e sujam tudo por todo o lado, - disse Byron Jones in. - Temos já cá bastante sujidade, sem necessidade de pormos mais por baixo da nossa barraca. E os ratos são também portadores de peste!

- Talvez isso seja um género especial de rato, como é um mosquito especial que transmite a malária - sugeriu Dino, esperançado, percorrendo os homens com os seus negros olhos.

- Os ratos podem transmitir a peste, é certo - disse o Rei, encolhendo os ombros. - E transmitem um ror de doenças humanas. Mas isso não quer dizer nada. Temos uma fortuna nas mãos e vocês a fazerem cálculos negativos! É antiamericano!

- Santo Deus! Essa porcaria da peste! Como havemos de saber se estão limpos ou não? - perguntou Miller, enjoado.

O Rei riu-se.

- Perguntámos isso ao Vexley e ele respondeu por estas palavras: "Vocês descobriam isso depressa: morriam!" E agora digo eu: raios!, é exactamente como os frangos. Conservemos limpos e dêem-lhes de comer e terão bons frangos! Não há problemas.

E assim conversaram sobre a quinta, os seus perigos e as suas potencialidades - e todos sabiam avaliar as potencialidades-, contanto que eles não tivessem de comer o produto; e discutiram os problemas ligados a uma operação em tão larga escala. Foi então que entrou Kurt, que trazia nas mãos um cobertor que mexia.

- Apanhei outro - disse com um ar maldisposto.

- Apanhaste?

- Claro que apanhei. Enquanto vocês, seus sacanas, conversam, eu estou lá fora a trabalhar. É uma fêmea. - E Kurt cuspiu para o chão.

- Como sabes?

- Olhei. Vi bastantes ratos na marinha mercante para saber. E o outro é um macho. Também vi.

Todos desceram para debaixo da barraca e viram Kurt pôr a Eva na trincheira. Imediatamente, os dois ratos uniram-se viciosamente e os homens, a custo, contiveram-se de se pôr aos vivas. A primeira ninhada estava no forno. Os homens votaram que Kurt seria o encarregado e Kurt estava feliz.

Desse modo, ele sabia que teria a sua parte. Certo de que trataria dos ratos. Comida era comida. Kurt sabia que, se algum filho da mãe ia sobreviver, seria ele.

Vinte e dois dias mais tarde, Eva parturejou. Na gaiola do lado, Adão atirou-se à rede de arame para conseguir chegar à comida viva e quase o conseguiu, mas Tex deu pelo rasgão mesmo a tempo. Eva deu de mamar aos filhos. Havia o Caim e Abel, Grey e Alliluha, Beulah e Mabel, Junt e a Princesa, a Princesinha e Mabel Grande e a Junt Grande e Beulah Grande. Pôr nomes aos machos era fácil. Mas nenhum dos homens queria os nomes das suas namoradas ou os das suas irmãs ou das suas mães ligados às fêmeas. Até nomes de sogras eram paixão ou relação do passado para outros homens. Levara-lhes três dias a concordar com os nomes Beulah e Mabel.

Quando os ratinhos tinham quinze dias, foram postos em gaiolas separadas. O Rei, Peter Marlowe, Tex e Max concederam à Eva até à noite para se recompor e puseram-na de novo com o Adão. A segunda ninhada estava a caminho.

- Peter - disse o Rei com benevolência, enquanto subia pela porta de alçapão para a barraca-, a nossa fortuna está feita.

O Rei decidira-se pelo alçapão, porque sabia que tantas idas abaixo da barraca provocariam a curiosidade. Era vital para o êxito da quinta que permanecesse secreta. Nem Mac nem Larkin sabiam nada a este respeito.

- Onde é que estão todos hoje? - perguntou Peter Marlowe, fechando o alçapão.

Só Max estava na barraca, estendido na sua cama.

- Os pobres palermas foram apanhados para um grupo de trabalho. O Tex está no hospital. O resto está lá fora a deliberar.

- Parece-me que também vou deliberar. Dá-me qualquer coisa para eu pensar.

O Rei baixou a voz.

- Eu tenho uma coisa para tu pensares. Amanhã à noite vamos à aldeia. - Depois gritou para Max: - Eh, Max! Conheces o Prouty? O major australiano? Da barraca nº 11?

- O velhote? Claro.

- Ele não é velho. Não pode ter mais de 40 anos.

- Donde eu estou, 40 anos é velho como a Sé. Faltam-me 18 para ter essa idade.

- Terias muita sorte - disse o Rei. - Vai ter com o Prouty e diz-lhe que eu te mandei.

- E depois?

- Nada. Vai procurá-lo. E tem cuidado que o Grey, não esteja por lá... nem nenhum dos seus olhos.

- vou indo - disse Max com relutância, e deixou-os sozinhos. Peter Marlowe estava a olhar por cima da rede, investigando a costa.

- Começava a perguntar-me se terias mudado de ideias.

- Sobre levar-te comigo?

- Sim.

- Não precisas de te preocupar, Peter. - O Rei tirou o café e deu uma caneca a Peter Marlowe. - Queres almoçar comigo?

- Não sei como raio é que fazes isso - resmungou Peter Marlowe. - Toda a gente está a morrer de fome e tu convidas-me para almoçar.

- Tenho katchang idju para o almoço.

O Rei abriu a mala preta, tirou o saco de feijão verde e passou-o a Peter Marlowe.

- Queres arranjá-los?

Enquanto Peter os levava para uma torneira e começava a lavá-los, o Rei abriu uma lata de carne e despejou cuidadosamente o conteúdo para um prato.

Peter Marlowe voltou com os feijões. Estavam bem lavados e não havia cascas a flutuar na água limpa. "Bem", pensou o Rei, "não é preciso dizer ao Peter duas vezes." E a vasilha de alumínio tinha exactamente a quantidade de água: seis vezes a altura dos feijões.

Pô-la no pequeno fogão eléctrico e juntou-lhe uma grande colher de açúcar e duas pitadas de sal. Depois juntou-lhe metade da carne da lata.

- É o dia dos teus anos?-perguntou Peter Marlowe.

- Ha?

- Katchang idju e carne numa só refeição?

- Vocês não vivem como deve ser.

Peter Marlowe sentia como o suplício de Tântalo o cheirinho e o restolhar do guisado. As últimas semanas tinham sido duras. A descoberta do rádio prejudicara o campo. O comandante japonês tivera o desgosto de cortar as rações do campo, devido a más colheitas, de modo que até as magras reservas de desespero das unidades se tinham ido. Milagrosamente, não houvera outras repercussões. Excepto o corte na comida.

Na unidade de Peter Marlowe, o corte ferira Mac mais que ninguém. O corte e a inutilidade do cantil-rádio.

"Raios o partam!", praguejara Mac, depois de semanas a tentar localizar a avaria. "É inútil, rapazes, não há nada a fazer. Tudo parece correcto. Sem certas ferramentas, não é possível saber onde está o erro."

Então, Larkin conseguiu, por qualquer meio, uma pequena bateria, e Mac reunira as suas poucas forças e voltara a testá-lo. No dia anterior, enquanto estava nesse trabalho, arquejara e desmaiara em coma malarial. Peter Marlowe e Larkin tinham-no levado para o hospital e puseram-no numa cama, mas o médico disse que, com um baço daqueles, podia ser muito perigoso.

- Que se passa, Peter? - perguntou o Rei, notando a sua súbita sisudez.

- Estava a pensar no Mac.

- Que se passa com ele?

- Tivemos de o levar ontem para o hospital.

- Malária?

- Principalmente.

- Ha?

- bom, tem de facto febre. Mas isso não é o maior mal. Ele passa por períodos de terrível depressão. Preocupações. com a mulher e o filho.

- Todos os tipos casados têm os mesmos problemas.

- Mas não exactamente como o Mac - disse Peter Marlowe tristemente. - Bem vês, nas vésperas do desembarque dos Japoneses em Singapura, o Mac pôs a mulher e o filho num navio do último comboio que partiu. Depois, ele e a sua unidade partiram para Java num junco costeiro. Quando chegou a Java ouviu dizer que todo o comboio fora a pique ou capturado. Nenhuma prova de uma coisa nem de outra, apenas boatos. De modo que ele não sabe se se safaram. Ou se estão mortos. Ou se estão vivos. E, se estão... onde é que estão. O filho era ainda bebé: apenas quatro meses.

- Bem, agora o garoto tem três anos e quatro meses - disse o Rei confiadamente. - Regra dois: não se preocupar com aquilo que não se pode evitar. - Tirou um frasco de quinino da sua mala preta e contou quarenta comprimidos, que deu a Peter Marlowe. Toma, isto vai curar-lhe a malária.

- Mas, então, e tu?

- Tenho muitos. Não penses nisso.

- Não compreendo porque é que és tão generoso. Dás-nos comida e remédios. E nós que te damos? Nada. Não compreendo.

- Tu és um amigo.

- Santo Deus! Sinto-me embaraçado por aceitar tantas coisas.

- Não se fala mais nisso. Toma.

O Rei começou a tirar o guisado às colheradas. Sete colheres para ele e sete para Peter Marlowe. Havia ainda cerca de um quarto do guisado na marmita do rancho.

Comeram as três primeiras colheradas rapidamente para aliviar a fome, depois acabaram o resto devagar, para apreciar a sua excelência.

- Mais um pouco? - O Rei esperou e pensou: "Até que ponto te conheço eu bem, Peter? Sei que eras capaz de comer mais uma tonelada. Mas não vais querer. Ainda que a tua vida dependesse disso."

- Não, obrigado. Estou cheio. Cheio até cima.

"É bom conhecer-se o seu amigo", pensou o Rei para si próprio. "É preciso ter cuidado." Tirou mais uma colher. Não porque tivesse vontade. Pensou que tinha de o fazer, ou Peter ficaria embaraçado. Comeu-a e pôs o resto de lado.

- Fazes-me um cigarro, fazes?

Atirou-lhe o tabaco e afastou-se. Pôs a restante carne enlatada no resto do guisado e misturou tudo. Então dividiu-o em duas porções, cobriu-as e pô-las de lado.

Peter Marlowe passou-lhe o cigarro enrolado.

- Faz um para ti - disse o Rei.

- Obrigado.

- Jesus! Peter, não esperes que te peçam. Toma, enche a tua caixa.

Tirou a caixa das mãos de Peter Marlowe e encheu-a bem de tabaco Três Reis.

- Que vais fazer com o Três Reis? com o Tex no hospital? - perguntou Peter Marlowe.

- Nada. - Foi a decisão do Rei. - A ideia morreu. Os australianos descobriram o processo e anteciparam-se.

- Diabo! Como pensas que eles souberam? O Rei sorriu.

- Foi entrada por saída, de qualquer modo.

- Não compreendo.

- Entrada por saída? É isso mesmo. Entra-se e sai-se logo. Um pequeno investimento e um lucro rápido. Eu estava em casa nas duas primeiras semanas.

- Mas tu disseste que ia levar meses a recuperar o dinheiro que empataste.

- Isso foi um truque de vendedor. Para uso externo. Isto é, uma maneira de levar as pessoas a acreditar em qualquer coisa em que se quer que elas acreditem. As pessoas querem sempre qualquer coisa sem darem nada em troca. Portanto, temos de as convencer de que nos estão a roubar, que nós somos os palermas e que elas têm os olhos muito mais abertos que nós. Por exemplo, o Três Reis. Os primeiros compradores acreditavam que eram meus devedores, que, se trabalhassem muito no primeiro mês, podiam ser meus sócios e passar a viver para sempre, graças ao meu dinheiro. Pensavam que eu era maluco em lhes dar o que lhes dei no fim do primeiro mês. Mas eu sabia que o processo havia de meter água e que o negócio não duraria.

- Como sabias isso?

- Era óbvio. E eu planeei-o dessa maneira. Eu próprio sabotei o processo.

- Tu, quê?

- Troquei o processo por informação.

- Bem, posso compreender isso. Era teu, fazias o que querias. E as pessoas que trabalhavam a vender o tabaco?

- Que tinham elas?

- Parece-me que abusaste delas. Fizeste-as trabalhar durante um mês, mais ou menos por nada, e depois tiraste-lhes o tapete debaixo dos pés.

- Tirei uma gaita! Ganharam uns cobres. Estavam a tomar-me por parvo e saiu-lhes o gado mosqueiro. Mais nada. Negócio é negócio. - Estava deitado na cama, divertido com a ingenuidade de Peter Marlowe.

Peter Marlowe franziu o sobrolho, tentando compreender.

- Quando alguém começa a falar-me de negócios, sinto que não é o meu mundo. Sinto-me um idiota.

- Escuta. Antes de seres muito mais velho, estarás a negociar cavalos com os melhores deles. - E o Rei riu-se.

- Duvido muito.

- Fazes alguma coisa esta noite? Aí uma hora depois do escurecer?

- Não, porquê?

- Queres fazer-me de intérprete?

- Com prazer. Quem? Um malaio?

- Um coreano.

- Ah!-E Peter Marlowe acrescentou logo:-Com certeza!

O Rei notara a aversão de Peter Marlowe, mas não se importou. "Um homem tem o direito de ter as suas opiniões", costumava ele dizer. E, desde que essas opiniões não estivessem em conflito com os seus próprios fins, também estava bem.

Max entrou na barraca e trepou para o seu catre.

-Durante uma hora não consegui encontrar o filho da mãe. Depois procurei-o no caminho da horta. Gaita! com todo o mijo que lhe põem para estrumar, cheira mal que nem um bordel de Harlém num dia de Verão.

- Tu és mesmo o género de gajo que vai aos bordéis de Harlém. O tom e os modos do Rei sobressaltaram Peter Marlowe.

O sorriso e a fatiga de Max desapareceram com a mesma rapidez.

- Céus! Eu não queria dizer nada. É uma maneira de falar.

- Então porquê escolher Harlém? Dizias só que cheira como um bordel. Cheiram todos :ao mesmo. Não há diferença porque um é branco e outro preto. - E o Rei estava pior que estragado e a pele da sua cara estava retesada como uma máscara.

- Não te zangues, desculpa. Não quis dizer nada.

Max esquecera que o Rei era muito sensível quando se tratava de negros. "Céus! Quando se vive em Nova Iorque, não se pode ignorar Harlém, e em Harlém há bordéis, e um pouco de negra não é mada mau de vez em quando; no entanto", pensou com azedume, "não percebo por que é que ele é tão sensível com os negros."

- Não quis dizer nada - voltou a dizer Max, fazendo esforços para manter os olhos afastados da comida. Sentira-lhe o cheiro durante todo o caminho para a barraca. - Encontreio e disse-lhe o que tu disseste.

- Ah!

- Ele deu-me uma coisa para ti - disse Max, e olhou para Peter Marlowe.

- Bem, dá cá, com mil raios!

Max esperou pacientemente, enquanto o Rei olhou para o relógio, lhe deu corda e o levou depois ao ouvido.

- Que queres tu, Max?

- Nada. Queres que te lave a louça?

- Quero. Faz isso e raspa-te daqui. - Com certeza.

Max levantou os pratos sujos e levou-os humildemente para fora, jurando a si mesmo, por Cristo, que um dia havia de apanhar o Rei. Peter Marlowe não disse nada. "Estranho", pensou. "O Rei tem génio. É uma coisa boa, mas, a maior parte das vezes, perigosa. Numa missão espinhosa, como a aldeia, talvez, é sensato estar seguro de quem nos guarda as costas."

O Rei desatarrachou cuidadosamente a tampa do relógio. Era inoxidável e à prova de água.

- Oh, oh! -disse o Rei. - Bem me parecia.

- Que é?

- É falso. Olha.

Peter Marlowe examinou o relógio cuidadosamente. - A mim parece-me bom.

- E é. Mas não é o que se julgava: um Omega. A caixa é boa, mas o interior é velho. Algum sacana lhe substituiu as tripas.

O Rei voltou a pôr-lhe a tampa, depois atirou-o ao ar e voltou a apainhá-lo na mão, especulativamente.

- Vês, Peter, é o que eu te dizia. Tem de se ter cuidado. Agora imagina que vendo isto como um Omega e que não sei que é falso. Podia meter-me num grande sarilho. Mas, desde que já saiba, posso defender-me. Nunca se tem cuidado de mais.

O seu sorriso morreu quando viu Max voltar com as latas do rancho lavadas e as foi arrumar. Max não disse nada. Fez apenas um aceno de cabeça e voltou a sair.

- Filho de uma puta! - disse o Rei.

Grey não se recompusera do dia em que Yoshima encontrara o rádio. Enquanto caminhava pelo carreiro que levava à barraca de abastecimento, meditava sobre os novos deveres que lhe tinham sido impostos pelo comandante do campo em frente de Yoshima e mais tarde elaborados pelo coronel Smedly-Taylor. Grey sabia que, embora oficialmente tivesse de executar as novas ordens, tinha, na realidade, de fechar os olhos e não fazer nada. "Santa Mãe de Deus! Faça eu o que fizer, estou errado!"

Grey sentiu um espasmo a formar-se-lhe no estômago. Parou enquanto ele veio e passou. Não era disenteria, apenas diarreia; e a febre ligeira que sentia não era malária, apenas um toque de dengue, uma febre ligeira, mas mais insidiosa, que vinha e se ia por capricho. Sentia muita fome. Não tinha qualquer provisão de alimentos, nenhuma última lata, nem dinheiro para os comprar. Tinha de subsistir com as rações, sem quaisquer extras se as rações não eram suficientes.

"Quando eu sair", pensou, "juro por Deus que nunca mais terei fome. Hei-de ter mil ovos, uma tonelada de carne, açúcar, café, chá, peixe. Havemos de cozinhar todo o dia, a Trina e eu, e, quando não estivermos a cozinhar ou a comer, faremos amor." Amor? Não, apenas dor. Trina, essa cabra, com o seu "estou cansada", ou "dói-me a cabeça", ou "por amor de Deus! Quê? Outra vez?", ou "bem, suponho que tem de ser", ou "podemos fazer amor agora, se tu quiseres", ou "não me podes deixar em paz por uma vez?" - quando não era assim, tantas vezes, muitas vezes, ele se refreara e sofrera-, ou o irado "oh, está bem", e depois acendia-se a luz e ela saía da cama para ir à casa de banho para se preparar e ele só via a magnificência do seu corpo através do tecido transparente, até a porta se ter fechado, e esperava, esperava, até se apagar a luz da casa de banho e ela voltar para o quarto. Passava sempre uma eternidade para que ela chegasse da porta à cama, e ele só via a sua beleza pura por baixo da seda e sentia apenas o frio dos seus olhos enquanto ela o observava, e ele não podia pôr os olhos nos dela e detestava-se. Daí a pouco ela estaria ao lado dele e em breve haveria silêncio. Então, ela levantava-se para ir à casa de banho lavar-se, como se o amor dele fosse sujo, e ouvia-se correr a água; e, quando ela voltava, vinha perfumada e ele amaldiçoava-se de novo, insatisfeito, porque a possuíra quando ela não queria ser possuída. Sempre fora assim. Nos seus seis meses de casados - juntos nos vinte e um dias de férias - tinham feito amor nove vezes. E nem uma só vez ele lhe tocara.

Pedira-lhe que casasse com ele uma semana depois de a ter conhecido. Houvera dificuldades e recriminações. A mãe dela odiava-o por ter querido a sua filha única quando a sua carreira se iniciava, e ela era tão nova. Apenas 18 anos. Os pais dele disseram: "Espera, a guerra pode acabar em breve, e tu não tens dinheiro; e, bem, ela não é exactamente de uma boa família." E ele percorrera a casa com os olhos, um prédio fatigado, ligado a mil outros prédios fatigados, entre as linhas torcidas dos eléctricos de Streatham, e viu que os compartimentos eram pequenos e que o espírito dos seus pais era pequeno e de classe baixa, e o seu amor era torcido como as linhas dos eléctricos.

Casaram um mês mais tarde. Grey ia elegante no seu uniforme e com a sua espada (alugada à hora). A mãe de Trina não veio à apagada cerimónia, celebrada à pressa entre dois alertas de ataque aéreo. Os pais dele traziam máscaras de desaprovação, os seus beijos foram formais, e Trina fundira-se em lágrimas, molhando a licença de casamento.

Nessa noite, Grey descobriu que Trina não era virgem. Ah! mas procedeu como se fosse e queixou-se durante muitos dias: "Por favor, querido, estou magoada, sê paciente." Mas não era virgem, e isso magoou Grey, porque ela dera muitas vezes a entender que o era. Mas ele fingiu que não sabia que ela o enganara.

A última vez que viu Trina foi seis dias antes de embarcar para o ultramar. Estavam em casa e ele estava deitado em cima da cama a vê-la vestir-se.

- Sabes para onde vais? - perguntou ela.

- Não - disse Grey.

O dia fora mau e a discussão do dia anterior má, e a falta dela e o saber que a sua licença terminava hoje pesavam sobre ele.

Pôs-se em pé por trás dela, metendo-lhe as mãos pelo peito moldando a sua firmeza.

- Não!

- Trina, podíamos...

- Não sejas tolo. Sabes que o espectáculo começa às oito e meia.

- Há muito tempo...

- Por amor de Deus, Robin! Estragas-me a maquilhagem.

- A tua maquilhagem que vá para o diabo - disse ele. - Amanhã já cá não estou.

- Talvez seja melhor. Não me parece que sejas muito amável nem muito atencioso.

- Como esperas que eu seja? É errado que um marido deseje sua mulher?

- Pára de gritar. Meu Deus! Até os vizinhos ouvem.

- Pois que ouçam, com mil diabos! - Caminhou em direcção dela, mas ela fechou-lhe a porta da casa de banho na cara. Quando voltou à sala, vinha fresca e perfumada. Vinha de soutien e slip e meias seguras por um frágil cinto de ligas. Pegou no vestido cocktail e começou a vesti-lo.

- Trina - começou ele.

- Não.

Ele parou, curvado sobre ela, e os joelhos fraquejavam-lhe,

- Desculpa ter-te gritado.

- Não tem importância.

Ele curvou-se para lhe beijar os ombros, mas ela afastou-se.

- Vejo que estiveste outra vez a beber - disse ela, torcendo nariz.

Então, a raiva dele estoirou.

- Bebi apenas uma bebida. Diabos te levem! - gritou. E, fazendo-a rodar, arrancou-lhe o vestido, arrancou-lhe o soutien e atirou-a para a cama. E arrancou-lhe tudo o que ela tinha, até que ficou nua, a não ser uns farrapos de meias agarrados às pernas. E durante todo este tempo ela ficou quieta, olhando para ele.

- Oh, meu Deus, Trina, gosto muito de ti - murmurou ele desesperadamente, e afastou-se, odiando-se pelo que fizera e pelo que quase fizera.

Trina apanhou o que restava da sua roupa. Como num sonho, ele observou-a enquanto ela voltava ao espelho, se sentou em frente dele e começou a retocar a maquilhagem, cantarolando um refrão repetidamente.

Então atirou com a porta, voltou para a sua unidade e no dia seguinte tentou telefonar-lhe. Ninguém respondeu. Era demasiado tarde para voltar a Londres, apesar do seu desesperado desejo. A unidade partiu para Greenock, a fim de embarcar, e todos os dias, todos os minutos de cada dia ele lhe telefonava, mas não havia resposta, como não havia resposta aos seus frenéticos telegramas, e depois a costa da Escócia foi engolida pela noite, e a noite era só navio e mar, e ele era só lágrimas.

