Biblio "SEBO"
O IMPERADOR FAMÉLICO
A COMENDADORIA
A noite já caía quando Renaud, por fim, a avistou; umas grandes muralhas com quatro torres perfuradas por seteiras, dominavam, com a sua terrível silhueta, o caminho de terra que corria ao longo do rio. Em redor, estendidas como um tapete, as vinhas empurravam a espessa trunfa da floresta até ao alto do outeiro. Uma bandeira branca, com a cruz vermelha estampada, flutuava molemente sob o vento ligeiro soprado pelo céu já quase negro na direcção leste. No outro lado, os telhados pontiagudos, os sinos e as defesas de Joigny guardavam uma ponte de pedra construída em tempos sobre o Yonne pelos Romanos.
O jovem viajante suspirou de alívio. As sete léguas percorridas desde manhã pesavam-lhe nos pés calçados apenas com sandálias grosseiras e a última fora a mais rude, depois da travessia movimentada do rio, onde o barqueiro de Saint-Aubin, mais ganancioso do que impressionado com o seu hábito de monge, quis explorar o saco de tela que ele transportava ao ombro... Fora preciso convencê-lo de que não se tratava de um tesouro, mas sim de um espesso monte de folhas de pergaminho atadas com delgados cipós de vime destinado ao “templo” de Saint-Thomas para que o homem consentisse em embarcar Renaud na pequena chata pouco maior do que uma casca de noz. Acrescentando-lhe, verdade seja dita, a dimensão dos ombros do jovem sob o burel negro... e o restante pequeno pedaço de banha fria que metera no saco para a viagem. Mas, finalmente, o Yonne foi atravessado sem que Renaud tivesse de se molhar e o jovem pôde continuar, coxeando, porque tinha os pés gelados, o seu caminho ao longo da margem. Pouco habituado às correias de couro, das quais uma lhe feria o peito do pé, Renaud suspirava pelas botas abandonadas na Torre, mas era o preço que tinha de pagar pela verosimilhança da personagem. Onde já se vira um monge de botas? Só se fosse, evidentemente, um abade, ou um bispo!
Por fim, o jovem chegou à entrada sobre a qual estava reproduzida em pedra a cruz da bandeira. Ao lado da porta estava uma sineta, cuja corrente ele puxou como diante de um mosteiro. Ali, naquele domínio de monges-soldados, que trabalhavam a terra como camponeses mas que sabiam lutar como os guerreiros que nunca deixavam de ser, não havia fossos nem pontes levadiças. Um irmão-ordenança, com uma cota de armas negra e uma cruz vermelha estampada e com um archote na mão, abriu a porta, olhou para ele, desejou-lhe paz e perguntou-lhe o que desejava:
- Ver o irmão Adam... se ainda é o comendador desta casa!
- É, graças a Deus!
- Então, dizei-lhe que o meu nome é Renaud e que venho da parte do irmão Thibaut... entregar-lhe isto - acrescentou ele, designando o saco que tinha ao ombro.
- O irmão Adam está na capela para as vésperas, mas segui-me até à sala de aquecimento, onde podereis esperar comodamente. Pareceis cansado e cheio de frio, irmão - disse aquele homem com uma gentileza extrema, que era, entre os Templários, regra absoluta, tanto entre eles como para com os estranhos.
Seguindo o irmão-ordenança, Renaud penetrou num vasto pátio rodeado de edifícios diversos que constituíam as cavalariças, o dormitório, o refeitório e uma construção abrigando um lagar mas também uma bela capela, romana como a sala do capítulo, de que era vizinha. Assim como a sala de aquecimento onde, em redor de uma boa lareira, estavam dispostos alguns bancos.
Renaud sentou-se com satisfação e apressou-se a tirar a sandália que o magoava, descobrindo uma grande bolha inflamada. Ao ver aquilo, o irmão-ordenança foi-lhe buscar com que lavar os pés e com que tratar aquele que estava ferido. Em seguida, deu-lhe um pedaço de pão e uma taça de vinho para recuperar as forças, antes de ir esperar o fim do ofício e prevenir o comendador.
Um momento mais tarde regressou para levar Renaud à sala do capítulo, onde o esperava um grande ancião, erecto como um I a despeito dos anos e que o jovem reconheceu sem dificuldade devido à descrição do manuscrito. A coroa de cabelos cortados à escovinha, brancos como a longa barba, mantinham alguns vestígios avermelhados e as dimensões da personagem não tinham mudado, apesar de o azul dos olhos se ter desbotado um pouco.
Com grandes passos que lhe agitavam o hábito e o manto brancos e com as mãos cruzadas nas costas, o irmão Adam percorreu as grandes lajes com um vigor que provocou a admiração do viajante, que achou que aqueles homens, forjados no fogo dos combates da Terra Santa sob um sol devorador, pareciam feitos de um material diferente do comum dos mortais! E aquele já estava para além das noventa primaveras! Era incrível!
Detendo o seu andamento, o irmão Adam Pellicorne ficou no meio da sala para ver Renaud aproximar-se dele. Devia sentir-se atormentado por qualquer coisa, porque, sem se preocupar com a cortesia refinada do Templo, perguntou bruscamente:
- Como está o irmão Thibaut?
Mas não precisou de resposta ao ver o jovem inclinar-se diante de si com lágrimas nos olhos:
- Ah! - disse ele secamente. - Morreu?
- Sim. Antes de ontem à noite. Eu... enterrei-o o melhor que pude depois de o ter envolvido no manto branco!
- Muito bem. Mas... como fostes parar junto dele?
- Do fundo da minha alma... creio que foi Deus Todo-Poderoso que me levou até ele quando eu passava por horas de grande perigo. Eu ia... eu ia ser enforcado quando consegui fugir através da floresta... e dei de caras com a Torre esquecida...
Mas o irmão Adam teve um sobressalto, ao mesmo tempo que as suas espessas sobrancelhas brancas se franziam:
- Enforcado? Essa palavra soa-me mal!
- Infelizmente, não conheço outra para... aquilo... Renaud repetiu ao comendador o relato feito àquele a quem, no fundo da sua alma, chamava avô e, pouco a pouco, o rosto severo que lhe fazia frente distendeu-se. Finalmente, foi o irmão Adam que concluiu:
- É uma pena um Rei tão bom ter bailios tão maus! Felizmente, nem todos são como esse Jérôme Camard, mas é preciso que se saiba em Paris que tipo de homem ele é... Que saco é esse? - acrescentou ele, apontando para o pacote que Renaud acabava de deixar cair e que o jovem se apressou a apanhar do chão, metendo-o debaixo do braço.
- É o livro que sire Thibaut escreveu durante o seu longo isolamento. Não podia deixá-lo ficar lá.
- Leste-lo?
- Antes de ele morrer. Ele disse-me que o tinha escrito para mim. Mas não posso guardá-lo, porque não tenho casa. Por isso, pensei confiá-lo a vós, sire, que éreis seu amigo. Aliás, creio que éreis o único...
- Sim, porque Olin des Courtils e a sua querida mulher já morreram. Que pensais de tudo isso? - perguntou ele apontando para o saco que Renaud, resignado, lhe estendia.
- Lamento muito não ter sabido nada até ter conhecido sire Thibaut, o que não me deu tempo suficiente para o amar como ele merecia.
- Tendes a vida inteira, agora que sabeis como lhe éreis... infinitamente querido! Que ides fazer, agora? Já fostes armado cavaleiro?
- Não. O meu pai tencionava colocar-me ao serviço do conde de Auxerre como escudeiro, visando a investidura, mas agora já não tenho o direito de sonhar com isso. Sou um condenado em fuga!
- Esqueçamos isso, por agora! O Templo pode acolher-vos e fazer de vós um cavaleiro. Ficareis aqui e após o período de noviciado apropriado recebereis a espada e o manto... Mas - acrescentou o irmão Adam perante a careta do rapaz - talvez a vida monástica não vos tente? Mesmo a nossa, que é tanto de combate como de serviço pelo próximo?
- É que... tenho uma missão... longe daqui. Uma missão que será bem difícil, pelo que me disseram.
-... mas que a Ordem poderá facilitar? Quereis que vos diga do que se trata? Thibaut de Courtenay encarregou-vos de encontrar a Verdadeira Cruz que ele escondeu antes do desastre de Hattin. Acho que fazeis mal em ir sozinho quando um navio da Ordem pode levar-vos com alguns irmãos como escolta. A esta hora, por iniciativa do Imperador Frederico II e, sobretudo, devido à última cruzada conduzida pelo conde Tibaldo de Champagne e por Ricardo da Cornualha, o reino franco está de novo em pé e os nossos irmãos estão a reconstruir os seus grandes castelos...
Com um ar cada vez mais infeliz, Renaud passava de um pé para outro, não sabendo como dizer o que tinha a dizer e temendo, acima de tudo, magoar aquele grande ancião que o recebia tão bem. Finalmente, o jovem decidiu-se, acreditando que, com o irmão Adam, talvez a verdade fosse a melhor solução.
- É que... se eu for à Terra Santa através do Templo, se calhar terei de lhe entregar a Santa Relíquia!
- Isso parece-me natural. Quando em campanha, sempre foi a Ordem a guardar a Cruz e foi o mordomo-mor que a mandou enterrar num local que deveria permanecer ignorado de todos e que não seria revelado a ninguém, nem sequer sob tortura.
- Eu sei. Li isso aqui - suspirou Renaud, apontando para o grande manuscrito. Mas... sire Thibaut deseja que ela seja entregue ao Rei Luís, único digno, segundo dele, de a receber...
- Único digno? - articulou o comendador. - E nós?... Eu pensava que Thibaut amava a Ordem e que lhe era fiel apesar da exclusão?
- Eu também penso. Mas devia ter as suas razões. Ele falou... de obscurantismos, mas não me disse o que queria dizer com isso.
- Ah!
- E eu devo obedecer às suas últimas vontades. É por isso que não posso tornar-me templário.
- Estou a ver, mas... gostaríeis?
Não foi fácil, porque o infeliz não sabia o que fazer de si próprio. Mas, mais uma vez, escolheu o partido da verdade.
- Eu... não! Que Vossa Reverência me perdoe, mas antes desta infelicidade, que me destruiu a vida, eu era um rapaz como os outros, queria ter a minha espada e a minha lança e conseguir grandes feitos...
- Mas, é com isso mesmo que sonha um bom templário!
- Sem dúvida, mas eu também gostaria de... servir as damas! Perante a expressão ingenuamente maravilhada do jovem,
Adam Pellicorne não conseguiu deixar de rir:
- “As” damas? Sabíeis que o vosso avô só amou uma mulher e que por essa mulher recusou todas as outras, mantendo-se puro sob um céu tórrido, num país onde isso é, certamente, a coisa mais difícil do mundo?
- Tanto assim? Os Templários, parece-me, fazem voto de castidade e cumprem-no. Pelo menos, assim creio. Além disso, sire Thibaut não era, também, guiado pela sua dedicação ao Rei leproso que, esse, não tinha direito ao amor?
- Decididamente, sabeis muitas coisas, mas é verdade. Regressemos à vossa pessoa! Tendes alguma namorada?
- Não - respondeu Renaud um pouco precipitadamente, porque acabava de se interpor entre ele e a austera decoração, que fazia realçar os pilares atarracados e a abóbada baixa, um rosto.
Mas se o irmão Adam se apercebeu, não fez qualquer comentário, para além de uma conclusão benevolente:
- Podemos falar disso mais tarde. Não há pressa, suponho? O Rei Luís, que Deus guarde, está a pensar em partir para a cruzada. Como vedes, as possibilidades abrem-se diante de vós. Entretanto, está a tocar a sineta para o jantar! Vamos lavar as mãos e depois vamos para a mesa! Em seguida, rezaremos as Completas e vós podereis ir dormir! A noite, sei-o muito bem, pode dar-nos bons conselhos e trazer-nos soluções...
Mas estava escrito que aquele programa tranquilo não seria levado a cabo. Quando o irmão Adam terminava a sua frase, a sineta da entrada foi agitada com frenesim, ao mesmo tempo que o pesado batente, de carvalho, ressoava sob uns punhos ferrados, provocando rumores no convento. O ordenança que recebera Renaud apareceu de imediato com um ar sobressaltado:
- É o bailio de Châteaurenard, sire comendador. Traz homens de armas com ele e reclama um prisioneiro evadido que se teria refugiado aqui, connosco!
- O bailio de Châteaurenard? - troou o irmão Adam, colocando na cabeça o chapéu de feltro branco, sem aba, que estava no braço da sua cadeira! - Tragam-no aqui! Mas sozinho! Por mais obtuso que seja, deve saber que os seus soldados não têm o direito de entrar nesta casa!
Perante o desmoronamento dos seus sonhos e a inutilidade de tantos esforços, Renaud não pôde evitar um gemido:
- Pronto! Acabou tudo! Mas talvez me possa esconder?
- Para que eu minta? Um templário não mente, meu rapaz. Pelo menos, aquele que é digno de o ser! Ficai aqui!
A espera foi breve. O irmão empregou-a indo sentar-se na sua cadeira de comendador, ao mesmo tempo que, ordenadamente, os cavaleiros do manto branco entravam e ocupavam, um a um, os seus lugares. Renaud ficou sozinho no meio da sala com a impressão terrível de se encontrar no tribunal depois de receber a sentença, à espera do carrasco.
Jérôme Camard tinha, talvez, o ar de um atormentador. Com o dorso um pouco curvado, como aqueles que crescem mal, escondia, sob a sua magreza, uma força perigosa e, sob o capuz negro, um rosto cuja assimetria talvez não fosse desagradável não fora a linha fina e sinuosa da boca e a incessante actividade dos olhos sem cor definida, que pareciam querer observar todas as coisas ao mesmo tempo. E, naturalmente, o pobre Renaud teve o privilégio de deter aquele olhar:
- Ah, ei-lo! - exclamou o bailio com satisfação. -Vejo com prazer que a justiça do Rei chega às nossas queridas comendadorias do Templo!
E já avançava para agarrar a sua presa que, fascinada, qual ave, pelo manjerico, parecia transformada em pedra, quando o irmão Adam o pregou ao solo:
- Não vos ensinaram a cumprimentar? - grunhiu ele. - Ou já vos esquecestes de quem sois?
Como se tivesse sido chicoteado, Camard obedeceu pouco à-vontade, sem se esquecer de lembrar o seu título de bailio real...
- De Châteaurenard, mas não todo! O que quer dizer que não tendes nada que estar aqui, já que estais fora da vossa jurisdição porque a comendadoria de São Tomás do Templo está encravada no condado de Joigny. E o conde é, também, senhor de Châteaurenard.
- Eu represento o Rei e o Rei pode ir a toda a parte.
- Aqui, não! As nossas queridas comendadorias, como tendes a audácia de dizer, dependem do Grão-Mestre que está na Terra Santa e que, por sua vez, depende do Papa! Que quereis?
- Deveis saber, sire comendador, visto que me ofereceis aquilo que venho buscar - escarneceu o bailio, que recuperara alguma segurança a despeito dos trinta pares de olhos fixos em si.
- Nós não vos oferecemos nada! Pelo contrário, esperamos as vossas explicações. Que procurais aqui?
- Este homem, que escapou, há poucos dias, à forca, pelos seus crimes: roubou-me e matou a própria mãe!
- A sério? Importais-vos, pelo menos, de dizer o seu nome? É muito fácil apontar o dedo ao primeiro que aparece!
- Se é só isso!... Dignai-vos, por favor, entregar à minha justiça o homem chamado Renaud des Courtils...
Um sorriso fendeu a barba branca do irmão Adam, mostrando uns dentes ainda sólidos:
- Vedes como é fácil cometer um erro? Esse jovem não é o filho de Odo des Courtils.
- Ora vamos! A despeito do disfarce, reconheço-o e, no fim de contas, se a dama de Courtils deu ao marido o filho de outro...
Os dois cavaleiros mais próximos de Renaud conseguiram, mesmo a tempo, impedir que o jovem se atirasse, gritando, a Jérôme Camard, para o estrangular:
- Filho de um porco! Mentes com quantos dentes tens! A dama Alais era pura e santa...
O irmão Adam abandonou a sua cadeira e colocou no ombro do jovem furioso uma mão apaziguadora:
- Paz, meu filho! E vós, Jérôme Camard, dobrai a vossa língua de víbora e vede a que ponto vos enganais, porque diante de vós está Renaud de Courtenay, dos antigos condes de Edessa e de Turbessel, uma grande casa que, suponho, não ignorais que transporta consigo o sangue dos Reis de França...
- A sério? E onde é que soubestes isso?
- Na acta que guardamos no nosso arquivo, assinada perante testemunhas por sire Thibaut de Courtenay, que regressou para junto de Deus há poucos dias e que pertenceu ao Templo de Jerusalém. Nela se reconhece como pai deste jovem.
- E a mãe?
- Uma dama grande de mais para que o seu nome seja aqui pronunciado.
- Por outras palavras, um bastardo! - escarneceu Camard.
- Apenas o sangue paterno conta e, se for reconhecido, deixa de ser bastardo. Simplesmente, perde o direito à herança! Mais alguma coisa?
- Sim. Um assassino é sempre um assassino e...
- Não vos obrigo, mas, no vosso lugar, não gritaria tão alto. Algumas pessoas pensam que o assassino fostes vós e que, além desse, cometestes outro crime, porque quereis acusar um inocente para vos apoderardes, “em nome do Rei”, dos bens dos Courtils.
- Vós o dissestes: em nome do Rei! E isso muda tudo! E é por isso que vos peço que me entregueis esse homem!
- Não, e por três razões: Esta casa é lugar de asilo e vós nunca deveríeis ter aqui entrado. Depois, procurais Renaud des Courtils e esse homem não existe. Por fim, e admitindo que ele exista, nunca matou ninguém. Para concluir, propomos-vos que leveis a Paris, perante o Rei, este assunto, e eu prometo-vos que se fará justiça! Porque acompanhá-lo-emos nós mesmos ao palácio.
Ouviu-se um murmúrio de aprovação vindo da dupla fileira de mantos brancos. Jérôme Camard terá ouvido uma ameaça onde havia apenas uma tranquila afirmação da vontade comum? Fosse como fosse, girou nos calcanhares e dirigiu-se para a porta, na soleira da qual, entretanto, se virou:
- Não penseis que ganhastes, “belos” sires templários! Quanto a esse, hei-de fazê-lo pagar, um dia, o crime que cometeu!
- A sério? Nesse caso, penso que iremos, de qualquer maneira, perante o Rei - emitiu o irmão Adam, que acrescentou com uma ironia insultante: - É tempo, para o bem das gentes de Châteaurenard, de o Rei tomar conhecimento do bom administrador que o representa!
A seguir à partida do bailio, os templários abandonaram em silêncio a sala do capítulo, levando consigo um Renaud desorientado que gostaria de compreender verdadeiramente o que lhe estava a acontecer, mas quando ele abriu a boca, o seu guia não lhe permitiu que se exprimisse:
- Mais tarde! Por agora, vamos comer, já que ultrapassámos a hora e à mesa não se fala. Em seguida, iremos rezar as Completas à capela.
Renaud teve de se contentar, mas enquanto devorava o copioso guisado de carneiro com couves e rabanetes que lhe serviram, tentava pôr em ordem os seus pensamentos e não ouviu uma palavra da leitura piedosa que, durante a refeição, foi lida por um irmão de pé em cima de uma pequena cadeira. O jovem constatou, apenas, que a obrigação do silêncio não dizia respeito ao comendador, que conversou em voz baixa com o capelão o tempo quase todo. Talvez se enganasse, mas tanto um, como outro, olhavam de vez em quando para si. Em seguida, dirigiram-se, em boa ordem, para a capela, mas enquanto durou o ofício com os seus salmos e o cântico do “Nunc dimitãs...”, Renaud foi incapaz de aplicar o seu espírito, que procurava assimilar a estranha notícia que acabava de ouvir. O hábito das orações - os Courtils eram muito piedosos! - fazia com que os seus lábios se agitassem maquinalmente. Apenas o cântico de Simeão, cantado pelas vozes graves dos templários, lhe venceu a distracção; mas quando se lhe quis juntar, a voz que lhe saiu da garganta pareceu-lhe de tal modo ridícula, que se calou. Não ia conseguir dormir enquanto não soubesse por que milagre se via filho do seu avô... E por que razão um templário, que não tinha o direito de mentir, acabara de proferir uma tal enormidade!
O irmão Adam, que o observava, não duvidava do que ia naquela cabeça de dezoito anos. Assim, deixando os seus cavaleiros terminarem sem ele a última visita da noite às cavalariças, conduziu Renaud até uma pequena cela desocupada, vizinha da ervanária.
- Ides dormir aqui! - disse ele, designando o estreito catre. - Mas, entretanto, falemos um pouco! Estáveis muito distraído na capela e eu creio saber o que vos perturba.
- É aquela... acta que vós pretendeis possuir...
- Pretender? Cuidado com a língua, meu rapaz! Eu não “pretendo” nada. Eu possuo essa acta, que sire Thibaut escreveu e selou aqui mesmo. Quando se é templário, não se mente!
- Mas ele mentiu, no entanto! E por escrito! Eu não sou filho dele...
- E verdade, mentiu. Com plena consciência do seu acto. Aliás, foi imediatamente absolvido pelo capelão de então! Mas, unicamente, para vosso bem. Imaginais que carreira seria a vossa se se soubesse que sois fruto do amor adúltero de uma princesa de Antioquia com um sarraceno? Thibaut fez o que era preciso para reapertar o fraco ramo que sois ao tronco sólido dos príncipes de Courtenay. Ele queria que usásseis o seu nome e eu aprovei. Chega-vos?
Demasiado atordoado para responder, Renaud deixou-se cair no pequeno catre e balbuciou:
- Príncipe de Courtenay! É...
- Eh lá, devagarinho! Não tendes mais direito ao título do que Thibaut, que era um simples cavaleiro! Vós também o sereis quando fordes armado. Depois, sois livre de conquistar outros títulos com a lâmina da vossa espada, mas isso pertence ao futuro...
Renaud levantou-se para saudar o comendador e ousou perguntar-lhe como via ele esse futuro.
- Vou reflectir - respondeu o irmão Adam. - Desejo-vos boa noite...
A noite e o princípio do dia que se lhe seguiu fortaleceram em Renaud a pouca atracção que tinha pela vida templária porque lhe parecia demasiado monástica. Era verdade que os seus pais adoptivos lhe tinham comunicado a sua fé e tinham-no acostumado a um grande rigor nos seus deveres religiosos, mas que não passavam de um pálido reflexo dos que eram a regra na comendadoria.
Às quatro horas da manhã foi acordado pela campana (1) das Matinas e pelos passos nas lajes que se lhe seguiram. Percebendo
(1) Sino.
que os irmãos se dirigiam à capela e achando que se devia comportar como eles, o jovem apressou-se a vestir o hábito, a calçar as sandálias e, com os olhos ensonados, seguiu o cortejo de mantos brancos que já atravessavam o pátio. Era noite escura, bem entendido, porque se tratava de um ofício essencialmente nocturno que, no Verão, se realizava às duas da manhã, mas o tempo, ainda frio, estava seco. O que os pés gelados do jovem agradeceram.
Na capela, onde dois grandes círios mal iluminavam as abóbadas simples de sombras densas, mas que faziam brilhar a cruz e o tabernáculo de prata, Renaud ficou à porta, na ponta das duas filas de irmãos, de frente uma para a outra na nave e esforçou-se por contribuir com a sua modesta participação, mas nunca tinha cantado as Matinas e teve de se contentar em ouvir aquelas vozes masculinas, das quais nem todas eram suaves, juntando-se a elas apenas na recitação das orações, que eram treze Pater em honra de Nossa Senhora e outros treze em honra do santo do dia que era Lubin, dono do décimo quarto dia de Março. Depois, em boa ordem, saíram todos para a escuridão para irem às cavalariças, em silêncio, para ver se estava tudo bem, após o que se foram, de novo, deitar. Renaud adormeceu de imediato, mais uma vez... mas não por muito tempo: duas horas mais tarde soava o sino das Primas (1), que levou à capela o convento inteiro, dessa vez para ouvir a missa completada com os sessenta Pater obrigatórios: trinta pelos mortos e trinta pelos vivos.
Em seguida, passaram ao refeitório para a primeira refeição, sempre muito substancial e sempre precedida pelo Benediríte e por um Pater, recitados de pé; após o que o silêncio só foi perturbado pela voz do leitor. Se não tivesse encontrado o seu lugar marcado no mesmo local da véspera, Renaud ter-se-ia acreditado desencarnado, até transparente, porque ninguém parecia vê-lo, ninguém lhe dirigiu a palavra e, ao fundo, o irmão Adam parecia tê-lo esquecido. Era uma sensação estranha e não muito agradável! O comendador precisaria assim de tanto tempo para saber o que fazer dele?
Só depois das Completas é que um irmão o foi buscar para o levar ao velho templário, que o esperava na sua cela. O jovem
(1) A primeira das horas canónicas.
estava um pouco atordoado por aquele dia interrompido por ofícios espaçados regularmente, que levavam os templários à capela para cantar as Horas de Nossa Senhora, o que não os impedia de consagrar aos campos, às vinhas, às cavalariças, aos estábulos e às diferentes tarefas do convento um trabalho considerável. Tudo apoiado em numerosos Pater. O jovem não fizera outra coisa senão rezar, comer e cantar com os outros, mas, no entanto, sentia-se cansado. A sua expressão, um pouco aturdida, divertiu o irmão Adam.
- Então? Que vos parece a vida de uma comendadoria, meu filho? Uma comendadoria campestre, que não é a mesma coisa que um templo de uma grande cidade, como Paris, Lyon, lille ou uma casa do Oriente, onde primam as artes militares.
Decididamente, aquele homem possuía o dom das perguntas difíceis e Renaud tossiu várias vezes antes de responder:
- É uma vida muito austera... mesmo para um rapaz que, como eu, devia estar a esta hora por baixo de seis palmos de terra. Se pudesse escolher, preferia o Oriente.
- Sabíeis que lá reza-se tanto como aqui?
- Sem dúvida... sem dúvida, e eu também gosto de rezar, mas... as armas não são o verdadeiro ofício do cavaleiro? E...
- ... e o trabalho da terra não te atrai! Porém, temos de o fazer, porque o que comemos, bebemos ou consumimos, de uma maneira ou de outra, vem do nosso domínio. O que nos permite, também, dar esmolas todos os dias, como o exige a Regra. O excedente é vendido e a receita vai para o tesouro do Templo. Vamos! Não façais essa cara! Ao submeter-vos a esta dura prova, não era minha intenção obrigar-vos. Desejais viver secularmente e eu vou ajudar-vos. O vosso pai, o bom sire Olin, queria que entrásseis para o serviço do conde de Auxerre, para que, depois de serdes seu escudeiro, ele vos armasse cavaleiro?
- De facto, e já tinha de parte a quantia necessária para comprar, chegada a ocasião, o lorigão, o elmo e o equipamento, que são, como sabeis, muito caros... Mas agora já não há nada a fazer. O bailio ficou com tudo. Nunca passarei de um homem de armas... um ordenança, talvez?
- Não estais a par de nada, o que é normal, já que fostes criado num pequeno castelo. Se o servirdes bem, qualquer grande barão fará o que for preciso e é a um dos mais ricos, não falando nos príncipes, que vos vou mandar...
- Renunciastes a mandar-me para Paris? Eu esperava... servir o Rei!
- Divagais, meu rapaz! Não se entra para o serviço do Rei como quem entra num moinho! Ainda há instantes gemíeis que não passaríeis de ordenança e eis que já quereis entrar no palácio da cidade! Como camareiro, talvez? Oh! Peço-vos desculpa por ter esquecido por um momento que um templário só se dirige a outra pessoa com amabilidade e suavidade! Mas vós fazeis-me perder a paciência - suspirou, por fim, o irmão Adam, deixando-se cair na sua cadeira de espaldar.
O templário passara, no espaço de alguns segundos, do branco ao vermelho-escuro, regressando, de novo, à cor inicial sob o olhar um tanto inquieto de Renaud, que, entretanto, chamava imbecil a si próprio. Não era a primeira vez que se apercebia daquela propensão irritante que tinha para falar de mais e exprimir os seus pensamentos com demasiada liberdade. A sua mãe reprovara-o por isso muitas vezes...
- Tende a bondade de me perdoar - murmurou ele, baixando os olhos.
Mas já o comendador retomava o fio do seu discurso:
- Quanto a Paris, ireis para lá! Vou mandar escoltar-vos até ao Templo da cidade, que é o mais importante de França, para evitar que andeis perdido e exposto a muitos perigos numa cidade tão grande. Em seguida, levar-vos-ão à residência de Coucy, onde vos acolherão, penso, devido à carta que vos vou entregar para o barão Raul. Será nessa casa que, com a ajuda de Deus, começareis a vossa carreira.
Se o irmão Adam pensava que o seu protegido se ia desfazer em agradecimentos, enganou-se. Renaud queria saber mais sobre aquela casa desconhecida para onde o mandavam, mas não sabendo como fazê-lo sem provocar desagrado, manteve-se em silêncio. O que irritou o irmão Adam:
- Então? Não estais satisfeito? - perguntou ele sem a menor suavidade.
- Eu... Oh sim, sire comendador, mas... eu... eu não sei...
- O quê? Quem são os Coucy?
- Hã... sim!
Aquilo foi dito com tanta ingenuidade que o irmão Adam autorizou a si próprio um sorriso:
- Deveis ser o único em França a ignorá-lo. Até na Terra Santa, na qual eles derramaram o seu sangue, sabem quem eles são, quer dizer, grandes e poderosos barões, ricos, com muitas terras e que levam vida de príncipes. Pela minha parte, conheço-os desde sempre, a minha terra natal de Dury era próxima do seu grande feudo e eles sempre foram grandes senhores, fazendo a vida negra ao Rei...
- Rebeldes? - gemeu Renaud quase em voz baixa.
- Por vezes, mais pareceu. O barão Enguerrand, morto há coisa de dois anos, era desses. Mandou construir, no esporão de Coucy, o maior, o mais alto, o mais poderoso castelo que é possível imaginar... unicamente para aborrecer Filipe Augusto, que acabava de construir a sua grande torre do Louvre. Ficai descansado, entrou tudo na ordem e o barão Raul, que lhe sucedeu, é um cavaleiro tão corajoso como o seu pai, mas o seu humor é infinitamente mais afável. Estais satisfeito?
- Mais do que satisfeito e agradeço-vos de todo o meu coração. Farei de maneira que, com a ajuda de Deus e de Nossa Senhora, não vos venhais a arrepender de me terdes salvo e ajudado... tão amavelmente.
- Bem dito - disse o irmão Adam, assentando-lhe uma palmada no ombro. - Mais perguntas?
- Infelizmente, várias, depois de ter lido isso - disse Renaud, apontando para o manuscrito pousado em cima de uma arca. Mas tenho medo de abusar...
- Na minha idade não se dorme muito. Além disso, e por causa dele, é possível que não nos voltemos a ver. Que quereis saber?
- Apenas duas coisas... e tenho vergonha da minha ousadia.
- Não é um defeito quando utilizada judiciosamente.
- Cá vai: quando encontrastes sire Thibaut perto de Belin, vós íeis procurar... um tesouro em Jerusalém. Encontraste-lo?
- Encontrei.
- No entanto, não fostes directamente para o Templo, já que aceitastes servir o Rei Balduíno?
- De facto. O Templo não estava sob uma boa influência, nessa época, e eu interessava-me por tudo o que o rodeava. Além disso, confesso, quis conhecer aquele jovem leproso dotado de uma força de carácter e de um esplendor fantásticos. E também encontrei, junto dele, o que procurava. É tudo?
- Não, com a vossa permissão. Fostes enviado pelo bispo de Lataquia, uma cidade, se bem compreendi, próxima do vosso feudo de nascimento. Como é que apareceis aqui, entre a Borgonha e a França, à cabeça de uma comendadoria tão afastada das vossas terras?
- Um templário vai para onde o mandam e eu creio ser mais útil à Ordem instalada aqui, entre a Borgonha e a França, como muito bem dizeis, assim como nas que se encontram no domínio real e no condado de Champagne. Uma encruzilhada de caminhos é sempre mais interessante do que uma casa numa cidade, onde as pessoas se ocupam, sobretudo, com o comércio e as finanças. Pelo menos, é o que eu penso. Mas, dizei-me uma coisa: sabeis muito acerca da minha vida. Foi o irmão Thibaut que vos instruiu?
- Não, foi o manuscrito. Fala-se muito de vós, nele...
- E de outros, presumo. Vou lê-lo com muito interesse antes de o meter nos nossos arquivos, mas tomando o cuidado de mencionar que vos pertence e que deverá ser-vos entregue se, um dia, o reclamardes.
- Fico-vos muito reconhecido - disse Renaud com um grande sorriso. - No entanto, devo prevenir-vos que... que faltam uma ou duas páginas...
Não foi preciso dizer mais nada. A despeito dos anos acumulados, o espírito do irmão Adam não tinha perdido nada da sua vivacidade. O templário olhou com uma ligeira irritação onde se misturava algum divertimento e até algum respeito, para aquele grande rapaz magro mas belo como algumas das estátuas que lhe fora permitido admirar por ocasião das suas viagens à Grécia, cuja pele levemente trigueira e olhos negros contrastavam tão bem com os cabelos louros. Para além disso, era inteligente, o malandro, sob os seus apartes um pouco ingénuos e Thibaut tivera todas as razões para se sentir orgulhoso...
- Aquelas, imagino, que falam da Verdadeira Cruz?
- Essas mesmas. Perdoai-me!
- De nada, de nada! É uma questão de lealdade. E agora ide dormir! Amanhã dar-vos-ei os meios necessários para chegardes a Paris sem cair nas emboscadas que o bailio vai, certamente, armar no vosso caminho.
- Ele ousaria, apesar do que lhe dissestes?
- Aquele género de homem ousa sempre desde que o seu interesse esteja em jogo. Devíeis sabê-lo, porque não hesitou em ir até ao crime e enviar-vos, nobre e inocente, para a forca.
- Por essa última circunstância quase que lhe agradeço: teria tido muito mais dificuldade em escapar inteiro ao cepo e ao machado.
- É uma maneira de ver as coisas. De qualquer maneira, estais vivo e isso é que interessa...
A transformação, que iria conduzir Renaud do seu estado de fugitivo ao de servidor de um grande barão, operou-se durante a noite.
Tendo-se esquecido do hábito de monge por ocasião das Matinas, não o encontrou quando o sino das Primas chamou a comendadoria para a primeira missa. No seu lugar estava uma camisa de cânhamo, umas bragas de tecido grosseiro, uma cota curta de couro almofadado que não era nova mas que estava em bom estado e, sobretudo, umas botas de bom couro, espessas, nas quais meteu os pés com um suspiro de alívio. Fora a nudez dos seus pés nas sandálias que lhe parecera mais penoso. Havia, também, um gorro castanho de lã e uma peça de tiritana bem dobrada que, em redor dos ombros, lhe servia de manto, o manto quase sagrado que apenas os cavaleiros investidos tinham o direito de usar.
O conjunto encantou-o. Era verdade que antes da sua detenção usara trajes mais bonitos, de melhor qualidade e até de seda, porque a dama Alais se preocupava muito com o seu “filho”, mas, depois, a vida fora tão dura que não se lembrava de ter sentido prazer tão grande como o de enfiar aquela camisa de cânhamo e a cota de couro coçada, ele, que antes usara camisas e bragas de linho, e para quem a sua mãe bordara fios de ouro, por ocasião do seu último aniversário, na túnica de seda vermelha que estaria, doravante, seguramente nos cofres de Jérôme Camard...
Terminados os ofícios, o jovem quis ir agradecer ao irmão Adam, mas era hora de romper o jejum e teve de ir com os outros ao refeitório, onde esperaram o comendador e o capelão de pé, em silêncio, diante das escudelas vazias.
Quando ele apareceu, Renaud viu que o irmão Adam voltara a vestir o lorigão de malha de aço por baixo da longa cota branca com a cruz vermelha e que o carnal, destinado a aprisionar-lhe a cabeça sob o elmo cilíndrico, lhe repousava nos ombros. Quatro outros irmãos vestiam, também, os fatos de combate. À saída da refeição, o irmão Adam anunciou que ia a Paris para regularizar alguns assuntos, mas que não se demoraria.
Confuso por o grande ancião se dar a tanto trabalho por sua causa, Renaud quis agradecer-lhe, assim como à sua escolta, mas este cortou-lhe a palavra:
- Não é por vós que vou a Paris - respondeu-lhe o comendador em tom rude. - Acontece que tenho de falar com o irmão tesoureiro da Ordem e como vos prometi uma escolta, aproveito, mais nada!
Uma outra alegria esperava Renaud naquela manhã, quando viu o vigoroso cavalo que lhe permitiram montar. Cavaleiro de alma e coração, apaixonado por cavalos, acreditava há tanto tempo que nunca mais sentiria entre as pernas aquela massa de músculos sensíveis, pesados e nervosos, que, ao meter de novo os pés nos estribos, quase chorou. Para evitar isso, tanto quanto para o experimentar, o jovem fez a montada executar algumas figuras. - - Não o fatigueis! - resmungou o irmão Adam. - Não ides para um torneio e temos um longo caminho pela frente.
Mas os seus olhos riam por ver perpetuar-se, naquele rapaz, o talento equestre e o amor pelos cavalos de Thibaut e do seu Rei leproso.
A despeito da idade, o jovem comportava-se em cima do corcel de maneira a fazer inveja a muitos cavaleiros mais jovens.
Mesmo se, apesar de tudo, a ajuda de um banco lhe fosse útil para subir para a sela...
Saíram da comendadoria em boa ordem: o irmão Adam à frente, depois Renaud e, por fim, os quatro templários, dois a dois. Desceram o vale do Yonne para se dirigirem a Sens de onde, por Montereau e Melun, atingiriam Paris.
A manhã estava límpida e bela, se bem que um pouco fria. Um pouco de geada mantinha as ervas rígidas, mas uma cotovia saltou do ramo de uma árvore, subindo na direcção do Sol pálido e Renaud seguiu-a com os olhos, pensando que aquela alvorada de uma vida nova lhe oferecia um bom presságio. Porém, compreendeu rapidamente que, ao dar-lhe uma escolta, o irmão Adam se mostrara um homem sensato. Pouco depois de Saint-Aubin, após dobrarem um bosque que ia até à estrada, apareceu um grupo de cavaleiros. Eram dez, com má cara, e obstruíam o caminho com as suas sombras ameaçadoras. Os cavaleiros ergueram os escudos e colocaram as lanças em riste. Ao ver aquilo, Renaud puxou do chuço (1) atado à sua sela. Apenas o irmão Adam fez avançar o seu cavalo ao encontro dos malandrins sem tocar nas suas armas.
- Que quereis? - perguntou ele com rudeza. - Se é as nossas bolsas, perdeis o vosso tempo! É coisa que não temos...
- Queremos o rapaz que se esconde por trás de ti! - respondeu aquele que parecia o chefe.
- Eu não me escondo! - protestou Renaud, colocando-se ao lado do comendador com o chuço preparado. - E se me queres, terás de me vir buscar!
- Paz! - intimou o velho cavaleiro. - Pensava ter feito entender ao vosso senhor o que penso deste assunto e se não estou surpreendido com esta emboscada, da qual não duvidava, espanta-me que queirais apoderar-vos de Renaud de Courtenay quando ele vai escoltado por nós!
- Surpreendido porquê? - escarneceu o outro. - Vós sois cinco, mais o miúdo, e nós somos onze...
- Um miúdo? - berrou Renaud. - Vais ver como me sei bater, bandido!
(1) Arma dos escudeiros constituída por um longo pau armado com um aguilhão.
- Boa notícia! - apreciou o irmão Adam. - Quanto a nós, sabei que um contra dois é, mais ou menos, o género de combate que um templário aceita. Um contra três seria melhor. Como consequência...
Tirando a sua espada com uma rapidez incrível, o templário carregou sobre o inimigo, imediatamente enquadrado pelas quatro lanças dos seus irmãos. Foi tudo tão rápido que Renaud se viu na retaguarda antes de perceber o que estava a acontecer. Naturalmente, o jovem quis juntar-se aos seus companheiros, mas o combate já tinha acabado: as lanças tinham trespassado alguns dos homens de Jérôme Camard e as espadas, desembainhadas com a rapidez de um raio, continuaram a obra, enquanto o irmão Adam lutava com o chefe com tanto vigor que este caiu do cavalo. Ao ver aquilo, os outros fugiram, deixando apenas a Renaud o magro prazer de ferir um deles num braço.
- Eis uma coisa bem feita! - comentou o comendador com um sorriso que lhe iluminou o rosto sob a barba branca. - Há muito tempo que não entrava em combate! Soube que nem ginjas!
Um momento mais tarde, o esbirro de Camard - que se chamava muito simplesmente Edme Goujon! - devidamente atado sobre o seu cavalo, prosseguia, no meio dos seus vencedores, o caminho que ele sabia ir levá-lo perante um juiz, antes de um encontro definitivo com o carrasco.
Entretanto, Renaud, maravilhado com o que acabava de ver, não deixou de cumprimentar o irmão Adam pelo seu extraordinário vigor, numa idade em que a maioria dos homens estava ao canto da lareira com um cobertor pelos joelhos para melhor aquecer as articulações enferrujadas.
- Se me fosse permitido viver tanto tempo como vós, sire comendador, gostaria de saber qual é a vossa receita miraculosa?
- Exercício, meu rapaz, exercício todos os dias e uma alimentação adequada, quer dizer, abundante sem ser em excesso. E depois, não ligar muito às dores quando elas põem o nariz de fora! Aliás, eu sou uma excepção. Assim como João de Brienne, que foi Rei de Jerusalém ao casar com a filha da Rainha Isabel e de Conrado de Montferrat - e que vós deveis ter encontrado no manuscrito de Thibaut! - que se tornou, depois, no Imperador de Constantinopla e que entrou em combate pela última vez, na base das muralhas da sua cidade, aos noventa anos. Mas há outros! Nas nossas fileiras de templários, por exemplo: se não ficamos no campo de batalha, morremos velhos...
Encantado, evidentemente, por ter podido demonstrar àquele fedelho o que valiam os seus irmãos mais velhos, o irmão Adam passou bons momentos a evocar velhas recordações para grande prazer de Renaud. O caminho tornou-se mais agradável...
Estava-se a 16 de Março de 1244 e foi, na verdade, um belo dia de Primavera, passado a percorrer os belos campos que, sob a mão firme do soberano, eram poupados à guerra há já muito tempo.
Porém, àquela hora em que Renaud escutava o irmão Adam, desenrolava-se um drama imenso lá longe, no cenário grandioso dos Pirinéus. Em Montségur, junto do castelo impregnável, último refúgio dos Cátaros, os heréticos adeptos de uma estranha religião, para a qual a terra era maldita, o casamento repugnante e o suicídio vivamente aconselhado. Mas a impregnável cidadela, entretanto, caíra e em nome de um rei que de nada sabia, tinham erguido uma enorme fogueira rodeada de estacas, para a qual atiraram mais de duzentos homens e mulheres. Não somente tinham recusado abjurar, como reclamavam aquele martírio como a melhor maneira de ganhar uma bem-aventurança eterna.
Durante horas, uma espessa fumarada negra e nauseabunda percorreu o ar frio e puro, empestando os arredores e atingindo-os com um horror que os séculos ainda não apagaram.
O braseiro, esse, permaneceu ao rubro ainda durante muito tempo sob o olhar dos homens de armas encarregados de o guardar e cujos rostos não reflectiam nada porque mais valia que assim fosse. Já se sabia que a Inquisição, recentemente instalada em Languedoc, possuía numerosos e invisíveis olhares...
Do castelo vencido, as pessoas também observavam. Todos aqueles e aquelas que não pertenciam àquela religião infiltrada nas suas famílias e que se sentiam impotentes para salvar os seus familiares das chamas. O próprio senhor de Montségur, Raimundo de Pereille, acabava de ver a sua mulher Corba e a sua filha mais nova, Esclarmonde, uma rapariga de dezasseis anos, caminhando juntas para aquela morte horrível e o barão ainda não tinha percebido o que acabava de lhe acontecer, de tal modo uma grande dor se pode transformar, por vezes, num choque petrificante.
Mais alguém observava e, para esse alguém, a dor não tinha nada de esmagador. Pelo contrário, estava activa, alimentando-se de instante a instante do seu furor e do seu sofrimento intenso, um ódio que o tempo não poderia apagar. Um ódio que Renaud, um dia, conheceria...
O DONZEL
Para Renaud, que nunca conhecera senão as dimensões reduzidas e os faustos modestos de Châteaurenard, a descoberta de Paris foi uma coisa maravilhosa, apesar de ter admirado, em caminho, a cidade de Sens com as suas cinco abadias e a sua bela catedral nova onde, dez anos antes, se desenrolara o casamento do Rei Luís com Margarida de Provença. Paris era outra coisa!
Primeiro, o campo era magnífico e o tempo doce, depois de terem ultrapassado Sens, deixava prever que a Primavera seria deslumbrante. Os bosques, as florestas e as árvores frutíferas dos pomares escondiam as suas ossadas cinzentas sob um ligeiro véu verde e tenro. A erva das pastagens crescia nos vales; os outeiros mostravam as suas vinhas bem tratadas e à medida que se aproximavam da capital os burgos, as aldeias e as abadias eram cada vez mais numerosas e mais prósperas. A cada passo dos cavalos - levaram quase quatro dias a fazer a viagem, pernoitando nas “granjas” de outras comendadorias, como a de Dormelles - era cada vez maior a convicção de que o reino de França vivia em paz sob o governo de um rei sábio. E quando a cidade ficou à vista, Renaud teve uma exclamação de admiração perante a falésia de belas muralhas brancas com mais de nove metros que Filipe Augusto mandara erguer em volta de Paris, bem guardadas por torres redondas e onde havia vinte portas, como disse o irmão Adam ao seu jovem companheiro.
Encerrado naquele majestoso recinto, um conjunto incrível de campanários, de torres e de torreões dominando os telhados vermelhos pontiagudos e as rodas dentadas das azenhas, cortadas pela fita ondulada do Sena. Ao fundo, sobre uma colina, alguns moinhos, cujas velas pareciam agitar-se ao ritmo do barulho incessante fornecido pelos numerosos estaleiros de construção, pelos gritos, pelos chamamentos, pelo rolar das carroças, pelo passo dos cavalos, pelo som dos sinos e por tudo o que fazia parte da vida de uma grande cidade em plena actividade.
Passada a porta de São Tiago com a sua barbacã, a sua ponte levadiça e o seu poderoso pequeno castelo guardado por torres redondas, uma rua bastante larga descia na direcção do rio, circundando primeiro o grande convento dos Jacobinos mas coberta, coisa extraordinária, por pedras quadradas misturadas com grés, substituindo com vantagem os habituais sulcos, lamacentos ou secos conforme o tempo.
- Como é belo! - exclamou Renaud. - A cidade está toda assim, calcetada?
- Oh não! - suspirou o irmão Adam. - O Rei Filipe Augusto, que foi o avô do nosso sire Luís, nono do nome, bem queria que tivesse sido assim, mas não teve tempo. Apenas os dois grandes caminhos que se cruzam na outra margem do Sena receberam este pavimento. Ligam esta porta de São Tiago, na parte sul, à porta de São Dinis que fica a norte e, de oeste a leste, a porta de Santo Honorato à porta de Santo António. Já é um grande progresso, mas a vida dos reis, tal como as dos outros homens, é limitada... O filho de Filipe, Luís VIII, o Leão, não pensou em continuar a obra do pai. Combateu muito e o seu reinado só durou três anos. O nosso sire, esse, continuou o trabalho do avô e ides ter mais razões para vos admirardes. Daqui a pouco vamos atravessar o bairro das escolas, onde há alunos vindos de muito longe para aprender. E além, depois daquela ponte chamada Ponte Pequena, está a ilha da Cite com o palácio do Rei, os seus alojamentos, o seu pomar e as suas torres e, na outra ponta, aquela magnífica igreja com dois campanários, cujas pedras brancas agarram os raios do Sol, é a catedral de Notre Dame. Só foi acabada há seis anos e é uma grande maravilha. Daqui não podeis ver as suas belas cores e o ouro que enriquece os três portais e a galeria superior!
Da Ponte Pequena, que atravessaram mais tarde, só se podiam ver as torres gémeas por cima dos edifícios do Hôtel-Dieu (1). Renaud olhava para tudo com os olhos encarquilhados, sobretudo quando o caminho passou diante do palácio, que parecia o centro de uma grande actividade: aparentemente, construíam qualquer coisa no interior do recinto fechado. Uma vez mais, o irmão Adam informou-o:
- O Rei mandou construir uma capela, que ele quer magnífica, para servir de relicário à Santa Coroa de espinhos e aos outros objectos sagrados da Paixão de Nosso Senhor, que ele comprou em Veneza por conta do Imperador de Constantinopla.
- Comprou? - perguntou Renaud, chocado. - Coisas tão santas podem ser objecto de negócio?
- Oh, pior ainda! O pobre Balduíno II, do qual o irmão Thibaut já vos falou, viu-se de tal modo sem dinheiro que as penhorou a Nicolas Querini, um usurário judeu de Veneza. O Rei Luís resgatou-as e mandou-as vir para França. Há cinco anos foi recebê-las para lá de Sens.
- Mas ele não tem a Verdadeira Cruz! - protestou Renaud.
- Eu falei nela? Naquelas relíquias está, parece, um pequeno bocado da cruz, mas nada comparado com o que... vós tendes em segredo...
Como o terreno se estava a tornar escorregadio, Renaud preferiu mudar de assunto:
- Segundo sire Thibaut, o Imperador está no reino, neste momento?
- Não. Estava, mas já deve ter partido. Talvez esteja em Roma, com Sua Santidade o Papa.
- Porquê todas essas viagens?
- Ele está sempre a precisar de grandes quantidades de dinheiro. Creio que é o soberano mais perdulário do mundo.
(1) Hospital principal.
- O Imperador de Constantinopla? Eu pensava que ele era muito rico!
- Já não estamos nos tempos faustosos dos Comnena. Desde que o doge de Veneza desviou a quarta cruzada em seu proveito, para se apoderar do que era, então, Bizâncio, as coisas mudaram muito. E o vosso Imperador e primo Courtenay ficou reduzido a viver de expedientes. Até queria pôr à venda as suas terras de Courtenay. O Rei proibiu-lho e ele teve de as constituir como dote a favor da sua jovem esposa Maria, a filha de João de Brienne. Mas conseguiu que lhe emprestassem dinheiro por conta do seu marquesado de Namur, que penhorou ao nosso sire. O infeliz está em guerra perpétua com as duas grandes facções gregas espoliadas pelo Doge. Oh, não tarda aparece aí de novo a pedir asilo, bons conselhos... e dinheiro.
- Na verdade - exclamou Renaud - é um prazer conversar convosco! Parece que sabeis tudo sobre todas as coisas e todas as gentes!
- Vivi muito - respondeu o irmão Adam rindo - vi muito e aprendi muito. Além disso, o Templo tem necessidade de saber o mais possível acerca do que se passa entre o reino de Acra-Jerusalém, onde se encontra a sua casa-mãe, e os outros países do Ocidente. Ah! Que se passa?
A entrada da Grande Ponte, que ligava a ilha da Cite à margem direita do Sena, acabava de estalar uma zaragata entre dois carregadores que pareciam ter razões sólidas para se quererem mal mutuamente a julgar pelo vigor dos murros que administravam um ao outro para grande alegria dos mirones, sempre gulosos por aquele género de espectáculo. Formou-se um círculo em redor dos combatentes. Aquilo era bastante frequente e os guardas do palácio não se apressaram a intervir, sabendo bem que a aproximação dos templários, tão impressionantes em cima dos seus cavalos, seria suficiente para fazer reinar a ordem. De facto, o círculo abriu-se para eles e também para os antagonistas que, com a maior graça do mundo, aceitaram deslocar ligeiramente o teatro do seu diferendo e que, depois de terem saudado polidamente os cavaleiros, prosseguiram as suas explicações no cais das Ervas. Os templários puderam avançar pela sólida ponte de madeira, suportada por enormes pranchões e ladeada por azenhas. A cena, e sobretudo a sua conclusão, tinham divertido Renaud.
- Aquilo também foi espantoso!
- Não fiquei menos surpreendido do que vós. Não sei se é influência do Rei Luís, a quem já chamam santo, mas desde que ele reina, os Parisienses fazem questão de ser as pessoas mais polidas deste mundo.
- No entanto, aqueles dois não estavam a trocar cortesias! - É preciso que as querelas se resolvam... e eu não disse que os Parisienses tinham todos uma auréola...
