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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REPARAÇÃO / Ian McEwan
REPARAÇÃO / Ian McEwan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

 

A peça — para a qual Briony havia desenhado os cartazes, os programas e os ingressos, construído a bilheteria, a partir de um biombo dobrável deitado de lado, e forrado com papel crepom vermelho a caixa para guardar dinheiro — fora escrita por ela num furor criativo que durara dois dias e que a levara a perder um café da manhã e um almoço. Terminados todos os preparativos, só lhe restava contemplar o texto pronto e aguardar a vinda dos primos do Norte longínquo. Só haveria tempo para um dia de ensaios antes de seu irmão chegar. A peça, emocionante em alguns trechos, de uma tristeza desesperada em outros, era uma história do coração, cuja mensagem, expressa num prólogo rimado, era a de que todo amor que não fosse fundado no bom senso estava fadado ao fracasso. A paixão imprudente da heroína, Arabella, por um malvado conde estrangeiro é punida pelo infortúnio quando ela contrai cólera numa viagem impetuosa com seu amado a uma cidade costeira. Abandonada por ele e por praticamente todo mundo, acamada numa água-furtada, Arabella descobre que tem senso de humor. A fortuna lhe apresenta uma segunda oportunidade na pessoa de um médico sem dinheiro — o qual, na verdade, é um príncipe disfarçado, que optou por trabalhar para os pobres. Curada por ele, Arabella dessa vez faz uma escolha sensata e é recompensada pela reconciliação com a família e pelo casamento com o prín-cipe-médico "num dia primaveril de vento e sol".

A sra. Tallis leu as sete páginas de Arabella em apuros em seu quarto, sentada à penteadeira, com o braço da autora em seu ombro o tempo todo. Briony observava com atenção o rosto da mãe para detectar qualquer sinal de emoção, e Emily Tallis não a decepcionou, reagindo com expressões de espanto, risos maliciosos e, no final, sorrisos de gratidão e acenos de sábia aprovação. Abraçou a filha, colocou-a no colo — ah, ela se lembrava daquele corpinho infantil, quente e macio, e que por ora não a havia deixado, não de todo ainda —, disse que a peça era "estupenda" e permitiu imediatamente, cochichando no pequeno remoinho da orelha da menina, que seu comentário fosse citado no cartaz a ser posto sobre um cavalete no hall de entrada, junto à bilheteria.

Briony não sabia no momento, mas seria esse o auge da gratificação que lhe haveria de proporcionar o projeto. Nada chegaria perto disso em matéria de contentamento; todo o resto seriam sonhos e frustrações. Havia momentos no crepúsculo de verão, depois que se apagava a luz, em que ela, entocada na escuridão deliciosa de sua cama de baldaquino, fazia seu próprio coração disparar com fantasias luminosas e ávidas, cada uma delas uma pequena peça completa, todas contracenadas por Leon. Numa, o rosto largo e simpático dele derretia-se de sofrimento enquanto Arabella mergulhava na solidão e no desespero. Em outra, ele aparecia com uma taça na mão em algum bar da moda na cidade, vangloriando-se num grupo de amigos: E, minha irmã mais moça, Briony Tallis, a escritora, vocês certamente já ouviram falar nela. Na terceira, ela o via socando o ar em êxtase quando descia a cortina ao final, embora não houvesse cortina, não houvesse sequer a possibilidade de cortina. A peça não era para os primos, era para o irmão, para comemorar sua volta, despertar sua admiração e afastá-lo daquela sucessão descuidada de namoradas, orientá-lo em direção a uma esposa adequada, aquela que o convenceria a voltar para o interior, que requisitaria, com doçura, a participação de Briony como dama de honra.