Grey estremeceu sob o sol da Malásia. A uns dezoito mil quilómetros de distância. "A culpa não foi de Trina", pensava, fraco de repugnância por si mesmo. "Não foi ela. Fui eu. Eu estava demasiado ansioso. Talvez não esteja bom da cabeça. Talvez devesse ir ao médico. Talvez ligue demasiado ao sexo. Tenho de ser eu, não ela. Oh, Trina, meu amor!"

- Sente-se bem, Grey? - perguntou o coronel Jones.

- Estou bem, Sir, muito obrigado. - E Grey voltou a si e descobriu que estava encostado à barraca dos abastecimentos. - Foi só uma ponta de febre.

- Você não tem bom aspecto. Sente-se um minuto.

- Estou bem, muito obrigado. Queria só um pouco de água. Grey foi até à torneira, tirou a camisa e meteu a cabeça debaixo

do jorro de água. "És muito parvo em te deixar cair assim!", pensou. Mas, apesar da sua decisão, o pensamento fugia-lhe para Trina. "Esta noite, esta noite vou deixar-me ficar a pensar nela", prometeu a si próprio. "Esta noite e todas as noites. Para o diabo tentar viver sem comer. Sem esperança. Quero morrer. Quero muito morrer." Foi então que viu Peter Marlowe a subir a colina. Nas mãos trazia uma marmita americana e segurava-a cuidadosamente. Porquê?

- Marlowe!

- Que diabo quer você?

- Que está ai dentro?

- Comida.

- Não é contrabando?

- Pare de implicar comigo, Grey.

- Não estou a implicar. Julgam-se os homens pelos seus amigos.

- Não se meta no meu caminho.

- Lamento não poder evitar. É o meu trabalho. Gostaria de ver isso. Por favor.

Peter Marlowe hesitou. Grey estava no seu direito de ver e no seu direito de o levar ao coronel Smedly-Taylor se ele pisasse o risco. E ele tinha no bolso vinte comprimidos de quinino. Ninguém estava autorizado a ter reservas privadas de remédios. Se os comprimidos fossem descobertos, teria de dizer onde os arranjara e depois o Rei teria de explicar onde os arranjou, e, de qualquer modo, Mac precisava deles agora. Por isso abriu a marmita.

O katchang idju e a carne de lata exalavam um perfume celestial para Grey. O seu estômago revoltou-se e ele tentou esconder a sua fome. Inclinou cuidadosamente a marmita, de modo a poder ver o fundo. Nada mais havia a não ser o katchang idju. Delicioso.

- Onde arranjou isto?

- Deram-mo.

- Ele deu-lho?

- Deu.

- Para onde o leva?

- Para o hospital.

- Para quem?

- Para um dos americanos.

- Desde quando é que um distinto tenente aviador faz recados para um cabo?

- Vá para o raio que o parta!

- Talvez eu vá. Mas, antes disso, hei-de vê-lo a si e a ele receberem o que merecem.

"Calma", disse Peter -Marlowe para si próprio. "Calma. Se deres um murro ao Grey, metes-te em sarilhos."

- Acabaram as perguntas, Grey?

- Por agora. Mas lembre-se... - Grey aproximou-se um passo e o cheiro da comida torturava-o. - Você e o seu amigalhaço estão na lista. Não me esqueci do isqueiro.

- Não sei de que está a falar. Não fiz nada contra o regulamento.

- Mas há-de fazer, Marlowe. Se vender a sua alma, há-de ter de pagar algum dia.

- Você não está bom da cabeça!

- Ele é um escroque, mentiroso e ladrão.

- É meu amigo, Grey. Não é escroque nem ladrão...

- Mas é mentiroso.

- Toda a gente é mentirosa. Até você. Você negou o rádio. Tem de se ser mentiroso para se continuar vivo. Têm de se fazer muitas coisas...

- Como beijar o cu a um cabo para arranjar comida?

A veia da testa de Peter Marlowe inchou como uma fina cobra preta. Mas a sua voz era suave e o veneno levava uma capa de mel.

- Eu devia bater-lhe, Grey. Mas é deselegante bulhar com as classes mais baixas. Desleal, como sabe.

- Diabos me levem, Marlowe...-começou Grey, mas faltou-lhe a fala, e a fúria que nasceu nele sufocou-o.

Peter Marlowe olhou bem fundo nos olhos de Grey e soube que ganhara. Por um momento vangloriou-se na destruição do homem e depois a sua fúria evaporou-se, e ele continuou o seu caminho, passou por Grey e subiu a colina. Não havia necessidade de prolongar a batalha, uma vez ganha. Também isso é mal-educado. "Juro por Deus, Nosso Senhor, que hás-de pagar por isto. Hei-de pôr-te de joelhos a pedir perdão. E não vou perdoar. Nunca!"

Mac tomou seis comprimidos e fez uma careta a Peter Marlowe, que o ajudava a soerguer-se e lhe chegava a água aos lábios. Engoliu e deixou-se cair de novo para trás.

- Bem hajas, Peter - murmurou. - Vai fazer-me bem. Bem hajas, rapaz.

E mergulhou no sono, com a face a arder, o baço inchado a ponto de estoirar, e o espírito refugiou-se nos pesadelos. Viu a mulher e o filho a flutuarem nas profundidades do oceano, comidos por peixes e gritando lá das funduras. E viu-se lá a si próprio, no abismo, a rasgar a carne dos tubarões, mas as suas mãos não eram bastante fortes e a sua voz não era bastante alta, e os tubarões rasgavam grandes pedaços da sua carne e havia sempre mais para rasgar. E os tubarões tinham vozes e o seu riso era de demónios, mas os anjos estavam próximos e diziam-lhe que se apressasse: "Depressa, Mac. Despacha-te ou vais chegar tarde." Depois já não havia tubarões, mas apenas homens amarelos com baionetas e dentes de ouro, afiados como agulhas, rodeando-o e à sua família, no fundo do mar. As suas baionetas eram enormes e aguçadas. "A eles não, a mim!", gritava. "A mim, matem-me!" E olhava, impotente, enquanto eles lhe matavam a mulher e o filho e depois se voltaram para ele, e os anjos que estavam a ver segredavam em coro: "Depressa, Mac. Depressa. Corre. Corre. Corre para longe e estarás salvo." E ele correu, sem querer correr, correu para longe do seu filho e da sua mulher e do mar cheio de sangue, e fugiu através do sangue. Mas corria ainda e eles perseguiam-no, os tubarões, com os seus olhos

oblíquos e cientes de ouro, com as suas carabinas e baionetas, rasgando-lhe a carne até que se encontrou numa situação desesperada. Lutou e defendeu-se, mas eles não paravam, e agora estava cercado. E Yoshima enfiou-lhe a baioneta bem fundo nas entranhas. E a dor era enorme. Para além da agonia. Yoshima arrancou a baioneta e ele sentiu que o sangue lhe corria, através do lanho aberto e por todas as aberturas do seu corpo, até pelos poros da pele, até que só a alma foi deixada no seu invólucro. Então, por fim, a sua alma correu e foi juntar-se com o sangue do mar. Um grande e requintado alívio o invadiu, infinito, e ele estava contente por estar morto.

Mac abriu os olhos. Os cobertores estavam encharcados, A febre passara. E sabia que estava vivo, uma vez mais.

Peter Marlowe estava ainda sentado ao lado da cama. A noite algures, atrás dele.

- Olá, rapaz. - E as palavras eram tão débeis que Peter Marlowe teve de se inclinar para a frente para as apanhar.

- Estás bem, Mac?

- Estou óptimo, rapaz. Quase valeu a pena a febre para me sentir tão bem. Agora vou dormir. Traz-me comida amanhã.

Mac fechou os olhos e adormeceu. Peter Marlowe puxou-lhe os cobertores e secou a pele ao homem.

- Onde posso arranjar cobertores secos, Steven? - perguntou, ao ver o plantão que passava, apressado, pela enfermaria.

- Não sei, Sir - respondeu Steven, que vira este jovem muitas vezes. E gostava dele. "Talvez... mas não, Lloyd teria muita inveja. Outro dia. Temos muito tempo." - Talvez possa ajudá-lo, Sir.

Steven foi até à quarta cama e tirou o cobertor do homem, depois habilmente fez escorregar o segundo e voltou.

- Tome, sirva-se destes - disse.

- E ele?

- Oh - disse Steven, com um sorriso doce-, já não precisa deles. Pobre rapaz.

- Oh! - E Peter Marlowe olhou para ver quem era, mas era uma cara que ele não conhecia. - Obrigado - disse, e recomeçou a arranjar a cama.

- Espere, deixe que eu faço isso - disse Steven. - Faço-o muito melhor. - E orgulhava-se de saber fazer uma cama sem magoar o doente. - E agora não se preocupe com o seu amigo, que eu olho Por ele. - E aconchegou Mac como uma criança. - Pronto. - E afagou por um momento a cabeça de Mac, depois tirou um lenço e limpou-lhe o suor da testa. - Dentro de dois dias está fino. Se tiver pouco de comida extra... - Mas deteve-se, olhou para Peter Marlowe e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. - Que estúpido da minha parte! Mas não se irrite. O Steven vai arranjar alguma coisa para ele. Não se preocupe. Esta noite não pode fazer mais nada. Vá-se embora e boa noite de descanso.

Mudo, Peter Marlowe deixou-se conduzir para fora. Steven sorriu um "boa noite" e voltou para dentro da barraca.

Da escuridão, Peter Marlowe viu Steven afagar uma fronte febril, segurar uma mão lânguida e afastar carinhosamente os demónios da noite, acalmar os gritos nocturnos, ajeitar o cobertor e ajudar um homem a beber e um homem a vomitar, nos lábios uma cantiga de embalar, suave e delicada. Quando Steven chegou à cama nº 4, parou e baixou os olhos sobre o cadáver. Endireitou-lhe as pernas, cruzou-lhe as mãos, depois tirou o blusão e cobriu o corpo; o seu toque foi uma bênção. O torso esguio e macio de Steven e as suas esguias e macias pernas luziam na luz difusa.

"Pobre rapaz", murmurou para si, olhando em redor do túmulo. "Pobres rapazes. Ah, meus pobres rapazes!" E chorou por eles todos.

Peter Marlowe desapareceu na noite, cheio de piedade, envergonhado de Steven, por ter tido outrora repugnância por ele.

À medida que Peter Marlowe se aproximava da barraca americana, ia ficando cheio de apreensões. Lamentava ter concordado tão prontamente em ser intérprete do Rei e, ao mesmo tempo, preocupava-o o facto de se sentir tão preocupado por fazê-lo. "És um bom amigo", disse para si próprio, "depois de tudo que ele fez por ti."

Aquela impressão no estômago aumentou. "É exactamente como quando se vai partir em missão", pensou. "Não, não é bem assim. Este sentimento assemelha-se ao que experimentamos quando o director da escola mandou chamar por nós. O outro é igualmente doloroso, mas, ao mesmo tempo, misturado com um certo prazer." Como a aldeia, faz-nos o coração partir em arroubo. Correr esse risco só pela emoção ou, na realidade, pela comida ou pela rapariga que lá podiam estar.

Perguntou a si mesmo, pela milésima vez, porque é que ia o Rei e o que lá fazia. Mas perguntar seria indelicado e ele sabia que lhe bastava ter um pouco de paciência para descobrir. Isso era outra razão para ele gostar do Rei - a maneira como ele não revelava nada e guardava a maior parte dos seus pensamentos para si próprio. "É a maneira britânica", dizia Peter Marlowe a si próprio, com satisfação. "Só revelar um pouco de cada vez, quando se está com disposição. O que somos ou quem somos é connosco, até que nos apeteça revelá-lo a um amigo. E um amigo nunca faz perguntas. É coisa que tem de ser dada livremente... ou de modo nenhum."

Como a aldeia. "Meu Deus!", pensou. "Isso mostra quanto ele pensa nos outros, para se abrir assim. Apresentar-se e dizer: "Queres vir daí da próxima vez que eu for?""

Peter Marlowe sabia que era uma coisa insensata. Ir à aldeia. No entanto, talvez agora menos insensata. Agora havia uma razão autêntica. Uma razão importante. Tentar arranjar uma peça para reparar o rádio... ou arranjar um rádio, um inteiro. "Sim, isto é um risco que vale a pena correr."

Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que teria ido apenas porque lhe tinham pedido que fosse e por causa da comida e da hipotética rapariga.

Viu o Rei dissolvido numa sombra, ao lado de uma barraca, falando para outra sombra. As cabeças estavam juntas e as vozes eram inaudíveis. Tão absorvidos estavam que Peter Marlowe decidiu passar ao lado do Rei e começou a subir as escadas para a barraca americana, atravessando o raio de luz.

- Eh, Peter! - chamou o Rei. Peter Marlowe parou.

- vou já ter contigo, Peter. - E o Rei voltou-se para a outra sombra. - Acho que é melhor esperar aqui, major. Logo que ele chegue, dou-lhe notícia.

- Muito obrigado - disse o homem baixo, com a voz húmida de embaraço.

- Tire um pouco de tabaco - disse o Rei, o que foi aceite com avidez.

O major Prouty mergulhou mais na sombra, mas não tirou os olhos do Rei enquanto este percorreu o espaço até à sua barraca.

- Tive saudades de ti, pá - disse o Rei a Peter Marlowe, dando-lhe um soco amigável. - Como está o Mac?

- Está óptimo, obrigado.

Peter Marlowe queria sair da mancha de luz. "'Raios partam!", pensou. "Chateia-me ser visto pelo meu amigo. E é desagradável, muito desagradável."

Mas não podia deixar de sentir os olhos do major a observar, nem evitar a crispação, quando o Rei disse:

- Vamos, não vai levar muito tempo. Depois podemos ir trabalhar!

Grey foi ao esconderijo, para o caso de haver uma mensagem para ele na marmita. E havia:

Ronda do major Prouty. Esta noite. Marlowe e ele.

Grey voltou a atirar a lata para a vala, tão naturalmente como a apanhara. Depois, espreguiçando-se, pôs-se em pé e voltou à barraca nº 16. Porém, durante todo o tempo, o seu espírito trabalhava com uma velocidade de computador.

"Marlowe e o Rei. Devem estar na loja, por trás da barraca americana. Prouty. Qual deles? O major! É o de artilharia? Ou o australiano?" Então, Grey perguntou, irritado, a si próprio: "Onde está essa cabeça-ficheiro de que tanto te orgulhas? Já sei! Barraca nº 11! O baixinho! Pioneiros! Australiano!

"Está relacionado com o Larkin? Não. Não que eu saiba. Um australiano. Então porque não, por meio desse australiano, o Tiny Timsen do mercado negro? Porquê o Rei? Talvez seja demasiado grande para o Timsen. Ou talvez seja coisa roubada ... mais provavelmente, porque então o Prouty não se serviria de canais regulares australianos. É mais provável."

Grey olhou para o relógio. Fê-lo instintivamente, embora não tivesse relógio ia para três anos, embora não precisasse de relógio para saber as horas ou calcular o tempo a qualquer hora do dia ou da noite. Como todos eles, sabia as horas, tanto quanto era preciso sabê-las.

"É ainda muito cedo", pensou. "Os guardas ainda não vão ser rendidos." E, quando o fossem, da sua barraca ele poderia ver o velho guarda atravessar pesadamente o campo, a caminho da estrada e da casa da guarda. O homem a vigiar seria o novo guarda. "Quem é ele? Quem se importa? Em breve o saberei." O mais seguro era esperar até à hora e depois atacar. Cuidadosamente. Interrompê-los delicadamente. Ver o guarda com o Rei e Marlowe. O melhor era vê-los quando o dinheiro mudasse de mão ou quando o Rei passasse o dinheiro a Prouty. Depois, um relatório ao coronel Smedly-Taylor: "Ontem à noite observei uma troca de dinheiro." Ou então: "Vi o cabo americano e o tenente aviador Marlowe - Barraca dezasseis com um guarda coreano e tenho razões para supor que o major Prouty, dos pioneiros, esteve envolvido e forneceu o relógio para venda."

Isso bastaria. "O regulamento", pensou com satisfação, "era claro e positivo: Proibidas as vendas aos guardas. Apanhado em flagrante. Então haveria conselho de guerra.

Um conselho de guerra para começar. Depois, a minha cadeia. A minha cadeiazinha. Sem extras e sem katchang idju com carne enlatada. Nada de nada. Apenas engaiolados. Engaiolados como ratos que são. Depois soltam-se, irados e cheios de ódio. Homens irados cometem erros. E, da próxima vez, talvez Yoshima esteja à espera. É melhor deixar que os Japoneses façam o seu trabalho, ajudá-los não está certo. Talvez neste caso esteja certo. Mas não. É só um empurrão, talvez.

"Hei-de pegar-te, Peter Sacana Marlowe. Talvez mais cedo do que eu esperava. E a minha vingança sobre ti e sobre esse pulha vai ser um deslumbramento."

O Rei deu uma olhadela ao relógio. Nove e quatro. Coisa de segundos, agora. Uma coisa boa que tinham os Japoneses era que se sabia a cada instante o que eles iam fazer, pois, uma vez estabelecido um horário, estava estabelecido.

Então ouviu passos. Torusumi deu a volta à esquina da barraca e avançou rapidamente ao abrigo da cortina. O Rei levantou-se para o cumprimentar. Peter, também debaixo da cortina, pôs-se em pé com relutância, detestando-se a si próprio.

Torusumi era uma personagem entre os guardas. Muito conhecido. Perigoso e imprevisível. Tinha um rosto, quando a maior parte deles eram homens sem rosto. Estava no campo havia um ano ou mais. Gostava de tratar os prisioneiros com dureza e de os conservar ao sol e de lhes gritar, de lhes dar pontapés, quando era essa a sua disposição.

- T abe - disse o Rei -, queres fumar? - E ofereceu-lhe a lata de tabaco de Java.

Torusumi mostrou os dentes de ouro de que tanto se orgulhava, entregou a Peter Marlowe a sua carabina e sentou-se. Puxou de um maço de Kooas e ofereceu ao Rei, que aceitou um. Depois, o coreano olhou para Peter Malowe.

- Ichi-ban amigo - disse o Rei.

Torusumi grunhiu, mostrou os dentes, respirou fundo e ofereceu um cigarro.

Peter Marlowe hesitou.

-Tira, Peter - insistiu o Rei.

Peter Marlow obedeceu e o guarda sentou-se à pequena mesa.

- Diz-lhe - disse o Rei para Peter Marlowe - que é bem-vindo.

- O meu amigo diz que és bem-vindo e que tem prazer em te ver aqui.

- Ah, agradeço-te. O meu digno amigo tem alguma coisa para mim?

- Pergunta se tens alguma coisa para ele.

- Diz-lhe exactamente o que eu vou dizer, Peter. Sê rigoroso.

- Tenho de o pôr em vernáculo; não se pode traduzir exactamente.

- Está certo. Mas é preciso que sejas rigoroso. Leva o tempo que for preciso.

O Rei passou-lhe o relógio. Peter Marlowe notou com surpresa que estava como novo, polido de fresco, mostrador novo de plástico e num bonito estojo de camurça.

- Diz-lhe isto: um tipo que eu conheço quer vendê-lo. Mas é caro e talvez não seja o que ele quer.

Até Peter Marlowe viu o clarão da avareza nos olhos do coreano ao tirar o relógio da caixa e levá-lo ao ouvido, resmungando qualquer coisa e voltando a pô-lo em cima da mesa. Peter Marlowe traduziu a resposta do coreano: -"Tens mais alguma coisa? Lamento que um Omega não valha muito em Singapura nos tempos que correm."

- O teu malaio é excepcionalmente bom, Sir - acrescentou para Peter Marlowe, aspirando polidamente o ar por entre os dentes.

- Agradeço-te - disse Peter Marlowe, de má vontade.

- Que é que ele disse, Peter?

- Só que eu falo bem malaio, mais nada.

- Ah! Bem, diz-lhe que tenho muita pena, mas que é tudo o que consegui.

O Rei esperou que isto tivesse sido traduzido, depois sorriu, encolheu os ombros, pegou no relógio, meteu-o na caixa e de novo no bolso e levantou-se.

- Salamat! - disse.

Torusumi mostrou mais uma vez os dentes e depois fez um gesto para que o Rei se sentasse.

- Não é que eu queira o relógio - disse ele ao Rei. - Mas, porque és meu amigo e tiveste muito trabalho, eu perguntaria quanto é que o homem que possui este relógio insignificante quer por ele?

- Três mil dólares - respondeu o Rei. - Lamento que seja demasiado caro.

- Realmente é demasiado caro. O dono tem doença na cabeça. Eu sou um homem pobre, um simples guarda; contudo, porque fiz negócio contigo no passado e para te fazer um favor, ofereço-te trezentos dólares.

- Lamento. Não me atrevo. Ouvi dizer que havia outros compradores prontos a pagar um preço mais razoável através de outros intermediários. Concordo que és um homem pobre e que não devias oferecer dinheiro por um relógio tão insignificante. Claro, um Omega não vale muito dinheiro, mas, por deferência para com o dono, devias compreender que seria um insulto oferecer-lhe o que quer que fosse menos do que vale um relógio de segunda ordem.

- Isso é verdade. Talvez eu devesse aumentar o preço, pois até um homem -pobre tem honra e seria honesto tentar aliviar o sofrimento de qualquer homem nestes tempos duros. Quatrocentos.

- Agradeço a tua consideração pelo meu conhecido. Mas quanto a este relógio, porque é um Omega e dado que o preço de um Omega baixou da sua alta posição anterior, há, obviamente, uma razão mais definitiva para que não queiras fazer negócio comigo. Um homem de honra é sempre venerável...

- Também eu sou um homem de honra. Não tinha nenhum desejo de impugnar a tua reputação nem a reputação do teu conhecido que possui o relógio. Talvez eu devesse arriscar a minha reputação e tentar ver se conseguia persuadir esses miseráveis comerciantes chineses com quem tenho de negociar a pagar um preço justo uma vez nas suas miseráveis existências. Estou certo de que concordarás, mas quinhentos dólares seria o máximo que um homem justo e honesto poderia dar por um Omega, mesmo antes de o preço deles ter baixado.

- É verdade, meu amigo. Mas tenho um pensamento para ti. Talvez o preço do Omega não tenha baixado da sua posição ichi-bon. Talvez os mesquinhos chineses estejam enganadoramente a aproveitar-se de um homem de honra. É que, ainda na semana passada, um dos teus amigos coreanos veio ter comigo, comprou um relógio desses e pagou três mil dólares por ele. Apenas to ofereci por causa da minha velha amizade e da confiança que deve existir entre sócios de longa data.

- Falas-me com sinceridade? - E Torusumi cuspiu violentamente para o chão.

Peter Marlowe preparou-se para o golpe que seguira semelhantes explosões anteriormente.

O Rei estava sentado, imperturbável. "Meu Deus!", pensou Peter Marlowe. "O tipo tem nervos de aço." O Rei puxou de uns farrapos de tabaco e começou a enrolar um cigarro. Quando Torusiumi viu isto, conteve o seu delírio e ofereceu o seu maço de Kooas e acalmou-se.

- Admiro-me de os miseráveis comerciantes chineses, por quem arrisco a vida, serem tão corruptos. Fico horripilado por ouvir o que tu, meu amigo, me disseste. Pior, estou consternado. Pensar que eles abusaram da minha confiança. Durante um ano estive a negociar com o mesmo homem. E pensar que me ludibriou durante tanto tempo! Penso que vou matá-lo.

-O melhor - disse o Rei - é mostrares que és mais esperto que ele.

- Como? Gostava muito que o meu amigo me dissesse.