No extremo da Ponte Grande elevava-se uma pequena fortaleza, uma construção sombria e rebarbativa já antiga, o Pequeno Castelo, ao mesmo tempo a casa do preboste e a prisão, mas eram as únicas paredes negras daquela cidade estranha onde os edifícios pareciam novos, quando não estavam em construção. Desse modo, guardando a margem esquerda do Sena, um grande torreão, defendido por uma tripla muralha pontuada por torres respeitáveis, erguia uma silhueta extremamente ameaçadora, de tal modo que as seteiras pareciam querer assaltar o céu:
- O Louvre! - anunciou o comendador. - Filipe Augusto - ainda ele! - quis esta fortaleza para proteger Paris dos apetites ingleses, cujas terras normandas não estão longe. Como vedes, os nossos Reis não são pequenos sires.
Passada a ponte e as azenhas que faziam um barulho infernal, passaram para a parte mais recente da cidade. Ali construíam-se casas e residências senhoriais a toda a velocidade, mas também oficinas e lojas, sem contar com o grande mercado a que chamavam Halles. Depois de terem virado à direita, os seis cavaleiros passaram diante do Parlatório dos burgueses, sede da actividade portuária dos mercadores marítimos cujo porto era na Greve, também sede das execuções capitais. Por trás era o pequeno monte de São Gervásio, onde se encontrava o hospital de Santo Anastácio, onde os frades Agostinhos acolhiam os doentes necessitados. O Templo também era ali: uma casa fortificada junto à margem (1), para a qual Renaud olhou com surpresa:
- É esta a casa do Templo em Paris? É mais pequena do que a vossa comendadoria, messire...
- É por isso que em breve teremos outra. Há já quatro anos que possuímos, perto daqui, um vasto terreno pantanoso, um outro cheio de saibro e mais alguns que limpámos e cultivamos para fazer um grande domínio bem provido de muralhas, de torres e também de um grande torreão onde o Tesouro ficará mais bem guardado dos ardores sempre possíveis entre os Parisienses. Uma sede apropriada, finalmente, para a casa do Templo em França. Por agora, basta-nos isto!
A curiosidade perpetuamente acordada de Renaud quase o levou a perguntar se, por Tesouro, o irmão Adam entendia as finanças da Ordem, ou antes o que ele trouxera da Terra Santa, mas o jovem sentiu a tempo que não obteria resposta. Além disso, o irmão Adam chamava-lhe a atenção para uma residência de tal modo nova que ainda nem sequer estava acabada e que se erguia perto do hospital de Santo Anastácio:
- Eis a residência parisiense do barão de Coucy. Amanhã entrareis lá se tudo correr bem.
- Por outras palavras: se me receberem! E... se tudo correr mal?
- Espantar-me-ia muito!
O jovem aceitou o augúrio. A grande cidade do Rei seduzia-o muito e sentia uma grande vontade de viver nela. Menos, sem dúvida, por causa da sua extraordinária impressão de riqueza e mais por causa da actividade, da vitalidade que dela emanava. Viver no meio daquela exuberância devia ser... exaltante! Sim, era essa a palavra: absolutamente exaltante! Desse modo, não dormiu muito naquela noite na cela da casa templária onde, um século antes, Thomas Beckett, fugindo aos furores do Rei inglês Henrique II, encontrara refúgio. Se o barão de Coucy recusasse tomá-lo ao seu serviço, não via o que poderia fazer se excluísse
(1) Foi em 1255, onze anos depois, que os Templários tomaram posse do famoso recinto fortificado.
a entrada para o Templo - que o atraía cada vez menos desde que vira Paris. Se aquele curioso Imperador ainda se encontrasse na cidade, como pensava o irmão Thibaut, seria possível colocar-se ao seu serviço; mas se ele era realmente tão pobre como diziam, não gostaria, àpriori, de empregar um primo demasiado longínquo no tempo e no espaço. Além disso, integrar uma corte famélica não tinha nada de exaltante.
Aqueles pensamentos ocupavam todos, ao mesmo tempo, o espírito de Renaud. O jovem acabou por se tranquilizar um pouco ao lembrar-se que continuava junto do irmão Adam e que este não era homem para o abandonar perante um destino incerto. Tanto mais que parecia possuir, na Ordem, uma grande reputação. Esconderia ele uma preeminência qualquer? O acolhimento que recebera à chegada não devia ser muito diferente do reservado ao Grão-Mestre quando ele vinha a França e, por causa de certos pormenores, Renaud percebeu que não fora devida unicamente à sua idade...
O coração batia-lhe no peito com força quando no dia seguinte, depois da missa, penetrou atrás do irmão Adam no pequeno pomar protegido por uma parede imponente que se abria para a residência do barão de Coucy, mas a riqueza que se estendia diante dos seus olhos, depois de transposta a porta, tranquilizou-o. A casa, construída com belas pedras brancas, com grandes florões nas janelas e cortinas de pergaminho fino penduradas das travessas, podia pertencer a um príncipe, de tal modo transbordava de tapetes murais, móveis esculpidos, toucadores com magníficos objectos de prata, taças de cristal e de ouro. Almofadas suaves de seda ou de veludo aqueciam as cadeiras em redor de uma nobre chaminé armoriada, onde ardiam troncos odoríferos de pinho misturados com faia. O chão, juncado de ervas secas, era de um belo ladrilhado vermelho e negro e em frente de uma alta cadeira de ébano, encimada pelo pálio senhorial, uma mesa, coberta com um tecido de veludo púrpura, fora ali colocada para comodidade do senhor que estava a escrever qualquer coisa. O que era surpreendente, já que os grandes senhores não tinham muitas afinidades com a tinta e a pena, confiando geralmente a sua escrita a um clérigo. Fosse como fosse, aquele pousou a pena mal os visitantes entraram e aproximou-se de mãos estendidas para lhes desejar as boas-vindas:
- Irmão Adam! Que grande alegria voltar a ver-vos. Há quanto tempo!
- Não se viaja muito na minha idade, barão Raul! E o tempo passa depressa! - respondeu o comendador, sentando-se na cadeira que Coucy lhe indicou enquanto Renaud se colocava modestamente por trás do espaldar. O jovem aproveitou para observar aquele que iria, sem dúvida, servir.
Era um homem de estatura mediana, magro mas bem proporcionado, com um belo rosto sulcado por rugas expressivas que traíam uma natureza nervosa e apaixonada. Devia ter uns trinta anos. Quando o irmão Adam lhe apresentou o seu jovem companheiro, o seu olhar castanho deteve-se neste com uma atenção que se reforçou quando lhe foram expostas as “origens” do rapaz.
- Um Courtenay da Terra Santa que se tornou templário... e uma grande dama, se bem compreendi?
- De sangue real, sire Raul, mas não vos digo mais nada.
- É muito natural! A esse grau de nobreza, a bastardia já não é reprovada. Só conta a qualidade do sangue. E eu sentir-me-ei muito feliz por o tomar ao serviço da minha casa. Tanto mais que nos encontramos num cruel embaraço. O donzel ligado ao serviço da dama Filipa, a minha mulher, acaba de morrer... vergonhosamente e ela sentiu um desgosto tão grande que recusa os que eu lhe proponho. Pode ser que lhe agradeis.
- Donzel? - ousou dizer Renaud, que não conhecia aquele título e do qual não gostava muito devido à sua conotação um tanto feminina. O que fez sorrir o barão:
- Um donzel - explicou ele, benevolentemente - é um jovem nobre, órfão ou desprovido de feudo que ainda não é cavaleiro, mas que o será. Para aquele que tem terras e vassalos, o termo é bacharel. Estais... informado?
Vermelho até à raiz dos cabelos, Renaud contentou-se em inclinar a cabeça, mas o irmão Adam, se bem que não ignorasse o que era um donzel, quis saber mais:
- Que aconteceu àquele que provocou tanto desgosto à dama Filipa? Não dissestes: vergonhosamente?
- De facto. O pobre Omer de Ferienne foi vítima de um assassínio. Mataram-no com uma facada nas costas há cerca de dois meses quando ele regressava do palácio, onde a minha mulher se tinha esquecido do belo livro de salmos que tinha levado para mostrar à Rainha, mas do qual gostava muito...
- Foi para o roubar que o mataram, sem dúvida?
- Sem dúvida. O livro não foi encontrado perto do cadáver. Daí o duplo desgosto da minha mulher... e esta longa tristeza. Que deve cessar imediatamente se ela quer continuar aqui. Os servidores não são suficientes. É necessário um protector e nesse papel Ferienne era perfeito.
- Não compreendo - continuou o irmão Adam. - Ela vai continuar em Paris sem vós?
- O seu serviço junto da Rainha a isso a obriga. Pelo menos, durante alguns períodos. E eu tenho de regressar a Coucy, onde me esperam assuntos importantes que o meu primo Gilles, encarregado do castelo onde reside permanentemente, não pode resolver.
- E o vosso irmão?
Um véu pareceu cair sobre o rosto do barão, podendo concluir-se que não devia gostar muito do dito irmão. De facto, a sua voz tornou-se seca para responder:
- Enguerrand? Não quero vê-lo eternizar-se pelos arredores durante a minha ausência. Tenho a impressão de que, a despeito dos seus bens e do seu rico casamento com Margarida de Gueldre, não descansará enquanto não me ficar com Coucy. Por agora, é o meu herdeiro. Mas deixemos isso! Quereis que tentemos apresentar este jovem à minha mulher?
- Tentemos! Mas, que acontecerá se ele não lhe agradar?
- Encarregar-me-ei dele, ficai descansado! Dissestes-me que não tinha mais nada a aprender no que diz respeito a armas e a cavalos e numa casa como a minha há sempre lugar para um guerreiro. Com o tempo, tornar-se-á num dos meus cavaleiros...
Um servidor foi imediatamente encarregado de ir rogar à dama que se juntasse ao seu senhor e poucos momentos depois ela penetrava na sala onde os três homens a esperavam. Renaud, com uma curiosidade que não estava isenta de inquietação. Com que género de mulher teria de se haver se fosse admitido?
A dama era uma bela criatura de traços finos e aristocráticos, mas certamente mais idosa do que o marido. A flor da juventude já não florescia nela e apesar da sua silhueta delgada e até elegante, parecia arrastar consigo o peso de um profundo cansaço. Talvez ainda chorasse aquele Omer de Ferienne, porque os seus olhos azuis não tinham qualquer brilho, reflectindo apenas o aborrecimento.
Raul de Coucy foi ao seu encontro, beijou-a na face e pegou-lhe na mão para a levar até aos seus visitantes. A dama encontrou um pequeno sorriso para o irmão Adam, que ela devia conhecer e que saudou com grande respeito sem dar muita atenção ao seu jovem companheiro. Mas franziu as sobrancelhas quando o seu marido a fez avançar.
- Este é Renaud de Courtenay, que o irmão Adam me traz para que eu faça dele um cavaleiro. Não tem parentes nem bens e será, portanto, donzel em nossa casa. Se vos agradar, talvez possa entrar para o vosso serviço...
A dama teve de imediato um gesto de recusa. Sem parecer ter reparado, o marido continuou:
- Ele sabe fazer uso das armas, já que foi educado como nobre. Tem dezoito anos e acaba de sofrer cruelmente com a morte dos pais adoptivos. Resta-me dizer que nasceu na Terra Santa...
Aquela palavra teve um efeito mágico. Os olhos de Filipa animaram-se e pousaram no jovem que não honrara, sequer, com um olhar...
- A Terra Santa! - suspirou ela. - O infeliz Omer falava tão bem dela!
- Sem nunca a ter visto - cortou o barão. - Repetia o que o pai lhe tinha contado...
- Eu também nunca a vi - protestou Renaud, preocupado com a verdade inspirada na falta de entusiasmo daquela mulher tão melancólica. - Mas posso falar dela por ouvir dizer: sire Olin des Courtils, o meu querido pai adoptivo, que Deus tenha, era inesgotável nesse assunto - apressou-se ele a dizer ao ver que a sua intervenção contrariava Coucy.
- Tendes uma bela voz - observou a dama Filipa. - Sabeis cantar? O pobre Omer cantava como um anjo... e conhecia poemas tão belos!
A dama enxugou uma lágrima com um canto do véu violeta que mantinha preso aos cabelos apertados numa rede por meio de um círculo de ouro trabalhado. O que pareceu irritar Coucy:
- Eu proponho-vos um donzel, não um menestrel, ou um trovador! - grunhiu o barão. - Já me chegam os que passam a vida a bater-nos à porta em Coucy. Por agora, quero saber se este jovem vos agrada, senão levo-o para o castelo... e vós também, porque me recuso a deixar-vos aqui apenas com os servidores e sem nenhum defensor digno desse nome. A Rainha passa sem vós e pronto!
- Por que não ficais também? O vosso primo Gilles trata do castelo como deve ser...
- Mas não do feudo, onde o meu mordomo-mor, Hermelin, me pede que vá.
- E talvez também a dama de Blémont? - lançou ela num tom rancoroso, que suscitou um raio de cólera nos olhos de Raul.
- Esqueceis que não estamos sós e que, apesar de o irmão j Adam ter todas as indulgências de um homem de Deus, os nossos desentendimentos não lhe interessam. Dignai-vos responder, porque a vossa atitude torna-se ofensiva. Aceitais Renaud de Courtenay como donzel?
- O nome é belo e até sedutor... e ele não é mau de todo... Podemos tentar, porque tenho de permanecer junto da Rainha até à dedicatória da abadia de Maubuisson, que ela leva tanto a peito.
Raul de Coucy não reteve um suspiro de alívio, que se traduziu numa cintilação divertida nos olhos do comendador. Renaud ajoelhou-se diante do casal para lhe prestar vassalagem e em seguida, depois de se ter despedido com emoção do seu velho protector, seguiu um servidor encarregado de o conduzir às estufas da residência para se desembaraçar de uma sujidade velha de várias semanas que não fora retirada por completo por ocasião das rápidas abluções feitas na Torre esquecida, na comendadoria de Joigny, nas etapas da viagem e na casa do Templo. A ideia de um verdadeiro banho enchia-o de uma alegria infantil. Em Courtils, a sua mãe adoptiva era uma fanática da limpeza e sire Olin ainda mais, tendo vivido no Oriente onde, no reino franco, fora adoptado há muito o costume dos banhos de todas as espécies - frios, quentes, mornos, de vapor, etc. - sem contar com o uso constante de ervas, óleos aromáticos e até de perfumes por parte dos mais ricos.
Assim, o jovem demorou-se um pouco na tina cheia de água quente antes de se ensaboar e esfregar vigorosamente, deixando, depois, que um criado lhe atirasse para cima com alguns baldes de água fria para se enxaguar. Após o que, envolto num lençol, confiou a cabeça a um barbeiro que o desembaraçou da barba nascente e lhe rectificou o corte de cabelo ligeiramente audacioso.
Estava Renaud naquilo quando entrou na sala anterior aos banhos uma jovem, que se deteve na soleira com os braços cruzados no peito e algumas rugas de descontentamento numa fronte que não tinha esse hábito.
- O quê? - exclamou ela. - Ainda não estais pronto? Nem sequer vestido? Em que estais a pensar, para aí refastelado, quando a dama está à vossa espera?
- Só mais uns instantes! - pediu o barbeiro. - Ele tinha o cabelo num estado lastimável...
- Acredito! O que vi há pouco não tinha nada de agradável. Vejamos o resultado!
A jovem desceu os poucos degraus da estufa e plantou-se em frente de Renaud, muito compenetrada na sua personagem enquanto o examinava com um olhar crítico. O jovem não sentiu por ela, de imediato, muita simpatia. No entanto, era uma bela rapariga: loura e de olhos verdes insolentes, tinha um corpo quase na sua plenitude sem ser pesado, cujas formas se ligavam harmoniosamente umas às outras por intermédio da seda verde-escura de um vestido que alargava a partir das ancas marcadas por uma cintura de vespa. Os cabelos caíam-lhe livremente pelas costas abaixo, tapados por um chapéu da mesma cor do vestido e seguro sob o queixo por um lenço leve. O rosto era o de um gato, que uma aberração da natureza teria provido de uma boca vermelha e carnuda como uma cereja.
- Posso saber a quem devo a honra, bela dama? - perguntou Renaud, resignado a deixar-se examinar já que, imóvel, não podia fazer outra coisa.
- Donzela, se fazeis favor! O meu nome é Flore d'Ercri e sou eu que trato da toilette da dama Filipa, que tem total confiança em mim. Ah, dir-se-ia que a cabeça já está. Vejamos o resto!
E antes que Renaud, que se levantava, a pudesse impedir, a jovem tirou-lhe, com um gesto rápido, o lençol de banho e ele viu-se nu diante dela. Nu e furioso.
- Donzela! São esses os modos das damas de Paris?
Ela desatou a rir, um riso doce e um pouco rouco, ao mesmo tempo estranho e sedutor:
- De Paris e de toda a parte! Belo donzel, ficais a saber, já que, aparentemente, o ignorais, que, por ocasião do regresso de um cavaleiro da guerra, são as damas e as donzelas que lhe dão banho, lhe tratam dos ferimentos e o vestem. O mesmo acontece com um viajante ilustre que chegue ao castelo. E, que eu saiba, as pessoas não tomam banho vestidas. Por isso, agora ou depois!... Diria que... cuidar de vós será um prazer. E agora vinde vestir-vos, eu ajudo-vos.
As roupas estavam em cima de um escabelo. Com destreza, mas vagarosamente - o que desmentia a pressa anterior - Flore d'Ercri ajudou-o a vestir-se apesar dos protestos continuados. Renaud sabia muito bem vestir-se sozinho, rapidamente, e não compreendia por que razão era preciso tanta coisa. Foi uma espécie depas de deux perturbador, porque a bela donzela acompanhava cada peça de roupa com um afago, mesmo uma carícia. Assim, deu-lhe umas bragas e uma camisa de linho branca, umas calças de malha cor de violeta e umas botas curtas de bom couro, das quais ele teve de experimentar vários pares antes de encontrar um que lhe servisse. Em seguida, a jovem vestiu-lhe uma túnica de tecido violeta que lhe descia até meio das coxas, com colchetes e, no pescoço, um pequeno bordado de prata. Num outro escabelo esperava-o um manto drapeado da mesma cor.
- As cores da dama Filipa são o violeta e o branco - precisou Flore. - Não tereis dificuldade em vos lembrardes...
Depois, erguendo-se na ponta dos pés, a jovem deu-lhe um beijo prolongado que o fez estremecer, mas ao qual não respondeu. O que a fez rir.
- Aposto que sois virgem, meu belo amigo! - murmurou ela.
- Donzela! - disse ele, escandalizado. - Essa pergunta...
- É natural, quando se tem a vossa idade... e, sobretudo, a vossa inexperiência. Mas isso pode arranjar-se... para satisfação dos dois - acrescentou ela quase num murmúrio. - Em todo o caso, ficai descansado: se fordes tão bravo quanto sois belo, fareis a honra da casa!
E levou-o para o conduzir à sua senhora que, dessa vez, encontrou para ele um sorriso e se declarou satisfeita. Mais ainda ao descobrir que ele sabia ler, escrever e que possuía, até, alguma cultura:
- Talvez venhais a ser tão agradável como o meu pobre Omer... E depois, se quero ficar algum tempo em Paris sem o meu senhor marido, tenho de me resignar a ter um defensor sólido.
Aquele pequeno discurso não encantou Renaud, que teria declarado de boa vontade, não fora a sua boa educação, a sua preferência por uma companhia masculina para aquele difícil começo da sua vida, em vez de se ver debaixo das saias de uma mulher que achava choramingas e pouco graciosa num trabalho em que era meio criado, meio dama-de-companhia.
No entanto, os exames ainda não tinham acabado. O barão Raul mandou-o em seguida à sala de armas para julgar das suas capacidades com a espada ou com o machado. O jovem viu-se diante de um velho ordenança chamado Pernon, seco como uma palha, dono de uma habilidade quase diabólica apoiado em duas pernas que deviam ser de aço.
Pernon ensinara o ofício das armas aos irmãos de Coucy, aos seus primos e aos jovens nobres que eram colocados no castelo para aprender. Era um mestre na matéria e se, diante dele, Renaud passou alguns minutos penosos, no decurso dos quais percebeu que não sabia grande coisa, teve, pelo menos, a satisfação de o ouvir dizer ao barão, que observava:
- Ainda tem muito que aprender e alguns defeitos para corrigir, mas a base é boa. Teve um bom professor.
- Quem vos ensinou a manejar uma arma? - perguntou o barão.
- O meu pai... adoptivo, sire, Olin des Courtils, que esteve na cruzada com monsenhor João de Brienne, Rei de Jerusalém e Imperador de Constantinopla - que Deus tenha!
Pernon deu um pequeno assobio, como só um velho servidor podia fazer:
- Isso diz tudo, de facto. Basta dizer que não há nada melhor do enfrentar os Sarracenos para aprender a arte da guerra. Certamente que ouvistes gabar, sire Raul, os feitos do Rei João, o que pressupõe o valor dos que o seguiam. Teremos de ver - acrescentou ele, virando-se para Renaud - o que valeis a cavalo. Acredito sinceramente que este rapaz não demorará muito a igualar os vossos melhores cavaleiros. É pena ficar aqui. Arrisca-se a amolecer.
- Não terá tempo. A dama Filipa não vai ficar aqui até depois da Primavera e em Coucy poderá aperfeiçoar o treino. Por agora, o importante é que saiba defender-se e dar confiança aos servidores em caso de maus encontros.
- Quanto a isso, posso responder-vos: ele é sólido.
- É o principal! Acabai de vos vestir, Renaud, e ide ter comigo aos meus alojamentos - acrescentou ele para o jovem ocupado a apertar a camisa antes de vestir a túnica. Um momento mais tarde, o jovem estava diante da mesa onde o senhor do castelo escrevia por ocasião da sua chegada. Este voltara a sentar-se, mas não pegara na pena. O barão parecia preocupado. De vez em quando, como se quisesse tranquilizar-se, olhava para o jovem e depois, com os cotovelos nos braços da cadeira e um punho no queixo, entrava numa espécie de sonho que Renaud não se atrevia a interromper.
Por fim, o barão lançou um suspiro e decidiu-se:
- Pergunto a mim mesmo se não cometo uma imprudência ao confiar-vos, um homem tão novo, a segurança da dama minha esposa?
- Não sou eu quem deve responder, sire barão. Posso, apenas, dizer que estou pronto a defender a nobre dama com toda a minha força e com todo o meu sangue, mas, se Vossa Senhoria se sente atormentado a esse ponto, talvez deva adiar a partida... ou levar a dama Filipa?
- Acabastes de ouvir o que eu disse há pouco: tanto é impossível uma coisa, como a outra: eu tenho - e o barão insistiu na palavra - de regressar a Coucy e a minha dama quer ficar aqui. Ela está muito ligada à Rainha, que demonstra por ela um afecto quase maternal desde que ela era uma das suas donzelas...
Renaud ainda era muito novo para saber esconder a sua admiração:
- Quase maternal? Mas, dizem que a Rainha ainda é nova? A sua exclamação ingénua provocou um sorriso em Raul.
- E a minha nobre esposa já não é? O vosso erro reside no facto de não estardes a par do que se passa no palácio. Há duas Rainhas, das quais a mais importante não é Margarida de Provença, mulher do nosso Rei Luís, antes a sua mãe, a muito grande e sábia Branca de Castela, que percebe muito dos negócios do reino, tendo-o provado por ocasião da regência que exerceu durante a menoridade do seu filho e cujos conselhos este não dispensa. Mas regressemos à nossa conversa! A minha hesitação não é sinal de desconfiança, Renaud, mas acontece que creio que a minha dama está em perigo...
- Por causa do assassínio do anterior donzel?
- De facto. E não é tudo: nós tivemos, há dois anos, um filho que parecia belo e bem constituído, mas que, no entanto, não vingou; morreu há três meses de umas convulsões terríveis. As crianças de tenra idade estão sujeitas, frequentemente, a essas convulsões e os médicos declararam que foi puro azar. Mas, depois disso, a dama Filipa mostrou-se incapaz de conceber. Além disso, por vezes, fica sujeita a indisposições, que acontecem sempre que eu me aproximo dela.
- Isso é muito triste... Mas por que razão há-de haver uma relação com a morte do seu servidor?
- No pé em que as coisas estão, é melhor eu dizer tudo, porque em breve o sabereis por outras bocas. Chegou-me aos ouvidos um boato segundo o qual a minha mulher, desesperada por ter um filho, se teria... entregado a ele. O desgosto que ela sofreu com a sua morte reforça esse boato. Se, num futuro próximo, acontecer qualquer coisa à baronesa, serei eu o acusado de a ter matado...
- Mas... porquê?
- Para poder casar com outra mulher... mais jovem e mais agradável. O que, posso dizer-vos, nunca me passou pelo espírito nem pelo coração.
Renaud ainda tinha nos ouvidos a acusação lançada pela dama Filipa a propósito de uma dama de... ou do... o jovem não retivera o nome.
- E quem ousaria acusar Vossa Senhoria?
- O meu cunhado, o poderoso conde de Dammartin, que gosta muito da irmã e que acha que eu a trato mal. Além do meu próprio irmão, e é provável que os dois ódios se juntem. Eis por que tendes de velar de muito perto por aquela que passará a ser a vossa senhora. E também por vós próprio, mas não já. Ninguém vos acusará, para já, de ser seu amante, quando acabais de chegar. Dito isto, deixarei aqui servidores dedicados, com os quais podereis contar. Aceitais a difícil tarefa que vos confio?
Era uma questão de honra responder afirmativamente e foi o que Renaud fez. No entanto, o jovem achava aquela história cada vez mais estranha. O irmão Adam, que sabia muitas coisas, devia, no entanto, ignorar o que se passava naquela bela residência novinha em folha para onde o levara, e também o peso da responsabilidade que lhe ia cair em cima dos ombros. Para além das confidências incríveis feitas a um fedelho desconhecido por uma personagem tão alta, que lhe pareciam fora do normal. Porém, Renaud sentia uma verdadeira simpatia pelo seu novo senhor. Juraria que a sua tristeza, assim como a sua inquietação, não eram fingidas. Restava concluir que estaria tão desesperado que preferira confiar num jovem desconhecido em vez de num dos seus vários escudeiros, criados ou outras pessoas experimentadas que faziam parte da sua casa?
Renunciando, para começar, a deslindar aquela embrulhada demasiado grande, Renaud achou que o melhor seria fazer o seu serviço o melhor possível e inaugurou as suas novas funções acompanhando a dama Filipa e Flore d'Ercri à igreja mais próxima, a de Saint-Jean-en-Grève, paróquia do bairro há mais de vinte anos enquanto reconstruíam, aumentando-lhe as dimensões, a velha capela de Saint-Gervais-Saint-Protais. As damas iam ali ouvir as Vésperas e deslocaram-se a pé - era tão perto! - veladas, como convinha a damas nobres.
A cerimónia simples que o jovem seguiu, qual frequentador habitual, disse-lhe muito. O comportamento daquelas que ia servir era, talvez, um pouco bizarro, mas a piedade daquelas duas mulheres não podia ser posta em causa. O jovem pôde observar o fervor das suas preces através dos véus erguidos. Até a bela dama-de-companhia, cujos modos lhe tinham parecido tão ousados, oferecia às luzes do altar um rosto pleno de devoção. Quanto à mulher de Raul, não escondia as grossas lágrimas que lhe saíam das pálpebras fechadas, produto, certamente, de dor profunda. O jovem pôde admirar, também, a sua grande generosidade quando, à saída, ela esmolou os numerosos miseráveis que se amontoavam à sua volta...
Na manhã seguinte, Coucy partiu para o seu grande castelo do Norte apenas com o seu escudeiro e uma escolta reduzida para não deixar a mulher desprotegida. Pensando no novo donzel, o barão deixou Gilles Pernon, com o qual o jovem estreitou conhecimento e preencheu, graças aos seus ensinamentos, um dia que, sem ele, teria sido bem moroso. Filipa, de facto, só saiu dos seus alojamentos para ouvir missa, passou o tempo a bordar e a fiar com as suas damas e não o mandou chamar. Renaud estava sempre à espera, com alguma inquietação, que ela lhe pedisse para cantar, ou que lhe recitasse um poema, mas isso não aconteceu. E as horas passaram-se, pesadas. Até a donzela d'Ercri, que parecia preocupada, mal lhe falou. O dia seguinte começou da mesma maneira: depois da missa, o jovem perguntou quais eram as ordens e responderam-lhe que fizesse o que lhe apetecesse, mas que se mantivesse à disposição. Felizmente tinha Gilles Pernon, sem o qual estaria destinado a andar de um lado para o outro no pátio, no pomar, onde os frutos começavam a desabrochar e entre a sala de armas e o espaço reduzido que lhe tinham destinado como alojamento, perto das cavalariças. Nem sequer tinha o direito de ir à descoberta da grande cidade que ele sentia zumbir à sua volta e cuja actividade o fazia sonhar.
Renaud estava desapontado. De tal modo que, depois de treinar o manejo da espada durante uma hora com o velho ordenança e quando já se refrescavam com uma taça de cerveja, não pôde deixar de se queixar:
- É assim que vou passar o meu tempo? - suspirou ele. - Nestas condições, a dama Filipa tinha razão em não querer substituir o sire de Ferienne!
- Neste momento - respondeu Pernon, torcendo o bigode - ela está a receber uma mercadora de roupa e o seu sapateiro. Preferíeis estar no meio das mulheres e dos seus chiffons, em vez de estardes aqui a descansar tranquilamente na minha companhia?
- Deus me livre! Mas eu pensava escoltá-la pela cidade e também ao palácio do Rei, porque foi precisamente por causa disso que ficámos aqui. Na verdade - acrescentou ele com um novo suspiro - começo a pensar que mais valia ter-me feito templário!
- Para além de recitarem dezenas de Pater e de irem à igreja seis vezes por dia, a sua vida não é muito diferente da nossa! Têm, evidentemente, numerosas ocupações e alguns até são bastante sábios, mas não deixam de levar uma existência austera. Paris está longe da Terra Santa e a vida é muito diferente aqui e lá.
- No entanto, era para lá que eu gostaria de ir. Ou antes, regressar, porque nasci lá. Em vez disso, eis-me donzel de uma baronesa melancólica. Se, ao menos, pudesse ter ido com o barão Raul!
- E servir em Coucy! Pelo menos nisso, estou de acordo convosco. Coucy é o maior, o mais poderoso, o mais belo castelo deste mundo! E havemos de lá ir um dia. Entretanto - disse ele com um sorriso que lhe engelhou o rosto - consolai-vos, pensando que tendes de proteger a nossa patroa! Já é qualquer coisa, não é verdade?
- Sem dúvida, sem dúvida! Esperemos, então!
Não teve de esperar muito. À hora do jantar, Filipa ordenou-lhe que mandasse preparar a sua liteira e alguns carregadores com archotes, que se armasse e que escolhesse os companheiros que quisesse.
- Vamos partir de viagem? - perguntou ele, surpreendido com a hora tardia.
- Onde fostes buscar essa ideia? Eu não falei de bagagens. Vamos ao bairro d'Outre-Petit-Pont e como vamos depois do recolher, é melhor tomar algumas precauções.
A dama parecia nervosa e de mau humor.
- Dama - desculpou-se Renaud - eu não conheço esta grande cidade. Limitei-me a atravessá-la para ir ao Templo e do Templo a esta casa, e a distância é bem curta.
- Aprendereis a conhecê-la! - disse ela, irritada. - Levai Pernon convosco! Ele nasceu aqui e entrou para o serviço do meu defunto sogro quando ele era conselheiro do falecido Rei Luís.
Tratado daquela maneira, Renaud não avançou mais e foi procurar o velho escudeiro, que não se mostrou nada entusiasmado com aquela expedição nocturna, para não dizer que ficou francamente descontente:
- O bairro de Outre-Petit-Pont a esta hora? Que raio de ideia!
- É um local perigoso?
- Todos os bairros são perigosos depois do recolher, porque na rua só andam os malandrins. Esse, onde estão as velhas ruínas romanas, é também o domínio dos estudantes, cujas escolas se encontram no flanco da montanha de Santa Genoveva. Acontece que eles, muitas vezes, são muito turbulentos. E também lá há conventos.
- Talvez a dama Filipa vá a um deles?
- Não acredito! A esses vai-se de dia. Os monges e as freiras deitam-se com as galinhas... De qualquer maneira, só nos resta obedecer. Veremos... se nos for permitido ver qualquer coisa! - resmungou ele em conclusão.
Um momento mais tarde, Filipa e Flore, envoltas em grandes mantos forrados e cobertas por véus espessos, entravam para uma liteira tapada por cortinas, e a dama ordenou que as levassem a casa de mestre Albert, na rue Perdue. Renaud e Pernon subiram para os seus cavalos e seguiram o veículo, precedidos pelos portadores de archotes. A estreiteza das ruas, sobre as quais os telhados das casas quase se tocavam, impedia que cavalgassem ao lado das portinholas. Felizmente, a Lua iluminava o caminho, senão ter-se-iam perdido nas trevas malcheirosas povoadas por chamamentos de gatas com cio, guinchos de ratos e sons abafados vindos das tabernas, dos cabarés e dos antros de prostitutas. Enquanto prosseguiam, o velho escudeiro resmungava com os seus botões, mordendo o bigode para não ser ouvido na liteira, mas Renaud ouviu alguns fragmentos:
- ... completamente louca!... Para o que lhe havia de dar!... Não me espanta... O marido foi-se embora... Visita secreta... Vamos aqui a rasar as muralhas!... Por que não umas trombetas?...
Transposta a Ponte Grande, o jovem aproximou-se do seu companheiro:
- Sabeis quem é esse mestre Albert? - sussurrou ele.
- Oh, é um homem conhecido! É um diabo de um eclesiástico alemão, que veio ensinar para a Universidade... não sei o quê. Quanto está bom tempo, instala-se no meio das vinhas, no alto de um outeiro de três cumes que fica situado ao fundo do caminho onde ele mora (1). Os estudantes vão ter com ele aos magotes, segundo dizem...
- A dama Filipa interessa-se por essa... doutrina?
- Ela? Estais a brincar! Simplesmente, Albert de Cologne passa por ser um grande mágico, um... alquimista, como dizem, e teria encontrado uma pedra miraculosa que transforma o chumbo em ouro, ou noutro metal qualquer, que pode prolongar a vida e, desse modo, a juventude indefinidamente. Estais a perceber?
- Ela tem medo de envelhecer e vai pedir-lhe ajuda?
Gilles Pernon pensou, em silêncio, naquelas palavras durante alguns momentos, antes de suspirar:
- Sois capaz de ter posto o dedo na ferida! É verdade que ela é mais velha do que o marido e isso começa a ver-se. Por outro lado, depois da morte do pequeno Enguerrand, nunca mais concebeu... Sim, sois capaz de ter razão...
(1) A actual praça Maubert.
Como o cocheiro gritara “Atenção!”, ele interrompeu o seu raciocínio para ultrapassar a liteira e ver o que se passava: era apenas um bêbedo que, no meio da rue de la Barillerie, cambaleava em frente do cavalo da frente, quase se deixando esmagar pelas rodas ferradas. O incidente saldou-se por injúrias de parte a parte.
Transposta a Cite e a Ponte Pequena, mergulharam no bairro do livro, vizinho da Universidade. Foi ali que encontraram, agrupados em redor da igreja nova de Saint-Séverin, os pergaminheiros, os copistas, os encadernadores, os iluministas e também os escriturários públicos. O odor das colas, das peles e das tintas fazia-se sentir. Em seguida, seguiram ao longo das paredes do pequeno priorado de Saint-Julien-le-Pauvre, que pertencia à rica abadia de Longpont e cuja capela, muito simples, só fora acabada quatro anos antes. A rue Perdue, no limite dos campos, das vinhas e dos quintais que englobavam generosamente a grande muralha do defunto Rei Filipe, encontrava-se um pouco à retaguarda, indo dar ao Sena, ao nível da abside de Notre-Dame. Estava tudo tranquilo e calmo naquele local quase campestre, concentrando-se a surda actividade da noite, sobretudo, na vizinhança das pontes, mas levantara-se um vento vindo de oeste, fazendo refluir a água do rio sob a forma de pequenas vagas leitosas e alinhando, no alto dos telhados, os galhardetes de ferro dos cata-ventos.
A liteira parou junto de uma casa isolada cujas paredes sólidas encerravam um jardim onde as ervas cresciam em redor de uma macieira. Uma porta espessa, com grossas fechaduras, dava-lhe um acesso que não foi fácil de obter. Flore d'Ercri encarregou-se disso depois de o punho de Renaud ter atraído a atenção de um rosto por trás de um postigo gradeado:
- Abri! - ordenou ela. - É a dama que o mestre aceitou receber. A mim, vistes-me esta tarde!
O reflexo de uma candeia chegou ao rosto da jovem e deve ter-se dado por satisfeito porque, com grande barulho de fechaduras, o batente abriu-se para mostrar uma personagem tão larga quanto alta e que um traje de estilo eclesiástico não conseguia alongar. O homem devia ter uns trinta anos e o seu rosto não parecia nada o de um pensador, devendo, por isso, ser o doméstico do mestre. O homem examinou os recém-chegados com um olhar crítico, mas Filipa já descia da liteira e avançava para ele, o que fez com que ele se sentisse, sem dúvida, impressionado com o seu aspecto. O doméstico inclinou-se profundamente:
- Se a nobre dama me quiser seguir...
Apenas Flore foi autorizada a acompanhar a sua senhora. A porta foi fechada secamente no rosto de Renaud, que as ia seguir:
- Esperai! - gritou o porteiro através do postigo. - E tende paciência: isto é capaz de demorar...
Não havia outra coisa a fazer senão acatar a ordem e enquanto Pernon, sempre resmungão, se afastava um pouco para satisfazer uma necessidade, Renaud prendeu a sua montada a uma árvore e preparava-se para descer até ao Sena para melhor admirar a catedral, cuja silhueta, iluminada pela Lua, era de uma brancura fantasmagórica, quando um cavaleiro, conduzindo o seu cavalo a passo, pareceu ao fundo da rua, acercou-se da casa do alquimista e, sem se preocupar com os homens da liteira, pôs pé em terra e bateu vigorosamente na porta com o punho ferrado. Tratamento esse que teve como efeito o aparecimento do porteiro no postigo:
- Eu venho de longe para ver o mestre - declarou o novo recém-chegado sem se dar ao cuidado de baixar o tom de voz - e quero vê-lo imediatamente!
Intrigado com aquele comportamento desenvolto, Renaud aproximou-se e ouviu o porteiro dizer polidamente ao visitante que voltasse mais tarde, de preferência numa outra noite porque o mestre estava com uma pessoa e não lhe podia dar atenção.
- Está ali uma liteira! Quem é que está com ele? Um doente?
Uma mulher?
- Isso não vos diz respeito! Regressai mais tarde!
- É impossível. Não posso. E tende cuidado, não sabeis com quem estais a falar! Posso assegurar-vos que quando mestre Albert souber que me fazeis esperar em frente da sua porta, ides passar um mau bocado! Para já, começai por abrir esta porta! Não tenho o hábito de parlamentar com domésticos. Quanto à pessoa que está aí dentro, sentir-se-á contente por me ceder a sua vez...
Renaud achou que já tinha ouvido o suficiente. Aquela personagem, que falava tão alto e gritava com tanta força, começava a irritá-lo. O jovem bateu-lhe no ombro:
- A mim, parece-me que fazeis muito barulho, sire estrangeiro.
- Faço o barulho que me apetece! De onde saístes vós?
- Dali, e ainda bem que esta casa dá para o campo, senão já teríeis amotinado o bairro! Ora, pareceu-me compreender que o mestre, como dissestes, gosta muito da sua tranquilidade, porque é de noite que vêm ter com ele. Por isso, concedei-nos a graça de vos retirardes.
- Não querem lá ver o insolente! Mas, quem sois vós, meu rapaz, para ousardes interpelar-me depois de vos terdes atrevido a tocar-me no ombro?
A indignação do recém-chegado era grande e Renaud perguntou a si próprio por um instante se não teria de se haver com um louco. A primeira vista, não parecia. Com vinte e cinco, vinte e seis anos, cabelos castanhos encaracolados sob um capuz negro, barba redonda, um grande bigode, um nariz arrogante e uns olhos claros, era, com toda a evidência, um senhor.
Preferindo pôr em prática os bons preceitos de cortesia ensinados pela dama Alais, mas temperando-os à sua maneira, o jovem sorriu para o irascível estrangeiro, inclinando-se numa pequena saudação um tanto irónica:
- Terei ofendido uma grande personagem? Se foi o caso, sinto-me desolado, mas ficai descansado, sire desconhecido, não sou leproso nem indigno, apesar de ainda não ter sido armado cavaleiro...
- Ah sim? Sois bacharel...
- Donzel, ao serviço de uma grande e nobre... Apercebendo-se da gafe que ia cometer, parou. Porém, o outro queria saber mais:
- De quem, se fazeis favor?
- Não vo-lo posso dizer.
- Discreto, hã? É bom, desde que se trate de uma dama. Mas talvez o vosso nome seja menos secreto? Conceder-me-eis a graça de mo confiar?
Gilles Pernon, regressado durante a escaramuça verbal, seguia-a com inquietação, não ousando intervir. O velho escudeiro tentou dizer por gestos ao jovem que se calasse, mas este não via por que razão havia de esconder a sua identidade. Renaud encolheu os ombros:
- Se isso vos dá prazer, o meu nome é Renaud de Courtenay, para vos servir.
Para sua grande surpresa, o desconhecido ficou de boca aberta, conseguindo apenas articular:
- DeC...
Depois, da maneira mais imprevisível, desatou a rir. Um riso verdadeiramente louco, tão cheio de alegria e juventude que era difícil uma pessoa ficar ofendida. Dobrado, o desconhecido não conseguia arvorar um ar sério. De tal modo que a mostarda começou a subir ao nariz do donzel:
- Gostaria que parásseis com isso! - disse ele com severidade. - Sois o primeiro a achar graça ao meu nome, que...
- Tendes razão: não tem graça nenhuma - cortou o engraçado, parando finalmente. - Há muito tempo que o uso!
- Também sois um Courtenay?
- Sou! Simplesmente eu, ainda por cima, sou o Imperador de Constantinopla. E isso também não tem graça nenhuma!
A porta, abrindo-se, enfim, para dar passagem às duas visitantes, interrompeu o estupor horrorizado do jovem, literalmente tetanizado com a grandeza do título que acabava de ouvir. A dama Filipa e Flore, avançando para ele sem olhar para o seu companheiro, salvaram-no de um cruel embaraço. O “Imperador”, depois de se ter inclinado com graça perante as duas silhuetas tão bem envoltas, precipitou-se para a casa antes que o doméstico tivesse tempo de fechar a porta.
A estranha atitude do seu donzel, que parecia transformado numa estátua de sal, atraiu a atenção de Filipa.
- Então, Renaud? Em que pensais, aí a olhar para a porta? Regressemos!
A ordem da dama, coincidindo com a sólida palmada que Pernon lhe assentou nas costas, fez com que Renaud regressasse da lua. Vermelho de confusão, o jovem precipitou-se para ajudar as duas mulheres a subir para a liteira, que já fizera meia volta para regressar por onde tinham vindo. Renaud subiu maquinalmente para o seu cavalo e foi para o seu lugar ao lado de Gilles Pernon, nas traseiras do veículo, mas só quando atingiram a Ponte Pequena é que ele ousou murmurar:
- Achais que aquele... aquele senhor é verdadeiramente o que pretende ser?
Pernon, que se divertia interiormente há já momentos, ofereceu-lhe um grande sorriso:
- Nenhuma dúvida quanto a isso, sire Renaud! Era mesmo o Imperador Balduíno de Constantinopla! Vi-o várias vezes no palácio e noutros sítios. Ele vem aqui muitas vezes. Foi, até, o nosso sire Luís que o armou cavaleiro há... cinco anos, em Melun. Mas não vos atormenteis! É bom rapaz. Além disso, como não podíeis adivinhar, agistes como devíeis.
- Dizeis que ele se chama Balduíno?
- Sim. Balduíno, segundo do nome, filho do Imperador Pedro II e da sua segunda mulher, Iolanda de Hainaut. Parece que ele nasceu lá, num palácio de pórfiro púrpura.
Renaud já regressara ao seu sonho. Aquele nome atingia-o mais ainda do que a coroa fabulosa usada pelo seu interlocutor de há momentos, porque o mergulhava de novo no manuscrito do seu avô e porque este, sem fornecer o nome, lhe dera a ideia de que poderia servir aquele Courtenay levado pela História ao trono da antiga Bizâncio de maneira totalmente inesperada. Oh, aquele não era leproso, mas quase lhe queria mal por não o ser. Não era admissível que aquele príncipe arrogante pudesse ter o mesmo nome daquele jovem Rei sublime de quem ele, Renaud, fizera seu herói para sempre. Não era difícil supor que, apesar de ser Imperador, nunca lhe chegaria aos calcanhares...
DE DUAS RAINHAS, UMA...
No dia seguinte de manhã, Renaud viu-se de novo a escoltar a donzela d'Ercri através das quarenta ruelas muitas vezes mal-cheirosas e cheias de detritos que, na ilha da Cite, separavam a bela catedral nova do palácio real. Em redor do mercado Palu e da capela Saint-Germain-le-Vieux, encontrava-se toda a espécie de comércio, desde mercadores de ervas e de unguentos até vidraceiros e mercadores de especiarias preciosas e de perfumes, assim como negociantes de vinhos cujas embarcações de fundo chato aportavam ao porto da Cite. Coisas muito apreciadas pelos cónegos de Notre-Dame: alguns dedicavam-se, mais ou menos abertamente, à alquimia. Para além disso, o Hôtel-Dieu e os seus cortejos de doentes e miseráveis, sempre a entrarem e a saírem, representava uma clientela a não desdenhar, e a velha rua da Judiaria acrescentava uma nota equívoca, vagamente inquietante, ao pandemónio silencioso onde era preferível uma pessoa não se aventurar. Nas ruelas sombrias, mesmo em pleno dia, viam-se rostos e silhuetas estranhas que a dupla e temível vizinhança do palácio e da catedral não parecia conseguir repelir...
Armada com um pequeno rolo de pergaminho, no qual estava escrita uma lista de aquisições a efectuar, Flore entrou em diferentes tendas. Nelas, a jovem comprou ervas diversas, como a genciana e a mercurial, desconhecidas de Renaud que, aliás, não compreendia por que razão a donzela de Filipa andava nas compras em vez de deixar esse cuidado para o intendente ou para a gente da cozinha, a quem, habitualmente, esse trabalho dizia respeito. A jovem também comprou mel, exigindo que fosse de Narbonne, uma coisa verdadeiramente escandalosa aos olhos do seu companheiro, para quem o da sua Gastine de infância era o melhor que havia, mas a bela Flore olhou para ele de tal maneira que o jovem ficou reduzido a um mutismo reprovador. Desde logo, o jovem contentou-se em meter as compras da donzela nos alforges colocados nos dois flancos de uma mula, segurando nas rédeas enquanto ela subia para o animal.
A jovem comprou ainda um garrafão de um certo vinho branco, três jarros de vidro, um almofariz de madeira com o respectivo pilão e, depois de uma passagem por uma loja obscura cujo letreiro estava tão sujo que não se conseguia decifrar, um grande pacote envolto num saco de tela de onde saíam pedaços de palha. Após o que se dignou sorrir.
- Tenho tudo o que queria. Regressemos! - disse ela graciosamente, instalando-se de novo em cima da mula.
- Tendes a certeza de que não vos esquecestes de nada? - grunhiu ele.
- Sim... de vos agradecer! Sois encantador!
E, inclinando-se para ele, rodeou-lhe o pescoço com os braços para lhe dar um beijo nos lábios. O que, no fim de contas, não foi de todo desagradável porque os seus lábios eram doces, incandescentes e sabiam ao mel que ela devia ter provado, mas Renaud absteve-se de demonstrar que tinha gostado: a jovem já tinha uma tendência exagerada para o fazer andar pelo beicinho. E quando entraram no palácio, foi com um tom bastante ríspido que ele lhe perguntou se devia levar “aquilo tudo” para a cozinha.
- Não, meu querido amigo! Colocai isso diante da porta da dama Filipa e regressai às vossas conversas...
Coisa que ele fez sem esconder o seu mau humor. Por que razão tinha de ser ele, um futuro cavaleiro, a fazer aquele trabalho de criado quando, justamente, era coisa que não faltava no palácio? Felizmente, aquele diabrete não o obrigara a acompanhá-la nas compras numa charrete (1)! Mas, chegado diante da porta, o
(1) A charrete era, para um cavaleiro, um sinal de decadência.
jovem depositou os pesados cabazes com alguma brusquidão, tocou no braço da donzela e declarou:
- A próxima vez que tiverdes vontade de ir às compras, levai um criado, ou um carregador! Eu estou ao serviço da dama Filipa, não ao vosso!
- Não querem lá ver o rebelde? Fareis o que vos mandarem, belo galo, porque o meu serviço é o serviço da dama!
- Não é essa a minha opinião. Por este andar, terei umas barbas brancas quando se decidirem, enfim, a dar-me as esporas de ouro. Mais vale regressar já ao Templo. Pelo menos, terei tarefas de homem, não de criada!
Dito aquilo, o jovem girou nos calcanhares e foi ter com Gil-les Pernon, que encontrou nas cavalariças a tratar um ligeiro ferimento numa das articulações de um dos cavalos. Ainda fervendo de indignação, Renaud despejou tudo nos ouvidos daquele único amigo, que o recebeu com uma gargalhada:
- Acalmai-vos! A julgar pelas compras de Flore - e que vós não vistes - ela tinha de se fazer acompanhar por um homem de confiança. Mestre Albert deve ter dado à dama Filipa uma determinada receita, que terá de ser preparada em privado. São coisas para as quais não se pode requerer a assistência de um criado...
- Deveis ter razão. Nesse caso, pergunto a mim próprio que fórmula terá ido pedir o... Imperador Balduíno?
- Oh, uma receita muito diferente, a acreditar no que me disseram. Mestre Albert passa por possuir uma pedra miraculosa que permite transformar em ouro o mais vil metal... E esse jovem é o soberano mais pobre do mundo.
- Pobre? O Imperador de Bizâncio? Como é possível acreditar numa enormidade dessas?
- Mas é verdade. Quando não passa o tempo a percorrer os reinos todos em busca de ajuda, tem de defender o que resta do seu império da cobiça dos príncipes gregos, despojados quando o doge de Veneza e os Cruzados tomaram Constantinopla. Necessita de tal maneira de dinheiro que penhorou a Santa Coroa de Espinhos e outros objectos da Paixão de Nosso Senhor aos Judeus de Veneza.
- Aos Judeus? - perguntou Renaud, estrangulado pelo horror, mas que já tinha ouvido aquilo. - É infame! Ele deve estar louco!
- Louco, não. Na miséria, sim! Tranquilizai-vos, o nosso Rei teve a mesma reacção que vós e mandou resgatar as preciosas relíquias já lá vão cinco anos. Até foi a Sens para as receber. Oh, foi uma coisa comovente e bela de se ver, com o seu irmão, monsenhor Afonso, ambos vestidos com hábitos de penitência e com os pés nus, transportando a arca sagrada através da cidade até ao barco magnificamente decorado com as armas de França, com grande abundância de flores-de-lis e os mais ricos tecidos, que a ia transportar pelo rio até ao palácio de Paris onde, depois, o mestre Pedro de Montreuil construiu a mais espantosa capela para receber a Coroa.
Ao evocar aquelas recordações, o velho escudeiro estava de tal modo emocionado que as lágrimas lhe corriam pelas faces, indo aninhar-se nos bigodes.
- Graças a Deus, pelo menos está em segurança - suspirou Renaud, pensando na Verdadeira Cruz ainda enterrada perto do desastroso campo de batalha dos Cornos de Hattin (1). - Mas a população de Constantinopla deve ter sofrido muito por ter de se separar dela e talvez a resgate ao Rei de França, por sua vez, um dia? Para que servirá, então, essa bela capela?
- Uma capela serve sempre para qualquer coisa, nem que seja unicamente para glória de Deus! - disse Pernon com severidade. - É verdade que o Imperador ainda não abdicou dos seus direitos às Santas Relíquias, mas creio que não deve tardar... a menos que mestre Albert lhe confie o seu segredo. O que me surpreenderia...
A chegada tumultuosa da donzela d'Ercri interrompeu a conversação. A jovem vinha anunciar a Renaud que tinha de se preparar para acompanhar a dama Filipa ao palácio a seguir ao almoço.
- A Rainha enviou uma mensagem, pedindo à nossa senhora que vá ter com ela. Estais contente? Não é trabalho de criado.
(1) Ver Thibaut ou a Cruz Perdida.
Além disso, ela mandou-vos um traje conveniente para vos poderdes aproximar de uma tão grande princesa!