- Amaldiçoa-o com a tua língua. Diz-lhe que recebeste informações que provam que ele é um vigarista. Diz-lhe que, se não te fizer o preço justo no futuro, um preço justo mais vinte por cento para te recompensar de todos os seus erros passados, então poderás dizer umas coisas ao ouvido das autoridades. Então elas levá-lo-ão e às suas mulheres e filhos e abusarão deles para tua satisfação.

- É um conselho soberbo. Sinto-me feliz com o pensamento do meu amigo. Por causa do seu pensamento e da amizade que tenho por ele, seja-me permitido oferecer mil e quinhentos dólares. É todo o dinheiro que tenho no mundo, mais algum que me confiou um amigo que está com a doença de mulheres na pocilga chamada hospital e que não pode trabalhar para si próprio.

O Rei curvou-se e sacudiu as nuvens de mosquitos que lhe atacavam os tornozelos. "Estamos a aproximar-nos", pensou. "Vejamos. Vinte seria muito. Dezoito, certo. Quinze nada mal."

- O Rei pede-te que esperes - traduziu Peter Marlowe. - Ele tem de consultar o homem miserável que deseja vender-te um objecto a preço excessivo.

O Rei trepou pela janela e percorreu o comprimento da barraca, inspeccionando. Max estava no seu lugar. Dino junto ao caminho, de um lado. Byron Jones in do outro.

Encontrou o major Prouty, a transpirar de ansiedade, à sombra da barraca, próximo da barraca americana.

- Peço desculpa, Sir - segredou o Rei, com um ar infeliz.- O tipo não está nada interessado.

A ansiedade de Prouty aumentou. Tinha de vender. "Oh, meu Deus", pensou. "É a minha sorte. Tenho de arranjar dinheiro de qualquer maneira."

- Ele não oferece nada?

- O melhor que consegui foi quatrocentos.

- Quatrocentos?! Toda a gente sabe que um Omega vale pelo menos dois mil.

- Receio bem que isso seja história, Sir. Ele... bem, ele parece desconfiado de que não seja um Omega.

- Está maluco! Claro que é um Omega.

- Desculpe, Sir - disse o Rei, empertigando-se um tanto. - Eu só repito o que ele diz...

- Desculpe, cabo. Não quis ofendê-lo. Estes sacanas amarelos são todos a mesma coisa.

"E agora que é que eu faço?", perguntou Prouty a si mesmo. "Se não o vendo por intermédio do Rei, não o vendo de modo nenhum. E preciso do dinheiro para a unidade, ou todo o nosso trabalho terá sido em vão. Que faço?"

Prouty reflectiu um minuto e depois disse:

- Veja o que pode fazer, cabo. Eu não posso aceitar menos de mil e duzentos. Não é possível.

- Bem, Sir, não me parece que possa fazer grande coisa, mas vou tentar.

- Você é uma jóia. Confio em si. Não queria vendê-lo tão barato, mas temos andado tão mal de comida... Sabe como é.

- Sei, sim, Sir - disse o Rei polidamente. - vou tentar, mas receio bem não poder arrancar muito mais. Ele diz que os Chineses já não compram como compravam. Farei o que puder.

Grey avistara Torusumi, que passeava pelo campo, e sabia que em breve seria a altura. Levantou-se e saiu da barraca, ajeitando a braçadeira e dando um toque no boné. Não havia necessidade de testemunhas, a sua palavra bastava. Assim, foi sozinho.

O coração pulsava-lhe agradavelmente. Era sempre assim quando preparava uma detenção. Atravessou a linha das barracas e desceu os degraus para a rua principal. Era este o caminho mais longo. Escolheu-o deliberadamente, porque sabia que o Rei montava sentinelas sempre que tratava de negócios. Mas ele conhecia as suas posições. E sabia que havia um caminho através do campo de minas humanas.

- Grey!

Voltou-se para olhar. O coronel Samson dirigia-se para ele.

- Meu coronel!

- Ah, Grey, prazer em vê-lo. Como vão as coisas?

- Tudo bem. Muito obrigado, Sir - respondeu, surpreendido por ser tratado de modo tão familiar.

A despeito da sua ansiedade de estar longe, ficou satisfeito, e bastante.

O coronel Samson tinha um lugar especial no futuro de Grey. Samson era uma personagem, uma personagem real. Ministério da Guerra. E muito bem relacionado. Um homem assim podia ser mais que útil, mais tarde. Samson pertencia ao estado-maior do Oriente e tinha uma missão vaga, mas importante: General qualquer coisa. Conhecia todos os oficiais superiores e falava de como convivia com eles socialmente, na sua "casa de campo" em Dorset, e de como vinha toda a gente "bem" a caçadas, garden parties e bailes que ele organizava. Um homem como Samson podia talvez compensar o que faltava a Grey em "relações" e em "classe".

- Queria falar consigo, Grey - disse Samson- Tenho uma ideia que talvez lhe interesse. Sabe que estou a compilar a história oficial

da campanha. Claro - acrescentou com bom humor que não é

ainda a oficial mas, quem sabe, talvez venha a ser. O general Sonny Wilkinson é o historiador oficial do Ministério da Guerra, como sabe, e tenho a certeza de que o Sonny estará interessado numa versão local. Pergunto-me se você -estaria interessado em verificar alguns factos. Sobre o seu regimento?

"Agradar-me-ia", pensou Grey. "Agradar-me-ia. Daria tudo por isso. Mas não agora."

- Gostaria muito, Sir. Sinto-me lisonjeado por pensar que as minhas opiniões valem alguma coisa. Estaria bem amanhã? Depois do pequeno-almoço.

- Oh! - disse Samson. - Tinha esperança de que pudéssemos conversar agora um pouco. Talvez outro dia. Eu depois digo-lhe...

E Grey sabia indistintamente que, se não fosse agora, não seria nunca. Samson nunca falara muito com ele. "Talvez", pensou desesperadamente, "talvez eu possa dar-lhe o bastante para o lançar e possa ainda apanhá-los. Os negócios por vezes levam horas. Vale a pena correr o risco!"

- Tenho muito prazer agora, se o deseja, Sir. Mas não muito tempo, se não se importa. Dói-me a cabeça. Uns minutos, se não se importa.

- Óptimo! - E o coronel Samson ficou muito satisfeito. Pegou no braço de Grey e voltou com ele para a sua barraca.

- Sabe, Grey, o seu regimento é um dos meus favoritos. Fez um excelente trabalho. Você teve uma menção, não foi? Em Kota Bharu?

- Não, Sir. - "Céus, bem devia ter tido!" - Não havia tempo para pedir condecorações. Não que eu tivesse direito a uma mais que qualquer outro. - Pensava-o sinceramente. Muitos homens mereciam condecorações e nunca tiveram sequer uma menção. Não havia tempo para isso. Agora não.

- Você nunca pode contar, Grey - disse Samson. - Talvez depois da guerra possamos refazer muitas coisas.

Fez sentar Grey.

- Então qual era o estado das linhas de batalha quando você chegou a Singapura?

- Lamento dizer ao meu amigo - disse Peter Marlowe pelo Rei - que o miserável -possuidor deste relógio se riu de mim. Disse-me que o mínimo que aceitaria seriam dois mil e seiscentos dólares. Tenho vergonha de te dizer isto, mas, porque és meu amigo, sou obrigado a dizer-to.

Torusumi ficou obviamente penalizado. Através de Peter Marlowe, falaram do tempo, da falta de comida, e Torusumi mostrou-lhes uma fotografia, gasta e amarrotada, de sua mulher e dos seus três filhos e falou-lhes um pouco da sua vida na sua aldeia, logo à saída de Seul, e de como ganhava a vida como lavrador, embora tivesse um diploma universitário, e de como odiava a guerra. Disse-lhes como ele próprio odiava os Japoneses, como todos os Coreanos detestavam todos os senhores feudais japoneses. Disse que os Coreanos nem sequer são aceites no exército japonês. São cidadãos de segunda classe, não têm voz em nada e são escouceados ao capricho do mais baixo dos Japoneses.

E assim conversaram, até que, por fim, Torusumi se levantou.

Recebeu de novo a sua carabina de Peter Marlowe, que a segurara todo o tempo, obcecado pela ideia de que podia estar carregada e de como seria fácil matar alguém. Mas por que razão? E que aconteceria depois?

- vou dizer ao meu amigo uma última coisa, porque não gosto de te ver de mãos vazias, sem nenhum lucro, nesta noite malcheirosa, e gostava de te pedir que conversasses com o ambicioso proprietário deste relógio miserável. Dois mil e cem!

- Mas, com respeito, devo lembrar ao meu amigo que o miserável proprietário, que é um coronel e, como tal, um homem sem sentido de humor, disse que só aceitaria dois mil e seiscentos. Sei que não desejas que ele me cuspa.

- É verdade; porém, com deferência, eu sugeriria que pelo menos lhe desses a oportunidade de recusar uma última oferta, feita com verdadeira amizade, em que eu próprio não tenho qualquer lucro. E talvez dar-lhe uma oportunidade de retractar-se da sua rudeza.

- Tentarei, porque és meu amigo.

O Rei deixou Peter Marlowe e o coreano. Passou o tempo e eles esperaram. Peter Marlowe ouviu a história de como Torusumi foi pressionado para o serviço militar e de como não tinha estômago para a guerra.

Então, o Rei desceu pela janela.

- O homem é um porco, um idólatra sem vergonha. Cuspiu em cima de mim e disse que ia espalhar que eu era um mau negociante e que me ia meter na cadeia antes de aceitar menos de dois mil e quatrocentos...

Torusumi bramia e ameaçava. O Rei estava calmamente sentado e pensava: "Jesus! Perdi o tacto, fui demasiado longe desta vez." E Peter Marlowe pensava: "Cristo! Por que diabo me meti eu nisto?"

- Dois mil e duzentos - cuspiu Torusumi. O Rei encolheu os ombros, vencido.

- Diz-lhe que está bem - resmungou para Peter Marlowe. É duro de mais para mim. Diz-lhe que vou ter de dar a sacana da minha comissão para pagar a diferença. O filho da mãe não aceita um tusto a menos. Mas que raio de lucro é o meu?

- És um homem de ferro - disse Peter Marlowe pelo Rei. - vou dizer ao miserável coronel, dono do relógio, que ele receberá o seu preço, mas para isso tenho de desistir da minha comissão para cobrir a diferença entre o preço que tu ofereceste e o preço que ele, homem miserável, aceitará. Mas onde está o meu ganho nisto? O negócio é respeitável, mas mesmo entre amigos devia haver lucro para as duas partes.

-Porque tu és meu amigo, vou acrescentar mais cem. Assim, salvas a face e da próxima vez não precisas de aceitar o negócio de um freguês tão forreta.

- Agradeço-te. És mais hábil que eu.

O Rei entregou o relógio na sua caixinha de camurça e contou o dinheiro do rolo de notas falsas novas. Dois mil e duzentos estavam já num montinho. Torusumi acrescentou os cem extras. com um sorriso. Fora mais esperto que o Rei, cuja reputação como bom negociante era do conhecimento de todos os guardas. Podia vender facilmente o Omega por cinco mil dólares. Pelo menos entre três mil e cinco mil. Não era mau lucro para a ocupação de um guarda.

Torusumi deixou o maço- de Kooas aberto e outro maço cheio como compensação pelo mau negócio que o Rei fizera. "No fim de contas", pensou, "há uma longa guerra à nossa frente e o negócio é bom. E, se a guerra for curta... bem, de qualquer modo, o Rei será um aliado útil."

- Procedeste muito bem, Peter.

- Julguei que ele ia rebentar.

- Também eu. Fica à vontade. Eu volto num minuto.

O Rei encontrou Prouty ainda nos braços de Morfeu. Deu-lhe novecentos dólares, a quantia com que o infeliz major relutantemente concordara, e recebeu a sua comissão: noventa dólares.

- As coisas estão a ficar cada dia mais difíceis - disse o Rei. "Sim, estão, meu filho da mãe", pensou Prouty para consigo.

"Contudo, oitocentos e dez por um Omega falso não é nada mau." E riu para si próprio, por ter levado o Rei à certa.

- Estou horrivelmente desapontado, cabo. A última coisa que eu tinha!

Vamos lá a ver", pensou, satisfeito, "vai levar um par de semanas a arranjar outro a jeito. Timsen, o australiano, pode fornecer a próxima venda."

De súbito, Prouty viu Grey, que se aproximava. Afastou-se rapidamente pelo labirinto de barracas, fundindo-se nas sombras, salvo. O Rei saltou por uma janela para dentro da barraca americana e retomou o jogo de poker, dizendo para Peter Marlowe:

- Apanha as cartas, cum raio!

Os dois homens cujos lugares eles tinham tomado viram o Rei distribuir o monte de motas, até que havia um montinho à frente de cada homem, e Grey estava de pé junto à porta.

Ninguém lhe prestou atenção, até que o Rei levantou os olhos, bem-disposto.

- Boa noite, Sir.

- Noite. - O suor escorria pela cara de Grey. - É muito dinheiro. Santa Mãe de Deus! Nunca vi tanto dinheiro na minha vida. Pelo menos num só lugar. O que eu não podia fazer só com uma parte dele!

- Nós gostamos de jogar, Sir.

Grey voltou a mergulhar na noite. "Que Samson vá para o inferno!"

Os homens fizeram umas jogadas, até que soou o fim de alerta. Então o Rei rapou o dinheiro e deu a cada um uma nota de dez. Houve um coro de agradecimentos. Deu a Dino dez dólares para cada um dos guardas lá de fora, fez um sinal de cabeça a Peter e foram os dois para o fundo da barraca.

- Merecemos uma chávena do negro.

O Rei estava um pouco cansado. A tensão de estar no topo era fatigante. Estendeu-se na cama e Peter Marlowe fez o café.

- Sinto que não te dei sorte - disse Peter Marlowe calmamente.

- Ha?

- A venda. Não correu muito bem, pois não? O Rei rugiu:

- De acordo com o plano. Toma. - E tirou cento e dez dólares que deu a Peter Marlowe. - Deves-me dois dólares.

- Dois dólares? - Olhou para o dinheiro. - Que é isto?

- É a tua comissão.

- De quê?

- Jesus! Não pensas que te pus a trabalhar para nada, ou pensas? Por quem me tomas?

- Eu disse que tinha prazer em fazê-lo. Não tenho direito a nada.

- És maluco. Cento e oito dólares: dez por cento. Não é uma esmola. São teus. Ganhaste-os.

- És tu que estás maluco. Como diabo posso eu ganhar cento e oito dólares numa venda de dois mil e duzentos dólares, quando isso é o preço total e não há lucros? Não vou ficar com o dinheiro que ele te deu.

- Não podes servir-te dele? Tu, ou o Mac ou o Larkin?

- Claro que posso. Mas não é justo. E não compreendo porquê cento e oito dólares.

- Peter, não compreendo como sobreviveste neste mundo até agora. vou explicar-te muito simplesmente. Eu fiz mil e oitenta dólares na venda. E dez por cento são cento e oito. Cento e dez menos dois são cento e oito. Dei-te cento e dez. Deves-me dois palhaços.

- Como diabo fizeste isso tudo, quando...?

- vou dizer-te. Lição nº 1 em negócios: compra barato e vende caro, se puderes. Vê esta noite, por exemplo.

O Rei explicou com satisfação como levara Prouty à certa. Quando acabou, Peter Marlowe ficou silencioso por muito tempo. Depois disse:

- Bem, parece-me desonesto.

- Não há nisso nada de desonesto, Peter. Todo o negócio se baseia na teoria de que se vende mais caro do que se compra... ou custa-nos dinheiro.

- Está certo. Mas não te parece que a margem de lucro é... um pouco alta?

- Não, cos diabos. Todos sabíamos que o relógio era uma imitação. Excepto o Torusumi. Não te importas de o esfolar, pois não? Embora ele possa facilmente impingi-lo a um chinês, com lucro.

- Não creio.

- Certo. Olha o Prouty. Estava a vender uma coisa falsa. Talvez o tivesse roubado, não sei, mas vendeu-o barato, porque não é um bom negociante. Se ele tivesse tido estofo para retirar o relógio e partir rua abaixo, eu tê-lo-ia chamado e subido o preço. Podia ter-me levado. E eu protejo sempre os meus clientes; por isso o Prouty está seguro e sabe-o, enquanto eu posso estar tramado.

- Que fazes quando o Torusumi descobrir e voltar?

- Há-de voltar. - E o Rei arreganhou subitamente a tacha e dava gosto ver a alegria dele. - Mas não para gritar. Era admitir que foi levado, e isso ele não faz. Se eu propalasse isso, os amigos do gajo gozavam-no à brava. Ele nunca admitirá que foi levado num negócio. Há-de voltar, é certo, mas para tentar levar-me a mim da próxima vez.

Acendeu um cigarro e deu outro a Peter Marlowe.

- Pois - continuou alegremente - o Prouty apanhou novecentos, menos os meus dez por cento de comissão. Pouco mas não injusto, e não esqueças que tu e eu corríamos os riscos todos. Agora vamos aos nossos custos. Tive de pagar cem para mandar polir o relógio, limpar e pôr um vidro novo. Vinte para o Max, que ouviu falar da venda em perspectiva, dez para cada um dos quatro guardas e mais sessenta para os rapazes que cobriram a operação a jogar as cartas. Isto faz mil cento e vinte. Mil cento e vinte tirados de dois mil e duzentos ficam mil e oitenta. E dez por cento são cento e oito manguços. Nada mais simples.

Peter Marlowe abanou a cabeça. Tantos números, tanto dinheiro e tanta excitação. Num momento estavam a falar com um coreano e no momento seguinte ele tinha cento e dez - cento e oito - dólares na mão. Nada mais simples. "Pelo careca", pensou, radiante. "São vinte e tal cocos ou montes de ovos. O Mac! Agora podemos dar-lhe um pouco de comida. Ovos! Ovos é o melhor.

De súbito, ouviu o pai a falar, ouviu-o tão claramente como se estivesse ali ao lado. E podia vê-lo, erecto e robusto, no seu uniforme da Marinha Real: "Escuta, meu filho, há uma coisa que se chama honra. Se fazes negócio com um homem, diz-lhe a verdade e ele terá de te dizer a verdade, ou não será honrado. Protege outro homem como esperas que ele te proteja. E, se um homem não tiver honra, não te associes com ele, porque ele te corromperá. Lembra-te, há pessoas honestas e pessoas sujas. Há dinheiro honesto e dinheiro sujo."

"Mas isto não é dinheiro sujo", foi como se ouvisse a si próprio responder. "Não, da maneira que o Rei acaba de explicar. Tomavam-onno por um palerma. E ele foi mais esperto que eles."

"Verdade. Mas é desonesto vender o que é de outro homem e dizer-lhe que rendeu muito menos que na realidade."

"Sim, mas ..."

"Não há mas nem meio mas, meu filho. É verdade que há graus de honra... Mas um homem só pode ter um único código. Faz o que quiseres. A escolha é tua. Há coisas que um homem deve decidir por si mesmo. Por vezes temos de adaptar-nos às circunstâncias. Mas, por amor de Deus, guarda-te a ti próprio e à tua consciência, pois ninguém o fará por ti, e lembra-te de que uma má decisão na altura própria pode destruir-te com mais certeza que uma bala."

Peter Marlowe sopesou o dinheiro e calculou o que poderia fazer com ele, ele, Mac e Larkin. Pô-lo na balança da sua consciência e um dos pratos baixava pesadamente para um lado. O dinheiro pertencia de facto a Prouty e à sua unidade. Talvez fosse a última coisa que possuíam mo mundo. Talvez, por causa do dinheiro roubado, Prouty e a sua unidade, que ele mão conhecia, viessem a morrer. Tudo por causa da sua cobiça. Contra isto estava Mac. A sua necessidade era agora. E a de Larkin. "E a minha. A minha também, não te esqueças de mim." Lembrava-se de o Rei dizer: "Não há necessidade de aceitar esmolas." E ele estivera a aceitar esmolas. Muitas.

"Que fazer, meu Deus, que fazer?" Deus não respondia.

-Obrigado, obrigado pelo dinheiro - disse Peter Marlowe.

Pô-lo para o lado. E todo o seu ser teve consciência de que ele queimava.

- Qual obrigado! Ganhaste-o. É teu. Trabalhaste por ele. Não te dei nada.

O Rei estava radiante e o seu júbilo mitigava a auto-repugnância de Peter Marlowe.

- Vem daí - disse ele.-Temos de festejar o nosso primeiro negócio juntos. com os meus miolos e o teu malaio, ainda vamos ter uma grande vida!

O Rei estrelou uns ovos. Enquanto comiam, disse a Peter Marlowe como mandara os rapazes buscar novas provisões de comida, quando soube que Yoshima encontrara o rádio.

- Nesta vida, é preciso saber jogar, meu velho Peter. Não há Duvida. Calculei que os Japoneses iam fazer-nos a vida dura durante algum tempo. Mas só para aqueles que não estivessem preparados Para lhes trocar as voltas. Olha o Tex. O pobre filho da mãe não tinha caroço para comprar um simples ovo. Olha para ti e para o Larkin. Se não fosse eu, o pobre do Mac ainda estaria a sofrer, pobre palerma. Eu gosto de ajudar. Gosto de ajudar os meus amigos. Um homem tem de ajudar os seus amigos, ou a vida não tem sentido.

- Acho que tens razão - respondeu Peter Marlowe.

Que coisa horrível de dizer! Foi ofendido pelo Rei e não compreendeu que o espírito americano é simples em algumas coisas, tão simples como o espírito inglês. Um americano orgulha-se da sua capacidade de fazer dinheiro, e com razão. Um inglês, tal como Peter Marlowe, orgulha-se de se deixar matar pela bandeira. com razão.

Viu o Rei olhar para fora da janela e seguiu-lhe a direcção do olhar. Viu então um homem que seguia pelo carreiro. Quando ele entrou numa mancha de luz, Peter Marlowe reconheceu-o. O coronel Samson.

Quando Samson viu o Rei, fez-lhe um sinal amigável.

- Boa noite, cabo - disse, seguindo o seu caminho.

O Rei contou noventa dólares e entregou-os a Peter Marlowe.

- Faz-me um favor, Peter. Põe aqui mais dez dólares e entrega isto àquele tipo:

- Ao Samson? Ao coronel Samson?

- Exactamente. Encontra-lo à esquina da cadeia.

- Dou-lhe o dinheiro? Assim, sem mais nada? E que lhe digo?

- Dizes que é da minha parte.

"Santo Deus", pensou Peter Marlowe, apavorado. "O Samson também está na lista de pagamentos? Não pode ser! Não posso fazer isto. Tu és meu amigo, mas eu não posso ir ter com um coronel e dizer-lhe: Aqui estão cem dólares que manda o Rei. Não posso!"

O Rei leu na alma do seu amigo. "Oh, Peter", pensou, "és uma pobre criança." Depois acrescentou ao anterior pensamento: "Vai para o diabo!" Mas afastou o último pensamento e amaldiçoou-se. O Peter era o único tipo no campo que ele jamais quisera para seu amigo, o único de que precisava. Por isso decidiu ensinarjlhe os factos da vida. "Vai ser duro, meu rapaz, e vai talvez magoar-te muito, mas vou ensinar-te, ainda que tenha de te partir. Vais sobreviver e vais ser meu sócio."

- Peter - disse ele -, há alturas em que tens de confiar em mim. Nunca te deixarei ficar mal. Enquanto fores meu amigo, confia em mim. Se não queres ser meu amigo, muito bem. Mas gostava que fosses meu amigo.

Peter Marlowe sabia que havia aqui outro momento de verdade. Havia que aceitar o momento com confiança... ou abandonado e desaparecer.

A vida de um homem está sempre numa encruzilhada. E não só a sua vida, se ele for um homem. Há sempre outros na balança.

Sabia que um caminho punha em risco as vidas de Larkin e de Mac, juntamente com a sua própria, pois, sem o Rei, eram tão indefesos como qualquer outro no campo; sem o Rei não havia aldeia, pois sabia que ele nunca se arriscaria sozinho... nem mesmo pelo rádio. O outro caminho poria em perigo uma herança ou destruiria um passado. Samson era uma força no Exército Regular, um homem de casta, posição e fortuna, e Peter Marlow nascera para ser oficial - como o seu pai antes dele e o seu filho depois dele -, e uma acusação dessas nunca podia ser esquecida. E, se Samson era um mercenário, então tudo aquilo que lhe fora ensinado a acreditar não teria qualquer valor.

Peter Marlowe esteve atento enquanto pegou no dinheiro, mergulhou na noite, subiu o carreiro e encontrou o coronel Samson e ouviu-o dizer baixinho:

- Olá, é você, não é, Marlowe? Viu-se a entregar o dinheiro.

- O Rei pediu-me que lhe desse isto.

Viu os olhos remelosos animarem-se, enquanto Samson contava cupidamente o dinheiro e o metia depois nas suas calças esfarrapadas.

Ouviu Samson segredar:

- Agradeça-lhe e diga-lhe que eu retive o Grey durante uma hora. Foi o máximo que consegui retê-lo. Foi suficiente, não foi?

- Foi o bastante. Justamente o suficiente. - E depois ouviu-se como a dizer: "Da próxima vez, retém-no mais tempo, ou manda recado, meu pascácio."

- Retive-o o mais possível. Diga ao Rei que peço desculpa e que não voltará a acontecer. Prometo. Escute, Marlowe. Sabe como é, às vezes. Torna-se um pouco difícil.

- Eu digo-lhe que o meu coronel pede desculpa.

- Sim, sim, obrigado, muito obrigado, Marlowe. Invejo-o, Marlowe. Por estar tão perto do Rei. Tem sorte.

Peter Marlowe voltou para a barraca americana. O Rei agradeceu-lhe e ele agradeceu ao Rei, depois mergulhou na noite.

Encontrou um pequeno promontório donde se dominava o arame farpado e desejou-se no seu Spitfirej subindo nos céus, mais alto, sempre mais alto, para onde tudo é límpido e puro, onde não há gente ignóbil ("como eu"), onde a vida é simples, onde se pode conversar com Deus, ser de Deus, sem vergonha.

Peter Marlowe estava estendido no seu catre, mergulhado num sono leve. À sua volta, homens que acordavam, que se levantavam, que iam aliviar-se, que se preparavam para partidas de trabalho, entrando e saindo da barraca. Mike penteava já o seu bigode, quase quarenta centímetros de ponta a ponta; jurara nunca o cortar até ser solto. Barstairs, em posição vertical, apoiado na cabeça, praticava ioga, Phil Mint esfuracava o nariz, começado o jogo de brídege, Raylins praticava exercícios de canto, Myner fazia escalas no seu teclado de madeira, Chaplain Grover tentava já animar toda a gente, Thomas praguejava contra a demora do pequenoalmoço.

Por cima de Peter Marlowe, Ewart, que dormia na cama de cima, resmungava sem sono e pendurava as pernas para fora da cama.

- Escouceaste como um danado! - E Peter Marlowe fazia sempre o mesmo comentário, porque Ewart dormia desassossegado.

- Desculpa.

Ewart dizia sempre: "Desculpa." Desceu pesadamente. Não tinha lugar em Changi. O seu lugar era a oito quilómetros de distância, no campo civil, onde estavam a mulher e a família - talvez estivessem. Não fora autorizado qualquer contacto entre os campos.

- Vamos queimar a cama depois de tomarmos duche - disse ele, bocejando.

Era baixo, moreno e chato.

- Boa ideia.

- Nem parece que o fizemos há três dias. Como dormiste?

- O costume.

Peter Marlowe sabia que nada era como de costume depois de ter aceitado o dinheiro, depois de Samson.

A impaciente bicha para o pequenoalmoço estava já a formar-se quando eles levaram a cama de ferro para fora da barraca. Levantaram a cama de cima e tiraram as barras de ferro que entravam em ranhuras na de baixo. Depois apanharam cascas de coco e uns ramitos debaixo da barraca e fizeram fogueiras debaixo das quatro pernas.

Enquanto as pernas aqueciam, pegaram em ramos a arder e passaram-nos longitudinalmente por baixo das barras e das molas. Em breve, a terra por baixo ficou negra de percevejos.

- Santo Deus, vocês dois! - gritou-lhes Phill. - Têm de fazer isso antes do pequeno-almoço?

Phil era um homem azedo, com peito de rola e um cabelo violentamente ruivo.

Não -prestaram atenção. Phil gritava sempre com eles e eles queimavam sempre a cama antes do pequenoalmoço.

- Santo Deus, Ewartl - disse Peter Marlowe. - Dir-se-ia que os percevejos podiam pegar na cama e ir-se embora com ela.

- Quase me puseram fora da cama a noite passada. Malcheirosos! Numa súbita fúria, Ewart espezinhou miríades de percevejos.

- Calma, Ewartl

- Não posso evitar. Fazem-me arrepiar.

Quando tinham acabado de queimar a cama, deixaram-na arrefecer e limparam os seus colchões. Esta operação levou-lhes meia hora. Depois, os mosquiteiros. Mais meia hora.

Por essa altura, as camas estavam suficientemente frias para serem manejadas. Armaram a cama e levaram-na de novo para dentro e puseram-na em cima das quatro latas - cuidadosamente limpas e cheias de água - e verificaram que as bordas das latas não tocavam nas pernas de ferro.

- Que dia é hoje, Ewart? - perguntou Peter Marlowe distraidamente, enquanto esperavam pelo pequeno-almoço.

- Domingo.

Peter Marlowe estremeceu, lembrando-se daquele outro domingo. Foi depois de a patrulha japonesa o ter apanhado. Estava no hospital em Bandung nesse domingo. Nesse domingo, os Japoneses tinham dito a todos os prisioneiros de guerra doentes que juntassem as suas coisas, porque iam para outro hospital.

Tinham-se reunido no pátio algumas centenas. Só não iam os oficiais superiores. Segundo o boato que corria, iam para a Formosa. O general também ficava, ele que era o oficial superior, ele que abertamente passeava pelo campo comungando com o Espírito Santo. O general era um homem apurado, de ombros quadrados, e o seu uniforme estava húmido do cuspo dos conquistadores.

Peter Marlowe lembrava-se de carregar o seu colchão através das ruas de Bandung, sob um céu de fogo, as ruas bordadas de gente silenciosa, vestida de muitas cores, e depois deitar fora o colchão. Pesado de mais. Depois de cair, mas de se levantar. Depois, os portões da prisão tinham-se aberto e tinham-se fechado. Havia no pátio espaço bastante para alguém se deitar. Mas ele e alguns outros tinham sido fechados em celas minúsculas. Havia correntes nas paredes e um buraco no chão, que era a latrina, e à volta desse buraco havia fezes de anos. Palha pestilenta atapetava o chão.

Na cela contígua havia um maníaco, um javanês que enlouquecera e matara três mulheres e duas crianças, antes que os Holandeses o dominassem. Agora não eram holandeses os carcereiros. Também eles estavam encarcerados. Todos os dias e todas as noites o louco batia com as correntes e gritava e todo aquele espanejar, as bicadas e montar as galinhas fossem fita.

Peter Marlowe sentou-se ao lado de Mac enquanto este consumia a galinha e dela compartilhou.

- Bem, rapaz, já não me lembro de me ter sentido tão bem nem tão cheio.

- Óptimo! Tens um bom aspecto, Mac.

Peter Marlowe disse a Mac donde viera o dinheiro para a galinha e Mac disse-lhe:

- Fizeste bem em aceitar o dinheiro. O mais provável é esse Prouty ter roubado a coisa ou tê-la feito. Fez mal em tentar vender um mau produto. Lembraste, pá: caveat emptor.

- Então por que será - perguntou Peter Marlowe - que me sinto tão culpado? Tu e o Larkin dizem que fiz bem. Embora eu pense que Larkin não estava tão seguro como tu...

- É negócio, rapaz. O Larkin é contabilista. Não é homem de negócios. Ora, eu conheço os caminhos do mumdo.

- Tu és um miserável plantador de borracha. Que diabo percebes tu de negócios? Estiveste preso a uma plantação.

- Quero que saibas - disse Mac, com as penas todas eriçadas que a maior parte da vida de um agricultor é ser um homem de negócios. É que todos os dias se tem de negociar com os Tâmiles ou com os Chineses... que agora são uma raça de homens de negócios. Então não foram eles que inventaram todos os truques que há?

Assim conversaram um com o outro e Peter Marlowe ficou satisfeito por Mac reagir de novo às suas brincadeiras. Sem quase darem por isso, começaram a falar malaio.

Então Peter Marlowe disse com um ar natural:

- Conheces tu a coisa que é de três coisas? - E, por segurança, falava do rádio em parábolas.

Mac olhou em redor para ter a certeza de que ninguém podia ouvi-los.

- Sim. Que tem?

- Estás agora seguro da sua doença em particular?

- Não seguro... mas quase. Porque perguntas?

- Porque o vento trouxe um sussurro que falava de um remédio para curar a doença de várias espécies.

O rosto de Mac iluminou-se:

- Wah-lah - disse. - Fizeste um velho feliz. Dentro de dois dias estarei fora deste lugar; então levar-me-ás a esse sussurrador.

- Não, isso não é possível. Tenho de fazer isto em particular. E depressa.

- Não queria pôr-te em perigo - disse Mac pensativamente.

- O vento trouxe esperança. Como está escrito no Alcorão sem esperança o homem não é mais que um animal.

- Talvez fosse melhor esperar que procurar a tua morte.

- Eu esperaria, mas o conhecimento que procuro tenho-lo hoje.

- Porquê? -perguntou abruptamente em inglês. Porquê Peter?

Peter Marlowe amaldiçoou-se por ter caído tão facilnente na armadilha que tão cuidadosamente planeara evitar. Sabia que o que dissesse a Mac a respeito da aldeia, Mac perderia a cabeça com preocupação. Não era que Mac o detivesse, mas sabia que não iria se Mac e Larkin lhe pedissem que não fosse. "Que diabo faço agora"

Lembrou-se então do conselho do Rei.

- Hoje, amanhã, não interessa - dise. E tocou a sua trombeta. Levantou-se. O truque mais velho do livro. Até amanhã,

Mac. Talvez o Larkin e eu apareçamos esta noite.

- Senta-te, rapaz. A não ser que tenhas alguma coisa que fazer. - Não tenho' nada que fazer.

Mac, mal-humorado, passou para malaio.

- Dizes a verdade? Que "hoje" não queria dizer nada? O espírito do meu pai segredou-me que os que são novos correm perigos que até o Diabo evitaria.

- Está escrito: a escassez dos anos não implica necessariamente escassez de sabedoria.

Mac estudou Peter Marlowe especulativamente. "Estará ele a planear alguma coisa? Alguma coisa com o Rei? Bem", pensou fatigadamente, "o Peter está já metido no perigo do rádio até à cabeça e trouxe de facto um terço dele desde Java."

- Pressinto perigo para ti - disse por fim.

- Um urso sabe tirar o mel aos zangãos sem perigo. Uma aranha pode meter-se com segurança debaixo das rochas, porque sabe onde e como procurar. - Peter Marlowe manteve um rosto inocente - Não receies por mim, meu velho. Eu procuro só debaixo da5 rochas.

Mac concordou com a cabeça, satisfeito.

- Conheces o meu contentor?

- com certeza.

- Creio que ficou doente quando lhe entrou uma gota e chuva e tocou numa coisa e a apodreceu, como uma árvore caída na floresta. A coisa é pequena como uma cobrinha, delgada como uma minhoca, curta como uma barata. - Bocejou e espreguiçou-se - As

minhas costas matam-me - disse em inglês. - És capaz de me ajeitar

a almofada?

Quando Peter Marlowe se curvou, Mac soergueu-se e segredou-lhe ao ouvido:

- Um condensador de união, de trezentos microfarads.

- Estás melhor assim? - perguntou Peter Marlowe quando Mac se acomodou.

- Óptimo, rapaz, estou muito melhor. Agora põem-te a cavar. Todos estes disparates cansaram-me.

- Bem sabes que te distraem, meu pirata.

- Puki mahlu!

- Senderis! - disse Peter Marlowe, e saiu para o sol.

Um condensador de união, de trezentos microfarads. Que raio é um microfarad?

O vento que vinha da garagem trazia-lhe o cheiro agradável de gasolina, junto com o de óleo e massa consistente. Sentou-se ao lado do carreiro, numa mancha de relva, para gozar o aroma. "Santo Deus!", pensou. "O cheiro de gasolina traz-me recordações: aviões, Gosport e Famborough e oito outros aeródromos e os Spitfire e Hurricane.

"Mas agora não penso neles, penso no rádio."

Mudou de posição e sentou-se na poltrona, com o pé direito na coxa esquerda, mãos no regaço, com os polegares apontados para o umbigo. Muitas vezes se sentara assim. Ajudava-o a pensar, pois, uma vez que a dor inicial passara, havia sossego que lhe invadia o corpo, e o espírito elevava-se, livre.

Estava calmamente sentado e os homens passavam, mal dando por ele. Nada havia de estranho em ver um homem assim sentado ao calor do sol do meio-dia, tostado e vestindo um sarong. Absolutamente nada de estranho.

"Agora sei o que tem de conseguir-se. De qualquer maneira. Tem de haver uma telefonia na aldeia. As aldeias são como as pegas: juntam toda a espécie de coisas." E riu-se, lembrando-se da sua aldeia em Java.

Encontrara-a tropeçando na selva, exausto e perdido, mais morto que vivo, longe das linhas rodoviárias que se entrecruzavam em Java. Percorrera muitos quilómetros e era o dia 11 de Março. As forças da ilha tinham capitulado a 8 e o ano era 1942. Durante três dias vagueara pela selva, comendo moscas e outros insectos e dilacerado por espinhos, sugado por sanguessugas e encharcado por chuvas. Não vira ninguém, não ouvira ninguém, desde que deixara o aeródromo do Norte. Deixara o seu esquadrão, o que dele restava, e deixara o seu Hurricane. Mas, antes de -ter fugido, fizera do seu aeroplano morto-torcido, partido por bomba e obus - uma pira funerária. Um homem não podia fazer menos que queimar o seu amigo.

Quando chegou à aldeia, era o pôr do Sol. Os javaneses que o rodeavam eram hostis. Não lhe tocaram, mas o ódio nas suas faces era fácil de ver. Fitavam-no em silêncio e ninguém fazia um gesto para o socorrer.

"Onde posso arranjar água e comida?", perguntara.

Nenhuma resposta.

Então vira o poço e caminhara para ele, seguido por olhos irados, e nele se dessedentara. Depois sentara-se e começara a esperar.

A aldeia era pequena, bem escondida. Parecia francamente rica. As casas, construídas em volta de uma praça, eram montadas sobre estacas e feitas de bambu. Por baixo das casas havia muitos porcos e galinhas. Junto a uma casa maior havia um cerrado com cinco búfalos. Isso significava que a aldeia era próspera.

Por fim foi conduzido à casa do chefe. Os nativos, silenciosos, subiram os degraus, mas mão entraram. Sentaram-se na varanda, escutaram e esperaram.

O chefe era velho, de um castanho de noz e enrugado. E hostil. A casa, como todas as casas deles, era uma sala grande, compartimentada por uma espécie de biombos em pequenas divisões. Ao centro da divisão destinada a comer, conversar e pensar, havia uma sanita de porcelana, com tampa. Não havia qualquer ligação de água e a sanita estava no lugar de honra, sobre um tapete tecido. Em frente da sanita, noutro tapete, o chefe estava sentado de cócoras. Os seus olhos eram penetrantes.

-Que desejas? Tuan! - E o "tuan" era uma acusação.

- Eu queria apenas comida e água, Sir, e... talvez ficar um certo tempo, -até me recompor.

- Chamas-me Sir, quando, há três dias, tu e o resto dos brancos nos chamavam wogs e nos cuspiam?

-Nunca vos chamei wogs. Fui aqui mandado para tentar proteger-vos contra os Japoneses.

- Eles libertaram-nos dos pestilentos Holandeses! Como libertarão todo o Extremo Oriente dos imperialistas brancos!

- Talvez. Mas penso que vais maldizer o dia em que eles chegaram!

- Sai da minha aldeia. Vai com o resto dos imperialistas. Vai, antes que eu chame os Japoneses.

- Está escrito: "Se um estrangeiro vier até ti e te pedir hospitalidade, dá-lha e engrandecer-te-ás aos olhos de Alá."

O chefe olhou para ele horrorizado, de pele castanha, baju curto, sarang multicolor e pano de cabeça decorativo, na noite que caía.

- Que sabes tu do Alcorão e das palavras do Profeta?

- Que o seu nome seja louvado - disse Peter Marlowe. - O Alcorão foi traduzido para inglês por muitos homens.

Lutava pela própria vida. Sabia que, se pudesse ficar na aldeia, tinha a possibilidade de arranjar um barco que o levasse à Austrália. Não que soubesse governar um barco, mas valia a pena correr o risco. O cativeiro era a morte.

- Acaso serias tu um fiel? - perguntou o chefe, atónito.

Peter Marlowe hesitou. Podia facilmente fingir que era um maometano. Parte da sua ocupação fora estudar o "Livro" do Islão. Os oficiais das forças de Sua Majestade tinham de servir em muitas terras. Os oficiais hereditários são treinados em muitas coisas para além da escolaridade formal.

Se dissesse sim, sabia que estaria salvo, pois Java era principalmente o domínio de Maomé.

- Não, não sou um fiel. - Estava cansado e no fim da sua carreira. - Pelo menos, não sei. Fui ensinado a acreditar em Deus. O meu pai costumava dizer-nos, às minhas irmãs e a mim, que Deus tem muitos nomes. Até os cristãos dizem que há - a Santa Trindade... que há partes de Deus.

"Não penso que seja importante o nome que se dá a Deus. Deus não vai importar-se se for reconhecido como Jesus, ou Alá, ou Buda, ou Jeová, ou mesmo Tu! Porque é Deus e sabe que nós somos apenas finitos e não sabemos muito de coisa nenhuma.

"Eu creio que Maomé era um homem de Deus, um profeta de Deus. Creio que Jesus era Deus, como Maomé lhe chama no Alcorão, "o mais inocente dos profetas". Se Maomé é o último dos profetas, como ele proclamava, não sei. Não creio que nós, humanos, possamos estar certos de alguma coisa que se relacione com Deus.

"Mas nós não acreditamos que Deus é um velho com uma comprida barba branca, sentado num trono de ouro, lá em cima, no Céu. Não acredito, como Maomé prometeu, que os fiéis vão para o Paraíso, onde se deitarão em leitos de seda e beberão vinho e terão muitas donzelas formosas para os servir, ou que o Paraíso seja um jardim com uma profusão de folhagem verde, límpidos ribeiros e árvores de fruto. Não creio que os anjos tenham asas que lhes cresçam nas costas.

A noite caiu sobre a aldeia. Um bebé chorou e foi afagado para adormecer.

- Um dia saberei de certeza que nome chamar a Deus. No dia em que eu morrer. - Caiu um silêncio. - Creio que seria muito deprimente descobrir que não havia Deus.

O chefe fez sinal a Peter Marlowe que se sentasse.

- Podes ficar. Mas há condições. Jurarás obedecer às nossas leis e ser um dos nossos. Nos arrozais e na aldeia trabalharás como qualquer outro homem. Nem mais nem menos. Aprenderás a nossa língua, falarás apenas a nossa língua, usarás o nosso traje e pintarás a cor da tua pele. A tua altura e a cor dos teus olhos gritarão que és um homem branco, mas talvez a cor, traje e língua te protejam durante algum tempo; talvez possa dizer-se que és meio javanês e meio branco. Não tocarás aqui em nenhuma mulher sem autorização. E obedecer-me-ás sem discutir.

- De acordo.

Há outra coisa. Esconder um inimigo dos Japoneses é perigoso. Quero que saibas que, quando chegar a altura de escolher entre ti e o meu povo para proteger a minha aldeia, eu escolho a minha aldeia.

- Compreendo. Obrigado, Sir.

- Jura pelo teu Deus - um esboço de sorriso aflorou aos lábios do velho -, jura pelo teu Deus que obedecerás a estas condições.

juro por Deus que concordo e obedecerei a estas condições.

E nada farei que vos prejudique enquanto aqui estiver.

- Prejudicas-nos pela tua presença, meu filho - respondeu o velho.

Depois de terem dado a Peter Marlowe de comer e de beber, o velho disse:

Agora não falarás mais inglês. Só malaio. A partir deste momento. É a única maneira de aprenderes depressa.

Muito bem. Mas primeiro peço-vos uma coisa.

- Sim.

Que me expliqueis o significado da presença da sanita... que nem sequer tem quaisquer canos ligados.

- Não tem qualquer significado, a não ser que me agrada ver a cara dos meus convidados e ouvi-los pensar: "Que ridículo ornamento para ter numa casa."

Uma enorme onda de riso submergiu o velho e as lágrimas corriam-lhe pelas faces, e toda a sua criadagem acudiu e as suas esposas vieram socorrê-lo e esfregar-lhe as costas e o estômago, e também elas gritavam, assim como Peter Marlowe.

Peter Marlowe sorriu de novo ao lembrar-se. "Que homem! Tuan Abu. Mas hoje não pensarei mais na aldeia nem na N'ai, a filha da aldeia que me deram para acariciar. Hoje vou pensar no rádio e em como vou arranjar o condensador e aguçar os meus talentos para a aldeia esta noite."

Desenroscou-se da cadeira de lótus, depois esperou pacientemente, até que o sangue recomeçou a correr-lhe nas veias. À sua volta estava o doce cheiro a gasolina, trazido pela brisa. Também pela brisa vinham vozes erguidas em hino. Vinham do teatro ao ar livre, que hoje era a Igreja da Inglaterra. Na semana passada foi a Igreja Católica e na anterior a Igreja Adventista do Sétimo Dia e na outra anterior outra denominação. Em Ghangi era-se tolerante.

Havia muitos paroquianos nos toscos assentos. Alguns estavam lá por força da fé, outros por falta de fé. Alguns estavam lá para fazer qualquer coisa, outros porque não havia nada mais que fazer. Hoje, o capelão Drinkwater dirigia o serviço.

A voz do capelão Drinkwater era rica e volumosa. A sinceridade emanava dele e as palavras da Bíblia ganhavam vida e traziam esperança e faziam esquecer que Changi era um facto e que não havia comida na nossa barriga.

"Hipócrita de uma figa", pensou Peter Marlowe, desprezando Drinkwater, lembrando-se mais uma vez...

- Eh, Peter! - Dave Daven segredara nesse dia. - Olha para ali. Peter Marlowe vira Drinkwater a conversar com um mirrado cabo

da R. A. F. chamado Blodger. A cama de Drinkwater tinha um lugar privilegiado, junto à porta da barraca nº 16.

- Deve ser a nova ordenança dele - disse Daven. Até no campo se mantém a velha tradição.

- Que aconteceu à outra?

- O Lyles? O meu impedido disse-me que ele estava no hospital. Enfermaria 6.

Peter Marlowe pôs-se em pé.

- O Drinkwater pode fazer o que quiser com os tipos do Exército, mas não apanha nenhum dos meus.

Caminhou ao longo das quatro camas.

- Blodger!