Como uma planta privada de água que recebe um aguaceiro, Renaud sentiu-se renascer e duas horas mais tarde, com efeito, depois de ter trocado as calças de malha por outras de tecido fino e a túnica de lã grosseira por outra de veludo e forrada de pele de esquilo, transpunha a barbacã que permitia a entrada no palácio perpendicular ao Sena e penetrava num vasto pátio cercado por uma galeria de arcadas, parecida com um claustro. Havia ali todo o tipo de pessoas: oficiais, religiosos, damas e até um bando de miseráveis cuja triste sorte e a compaixão real autorizavam a avançar até às profundezas dos alojamentos de um soberano que, todos os dias, não apenas distribuía por eles generosas esmolas, como os recebia à sua mesa, onde ele próprio os servia.
Os alojamentos não eram muito vastos. Rectangulares, barravam, em parte, a ponta a jusante da Cite, prolongados por um belo jardim com uma ramada e um pomar onde as pereiras estavam em flor. No rio, estendidas como dois ou três peixes, duas ou três ilhotas pintavam a paisagem de verde sob os raios de sol. Estava um dia lindo. Assim, a despeito de uma certa severidade dos edifícios, resgatada pela elegância do estilo, o brilho das armas e a magnificência de alguns trajes, a residência dos Reis de França oferecia uma imagem sorridente e até bonacheirona. Para isso concorria, naturalmente, a alegre algazarra dos trabalhadores num outro pátio, trabalhando para edificar aquela repentina manifestação de pedra pura, a Sainte-Chapelle, que o Rei queria sublime.
Renaud pôs pé em terra, ajudou Filipa a descer da sua hacaneia (1), entregou as duas montadas aos palafreneiros e dispunha-se a seguir a dama, mas esta deteve-o:
- Esperai-me aqui! Não é próprio entrardes nos alojamentos da Rainha sem a sua autorização. Tendes de ter paciência.
Um pouco desiludido devido à sua ânsia, desde que escapara à morte, de querer ver, conhecer, aproximar-se de quem morava ali, foi obrigado a inclinar-se, perguntando simplesmente se podia
(1) Égua ou cavalo, próprio para ser montado por damas.
visitar os trabalhos. Responderam-lhe com um gesto de indiferença, que não contribuiu em nada para lhe aquecer o coração. Assim, quando viu Filipa subir a escadaria do palácio, girou nos calcanhares e dirigiu-se para o estaleiro, onde esqueceu rapidamente a sua pequena desilusão, de tal modo o espectáculo o espantou.
A futura igreja não tinha - nem de longe - as dimensões de uma catedral, mas parecia-se com uma imensa colmeia. Os operários afadigavam-se nos andaimes que circundavam o edifício mais surpreendente que ele alguma vez vira. Era, à primeira vista, uma igreja de dois andares. No rés-do-chão, de uma sólida base de paredes com poderosos pilares e pequenas janelas ogivais, brotavam rampas de pedra branca separadas por imensos vazios ao longo de uma armação que desenhava no céu azul o cruzamento das ogivas de uma abóbada incrivelmente alta. Aquilo parecia-se com um gigantesco relicário de santos, que Renaud já vira, mas dava a impressão de uma tal fragilidade que o jovem não deixou de observar para si próprio:
- Pelos grandes ventos do Inverno, aquilo não aguenta...
- Aguenta... e sem aquela madeira toda, que será retirada quando tudo terminar...
Renaud virou-se e viu atrás de si um homem de certa idade, grande e vigoroso, vestido com uma túnica grossa apertada por um cinto de couro de onde pendia uma bolsa também ela de couro. O seu rosto, de nariz robusto e tez rosada, estava ornamentado com uma barba curta e encaracolada da mesma cor cinzenta dos olhos. Esse homem segurava na mão um rolo de pergaminho e uma grande régua. Um capuz de lã, de onde saíam algumas mechas de cabelo, cobria-lhe a cabeça. Os seus grandes sapatos estavam cheios de poeira e Renaud concluiu que ele devia trabalhar na capela. Aliás, falava com uma segurança que impressionou o rapaz. No entanto, este recusou render-se:
- Não quero parecer obstinado, mas vejo ali muitos espaços vazios e poucas pedras...
- Há mais do que pensais. Não vos dais conta, mas cada um daqueles lanços está onde ficará apoiado um contraforte para assegurar a pressão na direcção da abóbada. Além disso, todo aquele vazio desaparecerá. Será substituído por grandes vitrais maravilhosamente coloridos.
- Vitrais? Tão grandes?
- Sim. A luz do céu entrará na capela e iluminará as cores dos vitrais.
- Será magnífico, então! - disse Renaud sem esconder a sua admiração. - E para vós deve ser uma alegria trabalhar aqui...
- Uma alegria muito grande... tanto mais que sou o arquitecto - disse ele com um certo orgulho. - Chamam-me Pedro de Montreuil... Mas, desculpai-me - acrescentou ele com uma saudação, abandonando o donzel para ir ao encontro de um homem de uns trinta anos cujos cabelos louros saíam de um chapéu branco sem aba.
Era um homem muito grande e quase magro, tão grande que caminhava ligeiramente inclinado. Vestido com um longo traje castanho de tiritana (1) e com uma sobreveste sem mangas do mesmo tecido, pelas aberturas da qual se via um forro cor de toupeira, caminhava pensativamente. O rosto era belo sem ser afectado devido aos traços já acentuados e a algumas rugas, sem falar do grande sorriso que fazia brilhar os olhos de uma bela cor azulada. Enquanto caminhava, a personagem esfregava as mãos para as aquecer e quando Pedro de Montreuil se lhe juntou, segurou-o pelos ombros para lhe dar um abraço antes de meter o braço no do arquitecto para continuar a caminhar e poder falar mais comodamente.
Nesse instante chegou um criado gritando a plenos pulmões, para ultrapassar o barulho do estaleiro, o nome de Renaud de Courtenay. Este apressou-se a ir ao seu encontro, contentando-se em saudar vagamente ao cruzar-se com o arquitecto e o seu companheiro.
- Sou aquele que procurais - respondeu ele. - A dama de Coucy precisa de mim?
- Não. É a Rainha. Vinde depressa! Ela não gosta de esperar.
(1) Tecido de lã bastante comum.
Atrás dele, Renaud penetrou no palácio, subiu a escadaria, atravessou duas salas, das quais uma era a do Conselho e a outra onde se tomavam as refeições e chegou, por fim, a uma porta trabalhada, diante da qual estavam dois guardas. Era o alojamento da Rainha-Mãe, Branca de Castela a quem, a despeito da presença da sua nora, Margarida de Provença, continuavam a chamar Rainha.
Ao penetrar na vasta câmara iluminada por duas janelas que davam para o jardim, Renaud teve a impressão de entrar numa espécie de templo. Ali vivia uma grande fidalga e não era necessário o esplendor dos tapetes murais, onde as torres de Castela se uniam às flores-de-lis de França, para o sentir. O centro do quadro era uma mulher de alta condição toda vestida de branco como era próprio das viúvas reais, mas aquele luto não tinha nada a ver com os tecidos severos da Flandres dos primeiros dias. O vestido era de veludo ornamentado com arminho e os cabelos estavam cobertos por um véu de musselina seguro por um círculo de ouro preciosamente trabalhado e ornamentado com safiras. Cabelos que eram negros, sarapintados de fios de prata. Com cinquenta e seis anos, Branca de Castela era ainda uma mulher bela devido a uma ossatura soberba que lhe esticava a pele cor de marfim do rosto e à inteligência que lhe brilhava no olhar sombrio. Sentada numa cátedra alta, perto de uma mesa coberta por um tapete azul e dourado, acariciava com as suas longas mãos pálidas, que uns nós reumáticos começavam a deformar, um livro encadernado a velino com ferragens prateadas. Tinha algumas damas à sua volta, mas Renaud, fascinado com aquela grande forma nevada, viu apenas um caleidoscópio de cores, do qual se destacava, no entanto, Filipa de Coucy, que o apresentou:
- Aqui tendes, Madame, o jovem donzel de que vos falei e que chegou até nós devido à amizade de um dignitário da Santa Ordem do Templo. O seu nome é Renaud de Courtenay...
Os olhos negros da castelhana abandonaram o livro para examinar o recém-chegado que teve, de imediato, a impressão de estar a ser trespassado de um lado ao outro. Após um momento, a Rainha falou e a sua voz grave não era desagradável:
- Nascido na Terra Santa, dissestes-me, minha boa amiga? É espantoso. Não sabia que ainda havia lá Courtenays? Pensava que estavam todos aqui... ou em Constantinopla. Onde vistes o dia, jovem?
Como ela estava a falar directamente com ele, Renaud pôs um joelho em terra:
- Em Antioquia, Madame, a acreditar no que me disseram, porque era apenas um bebé embrulhado nalguns cobertores quando me trouxeram para o Ocidente.
- E o vosso pai chamava-se...?
- Thibaut, educado no palácio de Jerusalém juntamente com o santo Rei Balduíno IV, do qual foi companheiro, escudeiro e o mais fiel servidor enquanto durou a sua vida heróica e dolorosa...
- O leproso? Ouvi falar, de facto, que foi grande, como se deve ser quando se reina na terra onde morreu Nosso Senhor. Mas isso não me diz de quem era filho esse Thibaut!
- De Joscelin III, último conde de Edessa e de Turbessel! O meu pai foi o seu único filho. Bastardo - lançou Renaud um pouco à maneira de um desafio, porque sabia que seria obrigado a dizê-lo... - mas reconhecido!
- E a vossa mãe?
- Nunca soube o seu nome. Apenas que era uma grande dama... e que já morreu. Depois, o meu pai fez-se templário.
A ruga de desdém que marcava o lábio da Rainha acentuou-se:
- Por outras palavras, sois um bastardo, também vós, nascido, sem dúvida, de uma esposa adúltera, porque te esconderam o seu nome. E, contrariamente ao vosso pai, não fostes reconhecido?
- De facto, Madame! - ripostou Renaud, que se levantou, incapaz de se deixar pisar aos pés daquela Rainha que o desprezava deliberadamente. - O reconhecimento está nas mãos do irmão Adam Pellicorne, comendador de Joigny, que foi, no reino franco, o companheiro e o amigo do meu pai. Foi ele que me levou ao barão de Coucy para completar, junto dele, a minha educação cavaleiresca.
- Começada por quem?
- Pelo meu pai adoptivo, sire Olin des Courtils, que Deus tenha a sua alma generosa. Foi ele que me educou juntamente com a sua doce dama Alais, também ela regressada para junto de Deus...
- Por que não ficastes em casa deles, nesse caso? Poderíeis ter feito a aprendizagem das armas junto do mais alto senhor do local. E onde é isso, já agora?
- Em Gastine, perto de Châteaurenard. Os meus pais adoptivos morreram, penso já o ter dito. Como estava determinado, dirigi-me à comendadoria de Joigny para me entregar nas mãos do irmão Adam... que era meu padrinho - acrescentou ele, recordando-se das palavras do ancião.
- E por que razão não ficastes lá? Servir o Templo é uma coisa nobre!
- É verdade, Madame... mas é preciso ouvir o chamamento de Deus. Sem dúvida, Ele não me achou digno.
- Que sabeis vós disso? E quem sois vós para ousar interpretar as intenções do Todo-Poderoso? - exclamou a Rainha, cujos olhos lançavam chispas. - Podíeis entrar para o noviciado e talvez a graça vos fosse concedida depois de muitas preces?
A atmosfera estava carregada de electricidade sem que Renaud conseguisse compreender por que razão a mãe do Rei lhe fazia aquele acolhimento eriçado de espinhos. Era como se ela, pessoalmente, não gostasse dele. À sua volta, todas retinham a respiração. A dama Filipa parecia petrificada e, sem pensar, sequer, em defender o seu servidor, observava a cena com os seus grandes olhos semicerrados. Renaud respirou profundamente, consciente do silêncio ambiente:
- Eu sempre rezei muito, Madame, como me ensinou a minha mãe adoptiva, que era muito piedosa, e ainda rezo mais desde a sua morte. No entanto, não me sinto atraído pela vida monástica. Mesmo sob as armas do Templo!
- No entanto, ficar-vos-iam bem. Podíeis regressar ao vosso país natal, que é a mais bela terra do mundo, já que viu nascer o nosso divino Salvador.
- É meu desejo regressar, de facto, mas não como templário!
- A sério? Pergunto a mim própria por que razão - disse Branca com uma pequena risada seca. - Mas... quais são as outras razões, para além do espírito de cruzada?
- Não compreendo o que Madame quer dizer...
- Vós sois louro, mas a cor da vossa pele é um pouco morena, o que permite pensar que a dama misteriosa que vos deu à luz poderia ser... sarracena?
- Oh! Isso é indigno!
A jovem voz enfurecida que protestava fez entrar de novo na garganta do jovem a cólera que ele não teria conseguido conter por mais tempo. Ao mesmo tempo, uma silhueta delgada, metida num vestido de cendal de um alegre tom vermelho-claro com ornamentos eclesiásticos surgiu vinda do fundo da câmara, ultrapassou Renaud e sem um olhar para as saudações cerimoniosas da assistência, foi para junto de Branca de Castela. Esta, entretanto, ergueu uma sobrancelha interrogativamente e sem perder a calma:
- Então, minha filha, que se passa?
- Acontece que acabo de entrar e ouvi tudo. Oh! Madame, como podeis ser tão cruel? Que vos fez este jovem para que o trateis assim?
A voz, com um ligeiro sotaque, era musical, mas a Rainha-Mãe não pareceu sensível. Uma prega desdenhosa arqueou-lhe os lábios finos:
- Fazer-me o quê, este rapaz? Não estais bem, minha filha. E, sobretudo, esqueceis com quem estais a falar!
Margarida de Provença - pois era ela, bem entendido! - não se comoveu com a observação. Mais tranquilamente, a jovem respondeu:
- Estou a falar com a nobre mãe do meu marido, que é o homem mais caridoso, o mais acessível e o menos desdenhoso que há, e eu não creio que ele fosse capaz, alguma vez, de reprovar a alguém um nascimento de que ninguém é responsável. Ainda menos avançar com suposições insultantes.
- O adultério é um pecado mortal e o seu fruto...
- Não o digais! Também é pecado humilhar quem não o merece. Olhai para este donzel e dizei-me...
Margarida acabava de se virar para olhar para Renaud e este, atingido pelo espanto e com as orelhas a arder, deixou de ouvir tudo o que ela dizia. Maquinalmente, o jovem voltou a pôr um joelho em terra e ficou a olhar para aquele rosto delicado de um tom de marfim ligeiramente rosado e iluminado pelos olhos cinzentos mais belos que já tinha visto... Aquele rosto era o mesmo, exactamente, do da imagem encontrada na torre esquecida e que ele nunca mais esqueceria. Incapaz de um movimento, fulminado, o jovem esqueceu o cenário sumptuoso, a castelhana arrogante, as damas presentes e até a sua própria pessoa. A sua vida ficou suspensa daquele olhar luminoso e compadecido que lhe sorria.
Uma mão vigorosa, sacudindo-o, libertou-o do seu sonho acordado, ao mesmo tempo que uma voz masculina lhe ordenava que se levantasse. O que Renaud fez para sentir uma nova surpresa, menos violenta, no entanto, do que a primeira: o homem que acabava de falar era a personagem simplesmente vestida que vira há pouco a falar com Pedro de Montreuil perto da capela em construção. O jovem soube de imediato quem ele era porque a Rainha se dirigiu a ele chamando-o de “sire, meu marido”. O Rei Luís, nono do nome, aquele a quem o reino já colocava uma auréola para além da sua coroa terrestre!
Meu Deus! Acabo de me comportar como um idiota! Ela vai achar que eu sou um imbecil!, pensou ele, aterrado, sem se dar conta de que aquele “ela”, aplicado de maneira tão natural à jovem Rainha, já tinha significado para o seu coração. O Rei, entretanto, falava-lhe de novo enquanto Margarida terminava uma explicação volúvel.
- Então, jovem? Que vos aconteceu? Parecíeis uma estátua!
- A... a majestade real, sire!- conseguiu balbuciar o infeliz. - Acabo de chegar da província e... não estou habituado!
- Habituar-vos-eis. Se bem que... ser maltratado por uma grande Rainha e defendido por outra não seja uma coisa muito frequente. Pelo menos, ficamos a saber quem sois. E agora saudai as damas e descei para esperar a baronesa! Recompor-vos-eis melhor longe da nossa presença!
Para mostrar que não estava a expulsá-lo, Luís deu a mão a beijar ao rapaz, este segurou-a com reconhecimento, saudou e dirigiu-se para a porta com um intenso alívio. O Rei tinha razão: precisava mesmo de se recompor. Renaud dirigiu-se para a escadaria, onde parou para olhar para o céu e respirar a plenos pulmões o ar doce e ensolarado. Só se apercebeu que alguém o tinha seguido e se mantinha a seu lado quando a personagem lhe dirigiu a palavra.
- Gostaria de saber - disse ela - por que razão a velha vos recebeu daquela maneira!
- A velha? - emitiu ele, olhando com surpresa para aquela interlocutora visivelmente mal-educada a despeito do seu belo vestido do mesmo tom que o de Margarida e do chapéu da mesma cor. Era quase uma criança. Uma miúda de uns doze anos com ares de galito, de tal modo se esforçava por se manter direita, mas de galito rechonchudo. Para além disso, era francamente feia com o seu nariz comprido, o tom de pele turvo, os cabelos de um ruivo curioso e a grande boca trocista, na qual se viam, no entanto, uns pequenos dentes muito brancos. Quanto aos seus olhos oblíquos, tinha-os meio fechados, de tal maneira que era impossível distinguir-lhes a cor. Renaud pensou que ela se parecia um pouco com uma feiticeira:
- Se estais a falar da Rainha Branca, donzela, não pareceis respeitá-la como devíeis!
- Ela é velha, não? - respondeu a jovem. - No entanto, não aceita a idade porque, a acreditar nas pessoas deste palácio, continua a ser ela a Rainha, a verdadeira. No entanto, há mais de dez anos que deveria ser Madame Margarida a usar o título, mas que continua a ser tratada como as damas-de-companhia. Tudo porque tem ciúmes.
- De quem?
- É preciso ser homem para fazer uma pergunta dessas... É evidente, ora essa! Tem ciúmes por Madame Margarida ser mais nova, mais bonita do que ela algum dia foi e por o nosso sire a amar muito!
A jovem, ao falar, tinha o mesmo ligeiro sotaque soalheiro que a sua senhora e Renaud concluiu que também ela vinha da Provença, mas decidiu ter a certeza:
- Dir-se-ia que vós também gostais muito de Madame Margarida. Deveis ser uma das suas donzelas.
A grande boca revelou os seus dentes todos num grande sorriso de satisfação, ao mesmo tempo que as pálpebras se abriam para deixar ver uns olhos tão verdes como as folhas novas de uma árvore.
- Mais do que isso, porque sou um pouco prima dela. O meu nome é Sancie de Signes e a Rainha Margarida é minha madrinha.
- É um nome bonito, Sancie - disse Renaud que, subitamente, achou aquela rapariga simpática por estar tão próxima de Margarida de Provença.
- Obrigada, mas só a Rainha e as pessoas de quem eu gosto é que têm o direito de me chamar assim - acrescentou ela severamente. - Mais ninguém!
- Até há pouco, eu também pensava que não era ninguém - suspirou Renaud - mas Madame Branca encarregou-se de me fazer sentir presunçoso.
- Não digais asneiras! Apesar de a velha vos desprezar, as vossas qualidades, se bem que por linha bastarda, tornaram-se evidentes aos olhos de todos. Ser um Courtenay, primo do Imperador, é qualquer coisa. Além disso, o vosso pai era cavaleiro do quase lendário Rei Leproso e a vossa mãe uma dama misteriosa e isso é o suficiente para inflamar as imaginações! A propósito, ela também é misteriosa para vós?
- Não. Eu sei quem ela era, mas devo guardar silêncio em tudo o que lhe diz respeito.
- Não serei eu a pedir-vos que o quebreis. Mas podeis ter a certeza que muitas damas vos vão fazer olhos doces.
- ... Arriscando-se a desagradar a Madame Branca, que é, acabais de o dizer, toda-poderosa? É imaginação vossa!
- Eu sei o que estou a dizer: eu conheço-as e estou certa que a esta hora já há duas ou três a sonharem com o vosso segredo... E regressamos ao ponto de partida: continuamos a não saber por que razão a velha vos tomou de ponta logo ao primeiro olhar!
- Por piedade, não a chameis assim! Mesmo que ela me tenha tomado de ponta, como dizeis, e eu nunca venha a gostar dela, não está certo: ela é Rainha, mesmo assim!
- E eu acrescento que durante a menoridade do nosso sire ela se mostrou uma verdadeira soberana, sabendo reprimir os rebeldes - entre os quais estavam os vossos Coucy! - e governar sabiamente a barca do reino. Mas agora o nosso sire tem trinta anos: é um homem suficientemente grande, corajoso e sábio para tratar dos seus negócios!
- Simplesmente, continua a dar ouvidos à mãe? Eu compreendo isso.
O nariz da jovem Sancie enrugou-se de indignação:
- Por São João e Santo Elói, que velam pelas nossas terras de Signes, raciocinais como um monge! Por que razão, demónio, não vos fazeis templário em vez de serdes o donzel daquela Filipa de Coucy sempre a chorar, que é a mulher mais aborrecida que eu conheço? Só a v..., quer dizer, Madame Branca, para fazer dela uma amiga. É verdade que é uma mulher muito piedosa e que gosta, sobretudo, das mulheres que não são felizes no casamento! Isso consola-a pela sua viuvez...
Dessa vez, Renaud não teve tempo de responder: um meirinho real reclamava a equipagem da dama de Coucy e Sancie eclipsou-se sem acrescentar qualquer palavra, ao mesmo tempo que Renaud ia ter com Filipa. Esta parecia mergulhada em profunda reflexão e não dirigiu a palavra ao seu donzel quando ele a ajudou a subir para a sua haqueneia nem depois, quando chegaram à residência. Renaud ficou um pouco preocupado, perguntando a si próprio se o pequeno escândalo de que ele fora a causa não faria com que ela o mandasse embora, o que o contrariaria muito. Não porque se sentisse muito ligado à sua nova condição, mas, para além de estar a caminho da investidura de cavaleiro prometida pelo barão, perderia, se se fosse embora, o acesso ao palácio e a possibilidade de rever a jovem Rainha. Uma ideia que já lhe era cruel.
O que lhe estava a acontecer era muito estranho e não estava certo de o compreender. Quando vira o desenho feito por Thibaut com tanto amor, sentira uma admiração quase devota, próxima da que lhe inspirava a Virgem Maria: aquele rosto era o de Isabel de Jerusalém, que ele sabia agora ser a sua avó e, mesmo se lhe apareceu como um ideal, o sentimento que lhe inspirava era de ternura e respeito. O facto de se ver diante da sua cópia viva e oh, quão graciosa, delicada e fascinante pela vitalidade e sedução que exalava do seu corpo, era outra coisa e Renaud, ajoelhado diante de Margarida, sentira pela primeira vez o desejo ardente de abraçar alguém, misturado com o da adoração. O jovem compreendera de repente, como se tivesse sido fulminado por um raio, como Thibaut pudera passar a sua vida inteira a amar e a esperar por uma única mulher, porque essa mulher era aquela que acabava de ver! E aquele título de donzel, que lhe desagradava tanto, usá-lo-ia com muita satisfação, com muito orgulho, se junto de Margarida e não junto daquela Filipa que não se opusera a nada, nada tentara para o arrancar às garras daquela megera coroada. Não espantava que fossem amigas, aquelas duas! Do fundo da sua cólera, Renaud pensou que a jovem Sancie, com o seu rigor, podia ter alguma razão. Aliás, depois de reflectir, talvez tivesse toda a razão, já que ela gostava de Margarida e detestava a castelhana. Talvez fosse bom fazer dela uma amiga... se lhe fosse dada ocasião para se aproximar de novo e se não se visse no olho da rua no dia seguinte...
Infelizmente, não pôde confiar a sua inquietação a Gilles Per-non. O velho escudeiro não se divertia muito em Paris. Assim, quando se sentia aborrecido, frequentava um cabaré da Cite, onde tinha os seus hábitos. Nessas ocasiões, raramente saía de lá antes do recolher. Pelo menos, foi o que lhe disse um dos dois palafre-neiros quando Renaud levou a sua montada e a haqueneia da dama para a cavalariça.
Reduzido a si mesmo, só lhe restava esperar que o chamassem, o que não aconteceu. Aparentemente, a dama Filipa renunciara ao ofício da noite. Quem apareceu, pouco antes do toque de corneta para o jantar, foi Flore d'Ercri. A expressão preocupada do donzel acendeu uma centelha de divertimento nos seus olhos:
- Então? Tivemos a honra terrível de atrair a atenção da Rainha?
- Passava bem sem ela. E não compreendo por que razão ela me quis ver se era para me insultar!
- Oh, ela é capaz de muito mais quando se trata de insultar alguém. Imagino que é o sangue castelhano. Misturado com o dos Plantagenetas, que também ferve em pouca água, e com o dos Aquitanos. Não esqueçais que ela é neta da famosa Leonor... E se vos quis ver foi porque a nossa dama gabou as vossas qualidades... e a vossa pessoa.
- Preferia que ela não tivesse feito nada. Vi logo, ao primeiro olhar, que aquela princesa me ia detestar. E não sei porquê.
- Não tenteis saber! - disse a jovem, encolhendo os ombros. - As razões das rainhas raramente são as mesmas dos comuns dos mortais. Talvez lhe tenhais provocado uma má recordação? Vamos, não façais essa cara! Sentistes-vos magoado a esse ponto?
- É claro! Como qualquer homem honrado, cujos pais são atacados. E suponho que me vindes anunciar que a dama Filipa já não quer os meus serviços porque não voltarei a poder acompanhá-la ao palácio?
- Mas que ideia, meu Deus! Onde fostes buscar isso? Não esqueçais que estais, antes de tudo, ao serviço do barão Raul e que fostes, apenas, “emprestado” à sua mulher. Se ela não vos quisesse, mandar-vos-ia para Coucy, o que não é o caso. Continuareis a escoltá-la, tanto à corte (1) como a outro lado qualquer, até que regressemos ao castelo. O que não deve tardar.
- Eu pensava que a dama Filipa queria ficar aqui mais algum tempo?
- As razões já não são as mesmas desde aquela experiência. Bem pelo contrário. Além disso, a Rainha Branca disse-lhe que antes da consagração da abadia de Maubuisson desejava ir em peregrinação à Virgem negra de Rocamadour...
- Com o Rei e... a jovem Rainha?
- Não. Com a filha, Isabel, que já está toda virada para Deus, e com o último filho, o príncipe Carlos que, aos dezassete anos, não está nada para aí virado. Ela pediu à nossa senhora que a acompanhasse, mas, bem entendido, esta recusou.
- Porquê bem entendido?
(1) Este é o termo usado geralmente para designar o séquito do Rei, mas, naquele tempo, tratava-se de um número bastante reduzido de pessoas e de uma vida muito mais simples e familiar. Nada a ver com a corte de Luís XIV.
Flore desatou a rir com um riso arrulhador, que não era sem encanto:
- Meu Deus, como sois curioso, querido amigo! Mas, se reflectísseis um pouco, não precisaríeis de fazer essa pergunta: ela recusou porque espera que quando a Rainha Branca se puser a caminho, o elixir de mestre Albert já tenha feito efeito e que o barão Raul, honrando de novo o seu leito, se preocupe mais com ela em vez de andar por maus caminhos. Exceptuando o de Notre-Dame-de-Liesse, que fica mais perto e onde iremos cumprir voto de promessa assim que regressarmos a Coucy...
Só de pensar que o momento penoso vivido junto da Rainha-Mãe não se repetiria, Renaud sentiu um grande alívio. Também era uma boa notícia saber que se juntaria em breve ao clã dos homens no castelo familiar e que não voltaria a assumir, senão por momentos, o papel de donzel que, decididamente, não lhe agradava. O que o jovem desejava era prosseguir a sua educação para conseguir o mais rapidamente possível o belo título de cavaleiro, no qual punha todas as suas ambições.
Por outro lado - o homem vive em perpétua contradição consigo próprio - Renaud sentia que lhe seria penoso abandonar Paris, colocando uma longa distância entre ele e o palácio real onde vivia aquela que lhe enchia doravante o espírito e o coração. O facto de ela ser Rainha e mulher de um soberano admirável, ao mesmo tempo que a imagem da sua avó, não mudava nada. O jovem amava Margarida como Thibaut amara Isabel e esse amor idílico, esse poema tão doce, assim como uma veneração quase religiosa, enchia-o de alegria porque não tinha qualquer pensamento carnal - pelo menos ainda não - e não infringia o severo código da cavalaria a que tanto aspirava. Se lhe era permitido amar, não lhe era permitido cobiçar esse amor. Mas Renaud ainda era muito novo para saber que aquele estado de felicidade não duraria para sempre. O jovem ignorava que alguém lhe viria murmurar ao ouvido que os atavios de uma madona podiam esconder um corpo desejável, oh, quão desejável, e que o tempo dos sonhos agradáveis precedia o dos desagradáveis.
Nos dias que se seguiram, Renaud teve muitos tempos livres. Exceptuando a missa da manhã, Filipa vivia fechada no seu quarto com Flore, tomando ali intermináveis banhos com muitas ervas, preparando minuciosamente unguentos e recebendo mercadores para imaginar novos atavios. Entregue a si mesmo, Renaud aproveitou para visitar a cidade que o fascinava na companhia de Pernon, mas cada vez mais sozinho à medida que aprendia a reconhecer as ruas, já que o velho escudeiro tinha tendência para parar nas tabernas.
O jovem gostava de ir até ao Sena, ao porto de Greve, separado da praça do mesmo nome por uma fila de estacas, para ver os barcos a descarregarem. Ali amontoavam-se o feno, a madeira e as pirâmides de pipas no meio da algazarra das azenhas ou das lavadeiras que ritmavam as suas canções com grandes golpes das pás de madeira. Por vezes, o jovem aventurava-se até ao palácio para seguir os progressos da fascinante capela e da grande galeria que estavam a construir para a ligar aos alojamentos reais. Mestre Pedro de Montreuil ganhara amizade àquele rapaz ingenuamente admirador, cuja impaciência por ver nascer, enfim, os grandes vitrais coloridos que fariam brilhar aquela pura obra-prima, o divertia. O arquitecto explicou-lhe os procedimentos de construção que lhe pareciam milagrosos e uma vez até o levou a visitar Notre-Dame, onde ainda trabalhava nos transeptos. Ali, apresentou-lhe o seu primo, João de Chelles, que terminava a construção das torres e fê-lo admirar a grande “rosa” de vitrais pintados e coloridos a uma hora em que o Sol poente a fazia resplandecer, dando-lhe um brilho incomparável.
- Isto dá-vos uma ideia do que vai ser a Sainte-Chapelle. Ela cintilará por todos os lados e, por ocasião dos ofícios tardios, iluminará a noite como uma lanterna fabulosa.
Os dois arquitectos entendiam-se tão bem e demonstravam um génio tão semelhante, que era espantoso como João de Chelles não participara na obra do seu primo porque, para além da catedral, tinham trabalhado juntos na basílica de Saint-Denis, onde os Reis de França dormiam o seu último sono, na abadia de Saint-Martin-des-Champs e na de Saint-Germain-des-Prés.
Era evidente que Renaud, ao ir ter muitas vezes com os construtores, esperava vagamente, quando ia ao palácio, avistar, pelo menos, a Rainha Margarida, mas a sorte não estava com ele e nem uma única vez teve essa felicidade. O jovem sentiu alguma tristeza, mas não muita. Aquele amor, surgido tão repentinamente, preservava-o das tentações da carne, tentação essa personificada na pessoa de Flore. Mas ele não lhe dera, logo na primeira noite, qualquer esperança, quando ela deslizara até ao seu canto metida num vestido sob o qual nenhuma camisa se arriscava a enrugar-se. O corpo que ela lhe oferecia era dos mais excitantes. No entanto, Renaud dissera-lhe:
- Fazeis mal, donzela Flore, em me quererdes incitar ao pecado. Não sabeis que aquele que aspira à cavalaria deve apresentar-se puro na investidura?
- Não sejais pateta, meu amigo! O capelão do castelo, quando vos confessar, far-vos-á tão puro como um cordeiro recém-nas-cido!
- Não é assim que as coisas se passam e não é assim que eu as entendo! O meu maior desejo é ser um verdadeiro cavaleiro, digno, em tudo, dessa honra extrema, e não vou mentir. Sede boazinha! Não me tenteis mais!
Mas ela não renunciou. Sentia por ele um daqueles caprichos que podem consumir se não forem reprimidos, mas Renaud soube guardar-se, evitando ferir aquela rapariga ardente que ele sabia poder tornar-se perigosa. Por fim, ela acabou por capitular, concluindo com um bom humor que talvez não fosse falso:
- Nesse caso, temos de regressar rapidamente a Coucy e convencer o barão a dar-vos as esporas de ouro por ocasião do próximo Pentecostes. Vou aconselhar a dama Filipa a apressar a partida. De qualquer maneira, ela não tem mais nada a fazer em Paris. A Rainha parte depois de amanhã.
- Mas o Pentecostes é daqui a um mês! -Justamente! É preciso apressarmo-nos!
Flore parecia muito segura de si e Renaud, cuja perspectiva de se zangar com ela não o encantava, tranquilizou-se pensando que ela teria poucas hipóteses de convencer o barão Raul a fazer dele um cavaleiro em tão pouco tempo. Podia, portanto, partir tranquilo.
- Não vos fieis! - profetizou Pernon. - Essa rapariga é muito forte e eu creio-a capaz... de muitas coisas para obter o que quer.
- Mas não junto de sire Raul, em todo o caso?
- Eh, eh! - disse o mestre de armas com um sorriso de entendido que lhe fendeu o rosto de uma orelha à outra.
- “Eh, eh!” o quê?
- Eu sei o que digo...
- Mas eu não. Explicai-vos!
- Oh, é fácil: a donzela Flore é muito bela... caso ainda não tenhais reparado.
- É claro que reparei! Mas... dizem que o barão está apaixonado...
- Por outra bela criatura que o faz pagar caro. Por isso, enquanto espera e como passatempo... A hora do banho, por exemplo? Notai que eu não sou nenhum alcoviteiro!
- Mas ela é a fiel dama-de-companhia... a amiga, quase, da dama Filipa.
- A dama Filipa é uma dama demasiado grande para ter uma amiga... para além da Rainha Branca! Demasiado nobre, também, para se interessar pelo que se passa nas estufas no regresso da caça. Vamos, sire Renaud, não façais essa cara! - acrescentou ele ao ver o olhar assombrado do jovem. - Queria, simplesmente, prevenir-vos que a bela Flore consegue sempre o que quer. No fim de contas - concluiu ele com uma risada - é apenas um mau momento. E eu conheço alguns bem piores!
Renaud não teve tempo de fazer perguntas a si próprio sobre como conviria tratar aquele problema no futuro: no dia seguinte, quando regressava da missa em Saint-Jean, um oficial a cavalo, seguido por quatro ordenanças a pé, deteve-o em nome do Rei e, antes que ele tivesse tempo de se aperceber do que se passava, viu-se com as mãos atadas atrás das costas e a caminho das masmorras reais no meio dos homens de armas... À dama Filipa, que se decidiu a reagir, perguntando o que queria aquilo dizer, o oficial contentou-se em repetir: “Ordens do Rei!”, acrescentando que o prisioneiro era acusado de assassínio.
Atordoado com aquele golpe inesperado, Renaud deixou-se levar sem oferecer resistência, adivinhando que não serviria de nada. O futuro, que ele queria rico e pleno de descobertas, fechava-se brutalmente. O oficial pronunciara a palavra assassínio e era, sem dúvida, a morte dos seus pais adoptivos que o apanhava para o levar ao ponto de partida: as pranchas de um cadafalso sob os pés e, por cima da cabeça, o nó de uma corda de cânhamo... a menos que, devido à sua qualidade, só tivesse direito ao cepo e ao machado?
Fraca consolação, não teve de percorrer uma longa distância com tão lamentável equipagem, porque foi para o Grand Châtelet que o levaram.
Tendo pertencido, em tempos, às defesas da Cite e reduzido agora ao papel de sede da justiça devido às novas muralhas de Filipe Augusto, que aumentara os limites da cidade, o Châtelet não era, por isso, menos sinistro. Grande bloco quadrado encostado ao Sena, flanqueado por duas torres redondas viradas para o antigo subúrbio, perfurado, no eixo da rua Saint-Denis, por uma lúgubre passagem abobadada que continuava pela rue Saint-Leufroy, com os seus três andares de celas envolvendo uma espécie de torreão na parte oriental, era, para o bairro novo, uma ameaça muito mais pesada do que o palácio, sobretudo quando se sabia que era a única parte visível e que cinco outros andares mergulhavam no solo até umas abomináveis masmorras sem ar e sem luz, mas não sem água porque o rio, quando havia cheias, entrava nelas como em sua casa.
Transposta a dupla grelha que abria para a abóbada, introduziram Renaud numa pequena sala onde se encontrava o arquivo. Algumas candeias mal a iluminavam e um dos homens pegou numa delas para examinar o prisioneiro sob todos os ângulos, demorando-se sobretudo no rosto, que perscrutou durante alguns momentos. O que teve o dom de irritar Renaud.
- Para que precisais de olhar assim para mim? - protestou ele. - É muito desagradável!
- Mas é a Lei! Todo o malfeitor que entra aqui tem de ser “mordido” por alguém possuindo uma boa memória para rostos, para que o possam reconhecer se, por acaso, conseguir evadir-se (1).
- Eu não sou um malfeitor e, sobretudo, preciso que me façam justiça. Não me evadirei!
(1) Uma espécie de antepassado da identificação judicial.
- Todos dizem isso! Mas depois, se a ocasião se apresentar...
- Não vejo de onde possa ela vir.
Inscreveram-no no registo de admissão e depois teve direito a uma conversa com o porteiro, que desempenhava na prisão o papel de estalajadeiro: os presos ficavam mais ou menos bem alojados e mais ou menos bem alimentados de acordo com o que pudessem pagar.
- Eu não tenho um tostão! - respondeu ele com altivez àquele homem que lhe descrevia complacentemente as vantagens e os preços em ordem decrescente do seu albergue.
- É pena! Vou ter de vos pôr com os que estão no “estrume”... a menos que me queirais dar a vossa túnica, que eu poderei vender por um bom preço...
Mas o oficial que levara Renaud interpôs-se:
- Ele é um prisioneiro importante, tem de ir para o “segredo”.
Em seguida, inclinando-se para o ouvido do porteiro, acrescentou algumas palavras que Renaud não ouviu. Mas o jovem viu duas ou três moedas de prata mudarem de mãos. O porteiro, aliás, inclinou-se:
- As ordens serão executadas!
Enquadrado por dois ordenanças, Renaud seguiu o porteiro até ao primeiro andar do torreão, onde foi introduzido num calabouço longo e estreito e mal iluminado por uma abertura colocada demasiado alto na muralha para que se pudesse olhar para o exterior. Uma enxerga, forrada de folhas secas e colocada em cima de um banco de pedra, fazia as vezes de leito e ocupava a maior parte do espaço. O mobiliário era completado com um balde e um jarro. Aquilo cheirava a imundície e a urina, mas o porteiro olhou para o conjunto com satisfação:
- Não é um dos quartos melhores, mas para aquilo que recebi, é aquilo a que tendes direito. Pelo menos, não tereis ratos!
- Se não é um dos melhores, quer dizer que há piores?
- Bem piores! - respondeu o proposto, erguendo um dedo doutoral. - Temos a Fossa, a que também chamamos Hipocraz. É ao fundo dos subterrâneos e tem a forma de um funil. Os prisioneiros são descidos por meio de cordas e roldanas e têm de ficar sempre de pé, não podendo nunca sentar-se, deitar-se ou apoiar-se à parede por causa da sua forma inclinada. Ao centro há um poço sem parapeito, que comunica com o Sena. Acaba-se, mais tarde ou mais cedo, por cair nele... Como vedes, não estais nada mal instalado...
Renaud preferiu não responder. Tanto mais que, um instante mais tarde, as cordas que lhe atavam as mãos nas costas foram substituídas por uma corrente ligando duas braceletes de ferro que lhe colocaram em redor dos punhos, ao mesmo tempo que uma outra, semelhante, lhe prendia os tornozelos, permitindo-lhe apenas alguns passos pequenos... e tão barulhentos como a enxerga, sobre a qual ele se deixou cair para ruminar o desespero quando, por fim, o deixaram só depois de fecharem a porta a sete chaves.
O meio-dia não devia estar longe. No entanto, o jovem sentia-se cheio de fadiga, como se tivesse percorrido uma dezena de léguas a pé. Além disso, tinha o espírito de tal modo enevoado que não conseguia pensar correctamente. Então, deixou que o sono se apoderasse dele. Quando acordasse, talvez conseguisse raciocinar e compreender o que lhe estava a acontecer.
A RAMADA DO REI
Se Renaud esperava enfrentar a acusação de assassínio num curto espaço de tempo, ficou desapontado. Passaram-se vários dias sem que parecesse preocuparem-se com ele. Apenas o carcereiro entrava todas as noites para substituir a água do seu jarro, esvaziar o balde e levar-lhe um bocado de pão negro e uma pequena quantidade de uma sopa que nem aos antigos Espartanos teria agradado: alguns rabanetes e umas folhas de couve nadavam num líquido de cor indefinível, na companhia de uns ossos que tinham, por vezes, alguns fiapos de carne agarrada.
O seu moral ressentiu-se. Até na prisão do bailio, em Château-renard, comia melhor e se aquele regime era aquele a que tinha direito devido às moedas entregues ao porteiro pelo oficial, aqueles que o vigilante chamava de “lixo” não deviam receber senão água, o que os incitava, sem dúvida, a arranjar espaço nas prisões reais deixando este mundo por outro melhor. A menos, evidentemente, que o porteiro não fosse um patifório. Mas tinha todo o aspecto disso! Entretanto, o prisioneiro devorava o seu pão negro até à última migalha e roía os ossos lamentando que as suas mandíbulas, no entanto sólidas, não tivessem as mesmas capacidades das de um cão.
Outro motivo para a sua falta de moral: era impossível saber o que quer que fosse da parte do carcereiro. O homem respondia a todas as perguntas que lhe fazia com um grunhido, olhava para ele com uns olhos bovinos, encolhia os ombros e desaparecia.
Por fim, o pior, para o prisioneiro, era não poder lavar-se. A dama Alais, a sua mãe adoptiva, ensinara-lhe, desde a infância, que uma alma pura se sentia melhor num corpo limpo, mesmo se o seu confessor reprovasse essa necessidade de lavagem, dizendo que Jesus, quando ia para o deserto para se encontrar com o pensamento do Seu divino pai, não se lavava. O que a boa dama refutava, dizendo que Deus devia providenciar na Sua condição de Todo-Poderoso. E continuava a esfregar o seupetiz com água fria, bem entendido, que a água quente possuía virtudes amolecedoras, susceptíveis de encobrir as armadilhas do Maligno. No Inverno, Renaud chorava de frio, mas depois ela envolvia-o num lençol aquecido na lareira da casa, ao mesmo tempo que lhe dava leite quente e a criança acreditava-se, então, no paraíso.
Estava longe, esse paraíso da sua infância! A cobiça de um homem, aquele Jérôme Camard, no entanto bailio do Rei, que ousara assassinar-lhe a mãe para se apoderar dos seus bens e acusá-lo a ele, Renaud, do assassínio para melhor se desembaraçar dele, arrancara-lho juntamente com a vida dos seus queridos pais. A sorte e depois a ajuda do irmão Thibaut, substituída depois pela do irmão Adam, tinham-no salvo, metido no caminho da , .... honra e da vida que ele desejava, mas agora compreendia que,
de facto, não passava de uma remissão, que a teia do bailio estava bem tecida e que não se escapa ao destino.
O jovem ficou totalmente persuadido quando no dia seguinte, finalmente, o tiraram da prisão para o conduzirem, acorrentado, ao outro lado da Voúte du Châtelet, onde se encontrava a dupla sede do Prebostado de Paris, a da Justiça e a das Finanças.
Introduziram-no numa sala comprida e estreita, tão mal iluminada por uma pequena ogiva de pedra profundamente metida na espessa muralha, que três candeias ardiam num candelabro de ferro junto de uma cadeira em cima de um degrau e encimada por um dossel com a flor-de-lis lembrando o aparato real, mas o homem que estava sentado nela, se bem que fosse mais ou menos da mesma idade do soberano, não era o Rei Luís. Era o preboste, mestre Etienne Boileau, e se tinha direito àquele belo cenário era porque representava a justiça em nome do Rei. A um lado da sala, um clérigo metido num hábito negro escrevia de pé diante de uma estante próxima da luz e do outro lado esperava uma terceira personagem com um rolo de pergaminho desenrolado nas mãos. Um era o escrivão, enquanto o outro era o acusador. Por trás do primeiro, havia uma porta baixa, diante da qual estavam dois ordenanças vestidos de vermelho e azul, as cores da cidade. Nas sombras densas, ao fundo da sala, viam-se duas ou três silhuetas sombrias, mas não havia outro público, já que a audiência estava prevista para as oito horas da noite.
Os que acompanhavam Renaud colocaram-no diante do preboste e depois recuaram alguns passos. Este último, um homem de rosto cheio, severo mas inteligente, olhou por um instante para aquele que lhe traziam e depois, afundando-se na sua cadeira, indicou com a mão ao acusador que podia começar a leitura.
- Perante nós, Etienne Boileau, preboste do Rei com sede no Grand Châtelet, compareceu neste dia o chamado Renaud des Courtils...
- Eu chamo-me Renaud de Courtenay - protestou de imediato este. - Des Courtils é apenas o nome...
- Basta. Falareis quando vos interrogarem - disse o leitor, descontente por o terem interrompido. - Onde íamos? Ah! O chamado Renaud des Courtils que se faz chamar falsamente de Courtenay, o que ofende a verdade, tanto quanto este tribunal.
Mas Renaud, perdido por cem perdido por mil, estava decidido a defender-se com unhas e dentes.
- Eu tenho todo o direito a usar este nome, que é o do meu verdadeiro pai, como diz a acta depositada nas mãos do irmão Adam Pellicorne, comendador do Santo Templo de Jerusalém na casadejoigny...
- O irmão Adam Pellicorne morreu o mês passado - disse uma voz que provocou um arrepio na espinha de Renaud, ao mesmo tempo que uma das sombras do fundo da sala aparecia na mancha de luz amarela projectada nas lajes pelas chamas do candelabro.
E a dúvida, se o jovem a tinha, dissipou-se: era mesmo Jêrome Camard que acabava de fazer a sua aparição com uma luz cruel nos olhos e uma ruga de maldade ao canto da feia boca.
- É difícil convocar um morto - acrescentou ele com um suspiro de desdém.
- Mas não um vivo! - exclamou Renaud, saído rapidamente da prostração sentida no instante anterior pelo ódio. - A minha dor é grande ao saber neste lugar que o irmão Adam regressou para junto de Deus porque ele me era muito querido, mas o irmão Pons d'Aubon, que comanda o Templo de Paris e que é Grão-Mestre em França, sabe quem eu sou por intermédio do irmão Adam. Ele também morreu?
O preboste falou pela primeira vez, impondo silêncio ao bailio com um gesto autoritário.
- Não, graças a Deus! Está, simplesmente, ausente, segundo nos disseram na casa do Templo...
- Por muito tempo? - articulou Renaud com angústia.
- Não nos disseram, mas deve demorar-se, sem dúvida, porque foi a La Rochelle (1).
Renaud recebeu aquele novo golpe o melhor que pôde, tentando manter uma postura digna. Não queria dar ao seu inimigo o prazer de o ver afundar-se.
- Nesse caso, é preciso convocar o meu suserano, sire Raul de Coucy, que sabe tudo a meu respeito e a quem fui apresentado pelo irmão Adam, que Deus tenha na Sua Misericórdia a sua alma nobre e santa. Neste momento ele está no seu feudo, mas, na falta dele, está a dama Filipa, ao serviço da qual fui colocado por ele...
- A nobre dama partiu para Coucy algumas horas depois da vossa detenção - disse tranquilamente o preboste. - No entanto, disse-nos, antes da partida, que não queria ter nada a ver com este assunto, que não vos conhecia e que o seu marido vos recolhera por caridade para agradar a um velho amigo.
Apesar da sua coragem, Renaud estremeceu, ao mesmo tempo de indignação e de dor. Tivera razão em sentir repugnância por servir aquela mulher, infeliz, talvez, mas isso não era des-
(1) La Rochelle era, na época, o principal porto templário do Atlântico, de onde partiam os navios que, segundo se diz, teriam descoberto o México muito antes de Cristóvão Colombo.
culpa para o abandono a que o votara. Devia ter acontecido o mesmo com o barão. Esse tê-lo-ia defendido, mas após a declaração desdenhosa de Filipa, ninguém se daria ao trabalho de ir aborrecer no seu grande castelo o grande barão de Coucy. O jovem ergueu a cabeça para olhar para o preboste:
- Muito bem. Dizei-me qual é o meu crime!
- Como se não soubésseis, já que, por este duplo assassínio, fostes condenado à forca, da qual escapastes com uma sorte incrível.
- Duplo assassínio? Sou acusado de ter morto duas pessoas?
- Sire Olin des Courtils e a dama Alais, sua mulher, são duas pessoas, não?
- Sire Olin morreu de um fluxo no ventre...
- ... devido ao cuidado que tivestes em envenená-lo, após o que assassinastes a sua mulher, esperando, assim, ficar com os bens daqueles a quem chamáveis pai e mãe!
- Por todos os santos do paraíso! - explodiu Renaud. - Estou a ver que conseguistes o que pretendíeis e que, baseado em falsas acusações, quereis a minha perdição. Mas eu digo que isso nunca foi assim. Digo que sire Olin morreu de uma doença verdadeira e que nunca matei aquela que me educou. Digo que, depois da morte de sire Olin, a nossa casa foi invadida pela gente do bailio, que tinha jurado a minha perda porque cobiçava os bens dos Courtils. Foi a gente do bailio que matou a minha mãe à minha frente, após o que me prenderam e me atiraram para a prisão...
- E condenaram!
- Foi Renaud des Courtils que foi condenado e eu sou Renaud de Courtenay, pronto a enfrentar, de armas na mão, quem disser o contrário...
- Muito bonito! Mas vós não sois cavaleiro, que eu saiba.
- Mas pretendo ser um homem de honra e fui educado segundo as regras da cavalaria. Tenho o direito de me defender de quem me ataca e, sobretudo, de quem me acusa de um crime abominável. Por isso...
- Falta prová-lo. Entretanto, contentai-vos em responder às perguntas que vos fazem.
- Muito bem, que as façam!
- Mudai de tom, por favor! Não tendes qualquer interesse em vos mostrardes insolente e em nos indispordes. O vosso caso já não é muito claro. Lembrai-vos que, aos nossos olhos, não passais de um condenado evadido e recuperado... Assim, negais ter cometido o duplo assassínio dos vossos pais... adoptivos?
- Formalmente! Sire Olin, repito, morreu de uma doença apanhada na Terra Santa, que o atormentava há muito tempo. Quanto à doce e boa dama Alais, juro perante Deus que estou inocente desse crime odioso: e aquele que a matou também não estava ao meu serviço. Oh, eu vi-a morrer, atingida por um dos esbirros desse homem que vedes aí, bailio do Rei para a cidade de Châteaurenard...
- Apenas em parte. A outra metade de Châteaurenard pertencia ao defunto messire Roberto de Courtenay, Grande Escanção de França morto há cinco anos, mas, com o recente casamento de messire Pedro, o seu filho, com a nobre donzela Perennelle de Joigny, este fica, doravante, com a totalidade da cidade e das terras de Châteaurenard. Mestre Jérôme Camard, aqui presente, já não exerce quaisquer funções de bailio do Rei, já que o empréstimo concedido ao conde de Joigny, mordomo-mor de Nivernais, por ocasião da sua partida para a cruzada, foi pago ao Tesouro real. Por isso, é sire Pedro de Courtenay que requer contra vós.
- Contra mim, que ele não conhece? Mas, que lhe fiz eu?
- A ele nada, mas fostes condenado por um bailio do Rei, do qual messire é vassalo! Quanto a mim, estou pronto a dar-vos todas as explicações. Podíamos perfeitamente ter executado a sentença e ter-vos enforcado sem mais formalidades!
- Não creio que o Rei aprovasse. O Rei que eu vi e que ouviu a minha história...
- Sim, sim... e Madame, a Rainha Branca, também a ouviu. Mas acontece que ela não ficou convencida. Tanto mais que os grandes senhores de Courtenay são caros ao seu coração pela irrepreensível fidelidade que sempre demonstraram à coroa. Mesmo e sobretudo no tempo dos grandes perigos...
- E foi ela que, antes da sua partida em peregrinação, me mandou prender! - murmurou Renaud, que começava a compreender e a sentir a inutilidade de se defender de um adversário tão forte. O jovem pensava estar a falar para si mesmo, mas o preboste tinha-o ouvido:
- De facto! - disse ele. - Deveis compreender que lhe desagrada ver um nome tão grande ser usado por um criminoso.
- Eu não sou um criminoso! - gritou Renaud fora de si. - Mais uma vez, não matei ninguém!
- Muito bem! Nesse caso, e como me obrigais...
O preboste levantou uma mão e os ordenanças apoderaram-se de novo do jovem, arrastando-o na direcção da porta do fundo e depois pela escadaria para a qual ela se abria. Após alguns degraus, descidos sob uma abóbada tão sombria que estava iluminada por alguns archotes, Renaud foi atirado para uma câmara sinistra, uma espécie de jazigo iluminado apenas por uma estreita fenda e, sobretudo, por um forno rugidor construído na muralha e fechado por uma grelha, através da qual estavam pousados nas brasas alguns instrumentos variados: longas hastes de ferro, tenazes e pinças, que fizeram eriçar os cabelos na cabeça do prisioneiro. O jovem acabava de se dar conta de que ia ser torturado.
Havia ali, de facto, tudo o que era preciso. Para além do forno, os seus olhos aterrorizados mostraram-lhe uma grande roda armada de pontas, um banco de pedra com um delgado colchão de couro em cima, equipado com correias que mostravam vestígios enegrecidos de sangue seco e também queimaduras e objectos variados cuja utilidade ele desconhecia, como um funil e alguns baldes e, por fim, uma espécie de cama grosseira de madeira, na qual as cordas enroladas em dois cabrestantes formavam a cabeceira e os pés. Foi nessa cama aterradora que estenderam Renaud depois de o terem despojado das roupas. Os seus tornozelos foram atados ao cabrestante de baixo e os seus braços, brutalmente puxados por um homem mascarado e vestido de vermelho que ele ainda não tinha visto, ao de cima. O escrivão sentou-se diante de uma escrivaninha enquanto o preboste, o infame bailio, que vivia um evidente instante de alegria e duas outras personagens, uma das quais um monge, tomavam lugar em redor do cavalete. O carrasco colocou-se à cabeceira e um dos seus ajudantes na outra ponta. O preboste foi o primeiro a falar:
- Ides ser questionado segundo a lei do reino. Estais pronto a dar-vos como culpado?
- Nunca! Nunca me darei como culpado da abominação de que me acusais!
O monge, então, inclinou-se para ele. Sob a tonsura clara, Renaud viu um rosto ascético de traços acentuados e olhos profundos, mas cuja expressão era de comiseração:
- Meu filho - disse ele - antes que o sofrimento se apodere do vosso corpo e cause nele danos irreparáveis, suplico-vos que liberteis a vossa alma do peso do pecado. Deus terá tanto mais piedade quanto vós fordes sincero...
Um suor gelado corria pelo dorso e pela fronte do jovem. Renaud sabia que ia precisar de uma coragem imensa, mas a ideia de se confessar culpado do assassínio daqueles que amara era-lhe ainda mais intolerável.
- Eu estou inocente, padre! Diante de Deus, que me ouve, juro...
O fim da frase perdeu-se num uivo de dor. A um sinal do preboste, os dois atormentadores tinham dado uma volta à roda e o infeliz rapaz teve a impressão de que lhe arrancavam os membros. Lágrimas ardentes enevoavam-lhe o olhar e rolavam-lhe pelas faces, mas a dor era tal que não as sentia. O preboste inclinou-se de novo:
- Confessai, meu rapaz! Sois demasiado jovem para suportar o que vos espera. libertai-vos vós mesmo e tereis direito a uma morte rápida...
- Dizem que... o Rei... é justo e misericordioso... Por que quer ele que eu confesse... o que não fiz?... Aaaaaah!
Acabava de ser dada uma nova volta e não havia uma polegada do corpo de Renaud que não gritasse de sofrimento... Depois, uma terceira...
- O Rei quer a verdade! Confessai!
- Se ele prefere... a mentira à verdade... que vá...
Uma mão tapou-lhe a boca e do fundo do seu sofrimento o jovem pensou que, se aquela mão queria sufocá-lo, far-lhe-ia um grande serviço, mas ela só ficou por um instante e o supliciado, fechando os olhos com muita força, esforçou-se por reunir a sua coragem para o novo puxão que viria a seguir. Mas que não veio. Renaud não viu o gesto de imperiosa recusa do monge. Nem viu o preboste a inclinar-se. Ouviu apenas:
- Chega por hoje. Vamos dar-lhe a noite para reflectir. Amanhã, recomeçamos. Talvez com outros meios...
Desataram-no, mas quando quiseram pô-lo de pé, o jovem foi incapaz de se aguentar.
- Levem-no para a prisão! - ordenou o preboste. Entretanto, as mãos do atormentador apalpavam-lhe os ombros, os tornozelos e os joelhos dolorosos:
- Ele é sólido - concluiu ele. - Se quiser ser razoável, pode ir para a forca pelos próprios pés...
Mas Renaud não o ouviu. O jovem tinha perdido a consciência.
Quando recobrou os sentidos, regressara ao seu calabouço e todas as articulações lhe doíam, mas assim que as apalpou percebeu que não tinha nenhum osso deslocado. Aquela sorte não duraria muito, porque no dia seguinte voltariam a torturá-lo. A noite que se seguiu foi abominável: Renaud não conseguiu conciliar o sono a despeito de uma espécie de bálsamo que o carcereiro, curiosamente compassivo já que a vítima não via quem lhe poderia ter pago os cuidados, lhe passou pelos ombros, pelos joelhos e pelos tornozelos. O que o impediu de dormir foram os seus pensamentos e, por que não dizê-lo, o medo do que o esperava. O preboste falara de outros meios para o obrigar a confessar e ao rever o forno aceso com aqueles instrumentos terríveis, o jovem sentiu-se perto do pânico. Seria capaz de ter a força para recusar sempre a confissão que esperavam dele e que seria uma pura mentira, mas que poria fim ao seu sofrimento? O pior era, talvez, a falta de esperança e a incompreensão daquela brutal mudança da sorte de que era vítima. Renaud sabia que Camard o odiava porque queria ficar com os bens roubados, mas aquele Courtenay desconhecido, transformado, de repente, em seu inimigo? Porquê? Porque desagradava àquele grande senhor partilhar o seu nome com uma personagem tão pequena como ele? Ou porque o detestara a Rainha-Mãe logo à primeira vista? Era ela, sem dúvida, que se encarniçava para a sua perda, mas, mais uma vez, porquê?
Não conseguindo dormir, Renaud rezou como nunca antes, implorando que lhe fosse dada coragem para não ceder à dor, para não se renegar a si próprio, sobretudo, que tanto desejara igualar os melhores com o lorigão de cavaleiro vestido. Mais do que os outros, talvez aquele último, aquele jovem Rei que a lepra devorava vivo sem conseguir abatê-lo. Aquele jovem Rei que ele sabia, agora, ser seu parente e a quem, naquela hora de trevas e angústia, chamou em seu socorro como se fosse o seu santo patrono e porque, apesar de a Igreja não achar conveniente oferecer-lhe uma auréola, sabia que se produzira um milagre no seu túmulo (1).
- Sire Balduíno - suplicou ele - ouvi-me, vós que soubestes, um dia, escutar a voz de Thibaut de Courtenay, cujo sangue transporto comigo. Assisti-me na hora do suplício para que, pelo menos nessa última circunstância, eu me mostre digno, já que não me será dado cumprir o meu juramento de ir em busca da Verdadeira Cruz para a entregar ao Rei que me rejeita! Não conhecerei nunca o brilho do Sol no aço das espadas brandidas para glória de Deus. Não verei nunca a terra onde nasci e com que tanto sonhei. Vou morrer miseravelmente, o corpo deslocado e pendurado do patíbulo como o de um ladrão de galinhas. Fazei com que, pelo menos, os meus não tenham vergonha de mim quando me juntar a eles no reino de Deus!
Pouco a pouco, a prece transformou-se numa espécie de monólogo por vezes interrompido como se, numa conversa, ele estivesse a deixar falar a outra pessoa. O jovem tinha um pouco de febre e pensava ouvir uns sussurros cujo sentido não conseguia compreender... e que acabaram por adormecê-lo quando o dia já se aproximava.
Um sono breve mas benfazejo, do qual foi arrancado pelo barulho da fechadura, das chaves e das armas dos guardas que iam buscá-lo. Compreendendo que a hora terrível tinha chegado, Renaud conseguiu esconder o terror e levantar-se, mas cada passo era um martírio e dois dos ordenanças tiveram que lhe pegar por debaixo dos braços para o ajudar... Levaram-no assim até ao antro
(1) Ver Thibaut ou a Cruz Perdida.
do atormentador. Em vez de o estenderem no cavalete, deixaram-no cair no colchão de couro... demasiado perto do forno cujas goelas infernais devolviam o calor.
O preboste não estava presente. Apenas o escrivão estava no seu posto. Então, esperaram. No peito de Renaud, o coração batia com força, fazendo-lhe pulsar as têmporas e as artérias do pescoço. Ia, agora, enfrentar o pior: a tortura pelo fogo!
Quando a porta se abriu bruscamente, o jovem teve um sobressalto e o seu olhar entrou em pânico: o preboste acabava de entrar e o monge da véspera com ele. Foi este último que falou:
- Tínheis razão, sire preboste. Ele já está aqui. Para quê esta crueldade inútil?
- Eu não disse ontem que retomaríamos a questão hoje? A minha gente limitou-se a seguir as minhas ordens.
- Mas eu tenho outras e vós sabeis isso. Dizei aos guardas que peguem nele e que me sigam.
O monge foi obedecido. A autoridade daquele monge, incontestável, parecia ter-se imposto. No entanto, não passava de um irmão pregador, como o indicava o seu hábito branco com um cinto de couro sob uma cogula negra com capuz e sem mangas. O respeito que inspirava ao preboste era evidente. Talvez consciente de que a sua dignidade estava a ser posta em causa, mesmo aos olhos de um prisioneiro, este achou melhor explicar:
- Agradecei a Deus pela vossa sorte! O irmão Godofredo de Beaulieu, que é o confessor do nosso sire Luís, quer dar atenção à vossa miserável pessoa. Mas não penseis que ides ficar impune!
- Se vou comparecer perante a verdadeira justiça, agradecerei a Deus. Mas não se for para outras torturas.
- Falais de mais, os dois! - cortou o monge, secamente. Os guardas seguraram novamente em Renaud por debaixo dos braços para o ajudar a seguir o irmão pregador que, sem se preocupar com eles, caminhava à frente em grandes passadas, rezando em voz alta. Saindo do Châtelet pela rue Saint-Leufroy, atravessaram o rio. Para seu espanto, Renaud pôde constatar que a marcha se estava a tornar menos dolorosa. Era verdade que os seus dois ajudantes o seguravam com firmeza. No entanto, quando viu que iam transpor a entrada fortificada do palácio, teve um sobressalto. A ideia de que a Rainha Margarida o pudesse avistar de uma janela era-lhe insuportável, mesmo supondo que o estado miserável em que se encontrava o tornasse irreconhecível:
- Por favor, gostaria de tentar caminhar sozinho.
Um dos dois homens largou-o de imediato, mas o outro hesitou. No olhar desse havia alguma compaixão.
- Achais que sois capaz?
- Vou tentar - murmurou o jovem, apesar de o brusco abandono do primeiro guarda o ter feito cambalear.
O segundo largou-o progressivamente, mas não por completo. As suas articulações sensíveis gritaram, ao mesmo tempo que a fronte se lhe enchia de suor, mas Renaud endireitou-se, deu um passo e depois outro. Devido às pessoas que o olhavam sussurrando - como habitualmente havia gente no grande pátio! - ele queria, com todas as suas forças, fazer boa figura, mas era muito difícil e quando estavam a chegar à escadaria as suas pernas dobraram-se e teria caído se o guarda bom não o tivesse apanhado. Simultaneamente, uma mão sólida segurou-o do outro lado.
- Por todos os santos do paraíso, que se passa convosco, sire Renaud? Estais num estado!
Pedro de Montreuil saía dos alojamentos do Rei. Não hesitara em reconhecê-lo nem em socorrê-lo. Renaud não teve tempo de lhe responder. O irmão Godofredo, que acabara por se aperceber de qualquer coisa, encarregou-se disso:
- Este homem é acusado de assassinar os seus pais adoptivos, mas o Rei consentiu em vê-lo!
- Muito bem, vamos vê-lo juntos! Eu conheço este jovem e como me gabo de saber julgar um ser humano ao primeiro olhar, não acredito que ele tenha cometido uma coisa tão feia. Que lhe fizeram para ele estar tão magoado? Torturaram-no?
- Naturalmente: ele recusou confessar. Aliás continua a recusar...
O olhar de mestre Pedro falava por ele e dizia claramente que gostaria de ver o que faria o monge em tais circunstâncias, mas contentou-se em resmungar:
- Vamos lá pedir conselho ao Rei nosso sire! Colocando com precaução o braço de Renaud em redor do seu pescoço, mestre Pedro de Montreuil agarrou-o pelo tronco, quase erguendo-o no ar e fê-lo atravessar o palácio até ao jardim. Naquela manhã, com efeito, Luís, para melhor aproveitar o Sol, instalara-se sob a grande ramada que dava tanto encanto àquela parte dos seus aposentos. O Rei estava sentado num simples banco, enquadrado por dois dos seus conselheiros que se mantinham de pé por trás dele. O seu traje era tão simples como o que usava quando ia visitar os trabalhos, com a diferença de que o que usava naquele momento, assim como a sobreveste, era de tecido azul sem outro ornamento que não o alfinete trabalhado que fechava esta sob o pescoço. Para além disso, sobre os seus cabelos louros cortados a direito sob o lóbulo da orelha, o chapéu branco de penas de pavão fora substituído por um círculo dourado com três flores-de-lis. O Rei conversava com o conselheiro à sua direita quando a sua atenção foi desviada pela chegada do prisioneiro transportado pelo arquitecto. Este, com a sua franqueza habitual, não esperou que Luís abrisse a boca:
- Sire, nosso Rei - clamou ele - vede em que estado está este pobre jovem ainda há pouco tempo tão forte e tão corajoso!
- Vindes bem indignado, mestre Pedro - disse o Rei com um ligeiro sorriso. - Conheceis, portanto, este donzel, para vos armardes em seu defensor?
- Eu não o defendo, sire, socorro-o. O Rei sabe bem que não posso ver ninguém sofrer sem lhe valer, ao ponto de nunca passar pela praça de Greve para regressar a Montreuil quando há uma execução. E quando se trata de um amigo, ainda é pior.
- Esse homem é vosso amigo?
- Claro que é, sire! Há muito que nos vem ver à vossa bela capela em construção. Tudo o que diz respeito à construção e à arte de fazer viver as pedras, interessa-o! O meu primo João de Chelles poderá dizer-vos o mesmo. Se ele não fosse fidalgo, teria gostado de lhe ensinar o ofício.
- Talvez ele tivesse gostado, mas no estado actual das coisas, ou fica livre de qualquer suspeita, permanecendo um nobre donzel, ou morre! Fazei com que ele se sente ali, naquele tapete à minha frente! - Sire - protestou um dos conselheiros - não é uma atitude muito conveniente para um homem da sua condição perante o seu soberano!
Entretanto, Renaud libertara-se do abraço do arquitecto e conseguira pôr um joelho em terra, agarrando-se ao traje do Rei. - Meu senhor e meu Rei - disse ele inclinando a cabeça - não parei de gritar a minha inocência sem nunca ser ouvido e não fatigarei Vossa Senhoria repetindo-a. Peço humildemente o juízo de Deus!
O belo rosto tranquilo de Luís tornou-se severo:
- Isso quer dizer que não tendes confiança no do Rei que Deus consagrou?
Consciente de não ter nada a perder, Renaud teve um golpe de audácia, que certamente, iria fazer-lhe perder a cabeça:
- O Rei pode enganar-se a partir do momento em que aqueles que o informam só lhe fornecem a sua verdade. Deus vê tudo. Deus nunca se engana...
- Fostes insolente, mas dissestes bem e o Rei, que é um fiel servidor de Deus, não acha que estejais errado, mas pedir uma coisa dessas quando não vos tendes de pé! Como combatereis?
- Se Deus aprova a minha causa, dar-me-á forças...
Entretanto, do círculo de barões que se encontravam no jardim e que à chegada do prisioneiro se tinham aglomerado em semicírculo em redor de Luís IX, saiu um homem:
- Combater? Contra quem? Contra mim, não! Um Courtenay não se mede com um aventureiro de nascimento duvidoso e que nem sequer é cavaleiro!
- Chega, meu primo! - exclamou Luís. - Não sejais tão ardente numa defesa que ninguém vos pediu: tanto mais que teríeis a tarefa facilitada com um adversário que já está ferido...
- Não leveis isso em linha de conta, sire!- pediu Renaud. - O Rei sabe que com a ajuda de Deus um moribundo pode combater. Coisa que eu ainda não sou...
- O Senhor nem sempre faz ouvir o seu julgamento através do barulho das armas - continuou Courtenay. - Para a gente da Igreja, para as mulheres e para o povo, há o ordálio. Pela água e pelo fogo. É o que este impostor merece. Por que não o reclama ele? Se Deus está com ele, o rio não o afogará e o ferro em brasa não o queimará!
- Muito bem, reclamo! - exclamou Renaud, disposto a tudo para acabar com aquele episódio que ele achava degradante.
- Paz! - impôs o Rei, cujo rosto ficara vermelho de cólera. - Eu não gosto do ordálio... nem que, por seu intermédio, se tente forçar a mão do Senhor!
- No entanto, sire meu marido, tendes de tomar uma decisão! Até duas: ou esse infeliz é um Courtenay, ou não é. Ou é um assassino, ou é uma vítima inocente de um bailio demasiado rapace... como acontece, por vezes!
Encantadora, num vestido sussurrante de cendal amarelo-claro bordado com um galão de fios dourados semelhantes ao que lhe rodeava o toucado, a Rainha Margarida aproximava-se seguida da jovem Sancie de Signes, que trotava atrás dela com um ar importante.
- Vós aqui, minha amiga? - perguntou Luís sem esconder a contrariedade. - No entanto, sabeis que não gosto de vos ver quando exerço a minha justiça.
- Acontece que, justamente, ela me parece bem comprometida, a vossa justiça, meu querido sire, e eu penso que é meu dever dar-vos uma ajuda mesmo ligeira, já que tenho essa possibilidade. Além disso - acrescentou ela com uma bonita risada impertinente - eu também sou Rainha e como a ausência da nossa boa mãe me permite substituí-la... na medida das minhas fracas posses...
Deus, como ela era bela! Esquecendo a sua miséria, Renaud, maravilhado, só pensava em adorá-la. Se tinha de morrer, pelo menos morreria depois de a ver de novo! E, mais uma vez, Margarida parecia disposta a assumir a sua defesa. O seu marido, no entanto, parecia menos encantado:
- Portanto, dizeis que podeis esclarecer-nos?
- Pelo menos num ponto, meu querido senhor. Trago comigo o irmão João de MiUy, que vós bem conheceis porque é ao mesmo tempo vosso tesoureiro e tesoureiro do Templo. Na ausência do irmão João d'Aubon, ele traz o documento que atesta, pelo menos, o nascimento deste rapaz.
Decididamente, era um anjo e Renaud pensou que o céu se abria quando viu chegar o monge templário que conhecera levemente por ocasião da sua passagem pela casa-mãe de França. Este tinha na mão um rolo de pergaminho, que o jovem reconheceu de imediato. O documento foi lido com toda a atenção e depois Luís perguntou:
- O Grão-Mestre de França teve conhecimento dessa... confissão?
- Recebeu-a das mãos do irmão Adam Pellicorne, que era um dos mais respeitados sábios da Ordem. Aquilo que o irmão Adam afirmava, não podia ser contestado. Assim, ao saber que o seu protegido encontrava obstáculos no seu caminho, confiou o pergaminho, com o acordo do jovem, ao cartulário da Ordem para que ficasse em segurança, já que é tudo o que este infeliz possui no mundo. A acreditar no que vejo, sire, não tardou a necessitar de socorro...
- Não digo que não, mas gostava de saber quem vos falou nele?
- A Rainha, que mandou um dos seus escudeiros prevenir-me.
- E vós, Madame? Quem vos preveniu?
- Uma donzela da dama de Coucy. Uma tal Flore d'Ercri. Ela escreveu-me um bilhete antes de ir para Coucy, no qual dizia o que acontecera ao donzel cuja defesa eu assumira perante Madame Branca...
O tom de Margarida indicava claramente que, para ela, a detenção só podia ser a continuação da má vontade da Rainha-Mãe. Luís franziu o sobrolho:
- Por que razão ousou essa rapariga escrever-vos quando isso era incumbência da sua senhora?
- Oh, ela explica isso: ela sabia que não podia receber qualquer ajuda da dama Filipa. Esta só se interessa por ela mesma. E a partir do momento em que o seu donzel não agradava à única pessoa que demonstrava por ela alguma amizade, viu nisso a oportunidade para se livrar dele. Tanto mais que não consegue esquecer a perda do seu donzel precedente, assassinado há pouco quando regressava ao palácio. Não creio, sire meu marido, que possais reprovar a minha atitude por ter acedido ao pedido de uma das vossas súbditas - concluiu ela com um sorriso encantador.
- De facto, minha amiga, e agradeço-vos pelo cuidado que tivestes. Irmão João - acrescentou o Rei, devolvendo o pergaminho ao tesoureiro - aqui tendes aquilo que tivestes o trabalho de me trazer. O seu conteúdo não pode ser contestado e nós declaramos que este jovem deve ser reconhecido como pertencendo ao ramo sírio da grande casa de Courtenay... Dito isto...
- Dito isto, sire - interveio com audácia o príncipe Pedro - não deixa de ser verdade que, se este rapaz não pode ser acusado de parricídio, continua a ser um criminoso e eu, chefe de nome e das armas dessa nobre casa, oponho-me formalmente a que o meu ilustre nome seja atirado como alimento ao carrasco! Por outras palavras, sire, nego a Renaud o direito de usar o mesmo nome que eu!
- O crime não foi provado, meu primo. O irmão Godofredo, meu confessor aqui presente e que a Rainha Branca, a minha nobre mãe, tem em alta estima, seguiu o interrogatório. Mau grado a tortura, o acusado continuou a proclamar a sua inocência. Foi por isso que o irmão Godofredo desejou que o ouvíssemos.
- Onde é que ele esteve? No cavalete? Foi esticado algumas vezes? Os atormentadores que o trabalhem bem, sire, e vereis como ele confessa.
O “oh” indignado da jovem Rainha perdeu-se na risada de uma nova personagem que acabava de fazer a sua entrada na sombra da ramada, saudado profundamente, aliás, por todos os assistentes depois do instante de surpresa provocado pela sua chegada inesperada. Ao mesmo tempo, a voz da personagem elevava-se, trocista, um pouco arrastada e um pouco nasalada, mas não desagradável:
- Em todo o caso, não é preciso fazer-vos torturar, primo Pedro, para vos fazer confessar que sois um perfeito mentiroso... além de usurpador! Quando é que fostes entronizado como chefe da nossa família?
Luís IX levantara-se precipitadamente para abraçar o recém-chegado com um prazer visível:
- Bem-vindo, sire meu irmão! E tanto mais que, sem notícias, pensávamos que ainda estáveis em Constantinopla. Que bom vento vos traz?
- Sempre o mesmo desde há muitos anos, sire meu irmão! Percorro os grandes caminhos à procura de soldados e de ouro. Mas, por agora, digamos que foi um vento de justiça, porque espero ter a hipótese de arrancar uma vítima às garras dessa ave de rapina. Posso saber, caro primo, o que vos fez este infeliz? Ter-vos-ia ele subtraído algumas terras?
Renaud já reconhecera a estranha personagem que vira diante da casa de mestre Albert e que pretendia ser Imperador. Aparentemente era verdade e como parecia animado de uma certa animosidade contra aquele Courtenay em quem via um inimigo, a sua presença era mais do que bem-vinda. A personagem em questão lançou-se, aliás, como resposta, numa descrição bastante confusa do assunto, à qual Balduíno II de Constantinopla pôs fim rapidamente:
- Eu sei o que entendeis por espoliação porque quisestes, recentemente, apoderar-vos do meu marquesado de Namur porque pensáveis que nunca mais me veríeis, mas o que sobressai é terdes tomado parte, sabe Deus porquê, num assunto onde não tínheis nada a ganhar... senão atribuir à vossa mulher as terras daqueles infelizes Courtils. Sire, meu irmão - acrescentou ele virando-se para o Rei - devíeis, talvez, mandar torturar...
- A mim? - perguntou o outro, sufocado.
- Não! Aquele bailio, que me parece exalar um perfume de desonestidade, como acontece, por vezes, com os seus confrades quando se trata de encher a bolsa.
- É um bom conselho. Que achais, irmão Godofredo?
- É verdade que aquele Jérôme Camard parece muito empenhado na perda do acusado...
- Era o que eu dizia! Acrescento que acabo de chegar de Courtenay, onde tinha um assunto pendente há alguns anos e que correm na região uns rumores estranhos acerca desse Jérôme Camard! E se me é permitido um conselho, meu caro Luís, entregai esse donzel à dama de Coucy sem mais demoras. Aposto a minha coroa em como ele está inocente...
- Não arriscaríeis grande coisa, porque não vale grande coisa, essa vossa coroa, sire meu primo - troçou Courtenay com azedume. - Aliás, como sabeis que este vadio pertence à dama de Coucy?
- Acontece que os vi juntos há pouco tempo quando, vindo precisamente de Namur, passei por Paris a caminho do meu feudo ancestral. Satisfeito?
O outro aprestava-se para retomar a polémica quando o Rei se interpôs secamente:
- Paz mais uma vez, meu primo! É a nós que compete resolver esta questão e pedimos-vos que não vos metais. O rapaz pertence, de facto, à casa da dama Filipa, mas esta recusou-lhe o seu apoio, como acabamos de saber...
- Sire, por piedade! Imploro ao Rei que deixe a Deus o cuidado de resolver por ele! Que me dêem uma arma para enfrentar esse bailio, ou que me atirem ao rio (1)! Eu sou uma personagem demasiado humilde para que tão altos senhores discutam por minha causa! Se Deus não me conceder a Sua graça, morrerei e pronto! Mas eu tenho fé na Sua misericórdia e na minha inocência!
- Por que não? - exclamou Courtenay. - O ordálio é uma coisa boa, mas ao da água prefiro o do fogo!
- Que monstro de crueldade vós sois, messire de Courtenay! - exclamou a Rainha Margarida. - Não aceiteis, sire meu marido! O prisioneiro já está muito ferido, parece-me...
- Tendes a força de Deus em tão pouca conta, Madame? - reprovou-a Luís. - Sabei que ela pode fazer despoletar a verdade, mesmo que aquele que é submetido ao ordálio esteja moribundo.
- Não duvido nem por um instante e vós sabei-lo, meu doce sire, mas faço apelo à vossa piedade...
(1) O ordálio pela água consistia em atirar ao rio o paciente fortemente atado. Se ele conseguisse flutuar, era dado como inocente. O que não era frequente. No ordálio pelo fogo, era-lhe colocado, a uma certa distância das mãos, um ferro em brasa, sem que a pele ficasse queimada.
Renaud sentiu-se insultado pela palavra:
- Eu não quero dever a vida à piedade do Rei, mas sim à sua justiça! No entanto - acrescentou ele num tom mais suave - agradeço à Rainha o seu gesto. Se eu viver, a minha vida pertence-lhe...
- Eu não o entendo assim! - cortou o Imperador. - O último Courtenay nascido na Terra Santa parece-me uma raridade e, como tal, deve ser conservada. Além disso, a sua coragem agrada-me. Dai-mo, meu real irmão! Eu levo-o e responsabilizo-me por ele!
Luís contentou-se em olhar para ele, afastou-se alguns passos e foi ajoelhar-se diante de uma cruz de pedra erguida no meio do jardim. O Rei rezou durante muito tempo, mas quando se levantou o seu rosto tinha de novo a deslumbrante serenidade que tanto atingia aqueles que eram levados à sua presença.
- É vosso! - disse ele a Balduíno II. - Que o desatem! - ordenou ele com a voz mais alta antes de regressar ao seu interlocutor. - Vamos dar ordens para que o levem para vossa casa. A propósito, onde estais alojado?
- No albergue da Image-Notre-Dame - respondeu o Imperador, rindo. - Estou um pouco apertado, mas o séquito de um príncipe errante não é numeroso. Mas possui um bom médico grego.
- Tão perto e eu sem saber nada? Sabeis que me ofendeis? Por que não fostes, como é vosso hábito, alojar-vos na minha residência de Vincennes? Achai-la má?
- Sabeis bem que não. A vossa hospitalidade é sempre muito... real! Mas eu só estava de passagem a caminho de Roma para falar com Sua Santidade o Papa e se entrei no palácio foi devido a um escrúpulo: o pensamento, justamente, de vos ofender se soubésseis da minha presença sem que eu viesse abraçar-vos, sire meu irmão...
- Disso podeis ter a certeza. Creio que teria muita dificuldade em vos perdoar.
- Oh, o cristão que sois não vo-lo permitiria!
- Não estejais tão certo da minha clemência. Por vezes, tenho algumas reticências. É o que acontece convosco, Renaud de Courtenay. O Imperador, ao reclamar-vos como seu e respondendo por vós, salva-vos, provavelmente, a vida, mas não ficais absolvido nem livre de suspeita. Assim, enquanto a verdade não for conhecida, enquanto o mistério da morte do senhor de Courtils e da sua mulher não for esclarecido, proibimos-vos de aparecer diante de nós no séquito do nosso irmão o Imperador. Ficais, também, proibido de pisar o solo de França, exceptuando o de Courtenay, que pertence ao vosso senhor. Estamos entendidos?
- Sire - balbuciou o jovem, esmagado com aquela expulsão - o meu único desejo sempre foi o de servir o Rei e...
- O único serviço que esperamos de vós, até prova em contrário, é a obediência... absoluta! Está compreendido?
- Sim, sire... e agradeço ao Rei a sua misericórdia. Aquelas últimas palavras saíram com dificuldade, já que
Renaud não pedira piedade, pedira justiça. Se fosse preciso, através dos piores métodos. A sua fé em Deus, a que lhe inculcara a dama Alais, era tão profunda, que estava persuadido de que conseguiria a Sua ajuda para declarar a sua inocência. Era verdade que estava salvo e que as dores, devidas à sua passagem pelo cavalete, não durariam, mas a vida que se abria diante de si não o tentava. Que iria ser dele? Um doméstico daquele soberano bizarro, mais nada! As esporas de cavaleiro nunca seriam apertadas nos calcanhares de um homem sobre o qual pesava a sombra de um assassínio e ao pensar naquilo apoderou-se dele um profundo desespero. Agora, mesmo que conseguisse encontrar a Cruz perdida - e naquele ponto, pelo menos, sabia que Constantinopla era muito mais perto da Galileia! - não teria o direito de ir a França depositá-la nas mãos de Luís. E quem poderia dizer se, admitindo que o conseguisse, não o acusariam de entregar ao Rei uma relíquia falsa?
Ao abandonar o jardim, o seu último olhar foi para a Rainha Margarida. A ideia de nunca mais a ver contribuía muito para o seu desgosto e quando ela assumira a sua defesa, sentira-se invadido por uma grande felicidade porque era a prova de que ela acreditava nele e na sua inocência, mas agora, que estava livre de perigo, ela já não estava interessada. Talvez não tivesse visto no seu drama senão uma boa ocasião para abrir uma brecha no poder de uma sogra abusiva que devia detestar? A partir do momento em que escapava às garras da Rainha Branca, tornava-se de novo num anónimo, num homem qualquer! E ainda ficou mais convencido disso quando ela nem sequer lhe concedeu um olhar à sua saída: a jovem Rainha abandonara a sombra da ramada e caminhava por uma alameda ensolarada, sorrindo para a sua detestável pequena dama de companhia. A luz quente fazia resplandecer o ouro do seu vestido e ela parecia uma estátua da Dama do Céu quando as chamas das velas a iluminam. Mas a Virgem Maria parecia, naquele instante, infinitamente mais acessível àquele infeliz do que a Rainha de França, que nunca mais veria... nem sequer em efígie, porque o rolo de pergaminho, que ele considerava como o seu único tesouro, ficara na residência de Coucy, cosido no interior da bela túnica cor de violeta destinada aos momentos em que escoltava a sua dama ao palácio ou a uma cerimónia qualquer. Não a vestira para aquela missa da manhã e, num certo sentido, fora uma sorte: Deus sabe o que teria acontecido se a imagem tivesse sido encontrada com ele por ocasião da sua detenção. As parecenças com a Rainha Margarida só teriam agravado o seu caso. No entanto, não tinha esperança nenhuma de reencontrar a sua bela imagem. Só esperava que ela não caísse em mãos demasiado indignas!
Enquanto pensava naquilo, ao dirigir-se aos alojamentos do seu novo senhor na garupa do cavalo de um dos dois oficiais que esperavam o Imperador no pátio, não se sentia muito feliz por ter sido arrancado ao carrasco pela segunda vez.
O jovem agradecera, no entanto, como era sua obrigação, mas com tanta tristeza na voz que Balduíno II não conseguira deixar de sorrir a despeito da gravidade do momento:
- Que idade tendes?
- Dezoito, sire...
- E antes de sofrerdes o que acabais de sofrer, éreis assim tão infeliz, ao ponto de a vontade de viver vos ter deixado?
- Oh não, sire! Bem pelo contrário. Até à morte daqueles a quem eu chamava pais, eu era muito feliz, sem me preocupar com o futuro, que me parecia traçado, e cheio de esperança.
- E essa esperança, já não a tendes?
- A menos que a verdade acerca da morte dos que amava seja conhecida, não vejo que futuro digno desse nome possa doravante esperar!
- Junto de um imperador falido, quereis dizer? Mas um imperador falido também pode conferir o grau de cavaleiro.
- Não a um homem cuja honra é suspeita, sire. O Imperador é infinitamente bom para mim e eu quero servi-lo o melhor que puder, com coragem e fidelidade, ponha-me ele onde quiser. Nem que seja...
- Na criadagem? Ora vamos, meu rapaz, parai com esse desarrazoado! É compreensível, na vossa idade, quando se perde as ilusões e quando se sofre tanto, mas esqueceis a razão pela qual decidi arrancar-vos àquele atoleiro em que estáveis quase a afogar-vos: vós sois um Courtenay, como eu, e o único, talvez, que merece a minha amizade no ramo francês.
- Mas eu não lhe pertenço.
- É verdade, esquecia que éreis uma excepção. Pelo que vos felicito, porque se pode construir com solidez a partir de uma excepção. Mais uma razão para não verdes o horizonte demasiado sombrio. Ainda sofreis muito?
- Não muito. Parece-me que o meu corpo está menos pesado e mexo-me com mais facilidade.
- O meu médico põe-vos bom. Ao contrário da maior parte dos seus confrades, é um homem hábil, com mãos milagrosas e tem um grande saber. Talvez demasiado...
Como ele julgou melhor não explicar o que entendia por aquilo, Renaud não ousou perguntar mais nada. O jovem só pensava numa coisa: chegar a um sítio onde se pudesse lavar, já que a sua passagem pela ramada do Rei e o encontro com Margarida lhe tinham feito sentir mais cruelmente o seu estado miserável. Felizmente, o trajecto não foi longo.
O albergue Image-Notre-Dame, construído durante o reinado do Rei anterior, ainda era novo. Situado na praça Greve, de frente para a Casa dos pilares, gozava de uma excelente reputação, graças à qual era geralmente escolhido pelos senhores de passagem ou pelos viajantes estrangeiros. Um pormenor que Renaud devia a Gilles Pernon, que ia lá quando desejava comer bem, já que a residência Coucy se encontrava suficientemente perto para tornar, por vezes, a tentação irresistível. Ali podia encontrar-se, portanto, alojamento conveniente, boa carne e até divertimento, quando havia uma execução capital na praça. Sem contar com o movimento da própria Greve e daqueles cujo ofício os ligava ao rio.
Sob o nome de conde de Céphalonie, o Imperador de Constantinopla ocupava a maior parte dos apartamentos do primeiro andar com o seu séquito, que se compunha de um certo Guillain d'Aulnay que tinha o título pomposo de Marechal do império, de um capelão chamado Teodoro destacado da capela imperial de Blachernes e de um cavaleiro, Henrique Verjus, que fora o companheiro de infância de Balduíno. Ambos desempenhavam habitualmente o papel de mensageiros e até de embaixadores, quando se tratava de comunicar com o Rei de França e com a sua mãe, mas quando se deslocava em pessoa, o Imperador gostava de os ter por perto porque conheciam bem a Europa ocidental e sobretudo a França, onde tinham família. Acrescia o médico Hilarion Kalliparios, um cipriota taciturno, teimoso e malcriado, que não dizia mais de três palavras ao mesmo tempo, salvo quando conseguia deitar a mão a um jarro de malvasia (1), cujo conteúdo possuía o poder de desencadear fluxos de uma eloquência perfeitamente incompreensível para quem não tivesse visto a luz do dia no interior de um triângulo traçado entre Corfu, Constantinopla e o Héraklioncetense.
Kalliparios apoderou-se de Renaud como se lhe quisesse mal pessoalmente, puxando-o, amassando-o, batendo-lhe aqui e ali, auscultando cada músculo, cada tendão e cada osso durante uma meia hora que foi quase tão penosa como a passagem pelo cavalete. Quando aquilo acabou, untou os pontos sensíveis com uma pomada de odor picante, envolveu o conjunto numas ligaduras de linho e, sem ter dirigido ao paciente uma única palavra, mandou-o deitar-se, proibindo-o de se levantar antes do dia seguinte. Este não teve forças para protestar: nunca se sentira tão cansado
(1) Vinho grego célebre, doce e licoroso.
nem tão desejoso de dormir. O jovem mergulhou na água profunda do sono com um deleite semelhante ao que sentira no Verão precedente, quando se banhara no Ouanne, o belo rio cheio de salgueiros tão próximo da residência dos Courtils, onde apanhara o hábito de mergulhar quase todos os dias...
Quando emergiu, era dia claro e uma mão vigorosa e cautelosa sacudia-o: a mão de GuUlain d'Aulnay, cujo leito partilhara mesmo sem se dar conta. Renaud olhou, primeiro com desconfiança, para aquele rosto desconhecido, alongado por uma barba curta cor de castanha, cuidadosamente aparada e na qual um longo nariz, curiosamente arrebitado na ponta, ocupava a maior parte do espaço, ultrapassando atrevidamente o longo e abundante bigode. Os olhos castanhos brilhavam de alegria:
- Dormistes bem? - perguntou o recém-chegado depois de se ter apresentado. - Suponho que sim! Desde ontem que não mexeis um dedo.
- Sim... obrigado! Até parece que... que já não me dói nada - acrescentou ele, esboçando com prudência o espreguiçamento a que estava habituado.
- Isso não me espanta. O curandeiro é capaz de verdadeiras maravilhas quando está de bom humor. Aparentemente, estava! Dito isto, se vos acordei foi para vos dizer que vamos partir em breve, mas também que uma dama pede para vos ver.
- Uma dama?
- Ou uma donzela... Se bem que, ao olhar para ela, não aposte na sua virtude! Pelo menos nos olhos, não tem frio. Que são bem bonitos, aliás, tal como o resto da sua pessoa. Por isso, vesti-vos... a menos que a queirais receber... na cama?
- Oh meu Deus, não!
O jovem levantou-se com mais agilidade do que pensava ter e enfiou a roupa, simples mas conveniente, que alguém caridoso colocara aos pés do leito. Aulnay ajudou-o e depois eclipsou-se, dizendo que ia buscar a visitante. Um instante mais tarde, Flore d'Ercri enchia a pequena divisão com o seu perfume. A jovem dirigiu a Renaud um breve sorriso, que não lhe atingiu os olhos.
- Estais melhor, pelo que vejo!
- É verdade e ainda ontem pensava que fosse impossível, salvo por meio de uma libertação... definitiva. Mas, pensava que tínheis partido?
- Não. A vossa detenção aterrorizou a dama Filipa, que se afastou apressadamente, mas, no último momento, consegui convencê-la a deixar-me para trás. O pretexto foi o de procurar alguns ingredientes que não havia em Coucy e dos quais eu necessitava para o seu tratamento. E ela aceitou...
- Ela terá tido medo de ser atingida pela mesma desgraça da Rainha Branca? - disse Renaud com desprezo. - Mas foi muito generoso da vossa parte terdes escrito à Rainha Margarida, pedindo-lhe que assumisse a minha defesa. Por que o fizestes?
Flore encolheu os ombros:
- Ela já se tinha interessado por vós uma primeira vez, por que não uma segunda?
- Se calhar, foi para contrariar a sogra.
- Talvez... e por que não por causa disto?
A jovem tirou da sua bolsa um objecto que Renaud reconheceu com alguns batimentos apressados do seu coração: o pequeno rolo de pergaminho, que ele lamentara tanto ter perdido. Flore estendeu-lho, acrescentando e sem esconder alguma amargura:
- Encontrei-o na vossa túnica... e compreendi por que razão queríeis tanto servir o Rei! É preciso que ela goste muito de vós, para que tenhais a sua imagem...
- Essa imagem não é dela!
- Como, não é? É a sua imagem... Além disso, esta mulher tem uma coroa real...
- É verdade... e eu adoro essa imagem. Mas essa mulher não é quem vós pensais! Juro, pela honra que vós salvastes.
- Quem é, então?
- Não me pergunteis. Não tenho o direito de vos dizer. Perdoai-me! Entretanto, como soubestes que eu estava aqui?
- Com a ajuda de Gilles Pernon, que se tornou vosso amigo, nunca mais vos perdi de vista. Se o carcereiro do Châtelet cuidou um pouco de vós, foi porque nós pagámos.
- Muito obrigado, nesse caso! Mas, por que quisestes ajudar o estrangeiro que eu sou?
Ela encolheu de novo os ombros, mas desta vez com mais desenvoltura:
- Por minha fé, não sei. É preciso dizer que me agradais... o egoísmo da dama Filipa, por vezes, é insuportável. Por fim... o velho Pernon estava tão desolado com a vossa infelicidade! E também é preciso dizer que, ao rejeitar-vos, a baronesa faltou à lei feudal. O seu marido tomou-vos a seu cargo e isso acarreta deveres de parte a parte. Ela recusou os seus sem sequer pedir a opinião do barão Raul e Deus sabe o que ela lhe terá contado. Mas eu encarregar-me-ei de restabelecer a verdade.
- Não façais nada, peço-vos! Graças a vós, à Rainha e ao socorro do Imperador, estou fora de perigo.
- Mas fostes banido, porque o Rei não quis dar um parecer que desagrada à sua mãe, quando bastava olhar para vós para ver que não podíeis ter cometido nenhum dos crimes de que vos acusam. É necessário que Raul de Coucy possa defender a vossa causa. É por isso que lhe vou dizer o que sei...
- O seu casamento com a dama Filipa já não vai nada bem. Não agraveis o seu desentendimento por minha causa. Eu parto dentro de uma hora e talvez nunca mais nos vejamos. Constantinopla é longe!
- Ninguém diria: o vosso Imperador passa metade da vida nos caminhos do Ocidente. E, por agora, só ides até Roma. Ora, eu gostaria muito de vos ver de novo. Por isso, deixai o caso comigo!
- Não vos posso impedir e confesso que me é penoso exilar-me, mas não façais nada que possa comprometer um equilíbrio frágil. Aliás, o barão, provavelmente, não acreditará em vós...
Dessa vez, ela desatou a rir com uma alegria que aqueceu o coração melancólico do jovem.
- Não aposteis contra mim, já que perderíeis, meu amigo! E agora desejo-vos boa viagem e uma boa vida nos dias que ides viver. Infelizmente... longe de nós! - acrescentou ela com uma súbita tristeza que lhe levou as lágrimas aos olhos.
Ele aproximou-se dela e segurou numa mão que sentiu tremer enquanto a beijava:
- É bom, donzela Flore, saber que deixo aqui uma amiga... uma amiga que espero tornar a ver um dia!
Ela retirou a mão e, aproximando-se bruscamente, beijou-o na boca, virou-se, dirigiu-se para a porta, pôs a mão no puxador e virou-se:
- Aqui, que Deus nos ouve, declaro que seremos ambos atendidos! Entretanto, um conselho: escondei cuidadosamente essa imagem que vos entreguei. O que eu já lamento, aliás, porque ela pode ter o mesmo peso do gládio do carrasco! O Rei ama a sua mulher, mas, por mais religioso que seja, cheio de Padres-Nossos, creio-o capaz de sentir ciúmes como qualquer mortal! Tende cuidado!
- Prometo-vos!
Um instante depois já ela tinha desaparecido. Apenas o seu perfume perdurava e Renaud aspirou-o durante alguns segundos, pensando que, no fim de contas, aquela donzela d'Ercri era uma rapariga bem bonita!
AS ATRIBULAÇÕES DE UM PAPA
Se Renaud imaginava que iria viver doravante na longínqua e um pouco mágica Constantinopla, perdido na corte abundante e dourada sob a batuta de um Basileu à francesa, cometia um grande erro. Primeiro, não foram até às margens do Bósforo, já que Balduíno não suportava a ideia de regressar a casa de mãos vazias.
O Imperador esperara muito daquele longo périplo começado no coração do Inverno no seguimento de um sonho, no decurso do qual uma personagem solene e barbuda agitava diante de si uma pedra mágica e cintilante, de onde corria um fluxo de ouro como de uma fonte milagrosa. Tendo-se informado e depois de consultar adivinhos e astrólogos, que pululavam na antiga Bizâncio como as ervas daninhas deixadas pelo último cerco, concluíra que o famoso Alberto de Colónia, conhecido pelo nome de Alberto, o Grande, era o homem providencial que lhe aparecera no sonho e que, possuindo a famosa Pedra Filosofal, era o único capaz de pôr fim ao vazio perpétuo dos seus cofres... Precisava, portanto, de encontrar um pretexto para deixar Constantinopla sem que a jovem Imperatriz Maria e o povo se acreditassem abandonados.
Foi o Papa que lho forneceu ao pedir-lhe que fosse assistir à sua reconciliação com o impossível Frederico II de Hohenstau-fen, o Imperador alemão que preferia a Sicília ao seu país e a arte de viver muçulmana à dos cristãos... Partiram, portanto, com uma grande equipagem, para Roma e depois, após a cerimónia do regresso à graça de Deus do soberano excomungado, muito mais discretamente para o vale do Reno, deixando no palácio de Latrão o grosso da escolta. A vantagem era a dobrar: viajariam mais leves - e incógnitos - deixando para trás outras tantas bocas vorazes que Sua Santidade se encarregaria de alimentar.
Infelizmente, quando chegaram a Colónia, Balduíno soube que Alberto, o Grande desertara das margens do Reno e que fora para as do Sena para ali dispensar os seus ensinamentos ao célebre colega Saint-Jacques, ao mesmo tempo que iniciava uma obra enciclopédica destinada a vulgarizar a ciência greco-árabe.
Renaud estava bem colocado para saber a razão da visita à casa solitária da rue Perdue e das necessidades cada vez maiores do infeliz soberano. O jovem também sabia que, se regressavam a Roma, não era para recuperar uma escolta que se tornara incómoda, mas sim para tentar comover Inocêncio IV para os problemas inextricáveis de tesouraria a despeito das “ajudas” concedidas pelo Rei de França. Ajudas insuficientes para um homem que necessitava de enormes quantidades de ouro, susceptíveis de recrutar um exército sólido que permitisse acabar de uma vez por todas com o concorrente instalado na sua vizinhança, aquele João Vatatzès que se intitulava Imperador de Nicéia e que arrebanhava tudo o que era grego para tentar recuperar o trono bizantino.
No entanto, graças à generosidade de Luís IX, que gostava muito do seu jovem primo apesar de o achar um cabeça no ar, puderam, pelo menos, viajar de maneira agradável. O tempo estava bom, suave, e Renaud, decorado com o título de strator- escudeiro do Imperador, o que era mais lisonjeador do que donzel de uma castelã lacrimosa - recuperou o gosto pela vida, muito naturalmente a curiosidade habitual e o prazer da descoberta. Viu, pela primeira vez, o Mediterrâneo, cujas correntes azuis o encantaram.
E também a esperança, suscitada pelo Imperador, de que Sua Santidade aceitaria, talvez, ouvi-lo em confissão e que o desobrigaria, fazendo assim tábua rasa das acusações feitas contra ele e abrindo, assim, um novo caminho para aquela cavalaria com que o jovem tanto sonhava. E que não teria valor, aos seus olhos, se não lhe fosse conferida pelo Rei de França que o tinha condenado. Era, evidentemente, uma esperança bem fraca, já que o Sumo Pontífice tinha, sem dúvida, mais que fazer do que interessar-se pelas infelicidades de um bastardo, mas Balduíno pretendia que não era impossível, já que fazia tenção de ser ele mesmo a suplicar-lhe...
A medida que os dias iam passando, Renaud ligava-se cada vez mais ao seu Imperador errante que começava a conhecer através de Guillain d'Aulnay, que lhe ganhara amizade a despeito de uma diferença de idade de quinze anos. Aquele homem jovem, inteligente, culto e indulgente, contou-lhe, primeiro, o que fora a vida do seu príncipe de vinte e cinco anos, quinto filho daquele Pedro de Courtenay em cuja cabeça caíra, qual chaminé num dia de grande vento, a coroa imperial quando já tinha ultrapassado os sessenta anos, quando era pai de treze filhos, coroado em Roma pelo Papa Honório III e que se deixara matar em Epiro antes de ter tido a felicidade de admirar a sua capital. Morrera em caminho, ao mesmo tempo que a sua mulher Iolanda de Hainaut e várias das suas filhas prosseguiam por mar a viagem até Constantinopla, onde a nova Imperatriz chegou mesmo a tempo de dar à luz Balduíno, antes de saber que era viúva. Mas o recém-nascido viu a luz do dia na púrpura imperial de Blachernes e, por isso, podia chamar-se “Porfirogeneta”, um título de que se sentia muito orgulhoso. No entanto, ainda não era Imperador, já que a coroa devia ir para o filho mais velho de Pedro, Filipe, que ficara em França, mas este nem quis ouvir falar de Constantinopla, preferindo de longe as suas terras nas Ardenas àquele país quase lendário que ficava no fim do mundo e que era povoado por gente que, se tivesse nascido alguns séculos mais tarde, ele teria apelidado de “metecos”... O segundo filho de Pedro professara e, portanto, estava fora de serviço. A coroa foi parar, assim, com toda a naturalidade, ao terceiro, Roberto, que, esse, aceitou e que foi coroado, dessa vez, em Santa Sofia pelo patriarca Mateus. Mas esse via sobretudo, na vida real, uma boa ocasião para levar uma vida divertida. Príncipe poltrão e sem talento, acumulou asneiras, das quais a maior foi trocar uma princesa grega pela bela filha de um cruzado sem grande importância, Balduíno de Neufville. Roberto ficou tão apaixonado que ultrapassou todos os obstáculos para lhe oferecer a coroa e o anel nupcial. Infelizmente, a bela Beatriz já estava noiva de um cavaleiro borgonhês, que não suportou a ideia de ser abandonado. O cavaleiro conspirou com alguns barões tão descontentes como ele e, uma bela noite, a tropa entrou na câmara nupcial, imobilizou Roberto, apoderou-se de Beatriz, cortou-lhe o nariz e, para cúmulo, fechou a dama de Neufville, a mãe de Beatriz, num saco de tela antes de a atirar ao Bósforo. Após o que libertaram Roberto, coberto de vergonha e desprezado por todos, que se foi queixar ao Papa e que acabou por morrer de desgosto em 1228.
A coroa de Constantinopla passou, então, para o quarto filho de Pedro, Henrique, que a recusou sem hesitar, de tal modo a aventura o escandalizara. Restava, portanto, o quinto, por outras palavras, o pequeno Balduíno.
O pobre petiz não conhecera o pai e a mãe morrera miseravelmente, meio louca de dor, quando ele tinha dois anos. O Imperador Roberto, por pouco interessante que fosse, amou-a muito. Uma ternura que ele partilhava com a sua irmã Maria de Courtenay, viúva muito cedo do Imperador de Nicéia. Instalada em Constantinopla, foi ela, sobretudo, que se encarregou da educação de Balduíno. Entregue aos melhores mestres, este aprendeu várias línguas, entre as quais o grego, aprendeu Matemática, História e tudo o mais que um rapaz, chamado a reinar sobre um grande povo, tinha de saber. Após a morte de Roberto e como a reserva de filhos estava esgotada entre os Courtenay, casaram-no com Maria de Brienne, segunda filha do famoso João de Brienne que fora Rei de Jerusalém e que fora expulso pelo Imperador alemão Frederico II, depois de este ter casado com a sua filha mais velha, Isabel de Brienne-Jerusalém (1). O velho guerreiro roía o freio em Itália e recebeu com algum prazer a ideia de servir de tutor do jovem Balduíno, cingindo até à sua maioridade a coroa de co-Imperador de Constantinopla.