- Que é que você quer, Marlowe? - perguntou Drinkwater. Peter Marlowe ignorou-o.

- Que faz você aqui, Blodger?

- Vim só falar ao capelão, Sir. Peço desculpa - respondeu ele, aproximando-se. - Não vejo muito bem.

- Tenente aviador Marlowe.

- Ah, como está, meu tenente? Sou a nova ordenança do capelão, Sir.

- Saia daqui e, antes de aceitar um lugar de ordenança, venha falar comigo primeiro!

- Mas, Sir...

- Quem julga você que é, Marlowe? Você não tem qualquer jurisdição sobre ele - interveio Drinkwater.

- Ele não vai ser sua ordenança.

- Porquê?

- Porque eu digo. Pode ir, Blodger.

- Mas, Sir, eu vou olhar bem pelo capelão, pode crer. vou trabalhar bem...

- Onde arranjou esse cigarro?

- Olhe cá, Marlowe... - começou Drinkwater.

Peter Marlowe voltou-se vivamente para ele.

- Cale-se!

Vários soldados que estavam na camarata pararam o que estavam a fazer e começaram a juntar-se.

- Onde arranjou esse cigarro, Blodger?

- Deu-mo o capelão - gemeu Blodger, recuando, assustado pelo tom de voz de Peter Marlowe. - Eu dei-lhe o meu ovo. Ele prometeu-me tabaco em troca do meu ovo diário. Eu quero o tabaco e ele pode ficar com o meu ovo.

- Não há nenhum mal nisso - rosnou Drinkwater -, nenhum mal em dar ao rapaz um pouco de tabaco. Ele pediu-mo. Em troca de um ovo.

- Você esteve recentemente na enfermaria 6? - perguntou Peter Marlowe. - Ajudou-os a admitir o Lyles? A sua última ordenança? Ele agora não tem olhos.

- Isso não é culpa minha. Eu não lhe fiz nada.

- Quantos ovos recebeu dele?

- Nenhum. Não recebi nenhum.

Peter Marlowe deitou mão de uma Bíblia e pô-la nas mãos de Drinkwater.

- Jure então, e eu acredito. Jure, ou por Deus que o liquido.

- Juro!-murmurou Drinkwater.

- Sacana de mentiroso! - gritou Daven. - Eu vi-o pegar nos ovos do Lyles. Todos vimos.

Peter Marlowe arrancou a marmita de Drinkwater e encontrou o ovo. Então esmagou-o na cara de Drinkwater, enfiando-lhe a casca na boca. Drinkwater desmaiou.

Peter Marlowe atirou-lhe à cara uma caneca de água e ele voltou a si.

- Deus o abençoe, Marlowe - murmurou. - Deus o abençoe por me mostrar o meu erro. - Ajoelhara junto à cama. - Oh, meu Deus, perdoa a este teu indigno pecador. Perdoa os meus pecados...

Agora, neste domingo beijado pelo Sol, Peter Marlowe escutava Drinkwater, que acabava o seu sermão. Blodger fora há muito para a enfermaria 6, mas, se Drinkwater o ajudara, Peter Marlowe nunca o pôde provar. Drinkwater continuava a arranjar muitos ovos em qualquer parte.

O estômago de Peter Marlowe dizia-lhe que eram horas de almoço.

Quando voltou à sua barraca os homens estavam já de marmita nas mãos, impacientes, à espera. O extra não ia chegar hoje. Nem amanhã, segundo o que corria. Ewart já verificara na cozinha. Exactamente como de costume. Também estava bem; mas por que diabo não se despachavam?

Grey estava sentado na ponta da cama.

- Bem, Marlowe - disse ele -, a comer connosco estes dias? Que agradável surpresa!

- É verdade, Grey, estou ainda ia comer aqui. Por que não vai brincar aos polícias e ladrões? Sabe, arranje alguém que não possa dar troco!

- Não há hipótese, meu velho. Tenho em mira caça mais grossa.

- Boa sorte. - E Peter Marlowe aprontou as marmitas.

Em frente dele, Brough, embrenhado numa partida de xadrez, piscou-lhe o olho.

- Xuis - segredou. - São todos os mesmos.

- É verdade. - E foi ter com Peter Marlowe.

- Ouvi dizer que tens um novo compincha?

- É verdade. - E Peter Marlowe pôs-se na retranca.

- Estamos num país livre. Mas por vezes um gajo tem de se expor e tomar uma decisão.

- Ah!

- Amizades rápidas podem dar mau resultado.

- Isso é verdade em qualquer parte.

- Talvez - Brough teve um sorriso largo -, talvez você quisesse beber um copo e trincar qualquer coisa.

- com prazer. Que tal amanhã? Depois da paparoca... Involuntariamente empregou o termo do Rei. Mas não se corrigiu. Sorriu e Brough sorriu também.

- Eh, chegou a paparoca! - gritou Ewart.

- Graças a Deus!-suspirou Phil.-E se fizéssemos um negócio, Peter? O teu arroz pelo meu guisado?

- Não querias mais nada?!

- Não há mal em tentar...

Peter Marlowe saiu e juntou-se à bicha da messe. Raylins estava a servir o arroz. "bom", pensou, "não preciso de me apoquentar hoje."

Raylins era um homem de meia-idade e calvo. Fora segundo-gerente do Banco de Singapura e, como Ewart, pertencia ao regimento malaio. Em tempo de paz, era uma organização a que valia a pena pertencer. Montes de festas, etiquete, pólo. Um homem tinha de estar no regimento para ser alguém. Raylins ocupava-se também dos fundos da messe, e os banquetes eram a sua especialidade. Quando lhe deram uma espingarda e lhe disseram que levasse o seu pelotão para a rua e combatesse os Japoneses, olhou para o coronel e pôs-se a rir. O seu trabalho era a contabilidade. Mas isso não lhe servira de nada e tivera de pegar em vinte homens tão impreparados como ele próprio e de marchar pela estrada acima. Marchara e de repente os seus vinte homens eram três. Treze tinham sido mortos instantaneamente na emboscada. Quatro tinham sido apenas feridos. Estavam deitados no meio da estrada, a gritar. Um ficara sem uma das mãos e estava a olhar estupidamente para o coto, apanhando o sangue com a mão que lhe restava, tentando pô-la de novo no braço. Um outro ria-se, ria-se, enquanto tentava colocar as tripas no grande buraco que era a sua barriga.

Raylins olhara estupidamente para o tanque japonês, enquanto ele descia a estrada vomitando chamas. Depois, o tanque passara, e os quatro eram meras manchas no asfalto. Olhara para os três homens que lhe restavam - Ewart era um deles. Eles olharam também para ele. E logo começaram a correr, aterrorizados, para a selva. Então perderam-se. E ele ficou só, só numa noite de horror, de sanguessugas e barulhos, e a única coisa que o salvou da loucura foi uma criança malaia que o encontrara a falar sozinho e o guiara até uma aldeia. Entrara furtivamente no edifício onde estavam reunidos os restos de um exército. No dia seguinte, os Japoneses fuzilaram dois homens em cada dez. Ele e -mais uns poucos foram mantidos no edifício. Mais tarde foram metidos num camião e mandados para um campo de prisioneiros, onde ele ficou entre os seus. Mas nunca conseguiu esquecer o seu amigo Charles, aquele que tinha os intestinos de fora.

Raylins passava a maior parte do seu tempo num nevoeiro. É que, pela sua vida, não podia compreender por que razão não estava no seu banco, alinhando os seus algarismos bem desenhados, e estava num campo onde ultrapassava todos numa coisa: sabia dividir qualquer quantidade de arroz em qualquer número de partes iguais. Quase sem a diferença de um grão.

- Ah, Peter - disse Raylins, dando-lhe a sua parte-, conhecias o Charles, não conhecias?

- Claro que conhecia. Excelente rapaz.

Peter Marlowe não o conhecia. Nem nenhum dos outros.

- Achas que ele chegou a conseguir metê-los para dentro? - perguntou Raylins.

- Ah, com certeza. - E Peter Marlowe levou a sua comida, ; enquanto Raylins se voltava para a fila seguinte.

- Ah, capelão Grover, está hoje muito calor, não está? Conheceu o Charles, não conheceu?

; - Conheci - respondeu o capelão, com os olhos na medida de arroz. - Estou certo de que ele conseguiu, Raylins.

- Óptimo, óptimo. Fico contente por saber isso. Estranho lugar para alguém encontrar os seus órgãos internos, assim no exterior.

O espírito de Raylins vagueava para o seu banco, fresco, muito fresco, e para sua mulher, que ele veria nessa noite, quando saísse do banco, no seu pequeno bungalow, perto das corridas. "Deixa cá ver", pensou. "Esta noite teremos cordeiro para o jantar. Cordeiro! E cerveja bem fresca. E depois vou jogar com a Penélope, e a patroa ficará contente a coser na varanda."

- Ah! - exclamou alegremente, reconhecendo Ewart. - Queres vir jantar esta noite, meu velho? E talvez gostasses de trazer a patroa.

Ewart resmungou qualquer coisa através dos dentes cerrados. Pegou no arroz e no guisado e afastou-se.

- Acalma-te, Ewart - advertiu Peter Marlowe.

- Acalma-te tu! Não sabes o que custa. Juro por Deus que ainda o mato.

- Não te preocupes...

- Preocupar! Estão mortos. A mulher e o filho morreram. Vi-os mortos. E a minha mulher e os meus dois filhos?! Onde estão eles, hem?! Onde?! Mortos também, algures. Devem estar, depois de todo este tempo. Mortos!

- Estão no campo dos civis...

- Santo Deus, como é que sabes? Tu não sabes, eu não sei, e fica apenas a oito quilómetros. Morreram! Oh, meu Deus! - E Ewart sentou-se e chorou, espalhando o arroz e o guisado pelo chão.

Peter Marlowe apanhou o arroz e as folhas que boiavam no guisado e pô-los na marmita de Ewart.

- Para a semana vão deixar-te escrever uma carta. Ou talvez te deixem visitá-los. O comandante do campo está sempre a pedir uma lista das mulheres e dos filhos. Não te preocupes, estão bem.

Peter Marlowe deixou-o a molhar o arroz com as lágrimas e desceu ao bungalow.

- Olá, pá - saudou Larkin. - Foste ver o Mac?

- Fui. Está óptimo. Até começou a preocupar-se com a idade.

- Vai ser bom ter o velho Mac de volta. - Larkin meteu a mão debaixo do colchão e tirou uma marmita. - Tenho uma surpresa!

Abriu a marmita e revelou um quadrado de duas polegadas de espessura, de uma substância semelhante a massa de vidraceiro.

- Por tudo o que é sagrado! Mas isso é blachang! Onde diabo o arranjaste?

- Surripiei-o, claro.

- O senhor é um génio, coronel. É estranho que não me tenha cheirado.

Peter Marlowe curvou-se e tirou uma pequena porção do blachang.

- Vai durar-mos um par de semanas.

Blachang era um mimo nativo, fácil de fazer. Na estação própria ia-se à praia e apanhavam-se na ressaca as miríades de criaturas que nela boiavam. Enterravam-se numa cova forrada de algas, cobriam-se com mais algas e esqueciam-se durante dois meses.

Quando se abria a cova, os peixes tinham apodrecido numa pasta malcheirosa, cujo fedor nos podia estoirar a cabeça e destruir o nosso sentido do olfacto durante uma semana. Sustendo a respiração, tirava-se a pasta e fritava-se. Mas tinha de se estar contra o vento ou sufocava-se. Quando arrefecia, moldava-se em pequenos blocos e vendia-se por uma fortuna. Antes da guerra, dez cêntimos o cubo. Agora, talvez dez dólares uma lasca. Porquê um mimo? Era proteína pura. E uma pequena fracção condimentava uma grande tigela de arroz. É claro que também se podia apanhar uma disenteria. Mas se se tivesse esperado o tempo devido e se fosse bem cozinhado e não tivesse sido tocado pelas moscas, era perfeito.

Todavia, nunca se perguntava. Dizia-se apenas "coronel, o senhor é um génio", tirava-se para o arroz e saboreava-se.

- Leva-se um pouco ao Mac, hem?

- Boa ideia. Mas é certo que ele vai queixar-se de que não está bem cozinhado.

- O velho Mac queixava-se se estivesse cozinhado na perfeição...-E Larkin parou.-Eh, Johnny!-gritou para o homem alto que ia a passar, conduzindo um rafeiro escanzelado à trela.- Queres um pouco de blachang, amigo?

- Se quero?!

Deram-lhe um pedaço numa folha de banana e falaram do tempo e perguntaram-lhe como estava o cão. John Hawkins amava o seu cão acima de todas as coisas. Partilhava a comida com ele - é espantoso as coisas que um cão podia comer - e partilhava com ele do seu catre. O Rover era um bom amigo. Fazia um homem sentir-se civilizado.

- Que tal uma partida de brídege esta noite? Eu levo o quarto parceiro - disse Hawkins.

- Essa noite não posso - respondeu Peter Marlowe, estropiando moscas.

- Posso ir buscar o Gordon, na porta ao lado - sugeriu Larkin.

- Estupendo. Depois do jantar?

- Óptimo. Até logo.

- Obrigado pelo blachang - disse Hawkkts ao partir, com o Rover saltitando alegremente ao lado.

- Diabos me levem se sei como ele consegue comida para ele e para aquele rafeiro - disse Larkin.

Peter Marlowe mexeu o seu arroz, misturando-lhe cuidadosamente o blachang. Queria muito partilhar o segredo da sua saída dessa noite com Larkin. Mas sabia que era demasiado perigoso.

Sair do campo era muito simples. Uma pequena corrida para um ponto sombrio da vedação de seis fios de arame farpado, que era fácil de transpor, e mais uma corrida para a selva. Quando pararam para recobrar o fôlego, Peter Marlowe desejou estar lá atrás em segurança, a conversar com Mac ou com Larkin, ou até com Grey.

"Todo o tempo desejei estar cá fora", disse para si próprio. "E agora, que estou, sinto um medo de morte."

Era estranho, cá fora, olhar para dentro. Do lugar onde estavam podiam ver o campo. A barraca americana ficava a menos de cem metros. Homens caminhavam para baixo e para cima. Hawkins passeava o seu cão. Um guarda coreano passeava pelo campo. As luzes estavam apagadas nas várias barracas e a ronda da noite há muito fora feita. Contudo, o campo estava vivo com os que não dormiam. Era sempre assim.

- Vem daí, Peter - segredou o Rei, e abriu caminho para o interior da folhagem.

O plano fora bom. Até aqui. Quando chegara à barraca, o Rei estava já -preparado.

- É preciso ter boas ferramentas para fazer um bom trabalho- dissera, mostrando-lhe um par de botas japonesas bem oleadas, com solas de crepe e um couro macio que não chiava, calças chinesas e uma blusa curta.

Só Dino sabia daquela saída. Amarrara os dois baldes e atirara-os para o ponto de partida. Depois voltara e, quando tudo estava livre, tinham saído naturalmente, dizendo que iam jogar brídege com Larkin e outro australiano. Tiveram de esperar uma enervante meia hora antes que o caminho estivesse livre para passarem o arame farpado, envergarem os seus novos equipamentos e cobrirem de lama a cara e as mãos. Mais um quarto de hora antes que pudessem correr para a vedação sem que os vissem. Logo que passaram para o outro lado, Dino apanhara a roupa que tiraram.

A selva à noite. Arrepiante. Mas Peter Marlowe sentia-se como em casa. Era exactamente como Java, exactamente como os arredores da sua própria aldeia e, por isso, o seu nervosismo abrandou um pouco.

O Rei conduzia a marcha sem se enganar. Fizera já o percurso cinco vezes. Enquanto caminhava, todos os seus sentidos estavam alerta. Tinham de passar por um guarda. Este guarda não tinha percurso certo, era uma patrulha errante. Mas o Rei sabia que a maior parte das vezes o guarda encontrava uma clareira algures e dormia uma soneca.

Depois de um período de ansiedade, um período em que cada ramito ou folha podre parecia gritar a sua passagem e cada ramo vivo parecia querer retê-los, chegaram ao caminho. Tinham passado o guarda. O caminho levava ao mar. E depois à aldeia.

Atravessaram o caminho e começaram a andar em roda. Por cima do pesado tecto de folhagem, uma meia-lua estava colada ao céu. Exactamente a quantidade de luz necessária à segurança.

Liberdade. Nada de arame farpado nem de gente. Até que enfim intimidade. E foi subitamente um pesadelo para Peter Marlowe.

- Que se passa, Peter? - perguntou o Rei, sentindo que qualquer coisa não batia certo.

- Nada... é só... bem, é que estar cá fora faz uma impressão! - Hás-de habituar-te. - O Rei deu uma olhadela ao relógio. Ainda nos falta quilómetro e meio. Vamos adiantados em relação ao plano. É melhor esperarmos um pouco.

Encontrou uma protuberância formada por uma árvore caída e coberta por uma trepadeira e encostou-se a ela. - Aqui estamos seguros.

Esperaram, de ouvido atento à selva. Grilos, rãs, súbitos gorjeios. Súbitos silêncios. O sussurro de um animal desconhecido.

- Agora ia um cigarro.

- Outro tanto digo eu.

- Mas aqui não.

O espírito do Rei estava vivo. Uma metade estava atenta aos ruídos da selva. A outra corria e refazia o modelo do futuro negócio. "Sim", dizia a si próprio, "é um bom plano."

Verificou as horas. O ponteiro dos minutos girava devagar. Mas dava-lhe mais tempo para planear. Quanto mais tempo se planear antes de um negócio, melhor ele é. Nada de hesitações e melhores lucros. Graças a Deus pelo lucro. O tipo que inventou o negócio era um génio. Comprar por pouco e vender por mais. Servir-se da cabeça. Arriscar um pouco e o dinheiro a entrar. E com dinheiro tudo é possível. E, mais que tudo, o poder.

"Quando eu sair", pensou o Rei, "vou ser milionário. vou ganhar tanto dinheiro que vou fazer que Fort Knox pareça um banco pelintra. Hei-de construir uma organização que contará com tipos leais, mas uns cordeiros. Cérebros podem sempre comprar-se. E, desde que se saiba o preço de um tipo, pode a gente usá-lo ou abusar dele. É isso que faz girar o mundo. Há a elite e o resto. Eu sou a elite. E vou continuar a ser.

"Acabou-se o andar aos baldões, ou atirado de cidade para cidade. Isso é do passado. Quando eu era miúdo. Amarrado ao papá, amarrado a um homem que servia à mesa, andava ao trapo ou pedia esmola para beber um copo. Nunca mais. Agora são os outros que vão trabalhar para mim. Tudo o que preciso é bago."

- Todos os homens nascem iguais... com os mesmos inalienáveis direitos.

"Graças a Deus pela América", disse o Rei para si próprio, pela milionésima vez. "Graças a Deus por eu ter nascido americano."

- É a terra de Deus - disse, meio para si próprio.

- Quê?

- A América.

- Porquê?

- É a única terra do mundo onde se pode comprar tudo. Isso é importante se não se nasceu lá, Peter, e só muito poucos nasceram. Mas, se não se nasceu e se se quer trabalhar, há tantas oportunidades que não têm conta. E, se um homem não quer trabalhar, então é uma porcaria e não é americano e...

- Escuta!-avisou Peter Marlowe, subitamente em guarda.

Da distância vinha o som abafado de passos que se aproximavam.

- É um homem - segredou Peter Marlowe, chegando-se mais à protecção da folhagem. - Um nativo.

- Como diabo sabes?

- Traz socos nativos. E parece-me que é velho. Escuta, ouve-se-lhe a respiração.

Momentos depois, o nativo emergiu do crepúsculo e passou despreocupadamente pelo caminho. Era um velho e levava aos ombros um porco selvagem morto. Viram-no passar e desaparecer.

- O tipo deu por nós - disse Peter Marlowe, preocupado.

- Deu, uma ova!

- Tenho a certeza de que nos viu. Talvez pensasse que era um guarda japonês, mas eu estava a olhar-lhe para os pés. Nos seus passos falhou uma batidela.

- Talvez fosse uma racha no chão ou um ramo. Peter Marlowe abanou a cabeça.

"Amigo ou inimigo?", pensou febrilmente o Rei. "Se é da aldeia, estamos safos." Toda a aldeia sabia que o Rei ia chegar, pois tinham essa informação via Cheng San, o seu contacto. "Não o reconheci, mas isso não admira, pois muitos nativos andavam à pesca na noite em que eu lá estive. Que fazer?"

- Bem, vamos esperar e depois fazemos um rápido reconhecimento. Se ele for hostil, vai para a aldeia e vai comunicar ao chefe. O chefe vai dar o alarme e vem por aí um inferno.

- Achas que podes confiar neles?

- Eu posso, Peter. - E recomeçou a marcha. - Mantém-te vinte metros atrás de mim.

Encontraram a aldeia facilmente. Quase com demasiada facilidade, segundo pensava Peter Marlowe para si próprio, desconfiado. Da sua posição, num ponto alto, observaram-ma. Uns poucos de malaios estavam acocorados numa varanda, a fumar. Aqui e além, um porco grunhia. À volta da aldeia havia coqueiros e, para além deles, a espuma do mar, que brilhava ao clarão da Lua. Alguns barcos, velas arriadas, redes de pesca ainda pendentes. Nenhum sinal de perigo.

- Parece-me tudo em ordem - segredou Peter Marlowe.

O Rei deu-lhe subitamente uma cotovelada. Na varanda do chefe estava este com o homem que tinham visto. Os dois malaios estavam embrenhados numa conversa; depois, uma risada quebrou o silêncio da noite e o homem desceu os degraus.

Ouviram-no chamar. Em breve surgiu uma mulher a correr. Tirou-lhe o porco dos ombros, levou-o para junto de umas brasas e pô-lo no espeto. Num momento surgiram mais malaios, que se agruparam em roda, rindo e gracejando.

- Lá está ele! - exclamou o Rei.

Subindo da costa, vinha um chinês alto. Atrás dele, um nativo arriava as velas de uma pequena embarcação de pesca. Foi ter com o chefe, fizeram as suas saudações e agacharam-se por terra, à espera.

- Okay - disse o Rei, com um esgar. - Vamos agora. Pôs-se em pé, mantendo-se na sombra, e caminhou em roda, cuidadosamente. Nas traseiras da cabana do chefe, uma escada subia para a varanda, que se elevava bastante do solo. O Rei já subia por ela com Peter Marlowe atrás. Quase imediatamente ouviram o arrastar da escada.

-Tabe - sorriu o Rei, quando entraram Cheng San e Sutra, o chefe.

-É bom voltar a ver-te, tuan - disse o chefe, rebuscando palavras inglesas. - Tu makan comer, yes? - E o seu sorriso mostrava os dentes manchados de noz de bétele.

- Trima kassih agradece. - E o Rei estendeu a mão a Cheng San. - Como tens passado, Cheng San?

- Eu bem todo o tempo. Tu sabe, eu... -Cheng San procurava a palavra e depois ela veio. - Aqui, bom tempo, ou mesmo.

O Rei indicou Peter Marlowe:

- Ichi-bon amigo. Peter, diz qualquer coisa, cumprimentos e essa treta. Mãos à obra, rapaz. - E sorriu e puxou de um maço de Kooas que ofereceu em roda.

- O meu amigo e eu estamos gratos pela tua recepção - começou Peter Marlowe. - Apreciamos a tua amabilidade em perguntares se queremos comer contigo, sabendo a falta que há nestes dias.

Decerto que só uma serpente da selva recusaria aceitar a amabilidade do teu oferecimento.

Tanto Cheng San como o chefe se abriram em largos sorrisos.