(1) A neta da Rainha Isabel e de Conrado de Montferrat. Ver Thibaut ou a Cruz Perdida.
Na vida quotidiana, Balduíno II era um homem amável, amigo dos prazeres e bom companheiro, mas, apesar de brincar com o seu estatuto de Imperador errante, não escondia uma dor real e um desgosto próximo da vergonha. Ser o mais falido dos soberanos de um império cuja riqueza fora em tempos proverbial, de uma cidade onde o ouro quase corria pelas valetas, não era uma coisa nada agradável. Naturalmente corajoso, Balduíno sonhava com grandes feitos, com conquistas e com os esplendores que faziam dos antigos Basileus as rutilantes imagens de Deus na terra. Mas era um homem medianamente inteligente e faltava-lhe a força de carácter necessária a quem quer ser um verdadeiro e grande soberano. Assim, o apoio de Luís IX e da sua mãe era-lhe necessário e só aceitava conselhos vindos deles. Estes gostavam muito dele, aliás, mas o Rei com mais calor e amizade do que Madame Branca. Se esta se congratulava por exercer uma quase-tutela sobre o Imperador em título de Constantinopla, só sentia por ele uma certa afeição misturada com um forte desprezo. Vá-se lá levar a sério um homem que sonha acordado ao som agudo de uma gaita-de-foles!
Essa paixão bizarra datava da primeira viagem que Balduíno fizera a Inglaterra para tentar arrastar o Rei Eduardo III para uma cruzada que, passando pelas margens do Bósforo e pela Anatólia, lhe daria uma ajuda para chamar à razão o Imperador de Nicéia e outros príncipes gregos, que faziam os possíveis para o fazer cair do trono. Como o soberano britânico já tinha as suas dificuldades para manter a herança Plantageneta, o pobre Balduíno só conseguiu obter dele boas palavras e uma promessa muito vaga de se debruçar sobre a questão, mas, numa taberna de Londres, conheceu Angus le Roux e a sua gaita-de-foles, a segunda ajudando o primeiro a subsistir, o que significava devorar a maior quantidade possível de cerveja. Balduíno, fascinado com aquela música estranha, contratou os serviços exclusivos do músico e, depois disso, arrastou-o quase sempre consigo.
Só quando chegaram a Roma é que Renaud descobriu aquela nova personagem do séquito imperial. De facto, por ocasião da partida de Balduíno para Colónia e Paris, Angus estava demasiado bêbedo para que conseguissem fazê-lo subir para o cavalo e tiveram de o deixar ficar com o resto do séquito, mas o reencontro foi comovedor e Balduíno passou uma noite inteira, no fundo do seu apartamento no palácio de Latrão, a ouvir Angus soprar no seu instrumento.
Felizmente as paredes eram espessas, porque a época não gostava muito daqueles regozijos musicais. A interminável querela entre os pontífices romanos e o Imperador da Alemanha acabavam de se reacender. Querela que durara tanto como o quase centenário e coriáceo Gregório IX e agora era a vez do seu sucessor Inocêncio IV fazer frente a um soberano cismático por natureza e mais manhoso do que era permitido. A causa era, dessa vez, a cidade de Viterbo, próxima de Roma mas anexada por Frederico II, onde a gente do cardeal Capocci, bispo da cidade, chegou a vias de facto com a do governador imperial. Aquilo foi o suficiente para desfazer em pedaços os acordos algo frágeis. Cada um dos adversários apelou ao Papa e ao Imperador e como cada um destes acorreu em auxílio da sua gente, a cidade foi posta a ferro-e-fogo... E esperou-se o pior.
Entretanto, no momento do regresso de Balduíno, Roma desfrutava ainda de uma tranquilidade relativa. A cidade papal das sete colinas tinha, habitualmente, as noites mais agitadas do que os dias. Eriçada de torres construídas sobre os vestígios da Roma dos Césares ou sobre as fortalezas individuais que as famílias nobres, quase sempre rivais, tinham edificado tanto para se protegerem como para desafiar as outras, o som das armas enchia mais vezes a atmosfera local do que o dos cânticos. Frangipani, Orsini, Colonna, Massimi, Anabaldi e alguns outros partilhavam as colinas, ao mesmo tempo que a actividade popular se concentrava nas proximidades do Tibre: na margem esquerda o Campo de Marte, onde os fornos de cal reduziam os mármores antigos a um novo material de construção - pelo menos aqueles por cima dos quais não se erguiam as torres feudais - e, na margem direita, o Transtevere, onde se concentravam as actividades do rio e as dos industriosos comerciantes judeus. Tudo sob o olhar rebarbativo do mausoléu de Adriano, transformado no castelo de Saint-Ange, uma fortaleza temível protegendo a ponte Aelius e a antiga e pequena basílica de São Pedro meio arruinada.
O domínio de Sua Santidade era o monte Caelius, sede, desde o século IV, da residência e da administração pontifícia. O palácio de Latrão era, então, um conjunto um pouco confuso de edifícios ligados por um pórtico, o “corredor de Latrão”. Havia vários tridinia, ou salas de jantar, das quais a mais magnífica era o tridinium de Leão III, sede de banquetes solenes. Vinha depois a sala do Concílio, ornamentada com sumptuosos mosaicos e com uma fonte azul e dourada ao meio. E depois as capelas, entre as quais a do Sancta Sandorum com escolas de cantores e um seminário para os jovens padres, sem contar com um jardim com pinheiros plantados em vasos e, assim como todos os serviços necessários à vida quotidiana de um palácio papal e dos seus habitantes. Um palácio tão vasto que a sua vizinha, a basílica de São João de Latrão, “a mãe e a primeira de todas as igrejas da Cidade e do Mundo”, fazia figura de anexo a despeito do seu esplendor. O conjunto elevava-se num augusto isolamento, já que o defunto Papa Gregório IX mandara arrasar, por ocasião da sua eleição, as torres feudais, demasiado próximas para o seu gosto.
Aquele local pleno de majestade, de beleza e de grandeza, cuja primeira impressão devia ser de serenidade, estava longe de a inspirar. As suas salas e jardins, em vez de devolverem o eco discreto do passo cerimonioso dos cardeais, dos humildemente medidos dos padres e dos monges e do deslizar quase aéreo dos servidores sobre um fundo de orações ou cantos religiosos, ressoavam como um gongo gigantesco com o estrondo das armas, do galope dos cavalos, do passo dos soldados e das vozes vigorosas clamando ordens no ar quente e húmido de Roma. Se os sinos, esses, se calavam, era bom sinal porque, geralmente, só tocavam a rebate para completar aquele quadro apocalíptico.
Os recém-chegados encontraram o Papa no seu gabinete privado, que se parecia mais com o estado-maior de um chefe de guerra do que com a sala de reflexão de um sucessor de São Pedro. No entanto, apesar de regurgitar de lorigões, elmos e outros chapéus de ferro, reinava ali uma ordem absoluta e um silêncio onde se ouvia apenas a voz seca e precisa de Inocêncio IV.
Apesar de não possuir a envergadura física do seu irascível antecessor, o ex-cardeal Sinibaldo Fieschi impunha-se de outra maneira. Aquele genovês, próximo dos cinquenta anos, era dotado de uma inteligência fria e calculadora, de uma personalidade activa unicamente virada para as realidades, de uma moderação prudente e de uma grande flexibilidade, que lhe permitiam explorar sem escrúpulos as vantagens adquiridas. Em tempos amigo de Frederico II, que esperava, ao pressionar a sua eleição, realizar, por fim, o sonho de ter um papa à sua medida, tornou-se, logo após se sentar no trono de Pedro, no seu adversário mais encarniçado porque, preocupado apenas com os interesses da Igreja, sacrificou-lhes, sem hesitar, as suas simpatias pessoais.
A entrada do Imperador de Constantinopla, anunciada por um arauto, interrompeu aquilo que não era outra coisa senão um conselho de guerra: as samarras cardinalícias cobriam mais cotas de malha do que sotainas de seda. O Papa regressou à cadeira sobrelevada que se encontrava em todas as salas de recepção, ao mesmo tempo que as outras personagens presentes se aglomeravam em redor dele, formando assim uma assembleia bastante impressionante, sobretudo para o jovem escudeiro. Ser admitido à presença do Papa era mais do que Renaud jamais esperara e foi com toda a humildade que se ajoelhou, ao mesmo tempo que Balduíno beijava a grande safira que ornamentava o anelar direito do Pontífice.
- Majestade Imperial, nosso filho em Jesus Cristo, já de regresso? - perguntou Inocêncio IV com um sorriso frio. - De onde vindes hoje?
- De França, Mui Santo Padre, onde consegui uma curta audiência com o Rei Luís...
- E em que disposição o encontrastes para connosco?
- Mas... a melhor do mundo. Luís é um filho obediente da Santa Madre Igreja e alegrou-se sinceramente com a eleição de Vossa Santidade...
- Não duvidamos. E para com o Imperador Frederico?
- O assunto não foi muito abordado. O Rei declarou-se satisfeito com o acordo efectuado esta Primavera entre o Sumo Pontífice e o Imperador.
- Um acordo que não tardou a voar em estilhaços em Viterbo, que está cercada há um mês pelos mercenários de Frederico. Não sabíeis? - acrescentou Inocêncio perante a expressão de surpresa do seu hóspede. - Como é que, nessas condições, atravessastes a região para chegar aqui?
- Viemos por mar a partir de Génova e desembarcámos em Civita Vecchia, Santo Padre. E a viagem foi calma...
Os olhos negros do Papa carregaram-se de ironia:
- Tivestes sorte... e também muita prudência: por terra, provavelmente, não teríeis chegado vivo. Os grosseirões daquele monstro, mais siciliano do que alemão, mais muçulmano do que cristão, ter-vos-iam massacrado, por mais Imperador que sejais. Eles têm o país na mão, dos Alpes a Viterbo, de Nápoles a Siracusa e só pensam em nos estrangular! Mas, a propósito de Luís de França, conseguistes a ajuda que esperáveis, em ouro e em homens?
O suspiro de Balduíno valia um discurso. O Imperador acrescentou, envergonhado, que recebera um pouco de ouro para a viagem de regresso, sem ousar olhar de frente para Inocêncio cujos punhos se crisparam nas bolas de marfim que terminavam a ponta dos braços da sua cadeira.
- Uma miséria, quando precisáveis de um exército! Como é que o Rei de França não vê a importância estratégica do vosso... magro império se houver outra cruzada? Ele é o homem mais rico do Ocidente!
- Não estou muito certo - emitiu timidamente Balduíno - de que a cruzada esteja, por agora, na ordem do dia...
- Quando o deixastes, talvez, mas pode ser que tenha mudado de opinião e vós devíeis ter ficado lá mais algum tempo.
- Porquê?
- Porque Jerusalém está, de novo, inacessível aos peregrinos.
- Os tratados com os Muçulmanos foram quebrados?
- Não, pior ainda: uma invasão, vinda da Ásia Central, abateu-se sobre a Terra Santa há algumas semanas. Os infiéis de Khorezme, de Kiptchak e da Pérsia, expulsos dos seus países há quinze anos pelas hordas mongóis de Gengis Khan, reagruparam-se para procurar novas terras e caíram sobre a Síria e a Palestina, queimando, matando e pilhando tudo à sua passagem...
- Mas os da Terra Santa não são irmãos deles em Maomé?
- Isso é-lhes indiferente. Tudo o que querem é terras novas, um reino novo e um poder novo. Como vedes, impõe-se uma cruzada! E eu, confrontado com o “Sultão alemão”, nem sequer posso ir pregar a esses reis do Ocidente que desdenham o reino de Cristo em benefício dos seus pequenos negócios. Ah! Eu sacudia-os como deve ser, eu! Mas tenho de ficar aqui para defender os Estados da Igreja contra aquele filho da iniquidade! A culpa não é vossa, meu filho - continuou ele em tom mais suave ao ver a expressão apavorada de Balduíno. - Acabais de fazer uma longa viagem e deveis estar cansado. Ide para os vossos alojamentos e repousai, que bem necessitais. Ver-nos-emos mais tarde.
A sua longa mão ergueu-se para uma bênção e os viajantes retiraram-se. Sabe-se como, nessa noite, o Imperador de Constantinopla afogou as suas mágoas ao som lancinante de uma gaita-de-foles escocesa. Renaud, esse, sonhou com a cruzada. O Papa pronunciara a palavra mágica, acrescentando-lhe o perigo extremo que ameaçava o Santo Sepulcro devido àqueles bárbaros vindos de terras longínquas, que eram capazes de o destruir. O Rei de França não podia ficar insensível àquela desgraça: ele reuniria o seu exército e tomaria o caminho de Jerusalém. Um caminho que passava por Constantinopla. E Renaud sabia que nenhuma força humana o impediria de se misturar à massa de homens de armas, sob um nome falso, para marchar com eles na direcção do antigo reino franco e encontrar, não longe de Tiberíades, a Verdadeira Cruz enterrada por Thibaut na véspera do desastre dos Cornos de Hattin. Então, despedir-se-ia de Balduíno, já que o Imperador teria, sem dúvida, muito que fazer no seu país para se juntar à expedição. Além disso, se Luís deixasse a França por um longo período, a sua mulher acompanhá-lo-ia, como era normal e, ao pensar nisso, Renaud sentiu uma profunda alegria invadi-lo, porque poderia revê-la”. E, refugiado sob um pinheiro no jardim do palácio, longe dos clamores nostálgicos de Angus le Roux, o jovem passou uma das melhores noites da sua existência...
A partir do dia seguinte, as notícias tornaram-se más para a causa papal, e depois desastrosas.
Tudo começou com a chegada a toda a brida do cardeal de São Nicolau, que Inocêncio enviara a Viterbo como mediador entre a cidade revoltada e os imperiais. Não era a tarefa habitual de um príncipe da Igreja, mas o que tinha para dizer era gravíssimo. Há três meses, com efeito, que as tropas de Frederico II cercavam a cidade, que tinha atirado com o governador e com a guarnição para a prisão. Sem resultado: bem abastecida e provida de muralhas sólidas, Viterbo, vigiada pelas tropas papais, podia resistir quase indefinidamente. No entanto, a notícia de que o Imperador em pessoa estava a chegar incitou o Papa a acalmar as coisas. O cardeal de São Nicolau, enviado à cidade, conseguira um acordo: o cerco seria levantado e a cidade recuperaria os seus privilégios. Em troca, os partidários do Imperador que ainda estavam na cidade, assim como a guarnição, poderiam partir livremente, levando consigo os seus bens para se juntarem aos sitiantes, que não iriam ficar muito mais tempo. Senão, seriam todos executados.
Com um homem da têmpera de Frederico, aquilo não era uma ameaça susceptível de o inquietar seriamente. Pelo menos em tempos normais, porque se tratava apenas de algumas centenas de vidas humanas. Simplesmente - e isso Inocêncio soube-o através dos seus espiões - o Imperador não podia demorar-se por muito mais tempo: acabava de estalar uma revolta em Francfort, nos seus Estados tradicionais e ele precisava de lá ir para pôr as coisas em ordem. Pensando que regressaria mais tarde ou mais cedo para fazer o Papa pagar Viterbo, Frederico aceitou o que o cardeal propunha, assinou uma espécie de armistício e tomou o caminho do norte.
Foi então, no momento em que tudo ia regressar à normalidade, que se produziu o drama: enquanto os prisioneiros e os gibelinos (1) atravessavam a cidade para se juntarem às tropas imperiais, a população de Viterbo atirou-se a eles e massacrou-os até ao último homem... e depois incendiou-lhes as casas.
(1) Na interminável querela entre o Sacerdócio e o Império, os partidários do Papa tinham o nome de guelfos e os do Imperador de gibelinos.
- Não só Viterbo está meio destruída pelas chamas, como a região está em polvorosa e o fogo pode propagar-se a todo o norte do país - explicou o cardeal. - Guelfos e gibelinos batem-se uns contra os outros alegremente e dizem que o Imperador regressa em marcha forçada...
O Papa fechou-se, então, no silêncio da meditação e os espíritos agitados do palácio consentiram em acalmar.
- Achais que o Imperador é capaz de vir até aqui? - perguntou Renaud ao seu amigo Guillain d'Aulnay.
- Cercar Roma? Creio que é o seu maior desejo e temo que, desta vez, nada o detenha. Tanto mais que a sua decepção é grande: ele pensava ter eleito para o trono papal um fantoche obediente e afinal saiu-lhe um novo Gregório IX, menos turbulento e mais inteligente. Estou persuadido que não se limitará a Viterbo e que dentro de pouco tempo os estandartes da águia negra estarão diante da cidade.
- É uma cidade bela e forte, bem defendida, imagino.
- Imaginais mal, meu amigo. Aqui também há gibelinos e o mais terrível deles chama-se Gaetano Orsini...
- Ele ousaria virar-se contra o Santo Padre?
- Ele é capaz de tudo e mais alguma coisa. É uma espécie de fera selvagem. E é o senador de Roma. Quereis ter uma ideia da personagem? Por ocasião da morte de Gregório IX, foi ele que ficou encarregado de organizar o conclave destinado a eleger o sucessor. Fechou, portanto, os cardeais no Septisonium, uma sala e umas antigas celas que subsistem nas ruínas do palácio de Septimo Severo, no Palatino. Devo dizer que os fechou à força e que os fez suportar um martírio, devido ao calor do Verão, numa sala cheia de insectos e de ratos, guardados e insultados por soldados cujo corpo da guarda estava instalado por cima deles e cujas latrinas despejavam por cima das suas cabeças através do tecto rachado. Além disso, não os alimentaram. Dos dez - os que compareceram ao conclave, já que Frederico mandara atacar os navios daqueles que vinham de França ou de outras partes, tendo morrido três, aliás - um deles, o cardeal inglês Robert de Somercote, foi arrastado, agonizante, para o espaço reduzido reservado aos mortos onde os mercenários, depois de lhe terem cantado o ofício dos mortos, o empanturraram de purgante e o içaram para o telhado para que Roma inteira pudesse constatar os efeitos...
- Que horror! - exclamou Renaud, espantado. - Sua Santidade foi eleito nessas condições abomináveis?
- Não. Os infelizes elegeram um ancião, Godofredo de Sabrina... que morreu dezassete dias mais tarde. Como deveis imaginar, depois daquela aventura ninguém tinha vontade de entrar de novo em conclave e a coisa foi adiada por um ano. Devo dizer que é ao nosso Rei Luís que se deve o facto de a ordem ter sido restabelecida. Esse Rei tão bom, tão ponderado, escreveu uma carta de tal modo severa a Frederico que este foi obrigado a reflectir: ele estimava Luís e não queria irritar a França. Inocêncio foi eleito... e vós sabeis o que se seguiu.
- E agora, que vai acontecer? - Ignoro, mas sei que nós, os de Constantinopla, não teremos a esperar grande coisa em termos de ajuda... a menos que a cruzada se organize rapidamente.
- Vamo-nos embora, portanto, e virar costas a tudo isso?
- Não conheceis o nosso Imperador. Ele é um leal e corajoso cavaleiro. Nunca abandonará o Papa, que é seu amigo. É provável que acabemos por combater por ele... Com Orsini nas nossas costas!
- Como? Esse ainda é vivo? O Santo Padre não o fez pagar os crimes que cometeu?
- Isso só teria servido para enraivecer a família. E Papa há só um, ao passo que eles têm metade de Roma na mão. Seriam a esta hora reis se não fossem os Colonna, os seus inimigos figadais, tão temíveis como os Frangipani e os Massimi, que mantêm, assim, a balança equilibrada. Mas em caso de cerco...
O gesto evasivo do marechal deixava a porta aberta a todas as suposições.
Durante alguns dias viveram ao ritmo dos homens a cavalo que traziam mensagens cada vez mais inquietantes, ao mesmo tempo que começava a surgir, à maneira de um gato que se apresta a saltar sobre o rato, o rosto brutal de Gaetano Orsini.
Uma noite, Balduíno acabava de jantar com os seus íntimos nos seus alojamentos, o que suprimia o protocolo, quando o Papa entrou sem se fazer anunciar. O que colocou, à excepção do Imperador, os outros três de joelhos no meio de uma extrema confusão. Renaud, que se dispunha a servir vinho de Palermo ao seu senhor, conseguiu-o apertando o frasco contra o peito e sem entornar nada.
- Levantai-vos, meus filhos! - disse o pontífice com uma doçura pouco habitual. - Nós só queremos falar com o Imperador, mas não precisais de vos retirar. Sabemos que tendes toda a sua confiança... e nós não recusamos os bons conselhos.
Inocêncio sentou-se perto da janela que dava para o jardim, que tratou de fechar. Balduíno juntou-se-lhe e os outros mantiveram-se a alguma distância. Renaud pensou que Inocêncio tinha mudado. O seu rosto estreito, tão finamente esculpido, estava coberto de rugas de preocupação e os seus olhos traíam as suas insónias, mas a voz mantinha-se firme e incisiva, não traduzindo os problemas que o deviam acabrunhar:
- Se a memória não nos falha, foi um navio genovês que vos trouxe a Civita Vecchia? Ele devia partir depois de vos ter desembarcado?
- Não, Santo Padre. Eu disse ao capitão que esperasse por mim, nem que fosse até à próxima Primavera, para ter a certeza de poder regressar ao meu império pelo caminho mais curto no caso de...
- ... de receberdes da nossa parte o ouro de que necessitais para reunir as tropas...
- De facto, mas... nas circunstâncias actuais...
- Já percebestes que não podereis esperar grande coisa da nossa parte, meu amigo. No entanto, as circunstâncias podem mudar se eu conseguir realizar o plano que concebi...
A mudança de linguagem não passou despercebida. Ao empregar a primeira pessoa do singular, em vez da primeira do plural, Inocêncio deixava adivinhar que aquele plano não dizia respeito apenas a ele. Os seus ouvintes não ficaram na expectativa, porque ele começou de imediato:
- Tenho de conseguir embarcar para Génova e de lá chegar ao reino de França, onde, tendo reunido um concílio, atingirei Frederico II com um novo Anátema e interditarei a totalidade do império...
- Vossa Santidade tenciona partir sozinho?
- Exactamente. Mas não daqui. Decidi o seguinte: vós ides anunciar a vossa partida e como eu me vou sentir muito mal depois destes cruéis acontecimentos, vou para a minha cidade de Civita Castellana, que fica a meio caminho de Viterbo... e pouco afastada do vosso porto, para repousar, mas também para me adiantar a... Frederico e tentar arranjar acomodações para nós!
- Isso é uma loucura, Santo Padre!
- De maneira nenhuma! Vou é enganar Orsini, que vai ter uma excelente ocasião para me barrar o caminho de regresso a Roma e que nos permitirá fazer o resto do caminho juntos, meu filho - acrescentou ele com a sombra de um sorriso. - Pelo menos na aparência. De facto, estaremos sempre juntos. Quando sairdes de Civita Castellana em pleno dia, tereis no vosso séquito um membro suplementar: um soldado, por exemplo, para o qual vai ser necessário arranjar outro nome que não Inocêncio. Uma vez em Génova, estarei no que é meu, numa cidade segura e fora do alcance daquele imperador do diabo!
- Mas... toda a gente se aperceberá rapidamente da...
- Da minha partida? Não. Eu vou estar muito doente durante alguns dias e o cardeal de São Nicolau assegurará interinamente o governo. Em França, saberemos obter do Rei Luís a cruzada de que vós tendes tanta necessidade! - declarou ele num tom cortante que afastava qualquer discussão. - Que pensais deste plano?
- Que me parece bom...
- É o único possível, se queremos escapar às garras do Anti-cristo, cuja maior felicidade seria atirar-nos para uma prisão qualquer enquanto fazia da nossa basílica de São João uma mesquita...
Dessa vez, Balduíno, em sinal de humildade, pôs um joelho em terra diante daquele que voltava a ser o Sumo Pontífice. - A minha gente e eu mesmo somos filhos devotos da Igreja, prontos a servi-la em tudo na pessoa de Vossa Santidade...
- Não esperávamos menos de vós, meu querido filho! Com a ajuda de Deus, sucederá um dia brilhante às trevas que nos tentam engolir. E vós regressareis a Constantinopla como um verdadeiro senhor...
Uma leve bênção e a delgada silhueta branca desaparecia silenciosamente na sombra, apenas iluminada pelos archotes das passagens e galerias do palácio. Henrique Verjus, que quase não abria a boca senão para rezar e comer, disse, então, com a sua voz lenta:
- Salvar o Papa das fúrias do Imperador é uma boa coisa, sem dúvida, mas será a melhor escolha para o senhor de Constantinopla?
- Que queres dizer? - perguntou Balduíno com rudeza.
- Que a empresa pode falhar, o Santo Padre detido, preso, morto, talvez afogado, se o navio for atacado. Que acontecerá, então à esperança de Constantinopla... e à da Imperatriz Maria, sozinha há tanto tempo?
- O mordomo-mor Filipe de Toucy vela por ela, assim como os meus melhores ministros. Quanto a nós, na situação em que nos encontramos, não temos praticamente nada a perder senão a vida, que é uma dádiva bem pequena quando não nos traz aborrecimentos. A nossa única hipótese está no Papa eleito e coroado. E também no meu primo Luís, que é demasiado cristão para não ouvir as queixas do Sumo Pontífice. Ele não poderá ficar surdo à sua voz e nós, que o teremos salvo, seremos, por nossa vez, mais bem ouvidos... Entretanto, esta noite, penso que é melhor rezar, em vez de ouvir música...
No dia seguinte, no meio dos mosaicos da sala do Concílio, da corte papal e da gente de Balduíno, Inocêncio IV fez saber do seu desejo de trocar Roma por Civita Castellana a fim de respirar um ar melhor do que o de uma cidade empestada pelos miasmas dos pântanos de Pontina.
- O de Civita Castellana não será melhor para Vossa Santidade quando Frederico lá chegar - lançou o cardeal Colonna. - E não demorará muito. Talvez antes de vós.
- É um risco, admitimos, mas é um risco que não nos preocupa. Bem pelo contrário. Pode ser que o facto de me encontrar com ele frente-a-frente seja excelente.
- Santo Padre, Santo Padre! Isso é uma loucura. Dizem que ele jurou a vossa morte.
- Todos temos de morrer. Portanto, tem pouca importância. Elegereis um novo Papa e a Igreja, essa, continuará. Tereis, até, ocasião, já que eu vou ser a vítima, de lançar contra Frederico o maior dos Anátemas, que o banirá, com todos os seus Estados, da Cristandade. Além disso, a nossa decisão está tomada.
Foi assim que, oito dias mais tarde, deixando o palácio de Latrão à guarda dos seus cónegos e servidores habituais, Inocêncio deixou Roma com um séquito importante. Maior do que quando se deslocava a uma das suas residências, mas dessa vez o Imperador de Constantinopla acompanhava-o e Sua Santidade cumulara aquele precioso filho de presentes tão generosos que estes enchiam várias carroças, guardadas por numerosos servidores. De facto, aquela súbita generosidade dissimulava as próprias bagagens de Sua Santidade, que tencionava, em Génova, fazer uma entrada digna do seu estatuto.
Do alto das muralhas da cidade, o senador de Roma, Gaetano Orsini, viu o cortejo afastar-se com a alegria feroz de quem assiste ao funeral de um inimigo há muito detestado e sem se preocupar minimamente com o excepcional cortejo. Ainda restavam muitas riquezas papais para ele e para o seu Imperador. Orsini estava determinado a que as portas de Roma nunca mais se abrissem para Inocêncio IV... admitindo que ele conseguisse regressar vivo. Ele próprio já se preparava para a alegria que sentiria ao entregar a Frederico II a cadeira do papado, tornando-se, assim, num dos homens mais poderosos do mundo.
O caminho até Civita Castellana, uma poderosa cidade erguida sobre um planalto rodeado de ravinas profundas, correu às mil maravilhas. O Papa foi ali recebido como um pai que vai de visita aos seus filhos. E, durante dois dias, Inocêncio presidiu a conselhos, concedeu múltiplas audiências e distribuiu bênçãos a torto e a direito. De tal modo que ao terceiro dia caiu doente e teve de se acamar, para um repouso completo, enquanto o cardeal de São Nicolau o substituía “com toda a humildade”. Discretamente e para não aumentar a fadiga do Santo Padre, Balduíno II tomou o caminho da costa sob a protecção de uma escolta papal para que as generosidades papais chegassem a bom porto. Ninguém imaginaria que a casa do Imperador tinha mais um oficial barbudo com grandes bigodaças, arvorando orgulhosamente na sua armadura as cores de Constantinopla, hábil a conduzir o seu cavalo e a manejar as suas armas e que não era outro senão o Papa em pessoa.
Em Civita Vecchia, a escolta voltou para trás depois de se ter assegurado de que o navio genovês se fizera ao mar, o que evitou que o seu chefe visse, uma vez o navio ao largo, o capitão ajoelhar-se diante de um homem vestido de ferro para receber humildemente a sua bênção.
O Mediterrâneo foi suficientemente clemente, sem abandonar muitas vezes aquela cor de um azul tão profundo, tão luminoso, que Renaud não se cansava de contemplar, tal como fizera na viagem anterior. O jovem sentava-se à proa em cima de um monte de cabos e deixava o seu corpo seguir os movimentos do navio sem sentir o menor dos enjoos. Guillain d'Aulnay fazia-lhe companhia.
- Devíamos estar a caminho de Constantinopla - suspirou este uma manhã quando dobravam a ilha de Monte Cristo. - Em vez disso, voltamos para trás. Não estais desiludido?
- Desiludido? Não. O que eu quero é rumar a São João de Acra. Vós sabei-lo bem e enquanto isso não acontecer, qualquer destino me serve. Se bem que goste de descobrir o mundo, eu, que nunca tive outros horizontes senão as muralhas de Château-renard... Além disso, como seria possível não estar feliz e orgulhoso por ajudar, nem que seja minimamente, a livrar Sua Santidade da maldade do seu cruel inimigo? É quase uma cruzada!
Alguém, por trás dele, se pôs a rir e, virando-se, o jovem viu Inocêncio de pé, no traje branco com que andava agora sempre vestido. Depois da partida, o Papa mantivera-se com Balduíno no camarote da popa e só saía à noite para olhar, durante muito tempo, para as estrelas.
- Tanto mais que o melhor caminho para a Terra Santa passa pelo reino de França, onde chegaremos dentro de pouco tempo com a ajuda de Deus - disse ele.
Era a primeira vez que o Pontífice dirigia a palavra a Renaud e o jovem, muito impressionado, não soube o que dizer... admitindo que esperavam que ele dissesse alguma coisa. Muito corado, o jovem ajoelhou-se, ao mesmo tempo que tossia para aclarar a voz. Inocêncio emitiu, de novo, uma pequena risada e prolongou o jogo:
- Não pareceis muito certo, jovem. Tendes receio de alguma desventura?
- O... O Imperador! - conseguiu ele dizer com alguma dificuldade. - Como... como ter a certeza de que ele não vos vai armar... uma ratoeira?
- Temeis que ele envie as suas galeras nos nossos calcanhares? É possível, mas nós não acreditamos porque, como sempre, confiámo-nos à graça de Deus. Frederico tem grandes navios e galeras rápidas, mas que podem elas fazer se Deus está connosco? Sabeis, meu filho, o pequeno barco de Pedro pode, de tempos a tempos, ser assaltado por ventos contrários e pelos golpes das tempestades, mas graças ao sopro de Deus, a bonança sucede-se à tempestade e, tendo escapado às vagas espumantes, desliza em paz, sã e salva, pela planície líquida apaziguada e submetida (1)... tal como nós, neste momento.
Confuso, Renaud, sempre de joelhos, agarrou na aba do traje papal para a beijar. Inocêncio inclinou-se e pousou-lhe uma mão no ombro.
- Levantai-vos! O vosso senhor contou-me a vossa história e exprimiu o desejo de que vos ouvíssemos em confissão. Estais pronto a comparecer perante o tribunal da Penitência?
-J... já? - balbuciou Renaud, desvairado.
- Por que não? Assim que sire Guillain se afastar, teremos aqui o local ideal, entre o céu e o mar...
Aulnay saudou e desapareceu com a presteza de uma criança traquinas. Então, Inocêncio sentou-se em cima do monte de cabos e fez sinal a Renaud para que se colocasse a seu lado. Dessa vez, o jovem deixou-se cair de forma tão pesada que as pranchas da ponte ressoaram sob os seus joelhos:
- Recolhei-vos durante alguns momentos! - aconselhou o Papa. - E depois, falai sem receio e, sobretudo, sem procurar
(1) Palavras autênticas.
dissimular nada. Nós queremos saber “tudo”. Começareis por contar a vossa história.
Então, após alguns momentos de reflexão, durante a qual teve as maiores dificuldades para meter as ideias em ordem, Renaud iniciou o relato da sua curta vida e após um começo hesitante, difícil, descobriu que tudo se tornava mais fácil à medida que ia falando. Aquele homem de branco, sentado diante de si era, sem dúvida, o senhor de toda a Cristandade, mas o seu olhar atento, encorajador, era pleno de compreensão. Então, o jovem não omitiu nada... Nem sequer o segredo que Adam Pellicorne levara para o túmulo: o do seu nascimento. Um escrúpulo de consciência, nascido depois de ter relatado tudo, levou-o àquela última confidência.
- Portanto - murmurou Inocêncio que, desde há momentos, parecia mergulhado numa profunda meditação - Thibaut era vosso avô... e não vosso pai. Aliás, nós duvidávamos... por causa da grande diferença de idades. É difícil imaginar uma jovem princesa apaixonada por um ancião.
- Vossa Santidade... condena-o por essa mentira? Ele só a disse por amor a mim...
- É inútil defender uma causa que não precisa de defesa. Se calhar, no seu lugar, teríamos agido da mesma maneira. É preciso amar muito para levar uma mentira para a tumba, mas quando o avô paterno não é outro senão... Saladino, o problema torna-se difícil de resolver. Salvo condenando-vos a uma vida miserável, rejeitado pela Cristandade, o que é de mais para uma criança. A não ser... que junto de um único soberano, talvez...
- Qu... qual?
- Mas, aquele demónio do Frederico! Ele é meio muçulmano, senão inteiro. Arranjar-vos-ia, sem dúvida, um lugar entre os seus poetas, entre as suas dançarinas do seu harém ou entre os seus animais bizarros...
Renaud endireitou-se com um sopro de indignação:
- Oh não!... O facto de ter nascido na Terra Santa já faz de mim uma espécie de curiosidade, mas a esse ponto...
- Vamos, acalmai-vos! Nem sequer se põe a questão e nós, agora, achamos que, ao encarregar-vos de encontrar a Verdadeira Cruz, Thibaut de Courtenay fez uma boa escolha! E agora rezai, porque vamos dar-vos, assim como à sua alma, talvez a penar, a nossa absolvição plena e total. Sê-vos-á entregue um documento assinado pela nossa mão para que se apaguem as falsas acusações que pendem sobre vós.
Enquanto o Papa articulava as palavras rituais, a sua longa e pálida mão traçou o sinal da Redenção sobre a cabeça do jovem prostrado a seus pés. Em seguida, o Pontífice levantou-se e deixou cair:
- A penitência que vos impomos é a seguinte: assim que conseguirdes encontrar a Mui Santa Cruz na terra emporcalhada pelos Infiéis, entregá-la-eis a nós... se ainda estivermos neste mundo. Ou ao nosso sucessor! O Rei Luís - acrescentou ele num tom indiferente que reflectia um descontentamento irónico - possui a quase totalidade das Santas Relíquias da Paixão, ao passo que o papado não tem nada! Ele até tem um pequeno fragmento dessa Cruz... Isso parece-nos suficiente!
Tendo dito aquilo, o Papa regressou à proa do navio, deixando Renaud, um pouco deslumbrado, a pôr em ordem as suas emoções contraditórias, mas, sobretudo, a deixar-se inundar pela alegria, assim como pela bela luz do Sol daquela manhã triunfal. Já não teria de suportar o peso da acusação daquele bailio miserável nem a suspeita dos outros. Como o Papa o declarava inocente, ninguém ousaria lançar-lhe a infâmia ao rosto. Até o Rei de França seria obrigado a aceitar e Renaud já antecipava a felicidade que sentiria quando a Rainha Margarida lhe sorrisse. Porque ela defendera-o quando ele mais precisava!
Uma única coisa diminuía a sua alegria: Thibaut obrigara-o a prometer que levaria a Verdadeira Cruz ao Rei Luís e eis que o Papa, seu salvador, a reclamava! Por momentos, sentiu-se preocupado, mas a impressão de felicidade foi mais forte. Teria tempo para se preocupar com o destinatário quando recebesse o supremo símbolo da presença de Deus, a Cruz insigne, para a qual se tinham virado tantos rostos na hora da esperança e na da agonia... Era ainda demasiado jovem, demasiado honesto para enganar os outros e a si mesmo. Assim, concluiu o seu dilema achando que poderia sempre, chegada a ocasião, entregar-se ao julgamento do Rei Luís, o que, de qualquer maneira, não seria para já.
A chegada do Sumo Pontífice a Génova foi triunfal. O estandarte papal fora içado no topo do mastro e assim que se soube que Inocêncio se aproximava, a cidade inteira, ornamentada como num dia de festa, desceu dos montes até ao porto, ao mesmo tempo que nas ruas a população se apressava a pendurar das janelas as mais belas tapeçarias, tapetes e tecidos de seda. O próprio doge (1) tomou lugar na sua galera dourada para ir ao seu encontro com a mais alta nobreza da grande cidade mercantil. Os homens da sua família, os Fieschi, ajoelharam-se perante o Papa para lhe beijar, na mão, o anel do Pescador, no meio de uma multidão em delírio.
Sob os ornamentos sumptuosos, vestidos para a circunstância, Inocêncio IV brilhava a despeito da sua habitual reserva. Ele sabia que, em Génova, não tinha nada a temer do seu inimigo e que era a vez de Frederico tremer. E, de facto, a notícia da sua chegada estalou na corte do Imperador como um trovão e desencadeou nele uma verdadeira crise de furor:
- Eu ia dar-lhe xeque-mate e eis que os genoveses viraram o tabuleiro ao contrário!
Mas o vinho tinha sido vertido, ia ser preciso bebê-lo. Entretanto, Inocêncio não queria demorar-se na sua cidade natal: era em França que ele queria refugiar-se para reunir o concílio que lhe permitiria lançar o raio sobre o Anticristo. Uma delegação de bispos e de abades de alta posição foi, por isso, enviada ao Rei, encontrando-o na abadia de Cíteaux, onde Luís assistia ao capítulo geral da Ordem.
Os emissários ajoelharam-se diante dele, recordando-lhe que o seu bisavô Luís VII recebera em Sens o Papa Alexandre III em luta contra Frederico, Barba-Ruiva e pedindo-lhe que permitisse a Inocêncio instalar-se em Reims. Foi um momento de grande emoção e mais ainda quando o Rei, por sua vez, se ajoelhou perante os delegados para agradecer a confiança do Papa... mas declarou
(1) Tal como em Veneza, o chefe eleito da grande república marítima usava o título de doge.
suavemente que teria de ouvir o conselho dos seus barões, porque receber o Sumo Pontífice na cidade da sagração para ali excomungar o Imperador equivalia a uma declaração de guerra. E o Rei de França, que mantinha relações corteses com Frederico, não desejava mergulhar o reino, ao qual fora capaz de devolver a paz, num conflito. No entanto - e isso foi sugerido por ocasião de uma entrevista privada - não via nenhum inconveniente que Sua Santidade preferisse estabelecer-se mais perto das suas fronteiras: na poderosa cidade de Lyon, por exemplo, terra do império mas feudo do conde de Sabóia e, sobretudo, sede do mais imponente arcebispado da Cristandade, portador do título prestigioso de primado das Gálias. O investido de então era Filipe de Sabóia, irmão do conde. O que deixava supor que, caso o Imperador tivesse a má ideia de marchar sobre Lyon, o Rei teria de ir em socorro de uma cidade muito mais francesa do que imperial.
A subtileza do conselho agradou ao político engenhoso que era Inocêncio. A conversa com o conde de Sabóia e com o arcebispo Filipe foi apenas uma formalidade. Além disso, a situação geográfica da cidade permitia a reunião fácil de bispos e abades vindos de todos os países da Europa. O acordo foi rapidamente concluído: a perspectiva de um grande concílio atraindo tantas altas personalidades à confluência do Saône com o Ródano tanto encantava as gentes de Lyon como as de Sabóia. Tanto mais que era para a glória de Deus, para a punição de um soberano fortemente suspeito de virar as costas ao cristianismo e para grande satisfação de mercadores, estalajadeiros e de todos aqueles que já antecipavam o fluxo de dinheiro.
O Papa aceitara a posição do Rei de França, tanto mais que, vendo-se livre das suas decisões e dos seus gestos, o destino de Frederico - sobre o qual corria o boato de que, após a explosão de cólera se entregara a algum desencorajamento - perdia a sua importância à medida que, por ocasião dos últimos dias de Outono, o cortejo papal, imponente, subia o vale do Ródano. O caso de Frederico seria rapidamente resolvido e a grande tarefa seria o apelo à cruzada porque, após tantos anos, tantas penas, tanto sangue derramado, os Lugares Santos estavam mais ou menos na mesma situação em que estavam cinquenta anos antes, quando Godofredo de Bouillon e os seus companheiros se tinham lançado em seu socorro. Lyon não era assim tão longe de Paris e Luís IX não deixaria de estar à escuta. Bastaria convencê-lo, e a esperança renasceria.
Ora, quando chegaram à capital das Gálias, abateu-se sobre a cidade e sobre aqueles que tinham tanta esperança uma notícia terrível: doente há algumas semanas, o Rei de França estava a morrer...
A ESCADARIA DE PONTOISE
Sentada num degrau da escada secreta que, no castelo de Pontoise, ligava a câmara do Rei à da Rainha, com os cotovelos nos joelhos e os punhos nas orelhas, Sancie de Signes esforçava-se por não ouvir. A jovem também fechava os olhos com toda a força, como se o zumbido incessante pudesse entrar na sua cabeça através de qualquer abertura. E aquilo durava há três dias! Desde que o fluxo do ventre, de que Luís IX sofria, o levara às portas da morte.
Não houvera necessidade de ordenar as grandes orações públicas: a cidade, os campos, as abadias e os mosteiros tinham-se encarregue eles mesmos disso e os seus clamores suplicantes, alternados pelos salmos das procissões, enchiam o ar gelado de Dezembro, ao mesmo tempo que longas filas de penitentes, de pés nus na neve, atravessavam a ponte sobre o Oise para irem rezar a Notre-Dame-la-Royale, a grande abadia de Maubuisson construída pela Rainha-Mãe e cuja consagração acontecera na Primavera.
Era todo um povo que clamava ao céu e se Deus não o ouvia, se não o atendia, talvez fosse por causa das espessas nuvens amarelas e cinzentas, ou talvez porque, se calhar, não Lhe apetecia. O que a jovem Sancie podia compreender, porque ela também já não conseguia suportar aqueles lamentos lúgubres e intermináveis. Segundo ela, só o silêncio permitia que se rezasse bem, porque era mais fácil abrir o coração e deixar voar os votos até uma presença invisível que se podia supor atenta, enquanto, assim, só ouvia, com acabrunhamento, os latidos frenéticos da cidade.
Todo o castelo cheirava a incenso e a cera quente. O odor - como, aliás, as invocações! - infiltravam-se até à estreita escada entalada na espessura da muralha que a Rainha Margarida mostrara à sua jovem dama-de-companhia num dia em que se sentia feliz. O que não era muito frequente. Então, a jovem Rainha contara-lhe que no princípio do seu casamento com Luís, no tempo delicioso dos seus amores jovens, Madame Branca não os deixava em paz e que a escada se revelara de grande utilidade.
Tudo começara na noite de núpcias. Pelo menos a que realmente acontecera, porque o belo dia do casamento não acabara no leito nupcial ornamentado e perfumado segundo a tradição. Tinham-se limitado a passar por esse leito obedecendo a um antigo costume, talvez desenterrado da sua Castela natal por Branca, a que chamavam as “noites de Tobie (1). Esse costume consistia em manter a castidade durante as três primeiras noites, substituindo os arrebatamentos amorosos por preces e o leito nupcial, então, transformava-se numa espécie de altar, do qual só se deviam aproximar após uma longa preparação, para a qual uma capela teria sido mais adequada do que uma câmara perfumada e florida. Margarida foi obrigada a obedecer apesar de não compreender porquê, já que se tinham dado ao cuidado de preparar um ninho de amor perfeitamente inútil. Talvez fosse hábito em França.
A quarta noite é que foi a boa e o jovem casal teve o direito de se estender. Durante duas horas, nem mais um minuto! Madame Branca foi, em pessoa, recuperar o seu filho (de vinte anos!), alegando que duas horas lhe pareciam tempo suficiente para trabalhar juntos na continuação da dinastia. A Rainha-Mãe acrescentou que a idade tenra da jovem esposa exigia cautela e que estava fora de questão encontrarem-se todas as noites. Pelo menos
(1) Em memória desse jovem israelita que, durante o grande cativeiro de Babilónia, foi levado ao casamento pelo anjo Rafael em pessoa e que, tendo-se abstido da carne durante três noites, obteve, assim, a cura da cegueira paternal.
aquelas que constituíssem obstáculo às obrigações religiosas inculcadas por ela no Rei e que encurtavam singularmente o calendário de Eros. Estava fora de questão fornicar durante o Advento, durante as quarenta noites da Quaresma, nas vésperas e dias de festa ou às sextas-feiras e sábados! Então, começou para o jovem casal uma existência sob vigilância contínua. Quanto mais o tempo passava, mais os encontros se tornavam difíceis porque até nos dias “livres” Madame Branca se interpunha por este ou aquele motivo. A Rainha-Mãe parecia dotada de um olfacto especial para detectar os esconderijos onde Luís e Margarida conseguiam encontrar-se. Possuindo pés muito leves, Branca de Castela caía-lhes em cima como um raio e separava-os com uma mão vigorosa, dizendo: “Que fazeis aqui? Empregais mal o vosso tempo e estais a pecar!”
Um belo dia, Luís pensou ter encontrado a solução. O seu irmão Roberto, mais novo do que ele dois anos, deu-lhe de presente um pequeno cão, que tinha o curioso talento de ladrar assim que via a Rainha-Mãe. Bastava senti-la na vizinhança. Infelizmente, aquele expediente não durou muito tempo! O pequeno cão era guloso. Um dia, encontraram-no morto e Margarida chorou tanto que Luís tomou a decisão de ir passar algum tempo a Pontoise. Ali se desenrolara uma boa parte da sua infância e ele conhecia os menores recantos do castelo. Em particular uma certa escada secreta cuja existência Branca ignorava. Dessa vez, a Rainha-Mãe bem patrulhou os corredores, bem vasculhou os arbustos e bem multiplicou as aparições bruscas, tanto na câmara de um como na do outro, mas não encontrou que dizer. Alguns servidores, de guarda aos apartamentos reais com um bastão na mão, batiam nas portas quando ouviam dizer que Madame Branca se aproximava. Então, os amorosos, refugiados na sua escada, separavam-se e regressavam, cada um, ao seu quarto...
Aquela escada de pedra não era um local confortável. Era escura e fria e as teias de aranha substituíam as almofadas e os tapetes que Luís lá tinha colocado em tempos... O Rei detinha, agora, a plenitude do poder, apesar de a sua mãe se sentar sempre no Conselho e de Margarida ter ficado grávida várias vezes. Mas a jovem Rainha mantinha uma grande ternura por aquele esconderijo onde vivera horas tão felizes. Então, quando iam a Pontoise, Sancie, a única a saber do segredo, gostava de se esconder lá, quando a vida do palácio lhe parecia demasiado pesada, para sonhar e respirar o perfume delicado daqueles amores ternos cujo sabor ela duvidava saborear um dia, porque era feia e sabia que o era...
Evidentemente, casá-la-iam um dia devido à sua alta linhagem, ao seu dote e aos seus privilégios de afilhada da Rainha de França, mas não duvidava de que essa ocasião seria uma verdadeira catástrofe. Enquanto Margarida fosse a mulher de Luís, Sancie sabia-se protegida, mas que aconteceria quando ela fosse viúva, transformada numa freira sem convento com os seus véus brancos de luto? Dos quatro filhos que dera a Luís, apenas subsistiam a pequena Isabel de três anos, o príncipe Luís de ano e meio mas de fraca saúde e o mistério que encobria o seu ventre inchado com uma nova vida.
- Com o Rei morto, a velha voltará a reinar - dizia a adolescente com furor. - Ela mandará Madame Margarida para um mosteiro qualquer depois de dar à luz o seu fruto, porque a velha apoderar-se-á desse fruto para o educar à sua maneira, não permitindo que a mãe se intrometa. E Madame Margarida morrerá de desgosto...
A jovem nem sequer se preocupava com o seu destino, de tal modo a atormentava o da sua querida Rainha. Ainda mais do que aquelas preces sagradas que lhe lembravam que, por cima da sua cabeça, o Rei estava em vias de agonizar em cima do leito de cinzas que exigira que lhe arranjassem para aguardar o fim!
Um fim que, no entanto, Sancie não estava certa de chorar com sinceridade, apesar de saber que Luís era um bom - talvez até um grande - Rei, mas a jovem nunca se sentira cativa daquele encanto quase angelical, perante o qual tanta gente se inclinava. Ela culpava Luís por tudo o que Margarida suportava às mãos da sua mãe. Ele continuava a deixar-se levar por ela, a dar-lhe em toda a parte e sempre o primeiro lugar, deixando à jovem Rainha o simples papel de procriadora, quando o primeiro plano lhe pertencia por direito. De facto, a filha do poderoso barão de Signes, das terras da Provença, transportava para Luís uma parte da aversão que lhe inspirava Branca...
Fora por causa desta que aquela procurara refúgio na escada. Impulsiva e fervendo em pouca água, a jovem sabia que lhe seria praticamente impossível conter-se por muito mais tempo se se demorasse mais alguns segundos na câmara real. Naturalmente, Branca continuava a reinar lá dentro, uma austera estátua de dor - alguma! - que ela sabia dominar, enquanto Margarida, esgotada pelas náuseas incessantes que tinham marcado o começo da sua gravidez, se abandonava a ela sem reserva, sacudida por soluços e dobrada em duas em cima das almofadas onde se mantinha ajoelhada junto do leito. Aquele comportamento, nada real, sem dúvida, acabara por indispor a Rainha-Mãe. Com uma voz irritada, ela “aconselhara” a sua nora a ir para a sua câmara para se recompor e repousar.
- As Santas Relíquias vão ser trazidas para aqui - disse ela - e não deveis recebê-las nesse estado. Regressai ao vosso quarto!
O confessor de Margarida, o bom Guilherme de Saint-Pathus, bem tentara apelar à indulgência por uma tão grande dor. Mas responderam-lhe que o Rei ainda era deste mundo e que a dor em questão não era justificada.
- Eu estou a chorar?
Apoiada no cónego e numa das suas damas, Eudeline de Montfort, Margarida regressara ao seu alojamento seguida por Sancie e esta não tivera a coragem de regressar à câmara que já era fúnebre, onde a cintilação das velas se esforçava por lutar contra o frio e onde o zumbido das orações e o odor da roupa de cama suja pela doença tornavam a atmosfera irrespirável. Então, refugiara-se na escada, já que não lhe permitiam ficar junto da jovem Rainha...
Mas não podia ficar ali eternamente. Aliás, já não ouvia as preces. Pelo contrário, o eco de um imenso Neni Creator, clamado por centenas de peitos e que parecia subir ao assalto do castelo, chegou ao seu refúgio. Pensando que aquele rugido musical devia acompanhar as relíquias anunciadas pela Rainha-Mãe, a jovem pegou na sua vela e dirigiu-se aos aposentos da sua madrinha, onde a entrada secreta, dissimulada por uma tapeçaria, lhe deu passagem. A jovem viu que Margarida dormia, esgotada, sem dúvida, pela fadiga e pelo excesso de lágrimas. Sancie hesitou um pouco sobre o que devia fazer, mas como o rugido ritmado da salmodia se aproximava, quis sair, por sua vez, do quarto. A procissão enchia a grande escada de caracol, iluminada pelos archotes e pelas velas. Ajoelhada na soleira, com as mãos juntas e a cabeça baixa, Sancie deixou passar os relicários dourados com a Coroa de Espinhos, o ferro da Santa Lança e os pregos da Cruz e depois seguiu-os fazendo-se muito pequena. Havia agora tanta gente em redor do leito que a sua chegada passou completamente despercebida.
Estavam presentes os irmãos do Rei. O mais próximo e o mais amado: Roberto, conde d'Artois, mais novo dois anos, louro como ele, tão grande como ele mas mais cheio, transbordando habitualmente de vitalidade, de alegria e de entusiasmo. Junto dele a sua mulher, Mahaut de Brabant, casada sete anos antes, uma bela rapariga espessa, de flancos fecundos e digna companheira daquele gigante jovem e malicioso. Depois, Afonso, conde de Poitiers e desde há três anos conde de Toulouse pelo seu casamento com a jovem condessa herdeira Joana, também ela presente. Bem diferente, aquele casal! Moreno como a mãe e o avô castelhano de quem herdara o nome, Afonso, de vinte e quatro anos, era um homem discreto e fiel, também ele de uma extrema piedade, mas que imitava em demasia a do Rei. Frio e taciturno, ávido, sempre cheio de escrúpulos, era um suserano exacto nos seus deveres, ao mesmo tempo que um justiceiro severo. A sua mulher, uma pequena morena um tudo nada enfatuada e, como ele, orgulhosa das suas origens - o seu casamento anunciara o fim da cruel cruzada contra os Albigenses e ela fora o penhor! - não permitia que ninguém esquecesse esse pormenor. O terceiro irmão - se se exceptuarem aqueles que não sobreviveram - era um rapaz de dezassete anos, Carlos, conde d'Anjou e de Maine, que ainda não tinha casado. Esse era a ovelha negra da família: era velhaco, cruel e provido de uma língua viperina, da qual se servia muito bem. Era um bajulador, apesar da idade e a mãe tinha por ele uma grande indulgência. Por fim, na sombra de Branca, a única irmã, Isabel, de vinte anos e já toda dada a Deus. Nas câmaras das damas, ela e a sua dama-de-companhia preferida, Inês d'Harcourte, esforçavam-se por viver como no convento que ambas
fundariam mais tarde (1).
No hábito com que o tinham vestido, o Rei jazia no meio das cinzas que sujavam a colcha branca, colocada sobre as suas pernas e que lhe ia até à cintura. O seu aspecto era o de um morto e não fora um ligeiro sopro que lhe elevava o peito, dir-se-ia que já tinha partido, porque já não tinha consciência. O seu rosto, de olhos fechados, tinha emagrecido tanto que mais parecia ter perdido toda a substância.
A mãe afastara-se para deixar aproximar o manto dourado de Guilherme d'Auvergne, bispo de Paris, e o relicário que os seus transportadores depositaram aos pés do leito. No meio do fumo do incenso, rezaram todos longamente para pedir ao Senhor que suspendesse o voo daquela alma e depois o bispo abriu o relicário, tirou as três relíquias para as aproximar uma após outra do coração de Luís e depois dos lábios descorados. Nesse instante, Sancie sentiu uma mão pousar-lhe no ombro, e era Margarida de pé, por trás de si, quase espectral no véu cinzento que lhe cobria a cabeça, o pescoço e os ombros, mas naquela cabeça brilhava um círculo de ouro guarnecido de flores, semelhante ao da sua sogra. A jovem Rainha mantinha-se muito direita e os seus olhos, vermelhos, estavam secos.
- Vamos! - disse ela apenas, apertando o delgado ombro de maneira significativa.
Então, as duas avançaram através do espaço subitamente aberto na multidão unicamente pelo som da sua voz. Negligenciando o olhar irritado de Branca, foram ajoelhar-se do outro lado do cintilante cofre de ouro e começaram a rezar.
Terminada a cerimónia as duas Rainhas saudaram o bispo e acompanharam-no, cada uma do seu lado. O instante era demasiado solene para que Branca ousasse atravessar-se diante da vontade assim claramente manifestada por Margarida. A Rainha
(1) A abadia de Longchamp, que o Rei construiria para a sua irmã, da qual Agnès seria abadessa e onde Isabel tomaria o véu.
- Mãe também não disse nada quando a jovem, em vez de regressar ao seu alojamento, se foi sentar à cabeceira do seu marido com um olhar que a desafiava a expulsá-la.
Começou uma longa vigília, em que permaneceram face-a-face com as respectivas damas-de-companhia por trás, tendo Margarida recusado afastar-se de novo:
- Se ele morrer esta noite, quero estar junto dele...
As preces tinham-se calado para dar lugar à oração silenciosa que Sancie tanto apreciava, mas a atmosfera permanecia tensa, sufocante. O moribundo, sempre inconsciente, estava inerte, com a boca e os olhos fechados. Entretanto, parecia que a sua palidez tinha aumentado. Os traços do rosto estavam mais esticados, mais cavados... Subitamente, a dama d'Amboise, que era a mais próxima da Rainha-Mãe, teve um pequeno soluço:
- Madame!... Creio que o nosso amado sire acaba de falecer... Parecia, de facto, que ele estava morto e enquanto as duas
Rainhas caíam de joelhos ao mesmo tempo, a dama Inês quis, com um gesto piedoso, cobrir o rosto imóvel com a colcha branca.
No instante em que ela o ia cobrir, o Rei abriu os olhos, uns olhos que viam perfeitamente.
A dama deu um pequeno grito que endireitou aquela gente toda, curvada sob o peso da dor. Então, Luís lançou um suspiro e dobrou os braços e as pernas, antes de os estender de novo. O seu olhar percorreu o semicírculo de rostos inclinados para ele:
- Pela graça de Deus, o Sol veio ter comigo do alto dos céus e trouxe-me do reino dos mortos - exalou ele com uma voz tão profunda que parecia vir de além-túmulo.
O que, provavelmente, era o caso, no fim de contas... De cada um dos lados do leito ergueu-se um rosto de mulher de olhar radiante e marejado de lágrimas. Uma disse:
- Meu doce sire! E a outra:
- Meu filho bem-amado!
Mas aqueles gritos já não se opunham. Pelo contrário, uniam-se. A alegria por aquela ressurreição imprevista, inesperada, apagava - por algum tempo! - o ciúme amargo da mulher mais velha e os rancores revoltados da mais nova.
Foi um bom dia, aquele dia de Inverno, que expulsava a noite. Enquanto os médicos e os padres se apoderavam daquele a quem não estavam longe de apelidar de ressuscitado, a família real dirigia-se à capela para ouvir a missa matinal e agradecer a graça insigne que Deus acabava de lhe conceder. Após o que as damas regressaram aos seus alojamentos para repousar um pouco.
Margarida estava tão cansada que se deixou despir e deitar pelas suas damas-de-companhia sem pronunciar uma palavra e sem abrir os olhos, mas uma vez no leito virou-se de lado com as pernas dobradas e as mãos protegendo o ventre onde o bebé por nascer acabava de se mexer pela primeira vez e recomeçou a chorar. Ou antes, deixou correr as lágrimas porque eram lágrimas de alívio, o produto do seu coração cheio de angústia e ao qual era devolvida a esperança. Deus devolvia-lhe o seu querido marido e isso era o principal, mesmo que fosse necessário partilhá-lo com a sua mãe autoritária e possessiva. O que importava era que estivesse vivo! E, pouco a pouco, a jovem Rainha deslizou para uma inconsciência bem-aventurada.
Saneie, essa, não dormia. Despedindo Adèle, a sua velha camareira preferida, com um gesto vivo, permaneceu sentada por um momento no degrau que suportava o leito de Margarida e depois, quando lhe ouviu a respiração regular, levantou-se, inclinou-se para se assegurar de que dormia e, na ponta dos pés, regressou à escada secreta, mas, dessa vez, subiu até ao alto e entreabriu suavemente a porta dissimulada por uma das tapeçarias, tal como no quarto de Margarida. A ligeira ranhura, tapada pelo tecido, não lhe permitia ver nada, mas permitia-lhe ouvir. Não era curiosidade gratuita da sua parte - se bem que fosse um pecadilho! - mas a jovem sentira-se empurrada por qualquer coisa mais forte. Há pouco, enquanto esperava junto do leito da Rainha, viera-lhe à ideia que talvez se passasse qualquer coisa lá em cima e que seria bom saber o que era...
No entanto, ao reconhecer a voz do irmão Godofredo, quase se retirou porque era pecado mortal surpreender a confissão de outra pessoa... se bem que não percebesse como era possível ter o Rei pecado no fundo do seu coma. Além disso, o que o confessor real dizia não era uma censura. Bem pelo contrário:
- Que bela ideia tivestes, meu filho. Só Deus vo-la pode ter inspirado...
Então, Sancie não pôs as mãos nos ouvidos...
O que a jovem ouviu pareceu, pelo contrário, encantá-la e foi com um sorriso maravilhado que abandonou dessa vez o seu posto de observação para não mais regressar. Os grandes clamores tinham-se calado para respeitar o repouso do doente. A atmosfera do castelo tornava-se, de novo, respirável.
Se se limitasse a ouvir os seus impulsos, teria acordado Margarida para lhe dar a grande notícia, mas Sancie sabia conter-se quando era necessário. A jovem contentou-se, por isso, em regressar ao seu lugar precedente, na sua posição favorita, os braços em redor das pernas e os joelhos encostados ao queixo, dispondo-se a esperar tranquilamente que a jovem acordasse, quando, à sua volta, o quarto pareceu explodir com a entrada tempestuosa da Rainha-Mãe, que parecia ter perdido o seu lendário autocontrolo:
- Minha filha! - exclamou ela, reencontrando o seu sotaque castelhano sob a emoção - Deus envia-nos uma nova e terrível provação!
As trombetas do juízo final não teriam soado com mais força e Margarida, tendo acordado sobressaltada, olhou para a sogra com um ar assustado, de tal modo angustiada que nem sequer pensou em levantar-se, permanecendo sentada no leito com um olhar aterrorizado...
- Senhora minha mãe! Que se passa mais?
- Luís... O Rei... O meu filho fez-se cruzado! E deixou-se cair num banco.
- É terrível! Terrível! - repetiu ela à beira de uma crise de choro.
Margarida, entretanto, compreendera:
- Quereis dizer que o meu querido marido... quer partir em cruzada?
- Que outra coisa havia de ser? É evidente, parece-me? Sabeis que, quando regressou a si, pediu o irmão Godofredo... e foi por isso que nos retirámos. Ora, ele disse-lhe que, se Deus lhe concedesse a cura total, partiria para o outro lado do mar para arrancar o Santo Túmulo aos Infiéis e pediu, ali mesmo, que ele lhe desse a cruz...
- Partir para tão longe? No estado em que está?
Branca de Castela não perdeu aquela boa ocasião e transformou a angústia em cólera:
- Não digais asneiras, Margarida! Ele não vai embarcar agora mesmo. Uma cruzada exige uma preparação longa e minuciosa, se não se quer que ela fracasse, mas o facto persiste: se Luís se curar... e vai-se curar, tenho a certeza, vai ausentar-se por longos anos para aquele país onde o Sol pode matar e onde a água é tão má. Os seus intestinos frágeis não suportarão. Nem o reino, que está, sem dúvida, em paz, mas que deixará de estar assim que o Rei se afastar... Meu Deus! Que vai ser do nosso pobre país?...
Branca deixou a sua dor - bem real, porque era a mãe que se exprimia! - invadi-la de novo, mas Margarida, que não sabia bem o que dizer, viu de repente de si o olhar cintilante da jovem Sancie e o seu sorriso alegre acompanhando uma mímica um pouco obscura, sem dúvida, mas que ela acabou por compreender. Essa mímica provocou nela, até, uma ideia luminosa:
- Senhora minha mãe - disse ela docemente - já pensastes que talvez Deus tenha permitido que o meu querido marido permanecesse junto de nós justamente para esse belo desígnio? Ele sente uma grande piedade por aquele reino de Jerusalém e os primeiros a socorrerem-no foram sempre os de França. O Rei Filipe Augusto, que Deus tenha a sua alma, libertou São João de Acra...
- Mas ao compreender que o interesse do reino exigia a sua presença, apressou-se a regressar. Talvez tenha lamentado ter partido?
- Pelo que sei, não era homem para isso. Tudo o que fazia era profundamente reflectido. A cruzada não lhe permitiu desembaraçar-se por bastante tempo de Ricardo de Inglaterra?
- É verdade, mas a situação, agora, é diferente. Henrique III, que vós deveis conhecer através das notícias que recebeis da vossa irmã Leonor, que é a sua Rainha, não se deve ter feito cruzado, pois não?
- Há vários meses que a Rainha de Inglaterra não me escreve - disse Margarida num tom indiferente. - O que eu compreendo, se se pensar que o seu marido não é um Rei tão grande como o meu. O que ela já sabia quando se casou com ele, porque, antes do seu casamento o nosso sire... e vós mesma, Madame, derrotastes o Rei Henrique em Taillebourg.
- Reflecti um pouco, minha filha! Se o nosso Rei partir, será, para ele, uma excelente ocasião para reconquistar o que teve de abandonar. É um sire bem menor, concordo, mas a sua mãe, a infernal Isabel, continua viva, e depois da derrota e da tentativa de envenenamento do meu filho teve que nos pedir desculpa e mantém todo o seu ódio escondido (1).
- Ela agora é freira. Está retirada na abadia de Fontevrault.
- ... Onde repousam os Reis Plantegenetas. Ela renegou aquele infeliz Lusignan, seu segundo marido, só se quer lembrar que foi Rainha de Inglaterra e recuperou, assim, o seu estatuto. Mesmo entre os mortos!
- Onde está, Deus deve ter tido piedade da sua alma extraviada. Além disso, ela, agora, é uma mulher velha - acrescentou Margarida, que se apercebeu demasiado tarde do disparate.
A resposta chegou como uma flecha:
- Ela só tem mais dois anos do que eu!
- Mas muito menos sabedoria e experiência! Acreditai, senhora minha mãe, o Rei, ao fazer-se cruzado, sabe muito bem que o reino não correrá perigo... visto que vós estareis aqui!
Os olhos negros da Rainha-Mãe semicerraram-se enquanto perscrutavam aquele gracioso rosto tão perfeitamente inocente da sua nora.
- Se o Rei se ausentar, a regência pertence à sua mulher. Por direito!
- Que faria eu com ela - gemeu Margarida com um ar assustado - eu, que não entendo nada de política, quando vós sois tão entendida e quando reinastes tão bem enquanto o meu querido sire foi criança? Aliás, ninguém compreenderia que
(1) Isabel d'Angoulême, mulher de João, Sem Terra, irmão de Ricardo, Coração de Leão, voltou a casar-se, uma vez viúva, com o seu antigo noivo Hugo de Lusignan, conde de La Marche, a quem forçara à revolta contra São Luís.
a regência não fosse para vós... E eu seria a primeira, que tenho tanta dificuldade em dar ao reino os herdeiros de que ele tanto precisa. Sabei, minha mãe, que, se me quiserem investir com tão pesado cargo, recusá-lo-ei!
- A sério?
Margarida teve, então, um belo gesto. Com o encantador sorriso que lhe ganhava tantos corações, dobrou o joelho diante de Branca, pegou-lhe na mão e beijou-a:
- A partir deste momento presto-vos a vassalagem devida como primeira das vossas súbditas...
Aquilo foi tão bem dito que Branca, com o rosto subitamente liberto de todas as nuvens, ergueu Margarida para lhe dar um beijo na fronte:
- Na verdade, sois uma boa filha! - disse ela.
Após o que voltou para os seus aposentos, mas só três ou quatro minutos depois de ela ter saído é que a jovem Rainha se virou para a sua dama-de-companhia. Esta ria-se sem reservas:
- Meu Deus, Madame, fostes magnífica e ei-la toda empertigada com a ideia de reinar de novo! Doravante, tendes de ter muito cuidado para que esse bebé seja saudável, antes de nos prepararmos para a cruzada!
- Acreditas mesmo que me vão permitir seguir o meu marido?
- É a coisa mais normal do mundo! Uma Rainha não abandona o seu marido quando ele parte para fazer a sua peregrinação. Mesmo de armas na mão. Sempre foi assim.
- Ela não tentará convencer o meu querido sire a deixar-me para trás?
- O povo ama-vos. Poderíeis, sem querer, fazer sombra à regente. Ela ficará muito contente por se ver livre de vós... Mas menos do que vós dela! E o Rei será todo para vós.
- E para Deus! Não o esqueçais!
Nos dias que se seguiram, Luís recuperou tão bem que pôde retomar, para além do exercício do poder, as práticas de piedade que faziam parte integrante da sua vida quotidiana. O que era uma coisa custosa e que mergulhou o séquito e o povo, confusos, numa admiração que o canonizava antecipadamente.
O Rei ouvia, todas as manhãs, uma missa cantada, uma missa de Requiem sem cânticos e depois a missa do dia ou do santo, de acordo com o caso, com cânticos. Depois da refeição concedia a si próprio, uma sesta no leito. Em seguida, com um dos seus cape-lões, ouvia o ofício dos mortos, assim como as vésperas e as completas, chegada a noite. Naturalmente, jejuava na Quaresma, no Advento, nas ocasiões prescritas pela Igreja e exercia atentamente a caridade, consagrando uma parte da sua actividade a aliviar as misérias alheias. O que não o impedia de dedicar, ao serviço do seu reino, um trabalho considerável e de vestir o lorigão de guerra, combatendo tão bem como os melhores dos seus cavaleiros. Além disso, se lhe acontecia ter de fazer justiça, sabia ser compassivo, se bem que intransigente nas questões de honra e de virtude. As damas admiravam-no, ao mesmo tempo que o temiam um pouco,, já que sabiam que não gostava do fausto - salvo quando era preciso fazer demonstração da majestade real! - e que se podia mostrar cáustico quando sublinhava com ironia os atavios demasiado ricos ou pouco conformes com a decência. Nessa ordem de ideias, brincava com a sua jovem mulher sobre o gosto desta pelos vestidos cintilantes, peles sumptuosas e jóias bonitas. O que tinha o dom de exasperar Sancie:
- De que serve ser Rainha? - resmungava ela quando Margarida tinha de renunciar, com desgosto perceptível, a usar um adereço do seu tesouro pessoal.
Apesar de Luís se mostrar sempre generoso com ela, dava facilmente a entender que o dinheiro de uma soberana devia ir para os miseráveis em vez de para os mercadores de tecidos, joalheiros ou outras tentações.
Naquela manhã, justamente, Margarida enviara-a a um artesão da rue de La Vieille-Pelleterie para informar esse importante personagem de que a Rainha renunciava àquela bela sobreveste de veludo orlada de zibelina que ele lhe mostrara alguns dias antes. E Sancie estava de muito mau humor: lá porque quase perdera o marido não era razão para se amortalhar em vestidos velhos e véus de luto. Pelo contrário, a tempestade já tinha passado, mas continuava-se a agradecer a Deus e a melhor maneira de Lhe agradecer era fazer grandes gastos e, bem entendido, proclamar a Sua glória através de cânticos e novas preces! A adolescente não achava as duas coisas incompatíveis e, como tal, o uso do veludo e da zibelina era altamente recomendável. Sobretudo em Janeiro, que faz um frio de rachar.
Resmungando copiosamente do fundo da sua pelica cinzenta com capuz forrado de pele de esquilo, Sancie dirigia-se para a porta do palácio quando, no exterior, se ouviu um grito logo imitado pelo corpo da guarda:
- Mensageiro de Sua Santidade o Papa!
Um cavaleiro entrou no pátio a galope, deteve o cavalo e pôs pé em terra com a rigidez subsequente a uma cavalgada demasiado longa. O homem estava tão coberto de lama que sobre o seu grande manto a cruz papal estava quase invisível, mas o seu rosto, protegido por um lenço do mesmo tecido, estava reconhecível. Sancie, com quem ele acabava de se cruzar, teve um sobressalto, virou-se e voltou atrás. A correr, porque ele já subia os degraus da escadaria, mas atrapalhada pelo longo vestido, a jovem não igualava em velocidade as longas pernas do mensageiro e quando o encontrou já ele estava entregue aos cuidados de um meirinho real, que o conduziu aos aposentos do Rei, a Câmara Verde, onde este acabava de terminar as suas orações da manhã e recebia dois dos seus conselheiros, Pedro de Fontaine e Godo-fredo de Villèlle. Percebendo que não conseguiria alcançá-lo, já que um mensageiro do Papa era introduzido imediatamente, Sancie hesitou um instante e depois, renunciando a ir ao peleiro, subiu o resto da larga escada de caracol e regressou para junto da Rainha, que encontrou a experimentar na sua filha Isabel um vestido novo na companhia de Perbambine, a sua ama, o que não era tarefa fácil. A pequenita achava o jogo divertido, contorcia-se como um verme e como digna herdeira da vivacidade maternal recusava-se a ficar quieta.
- Assim não conseguimos! - suspirou Margarida antes de se virar para a sua jovem dama-de-companhia, que entrara de rompante: - O quê, Sancie, já de regresso? Imaginas que mudei de opinião?
- Não é isso, mas acaba de chegar um enviado de Sua Santidade, que foi imediatamente presente ao Rei...
- Eu sei! Ouvi-o chegar. Que tem isso de tão espantoso? Pareces perturbada.
- É que, Madame... é que é... é sire Renaud de Courtenay e... fiquei preocupada.
Deixando Isabel, por fim mais calma, Margarida levantou-se:
- Queres dizer que o mensageiro que acaba de chegar é ele? Parece-mè um grande atrevimento... mesmo com as cores do Santo Padre! Madame Branca está com o Rei?
- Por minha fé, não sei...
- Nesse caso, vou lá! Na verdade, não sei porquê, mas esse jovem parece decidido a criar a si próprio o maior número de aborrecimentos possível. Regressar ao palácio sem autorização, quando foi banido: é uma loucura!
- É o que eu também penso. Depressa, Madame! Margarida, espantada, olhou para o fundo dos olhos de Sancie com a sombra de um sorriso:
- Mas, diz-me uma coisa: Dir-se-ia que este rapaz te preocupa?
- Em que estais a pensar, minha dama e minha Rainha? Como a vós, interessa-me porque Madame Branca o tomou de ponta, fez dele sua vítima e é um dever cristão combater a injustiça.
Dessa vez, Margarida desatou a rir.
- Confessa que se a “vítima” fosse menos bonita, se tivesse uma bossa nas costas e se fosse zarolha, serias menos sensível ao seu destino!
Com os olhos verdes a chispar, Sancie ripostou, encolhendo pouco cerimoniosamente os ombros:
- Hum! Como se a Rainha não soubesse que eu estou a seu lado seja em que circunstâncias for quando se trata de se opor às intenções demasiado autoritárias da sua sogra!
- Se é só isso, tanto melhor! - disse Margarida, quase séria. - É que, vê lá tu, eu não gostaria nada - e o teu pai ainda menos! - que ligasses o teu coração a esse jovem do qual, no fundo, não sabemos nada...
- Eu não ligo coisa nenhuma! - exclamou Sancie com uma cólera de que a jovem Rainha não a sabia capaz. - E vós, Madame, mau grado o respeito que devo à Rainha de França, já devíeis estar junto do vosso senhor marido em vez de... de...
Não encontrando as palavras e sentindo as lágrimas chegarem-lhe aos olhos, a dama-de-companhia pegou na pequena Isabel ao colo e levou-a até à chaminé, onde dormiam dois gatitos num cabaz. Margarida seguiu-a com os olhos e com alguma compaixão. Temia, quase desde o momento do seu nascimento, o momento em que a sua afilhada descobriria o amor, visto que o seu rosto ingrato não tinha com que fazer sonhar um rapaz, mesmo se o seu nascimento e o seu dote pudessem atrair-lhe alguns pretendentes, entre os quais Maximiano de Signes saberia fazer uma escolha criteriosa para o prestígio da sua linhagem e saberia impô-lo, se Margarida não conseguisse desencantar um marido capaz de não tornar a pequena demasiado infeliz. Mas se ela se apaixonasse por aquele jovem Courtenay sedutor mas inconsequente e talvez perigoso, era de temer o pior, já que Sancie não era daquelas que renunciam sem luta e essa luta podia ser desastrosa. Ora, se Margarida não lamentava ter tentado arrancar Renaud ao ódio incompreensível de Branca, o seu regresso inopinado aborrecia-a um pouco. O Imperador Balduíno, ao alistá-lo à sombra da sua bandeira, oferecera-lhe uma hipótese de construir para si próprio um destino conveniente. Por que não se agarrara o jovem a ele? E por que golpe de magia passara para o serviço do Papa... ao ponto de ousar regressar com as suas cores? Quanto às suas motivações, escapavam-lhe por completo: era uma verdadeira loucura! Era certo que Luís era a bondade em pessoa, mas era obstinado. Quanto a Branca, o imprudente só poderia esperar dela o pior...
E o pior não estava longe quando o meirinho lhe abriu a porta da Câmara Verde.
O começo fora bom. Sem olhar para o mensageiro que pusera um joelho em terra logo à entrada, Luís avançara apressadamente ao seu encontro, desprezando o protocolo na pressa de receber a carta do Santo Padre, que beijou. O Rei fez saltar o selo, desenrolou o pergaminho e começou a ler...
- Que faz este homem aqui? Permitistes que ele regressasse, sire meu filho?
Ao ouvir a voz indignada da sua mãe que acabava de entrar, Luís ergueu os olhos:
- De quem falais, minha mãe?
- Dessa personagem imprudente que vós banistes e que eu vejo aí! Mas, enfim, olhai para ele. Não o reconheceis?
Então, o Rei olhou para Renaud, franziu o sobrolho e aproximou-se dele, dizendo:
- Ele é o enviado do Santo Padre, minha mãe. Confesso que não prestei atenção ao seu rosto. Como é possível estardes aqui? - perguntou ele severamente ao jovem.
Mas Renaud não teve tempo de responder. A Rainha-Mãe encarregou-se disso:
- Enviado do Santo Padre? Ele? Ora vamos! Ele deve ter tomado o lugar do mensageiro, talvez matando-o, para vir aqui provocar-me. Este género de homem é capaz de tudo! Guardas!
A cólera que se apoderou de Renaud foi superior à mais elementar noção de prudência. O jovem levantou-se, fez frente à impetuosa castelhana e gritou:
- Mas, enfim, Madame, que vos fiz eu? Por que persistis num ódio tão grande, quando eu nunca vos tinha visto?
- Ódio? Sois muito vaidoso! Eu só tenho desprezo pelo parricida que sois...
- Eu nunca matei ninguém! - urrou ele. - E sou o enviado de Sua Santidade Inocêncio IV, como diz o passaporte que tenho aqui - acrescentou ele, tirando um rolo de pergaminho da túnica. Em seguida, prostrando-se de novo aos pés de Luís: - Suplico ao Rei que me oiça e que me diga o que fiz para merecer um tratamento tão rude...
- Eu também gostaria de saber - disse calmamente Margarida, que chegava naquele momento, e a sua aparição, como que por milagre, acalmou o furor do jovem. - Por que razão não quereis acreditar, minha mãe, no que este rapaz pretende ser?
- Porque é impossível! Mensageiro do Papa! E que mais? Por meio de astúcia ou à força, digo que ele tomou o lugar do correio para vir aqui perpetrar não sei que...
- Um momento, minha mãe! - cortou o Rei que, durante a escaramuça, tivera tempo de terminar a leitura da carta papal.
- Ele é mesmo quem diz ser. O Mui Santo Padre deu-se ao cuidado de o atestar aqui.
- O Papa menciona-o na sua carta?
- Menciona! Vede vós mesma!
- Não. A indignação enevoar-me-ia a visão!
- Nesse caso, eu resumo. Inocêncio IV, que me diz ter rezado muito pela minha cura, envia-me a sua bênção paternal, diz-me que se instalou em Lyon e que vai ali reunir o concílio, onde espera que compareçam os cardeais e os bispos de França.
Branca de Castela acalmou-se instantaneamente, presa da atenção que dedicava sempre aos negócios do Estado:
- O Papa conseguiu sair de Roma? Está em Lyon? Como é possível?
- Justamente, ele diz-me que o seu mensageiro poderá informar-me, porque participou na sua evasão com o Imperador Balduíno... Também me diz que, como recompensa e a pedido do Imperador, o ouviu, por especial favor, em confissão...
- O Papa ouviu... - articulou a Rainha-Mãe, sufocada.
-... e deu-lhe a sua absolvição plena e total, tendo-o achado puro do crime, assim como de qualquer falta grave. Razão pela qual, de acordo com Balduíno, ele o escolheu para nos trazer a sua carta...
- É incrível!
- No entanto, é verdade - disse Luís com uma grande doçura. - Reparou o mal que fizemos ao fazermos má justiça. Levantai-vos, Renaud de Courtenay! O Rei deve-vos desculpas... e talvez, também, a sua nobre mãe!
- Certamente que não! Uma Rainha só presta contas a Deus! No que me diz respeito, quanto menos vir este... jovem, melhor.
Tendo dito aquilo, Branca abandonou os aposentos seguida por Margarida que, descansada quanto ao destino de Renaud, queria tentar suavizar o humor da Rainha-Mãe e, sobretudo, levar a boa notícia a Sancie. Só com o mensageiro, Luís sentou-se aos pés do seu leito como fazia muitas vezes e apontou ao jovem o tapete estendido à sua frente.
- Contai-me como o Santo Padre conseguiu sair de Roma...
Renaud esforçou-se por fazer um relato tão claro quanto possível, o que não era fácil já que não estava ao corrente das intermináveis disputas entre Inocêncio e Frederico, entre guelfos e gibelinos, mas Luís IX não ignorava nada e pôde ajudá-lo a pôr tudo em ordem. Quando o relato terminou, o Rei permaneceu em silêncio durante alguns momentos, reflectindo, antes de declarar:
- Depois desta longa jornada deveis necessitar, penso, de um pouco de repouso. Vamos dar ordem para que cuidem de vós. Entretanto, nós vamos pensar na resposta a dar ao Santo Padre. Tê-la-eis dentro de três dias.
Renaud levantou-se e não procurou esconder a sua decepção por se ver recambiado de volta:
- Sire- ousou ele - Nem Sua Santidade... nem o Imperador Balduíno esperam o meu regresso. Eles sabem que o meu desejo de servir o Rei não me abandonou... e sobretudo o desejo de o acompanhar na cruzada!
- E eles acham que ficaremos convosco aqui uma vez a honra lavada? - perguntou Luís com uma bondade que lhe iluminou o olhar azul. - Gostaria muito. Seria um acto de justiça. Talvez quando a cruzada partir. Porque, enquanto a Rainha-Mãe vos detestar a este ponto, não será bom para vós nem para ela, aliás, obrigá-la a ver-vos todos os dias. É preciso deixar passar o tempo... e rezar! A propósito, vinde connosco à capela para começar desde já a pedir ao Senhor que se digne suavizar o humor da nossa mãe. Ficais a saber - acrescentou ele com um daqueles sorrisos maliciosos que o tornavam, por vezes, irresistível - que nós achamos que numa empresa desta envergadura nunca é cedo para começar!
- A Rainha-Mãe acompanhará o Rei quando ele partir para São João de Acra?
- A Rainha-Mãe ficará responsável pelo reino que tão bem governou durante a nossa infância. Ela não partirá... Mas nós acolheremos todos os bons combatentes que desejem alistar-se para a glória de Deus e para a libertação do Santo Sepulcro.
- Poderei regressar, então? - perguntou Renaud, sentindo renascer a esperança.
- Sem dúvida, mas, entretanto, levareis a minha carta ao Santo Padre e regressareis para junto do vosso Imperador. Tendes de saber que uma expedição tão grande a uma terra longínqua exige meses, às vezes anos de preparação...
Meses, anos! Ou talvez nunca? Não seria a primeira vez que um soberano, por razões de saúde ou de governação, renunciava a colocar uma distância tão grande entre si e o seu reino!
A esperança, nascida há tão pouco tempo, agonizava. Apesar disso, esforçando-se por esconder a decepção, Renaud murmurou:
- Nesse caso, esperarei o Rei de França e os seus cavaleiros cruzados em Constantinopla.
O Rei, que já se dirigia para a escadaria, virou-se:
- Quando partiu para libertar Jerusalém, o nosso avô, o grande Filipe Augusto, não foi a Constantinopla - disse ele docemente. - Foi por mar, como Ricardo de Inglaterra... que ele não queria perder de vista. Rumaram ambos à Sicília, onde as duas forças se reagruparam. Depois, Filipe continuou o seu caminho em direcção a São João de Acra, enquanto Ricardo ia conquistar a ilha de Chipre, da qual fez um reino católico e uma excelente base para a reconquista...
Senhor! Só lhe faltava aquilo! Luís, o Santo, também queria ir por mar... e evitar a antiga Bizâncio?
- Mas, sire, desta vez não tendes o inglês para vigiar! E o mar não será perigoso para navios tão carregados?
- Menos do que o caminho por terra, se for preciso abri-lo combatendo contra o Imperador da Alemanha. A boa vontade de Frederico II para com uma cruzada que ele não quer, porque continua a arvorar o título de Rei de Jerusalém, é muito suspeita. E a França já se vê em palpos de aranha para conseguir equilibrar a balança com o par de inimigos figadais que, infelizmente, ele forma com o Santo Padre.
- Nesse caso - murmurou Renaud, acabrunhado - que vai ser do meu pobre soberano, o Imperador Balduíno? Ele espera há tanto tempo a chegada de um grande exército que, antes da Terra Santa, o ajude a consolidar o seu poder tão periclitante!
Sempre a conversar, os dois homens tinham descido a escadaria. Chegado ao patamar, Luís IX parou e olhou para o seu jovem companheiro:
- Podeis ter a certeza de que não o esqueço. Eu conheço as suas necessidades e o seu legítimo desejo de reinar em paz o império onde nasceu, mas quando fordes mais velho compreendereis que, em política, as coisas não se podem fazer de ânimo leve. Foi por isso que vos disse há momentos que, antes de fazer frente aos Infiéis, é preciso fazer os possíveis para que a nossa ausência não provoque sofrimentos inúteis... Sabei, simplesmente, o seguinte: antes de ir cumprir o meu voto, encontrar-me-ei com o Santo Padre e com o vosso Imperador. E agora ide rezar! Parece-me que tendes necessidade.
Tendo dito aquilo, o Rei desceu os degraus do patamar e dirigiu-se em grandes passadas para a velha capela de São Nicolau que iria ser substituída, dentro de pouco tempo, pela maravilhosa igreja-relicário de Pedro de Montreuil. Apesar do frio, a sobre-veste cinzenta do Rei, orlada de pele de esquilo, esvoaçava alegremente ao ritmo da sua marcha. No pátio, os soldados, os funcionários e os visitantes perfilaram-se para saudar o soberano, que lhes respondeu com um gesto da mão e com um sorriso. Renaud seguiu-o o melhor que pôde, um pouco atrapalhado com a sua personagem, mas consciente da honra que lhe era concedida ao ser convidado a rezar com Luís.
Subitamente, um homem foi ao seu encontro e saudou-o, mas sem se afastar da trajectória seguida pelo Rei, barrando-lhe, até, o caminho. O que não era difícil, dadas as dimensões do monarca. De barba negra e tez trigueira, o olhar iluminado por uma exaltação incompreensível, era um homem monumental. Com um pescoço de touro e uns membros espessos como ramos de carvalho, interpelou o Rei:
- Ela vai morrer! - rugiu ele com uma voz que vez voar os pombos que estavam empoleirados no telhado da cavalariça. - Aquela mulher divina vai morrer de vergonha e de cólera e terás sido tu, Rei Luís, que a terás matado...
Com um gesto, Luís manteve os guardas à distância. O homem, era verdade, era assustador, mas o Rei não parecia ter qualquer receio.
- Quem és tu? - perguntou-lhe ele. - E quem é essa mulher cuja morte me pesaria na consciência?
- Sim, eu não tenho importância. Quanto a ela, ninguém é digno de pronunciar o seu nome. Nem sequer eu, que a amo há tantos anos. Ela sofre no seu orgulho ferido, na sua signidade de mulher e eu vim aqui dizer-te: devolve-lhe a honra e o orgulho! Vai ter com ela enquanto ainda é tempo! Acompanha-me até junto dela para te ajoelhares, como ela fez perante ti, e dizer-lhe quanto lamentas...
O homem estava muito exaltado e o seu olhar cintilante inquietou o capitão da guarda. O oficial quis intervir:
- Sire... - começou ele.
Mas este fê-lo calar-se com um gesto:
- Deixai! Eu nunca me recusei a ouvir quem pensa ter queixas contra mim! E tu, que te recusas a dizer quem és, como queres que eu saiba quem prejudiquei se não me dizes? Mais uma vez, quem é essa mulher?
E como o desconhecido se mantivesse silencioso, o Rei pediu-lhe que lhe dissesse, pelo menos, onde ela se encontrava, a que local devia ir. O homem, então, continuou:
- Nas margens do Loire está a abadia para onde ela se retirou, ela que foi Rainha mais pela sua beleza do que pela coroa, ela que não permite que o marido miserável que a traiu se aproxime, nem os tristes filhos que lhe deu! Vem comigo a Fontevrault pedir-lhe a mesma desculpa que ela foi obrigada a pedir-te!
Luís teve um sobressalto e recuou um passo com o sobrolho severamente franzido. O Rei compreendera de quem se tratava:
- Estás a falar daquela que foi Rainha de Inglaterra, que é a mãe de Henrique III, meu cunhado, e que esqueceu o seu estatuto e as leis divinas ao tentar envenenar-nos? Falas de Isabel d'Angoulême, então condessa de Lusignan...
- Não, de Lusignan não! Isso não passou de um erro! Foi para o desfazer para sempre que ela se retirou para a abadia onde repousam os Plantagenetas! Para a abadia que lhe devolve a coroa e onde, talvez em breve, ela poderá repousar junto deles! Vem, digo-te! Jurei sobre o altar que antes de fechar os olhos sobre a lamentável luz deste mundo ela te veria de joelhos, chorando e pedindo perdão! Vem! Ainda vais a tempo! Reúne os teus cavaleiros e vamos ter com ela em boa ordem para que a homenagem seja ainda maior!
A medida que ele falava, a cólera dava lugar à piedade no olhar do Rei.
- Tu és louco! - disse ele com uma grande doçura. - Se não fosses, saberias que pedes o impossível! Se ela está a morrer...
- Não, mas está doente, sim, e a tua ida, como já disse, seria o melhor remédio. Vem comigo!
- É ela que te envia?
- Li-o nos seus olhos, porque sou a sua última esperança.
- Não. A sua última esperança é Deus Todo-Poderoso! Só Ele pode extirpar o ódio do seu coração inacessível e é a Ele que é preciso pedir que devolva a paz à sua alma. Rezarei por ela...
- Ela não quer saber das tuas preces para nada! Uma vez mais, vens comigo?
- Não.
Renaud, que se sentia fascinado pelo homem, avistou o punhal. Um súbito impulso fê-lo atirar-se contra o Rei, tão violentamente que o atirou por terra. E a lâmina assassina penetrou-lhe no peito. Com um grito, o jovem foi-se abaixo, ao mesmo tempo que os seus olhos se fechavam para a luz do dia...
O “MÉDICO” DO REI...
A dor! Foi ela que lhe disse que não estava morto. Apesar de ter demorado algum tempo a convencer-se. Cristão convicto, não duvidava que havia outra vida para além da morte, mas, para ele, se deixasse este mundo em estado de graça, iria para um lugar vago - não tinha a veleidade de se crer prometido ao paraíso! - agradável, fresco e repousante. Ora, sentia-se arder de febre, ao ponto de quase delirar e a respiração era-lhe dolorosa. Estava no purgatório, sem dúvida? Aquela espécie de pensamento vinha-lhe à mente quando estava consciente, porque durante o resto do tempo sentia-se transportado aos abismos inflamados da febre, de onde surgiam estranhas formas. Então, gritava, chamando em sua ajuda as poucas imagens doces que a sua vida passada lhe oferecia: a sua mãe adoptiva, sobretudo, aquela Alais de rosto apagado, de olhar azul meigo, que sabia tão bem apaziguar-lhe os males da infância, tratar-lhe dos pequenos ferimentos e tranquilizá-lo, sobretudo tranquilizá-lo! Em certos momentos acreditava estar de regresso a Courtils, ao pomar onde zumbiam as abelhas, mas aquela que ele perseguia - no entanto tinham-no proibido! - virava-se contra ele e picava-o cruelmente, fazendo-o regressar a um inferno semelhante à sala baixa do Chàtelet, onde se abria uma garganta vermelha eriçada de picos ardentes.
Por instantes, parecia-lhe ver um anjo e cada vez que a luminosa silhueta branca aparecia, a tortura terminava. Sentia, até, uma espécie de alívio nas queimaduras. Como que uma frescura.
Mas o anjo nunca sorria. Olhava para Renaud com um olhar severo, inquieto, abanava a cabeça e desaparecia... e pouco depois o sofrimento regressava. Talvez pensasse que a sua alma ainda não merecia ser redimida, necessitando ainda de algumas rações suplementares de suplício? E isso era terrível porque à dor acrescia um sentimento terrível de abandono e o infeliz via-se de novo só numas trevas vagas às quais se juntava aquela forja que atiçava o fogo cujo som lhe enchia os ouvidos.
Uma noite - devia ser noite porque havia uma vela acesa! - Renaud teve a impressão de que o tiravam de um poço de calor para o levar para uma temperatura mais clemente. Já não havia brumas incandescentes e o anjo, inclinado para ele, tomava a aparência de uma mulher vestida de cinzento-pálido e com a cabeça coberta por um véu azul. Ele sabia que era o anjo porque lhe reconhecia o rosto de traços severos, mas dessa vez ele sorria e isso mudava tudo. O ferido sentia-se vivo, livre dos seus demónios, de todos os fantasmas da doença.
- Bem - disse o anjo com uma ressonância alegre na voz, que lembrava o pequeno sotaque da Rainha Margarida. - Dir-se-ia que, feitas as contas, decidimos viver?
- Parece... que decidiram por mim - disse Renaud com uma voz rouca, que lhe pareceu vir dos pés. - Dama, achais que estou mesmo vivo? Há tanto tempo que não sei...
- Posso dizer, hoje, que o perigo está afastado, mas, durante muitos dias, tememos pela vossa vida. O ferimento está a fechar e o pulmão já não silva. Louvado seja Deus! No entanto, ainda não estais curado. Como vos sentis?
- Muito cansado. Parece-me que já não tenho forças...
- Elas regressarão com uma boa alimentação e algum exercício. Por agora, precisais muito de repouso.
Os olhos do ferido deram a volta ao local em que se encontrava. Uma divisão exígua, parecida com uma cela monacal, mas a cama estreita era confortável e em cima da pequena janela, que deixava entrar alguns raios de sol, um vaso de manjerico exibia as suas folhas verdes, resumindo o que devia ser o campo naquele momento. Na parede, nua, uma simples cruz de madeira castanha.
- Onde estou? - perguntou Renaud.
- No interior do palácio. O nosso sire, cuja vida salvastes, quis que vos tratássemos aqui. E fui eu que me encarreguei. Chamo-me Hersende e venho da Provença, como a nossa jovem Rainha. O bom conde Raimundo Bérenger, o seu pai, apesar de estar doente, também ele, enviou-me quando soube o Rei Luís em grande perigo de morte. Então, abandonei Forcalquier para vir em sua ajuda, mas, quando cheguei, Deus já tinha feito o trabalho todo.
- Sois... médico? - perguntou Renaud, espantado.
- Diria antes enfermeiro... ou enfermeira, porque não recebi o diploma de nenhuma escola. Tudo o que sei aprendi com o meu pai, que estudou na famosa universidade de Montpellier. Ele diz que eu já sei tanto como ele e que não tem mais nada para me ensinar... Deixai-me ver o vosso ferimento!
Hersende possuía os dedos mais leves e mais hábeis do mundo. Sem fazer sofrer o seu paciente, retirou o emplastro que protegia a chaga, limpou esta com um tampão de linho embebido em vinho, examinou com atenção os lábios finos que se fechavam satisfatoriamente, embebeu-os num bálsamo “samaritano” feito de azeite e vinho tinto cozidos ao lume e reduzidos até se obter uma espécie de creme, tapou tudo e suspirou:
- Tivestes sorte: a lâmina falhou o coração, mas atingiu o pulmão. Mas não muito profundamente, creio. Parece que está a recuperar bastante bem...
- Tenho alguma dificuldade em respirar. Isto passa? O jovem parecia tão inquieto que Hersende sorriu:
- Quereis saber se ainda vos podeis bater? Manejar a espada...
- Ir na cruzada! Oh sim, é tudo o que desejo neste mundo!
- Tudo? Na vossa idade? Isso é muito triste. Mas ficai tranquilo: nos primeiros tempos tereis alguma dificuldade, mas depois isso passa e podereis ser ferido as vezes que quiserdes!
- Muito obrigado, dama Hersende! Dais-me uma grande alegria! E continuareis aqui para me tratar... ou regressais à Provença, já que o Rei está curado?
- Não. O nosso sire deseja que eu fique. Primeiro por causa de Madame Margarida, que está à espera de outro filho e a quem, como parteira, vou prestar os meus cuidados. A pobre já perdeu dois e é preciso que esta gravidez tenha um fim feliz! E agora repousai! Tendes fome?
- Parece-me que... sim!
- Vou mandar que vos tragam de comer. Tendes que recuperar as forças.
Ela já ia a sair, levando o emplastro e o linho sujo, mas Renaud reteve-a:
- Só mais uma palavra, por favor. O homem que tentou matar o Rei. Que lhe fizeram?
- Executaram-no, evidentemente, mas em vez de ter sido esquartejado por quatro cavalos, enforcaram-no muito simplesmente e sem tortura preliminar, porque ele já tinha dito tudo. Assim o quis o nosso bom sire Luís. E agora repousai!
Renaud não tinha mais nada para fazer. Tanto mais que se sentia verdadeiramente cansado, mas também feliz porque estava vivo, primeiro, por a sensação de respirar, mesmo que com dificuldade, era maravilhosa, e depois porque o tinham instalado no palácio da Cité. No palácio! Por baixo do mesmo tecto de Margarida, a sua Rainha bem-amada... Ela estava ali, algures sob aquele pequeno quarto, algures no interior do palácio. Tão perto, na verdade! E ele pôs-se a sonhar que ela talvez o fosse ver... E preocupou-se com o seu aspecto. Qual seria o seu aspecto? O jovem passou a mão pela face, por uma barba de vários dias que não devia ser muito lisonjeira. Renaud tinha a impressão que ela crescia em todos os sentidos. Quanto aos cabelos, uma verdadeira moita! Mas talvez a estranha mulher-médico tivesse a bondade de lhe arranjar um barbeiro!
Renaud pediu-lho quando ela regressou com um frasco e uma colher, com a ajuda da qual o fez beber um líquido espesso e esverdeado cujo gosto a ervas não era desagradável. O seu pedido fê-la rir:
-Já com desejo de agradar? Isso é bom e eu admito que os vossos cabelos precisam de umas tesouradas, mas, se fosse a vós, deixaria a barba crescer mais um pouco. As vossas faces estão tão macilentas e os olhos tão encovados que, no vosso lugar, não teria muita pressa em me expor aos olhares das pessoas!
Assim informado, o jovem não insistiu, contentando-se em devorar o conteúdo de um tabuleiro que uma serva lhe trouxe: carne assada, pão branco e queijo fresco, acompanhados de um pequeno jarro de vinho, achando que era, talvez, o melhor meio para conseguir uma cara apresentável...
Terminada a refeição, Renaud já se ia deitar para ceder ao sono que se aproximava quando a porta se abriu de novo e ele ouviu o sussurrar de um vestido. Pensando que Hersende regressava, manteve os olhos fechados, mas, passado um momento, consciente de uma presença imóvel junto do leito e sobretudo de um perfume diferente do da “enfermeira”, ergueu as pálpebras e estremeceu: Branca de Castela estava diante de si. Com as mãos no fundo das largas mangas da sua sobreveste branca orlada de arminho, ela observava-o com uma intensidade que o assustou: era a última pessoa que esperava ver, já que os seus encontros anteriores não lhe tinham agradado nada.
- Senhora Rainha - gaguejou ele. - Mui nobre dama, eu...
- Não tenhais medo! - disse ela com uma doçura inesperada. - Não vos venho atormentar, venho ver como vos sentis. A dama Hersende andava muito preocupada convosco porque a febre não baixava, mas hoje mostrou-se confiante... No entanto, quis vir certificar-me.
- A Senhora Rainha é... muito boa!
- Tendes a certeza que pensais desse modo? Eu não vos dei oportunidade para isso. É verdade que não gostava de vós e continuo a não gostar muito. Tenho más recordações de vós. Mas... salvastes o Rei ao vos atirardes sobre a faca do assassino, arriscando, portanto, a vossa própria vida. E, por esse gesto, ficar-vos-ei reconhecida para sempre. O Rei saberá, creio, agradecer-vos e, pela minha parte, gostaria de vos dar uma demonstração da minha gratidão. Que desejais?
- Nada... senão servir a Coroa, como me obrigou a jurar, no leito de morte, Olin des Courtils, a quem chamo pai.
- Não gostais do Imperador Balduíno?
- Oh sim! Tenho muito respeito por ele, muita afeição e uma grande gratidão por me ter protegido. E também por... ele mesmo. Mas... ele é soberano de Constantinopla. Portanto, é lá que ele deve estar, o que é natural porque é o seu feudo e foi onde ele nasceu, mas, para mim, Constantinopla não significa nada. Lá, seria um estrangeiro e, portanto, um infeliz...
- E onde é que não seríeis um estrangeiro?
- Em França, é claro, porque foi ela que me alimentou, educou... - Mas foi na Terra Santa que vistes a luz do dia pela primeira vez, não é verdade?
- É verdade e é com ela que sonho. Por isso, o que mais desejo, acima de tudo, é seguir o Rei e mais ainda desde que ele pegou na cruz...
- A cruzada! - resmungou Branca. - Magnífica e insensata!... Ir para o fim do mundo de estandartes ao vento e os cavalos a escarvarem o solo, deixando atrás de si um reino abandonado!
- Abandonado? Olhai que não, porque vós ficareis aqui.
- Ah! Também vós!... Mas olhai, vós que sois todos uns loucos, que eu já não sou nova, posso morrer!
- Não, Madame. Deus não o permitirá, porque é para libertar o túmulo do Seu filho que o Rei se vai ausentar!
O jovem dissera aquilo tranquilamente, como se se tratasse de uma coisa evidente e a Rainha-Mãe olhou para ele com olhos meditativos:
- Ninguém será capaz de dizer a verdade pura? Onde arranjastes essas certezas, meu rapaz?
- Não sei. Vieram-me à cabeça...
Ela olhou de novo para ele, perguntando a si própria se ele não estaria a fazer troça; não, o ferido estava sereno e limitava-se a enunciar o que devia ser, para ele, a verdade primeira. Branca não encontrou mais nada para acrescentar senão:
- Tende cuidado convosco! O Rei há-de, seguramente, vir ver-vos!
E saiu. Para se ver frente a Sancie, que chegava na ponta dos pés e com as duas mãos a segurar o vestido. Como o corredor destinado às celas de alguns oficiais do Rei era estreito, o encontro foi inevitável. Com um “oh” desiludido, a pequena deixou cair o vestido e saudou apressadamente: a “velha” era a última pessoa que esperava encontrar. Esta, evidentemente, perguntou-lhe secamente o que fazia ali. Corajosamente, Sancie enfrentou o inimigo:
- Vinha saber notícias de... do... - balbuciou ela, praguejando interiormente contra a dificuldade que sentia em pronunciar o nome de Renaud e, finalmente, renunciando.
- Da vossa parte ou da parte de Madame Margarida?
A pergunta era insidiosa, assim como o tom, mas Sancie já tinha recuperado:
- Da parte das duas - disse ela com audácia. - Esse pobre jovem já sofreu tanto que é um dever cristão interessarmo-nos pelo seu destino. Além disso, sei que a Rainha - face à “usurpadora”, a jovem sublinhou o título com tanto vigor que toda a palavra se tornou maiúscula! - me vai perguntar por ele daqui a pouco.
- Nesse caso, adiantais-vos? Sois uma boa dama-de-companhia! Mas dizei-me! Que idade tendes, Sancie?
- Vou fazer treze anos no próximo dia de Santa Madalena.
- Devíeis pensar em regressar a casa! O barão de Signes, vosso pai, conta com a vossa madrinha para vos casar bem, mas temo que, na corte, a tarefa seja árdua. Na Provença, com o vosso nome e com o vosso dote, será mais fácil.
A adolescente corou até à raiz dos cabelos:
- Eu não sei nada dos projectos do senhor meu pai, madame. Ele nunca se dignou falar-me disso e a senhora minha mãe também não. Talvez pensem que ainda sou muito nova?
- Sim, sim! É sensatez da parte deles e, no vosso caso, mais vale não se precipitarem, porque, para vos casarem terão de pagar um bom preço. Vós não sois avantajada no que se refere à beleza, minha pobre pequena!