- Wah-lah - disse Cheng San. - Será bom poder falar através de ti ao meu amigo Rajah todas as palavras que estão na minha miserável boca. Muitas vezes eu quis dizer aquilo que nem eu nem o meu bom amigo Sutra encontrámos palavras para dizer. Diz ao Rajah que ele é um homem sensato e inteligente por encontrar um intérprete tão fluente.

- Ele diz que eu sou um bom porta-voz - disse Peter Marlowe com alegria e agora calmo e seguro. - E diz que está contente por poder dar-te o que precisas.

- Por amor de Deus, agarra-te à tua fala bem-educada de Limey. Essa algaraviada de intérprete faz-te parecer um palerma.

- Ah, tenho estado a estudar assiduamente o Max - disse Peter Marlowe, desanimado.

- Pois bem, deixa-te disso.

- Ele também te chamou Rajah. Vai ser o teu apelido para o futuro.

- Desembucha, Peter.

- Calma aí, irmão.

- Vá lá, Peter, não temos muito tempo. Diz isto ao Cheng San. Eu vou...

- Não se pode ainda falar de negócios, meu velho - disse Peter Marlowe, chocado. - Vais estragar tudo. Primeiro temos de tomar café e comer qualquer coisa e depois podemos começar.

- Diz-lhes agora.

- Se o fizer, eles ficam ofendidos. E muito. Acredita ina minha palavra.

O Rei reflectiu um momento. "Bem", disse para si próprio, "se se compram miolos, é mau negócio não nos servimos deles, a não ser que se tenha um pressentimento. É aí que o homem de negócios esperto ganha ou perde... quando joga um pressentimento contra os chamados miolos." Porém, neste caso, ele não tinha qualquer pressentimento; por isso apenas fez que sim com a cabeça.

- Okay, resolve tu.

Aspirou o seu cigarro, enquanto ouvia Peter Marlowe falar com eles. Estudou Cheng San pelo canto do olho. A roupa dele era melhor que da última vez. Tinha um anel novo que parecia uma safira, talvez de cinco quilates. O seu rosto limpo, glabro, tinha um tom de mel, e o cabelo estava bem tratado. Sim, senhor, Cheng San tratava-se bem. Agora do velho Sutra não se podia dizer o mesmo. Nenhuma jóia. Da última vez tinha um anel de ouro. Agora não m a. E a marca no dedo do sítio onde estivera o anel quase desaparecera.

Significava isso que não o tirara apenas para a exibição desta noite.

Ouvia as mulheres lá na outra parte da cabana a tagarelar baixinho, E lá fora -a quietude da aldeia. Através da janela, sem vidro, vinha o cheiro do porco a assar. Isto significava que a aldeia precisava realmente de Cheng San - o seu agente de mercado negro para o peixe que a aldeia vendia directamente aos Japoneses- e lhe oferecia o porco. Ou talvez o velho tivesse apanhado um porco bravo e estivesse a oferecer um festim aos seus amigos. Mas a multidão em redor da fogueira esperava ansiosamente, tão ansiosamente como eles. Era certo que também tinham fome. Isso provava que as coisas não corriam bem em Singapura. A aldeia deveria estar bem provida de comida e de bebida e de tudo. Cheng San não podia estar a proceder muito bem, contrabandeando o seu peixe para os mercados. Talvez os Japoneses tivessem o olho nele. Talvez ele não estivesse por muito tempo neste mundo.

Por isso talvez ele precise mais da aldeia que a aldeia precisa dele. E está a fazer uma exibição para ela: roupas e jóias. Talvez Sutra esteja a ser posto à margem por falta de negócio e esteja pronto a trocá-lo por outro agente de mercado negro.

- Eh, Peter! - disse o Rei. - Pergunta ao Cheng San como está o mercado de peixe em Singapura.

Peter Marlowe traduziu a -pergunta.

- Ele diz que o negócio está bom. A falta de comida é tão grande que ele consegue os melhores preços da ilha. Mas diz que os Japoneses estão a apertar muito. Cada dia é mais difícil negociar. E transgredir as leis do mercado fica cada vez mais caro.

"Ah, ah! Apanhei-te!" O Rei exultava. "Então, Cheng não veio só para o meu negócio. É o peixe e a aldeia. Como posso aproveitar-me disto? Aposto que o Cheng San está a ter dificuldades em entregar a mercadoria. Talvez os Japoneses tenham interceptado alguns barcos e estejam a ficar duros. O velho Sutra não é tolo. Sem dinheiro não há negócio, e Cheng San sabe isso. Nom fazê comércio, nom fazê negócio, e o velho Sutra vai vender a outro. Sim, senhor." Assim, o Rei sabia que podia mostrar-se duro e subiu mentalmente os preços.

Depois chegou a comida. Batata-doce assada, beringelas fritas, leite de coco, grossas fatias de carne de porco assada, encharcadas de óleo. Bananas. Papaias. O Rei notou que não havia couve de milionário, nem sauté de cordeiro ou de vaca, nem as sobremesas de que os Malaios tanto gostavam. Sim, não havia dúvida de que as coisas estavam ruins.

A comida era servida pela principal mulher do chefe, uma velha enrugada. A ajudá-la estava Sulina, uma das suas filhas. Bonita, meiga, bem torneada, com pele de mel. Bem cheirosa. Sarong lavado em honra deles.

- Tabe, Sam. - E o Rei piscou o olho a Sulina.

A rapariga perdeu-se de riso e, timidamente, tentou esconder o seu embaraço.

- Sam? - repetiu Peter Marlowe.

- Com certeza - respondeu o Rei secamente. - Ela faz-me lembrar o meu irmão.

- O teu irmão? - E Peter Marlowe fitou-o com espanto.

- Era a brincar. Não tenho nenhum irmão.

- Ah! - Peter Marlowe reflectiu um momento e depois perguntou: - Porquê Sam?

- O velho não me queria apresentar - disse o Rei, sem olhar para a rapariga. - Por isso baptizei-a. Acho que o nome lhe fica bem.

Sutra percebia que o que estavam a dizer tinha qualquer coisa a ver com sua filha. Sabia que cometera um erro ao deixá-la vir aqui. Talvez noutros tempos tivesse a esperança de que algum dos tuan-tuan reparasse nela e a levasse para o seu bungalow para ser sua amante um ano ou dois. Então teria voltado à aldeia bem instruída nos hábitos dos homens, com um bom dote nas mãos, e seria fácil para ele arranjar-lhe um bom marido. Era assim que teria sido no passado. Mas agora o idílio apenas conduzia a uma vida aventurosa nos bosques, e Sutra não queria isso para sua filha, embora já fosse altura de ela se fazer mulher.

Inclinou-se para a frente e ofereceu a Peter Marlowe um pedaço bem escolhido de carne de porco.

- Talvez isto tente o teu apetite?

- Muito te agradeço.

- Podes ir, Sulina.

Peter Marlowe apercebeu-se de uma nota de intenção na fala do velho e de uma sombra de consternação no rosto da rapariga. Mas ela fez uma profunda vénia e partiu. A velha esposa ficou para servir os homens.

"Sulina", pensou Peter Marlowe, sentindo um impulso há muito esquecido. "Não é tão bonita como N'ai, que era perfeita, mas é da mesma idade e também bonita. Talvez 14 anos, e madura. Quão madura, Santo Deus!"

- A comida não é a teu gosto?-perguntou Cheng San, divertido pela óbvia atracção de Peter Marlowe pela rapariga, talvez podendo vir a tirar disto algum proveito.

- Pelo contrário. É talvez boa de mais, porque o meu paladar não está habituado a comida fina, visto comermos como comemos.

- Peter Marlowe lembrou-se de que, para protecção do bom gosto, os Javaneses só por parábolas falavam em mulheres. Voltou-se para Sutra. - Em tempos que já lá vão, um sábio guru dizia que há muitas espécies de comida. Umas para o estômago, outras para os olhos e outras para o espírito. Esta noite tive comida para o estômago. E os teus ditos e os de Tuan Cheng San foram comida para o espírito. Estou repleto. Mesmo assim, também me ofereceram, ou ofereceram-nos, comida para os olhos. Como posso agradecer-te a tua hospitalidade?

O rosto de Sutra enrugou-se. Bem dito. Por isso, fez uma vénia de cumprimento e disse com simplicidade:

- É um dito sensato. Talvez, a seu tempo, os olhos estejam de novo esfomeados. Temos de discutir a sabedoria dos antigos noutra ocasião.

- Porque estás com um ar tão feliz, Peter?

- Eu não estou com um ar feliz, apenas satisfeito comigo próprio. Estava a dizer-lhe que achávamos bonita a filha dele.

- É! É uma boneca! E se lhe pedíssemos que viesse tomar o café connosco?

- Por amor de Deus! - Peter procurava manter a voz baixa. Não se marca um encontro assim, sem mais nem menos. Leva o seu tempo, é preciso preparar o terreno.

- Cum raio, não é à moda americana! Encontra-se uma tipa, gosta-se dela, ela gosta de nós, pronto, já está.

- Falta-te um pouco de finesse.

- Talvez. Mas tenho muitas garotas.

Riram-se e Cheng San perguntou qual era a graça. Peter Marlowe explicou-lhe que o Rei dissera: "Devíamos abrir uma loja na aldeia e não voltar para o campo."

Depois de terem bebido o café, Cheng San fez a primeira abertura.

- Eu teria julgado arriscado vir do campo de noite. Mais arriscado que a minha vinda aqui para a aldeia.

"O primeiro round é nosso", pensou Peter Marlowe. Agora, em estilo oriental, Cheng San estava em desvantagem, porque fora uma humilhação fazer ele a abertura.

- Muito bem, Rajah, podes começar. Já adiantámos alguma coisa. -Já?

- Já. Que queres que eu lhe diga?

- Diz-lhe que tenho um grande negócio. Um diamante. Quatro quilates. Montado em platina. Impecável, azul-branco. Quero trinta e cinco mil dólares por ele. Cinco mil em dólares ingleses da Malásia e o resto em dinheiro japonês falso.

Peter Marlowe arregalou os olhos. Estava em frente do Rei, de modo que a sua surpresa estava escondida do chinês. Mas Sutra notou-a. Uma vez que não participava do negócio, mas apenas recebia uma percentagem como intermediário, acomodou-se para apreciar a luta. Não havia necessidade de se preocupar com Cheng San, que sabia tratar de si tão bem como qualquer outro.

Peter Marlowe traduziu. A monstruosidade do negócio cobria qualquer falta de maneiras. E ele queria levar o chinês à certa.

Cheng San estava palpavelmente entusiasmado. Pediu para ver o diamante.

-Diz-lhe que não o tenho comigo. Diz-lhe que faço a entrega dentro de dez dias. Diz-lhe que preciso de receber o dinheiro três dias antes de fazer a entrega, porque o proprietário não o entrega sem ter o dinheiro.

Cheng San sabia que o Rei era um comerciante honesto. Se dizia que tinha o anel e que o entregava, era porque o fazia. Sempre assim fora. Mas receber uma tal quantia e passá-la para o campo, onde ele não podia seguir o rasto do Rei... bem, era um grande risco.

- Quando posso eu ver o anel? - perguntou.

- Diz-lhe que, se quiser, pode vir ao campo dentro de sete dias. "De modo que tenho de entregar o dinheiro sem mesmo ver o

anel e o diamante!", pensou Cheng San. "E Tuan Rajah sabe isso. Muito mau negócio. Se for realmente de quatro quilates, posso arranjar cinquenta... cem mil dólares por ele. No fim de contas, conheço o chinês que tem a máquina que imprime o dinheiro. Mas os cinco mil dólares malaios... é outra con versa." Estes tinha de os comprar no mercado negro. E a que preço? Seis por um seria caro e vinte por um seria barato.

- Diz ao meu amigo Rajah -disse ele - que este é um estranho negócio. Por consequência, tenho de pensar mais do que um homem de negócios deveria pensar.

Foi até à janela e espraiou o olhar.

Cheng San estava cansado da guerra e cansado das maquinações subterrâneas que um homem de negócios tinha de suportar para obter lucro. Pensou na noite e nas estrelas e na estupidez do homem, lutando e morrendo por coisas que não teriam um valor duradouro. Ao mesmo tempo, sabia que os fortes sobrevivem e que os fracos perecem. Pensou na mulher e nos filhos, três rapazes e uma rapariga, e nas coisas que gostaria de comprar para lhes dar uma vida confortável. Pensou também na segunda mulher que gostaria de comprar. De uma maneira ou de outra, tinha de fazer este negócio. E valia a pena o risco de confiar no Rei.

i"O preço é justo", raciocinou. Mas como salvaguardar o dinheiro? Encontrar um bom intermediário em quem pudesse confiar. Teria de ser um dos guardas. O guarda podia ver o anel. Podia entregar o dinheiro, se o anel fosse verdadeiro e o peso certo. Então, o Tuan Rajah podia fazer a entrega aqui, na aldeia. Não havia necessidade de confiar no guarda para receber o anel e entregá-lo. Como confiar num guarda?

Talvez pudesse inventar uma história - que o dinheiro era um empréstimo dos chineses de Singapura ao campo. Não, isso não seria bom, porque o guarda teria de ver o anel. Desse modo, o guarda teria de estar inteiramente dentro do assunto. Estaria à espera de uma maquia substancial.

Cheng San voltou ao Rei. Reparou como este estava a suar. "Ah", pensou, "queres vender mal! Talvez saibas que eu quero comprar mal. Tu e eu somos os únicos que podemos fazer um negócio destes. Ninguém tem um nome honesto para negociar como tu, e ninguém, a não ser eu, de todos os chineses que negoceiam com o campo, é capaz de pagar tanto dinheiro.

- Pois é, Tuan Marlowe. Tenho um plano que talvez proteja o meu amigo Rajah e a mim próprio. Primeiro, concordamos num preço. O preço mencionado é demasiado alto, mas isso, por agora, é irrelevante. Segundo, concordamos num intermediário, um guarda em quem ambos possamos confiar. Dentro de dez dias entregarei metade do dinheiro ao guarda. O guarda pode examinar o anel. Se for realmente o que o dono afirma, ele pode entregar o dinheiro ao meu amigo Rajah. O Rajah entregar-mo-á aqui a mim. Eu trarei um perito para examinar a pedra. Então pagarei a outra metade do dinheiro e fico com a pedra.

O Rei escutava atentamente, à medida que Peter Marlowe traduzia.

- Diz-lhe que está okay. Mas preciso de ter o preço certo. O tipo não o entrega sem o pilim na mão.

- Então diz ao meu amigo Rajah que eu vou dar ao guarda três quartos do preço combinado, para o ajudar a negociar com o dono.

Cheng San calculava que setenta e cinco por cento cobririam com certeza a soma de dinheiro paga ao dono. O Rei estaria apenas a jogar o seu lucro, pois era por certo um homem de negócios bastante competente para conseguir vinte e cinco por cento!

O Rei calculara sobre três quartos. Isso dava-lhe uma ampla margem de manobra. Talvez pudesse tirar alguns dólares ao preço que pedia o proprietário. Nada mau. (E agora vamos à paparoca."

- Diz-lhe que está bem. Quem sugere ele como intermediário?

- Torusumi.

O Rei abanou a cabeça. Pensou um momento e disse directamente a Cheng San:

- E se fosse Immuri?

- Diz ao meu amigo que eu preferia outro. Talvez Kimina?

O Rei assobiou. Outro cabo! Nunca negociara com ele. Demasiado perigoso. "Tem de ser alguém que eu conheça."

- Shagata-san?

Cheng San fez que sim com a cabeça. Este era o homem que ele queria, mas não desejava sugeri-lo. Queria ver quem o Rei pretendia: última prova da honestidade do Rei.

Sim, Shagata era uma boa escolha. Não demasiado brilhante, mas o suficiente. Já negociara com ele. óptimo.

- Agora, quanto ao preço - disse Cheng San-, sugiro que discutamos isso. Quatro mil dólares falsos por quilate. Total, dezasseis mil. Quatro mil em dólares malaios, à média de quinze por um.

O Rei abanou docemente a cabeça e depois disse para Peter Marlowe:

-Diz-lhe que eu não vou perder tempo a regatear. O preço é trinta mil, cinco mil em dólares do Estreito, e oito por um, em notas pequenas. É o meu último preço.

- Tens de ragatear um pouco mais - disse Peter Marlowe. Que te parece pedir trinta e três, depois...

O Rei abanou a cabeça.

- Não. E, quando traduzires, emprega a palavra "regatear"! Relutantemente, Peter Marlowe voltou-se de novo para Cheng San.

- O meu amigo diz que não vai perder tempo com esses floreados de negociar. O seu último preço é trinta mil: cinco mil em dólares do Estreito, à razão de oito por um. Tudo em notas pequenas.

Para seu espanto, Cheng San disse imeditamente:

- Concordo.

É que não queria brincar com coisas sérias. O preço era honesto e ele sentira que o Rei era duro. Chega uma altura nos negócios em que é sim ou não. O Rajah era um bom negociante.

Apertaram-se as mãos. Sutra sorriu e foi buscar uma garrafa de saké. Beberam à saúde um do outro até acabar a garrafa. Depois discutiram os pormenores.

Dentro de dez dias, Shagata iria à barraca americana, à hora do render do guarda americano. Traria o dinheiro e veria o anel antes de o entregar. Três dias depois, o Rei e Peter Marlowe encontrar-se-iam com Cheng San na aldeia. Se, por qualquer razão, Shagata não pudesse cumprir essa data, viria no dia seguinte ou no outro. Semelhantemente, se o Rei não pudesse comparecer ao encontro na aldeia, viria no dia seguinte.

Depois de fazer e de receber os habituais cumprimentos, Cheng San disse que tinha de apanhar a maré. Fez uma vénia cortês, e Sutra saiu com ele, acompanhando-o até à costa. Ao lado do barco começaram a sua polida discussão sobre o negócio do peixe.

O Rei estava triunfante.

- Óptimo, Peter, ganhámos!

- És formidável! Por um momento julguei que tinhas perdido. Eles não gostam de certas coisas.

- Eu tinha cá um palpite. - Foi tudo que o Rei disse, mas depois acrescentou, mascando um pedaço de carne: - Tu tens dez por cento do lucro, claro. Mas tens de trabalhar para isso, meu filho da mãe.

- Como um cavalo! Santo Deus! Só de pensar em todo esse dinheiro... Trinta mil dólares deve ser um monte de notas quase com meio metro de altura.

- Mais! - disse o Rei, contagiado pelo entusiasmo.

- Meu Deus! Tu tens cá uma lata! Como diabo conseguiste esse preço? E o tipo concordou logo, foi limpinho. Um minuto de conversa e... puni! Fica-se rico!

- Há muita coisa a fazer, antes de ser mesmo um negócio. Muitas coisas que podiam falhar. Enquanto o bago não estiver pago e no banco, não é negócio.

- Não tinha pensado nisso.

- É um axioma do negócio. Até ao lavar dos cestos é vindima.

- Ainda nem posso acreditar. Estamos fora do campo e temos mais comida na barriga do que tivemos durante semanas. E as perspectivas são óptimas. És um génio lixado!

-Tem calma, Peter! O Rei pôs-se em pé.

- Espera-me aqui. Volto daqui a uma hora, mais coisa menos coisa. Tenho outro negociozito a tratar. Desde que saiamos daqui dentro de umas horas, está porreiro. Chegamos ao campo antes da madrugada. É a melhor altura. É quando os guardas estão mais cansados...-E desapareceu pelas escadas.

Muito contra a sua vontade, Peter Marlowe sentiu-se só... e um pouco assustado.

Jesus Cristo! Onde diabo iria ele, que iria fazer? E se chegar tarde? E se não vier? E se aparece por aí um japonês? E se eu ficar para aqui sozinho? Será melhor ir procurá-lo? Se ele não vier a tempo, somos dados em falta e teremos de fugir. Para onde? Será que Cheng San nos poderá ajudar? É demasiado perigoso! Onde é que ele vive? Conseguiremos chegar às docas e arranjar um barco? Talvez contactar com as guerrilhas, que, ao que consta, estão em actividade?

"Domina-te, Marlowe. Estás a portar-te como uma criança de três anos! Ou como um cobarde!"

Refreando a sua ansiedade, sentou-se para esperar. Depois, de repente, lembrou-se do condensador: trezentos microfarads.

- Tabe, tuan. - E Kasseh sorriu quando o Rei entrou na cabana.

- Tabe, Kasseh!

- Queres comida, sim?

Ele abanou a cabeça e apertou-a contra si, as suas mãos a percorrer-lhe o corpo. Ela pôs-se nas pontas dos pés para lhe pôr os braços em redor do pescoço, o cabelo qual penacho de ouro negro que lhe chegava à cintura.

- Muito tempo - disse ela, aquecida pelo contacto.

- Muito tempo - respondeu ele. - Saudades minhas?

- Ah, ah! - fez ela, imitando-lhe o sotaque.

- Ele já chegou? Ela abanou a cabeça.

- Não gostar desta coisa, tuan. Tem perigo.

- Tudo tem perigo.

Ouviram passos e em breve uma sombra surgiu à porta. Ela abriu-se e um chinês baixo e moreno entrou. Vestia um sarong e trazia nos pés uns chappals indianos. Sorriu, mostrando uns dentes cariados. Às costas trazia um parang de guerra metido na sua bainha. O Rei reparou que o parang estava bem oleado. Era fácil deitar-lhe a mão e cortar a cabeça de um homem - assim mesmo. Metido no cinto, trazia um revólver.

O Rei pedira a Kasseh que contactasse as guerrilhas que operavam em Johore e este homem era o resultado. Como a maior parte deles, eram bandidos convertidos que agora combatiam os Japoneses sob a bandeira dos comunistas, que lhes forneciam armas.

- Tabe. Falas inglês? - perguntou o Rei, forçando um sorriso. Não gostava do aspecto deste chinês.

- Porque tu quer falar connosco?

O chinês olhou de soslaio para Kasseh, que estremeceu.

- Desaparece, Kasseh - disse o Rei.

Em silêncio, ela saiu através de uma cortina de contas, para o fundo da casa.

O chinês seguiu-a com o olhar.

- Tu tem sorte - disse ele ao Rei. - Muita sorte. Aposto mulher divertiu dois, três homem, uma noite. Não?

- Queres falar de um negócio? Sim ou não?

- Tem cuidado, homem branco, talvez eu diz japoneses tu aqui. Talvez eu digo aldeia segura para prisioneiros brancos. Então eles matam aldeia.

- Por esse caminho, és tu que morres depressa.

O chinês resmungou, depois agachou-se no chão. Deslocou ligeiramente o parang, em ar de ameaça.

- Talvez eu leva mulher agora.

"Jesus!", pensou o Rei. "Sou capaz de ter feito asneira."

- Tenho uma proposta para vocês. Se a guerra acabar de repente ou se os Japs começarem a retalhar os prisioneiros de guerra aos pedaços, quero que vocês nos protejam. Pago-te dois mil dólares americanos quando estiver em segurança.

- Como sabemos se os Japs matam prisioneiros?

- Vocês saberão. Vocês sabem quase tudo o que se passa.

- Como sabemos se vocês pagam?

- É o Governo americano que paga. Toda a gente sabe que há uma recompensa.

-Dois mil! mahlu! Recebemos dois mil cada dia. Melhor que banco. Fácil.

O Rei fez o seu gambito.

- Estou autorizado pelo nosso oficial comandante a garantir-vos dois mil por cabeça por cada americano que for salvo se começar a fuzilaria.

- Eu não compreende.