De vermelha, Sancie passou a pálida como a cal, ao mesmo tempo que as suas pálpebras oblíquas deixavam passar um raio verde:
- Eu sou feia, Madame, e sei isso muito bem. Mas, até agora, nunca ninguém tinha ousado censurar-me por isso.
- Quem falou em censurar? Vós não tendes a culpa e pergunto a mim mesma se não sereis assim mais agradável aos olhos de Deus?
Com os olhos rasos de água, a jovem sentiu-se ferida no seu orgulho por aquela mulher coroada que tivera tudo na vida: nascimento, beleza, fortuna, amor, poder e até aqueles belos filhos dos quais idolatrava o mais velho, ao ponto de lhe desejar o melhor desde que esse melhor lhe viesse de Deus ou dela mesma, ao ponto, também, de detestar o marido entretanto escolhido por ela própria e de englobar nessa aversão aqueles que a serviam com amor e em particular a sua afilhada, simplesmente porque o Rei amava a sua mulher. Era uma atitude miserável! No entanto, Sancie esforçou-se por impedir que a sua voz tremesse ao replicar:
- Por que havia a minha fealdade de agradar ao Senhor? Se ele me quisesse, ter-me-ia chamado. Ele só aceita os corações que estão verdadeiramente inclinados para ele. O meu está inclinado para... várias pessoas.
- Entre as quais aquele que jaz por trás desta porta? Ou não tereis reparado a que ponto ele é belo?
- Ele não é o único na corte.
- Sem dúvida, mas vós estais neste momento diante do seu quarto.
- Mas... a Rainha...
- Se a minha nora quer saber notícias, a dama Hersende pode dar-lhas. Regressai ao vosso serviço e não volteis aqui, onde não tendes nada que fazer! A menos que queirais regressar à Provença ou, o que seria bem melhor, transpor as portas de um bom convento.
- Outra vez o convento? Mas porquê, já que...
- Para vos ensinar o respeito devido a uma Rainha e aprenderdes o que é a modéstia! Nunca vos disseram que vos pareceis com uma feiticeira com esses cabelos ruivos, esse nariz comprido e esses olhos de gato? Lá é que se combatem os maus instintos...
Era mais do que Sancie era capaz de suportar. Virando as costas à castelhana, a jovem fugiu e foi esconder a sua amargura no fundo do jardim, num ângulo esconso protegido por uma sebe onde se refugiava sempre que tinha um desgosto. O seu coração ardia com um ódio tão forte que lhe era impossível ir à capela, porque o ódio é uma ofensa a Deus e o seu nem sequer teria defesa: não havia ali nenhuma estátua da sua bem-amada Maria Madalena.
Nunca Sancie se sentira tão exilada naquele país do Norte. Era muito mais fácil fazer a paz com o céu no castelo paterno: Signes fica aos pés de Sainte-Baume, a gruta de acesso difícil onde a pecadora preferida de Cristo viveu a sua penitência. Chegava-se lá por uma vereda que partia de Signes. Era uma marcha interminável que, no entanto, todas as mulheres da aldeia efectuavam pelo menos uma vez na vida a fim de obter a fecundidade no casamento. A dama de Signes fora lá com um grande aparato pouco depois do seu casamento, mas Sancie nunca fora à gruta, buraco escuro aberto na montanha e onde só se podia entrar por uma escada rudimentar de grandes pedras irregulares talhadas na rocha. Era, ao que se dizia, um lugar húmido, sombrio e assustador. No entanto, Madalena vivera nela, solitariamente, mais de trinta anos, bebendo água de uma fonte, comendo raízes, privada de tudo ao ponto de as suas roupas se desfazerem em bocados e de ficar, apenas, com os seus longos cabelos, mas a lenda dizia que os anjos cantavam para ela sete vezes por dia e que, por vezes, a santa conseguia ver o rosto de Jesus, o redentor, que ela tanto amara e que continuava a adorar através dos tempos.
Saneie conhecia a história de Maria Madalena e perguntava muitas vezes a si própria se Cristo teria dado à bela pecadora mais amor do que ao resto da humanidade. Talvez uma outra espécie de amor? Quanto a ela, chegara-lhe vê-lo passar e desejara logo, de todo o seu coração, viver apenas para ele, para que fosse digna de ser amada. Daí a reclusão a céu aberto, onde todos os ribeiros da montanha nasceram das lágrimas que ela verteu. Mas devia ser fácil amar o Verbo incarnado, porque as multidões iam ter com ele e seguiam-no. Aliás, quando se ama, tudo se torna mais fácil. Salvo, talvez, receber tanto quanto se dá, quando se é feio...
Feia! Um estado a que uma rapariga não se habitua quando tem treze anos. Mesmo quando, sem dar aos outros tempo de lho dizerem, o proclama como um desafio na esperança de que, um dia, alguém lhe responda: “Não acho...” Até ao presente, ninguém reagira dessa maneira e, certamente, seria sempre assim no futuro...
No fundo do seu arbusto de loureiro, Sancie chorou as lágrimas todas do seu corpo. O que não o embelezou, mas, quanto a isso, não podia fazer nada. A jovem detestava a alternativa desenhada pela cruel castelhana, tanto mais que não via como lhe escapar: um casamento fatalmente odioso, visto que não seria amada, ou o convento, para ali morrer de raiva e desespero. Pensando bem, talvez preferisse a última solução. Renaud ia curar-se e talvez não regressasse para junto do Imperador. Ele e ela viveriam próximos um do outro. Que aconteceria no dia em que o veria apaixonar-se por uma bela donzela qualquer? Um espectáculo impossível de suportar, que a faria fugir para a sua querida Provença, evidentemente, mas ali, para evitar o Casamento, teria de vestir o hábito de freira...
Entretanto, era preciso regressar para junto da Rainha Margarida e Sancie abandonou o jardim. Na escadaria, a jovem cruzou-se com a dama Hersende que, ao vê-la, franziu o sobrolho e parou:
- Não é preciso chorar - disse-lhe ela. - Seja qual for a razão, é uma pena esses olhos verdes tão bonitos ficarem todos vermelhos!
- Achais? - perguntou Sancie, espantada com aquele cumprimento, o primeiro da sua vida.
- Evidentemente! Vinde comigo, donzela! Vamos lavá-los com água de tília. A Rainha não pode, no fim da sua gravidez, ver-vos nesse estado...
Fascinada, sem conseguir dizer uma palavra, Sancie seguiu aquela mulher providencial. Entretanto, pensou ter ouvido uns anjos...
Na tarde daquele dia Renaud soube, pela boca do Rei, que lhe dera a honra de o visitar no pequeno quarto, qual seria a sua recompensa: assim que se tivesse de pé entraria para o serviço do conde Roberto d'Artois, segundo irmão de Luís; em seguida, por ocasião da grande festa de Pentecostes, seria armado cavaleiro pela mão do Rei.
Era, enfim, a realização do seu mais velho sonho e a honra era imensa. No entanto, a alegria do jovem não era completa e Luís, com a sua fineza habitual, sentiu-o. O Rei cortou-lhe os agradecimentos:
- Pensáveis que, pelo facto de me terdes salvo a vida, eu vos poria logo ao meu serviço?
Renaud sentiu-se corar.
- Penso que monsenhor d'Artois, que é irmão do Rei, tem pela sua pessoa demasiada afeição para não ser, ele próprio, o seu primeiro servidor.
Luís IX ergueu as sobrancelhas, espantado, e sorriu:
- Eis uma bela resposta! Não sois, espero, um finório? Deixar-me-íeis decepcionado.
- Não, sire. Pelo contrário, tenho o hábito de dizer um pouco livremente aquilo que penso...
- Gosto mais assim. Quanto à vossa entrada para o serviço do meu irmão, sabei que a ideia não é minha. Foi ele que pediu porque lhe agradastes e ele deseja estar ligado a um homem tão dedicado como vós. Ele é, ficais a saber, não o nosso primeiro servidor, mas o nosso primeiro defensor. Passa mais tempo junto de nós do que no seu condado de Artois e vive mais tempo em Poissy, da qual é o castelão (1), do que nos seus castelos de Lens, de Hesdin ou de Bapaume. O que quer dizer que se afasta pouco e que, com ele, estareis sempre perto de mim.
Quando já se aprestava a sair, o Rei reconsiderou e virou-se: -Já me esquecia - acrescentou ele com um brilho de malícia no fundo dos olhos celestes. - Quando partirmos para a cruzada, é evidente que o conde Roberto vai connosco. Até nos precederá, se vir que não nos acontece nenhuma catástrofe na sua ausência. Ninguém, como ele, gosta de carregar sobre o inimigo, de cavalgar ao vento enquanto desfere umas boas espadeiradas. Além disso, não encontrareis o nosso primo Pedro de Courtenay, de quem ele não gosta. E quando o conde Roberto não gosta de alguém, não tem o hábito esconder essa animosidade...
Preso de uma enorme alegria, Renaud fez um esforço para se erguer e assim agradecer melhor ao Rei, mas este obrigou-o, com uma mão vigorosa, a ficar por baixo dos cobertores.
(1) O castelão, na Idade Média, nem sempre era o proprietário do castelo, mas seu encarregado e o seu defensor.
- Agradecer-me-eis servindo bem e, portanto, curando-vos depressa! O vosso novo senhor gosta que os seus servidores sejam capazes, tanto de dia, como de noite, de o seguir seja para onde for, com qualquer tempo e em todas as circunstâncias.
O programa era sedutor e só por má-fé Renaud não o aceitaria: acompanhar o mais belicoso dos príncipes de sangue real de França e ainda por cima com a perspectiva de ser armado cavaleiro pela mão do Rei, era qualquer coisa! Sobretudo para um rapaz que, no espaço de um ano, passara de presa em potência a um homem com um futuro extremamente prometedor depois de se ter visto no fundo de uma masmorra entregue aos atormentadores sob a mais ignóbil das acusações, alvo da aversão inexplicável de uma grande Rainha e do desprezo dos outros Courtenays, com excepção do mais extraordinário de todos: o senhor de um império falido onde ainda há pouco a riqueza ofuscava o mundo. Com ele, percorrera os caminhos da aventura e salvara um Papa, graças ao qual recuperara o direito de erguer bem alto a cabeça no país que o expulsara. Era o suficiente para atordoar qualquer um! Sem contar com a facada do louco!
Tudo somado, monsenhor Roberto seria o seu terceiro senhor no espaço de apenas alguns meses. Restava-lhe esperar que a estadia junto dele não fosse tão meteórica como a que passara junto do barão de Coucy, ou do Imperador Balduíno! Ora, que aconteceria se o seu ferimento sarasse mal e o impedisse de retomar o duro treino das armas, o combate com a espada, com a lança e com o machado? O turbulento conde d'Artois ficaria com um quase-inválido nas mãos e então...
Aqueles pensamentos tumultuosos ocuparam-no durante tanto tempo que, quando a noite caiu, a febre, essa, subiu. O que provocou o descontentamento da dama Hersende, quando apareceu para o ver.
- Por Santo Hipócrates, que vos disse o nosso sire Luís para estardes nesse estado?
- Que monsenhor d'Artois me ia colocar ao serviço da sua casa - gaguejou Renaud com os olhos rasos de água.
- Bem, isso é o suficiente para ficardes de candeias às avessas! No vosso lugar veria isso como uma boa notícia. O conde Roberto é o homem mais alegre e mais divertido da família! Bom companheiro e valente cavaleiro, além disso... -... que quer ter à sua volta gente capaz de o seguir seja para onde for e sem demonstrar a menor fadiga.,. Olhai para mim! Fraco como um recém-nascido, não ficará comigo oito dias! Quanto a andar de candeias às avessas, sinto a cabeça à roda quando tento pôr um pé no chão.
- Mas o vosso ferimento foi muito grave e monsenhor Roberto sabe-o. Se não o tivésseis recebido, estaria agora a chorar o seu Rei e irmão bem-amado! Tranquilizai-vos! Tendes muito tempo para recuperar. E eu estou aqui para isso. Chegou a hora de tomardes o remédio.
E entornou-lhe pela garganta abaixo duas grandes colheres da sua poção esverdeada, mas, dessa vez, ele perguntou:
- O que é isso, aí dentro?
- Língua de víbora pilada com testículos de lobo, cérebro de rã, mandrágora, dedaleira e diversos outros ingredientes - respondeu ela sem um sorriso.
- Que horror! Isso só pode ser uma coisa maléfica! Dessa vez, ela desatou a rir:
- Quando se fazem perguntas ridículas, recebem-se respostas ridículas! Quando já se viu fazer perguntas a um médico acerca dos seus produtos? Só mestre Alberto é que prepara licores miraculosos.
- Conheceis mestre Alberto?
- De reputação. Dizem que ele sabe fazer... não sei o quê... com o ouro? E também que é um grande sábio, mas a minha escola não é a mesma. Eu sou, devido aos ensinamentos do meu pai, uma fiel discípula da grande Trotula de Salerno (1). Mas, de onde é que o conheceis?
- Nunca o vi. Quando cheguei aqui, entrei para o serviço da dama Filipa de Coucy e escoltei-a, uma noite, à casa de mestre Alberto. A única coisa que sei é que ela ficou muito satisfeita e que...
(1) Célebre médica italiana do século XI cujos trabalhos, sobretudo em obs-treticia, provam um nítido avanço em relação ao seu tempo. A sua escola de Salerno tinha muita reputação. Foi a primeira a praticar a sutura do perineu.
- A dama de Coucy que era amiga da Rainha Branca?
- Por que esse “era”?
Porque ela morreu há pouco. Ouvi Madame Branca dizê-lo a Madame Margarida. Com uma grande cólera, aliás, mas também com grande piedade: a infeliz sucumbiu, pelo que sei, a uma violenta crise daquilo a que Aristóteles... e Trotula depois dele, chamavam eklampsia, depois de ter abortado um feto de quatro meses. O que explicaria as terríveis dores que sentia... se, entretanto, não foi envenenada... Talvez as duas coisas, não se sabe, alguns venenos são susceptíveis de provocar os mesmos sintomas.
- Envenenada? A dama Filipa? Mas por quem?
- Isso são perguntas a mais. Como posso saber? Vós deveis conhecer o seu séquito melhor do que eu...
- Mal. Só estive ao seu serviço em Paris e só durante alguns dias. Não estive em Coucy. Ela morreu lá?
A dama Hersende ajudou o doente a sair da cama, sentou-o num tamborete depois de lhe ter posto um cobertor pelos ombros, deu um jeito ao travesseiro, aos lençóis e aos cobertores, lavou-o e depois, sem ligar ao facto de ele estar a bater os dentes de frio, obrigou-o a ficar de pé durante alguns momentos:
- Como vos sentis?
- Tenho frio...
- É natural, mas sentis a cabeça a andar à roda?
- Um pouco... mas menos, parece-me.
Ela voltou a deitá-lo, puxou-lhe os cobertores até ao queixo e deu-lhe uma pequena pancada na face:
- Deixai de vos atormentar! Não ireis desfear a colecção de jovens heróis que rodeiam o conde d'Artois. Dentro de quinze dias já podereis montar a cavalo. E ainda bem, porque dentro de quinze dias partimos para Poissy para que Madame Margarida dê lá à luz e eu cuide dela. Por isso, arranjai-vos de maneira a não me desmentirdes! Detesto enganar-me!
- Farei os possíveis por vos contentar - respondeu ele com um sorriso.
Quinze dias mais tarde, o jovem observava, no pátio, a enorme mudança que representava o transporte da casa real de uma residência para outra. Levava-se tudo, desde os móveis dos quartos até às marmitas das cozinhas, passando pelos arquivos da Chancelaria e os instrumentos dos músicos. O Rei, se trocava o palácio por um dos seus castelos, tinha, sempre, de ter à mão os seus objectos familiares. Apenas a residência de Vincennes, às portas de Paris - um antigo pavilhão de caça transformado por Filipe Augusto e onde Luís gostava de pernoitar pelo prazer da floresta - mantinha as suas próprias instalações. O que não duraria muito. Luís estava a aumentá-la e até a construir, no interior do recinto fechado, uma Sainte-Chapelle nitidamente mais pequena, dedicada a São Martinho e destinada a receber um dos espinhos da Coroa...
Nunca Renaud se sentira tão feliz desde os tempos despreocupados da sua primeira juventude, em Courtils. Estava um tempo terrível porque ninguém se lembrava de um Abril tão chuvoso, tão embirrento, mas o novo escudeiro do conde d'Artois via as coisas com as cores do Sol. Equipado de novo, com as moedas de ouro na escarcela que lhe tinham sido dadas pelo tesoureiro como gratificação e que lhe permitiriam entrar de cabeça erguida na casa do seu novo senhor onde o futuro já lhe iluminava o caminho de Jerusalém, sentia-se o Rei do mundo.
A dama Hersende tivera razão em toda a linha: sentia-se quase tão bem como antes do ferimento, apesar de, de vez em quando, ter alguma dificuldade em respirar. Mas servir o conde Roberto ia ser um verdadeiro prazer: tinham-lhe bastado alguns minutos de conversa com ele para compreender que ia entrar numa casa a seu gosto.
- Aqueles que me servem são, primeiro, homens do Rei meu irmão - declarou-lhe ele. - Nunca estão longe dele porque a minha tarefa é protegê-lo, já que ele não se preocupa muito com isso. Tem os seus guardas, sem dúvida, mas a vigilância nascida de uma grande admiração não pode substituir...
- O nosso sire ainda está em perigo? - ousara perguntar Renaud.
- Um grande Rei está sempre em perigo e vós sabei-lo melhor do que ninguém, a ameaça pode vir de um lado qualquer a qualquer hora. O meu nobre irmão é da madeira de que são feitos os santos e a maior parte dos súbditos do seu reino veneram-no, mas há outros. Muitos outros. Por isso, deveis ter sempre no espírito que, numa batalha, por exemplo, se acontecer ele e eu ficarmos separados e igualmente em perigo, é a ele, e não a mim, que é preciso acudir. Depois de serdes armado cavaleiro, prestar-me-eis vassalagem, mas eu, foi a ele que a prestei. Portanto, ele, sempre, antes de tudo o mais! Compreendestes?
- Fostes muito claro, monsenhor. No entanto, conceder-me-eis a felicidade de me dedicar a vós... quando o Rei não necessitar de socorro?
- Conto com isso! - disse Roberto, rindo. - Dito isto, apesar de exigir exactidão nos deveres religiosos, a vida dos meus cavaleiros é menos austera do que na casa dele. Ouvir missa todas as manhãs, dar graças às refeições, rezar todas as noites e dar esmola com generosidade chega para a paz da minha alma. Quanto ao resto, a vida de um cavaleiro é muitas vezes curta. Por isso, quanto mais agradável, melhor, na medida permitida por Deus. Festas, torneios, festins, bons vinhos e mulheres bonitas fazem parte disso tudo. Assim, não quero que vos sintais obrigado a viver como um monge!
- Não é preciso chegar puro ao dia da investidura?
- Sem dúvida... mas depois!... - respondeu o príncipe desatando a rir de um modo tão comunicativo que Renaud acabou por rir com ele.
A conversa terminou com uma palmada vigorosamente aplicada por Roberto no ombro do seu novo escudeiro, o qual, ainda frágil, empalideceu sob o choque, mas que conseguiu manter o sorriso.
- Muito bem! - apreciou o príncipe, que fizera de propósito, como conhecedor que era. - Lembrai-vos do que acabo de vos dizer e conseguireis o que quiserdes de mim!
Que mais poderia querer um rapaz sem um tostão? Poucos instantes depois ocupava o seu lugar na escolta de Roberto para chegar a Poissy antes do Rei; mas, sentindo um formigueiro nas pernas, desmontara no pátio antes da hora da partida para observar os servidores sob as ordens de messire João Sarrasin, camareiro, ocupados em redor das carroças que estavam quase a partir. O jovem ia dirigir-se para o local da construção da Sainte-Chapelle para dizer adeus a mestre Pedro, que o fora ver por duas vezes durante o tempo em que estivera acamado, quando o seu olhar se fixou num rosto no meio daquela gente toda que, tal como ele, assistia à partida. O jovem lançou-se pelo meio da multidão. Ao vê-lo, o outro desapareceu. Então, abrindo caminho, Renaud chamou-o:
- Gilles! Gilles Pernon, esperai! Quero falar convosco ! Diante da pressa daquele grande rapaz vestido com as armas d'Artois, a assembleia abriu-se e ele não teve dificuldade em alcançar o seu antigo mestre-de-armas que, bloqueado, se fazia muito pequeno encostado à parede da cavalariça. Encantado por encontrá-lo, Renaud abriu os braços para o acolher:
- Meu velho amigo! Que fazeis aqui? Pensava que estáveis em Coucy!
- Não, já não estou lá... Mas, vós, recebei os meus cumprimentos! Estou a ver que estais na casa de um príncipe... e estais com boa cara!
Então, Renaud apercebeu-se de que não era o caso de Pernon. Malvestido, com os olhos encovados, o seu rosto, de bigode bem tratado, invadido por pêlos cinzentos, perdera aquele ar saudável e seguro que inspirava confiança e que fazia dele um sólido companheiro. Até o seu nariz, sempre muito vermelho do contacto com a garrafa, estava descolorido.
- Meu amigo... que vos aconteceu? Pareceis... doente? Vinde para aqui - acrescentou ele depois de se ter certificado, com um olhar rápido, de que o seu senhor ainda não tinha aparecido no patamar.
O jovem puxou-o na direcção da capela de São Nicolau e fê-lo sentar-se nos degraus porque, enquanto o conduzia, sentira-lhe o passo pouco seguro.
- E agora contai-me o que se passa! Para ganhar tempo, porque não tenho muito, soube da morte da dama Filipa... e também ouvi um boato: a morte não foi natural?
- Tenho a certeza que não! Foi envenenada. O que não deve ter sido difícil, com as drogas todas que aquela galdéria a obrigava a engolir!
- Quereis dizer que foi...
- A bela Flore? É evidente que sim! Há já muito tempo que ela tinha o barão Raul debaixo de olho e à falta de melhor, enquanto esperava - porque ela tem a paciência de um gato, a velhaca! - conseguiu as boas graças da dama Filipa.
- Enquanto esperava por quê?
- Que sire Raul deixasse a outra mulher que tinha. Quando entrastes na casa deles, a dama dos seus pensamentos era a mulher de um senhor das redondezas cujo nome não direi porque, no fundo, não tem muita importância. Pouco depois do nosso regresso ao castelo, quando... fostes preso, a dama em questão morreu durante uma caçada: o seu cavalo, enlouquecido, esborrachou-lhe a cabeça contra uma árvore.
- Um acidente, suponho? Não pode ter sido a donzela Flore... -Vá-se lá saber! Um cavalo não enlouquece assim, de repente.
É preciso ajudá-lo.
- E ela terá tido essa oportunidade? Além disso, se o barão amava tanto essa dama, a sua morte deve tê-lo desesperado, em vez de o incitar a um novo amor?
- Sim, sim! Ele estava tão apaixonado que a nossa meretriz se encarregou de o consolar. Ela é bela, aquela galdéria... e hábil. Depois de ter empurrado o barão para o leito da sua mulher, que ele entretanto engravidara, ela mimou-o, encheu-o de atenções, deu-lhe a entender que o amava há muito tempo e, finalmente, entregou-se a ele... Para um homem que não tinha mais ninguém senão a mulher - e na qual nem sequer podia tocar - o corpo daquela rapariga deve ter sido um deslumbramento. Eu sei do que estou a falar porque uma noite via-a banhar-se no lago do castelo. Uma deusa! De fazer perder a cabeça a um santo! Confesso que eu próprio sonhei com ela. Mas o barão, esse, ficou enfeitiçado. Era como se ela o tivesse obrigado a beber um filtro. E, se calhar, foi o que ela fez... Em todo o caso, o destino da dama Filipa foi rapidamente traçado uma vez sire Raul apanhado na armadilha. Por causa do bebé perdido, o barão chorou-a um pouco. De dia, porque, de noite, pertencia a Flore. Agora vivem juntos abertamente... e Enguerrand de Coucy, o irmão, esfrega as mãos de contente.
- Porquê? Não se sente escandalizado?
- Não. Pelo contrário. Mostra-se amável, compreensivo... A ele, interessa-lhe que o irmão morra sem filhos, e adora a filha que tem. Foi ele que mandou matar Ferienne, o donzel que vós fostes substituir, porque a dama Filipa tinha dormido com ele. Quanto a Flore, pensei durante muito tempo que estava a soldo dele, mas agora acredito que trabalha por conta própria.
- Ela espera casar com ele? Vejamos, é impossível Ele é um senhor de condição demasiado alta para ela, que é da pequena nobreza! Mas, não percebo por que razão vos encontrais neste estado...
- Acontece que não sei estar calado quando a cólera me sufoca. Sou um velho guerreiro e não tenho papas-na-língua. Um dia, quando aquela maldita, que já se acha baronesa, mandou chicotear e expulsar uma pobre rapariga que lhe tinha estragado um vestido, não aguentei e disse-lhe das boas... e li-lhe no olhar que não se passaria muito tempo sem que o meu destino fosse também traçado. Despedido ou envenenado, não sabia o que esperar quando um cão tomou a decisão por mim. Um cão que comeu a minha ração. Então, fugi e, desde então, arrasto-me por Paris. Sonhava ir ter com a Rainha Branca para lhe contar o que sei acerca do destino da sua amiga, mas a denúncia é uma coisa muito feia... e ao barão, não gostaria que lhe acontecesse qualquer coisa por minha causa. Por isso, espero.
- O quê? Encontrar outro senhor?
- Não. Que o Rei parta para a cruzada, o que me permitirá alistar-me, mas parece que ainda falta muito.
- De facto. Dizem que mandou construir um porto no sul para o embarque. Eu também acabei por perceber que será mais tarde do que pensava...
Subitamente, o patamar animou-se: era Roberto, que se dispunha a pôr-se a caminho para ir esperar o Rei em Poissy. Renaud compreendeu que já não tinha mais tempo e, vasculhando na sua escarcela, tirou uma moeda de ouro que entregou a um Pernon deslumbrado:
-Aqui tendes! Ide comprar alguma roupa e instalai-vos naquele albergue onde íeis tantas vezes. E esperai por mim!
- Mas... vós não ficais?
- Não, mas volto. Falarei de vós a monsenhor Roberto. Talvez ele precise de um bom mestre-de-armas?
- Sois capaz de fazer isso? Oh... sire Renaud!
- Agradecer-me-eis mais tarde! Agora tenho pressa...
O jovem já corria para o seu cavalo que tinha preso a um anel, mas, sempre em movimento, virou-se:
- Não... bebais muito enquanto esperais por mim!
- Está prometido! Festejaremos juntos quando regressardes... A chuva cessara há uns momentos, mas Renaud nem se apercebera. Sentia uma grande alegria por ter encontrado Pernon...
Na noite de 30 de Abril para 1 de Maio, Hersende ajudou a jovem Rainha a dar à luz um rapaz a que deram o nome de Filipe em memória do avô e a alegria explodiu na cidade, que se cobriu com os seus mais belos atavios. Logo de manhã, as raparigas foram à floresta de Saint-Germain colher flores para comporem grinaldas e ramos para a Rainha e para o bebé, que era belo e vigoroso a acreditar nos protestos. Nas igrejas cantou-se a glória do Senhor e o Rei, feliz com aquele novo nascimento masculino, ouviu três missas, numa das quais cantou, e mandou distribuir grandes esmolas até uma légua em redor, não tendo havido ninguém que não comesse - nem bebesse! - à-vontade, bendizendo a Deus por lhes ter dado um Rei tão bom.
Sentada no seu leito sumptuoso depois de um repouso necessário, Margarida, um pouco pálida mas deslumbrante, recebeu as felicitações da família, dos cunhados e das cunhadas, depois, evidentemente, do “obrigado” ternamente articulado do seu marido e do quase triunfal da sua sogra.
Na verdade, esta passara a noite inteira à cabeceira de Margarida, torturada pelas dores do parto, e comportara-se, na circunstância, como uma verdadeira mãe, segurando na mão que se crispava na sua, enxugando-lhe a fronte e prodigalizando-lhe palavras apaziguadoras ou encorajamentos, tudo sem prejudicar o trabalho de Hersende, cujo saber reconheceu. No entanto, continuava presente quando o capelão entrou para proceder à aplicação dos óleos sagrados no bebé - precaução sábia enquanto não se efectuava o baptismo! - e sobretudo quando a corte e os notáveis de Poissy surgiram para oferecer os seus votos, os seus presentes e os parabéns à jovem mãe. De facto, o pequeno Filipe esteve quase sempre nos braços da avó e foi esta que o ofereceu à admiração dos visitantes.
- Dir-se-ia que foi ela que o pariu? - resmungou interiormente Sancie que, também ela, não tinha dormido. - E olhem para ela! Está mais fresca e mais viva do que eu! Graças a Deus, não tenho o ar de uma feiticeira, mas tenho o seu poder e os seus encantamentos! Vou transformá-la numa coruja para que durma durante o dia e para que fique tranquilamente de noite no ramo de uma árvore!
Era visível, a despeito da sua atitude sorridente, que Margarida teria preferido que as coisas tivessem sido diferentes. Mas, pior ainda, foi quando a jovem Rainha soube que a ama e as servas do pequeno príncipe estavam instaladas perto de Branca e não perto de si. Fora assim por ocasião do nascimento do pequeno Luís e Margarida, demasiado jovem e demasiado fraca devido a um parto longo e difícil, não protestara. Além disso, tratava-se do herdeiro do trono, mas, desta vez, ela esperava que a deixassem com o seu segundo filho. E deu-o a entender. No entanto, Madame Branca já tinha a resposta pronta:
- Esta criança vai ter um grande carácter. Grita quando não está satisfeito e vós precisais de repouso, minha filha! Junto de mim, que não durmo muito, não aborrecerá ninguém.
- Asseguro-vos que não me aborrecerá. Já me sinto melhor e gostaria de ficar com ele ao pé de mim. Meu doce sire, peço-vos, dizei à vossa mãe que mo deixe aqui!
O Rei sentou-se aos pés do leito e segurou nas mãos da sua mulher:
- A minha mãe tem razão, minha querida! Sabeis muito bem que ela só quer o nosso bem... e vós precisais de repouso depois desta provação!
Margarida baixou os olhos para esconder um brilho de cólera:
- Tendes razão, sem dúvida, sire!
Mas, docemente, a Rainha retirou as mãos...
Quando toda a gente se retirou, deixando-a apenas na companhia da médica, de Sancie e das outras damas-de-companhia, Margarida desatou a soluçar. Sancie quis precipitar-se para ela, mas Hersende reteve-a com um gesto e a adolescente manteve-se imóvel enquanto as outras mulheres eram obrigadas a sair. Só quando os soluços começaram a desaparecer é que Hersende se inclinou para a jovem Rainha desolada:
- Não choreis mais, Madame. Só vos faz mal. O Rei ama-vos, isso é visível e ele só quer o vosso bem...
- O meu bem? O da mãe dele, que decide por mim. Ela pretende educar os meus filhos como educou os dela... e eu não quero que ela faça deles uns monges...
- O nosso sire é, na verdade, muito piedoso, mas acredito que obedece a uma inclinação natural... Os irmãos não se parecem nada com ele nesse aspecto. Sobretudo monsenhor Roberto... Talvez, de facto, o vosso marido se tivesse dedicado a Deus se não tivesse sido Rei... ou se não vos tivesse conhecido. Jamais se viu um monge a fazer filhos com tanto ardor! Além disso, vós amai-lo?
- Sim, amo-o... Enfim, creio que ainda o amo, mas é provável que um dia me farte. É tão difícil ser casada com um santo! Sobretudo quando esse santo me recusa o direito de partilhar a sua vida e até me diminui para dar à mãe o que me pertence por direito... Só me permitem que faça filhos, após o que mos tiram... se a morte não se encarregar disso. Não quero mais filhos!
- Madame! - assustou-se Sancie. - Sereis capaz de dizer não ao Rei vosso marido quando ele se aproximar de vós?
- Por que não? Eu tenho o direito de estar doente. E não aceitarei engravidar enquanto não souber a data da partida para a cruzada.
- Quereis partir grávida? - exclamou Hersende. Margarida ergueu a cabeça em ar de desafio e fixou a médica com os seus grandes olhos azuis ainda brilhantes de lágrimas e de cólera:
- Sim. Fá-lo-ei e vós ireis comigo. E darei à luz onde Deus quiser: no navio, em Chipre ou na Terra Santa. Pelo menos, esse filho, não mo tirarão!
- Não conseguireis. Vós sois muito bela, Madame, e o Rei far-vos-á de tal maneira a corte que não resistireis...
Sempre a falar, Sancie aproximou-se do profundo vão da janela para olhar para as muralhas do castelo, iluminadas por centenas de archotes e potes de fogo. Era um espectáculo mágico. Todas aquelas luzes se reflectiam nas armas dos guardas. A festa era na cidade e não havia muita gente no pátio, obedecendo às ordens do castelão no sentido de que a jovem mãe pudesse descansar. No entanto, os olhos de gato de Sancie - os seus olhos de feiticeira! - distinguiram uma silhueta, um rosto: o de Renaud de Courtenay, e o seu coração bateu mais depressa.
Há dias que não o via. Escudeiro do conde d'Artois, não tinha acesso aos aposentos reais. Ainda menos aos da Rainha, próxima do fim do seu tempo e que Sancie, essa, nunca abandonava.
A jovem ainda não lhe tinha sentido a falta porque o sabia perto e também porque esperara que ele fosse admitido por instantes na câmara real por ocasião do nascimento do pequeno príncipe, tal como quase todo o pessoal do castelo, mas ele não apareceu...
E agora estava ali. Encostado a uma parede, de braços cruzados no peito onde as flores-de-lis de França suportavam as torres do novo condado d'Artois, com a cabeça levantada, tinha o olhar fixo no local onde a jovem se encontrava. Ela recuou instintivamente sem o perder de vista e sem que ele pudesse suspeitar da sua presença.
Renaud não se apercebera da sua presença. O jovem regressara àquele local depois de o castelo se esvaziar dos seus visitantes, para ver iluminar-se a janela em frente da qual permanecera escondido, durante toda a noite, num canto sombrio, devastado pela dor ao ouvir o eco, se bem que enfraquecido pela altura e espessura da muralha, dos gritos que Margarida arrancava sob a tortura do parto. A jovem Rainha estava a dar à luz o fruto de outro homem e o facto de esse homem ser o Rei que ele jurara servir, defender e que salvara com risco da própria vida, nem lhe passara pelo espírito. O que se passava lá no alto era o resultado do acto carnal que lhe dera origem, varrendo-lhe os sonhos inocentes e acordando em si o amargo ciúme do macho frustrado.
Tinham-lhe gabado tanto a vida exemplar de Luís, as suas devoções intermináveis, as suas penitências e a austeridade dos seus costumes, que acabara por imaginar sabia Deus o quê! Que o Espírito Santo se encarregara de fazer bebés à sua Rainha e que Luís se limitara a participar de uma maneira vagamente abstracta. E aqueles gritos de dor evocavam outros, lançados nove meses antes, talvez no paroxismo do prazer. Apesar de nunca ter tocado numa mulher, Renaud sabia como se fazia amor e durante aquela noite terrível imaginara com uma precisão terrível a adorável Margarida, nua sob os seus longos cabelos escuros, recebendo os assaltos de um homem que, despojado da coroa, assim como do seu burel monástico, passava a ser igual aos outros, atormentado pelo desejo...
Só se fora deitar quando os gritos e as queixas se tinham apagado após o último clamor do parto, mas não dormira, tentando compreender o que se passava no seu espírito, quando até ao presente só sonhava com o amor ideal. Se não estivesse tão próximo da sua prometida investidura - o Pentecostes era dentro de um mês! - ter-se-ia lançado à procura de uma mulher, de uma daquelas raparigas cuja utilização e delícias o conde Roberto recomendava, para que ela lhe apagasse o fogo que sentia no ventre. Mas não o fizera. Aliás, não lhe teria servido de muito: quem ele desejava era Margarida, com uma violência até então desconhecida e da qual, no fundo, não sabia nada. Senão que uma parte de si mesmo vinha dos príncipes sarracenos, de quem os cruzados diziam que amavam as mulheres ao ponto de as guardarem às dezenas nos seus palácios e que eram capazes de as honrar a todas. Fora esse sangue que se revelara e do qual teria de desconfiar.
E agora, apaziguado mas infeliz, regressara ao mesmo local, diante da mesma janela iluminada que dava para o quarto, para o leito iluminado pelo brilho e beleza de Margarida...
No seu posto de observação, Sancie compreendeu a razão da sua presença. A jovem compreendeu que ele amava a Rainha. Porque a paixão estava inscrita no seu rosto iluminado pela luz móvel de um archote e ela não poderia esperar nada dele, senão a certeza de jamais o ver virar-se para uma ou para outra das damas e donzelas da corte. E como a Rainha era intocável...
A jovem tinha os olhos rasos de água quando, por fim, abandonou o vão para regressar para junto de Margarida, que a chamava. E que não reparou em nada. Mas a dama Hersende, essa, reparou. Desde o encontro de ambas na escadaria, a médica ganhara amizade àquela rapariga cuja fealdade lhe inspirava piedade e ao seu olhar vivo e sumptuoso, verde e inconstante como o mar profundo. Por sua vez, a médica aproximou-se da janela, viu Renaud... e compreendeu de imediato...
Depois de ter prestado todos os cuidados à Rainha e de se ter assegurado de que Sancie estava ocupada, desceu rapidamente ao pátio, pegou em Renaud por um braço e arrastou-o sem lhe dar tempo de compreender o que lhe estava a acontecer.
- Que louco que sois! - lançou-lhe assim que viu que não podiam ser ouvidos. - Que fazíeis ali a devorar com os olhos a janela da Rainha? Estais assim tão cansado da vida que eu vos conservei com a ajuda de Deus?
- Durante aqueles dias, dama Hersende, ela nunca me foi ver. Nem sequer enviou aquele camafeu que a segue por toda a parte... No entanto, eu merecia um agradecimento, não?
- Ela... não estava em estado de subir até ao vosso cubículo. Quanto ao camafeu, dir-vos-ei muita coisa acerca dele quando estiverdes são de espírito. E é isso que tendes de resolver. Rapidamente! Se quereis conservar essa cabeça louca, é melhor perceberdes que é perigoso mostrar aos olhos de todos esse ar de apaixonado estarrecido. Mesmo que seja verdade! Amai-la, não é verdade, a ela? - Perdidamente!
- Então, continuai assim! Continuai e conseguireis! - grunhiu Hersendi, virando-lhe as costas.
Mas ele reteve-a:
- Tende um pouco de piedade, dama Hersende! Apesar de ninguém imaginar aquilo que sinto...
- Ninguém? Pensais que sois o único a amar, a sentir-se vítima da sua beleza, da sua graça? Ela é, talvez, a mais bela mulher do reino e são aos milhares, fedelho, aqueles que sonham com ela. Lestes aquele poema que tem o nome O Romance da Rosa?
- Não.
- Não me admira. Esse poema é obra de um jovem clérigo, Guilherme de Lorris, que morreu há pouco tempo. Nele, esse monge celebra o amor e o respeito - ela sublinhou a última palavra - que sente por uma grande dama, que compara a uma rosa sem igual fechada num jardim defendido por personagens alegóricas. O apaixonado, no seu difícil caminho até junto da rosa, recebe a ajuda de outras personagens, mas, em redor da flor, os guardiães erguem uma nova parede...
- E como é que acaba o poema?
- Não acaba. Guilherme de Lorris não teve tempo. A Rainha Margarida é essa rosa incomparável que, na sua busca insistente, o apaixonado acaba por perder totalmente.
- Dizeis que há outros a amá-la?
- Não sejais tolo, meu filho. Ela é demasiado bela para que não seja assim. Quanto a vós, pensai antes no próximo Pentecostes. O vosso espírito deve chegar lá tão puro como o vosso corpo. Ou então, renunciai às esporas de ouro, parti para longe e ide fazer-vos armar cavaleiro por outro Rei Luís qualquer!
O tom tornara-se severo. Renaud baixou a cabeça:
- Estais a pedir-me que a esqueça!
- Não estou a pedir. Lembrai-vos, apenas, de quem ela é. Amai de longe, como Jaufre Rudel amou a princesa de Trípoli sem que nunca ninguém se apercebesse. E foi um grande amor, que eu saiba... E agora, quero saber se quereis ser cavaleiro ou se quereis perder a vossa reputação...
- Essa pergunta nem merece resposta, mas um cavaleiro pode dedicar a sua vida à dama dos seus pensamentos e eu dedicarei a minha... a ela.
Hersende olhou por um instante, sem dizer palavra, para o rosto que se desviava dela para procurar de novo o reflexo da janela nas pedras da muralha. O amor, tendo-o marcado profundamente, retirava-lhe os últimos traços de adolescente. Na sua frente, estava um homem. E quão sedutor! E o seu coração derreteu-se pelo “camafeu” para quem ele, seguramente, nunca olharia como mulher, mas também pela jovem Rainha, amada, sem dúvida, pelo marido, mas menos do que Deus e, certamente, menos do que a mãe. Portanto, mal amada. E Hersende conhecia, por experiência própria, o poder de atracção de uma paixão...
- Dedicai-vos a quem quiserdes - suspirou ela - mas de longe e em silêncio...
Dessa vez, a dama afastou-se.
No altar iluminado por um único círio e pela chama vermelha da lâmpada de presença, as três espadas nuas brilhavam docemente com os seus punhos dourados e ornamentados com rubis e topázios. Eram semelhantes. Assim o quisera monsenhor Roberto para os três homens saídos da sua casa e que o Rei armaria cavaleiros dentro de algumas horas.
Em redor daquele débil círculo de luz, a igreja de Notre-Dame-de-Poissy estava obscura, silenciosa, mas aos pés do altar, de joelhos, estavam três sombras brancas, vestidas de igual. Essas sombras tinham nomes: Hugo de Croisilles, Gerard de Fresnoy e Renaud de Courtenay.
Antes, na sala do castelo onde tinham colocado grandes celhas de madeira, tinham sido ritualmente lavados depois de terem confessado a sujidade das suas almas. Após o que os tinham vestido de branco e conduzido em procissão até à igreja onde passariam a noite meditando e rezando, durante dez horas, de pé ou de joelhos, sem uma única oportunidade de se sentarem.
Mas Renaud nem sonhava em se sentar. Aquela vigília do dia de Pentecostes representava, por fim, o momento há tanto tempo desejado que lhe parecera um século, entre o drama dos Courtils e aquela velada de armas. Por fim, ia ser armado cavaleiro, uma miragem que parecia concretizar-se à medida que caminhava para ela! Por fim, ia ser alguém: o cavaleiro Courtenay e já não aquele ser de contornos indefinidos a meio caminho entre o doméstico e o soldado perante quem qualquer esperança parecia interdita... O jovem sentia-se em paz como os outros, apesar de o seu olhar acariciar com ternura a forte lâmina de aço azul que seria sua no dia seguinte. Com a vontade de a fazer resplandecer de glória ao sol das batalhas que o esperavam na sua terra natal. E sob o olhar da sua amada!
Poucas horas antes, tivera de confessar ao capelão o seu amor por uma nobre dama casada e aquele sorrira:
- Um donzel que não sonha com uma mulher, mesmo que seja casada, não é normal. O amor puro nunca ofendeu a Deus!
- Mas eu desejo-a com todas as fibras do meu corpo, com cada gota do meu sangue.
- Isso também é normal, porque sois jovem e ardente. Seria pecado, sim, e grave, se tivésseis intenção de ceder. Nesse caso, não poderia absolver-vos. Tendes de jurar aqui que não tentareis nada contra a virtude da dama.
Compreendendo o que lhe estavam a dizer - sem absolvição não seria armado cavaleiro - Renaud encolheu os ombros:
- Ela é daquelas com quem só se pode sonhar. Juro aqui que não tentarei nada.
- Muito bem, porque a vossa penitência será o tormento do amor carnal insaciado...
O jovem jurara e agora esperava a sua recompensa, mas a sua prece transformou-se em súplica para que Deus e Nossa Senhora lhe concedessem o apaziguamento. Em seguida, rezou longamente por sire Olin e pela dama Alais. Os queridos pais da sua infância. Estariam tão felizes, tão orgulhosos naquela hora!
Por volta da meia-noite, levantou-se com alguma dificuldade porque sentia os joelhos doridos e olhou para os dois companheiros. Filhos, ambos, de senhores de Artois que o conde Roberto queria honrar de maneira especial, não os conhecia. Eram louros, sólidos e de forte constituição, com olhos claros e faces rosadas, onde a navalha de barba deixara alguns traços. Um estava à direita e o outro à esquerda de Renaud e cada vez que este olhava para um deles, encontrava um breve olhar, um pouco furtivo, que o fazia sorrir. Sabia que, para eles, era uma espécie de curiosidade. Não por ter salvo a vida do Rei, mas pelo seu nascimento tão longínquo quão misterioso, confirmado pela sua pele cor de marfim.
Quando o sino do convento vizinho soou para as Matinas, vendo que um dos seus companheiros - o mais novo, Hugo de Croisille - vacilar, o jovem propôs:
- Quereis rezar em voz alta, ou até cantar em coro louvores a Nossa Senhora? Esta é a hora mais negra da noite e também a mais difícil para lutar contra a fadiga. Seria uma boa ajuda.
Eles aceitaram com entusiasmo e pouco depois as suas três vozes elevavam-se, reaquecendo a atmosfera daquela igreja que parecia arrefecer cada vez mais à medida que o tempo passava. Apesar da esperança e da alegria dos três rapazes, a velada continuou até que uma pequena luz branca penetrou no santuário, que se iluminou lentamente. Por fim, o dia!
Então, fez-se ouvir um ruído de passos. Era um padre com os diáconos, para o ofício da missa: uma missa solene, cantada, na qual os futuros cavaleiros participaram com zelo antes de receber, piedosa e humildemente, o Corpo de Cristo antes de uma ampla bênção. Quando saíram para a frescura da manhã, eram seis horas e esperava-os um cortejo para os levar ao castelo, onde iriam ter uma copiosa refeição. A ida fez-se numa alegre algazarra sob um sol radioso raiado, lá muito no alto, pelo voo rápido das andorinhas.
Pão branco, frango, carne de caça assada, queijo e compotas esperavam os heróis do dia. Também os honraram com vinho clarete. Os três jovens morriam de fome:
- Precisamos de recuperar as forças, porque se a noite foi longa, o dia vai ser bem rude!
Primeiro, tiveram se de vestir. Conduziram-nos a uma câmara onde algumas damas e donzelas os esperavam, já vestidas para a festa. Pertenciam ao serviço das duas Rainhas e da condessa Mahaut d'Artois. As mãos leves despiram os três rapazes, vestiram-lhes as camisas e as bragas “mais brancas do que flores de Abril”, os calções de seda, depois as túnicas também elas de seda com uma orla bordada no pescoço, nas mangas e na barra. Por fim, os belos mantos forrados de samit, fechados por uma fivela com pedras preciosas. Chegara a hora solene entre todas. Renaud, assim como os seus companheiros, respirou fundo porque o seu coração batia com força.
Anunciados pelo clamor das longas trombetas de prata, os três apareceram no grande patamar do castelo, na base do qual estava reunida a corte em redor de um grande tapete estendido na relva. O aspecto era magnífico: vestidos e véus de múltiplas cores, bordados a ouro ou a prata e multicoloridos com pedras cintilantes, coroas trabalhadas ou grinaldas de flores por parte das damas e armas sumptuosas por parte dos homens. Com um nó na garganta devido à emoção, Renaud viu o Rei de coroa na cabeça, vestido de azul e dourado. Junto dele, as Rainhas. Contentando-se em aflorar Branca com o olhar, olhou só para “Ela”, bela de morrer no seu traje azul-nacarado de pérolas. Para além do seu rosto, delicado como uma rosa, não reparou em mais nenhum.
As trombetas soaram e Hugo de Croisilles, pálido de emoção, desceu para ocupar o centro do tapete, onde saudou profundamente. O seu padrinho, um belo ancião de barba cor de neve, talvez um avô, envolveu as pernas do jovem em malha de aço e prendeu-lhe as esporas aos tornozelos. Em seguida aproximaram-se outros dois familiares, transportando um o lorigão e o outro o elmo. Em breve só se via do seu rosto uma pequena parte, já que os olhos estavam separados pelo nasal de ferro do capacete. Em seguida, aproximou-se Roberto d'Artois com a espada suspensa de um cinturão de couro bordado, que ajustou ao flanco esquerdo do jovem depois de lhe ter proferido um breve discurso e oferecido aos seus lábios o punho da arma, que continha a relíquia de um santo. Em seguida, o conde d'Artois disse:
- Curva a cabeça! Vou-te dar a palmada.
E, com a palma da mão direita, o conde assentou-lhe na nuca um golpe tão forte que o jovem oscilou. Mas Roberto amparou-o e abraçou-o.
- Sê cavaleiro! E corajoso diante do inimigo!
As trombetas soaram de novo e o cerimonial repetiu-se - o mesmo suserano mas de família diferente - com Fresnoy.
Por fim, chegou a vez de Renaud. Sob o barulho estridente das trombetas, cujo vento ligeiro agitou as flâmulas, o jovem desceu para ocupar o seu lugar no tapete, mas com uma inquietação no coração: órfão, sem família, quem, no meio daquela gente toda que o seu olhar, enevoado pela emoção, não distinguia, lhe colocaria as esporas de ouro?
Quando lá chegou, pôs um joelho em terra e baixou a fronte para saudar o Rei. Em seguida, foi o silêncio. Levantando-se a um sinal de Luís, o jovem viu as cabeças todas viradas para as personagens que se aproximavam dele e nem quis acreditar no que estava a ver: escoltado por escudeiros que transportavam as diversas peças da armadura e a almofada vermelha onde as esporas cintilavam alegremente, era Pedro de Courtenay que avançava, o grande barão que o detestava, tinha a certeza, e que o desprezava.
Por um instante, os dois homens mantiveram-se face-a-face, olhos nos olhos. Courtenay sorriu levemente e declarou:
- Ao salvar o Rei nosso sire, adquiristes, a meu ver, o direito de usar o nosso nome e as nossas armas. Por isso, cabe-me a mim fazer a investidura. Fazei com que não me arrependa!
O tom não tinha nada de afectuoso e Renaud compreendeu que devia aquele reconhecimento inesperado a uma ordem real. Difícil de contestar a partir do momento em que o verdadeiro chefe da família, o Imperador Balduíno, já lhe dera todo o apoio. Assim, contentou-se em responder:
- Pela memória venerada dos meus pais juro jamais trair a confiança seja de quem for... mesmo que me seja concedida de má vontade - acrescentou ele em voz baixa, para que apenas Courtenay o pudesse ouvir.
- Estou a ver que nos compreendemos - disse este no mesmo tom de voz.
Os seus cavaleiros fecharam Renaud na sua nova carapaça de aço e foi Courtenay que lhe atou as esporas aos calcanhares:
- Que elas nunca te sejam arrancadas por desonra!! - murmurou ele erguendo-se e Renaud, dessa vez, contentou-se em sorrir desdenhosamente.
Chegara o grande momento. Luís IX saiu do seu trono e avançou para aquele de quem ia fazer um homem e que se sentia invadido por uma emoção imensa:
- Esta espada é-vos oferecida pela nossa mãe, que é também vossa Rainha - disse ele com simplicidade. - A relíquia que está no punho é um fragmento do manto de São Martinho, modelo da cavalaria. Fazei bom uso dela, Renaud de Courtenay, e fazei com que o sangue que ela fará derramar seja sempre o de um inimigo de Deus ou do reino! Nunca o de um inocente!
Com um nó na garganta, incapaz de falar, o jovem beijou
com respeito o pequeno receptáculo de cristal incrustado no punho da espada e fechou os olhos para tentar reter as lágrimas que lhe subiam aos olhos, ao mesmo tempo que o Rei, com as suas próprias mãos, lhe apertava o cinturão. Todo o seu corpo tremeu quando a pesada espada lhe tocou no flanco. Em seguida, Renaud ajoelhou-se para receber a palmada e retesou os músculos, pensando, todavia, que seria menos rude do que a da mão vigorosa do vigoroso Roberto. Mas recebeu um golpe de fazer vacilar um boi e, conseguindo permanecer estoicamente na sua posição ajoelhada, ergueu para Luís um olhar de tal modo estupefacto que o soberano sorriu levemente, ao mesmo tempo que o seu olhar azul cintilava, divertido.
- Sê cavaleiro! - disse este, abraçando-o. - E que o teu braço seja tão firme como a tua pessoa!
As exclamações explodiram, ao mesmo tempo que as damas agitavam os lenços e os xailes. A seguir, foi a vez dos cavalos: três animais jovens mas muito robustos, com músculos enormes, capazes de transportar o cavaleiro, a armadura e a própria carapaça. O destinado a Renaud era um presente do conde Roberto, um dos seus cavalos de Perche que se cruzavam, então, com os de Espanha. O pêlo era cinzento e os olhos ardentes. Chamava-se Tempestade e, aparentemente, o nome ficava-lhe bem. Depois de o ter examinado e de lhe ter dado algumas palmadas amigáveis no pescoço, o novo cavaleiro, no cúmulo da felicidade, subiu para a sela num só golpe, sem tocar nos estribos e sob os aplausos da multidão. Então, entregaram-lhe as suas duas últimas armas: a lança, na ponta da qual flutuava um pequeno estandarte e o escudo, suficientemente grande para lhe proteger todo o corpo. As armas dos Courtenay- três besantes (1) dourados sobre fundo vermelho, cortados pela diagonal da bastardia - estavam pintadas nele e o novo cavaleiro sentiu o peito inchar de orgulho. Por fim, era reconhecido! Por fim, a vida abria-se diante de si! Cabia-lhe a ele, agora, levar a cabo grandes feitos, para que a bela dama que lhe obcecava os pensamentos lhe dirigisse, por vezes, um olhar sorridente!
(1) No escudo, estas moedas indicavam que o cavaleiro estivera na Terra Santa.
O resto do dia, até ao cair da noite, foi passado a admirar, na grande planície vizinha do castelo, as proezas equestres dos novos cavaleiros: cargas a galope, fazendo gritar as damas com um terror delicioso, o jogo brutal da quintana (1), no qual Renaud conseguiu deitar por terra o manequim e os seus escudos sem se deixar atingir e, por fim, o confronto amigável com outros cavaleiros, no qual se esforçou por brilhar. Margarida aplaudiu-o por várias vezes, oferecendo-lhe, assim, momentos de indizível felicidade...
A Rainha Branca, a quem ele foi agradecer após a investidura, demonstrou-lhe, também, a sua satisfação no fim dos jogos, dizendo-lhe à sua maneira, meio a sério, meio a brincar, que esperava sinceramente que a sua destreza com as armas se manifestasse mais vigorosamente nos combates do que na areia das liças.
- Os Sarracenos têm a pele mais dura do que as quintanas. Lembrai-vos disso quando os enfrentardes com a espada que vos ofereci...
Tudo dito sem sorrir - após o que lhe estendeu uma mão carregadas de anéis que, de joelho em terra, ele aflorou com os lábios, balbuciando a sua firme intenção de se conformar com o que lhe parecia um ultimato.
Quando o crepúsculo desceu sobre o vale do Sena, regressaram ao castelo para o grande festim onde se fariam ouvir os trovadores e os menestréis e onde se maravilhariam com os malabaristas e os saltimbancos. Já era tarde quando a festa terminou. O Rei há muito que se retirara para rezar. Os novos cavaleiros tinham bebido um pouco demais e quando Renaud quis regressar à sua cela já não via bem com olhos enevoados de sono. Já dormia quando a sua cabeça caiu no travesseiro.
No dia seguinte àquele que lhe provocara tantas lágrimas, Sancie partia para a Provença. A sua mãe acabava de morrer e o seu pai pedia a sua presença...
(1) Poste fixo no solo ao qual era adaptado um manequim que rodava segurando um pau ou uma maça-de-armas e que servia de alvo aos cavaleiros no exercício do manejo da lança.
A INSPIRAÇÃO DA CRUZADA
A BORDO DA MONTJOIE
Sentado num rolo de cabos no porto recentemente acabado de Aigues-Mortes, Renaud olhava para o mar apenas entrevisto por entre os numerosos barcos reunidos para a cruzada. A noite caía trazendo consigo um pouco de frescura. Estava-se em Agosto, no pino do Verão e o Sol brilhara ardentemente durante todo o dia. Uma quantidade enorme de pontos luminosos, as lanternas dos barcos ancorados, acendia-se como outros tantos pirilampos, e à medida que a noite nascia, era só o que se via naquela enorme reunião de navios de guerra e barcos destinados ao transporte do material. A última luz do dia agonizante permitia ainda distinguir as formas fantásticas daquelas fortalezas flutuantes, armadas como as suas irmãs terrestres das quais imitavam a silhueta com os seus “castelos” dominando as pontes e as gáveas, pequenas torres quadradas de madeira, ameadas e vivamente coloridas. Geralmente três, uma à frente, uma atrás na roda de proa e a terceira no alto do mastro principal (1). Os grandes escudos dos cavaleiros que iam embarcar estavam alinhados ao longo das amuradas, às quais emprestavam um reforço de defesa.
Salvo raras excepções - alguns grandes senhores possuíam as suas próprias naus - aqueles navios vinham de Marselha e de Génova. O Rei ficara com eles dois anos antes e mandara-os
(1) Ali permaneceu, tornando-se o mastro da gávea.
equipar de modo a que pudessem transportar o seu exército e os seus cavalos o mais comodamente possível. Porque o soberano não deixava nada ao acaso: montanhas de víveres de toda a espécie já o esperavam na ilha de Chipre, escolhida como ponto de reabastecimento. Chipre, último reino latino cuja coroa pertencia aos Lusignan, distava apenas vinte e cinco léguas (terrestres) da costa Síria.
Com um gesto seco, Renaud esmagou um mosquito que lhe pousara no pescoço. Aqueles bicharocos eram a praga daquele porto, construído a partir de uma lagoa aumentada e rodeada de pântanos, de salinas e suficientemente vasta para conter, sem dificuldade, a armada real. Aqueles insectos danados representavam o último inconveniente antes da grande largada para o largo e para aquele mar de safira que levaria a cruzada à sua terra prometida... Porque, por fim, iam partir, quando já desesperava!
No entanto, quantos caminhos percorridos nos últimos três anos na garupa do cavalo de Roberto d'Artois e sempre atrás do Rei, tal como o conde anunciara. O que não queria dizer atrás da Rainha, bem pelo contrário! Assim, o Papa, tendo conseguido reunir em Lyon o seu concílio vingador contra Frederico II, reclamara a presença e o aval do soberano francês. Ao que Luís se recusara durante muito tempo, tentando manter as relações com o irascível Imperador alemão, tratando com deferência o Pontífice romano e conservando a possibilidade de arbitrar um qualquer compromisso entre ambos. O que era uma proeza, já que a excomunhão, por parte de Inocêncio e aprovada pelos cardeais, fora fulminante contra aquele a quem apelidavam de Sultão Baptizado.
Com o objectivo de amansar o furor do Santo Padre sem se lançar no caldeirão de Lyon, Luís, como bom diplomata que era, convidara este para se juntar a ele em terreno neutro: na grande abadia de Cluny, demasiado afastada de Lyon, um dos faróis espirituais da Europa e, sem dúvida, a mais importante, porque estava na origem de mais ou menos mil e duzentos monges espalhados pelo Ocidente Cristão. O Rei dirigiu-se para lá com a pompa digna de um Rei de França na companhia da sua mãe, da irmã Isabel mais virada para Deus do que nunca, do inevitável Roberto e do jovem Carlos d'Anjou. Para grande indignação de Renaud, a Rainha Margarida (1), que não estava retida em Paris por qualquer gravidez, ficara para trás com a sua real petizada...
No entanto, Renaud guardaria de Cluny uma grande recordação, não pela riqueza da abadia, da sua gigantesca igreja de Saint-Hugues, a mais ornamentada, maior e mais alta do mundo, mas pela surpresa que teve: Balduíno de Constantinopla e o seu séquito - incluindo o tocador de gaita-de-foles - acompanhavam Ino-cêncio. E foi com uma grande alegria que, depois da bênção particular que o Papa lhe concedeu, pôs um joelho em terra diante daquele que o arrancara a um destino fatal. Balduíno abraçou-o com o calor habitual, após o que Renaud caiu nos braços do seu amigo Guillain d'Aulnay. Tinham tanto que contar um ao outro que os enfadonhos discursos de alto nível passaram-lhes ao lado. Uma única coisa tinha importância: iam regressar juntos a Paris, já que Luís decidira prestar uma ajuda séria ao seu infeliz primo, já que a cruzada anunciada, com a qual Inocêncio IV estava encantado, iria por mar, não passando pelo seu império.
Por um instante, acreditaram que se iam separar de novo. De facto, o conde de Provença, pai de Margarida, acabava de morrer deixando a filha mais nova, Beatriz, cobiçada já por vários pretendentes. Ora, o seu tio, o arcebispo de Lyon, Filipe de Sabóia, que se encontrava em Cluny com o Papa, desejava que ela casasse com o jovem Carlos d'Anjou e deu a entender que iria forçar um pouco a condessa-viúva, sua irmã. Desse modo, Carlos foi imediatamente enviado a Forcalquier à cabeça de um pequeno exército destacado da enorme escolta real. Sempre pronto a meter-se a caminho desde que se tratasse de distribuir pancada, Roberto d'Artois dispôs-se, excepcionalmente, a acompanhá-lo, mas o Rei não permitiu:
- Trata-se de mostrar a nossa força, não de rachar ao meio os pretendentes que gravitam em redor da condessa de Pro-
(1) Recordemos que das quatro filhas da Provença, das quais a mais velha era Margarida, a mais nova, Leonor, casara com Henrique III de Inglaterra, a terceira, Sancha, com o irmão deste, Ricardo da Cornualha e a última, Beatriz, ainda era solteira.
vença! O senhor de Lyon fará uma escolta bem mais tranquila e credível do que o meu caro irmão, que ferve em pouca água!
Carlos d'Anjou partiu, portanto, sozinho para casar com a jovem Beatriz, levando-a triunfalmente três meses mais tarde ao palácio da Cité, onde se festejou alegremente para grande alegria de Margarida, infinitamente feliz por encontrar a sua irmã mais nova...
Nos meses que se seguiram, Roberto d'Artois autorizou Renaud a ficar junto do seu antigo senhor até à partida definitiva para Constantinopla. Com ele, o jovem fez uma viagem a Inglaterra para ali conseguir a ajuda que, de repente, o Rei Henrique lhe oferecia. Ali conheceu as duas irmãs de Margarida, achou-as muito menos belas - se bem que com um pouco de má-fé porque nenhuma das jovens era feia! - e depois foi a Namur, ao ramo norte dos Courtenay, para ali negociar a passagem dos direitos do marquesado para Balduíno. Renaud reviu, por fim, com emoção, a terra da sua infância quando o Imperador foi ao seu castelo de Gâtinais, que ele cedera à Imperatriz Maria, sua mulher, para regularizar vários litígios e outras questões relacionados com o seu poder feudal. Assim, Renaud reviu a torre esquecida, perto da qual enterrara, com as suas mãos, aquele que lhe dera tudo: o grande Thibaut de Courtenay, que todos acreditavam ser o seu pai.
O jovem deslocou-se ali na única companhia de Gilles Pernon, sua sombra fiel, que não se afastava mais do que o comprimento de uma lâmina de espada, acrescentando aos seus deveres de escudeiro um curioso sentimento quase paternal que o levava a velar por ele permanentemente. O jovem não podia, por isso, mergulhar sozinho nos meandros de uma floresta espessa e pouco conhecida!
Primeiro um pouco aborrecido, Renaud acabou, naquele dia, por agradecer aos céus. Pernon possuía um sentido espantoso de orientação e uma capacidade fantástica para encontrar o caminho certo, fosse em que circunstâncias fosse, num local onde nunca tinha posto os pés. Graças a ele e a algumas informações, chegaram à torre sem se enganarem no percurso.
Ao aperceber por entre as árvores o ínfimo montículo encimado por uma cruz grosseira, sob a qual repousava o velho cavaleiro, Renaud sentiu-se profundamente emocionado e ia apear-se para se aproximar com mais respeito ainda quando Pernon o reteve:
- Não estamos sós, messire!- sussurrou ele.
Um cavalo, com as rédeas sobre o pescoço, pastava livremente a erva tenra e os jovens rebentos da pequena clareira. Um cavalo que, pelos seus arreios, os dois homens identificaram imediatamente:
- Um templário! - resmungou Renaud de sobrolho franzido. - Que faz um templário aqui? E, para já, onde está ele?
Os dois homens puseram pé em terra sem fazer barulho, desembainharam as espadas ao mesmo tempo e dirigiram-se para a torre sem que o cavalo, ocupado a comer um tufo particularmente saboroso, se lembrasse de assinalar a sua presença. De facto, estava ali um homem, um templário, que devia ser um homem alto, se bem que estivesse meio metido na velha arca onde Thibaut guardava o pouco que tinha de precioso, como o manto branco com a cruz vermelha com que Renaud o tinha envolvido para o sepultar.
Da soleira, este perguntou secamente:
- Pode-se saber o que procurais aqui?
Com uma rapidez espantosa, o intruso endireitou-se e virou-se, mostrando no enquadramento de aço do carnal um rosto de traços bem delineados, profundos, uma boca delgada e dura, anunciando um carácter impiedoso e uns olhos cinzentos de uma dureza mineral.
- Não creio que isso vos diga respeito - articulou este com uma voz lenta e um olho na espada de Renaud, mas sem deixar transparecer o menor sentimento. - Começai por dizer quem sois.
- Poderia fazer-vos a mesma pergunta se fosse tão descortês como vós. Sabei apenas que sou o filho daquele que repousa sob a cruz na clareira e que o meu nome é Renaud de Courtenay - respondeu ele, sempre de espada em punho.-Agora, é a vossa vez.
O homem pareceu descontrair-se, chegando a esboçar um sorriso:
- Nesse caso, embainhai a vossa espada porque tenho tanto direito de estar aqui como vós. Eu sou o irmão Roncelin, da comendadoria de Joigny... Como o vosso pai continuava a pertencer ao Templo a despeito do isolamento em que preferiu viver, pensámos que o seu eremitério poderia ter, talvez... objectos ou... escritos respeitantes à nossa Regra e que...
- Roncelin de quê? - perguntou Renaud, que não estava disposto a ceder com tanta facilidade. - Não se perde o nome quando se entra para a Ordem.
- De Fos! Não procureis mais - acrescentou ele com desdém - não é um nome desta região. - E agora deixai-me terminar a minha missão!
- É inútil! O irmão Thibaut vivia na maior pobreza. Nessa torre só tinha ervas secas e alguns remédios feitos por ele para socorrer os animais feridos e as gentes da floresta. E o manto da Ordem com que o envolvi antes de o confiar à terra, porque fui eu que o sepultei... e que fechei essa porta antes de entregar a chave ao irmão Adam Pellicorne, do qual a vossa comendadoria ainda se deve recordar!
- Sim, sim! Nós lembramo-nos dele.
- - Nesse caso, como é que se explica que tenhais arrombado a porta? Deviam ter-vos dado a chave!
- Ninguém sabe onde ela está. E era preciso vir aqui!
- Seja! - suspirou Renaud, decidindo-se, finalmente, a embainhar a sua espada. E agora, fazeis-me o favor de me deixar rezar em paz?
- É muito natural. Pertenceis, sem dúvida, ao séquito do Imperador Balduíno, que está no seu castelo de Courtenay? - acrescentou Roncelin de Fos, subitamente mais calmo.
- Não. Pertenço a monsenhor Roberto d'Artois, mas como servi o Imperador ainda não há muito tempo, fui-lhe emprestado até ao seu regresso a Constantinopla...
- Que bom! Bem, deixo-vos com as vossas orações. Sinto-me muito desolado por causa da porta!
E foi-se embora. Renaud e Pernon observaram-no enquanto ele subia para o seu cavalo e desaparecia na floresta, mas o velho escudeiro não se sentia nada contente:
- Por que razão lhe dissestes aquilo? - resmungou ele. - A vossa vida não lhe diz respeito. E não gostei nada daquele homem.
- Nem eu, mas não revelei nada de extraordinário. Qualquer pessoa no castelo lhe poderia dizer o mesmo, admitindo que ele fosse lá informar-se. Doravante, a minha vida não tem segredos - concluiu ele.
- Esperemos que não!
Enquanto Renaud se ajoelhava diante da campa, Gilles Pernon esforçava-se por recolocar o melhor possível a porta no seu lugar, não sem desejar todos os males deste mundo aos Templários, demasiado curiosos. Renaud, esse, rezou durante muito tempo, tentando chamar a si o espírito daquele que repousava ali, porque não se conseguia desembaraçar da impressão desagradável deixada pelo seu confronto com Roncelin de Fos. Perguntava a si próprio o que teria ido ali procurar aquele homem e até onde teria ele ido se não tivesse aparecido. O jovem teve um pensamento que tentou, de imediato, rejeitar, mas que continuou, teimoso, insistente. O templário teria ousado profanar a tumba?
Aquela impressão foi tão forte que, de regresso a Courtenay, foi procurar o Imperador para lhe contar o que acabava de se passar:
- Não estou tranquilo - disse ele, concluindo. - Evidentemente, não sei o que ele procurava, mas parecia muito concentrado e eu gostaria de poder vigiar a tumba durante algum tempo... Se o Imperador me pudesse conceder alguns dias...
- Não. Regressamos a Paris dentro de dois dias. Mas posso fazer melhor. Amanhã, regressareis à torre com o capelão, uma guarda de honra, uma carroça, um caixão e alguns coveiros.
- Quereis exumá-lo? Para o pôr onde? - Onde já devia estar há muito tempo, esse grande cavaleiro que foi o companheiro de armas e mais fiel companheiro do Rei leproso: na capela deste castelo...
Com as lágrimas nos olhos, Renaud limitou-se a inclinar o tronco para beijar, como agradecimento, a mão daquele homem generoso, que lhe concedia a paz da sua alma. E no dia seguinte, o jovem regressava à floresta com o pequeno cortejo previsto por Balduíno. Sire Henrique Verjus comandava-o, mas quando chegaram tornou-se logo evidente, para aqueles homens habituados a ler na natureza o rasto do javali ou do homem, que tinham mexido na sepultura, apesar de terem tentado, depois, repor os tufos de erva o melhor possível:
- Aquele monstro deve ter regressado de noite! - disse Renaud, furioso. - Devia ter ficado aqui e mandado Gilles Pernon pedir ajuda. Sou um imbecil! Eu sabia que ele ia fazer isto! Mas, para procurar o quê?
- Ele era um templário, isso diz tudo! - disse Verjus com um encolher de ombros. - Pelo que sei, eles são capazes do melhor e do pior. Do melhor quando se trata de combater; do pior quando se trata dos interesses da Ordem. O que não impede que façamos o que viemos aqui fazer. Depois de uma violação destas, este nobre corpo merece o solo sagrado de uma igreja...
Um discurso daquela amplitude era raro na boca de Henrique Verjus, o silencioso e, por isso mesmo, Renaud ainda o sentiu mais. O jovem pôde constatar, entretanto, enquanto se desenrolava aquela penosa cerimónia, que o profanador se mostrara cuidadoso: o corpo, espantosamente bem conservado, continuava a repousar envolto no manto branco agora negro, mas os farrapos estavam dispostos numa determinada ordem. Perturbado por ver de novo o rosto do seu avô quase mumificado, mas reconhe-cível, Renaud fez questão de ser ele próprio a colocar o defunto no caixão que o capelão acabava de benzer. Em seguida, encheram a campa de terra e regressaram, salmodiando a oração dos mortos.
Quanto tudo estava terminado, após uma cerimónia bela e simples presidida pelo Imperador, Renaud declarou que queria ir a Joigny para perguntar a Roncelin de Fos a razão do seu gesto sacrílego e Verjus, juntamente com outros cavaleiros, propunham-se a segui-lo, mas Balduíno opôs-se:
- Ele não pode ter regressado de noite para perpetrar o seu crime: Joigny é muito longe. Ele devia estar na granja de Piffons, que fica aqui próxima. De qualquer maneira, não conseguiríeis qualquer informação: O Templo, melhor do que ninguém, sabe guardar os seus segredos. Sobretudo quando se trata de um dignitário. O que é provável, já que os cavaleiros normais andam sempre aos pares.
- Não posso, portanto, fazer nada contra aquele miserável, que ousou profanar a sepultura do meu pai? - indignou-se Renaud.
- Vós não, mas eu posso. Vou enviar a Joigny um dos meus correios com uma carta para esse Roncelin de Fos, convidando-o a vir aqui. Por isso, vamos protelar alguns dias a nossa partida...
Assim foi feito, mas quando o mensageiro imperial regressou, trazia a carta do Imperador e uma outra assinada pelo comendador, na qual este apresentava as suas desculpas: o irmão Roncelin estivera durante algum tempo em Joigny, mas partira quinze dias antes... para a Terra Santa.
- Nesse caso - disse Renaud - hei-de encontrá-lo e fazê-lo pagar a afronta de armas na mão!
Nas semanas seguintes, Balduíno II, quando a corte se encontrava em Poissy, instalada no outro lado da floresta no castelo de Saint-Germain, enviou solenemente ao Rei Luís uma pequena bola de ouro, o mais sagrado dos documentos bizantinos, dizendo-lhe que abandonava definitivamente a Coroa de Espinhos e outros objectos da Paixão de Cristo. Após o que, com o pequeno exército que conseguira reunir e com os fundos de que podia agora dispor, o Imperador de Constantinopla tomou, enfim, o caminho da sua capital há tanto tempo abandonada. Alguns dos que o acompanhavam pensavam poder juntar-se à cruzada uma vez a ordem restabelecida no império. Renaud podia ser um deles, porque o respeito afectuoso que Balduíno lhe votava e o entendimento agora profundo conseguido entre ele e Guillain d'Aulnay, incitavam-no, mas Roberto d'Artois recusou:
- Eu tenho muita amizade pelo meu primo de Constantinopla, mas vós estais ao meu serviço e, desta vez, tenciono ficar convosco. Não esqueçais que a vossa primeira tarefa é preservar a segurança do Rei!
Renaud resignou-se sem muitas lamentações: a data da grande partida aproximava-se e a excitação crescia à medida que os dias se iam passando... além de que o jovem sabia que Margarida também iria naquela viagem há tanto tempo sonhada. O amor permanecia no seu coração, se bem que não a tivesse visto durante aqueles meses todos.
Foi na consagração da Saint-Chapelle que, por fim, a viu com todo o esplendor real da sua beleza, eclipsando, pela primeira vez, a Rainha-Mãe. Esta, de facto, tinha dificuldade em esconder a tristeza. Estava-se a 26 de Abril daquele ano de 1248 e dentro de menos de dois meses o filho amado afastar-se-ia dela, sem dúvida por um período de muitos anos. Ela ficaria com o reino e também com as crianças, mas agora sentia-se velha e uma voz secreta dizia-lhe que não voltaria a ver aquele que ia partir, ao passo que Margarida, essa, brilhava de felicidade ao penetrar no novo santuário dentro do qual o Sol da manhã primaveril iluminava os grandes vitrais com um fulgor de rubis, de safiras e de topázios. A obra-prima de Pedro de Montreuil era perfeita com aquelas pedras que subiam na direcção do céu e com aquela luz.
Depois de as Santas Relíquias, transportadas pelo Rei vestido com um hábito de burel branco e de pés nus, ocuparem o seu lugar no fabuloso relicário edificado para elas e depois da missa solene celebrada pelo bispo de Paris, Guilherme d'Auvergne, seguida de uma abundante distribuição de esmolas, Renaud pôde aproximar-se do arquitecto que, com os seus operários vestidos com os seus trajes domingueiros, recebera os agradecimentos calorosos do Rei.
- Eis a vossa maravilha terminada, mestre Pedro - disse-lhe o jovem depois de o ter abraçado. - Não ides aborrecer-vos, agora?
- Aborrecer-me? Se Deus me permitir que eu termine a obra que me resta, já Lhe fico muito agradecido - respondeu ele a rir. - Mas não creio que seja possível. Chamam-me de todos os lados...
- É natural: vós sois um grande artista. Mas, depois de vós, os vossos filhos continuarão...
- É verdade e uma família como a minha também é um dom de Deus! A propósito, sire Renaud, como a vossa viagem vos vai conduzir a Chipre, aceitaríeis levar uma mensagem para o meu irmão Eudes, que está lá a trabalhar na catedral de Santa Sofia de Nicósia? Como vedes, a nossa reputação já chega longe...
- Agora ainda vai ser maior, mas sentir-me-ei muito feliz por conhecê-lo e entregar-lhe o que me confiardes. Infelizmente, penso que tereis de esperar algum tempo.
- Não tem importância. O que é preciso é que regresseis vivo e de boa saúde!
A partir desse dia, tudo pareceu correr com a febre das grandes partidas e chegou-se, com a rapidez do relâmpago, ao dia 12 de Junho, festa de São Barnabé, o santo originário de Chipre e venerado como apóstolo, se bem que não tenha conhecido Cristo e tenha sido, apenas, o fiel companheiro de Paulo. Na véspera, Renaud ousara pedir uma entrevista a Branca de Castela.
A Rainha-Mãe recebeu-o no seu oratório privado, talvez devido à penumbra propícia à oração, mas também, talvez, para que ele reparasse menos nos seus olhos avermelhados pelas lágrimas.
- Que quereis de mim? - perguntou ela com um ressurgimento da sua antiga rudeza.
- Nada, nobre dama... senão permissão para vos saudar e... agradecer-vos mais uma vez o bem que me fizestes. Sobretudo esta espada, que eu espero levar por um caminho digno dela... e daquela que ma ofereceu, tal como prometi no dia em que ela me foi entregue.
- Fazei com que ela siga o do Rei e nunca se desviará. Quanto ao bem que vos fiz, não quisestes saber dele quando aqui chegastes, há quatro anos.
- Eu quero esquecer esses tempos, Madame, desejando apenas recordar-me da vossa generosidade. No entanto, confesso... que, na época, perguntei muitas vezes a mim próprio por que razão a mãe do nosso sire me concedia a honra de me... detestar. É verdade que a antipatia não se explica.
- Mas não se tratava de uma vaga antipatia - disse ela com uma grande calma. - Eu detestava-vos verdadeiramente por causa de uma má recordação que me fazíeis evocar sem o saberdes.
A Rainha hesitou um instante enquanto o seu olhar, subitamente pensativo, se pousava naquele magnífico rapaz ajoelhado na sua frente para que não se sentisse dominada pela sua estatura.
- Eu tinha doze anos - murmurou ela, enfim - quando a Rainha Leonor, minha avó, foi de Inglaterra à corte do Rei meu pai para me levar para França, para me casar com o príncipe Luís de França. Então, havia um jovem senhor em Burgos cujo nome não importa, mas que se dizia ser filho de um emir sarraceno. Era possível porque, por malefício, penso, ele atraía o coração de todas as raparigas... E o meu também. Ele apercebeu-se, mas limitou-se a rir e durante muito tempo, mesmo depois de casada, mesmo feliz, continuei a ouvir esse riso...
- Madame!- balbuciou o jovem, espantado com o que via nos olhos de Branca, mas ela fê-lo calar-se.
- Ainda não terminei... Eu não passava, para ele, de uma criança, sem dúvida. No entanto, odiei-o mesmo quando soube da sua morte. Morto por um marido ultrajado! Ora... vós pareceis-vos com ele. A única diferença é que os vossos cabelos são louros. E agora levantai-vos!
- Ainda não... porque devo pedir perdão pelo meu rosto. O jovem tinha compreendido e, sinceramente desolado, olhava com uma espécie de admiração para aquela grande dama, para aquela Rainha cujo orgulho era conhecido e que, no entanto, acabava de lhe confessar muito simplesmente por que razão prosseguira na sua vingança. Naquele instante ela sorria-lhe e esse sorriso era cheio de doçura:
- Se não tivésseis vindo, ter-vos-ia mandado chamar: era preciso que isto fosse dito porque ides partir para a guerra santa e, provavelmente, nunca mais nos veremos. Não. Não digais nada...
Inclinando-se para ele, a Rainha fê-lo erguer-se e depois, segurando-lhe na cabeça com as duas mãos, puxou-o para ela e deu-lhe um beijo na fronte:
- Ide, cavaleiro! E que Deus vos guarde!
Quando se viu na escadaria, Renaud apercebeu-se de que chorava...
No dia seguinte, o Rei foi buscar o estandarte real à basílica de Saint-Denis, como era de tradição antes de uma partida para a guerra. O monarca trouxe também o bastão e o bordão de peregrino cujo hábito vestia e dirigiu-se a Notre-Dame para ouvir missa, após o que se dirigiu, finalmente, à abadia de Santo António escoltado por um povo imenso e em lágrimas, para ali fazer as suas últimas devoções. Por fim, montou a cavalo e dirigiu-se ao castelo de Corbeil onde seria a primeira etapa. Ao longo desse último dia, a sua mãe, com o rosto desfeito se bem que se esforçasse por o esconder, acompanhou-o. Na manhã seguinte, depois de lhe ter entregue solenemente a regência do reino, Luís opôs-se a que ela o acompanhasse até mais longe. Doravante, a Rainha-Mãe tinha a França a seu cargo e também as três crianças que estavam confiadas à sua guarda, mas, no instante crucial, era uma magra consolação pelo que perdia. Sentia, em todas as fibras do seu corpo, que nunca mais veria aquele filho tão amado, aquele jovem soberano cujos passos guiara, ao lado de quem cavalgara tantas vezes. Além disso, também perdia Roberto e Carlos: três dos quatro filhos! Era quase insuportável...
Subitamente, a dor foi mais forte e como outra mãe qualquer desesperada com a separação, deixou-se cair na berma do caminho... Luís ergueu-a do chão, abraçou-a durante um longo momento e depois, confiando-a ao seu irmão Afonso, que partiria mais tarde, subiu para a sela e desapareceu com o seu exército na poeira do caminho. Também ele a chorar.
E a lenta descida na direcção do Mediterrâneo começou. Era impossível ir mais depressa quando arrastavam atrás de si um exército, o material e as bagagens. O Rei aproveitava para parar em numerosas igrejas e mosteiros, como se quisesse “fazer provisão de preces”. Para Margarida era a viagem da libertação. A jovem Rainha era suficientemente boa por natureza para não sentir compaixão pela dor de Branca, apesar do que a fizera sofrer. Ela compreendia, tanto mais que também deixava para trás os seus próprios filhos, mas teria o Rei só para si e era tão bom cavalgar através da rica Borgonha na companhia da sua irmã Beatriz, nova condessa d'Anjou e também dos seus cunhados Carlos e Roberto que, esse, partia sozinho, já que a sua condessa Mahaur ficava em Paris devido à sua gravidez...
A felicidade que o seu rosto encantador exprimia tão abertamente irritava Renaud, assim como o exasperava a lentidão da viagem. Aquela velocidade não chegariam à Terra Santa senão dali a um ou dois anos!
- O nosso sire achará que ainda não foi suficientemente abençoado? - perguntou ele uma noite em que, na sua tenda, que preferia a qualquer alojamento, Roberto d'Artois reunira os seus cavaleiros para provar com eles o vinho local. O príncipe aproximou-se dele e assentando-lhe um murro capaz de abater um boi, que era a sua imagem de marca, exclamou:
- Estás impaciente, franganote? Tens pressa de te bater com os Infiéis, ou de ver se as raparigas deles são tão perturbadoras como se diz?
- A primeira proposição, monsenhor. O exército também está impaciente! Não paramos de cantar salmos!
- O problema é que não percebes nada, nem tu, nem o exército. Esqueces que uma cruzada é uma peregrinação e deve rezar-se em todos os lugares sagrados. E, como vês, o Rei não despe o seu hábito de peregrino.
- Não pensei nisso. Nesse caso, ainda bem que não fazemos o caminho a pé.
- Pois. É um pouco isso, mas consola-te, pensando que no mar não encontraremos muitas igrejas!
A paragem mais longa foi em Lyon. O Papa parecia decidido a implantar-se na cidade e fez os possíveis para não se encontrar com o Rei. Luís IX, cuja piedade não obscurecia o seu sentido político, aproveitou para confiar o seu reino a Inocêncio para que, armado com a cruz pastoral, barrasse o caminho a Henrique III de Inglaterra se este lhe passasse pela cabeça vir provar mais de perto a terra de França. E esforçou-se, uma vez mais, por lançar as bases de uma reconciliação entre o Sumo Pontífice e a sua velha ovelha negra, o Imperador Frederico. Em vão, naturalmente, mas Luís partia do princípio de que quem não arrisca não petisca... Com a consciência tranquila, o monarca prosseguiu o seu caminho...
A noite chegara. Uma bela noite de Verão semeada de estrelas, mas húmida por causa dos pântanos vizinhos cuja água evaporava com o calor do dia. Renaud estendeu as suas longas pernas. Estivera muito tempo sentado no rolo de cordas a examinar os movimentos do porto e o seu vaivém permanente entre os barcos e o cais novinho em folha. No dia seguinte, aparelhariam. No dia seguinte começariam a grande aventura. Enfim!
O jovem virou-se para a grande torre redonda dominada por uma espécie de miradouro, a única parte da fortificação decidida pelo Rei que estava terminada. No alto ardia uma fogueira numa grade de ferro, porque a torre de Constança - era o seu nome - servia ao mesmo tempo de farol e de ponto de referência. Renaud sabia que Margarida, a sua irmã e as suas damas-de-companhia estavam lá alojadas e sentia-se emocionado por sabê-”la” tão perto, mas estaria ainda mais perto se Deus o quisesse pôr no mesmo navio que ela... Poderia vê-la todos os dias e aproximar-se, o que não acontecia há muito tempo. E talvez falar-lhe? Infelizmente, já não tinha consigo o pequeno camafeu, que desaparecera. Quando?... No dia seguinte à sua investidura. Através da dama Hersende, soubera que ela acabava de perder a mãe e que o pai pedia a sua presença, mas não regressara. Por vezes pensava nela, perguntando a si próprio o que lhe acontecera. De facto, tinha saudades dela e da sua maneira directa de dizer as coisas, da sua maneira de falar sem rodeios e daquela luz verde que cintilava por baixo das pálpebras oblíquas quando se tornava naturalmente maliciosa...
Por um momento, ficou a contemplar o emaranhado de chamas no alto da torre e depois pôs-se a caminho, regressando ao acampamento de monsenhor Roberto, quando Pernon se materializou subitamente por trás uma pilha de cascos.
- Ah, messire! Andava à vossa procura...
O velho escudeiro não parecia estar no seu estado normal, mas não parecia que fosse devido ao contacto com uma garrafa. Desde que se tornara seu escudeiro, o antigo mestre-de-armas raramente se embriagava. Então, a sua figura ficava de uma cor púrpura, ao passo que agora estava quase pálida.
- Então? Que se passa?
- É que... é que acabo de ver o barão Raul!
- E isso deixa-vos assim tão perturbado? Não é nada de mais ele juntar-se à hoste. O pai dele não esteve na última cruzada?
- De facto, não teria nada de espantoso, mas o que é surpreendente é o próprio barão. Primeiro, errava sozinho perto da entrada da cidade com um ar alucinado, como se não soubesse onde estava...
- Talvez tenha querido dar um passeio e como não conhece a região...
- Podia ser, mas, além disso, tinha um ar doente. Eu bem vi quando ele se aproximou de mim, já que eu não me atrevi a aproximar-me dele. Nunca o vi tão pálido, tão triste! Ele segurou-me pelos ombros como se fosse muito natural eu estar ali, como se nos tivéssemos visto na véspera e disse-me que... ah sim: a redenção está na curva do caminho... que veio para pagar o crime cometido e que era o Céu que me enviava como testemunha. Agarrou-se a mim e eu quis afastar-me, explicar-lhe que tinha arranjado serviço, mas ele não me quis ouvir. Felizmente, chegou um dos seus cavaleiros, messire d'Amigny, que me conhece. Conseguimos ambos levá-lo docemente para a sua tenda, onde os servidores se encarregaram dele.
- Mas, que aconteceu para ele estar nesse estado?
- Segundo messire d'Amigny, teria descoberto, pouco depois da minha fuga, a verdade acerca da amante e da morte da dama Filipa. Então, apoderou-se dele uma imensa cólera e ordenou que prendessem Flore. Intimou-a a comparecer no seu tribunal e condenou-a à fogueira por feitiçaria.
- Uma filha da nobreza atirada para a fogueira por feitiçaria?
- Oh, não é a primeira vez! Mas ficai tranquilo! Não a deixaram assar: na véspera da execução desapareceu da prisão sem que ninguém soubesse como conseguiu nem para onde foi. Depois disso, sire Raul nunca mais deixou de se confessar culpado e de pedir perdão a Deus, ainda por cima estimulado pelo seu irmão Enguerrand, que o pressionou no sentido de se fazer monge, o que lhe teria permitido mandar matá-lo tranquilamente no mosteiro, mas o Rei apelou à cruzada e os cavaleiros de Coucy persuadiram o barão a tomar a cruz como o mais seguro meio de obter o perdão divino, batendo-se por Jerusalém... e, sobretudo, o meio mais seguro de se proteger do irmão. Então, partiram uns dez com ele e, a princípio, tudo correu bem. Sire Raul parecia ter voltado ao normal e feliz com a perspectiva das batalhas que se avizinhavam. Além disso, ao longo do caminho, rezou quase tanto como o nosso sire. Depois, talvez por causa da lentidão da viagem, começou a beber, o que não é nada bom para a saúde e quando está embriagado mistura tudo: a sua necessidade ardente de redenção... e o desejo ardente por aquela prostituta, que o consome! Foi no que deu.
- Meu Deus! E que podemos fazer para lhe acudir?
- Pedir a Deus, justamente, para que a cruzada comece rapidamente e que não nos demoremos muito tempo em Chipre. Ouvi dizer que nessa ilha um homem sente-se atraído para os jogos de amor por causa de uma deusa dos Antigos, que tinha lá servas mais lascivas do que todas as raparigas da vida que um exército em campanha arrasta consigo. Se for verdade, o barão enlouquece por completo...
- Ou fica curado! Quem sabe?
No dia seguinte, a frota içou as suas grandes velas quadradas com umas grandes cruzes douradas estampadas, ao mesmo tempo que os padres entoavam um vibrante Vem Creator, imitados com fervor por aqueles que partiam sem saber se voltariam a ver um dia o seu país natal; mas naquela manhã inundada de sol, naquele mar azul como as cores de França e com aquele vento alegre, que trazia a magia das terras longínquas, nenhum daqueles homens - e daquelas mulheres! - se abandonava a grandes lamentações, porque iam libertar o túmulo de Cristo e conquistar a entrada no paraíso, ao mesmo tempo que efectuavam a mais bela das viagens...
A frente navegavam três naus - a Montjoie, a Reine e a Demoi-selle, todas engalanadas de cores vivas até à ponta dos mastros, cheias de estandartes e flâmulas. Eram imediatamente seguidas pelas naus de carga, onde tinham sido arranjadas instalações para os preciosos cavalos cujo embarque e desembarque se efectuava facilmente graças às portas existentes na ré. O Rei e os seus - umas quinhentas pessoas! - subiram, ao som das trombetas de prata, para bordo da Montjoie cujo castelo da popa fora transformado, para as damas, num aposento com tapeçarias, almofadas de seda e edredões de penas para o repouso. Renaud estava muito mais modestamente alojado na proa com os outros cavaleiros. Se esperava ficar próximo da sua Rainha, depressa compreendeu que seria impossível. No entanto, podia avistá-la por ocasião da missa da manhã e durante o dia quando ela aparecia no topo do castelo da popa, cujo velame laranja e vermelho a protegia dos ardores do sol... Como digna filha do sul, ela gostava de vestidos e véus claros, muitas vezes brancos e que, aos olhos do seu admirador mudo, a faziam ainda mais bela e ele podia ficar horas, escondido a um canto, a observá-la através das pálpebras semife-chadas, fingindo que estava a dormir.
Nas primeiras noites foi uma espécie de encantamento. Margarida tinha consigo, desde o casamento da sua irmã Beatriz com Carlos d'Aniou uma jovem em substituição dos jovens trovadores que Madame Branca suportava tão mal. Essa donzela sabia dizer um poema e contar urna história, mas, sobretudo, acompanhada por um alaúde, cantava aquelas canções em língua provençal de que Margarida tanto gostava. A jovem possuía uma voz aveludada, sedutora, de uma doçura tão fascinante que os barulhos do navio adormeciam e todos retinham a respiração quando, à luz das estrelas, ela se sentava numa almofada aos pés da Rainha e começava, deixando os seus longos dedos suaves percorrer as cordas. Os que a escutavam tinham a sensação de ouvir a voz do amor e mais do que uma lágrima furtiva se perdia num bigode rude, apesar de, salvo raras excepções, aqueles guerreiros, vindos do norte, não conhecerem a língua. Apenas o Rei Luís recusava o sortilégio e, geralmente, punha fim ao concerto ordenando que os passageiros da Mottifoie cantassem em coro alguns cânticos à glória de Deus ou de Nossa Senhora, perdia-se em harmonia, já que as vozes não eram todas angelicais, longe disso, mas ganhava-se em vigor.
- O meu irmão é, sem dúvida, feito do material de que se fazem os santos - Robservou Roberto d'Artois uma noite em que, tendo-se levantado vento, as damas se tinham retirado e ele tinha subido à proa para encher os pulmões com o ar mais fresco.
- Mas não é razão para decretar que apenas os rugidos dos monges são uma expressão de arte. Pela minha parte, nunca ouvi nada mais comovente do que a voz desta Elvira. Era capaz de passar horas a ouvi-la...
- É aí que bate o ponto - disse o seu amigo António d'A-vrincourt. - Ele pensa que ficamos moles e tem uma certa razão. A guerra que nos espera é uma guerra por Deus, não o esqueçamos! A graça feminina não tem muito a ver com isso e ainda bem que esta rapariga não é tão bonita como a sua voz. Estaríamos todos em perigo...
- Se assim fosse, o meu real irmão seria... capaz de a atirar à água para maior glória do Senhor! - concluiu Artois, rindo.
Para dizer a verdade, a nova favorita de Margarida, sem ser bela, não era repulsiva. De estatura mediana e bem cheia, tinha umas feições fortes, um pouco vincadas demais para uma mulher, mas tinha uma boca sinuosa que tinha o seu encanto e uns olhos escuros cuja particularidade era não reflectirem nada, nem a luz, nem o sentimento. Eram baços, opacos, como os de um cego. Quanto aos seus cabelos negros, formavam, sobre as orelhas, duas tranças enroladas tão espessas que lhe alargavam o rosto. A jovem vestia-se com modéstia e sempre tecidos escuros e o seu corpo estava sempre bem escondido, como o de uma freira: dela só se via o rosto e as mãos. De facto, se não tivesse aquela voz de sereia, não teria qualquer interesse e Margarida não se teria deixado embeiçar, acordando o ciúme nas outras damas do séquito e também, curiosamente, em Renaud. Não porque invejasse a ligação que a Rainha tinha com a cantora, mas porque pensava, por vezes, em Sancie de Signes. A despeito da sua fealdade, esta era simpática, orgulhosa e coreácea, divertida e com um porte que atestava a grande dama que prometia ser. O cavaleiro não compreendia como podia Margarida dar a Elvira, no seu coração, o lugar antes ocupado pelo “pequeno camafeu”, cujo destino ele ignorava.
Antes de embarcar, o jovem tentara informar-se junto de Hersende, o único ser que ele conhecia no séquito de Margarida, mas a médica não pudera - ou não quisera! - dizer-lhe outra coisa senão:
- Parece-me que ouvi falar, no ano passado, de um casamento, mas não juraria.
- Um casamento? Tão jovem?
- Não tem nada de extraordinário. Ela agora deve ter dezasseis anos e se a casaram quanto tinha quinze, é natural. Mas, nunca pensei que ela pudesse interessar-vos.
A médica olhava para ele pelo canto do olho com um sorriso um pouco trocista, o que o irritou:
- Pegando na vossa expressão, é natural! Ela não demonstrou amizade por mim? Esquecê-la seria uma ingratidão.
Era curioso, no entanto, como aquela breve conversa lhe regressava ao espírito a propósito daquela Elvira absolutamente desconhecida mas que, no entanto, lhe lembrava qualquer coisa... ou alguém. O facto de não conseguir localizar esse alguém irritava-o, porque tinha orgulho na sua memória para além da sua faculdade de nunca esquecer um rosto...
Nos dias que se seguiram não a viu muito. O Rei, descontente com aquelas canções profanas quando iam para a cruzada, deu a sua opinião que, bem entendido, prevaleceu. Além disso, iam verdadeiramente em cima uns dos outros naquele barco, tal como nos outros e o desconforto incitava mais à oração do que ao romance. No entanto, à excepção de um golpe de vento que atirou um dos navios para o mar alto, a travessia fez-se sem muitos estragos. O tempo estava ideal e o Mediterrâneo suave e docemente ronronante como uma gata que quer ser acariciada. Renaud passou a maior parte do seu tempo com os cotovelos encostados à balaustrada, vendo passar por baixo do casco arredondado da nau o fluxo azulado, e cada redemoinho irisado, cada cintilação de uma vaga enchia-o de uma alegria infantil. O jovem via, na beleza sublime de um mar que conhecera menos clemente por ocasião do seu regresso de Roma, uma espécie de promessa de que a santa expedição acabaria em triunfo, aproximando a sua alma do paraíso. Mas, sobretudo, queria chegar à ilha de Chipre e à medida que os dias decorriam, o jovem prolongava as suas estadias à proa na esperança de ser o primeiro a avistá-la.
De Chipre, sabia o que aprendera através do manuscrito de Thibaut: era uma terra de grande beleza e a sua avó, a bela Isabel de Jerusalém, cuja imagem o jovem conseguira conservar apesar de todas as atribulações, fora sua Rainha com Amaury de Lusig-nan, o seu quarto marido; que a sua mãe, Melisanda, nascera na ilha e que esta ficava perto da costa Síria, onde ele tinha pressa de chegar.
No entanto, não foi o primeiro a vê-la: foi na noite de 17 para 18 de Setembro que o grito do vigia, no saco de calafate, a assinalou. Todos se precipitaram de imediato para a proa em risco de desestabilizar o navio. O porto de que se aproximavam era o de limassol, a sul da ilha, e para além da torre, onde se via uma fogueira que desfiava as chamas ao vento da noite, distinguiam-se apenas alguns contornos, alguns cabeços arborizados e as silhuetas de algumas fortificações; mas aquilo que os olhos não diziam, dizia-o o olfacto que, esse, chegava como uma mensagem do paraíso. A brisa nocturna transportava todos os aromas de um lugar dedicado pelos Antigos à deusa do Amor e do qual a natureza fizera um enorme defumador de perfumes. Os odores de mirto, de nardo, de canela, de mirra, de incenso e de alfazema chegavam aos navios em lufadas que faziam esquecer o odor do mar e até o pivete obrigatório dos homens e dos animais amontoados...
O nascer do Sol permitiu ver a cidade branca rodeada de florestas de eucaliptos, outeiros carregados de vinhas e o porto azul com os montes Todos ao longe cobertos de cedros e de ciprestes. Limassol apareceu com as suas defesas, o seu farol, a sua multidão de mastros multicoloridos e a graciosa capela de São Jorge onde, em tempos, o Rei inglês Ricardo, Coração de Leão se casou com Berengária de Navarra. Um grande castelo reinava sobre tudo aquilo. Descobriram, também, a razão das precauções do Rei de França: pirâmides de cascos tão altas que mais pareciam granjas e verdadeiras montanhas de trigo e de cevada. Montanhas verdejantes: a chuva fizera nascer a erva à superfície, mas era uma coisa prevista, já que aquela erva conservava a frescura dos cereais.
O governador da cidade aproximou-se da linha de água para receber, com grande cerimónia o Rei de França e os grandes senhores que o acompanhavam para os conduzir ao castelo onde o Rei Henrique I, prevenido pelos pombos-correio, não tardaria a chegar para ter a alegria de conduzir ele mesmo o seu irmão de França a Nicósia, a sua capital. Para além de Luís e dos seus irmãos, os grandes navios, todos engalanados, tinham trazido Hugo IV, o conde de Flandres Guilherme de Dampierre, Hugo V conde de Saint-Paul, Raul de Coucy e um outro desesperado, Hugo de Lusignan, conde de La Marche e viúvo, há pouco tempo, da mulher que amara durante toda a sua vida e que continuava a amar: Isabel d'Angoulême, antiga Rainha de Inglaterra que, por duas vezes, atentara contra a vida de Luís IX e da sua mãe. Mais melancólico senhor, de idade já avançada, não era possível encontrar: vestido de negro, menos ferido pela morte da sua mulher do que pelo facto de se ver rejeitado quando ela se fechou na abadia de Fontevrault junto da tumba do seu primeiro marido, João, Sem Terra, um triste sire mas Rei de Inglaterra, recuperando, assim a coroa... Tal como Raul de Coucy, Lusignan mantinha-se à parte com os seus cavaleiros sem falar com ninguém, protegido dos outros pelo desespero inscrito no seu rosto pálido e nos seus olhos ardentes de febre. Todos sabiam que, ao juntar-se à cruzada, o ancião procurava a morte e apenas a morte... O facto de os reis de Chipre serem seus parentes não tinha, para ele, o menor interesse. Estava apenas de passagem.
Tal como o embarque, o desembarque foi feito ao som das trombetas e numa alegre confusão, durante a qual cada senhor se esforçava por encontrar os seus e colocá-los em boa ordem. Com os outros cavaleiros, Renaud foi, um tanto inquieto, recuperar a sua montada, mas os nobres animais tinham suportado admiravelmente a viagem graças aos cuidados que lhes tinham sido prestados por ordem do Rei. O jovem cavaleiro deixou Tempestade desenferrujar as pernas e depois foi juntar-se à gente de Artois que se aglomerava à sombra de um grande pinheiro para irem formar uma barreira de honra para o núncio do Papa, o cardeal Eudes de Châteauroux, cuja galera, pertencente à Ordem do Templo, acabava de lançar ferro no meio do porto. Formou-se uma discussão entre Hugo de Croisilles e o seu doravante inseparável Fresnoy. O primeiro lamentava o fim dos concertos vespertinos dados pela dama-de-companhia da Rainha. Em Chipre deixariam de estar perto das damas e não teriam ocasião de a escutar:
- É verdade que ela não é bonita - dizia um muito compenetrado - mas quando canta um homem não se apercebe disso. Pela minha parte, provoca-me uma sensação que vou ter dificuldade em encontrar em terra.
- Bem, pelo menos conservas a sensação! - ironizou Fres-noy. - Reconheço que ela tem uma voz soberba, mas por que cantar sempre em provençal? Isso agrada, sem dúvida, a madame Margarida. Quanto a mim, prefiro a nossa velha língua de oil! (1) - Tal como os nossos poetas. A dama Elvira só pode, sem dúvida, compor na sua língua... De facto, nem sequer sabemos como se chama. Toda a gente lhe chama apenas dama Elvira, como se ela não pertencesse a nenhuma família.
- Porque essa família não deve ser importante. As grandes casas não gostam muito que as suas filhas façam carreira como saltimbancas!
- Que parolo que tu és, meu pobre Fresnoy, sempre metido nas tuas férteis terras do Norte até aos joelhos! Aprende o seguinte: entre os senhores do Sul, um cantor-poeta é uma bênção do céu e eles sentem muito orgulho nisso. Houve, até, um duque de Aquitânia e um príncipe não sei quê, ambos trovadores. Ora, para servir a Rainha, esta Elvira tem de ser filha da nobreza...
Os dois cavaleiros subiram para os seus cavalos para se porem em marcha e enquanto continuavam a sua discussão, Gilles Pernon deteve Renaud:
- Já sei como ela se chama, a cantora - disse ele em voz baixa, como se temesse ser ouvido.
- Como é que conseguiste? E por que esse tom de mistério?
- Como consegui? Com alguma ajuda de Adèle, a camareira da Rainha, que queria fazer a limpeza mas não tinha água. Ela trata-me como um amigo e como também é da minha terra, disse-me sem eu lhe perguntar. Assim... enquanto conversávamos! E se falei em voz baixa foi porque não sei se ides gostar de ouvir. Eu, pelo menos, não gostei!
- Tantos rodeios! Dizes, ou não?
- Ela chama-se Elvira de Fos - deixou sair Pernon. - O irmão é a única família que tem. E é templário!
- Será a irmã daquele... daquele profanador de sepulturas? - sussurrou Renaud, estupefacto. - Tens a certeza?
(1) Dialecto românico falado no norte de França.
- Oh! Não há a menor dúvida. Adèle até me disse o nome dele: sire Roncelin! Não deve ser grande peça e, mesmo no Templo, não deve ter muitos afilhados!
Invadido por um turbilhão de pensamentos, Renaud não fez qualquer comentário. Com o olhar fixo no espaço entre as orelhas do seu cavalo, reflectia. A recordação do homem que se abatera como uma ave de rapina sobre o modesto eremitério de Thibaut, chegando ao ponto de profanar o seu repouso eterno, revoltava-o. O facto de aquele homem ter uma irmã e de essa irmã pertencer ao séquito de Margarida atormentava-o porque, tendo descoberto com quem Elvira se parecia, sabia agora por que razão ela lhe desagradara instintivamente...
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