- Se os Japoneses começarem a dar cabo de nós... a matar-nos. Se os Aliados desembarcarem aqui, os Japs vão ficar maus. Ou, se os Aliados desembarcarem no Japão, então os Japoneses, aqui, vão exercer represálias. Se o fizerem, nós vamos saber e vamos querer que vocês nos ajudem a cavar.

- Quantos homens?

- Trinta.

- Muitos.

- Quantos podem vocês garantir?

-Dez. Mas o preço cinco mil por homem.

- É muito.

O chinês encolheu os ombros.

-Está bem. Combinado. Conheces o campo?

O chinês mostrou os dentes num sorriso torcido.

- Nós saber.

- A nossa barraca fica para leste. É uma pequena. Se tivermos de fugir, fugimos pelo arame farpado. Se vocês estiverem na selva, vocês cobrem-nos. Como havemos de saber se vocês estão em posição?

O chinês encolheu os ombros:

- Se não estamos, vocês morrer de qualquer maneira.

- Poderiam fazer-nos um sinal?

- Não sinal.

"Isto é uma loucura", disse o Rei para os seus botões. "Não sabemos quando vamos ter de fugir e, se for de repente, não podemos dar-lhes sinal nem mandar uma mensagem as guerrilhas a tempo. Talvez lá estejam, talvez não. Mas, se souberem que há cinco mil dele por cada um de nós que safarem, daqui em diante vão estar atentos."

- Vocês terão um olho no campo?

- Talvez chefe diz sim, talvez diz não.

- Quem é o vosso chefe?

O chinês encolheu os ombros e palitou os dentes.

- Combinado, então?

- Talvez. - Os olhos eram hostis. - Acabaste?

- Acabei. - E o Rei estendeu a mão. - Obrigado.

O chinês olhou para a mão, teve um sorriso trocista e dirigiu-se à porta.

- Lembra-te. Só dez. Resto matar. - E partiu.

"Bem, vale a pena tentar", disse o Rei com os seus botões. "Estes filhos da mãe gostariam bem de receber o pilim. O Tio Sam pagaria. Por que raio não havia de ser assim? Por que raio pagamos os impostos?"

- Tuan - disse Kasseh gravemente, chegando-se à porta. - Eu não gostar desta coisa.

- Temos de correr o risco. Se houver uma matança repentina, talvez possamos safar-nos. - Piscou-lhe o olho. - Vale a pena tentar. De qualquer modo, morreríamos. Que mais faz? Talvez consigamos uma linha de retirada.

- Porque não negociar para ti só? Porque não ir com ele agora e fugir campo?

- Calma. Primeiro, está-se mais seguro no campo que com as guerrilhas. Não faz sentido confiar nelas, a não ser numa emergência. Segundo, um só homem não lhes vale a pena. Por isso lhe pedi que salvasse trinta. Mas ele só podia ocupar-se de dez.

- Como tu escolher dez?

- Cada um que trate de si, desde que eu me safe.

- Talvez teu comandante não gostar dez.

- Gosta, se ele for um deles.

- Pensas os Japoneses matar prisioneiros?

- Talvez. Mas vamos esquecer isso, está bem? Ela sorriu.

- Esquecer. Tu quente. Tomar chuveiro, sim?

- Sim.

Na secção de chuveiro da cabana, o Rei atirou água para cima de si próprio, do depósito de cimento. A água estava fria, o que o sufocava e lhe fazia pele de galinha.

- Kassehl

Ela entrou com uma toalha. Parou a olhar para ele. Sim, o seu tuan era um belo homem. Forte e delgado, com uma cor de pele agradável. "Wah-lah", pensou ela, "sou feliz por ter este homem. Mas ele é tão grande e eu tão pequena. Ele passa-me em duas cabeças.

Mesmo assim, sabia que lhe agradava. É fácil agradar a um homem. Se se é uma mulher. E se não se tem vergonha de ser mulher.

- De que estás a sorrir? - perguntou-lhe ele quando lhe viu o sorriso.

- Ah, tuan, estava só pensar que tu ser tão grande e eu tão pequena. Mas, quando nos deitar, não há tão grande diferença, não?

Ele deu uma risadinha, deu-lhe ternas palmadinhas nas nádegas e pegou na toalha.

- Que tal uma bebida?

- Está pronta, tuan.

- Que mais está pronto?

Ela riu com a boca e com os olhos. Seus dentes eram brancos, seus olhos profundos e castanhos e a sua pele macia e bem cheirosa.

- Quem sabe, tuan? - E afastou-se.

Kasseh fora arranjada por Sutra quando o Rei viera à aldeia pela primeira vez. Os pormenores tinham sido claramente estabelecidos. Quando a guerra acabasse, ele tinha de pagar a Kasseh vinte dólares americanos por cada vez que estivera com ela. Ele abatera alguns dólares ao primeiro preço pedido - negócio era negócio-, mas a vinte dólares ela era uma grande compra.

- Como sabes que eu vou pagar? - perguntara ele.

- Não sei. Mas, se tu não pagar, não pagas, e então eu só ganhar o prazer. Se tu me pagar, eu ter o dinheiro e o prazer também - dissera ela com um sorriso.

Ele enfiou os pés nas chinelas nativas que ela lhe deixara e passou através da cortina. Ela estava à espera dele.

Peter Marlowe estava ainda a observar Sutra e Cheng San lá em baixo na costa. Cheng San fez uma vénia e saltou para o barco e Sutra ajudou a empurrar o barco para o fosforescente mar. Depois, Sutra voltou para a cabana.

- Tabe-lah!-disse Peter Marlowe.

- Queres comer mais?

- Não, obrigado, Tuan Sutra.

E pensou consigo próprio: "Quem me diria há pouco que eu viria em breve a recusar comida!" Mas ele comera o suficiente, e comer mais teria sido indelicado. Era evidente que a aldeia era pobre e não podia desperdiçar-se comida.

- Ouvi dizer - insinuou ele - que as notícias, as notícias de guerra, eram boas.

- Também nós ouvimos, mas não foi nada que um homem Possa repetir. Vagos rumores.

- É pena que os tempos não sejam os mesmos de aqui há uns anos, quando um homem podia ter um rádio e ouvir as notícias ou ler um jornal.

- É verdade. É uma pena.

Sutra não deu qualquer sinal de estar a entender. Agachou-se no seu tapete, enrolou um cigarro em forma de funil e começou a fumar através do punho fechado, aspirando profundamente o fumo.

- Ouvimos más notícias do campo - disse por fim.

- Não tão más como isso, Tuan Sutra. Havemos de arranjar-nos. Mas não saber o que vai pelo mundo, isso é que é mau.

- Ouvi dizer que havia um rádio no campo e que os homens que o tinham foram apanhados. E que estão agora na cadeia de Utram Road.

- Tens notícias deles? Um deles é meu amigo.

- Não. Só ouvimos dizer que tinham sido levados para lá.

- Eu gostaria muito de saber como estão.

- Tu conheces o sítio e a maneira como os homens são lá tratados, de modo que já calculas como estão.

- É verdade. Mas a gente espera sempre que alguns tenham mais sorte.

- "Todos estamos nas mãos de Alá", disse o Profeta.

- Cujo nome seja louvado.

Sutra voltou a olhar para ele. Depois, aspirando calmamente o seu cigarro, perguntou:

- Onde aprendeste o malaio?

Peter Marlowe contou-lhe a sua vida na aldeia. Como trabalhara nos arrozais e vivera como um javanês, que é quase a mesma coisa que viver como um malaio. Os costumes são os mesmos e a língua a mesma, excepto quanto às palavras ocidentais correntes: telefonia na Malásia, rádio em Java, motor na Malásia, auto em Java, mas o resto é o mesmo. Amor, ódio, doença e as palavras que um homem diz a um homem ou que um homem diz a uma mulher são as mesmas. As coisas importantes eram sempre as mesmas.

- Qual era o nome da tua mulher na aldeia, meu filho? - perguntou Sutra.

Teria sido indelicado perguntar antes, mas agora, que já falara de coisas do espírito, do Mundo, da filosofia, de Alá e de certas coisas do Profeta, cujo nome seja louvado, agora não era mal-educado perguntar.

- O nome dela era N'ai Jahan.

O velho suspirou, satisfeito, recordando a sua mocidade.

- E ela amou-te muito e durante muito tempo.

- É verdade. - E Peter Marlowe estava a vê-la nitidamente. Viera à sua cabana uma noite, quando ele se preparava para

se deitar. O seu sarong era verde e dourado e da sua bainha espreitavam minúsculas sandálias. Tinha um delicado colar de flores em volta do pescoço, e o perfume das flores enchia a cabana e todo o seu universo.

Ela pusera o travesseiro da cama aos seus pés e curvou-se perante ele.

"O meu nome é N'ai Jaham", dissera ela. "E o meu pai, Tuan Abu, escolheu-me para partilhar a tua vida, pois não é bom para um homem estar só, e tu estás só faz agora três meses."

N'ai tinha talvez 14 anos, mas nas terras do sol e das chuvas uma rapariga de 14 anos é já uma mulher, com os desejos de uma mulher, e devia casar-se, ou pelo menos estar com o homem escolhido por seu pai.

A negridão da sua pele tinha um brilho de leite, os seus olhos eram topázios, as suas mãos eram pétalas de orquídea de fogo, os seus pés eram delicados e o seu corpo, de mulher-criança, era de cetim e continha dentro de si a felicidade de um colibri. Era uma filha do sol e uma filha da chuva. Tinha o nariz fino e as narinas delicadas.

N'ai era toda cetim, cetim líquido. Firme onde devia ser firme e macia onde devia ser macia. Forte onde devia ser forte e fraca onde devia ser fraca.

O seu cabelo era azeviche. Comprido. Uma teia para a cobrir.

Peter Marlowe sorrira para ela. Tentara esconder o seu embaraço e ser como ela, livre e feliz e sem maldade. Ela tirara o sarong e estava diante dele, altivamente, e dissera: "Oxalá eu seja digna de te fazer feliz e de te dar um sono tranquilo. E peço-te que me ensines as coisas que a tua mulher deve saber, para te fazer próximo de Deus'."

"Próximo de Deus é maravilhoso", pensou Peter Marlowe. "Que maravilha descrever o amor como estando perto de Deus!"

Levantou os olhos para Sutra.

- Sim, amámos muito e muito tempo. Agradeço a Alá ter vivido e amado até à eternidade. Como são gloriosos os caminhos de Alá!

Uma nuvem surgiu e lutou com a Lua pela posse do céu.

- É bom ser homem - disse Peter Marlowe.

- Acaso a tua falta te perturba esta noite?

- Na verdade, não. Não esta noite.

Peter Marlowe estudou o velho malaio, estimando-o pela sua oferta, comovido pela sua gentileza.

- Escuta, Tuan Sutra. vou abrir-te o meu coração, porque acredito que, com o tempo, podemos ser amigos. Tu poderias, na altura própria, ter tempo para pesar a minha amizade e o meu eu. Mas a guerra é um assassino do tempo. Por isso quereria falar-te como teu amigo, que ainda não sou.

O velho não respondeu. Aspirou o fumo do seu cigarro e esperou que ele continuasse.

- Preciso de uma pequena peça de um rádio. Haverá na aldeia algum rádio velho? Talvez, se ele estivesse estragado, eu pudesse tirar-lhe uma pequena peça.

- Tu sabes que os rádios estão proibidos pelos Japoneses.

- É verdade. Mas por vezes há pequenos lugares onde se esconde o que é proibido.

Sutra reflectiu. Havia um rádio na sua cabana. Talvez Alá tivesse mandado Tuan Marlowe para o levar. Sentia que podia confiar nele, porque Tuan Abu confiara nele antes. Mas, se Tuan Marlowe fosse apanhado fora do campo com o rádio, a aldeia seria inevitavelmente envolvida.

Deixar o rádio ma aldeia também era perigoso. Por certo que um homem podia enterrá-lo bem fundo na selva, mas a verdade é que isso não fora feito. Devia ter sido feito, mas não fora, porque a tentação de o ouvir era demasiado grande. A tentação das mulheres de ouvirem música "sway" era demasiado grande. A tentação de saber o que os outros não sabiam era demasiado grande. Na verdade, está escrito. Vaidade, tudo é vaidade.

O melhor, decidiu, era deixar as coisas que estão com o homem cor-de-rosa fiquem com o homem cor-de-rosa.

Levantou-se, fez sinal a Peter Marlowe e conduziu-o, através da cortina de contas, aos recantos mais escuros da cabana. Parou à porta do quarto de Sulina. Esta estava deitada na cama, com o sarong desapertado à sua volta, os olhos líquidos.

- Sulina - disse Sutra -, vai para a varanda e fica à espreita.

- Sim, pai.

Sulina saltou da cama, reapertou o sarong e ajustou o seu baju. Ajustara-o, segundo pensava Sutra, talvez um pouco demasiado, porque a promessa dos seus seios era demasiado evidente. Não havia dúvida de que era tempo que a rapariga se casasse. Mas com quem? Não havia homens de feição.

Afastou-se para a rapariga passar, olhos baixos e modestos. Mas não havia nada de modesto no gingar das suas ancas, e Peter Marlowe também o notou. "Devia dar-lhe com uma vergasta", pensou Sutra. Mas sabia que mão poderia zangar-se. Era apenas uma rapariga no limiar da feminilidade. Tentar é próprio de uma mulher... ser desejada é necessidade sua.

"Talvez devesse dar-te ao inglês. Talvez isso te diminuísse o apetite. Ele parece mais que homem bastante." Sutra suspirou. "Ah, voltar a ser novo!"

De debaixo da cama tirou o pequeno rádio.

- Confio em ti. Este rádio está bom. Trabalha bem. Podes levá-lo.

Na sua excitação, Peter Marlowe quase o deixou cair.

- Mas... e tu? Isto deve ser muito caro!

- Não tem preço. Leva-o contigo.

Peter Marlowe ligou o aparelho. Era um bom rádio. Em bom estado. A parte de trás estava tirada e as válvulas brilhavam à luz do azeite. Havia muitos condensadores. Muitos. Levou o aparelho ao pé da luz e examinou-lhe as entranhas, centímetro a centímetro.

O suor começou a escorrer-lhe pela face. E então encontrou o tal condensador de trezentos microfarads.

"E agora que faço?", perguntou a si próprio. "Limito-me a tirar o condensador?" Mac dissera que estava quase certo. "O melhor é levar tudo, e depois, se o condensador não servir para o nosso, temos outro. Podemos escondê-lo em qualquer parte. Sim, será bom ter um sobressalente."

- Agradeço-te, Tuan Sutra. É um presente que nunca poderei agradecer-te devidamente.

- Peço-te que nos protejas aqui. Se um guarda te vir, enterra-o na selva. A minha aldeia está nas tuas mãos.

- Nada receies; guardá-lo-ei com a minha vida.

- Acredito-te. Mas talvez isto seja uma loucura que faço.

- Há alturas, Tuan Sutra, em que eu realmente acredito que os homens são apenas loucos.

- Tu és sensato, para além da tua idade.

Sutra deu-lhe com que cobrir o aparelho e depois voltaram à sala principal. Sulina estava na sombra da varanda. Levantou-se quando eles entraram.

- Queres que te arranje comida ou bebida, pai?

"Wah-lah", pensou Sutra, com certa rabugice, "ela pergunta-me a mim, mas é nele que ela pensa."

- Não. Vai para a cama.

Sulina abanou a sua linda cabeça, mas obedeceu.

- A minha filha está a precisar de chicote, creio bem.

- Seria uma pena estragar uma coisinha tão delicada - disse Peter Marlowe. - Tuan Abu costumava dizer: "Bate na mulher pelo menos uma vez por semana e terás paz na tua casa. Mas não batas com muita força, porque, se ela se zanga, será ela que te bate a ti, mas com a força toda!"

- Conheço o ditado e é, com certeza, verdadeiro. As mulheres ultrapassam a nossa compreensão.

Falaram de muitas coisas, agachados na varanda, a olhar para o mar. Estava tão manso que Peter Marlowe pediu autorização para nadar.

- Não há correntes, mas por vezes há tubarões.

- vou ter cuidado.

- Nada apenas mas sombras, perto dos barcos. Houve alturas em que havia japoneses a passear pela costa. Existe um canhão a cerca de cinco quilómetros da praia. Procura ter os olhos bem abertos.

- Serei prudente.

Peter Marlowe manteve-se na sombra enquanto caminhava para o barco. A Lua baixava no céu. Não por muito tempo, segundo pensava.

Junto aos barcos, homens e mulheres preparavam as redes, rindo e conversando uns com os outros. Não prestaram qualquer atenção a Peter Marlowe enquanto ele se despiu e caminhou para o mar.

A água estava quente, mas havia poços de água fria, como em todos os mares do Oriente, e ele encontrou um e procurou manter-se nele. O sentimento de liberdade era revitalizador e era quase como se ele fosse de novo um rapazinho a tomar um banho da meia-noite no mar do Sul, com o seu pai ao pé a gritar: "Não nades para muito longe, Peter! Lembra-te das correntes!"

Nadou debaixo de água e a sua pele bebeu o tónico salgado. Quando voltou à superfície, esparrinhou água como uma baleia e nadou lentamente para os baixios, onde ficou deitado de costas, exultando na sua liberdade, enquanto a espuma o acariciava.

Enquanto batia na água com as pernas, torcendo os rins, ocorreu-lhe de súbito que estava nu e que havia homens e mulheres a uns vinte metros dele. Mas não sentiu qualquer embaraço.

No campo, a nudez tornara-se uma maneira natural de viver. E os meses que passara na aldeia em Java tinham-lhe ensinado que não era vergonha ser-se um ser humano com carências e necessidades.

O calor sensual do mar e o calor rico da comida dentro dele acenderam-lhe os rins num súbito calor. Voltou-se abruptamente de barriga para baixo e deixou-se escorregar para o mar, escondendo-se.

De pé sobre o fundo arenoso, com a água até ao pescoço, olhou para a costa e para a aldeia. Os homens e as mulheres estavam ainda ocupados a reparar as suas redes. Via Sutra na varanda da sua cabana, fumando à sombra. Depois, de um lado, viu Sulina, apanhada na luz da lamparina de azeite, encostada ao caixilho da janela.

Sabia que ela estava a olhar para ele e perguntava-se, envergonhado, se ela teria visto. Olhava para ela e ela olhava para ele. Então viu-a tirar o sarong, deitar-se, pegar numa toalha branca limpa e secar o suor que fazia brilhar o seu corpo.

Ela era filha da chuva e filha do sol. O seu longo cabelo negro escondia-lhe o corpo, mas ela agitou-o até só lhe cobrir as costas e começou a entrançá-lo. E, durante todo este tempo, olhava para ele, sorrindo.

Então, subitamente, cada tremor da corrente era uma carícia, cada toque de brisa uma carícia, cada fio de alga uma carícia dedos de cortesãs, peritos por séculos de aprendizagem.

"Quero-te, Sulina.

"vou ter-te, custe o que custar."

Desejou que Sutra saísse da varanda. Sulina olhava e esperava. Tão impaciente como ele.

"vou tomar-ta, Sutra. Não te interponhas no meu caminho. Não o faças. Ou, por Deus, juro..."

Não viu que o Rei se aproximava das sombras nem deu por que ele parasse de surpresa quando o viu deitado de barriga para baixo, nos baixios.

- Eh, Peter! Peter!

Ao ouvir a voz através do nevoeiro, Peter Marlowe voltou a cabeça lentamente e viu o Rei, que lhe acenava.

- Vem daí, Peter. São horas de cavar.

Ao ver o Rei, lembrou-se do campo, do arame farpado, do rádio, do diamante, do campo e da guerra, do campo e do rádio e do guarda, porque é que tinham de passar, se chegariam a tempo e quais seriam as notícias e de como Mac ia ficar contente com o condensador de trezentos microfarads e com o rádio sobressalente, que trabalhava. O calor masculino desapareceu. Mas a dor permanecia.

Pôs-se em pé e foi buscar a roupa.

- É preciso ter lata - disse o Rei.

- Porquê?

- Andar por aí nessa figura. Não vês a filha do Sutra a olhar para ti?

- Ela já viu muitos homens nus e não há nenhum mal nisso. Sem calor, não haveria nudez.

- Às vezes não te entendo. Onde está a tua decência?

- Perdi isso há tanto tempo.

Vestiu-se rapidamente e foi ter com o Rei às sombras. Os rins doíam-lhe violentamente.

- Estou contente por teres chegado na altura em que chegaste. Obrigado.

- Porquê?

- Nada.

- Tiveste medo de que eu te tivesse esquecido? Peter Marlowe abanou a cabeça.

- Não. Deixa lá. Mas obrigado.

O Rei observou-o durante um longo momento, depois encolheu os ombros.

- Anda daí. É agora a altura.

Ao passarem em frente da casa de Sutra, acenou com a mão:

- Salat.

- Espera, Rajah, é só um segundo!

Peter Marlowe subiu as escadas a correr e entrou na cabana. O rádio ainda lá estava. Metendo-o debaixo do braço, embrulhado no pano, fez uma vénia a Sutra.

- Agradeço-te. Está em boas mãos.

- Vai com Deus. - Sutra hesitou e depois sorriu. - Protege os teus olhos, meu filho. A menos que haja alimento para eles, não podes comer.

- Não me esquecerei. - Peter Marlowe sentiu-se afogueado. "Será verdade que os antigos sabem ler os pensamentos?" - E agradeço-lhe. Que a paz seja contigo!

- Que a paz seja contigo até ao nosso próximo encontro!

Peter Marlowe voltou-se e partiu. Sulina estava à sua janela, quando eles passaram por baixo. Os seus olhos encontraram-se uns nos outros e um pacto estava firmado entre eles, aceite e retribuído. Ela seguiu-os até desaparecerem a caminho da selva e enviou-lhes os melhores desejos do seu coração.

Sutra suspirou e depois entrou silenciosamente no quarto da filha. Esta estava em pé junto à janela, sonhadora, com o sarong à volta dos ombros. Sutra tinha nas mãos um delgado bambu e com ele fustigou com firmeza, embora não com muita força, as suas nádegas nuas.

- Isto é por teres tentado o inglês sem eu te ter dito que o tentasses - disse ele, esforçando-se por parecer muito zangado.

- Sim, pai - choramingou ela.

Cada soluço era um espinho no coração do velho. Mas, quando ficou só, ela enrolou-se voluptuosamente no colchão e deixou que as lágrimas corressem um pouco, saboreando-as. E o calor espalhava pelo seu corpo, ajudado pelas ferroadas das chibatadas.

Quando estavam a cerca de quilómetro e meio do campo, Peter Marlowe e o Rei pararam para respirar um pouco. Foi então que o Rei notou, pela primeira vez, o pequeno volume que Peter Marlowe transportava.

- Que levas aí?

Ficou a olhar, enquanto Peter Marlowe sorria e orgulhosamente retirava o pano.

- Surpresa!

O coração do Rei falhou seis pulsações.

- Que é isso, seu filho da mãe? Perdeste o juízo?

- Que há? - perguntou Peter Marlowe, confundido.

- Estás maluco? Isso vai meter-nos em mais sarilhos do que o Diabo sabe. Não tens o direito de arriscar as nossas cabeças por causa de um sacana de um rádio. Não tens o direito de utilizar os meus contactos para os filhos da mãe dos teus negócios.

Peter Marlowe sentia a noite cair sobre ele, enquanto arregalava os olhos sem acreditar. Depois disse:

- Não fiz por mal...

- Não sabes, seu grande filho da mãe - esbravejou o Rei -, que os rádios são veneno?

- Mas não há nenhum no campo...

- Chiça! Deita-me essa merda fora, e já. E digo-te mais uma coisa. Entre nós não há mais nada. Não tens o direito de me meter em sarilhos sem me dizer nada. Devia dar cabo dessa merda!

- Experimenta! - Agora era Peter Marlowe que estava zangado e furioso, tão furioso como o Rei. - Pareces esquecer que há uma guerra e que não há nenhum rádio no campo. Uma das razões por que vim era porque esperava poder arranjar um condensador. Mas, em vez disso, arranjei um rádio, um rádio que funciona.

- Desfaz-te dele!

- Não.

Os dois homens encararam-se, tensos e inflexíveis. Durante uma fracção de segundo, o Rei esteve pronto a cortar Peter Marlowe aos bocados.

Mas o Rei sabia que a cólera de nada valia quando se tinha de tomar uma decisão importante e, agora que tinham ultrapassado o primeiro choque, podia criticar e analisar a situação.

Em primeiro lugar, tinha de admitir que, embora tivesse sido um mau negócio arriscar tanto, o risco fora bem sucedido. Se Sutra não tivesse sido generoso e não tivesse dado o rádio a Peter, teria posto um ponto final no assunto, dizendo: "Raios, não há nenhum rádio por aqui." Assim, não se fez nenhum mal. E fora um negócio particular entre Peter e Sutra, pois Cheng San já se fora.

Em segundo lugar, um rádio de que ele tinha conhecimento e que não estaria na sua barraca seria mais que útil. Ele podia dominar a situação e saber exactamente quando dar o salto. Assim, bem feitas as contas, nenhum mal fora feito, a não ser que Peter excedera a sua autoridade. E ainda mais. Se se confiava num tipo e se contratava esse tipo, contratavam-se-lhe os miolos. Não faz sentido ter um tipo às canelas só para receber ordens. E Peter fora muito útil durante as negociações. Se e quando chegasse a altura de dar o salto, bem, Peter estaria no grupo. Era preciso um tipo que falasse a língua do país. Sim, e Peter não tinha medo. Portanto, bem feitas as contas, o Rei sabia que seria idiota irritá-lo, em vez de se aproveitar da situação como de um bom negócio. Sim, portara-se como um garoto de dois anos.

- Peter! Desculpa lá. O rádio foi uma boa ideia.

- Quê?

- Desculpa. Foi uma boa ideia.

- Não te compreendo. Tão depressa ficas furioso como dizes que foi uma boa ideia.

O Rei gostava deste filho da mãe. Tinha-os...

- Os rádios dão-me arrepios na espinha, não têm futuro. - Riu-se baixinho. - Não têm valor para revenda!

- De verdade, já não estás zangado comigo?

- Não, raio! Somos amigos. - Deu-lhe um murro por brincadeira.- Só fiquei chateado por não me teres dito. Isso não está certo.

- Desculpa. Tens razão. Peço desculpa. Foi ridículo e desleal. Jesus! Eu não quereria prejudicar-te em coisa nenhuma. Acredita que estou arrependido.

- Aperta lá cinco. Eu também perdi a tramontana. Desculpa. Mas da próxima vez diz-me antes de fazeres alguma coisa.

Peter Marlowe apertou-lhe a mão.

- Tens a minha palavra.

- Mas, afinal, que queres dizer com isso do condensador? Peter Marlowe explicou-lhe aquilo dos três cantis.

- Quer dizer, tudo o que o Mac precisa é de um condensador? É assim?

- Ele diz que pensa que sim.

- Sabes o que eu penso? Eu penso que seria melhor tirar o condensador e deitar fora o rádio. Enterrá-lo aqui. Era mais seguro. Depois, se o teu não trabalhasse, podíamos sempre voltar aqui e levá-lo. O Mac podia facilmente pôr o condensador. Esconder este rádio no campo ia ser um problema e seria uma tentação lixada ligar o raio da coisa. Não achas?

- Era. - Peter Marlowe olhou para o Rei com olhar investigador.- Voltas comigo aqui para vir buscá-lo?

- Com certeza.

- Se, por qualquer razão, eu não puder vir, vens tu? Se o Mac ou o Larkin te pedirem?

O Rei pensou um momento.

- com certeza.

- Dás a tua palavra?

- Dou. - O Rei esboçou um sorriso. - Tu ligas muito a isso da palavra, não ligas, Peter?

- De que outra maneira se pode julgar um homem?

Levou apenas um momento a Peter Marlowe a arrancar dois fios que ligavam o condensador ao interior do rádio. Mais um minuto e o rádio estava embrulhado no seu pano protector e num pequeno buraco aberto na terra da selva. Puseram uma pedra chata no fundo do buraco, depois cobriram o rádio com uma boa espessura de folhas. Alisaram de novo a terra e puseram um tronco de árvore junto ao local. Um par de semanas na humidade do seu túmulo seria bastante para destruir a utilidade do aparelho, mas duas semanas seria tempo suficiente para vir de novo buscá-lo se os cantis ainda não trabalhassem.

Peter Marlowe limpou o suor, porque uma súbita vaga de calor pousara sobre eles, e o cheiro do suor excitava os insectos, que formavam uma nuvem à volta deles.

- Estes malditos bichos! - Levantou os olhos para o céu nocturno, avaliando as horas com um certo nervosismo. - Não achas que é melhor irmos andando?

- Ainda não. São só quatro e um quarto. A melhor hora é mesmo antes da madrugada. Era melhor esperarmos mais dez minutos, e então estaremos em posição à boa hora. - Abriu os lábios num sorriso. - Da primeira vez que passei o arame, também estava assustado e ansioso. Ao voltar, tive de esperar meia hora ou mais antes que a costa estivesse limpa. Jesus, o que eu suei! -Agitou as mãos para sacudir os mosquitos. - Raio de bichos!

Sentaram-se um momento a escutar o constante movimento da selva. Fiadas de pirilampos punham manchas de brilho nos pequenos regos da chuva, ao lado do carreiro.

- É como na Broadway à noite - disse o Rei.

- Vi uma vez um filme chamado Times Square. Era uma história incrível sobre jornais. Deixa-me ver. Julgo que era com o Cagney.

- Não me lembro desse. Mas a Broadway, só vista. É exactamente como o dia no meio da noite. Grandes anúncios a néon e luzes por toda a praça.

- Onde é a tua casa?

O Rei encolheu os ombros.

- O meu pai anda de um lado para o outro.

- Qual é o trabalho dele?

-É uma boa pergunta. Um pouco disto, um pouco daquilo. A maior parte do tempo está bêbedo.

- Isso deve ser muito mau.

- É mau para uma criança.

- Não tens mais família?

- A minha mãe morreu. Morreu quando eu tinha três anos. Não tenho irmãos nem irmãs. Foi o meu pai que me criou. um desgraçado, mas ensinou-me muitas coisas sobre a vida. Primeiro, que a pobreza é doença. Em segundo lugar, o dinheiro é tudo. Em terceiro lugar, não importa como se consegue, o que importa é consegui-lo.

- Sabes, nunca pensei muito no dinheiro. Penso que na carreira militar há sempre... bem, há sempre o prémio mensal, há sempre um certo nível de vida; por isso o dinheiro não significa muito.

- Quanto ganha o teu pai?

- Não sei ao certo. Suponho que à volta de seiscentas libras por ano.

- Jesus! São só dois mil e quatrocentos dólares. Pois eu, como cabo, ganho mil e trezentos. Eu cá não trabalhava por essa miséria.

- Talvez nos Estados Unidos seja diferente. Mas na Inglaterra vive-se perfeitamente bem. Claro que o nosso carro é bastante velho, mas isso não tem importância, e ao fim da carreira tem-se uma pensão.

- De quanto?

- Aproximadamente metade do ordenado.

- Isso parece-me que não é nada. Não compreendo porque é que as pessoas vão para a vida militar. Talvez porque falharam como pessoas. - O Rei viu Peter Marlowe estremecer. - Claro - acrescentou rapidamente -, isto não se aplica à Inglaterra. Eu estava a falar dos Estados Unidos.

- A vida militar é uma vida boa... para um homem. Dinheiro suficiente e uma vida estimulante em todas as partes do Mundo. A vida social é boa. E depois, bem... um oficial tem sempre bastante prestígio. - E Peter Marlowe acrescentou, quase apologeticamente: - Sabes, e depois há tradição e tudo isso.

- Vais ficar na tropa depois da guerra?

- Claro.

- Parece-me - disse o Rei, palitando os dentes com um pequeno fio de casca de árvore - que é demasiado fácil. Não tem interesse nem futuro receber ordens de tipos que são, na sua maior parte, uns inúteis. É assim que eu vejo as coisas. E, além disso, não é ordenado que se veja. Tu devias, Peter, ir dar uma vista de olhos aos Estados Unidos. Não há nada no Mundo que se lhes compare. Terra nenhuma. Cada homem por si, e cada homem é tão bom como o seguinte. O que se tem de fazer é ter um plano e ser melhor que o seguinte. Nisso há emoção.

- Não creio que servisse para mim. De certo modo, sei que não sou um homem para fazer dinheiro. Sinto-me melhor a fazer aquilo para que nasci.

- Isso é um disparate. É porque o teu velho é tropa...

- Já vem desde 1720. De pai para filho. É demasiada tradição para tentar lutar contra ela.

O Rei resmungou:

- Já é tempo. - E depois acrescentou: -Eu só sei alguma coisa do meu pai e do pai dele. Para trás disso... nada. Só que parece que a minha gente veio do Velho Mundo, nos anos de 1880.

- Da Inglaterra?

- Não, raios! Creio que da Alemanha. Ou talvez da Europa Central. Que é que isso importa? Sou americano, e só isso conta.

- Os Marlowes estão na carreira militar, e acabou-se!

- Não, com mil raios! Não é assim. Olha para ti. Agora tens dinheiro, porque sabes servir-te dos miolos. Podias ser um grande comerciante. Bastava quereres. Falas como um doutor e eu estou a servir-me dos teus miolos. Agora não te enches de peneiras. Isso é o estilo americano. Paga-se a quem tem miolos.

- Isso está errado. Eu não tenho de ser pago para ajudar um pouco.

- Não há dúvida de que precisas de ser ensinado. Gostava de te apanhar nos Estados Unidos. com o teu sotaque de Limey, ias ser um sucesso. Iríamos pôr-te nas roupas para senhoras.

- Santo Deus! - Peter sorriu para ele, mas o sorriso estava impregnado de horror. - Eu não era mais capaz de vender fosse o que fosse do que de voar.

-Tu podes voar.

- Sem avião, quero eu dizer.

- Claro. Eu estava a brincar. O Rei olhou para o relógio.

- O tempo passa devagar quando se está à espera.

- Às vezes penso que não vamos sair nunca deste buraco malcheiroso.

- Eh, o Tio Sam vai limpar o sebo aos Japoneses. Já não falta muito. E, ainda que falte, que importa? O que importa é que vamos ganhar.

O Rei olhou para o relógio.

- Era melhor pormo-nos no piro.

- Quê?

- Cavarmos.

- Ah! -Peter Marlowe levantou-se. -Conduz, Macduff! -disse, bem-disposto.

- Ha?

- É uma maneira de dizer. O mesmo que "vamos cavar". Contentes, agora que estavam de novo amigos, meteram-se pela

selva. Atravessar a estrada foi fácil. Agora, que tinham passado a área patrulhada pelo guarda itinerante, seguiram um pequeno carreiro e estavam a uns quatrocentos metros do arame farpado. O Rei ia à frente, calmo e confiante. Só as nuvens de pirilampos e mosquitos lhes tornavam a marcha desagradável.

- Jesus! Estes bichos são horríveis.

- São. Por minha vontade, fritava-os - segredou Peter Marlowe, em resposta.

Foi então que viram a baioneta apontada a eles e estacaram.

O japonês estava sentado, encostado a uma árvore, e tinha os olhos fixos neles, a face arrepanhada por um sorriso horrível e a baioneta segura entre os joelhos.

Os seus pensamentos foram os mesmos: "Jesus Cristo! Utram Road! Estou morto. Mata!"

O Rei foi o primeiro a reagir. Saltou para o guarda e afastou a baioneta para o lado; depois pôs-se em pé, a coronha da arma ao alto, para esmagar a cara do homem. Peter Marlowe ia saltar-lhe para a garganta. Um sexto sentido preveniu-o e as suas mãos em garra evitaram a garganta, pelo que ele foi embater na árvore.

- Afasta-te dele!

Peter Marlowe pôs-se em pé, agarrou o Rei e puxou-o. O guarda mão se mexera. De olhos arregalados, o mesmo esgar na face.

- Mas que diabo...? - ofegou o Rei, em pânico, a arma ao alto, sobre a cabeça.

- Afasta-te! Depressa! - Peter Marlowe arrancou a carabina das mãos do Rei e atirou-a para junto do japonês morto. Foi então que o Rei viu a serpente no colo do homem.

- Santo "Deus! - rosnou, ao dar um passo em frente para ver mais de perto.

Peter Marlowe agarrou-o freneticamente.

- Para trás! Foge, por amor de Deus!

E deu às de vila-diogo, para longe das árvores, pisando descuidadamente a vegetação rasteira. O Rei correu atrás dele e só quando chegaram à clareira é que pararam por fim.

- Mas tu estás maluco? - conseguiu o Rei dizer, morto de cansaço. - Era apenas uma sacana de uma cobra!

- Aquilo era uma serpente voadora - respondeu Peter Marlowe, ofegante. - Vivem nas árvores. Morte instantânea, meu velho. Estava uma no colo dele e outra por baixo. Elas sobem às árvores, achatam o corpo e descem em espiral até ao chão, onde caem sobre as suas vítimas. Devia haver lá muitas, porque em geral vivem em ninhos.

- Jesus!

- Na realidade, meu velho, devíamos estar gratos àqueles estupores - disse Peter Marlowe, tentando acalmar a respiração. - Aquele japonês ainda estava quente. Morrera poucos minutos antes. Ter-nos-ia apanhado se não tivesse sido mordido. E devíamos agradecer a Deus a nossa discussão. Deu tempo às serpentes. Nunca estaremos mais perto da morte! Nunca!

- Nunca mais quero ver um sacana de um japonês com a sacana de uma baioneta apontada a mim no meio da sacana da noite. Vamos. É melhor sairmos daqui.

Quando estavam em posição perto do arame, instalaram-se para esperar. Não podiam ainda dar a corrida final. Muita gente por ali. Muita gente a passear, os que não tinham sono e os que estavam quase a dormir.

Era bom descansar e ambos sentiam os joelhos a tremer. E estavam gratos por estarem ainda vivos.

"Jesus! Que noite!", pensou o Rei. "Se não fosse o Peter, eu seria agora um cadáver. Ia pôr o pé no colo do japonês enquanto lhe dava a porrada com a coronha. O meu pé estava a quinze centímetros de distância. Serpentes! Odeio as serpentes. Filhas de puta!"

E, à medida que o Rei se acalmava, a sua estima por Peter Marlowe aumentava.

- Esta é a segunda vez que me salvas a vida - disse baixinho.

- Tu pegaste primeiro na arma. Se o japonês não estivesse morto, tinha-lo morto tu. Eu fui mais lento.

- Pois, eu estava mesmo em frente. - O Rei calou-se e depois sorriu. - Eh, Peter, nós fazemos uma boa parelha; com o teu aspecto e os meus miolos, fazemos uma boa parelha.

Peter Marlowe começou a rir-se. Tentou rir-se para dentro, mas rebolou pelo chão. O riso sufocado e as lágrimas que lhe corriam pelas faces contagiaram o Rei, e também o riso começou a torcê-lo. Por fim, Peter Marlowe conseguiu dizer:

- Por amor de Deus, acaba com isso!

- Foste tu que começaste.

- Não fui nada!

- Ah, isso é que foste, tu disseste... - Mas o Rei não pôde continuar. Limpou as lágrimas.-Vês aquele japonês? Aquele filho de puta sentado como um macaco...!

- Olha!

O riso apagou-se.

Do outro lado do arame, Grey passeava pelo campo. Viram-no parar fora da barraca americana. Viram-no esperar na sombra e depois olhar para além da vedação, quase directamente para eles.

- Achas que ele sabe? - murmurou Peter Marlowe.

- Não sei. O que sei é que, por enquanto, não podemos entrar. Vamos esperar.

Esperaram. O céu começou a clarear. Grey estava na sombra, a olhar para a barraca americana e depois em redor do campo. O Rei sabia que, do sítio onde ele estava, podia ver a sua cama. Sabia que Grey podia ver que ele não estava lá. Mas os cobertores estavam puxados para baixo e ele podia estar junto dos outros que não tinham sono e passeavam pelo campo. Não havia lei contra o estar fora da sua cama. "Mas despacha-te, vai para o raio que te parta, Grey! Fora daí!"

- Daqui a nada temos de ir - disse o Rei. - A luz é contra nós.

- Se fôssemos para outro sítio?

- Ele tem a vedação toda coberta, toda até ao canto.

- Pensas que terá havido uma fuga, que alguém terá dado à língua?

-É possível. Também pode ser simples coincidência.-E o Rei mordeu o lábio de desespero.

- Que tal a área das latrinas?

- Demasiado arriscado.

Esperaram. Foi então que viram Grey olhar mais uma vez por cima do arame na direcção deles e depois afastar-se. Seguiram-no com a vista até ele dar a volta ao muro da prisão.

- Talvez seja um truque - disse o Rei. - Vamos dar-lhe uns minutos.

Os segundos pareciam horas à medida que o céu clareava e que as sombras começavam a dissolver-se. Agora não havia ninguém perto da vedação, ninguém à vista.

- É agora ou nunca. Vamos!

Correram para a vedação. Num momento estavam debaixo do arame e dentro do fosso.

- Tu corres para a barraca, Rajah. Eu espero.

- Okay.

Apesar de todo o seu tamanho, o Rei tinha o pé leve e percorreu rapidamente a distância até à sua barraca. Peter Marlowe saiu da vala. Alguma coisa lhe disse que se sentasse na borda a olhar para fora do campo. Então, pelo canto do olho, viu Grey voltar a esquina e parar. Sabia que fora visto imediatamente.

- Marlowe.

- Oh, olá, Grey. Também não podes dormir? - disse ele, espreguiçando-se.

- Há quanto tempo estás aqui?

- Poucos minutos. Estava cansado de andar e sentei-me.

- Onde está o teu amigo?

- Quem?

- O americano. - E Grey teve um risinho.

- Não sei. A dormir, julgo eu.

Grey olhou para o equipamento, tipo chinês. O dólman esgaçado nos ombros e molhado de suor. Lama e pedaços de folhas no estômago e nos joelhos. Um risco de lama na cara.

- Como é que te sujaste tanto? E por que estás a suar tanto? Que andas para aí a fazer?

- Estou sujo porque... não há mal nenhum num pouco de honesta sujidade. Na verdade - disse Peter Marlowe, ao mesmo tempo que se levantava e sacudia os joelhos e o assento das suas calças-, não há nada como um pouco de sujidade para fazer um homem sentir-se limpo depois de tomar um bom duche. Estou a .suar pela mesma razão que tu estás a suar. Sabes como é, os trópicos... etc, e tal!

- Que tens nos bolsos?

- Lá porque tens uns miolos desconfiados, não quer dizer que toda a gente transporte contrabando. Não há nenhuma lei que proíba passear no campo, se não se consegue dormir.

- Mas há uma lei que proíbe passear fora do campo.

Peter Marlowe estudou-o com um ar indiferente, embora não se sentisse nada indiferente, tentando ler o que Grey queria dizer com aquilo. Saberia ele?

- Era preciso ser maluco para tentar isso.

- Exactamente. - E Grey olhou para ele durante muito tempo com um ar duro, depois rodou sobre os calcanhares e foi-se embora.

Peter Marlowe ficou com os olhos nele. Depois também ele se voltou e partiu na direcção oposta, sem olhar para a barraca americana. Hoje, Mac devia sair do hospital. Peter Marlowe sorriu ao pensar no presente de boas-vindas de Mac.

Da segurança da sua cama, o Rei viu Peter Marlowe sair.

Depois fixou os olhos em Grey, o inimigo, erecto e malevolente na luz que crescia.

Magreza esquelética, calças esfarrapadas, rudes socos nativos sem camisa, braçadeira, boné dos "Tanques", no fio. Um raio de sol incendiava o emblema do boné, convertendo-o de nada em ouro fundido.

"Até onde é que sabes, Grey, meu filho de puta?", perguntava o Rei a si próprio.

 

 

                                                     CONTINUA

 

 

ERA pouco depois da aurora.

Deitado na sua tarimba, Peter Marlowe dormitava.

"Foi um sonho?", perguntou ele a si próprio, subitamente acordado. Então os seus dedos cautelosos tocaram no pequeno pedaço de pano que continha o condensador e ele soube que não era um sonho.

Ewart torceu-se na tarimba de cima e bocejou, acordado.

- Mahlu na noite - disse ele, pendurando as pernas para fora da tarimba.

Peter Marlowe lembrou-se de que era a vez de o seu pelotão limpar os furos. Saiu da barraca e foi acordar Larkin.

- Eh! ó Peter - disse Larkin, tentando vencer o sono. - Que se passa?

Foi difícil a Peter Marlowe não divulgar a notícia do condensador, mas queria esperar até que Mac lá estivesse também; por isso disse apenas:

- Tarefa dos furos, meu velho. - Raios me partam! Que mais?

Larkin distendeu as costas, doridas, reapertou o sarong e enfiou os pés nos tamancos.

Encontraram a rede e a vasilha de vinte e dois litros e meio e atravessaram o campo, que começava a despertar. Quando chegaram à área das latrinas não deram atenção aos ocupantes e os ocupantes não lhes prestaram atenção a eles.

Larkin levantou a tampa de um furo e Peter Marlowe raspou rapidamente os lados com a rede. Quando tirou a rede do buraco, vinha cheia de baratas. Despejou a rede na vasilha e raspou de novo. Outra boa colheita.

 

 

 

 

Larkin voltou a pôr a tampa e avançaram para o furo seguinte.

- Segure bem isso - disse Peter Marlowe. - Olhe o que você fez! Perdi pelo menos cem.

- Há muitas mais - disse Larkin com repugnância, segurando Melhor a vasilha.

O cheiro era muito mau, mas a colheita era rica. Em breve a vasilha estava repleta. A mais pequena das baratas media quase quatro centímetros. Larkin enfiou a tampa na vasilha e seguiram para o hospital.

- Não é a minha ideia de uma boa dieta - disse Peter Marlowe.

- Você comia-as realmente, Peter, lá em Java?

- Claro. E você também, já agora. Em Changi. Larkin por pouco não deixou cair a vasilha.

- Quê?

- Você não vai pensar que eu passava por um petisco nativo e por uma fonte de proteínas, segundo os médicos, sem tirar proveito para mós. Ou vai?

- Quê? Mas nós tínhamos um pacto! - gritou Larkin. - Nós acordámos, nós três, que não cozinharíamos nada de estranho sem dizer aos outros primeiro.

- Eu disse ao Mac e ele concordou.

- Mas eu não, cum raio!

- Ora, ora, coronel. Tivemos de as apanhar e cozinhar em segredo e ouvimo-lo dizer que bem que cheirava o cozinhado. Somos tão esquisitos como o senhor.

- Bem, da próxima vez, quero saber. E isto é uma sacana de uma ordem!

- Sim, senhor - disse Peter Marlowe, com uma risadinha.

Entregaram a vasilha na cozinha do hospital, na pequena cozinha especial, donde se alimentavam os que estavam gravemente doentes.

Quando voltaram ao bungalow, Mac estava à espera. A pele dele tinha um tom cinzento-amarelado, os olhos estavam injectados de sangue e...

 

 

                                                                 

 

                                                   

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