Briony era uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem. Enquanto o quarto da irmã mais velha era um caos de livros abertos, roupas jogadas, cama desfeita e cinzeiros sujos, o de Briony era um santuário erigido a seu demônio controlador: a fazenda em miniatura, espalhada no largo parapeito da janela, continha os animais tradicionais, porém todos virados para o mesmo lado — para a dona —, como se estivessem prestes a começar a cantar, e até mesmo as galinhas estavam muito bem dispostas em seu galinheiro. Na verdade, o quarto de Briony era o único cômodo arrumado do andar de cima. Suas bonecas, de costas bem eretas, dentro de sua mansão de muitos quartos, pareciam obedecer à injunção de jamais se encostar nas paredes; os diversos bonequinhos que habitavam sua penteadeira — cau-bóis, mergulhadores de escafandro, ratos humanizados —, de forma tão ordenados, mais pareciam um exército de cidadãos aguardando ordens.

O gosto pelas miniaturas era um dos aspectos de seu espírito organizado. Já outro era a paixão pelos segredos: numa escrivaninha envernizada, objeto de sua predileção, havia uma gaveta secreta que se abria apertando-se numa junta em cauda-de-andorinha contra o sentido dos veios da madeira, e ali Briony guardava um diário trancado com cadeado e também um caderno no qual escrevia num código que ela própria inventara. Num cofre de brinquedo, com segredo de seis números, arquivava cartas e cartões-postais. Uma velha lata de guardar trocados ficava escondida sob uma tábua corrida removível, debaixo de sua cama. Dentro dessa lata havia tesouros por ela acumulados desde o dia em que fizera nove anos, quatro anos antes, quando dera início à coleção: uma bolota dupla, mutante; um pedaço de ouro-besouro; uma fórmula mágica para fazer chover, comprada num parque de diversões; um crânio de esquilo, leve como uma folha.

Porém não havia gaveta oculta, diário com cadeado nem sistema de criptografia que pudesse esconder de Briony a verdade pura e simples: ela não tinha segredos. Seu desejo de viver num mundo harmonioso, organizado, negava-lhe as possibilidades perigosas do mal. A violência e a destruição eram caóticas demais para seu gosto, e além disso lhe faltava crueldade. Vivendo, na prática, como filha única, e numa casa relativamente isolada, permanecia, ao menos durante as longas férias de verão, afastada das intrigas com as amigas. Não havia nada em sua vida que fosse interessante ou vergonhoso que chegasse para merecer ser escondido; ninguém sabia do crânio de esquilo debaixo de sua cama, mas também ninguém queria saber. Nada disso era particularmente aflitivo; ou melhor, só passou a ser visto assim em retrospecto, depois que uma solução foi encontrada.

Aos onze anos de idade Briony escreveu sua primeira história — uma bobagem, imitação de meia dúzia de narrativas folclóricas; faltava-lhe, ela percebeu depois, aquele vital conhecimento do mundo que faz jus à admiração do leitor. Mas aquela primeira tentativa desajeitada lhe mostrou que a própria imaginação era uma fonte de segredos: quando ela começava a escrever uma história, ninguém podia saber. Fingir com palavras era uma coisa tão hesitante, tão vulnerável, tão constrangedora, que ninguém podia ficar sabendo. Só de escrever - disse ela ou então, Briony envergonhava-se, sentia-se ridícula, por fingir conhecer as emoções de um ser imaginário. Cada vez que falava sobre a fraqueza de um personagem, inevitavelmente se expunha; era fatal que o leitor imaginasse estar ela descreven-do-se a si própria. De que outra maneira poderia ter descoberto aquilo? Era só quando a história ficava pronta, todos os destinos resolvidos, toda a questão encerrada do início ao fim, tornando-se, pelo menos sob esse aspecto, semelhante a todas as outras histórias concluídas no mundo, que Briony se sentia imune, pronta para fazer furos nas margens, encadernar os capítulos com barbante, pintar ou desenhar a capa e levar a obra pronta para a mãe, ou o pai, quando ele estava em casa.

Suas tentativas eram incentivadas. Aliás, eram muito bem recebidas, pois os Tallis começavam a se dar conta de que a caçula da família tinha uma inteligência incomum e certa facilidade com as palavras. As longas tardes gastas folheando dicionários resultavam em construções absurdas, porém de certo modo fascinantes: as moedas que o vilão levava no bolso eram "esotéricas"; um marginal preso em flagrante roubando um carro chorava com "desavergonhada auto-escusa"; a heroína, montada em seu garanhão puro-sangue, cavalgava "célebre" pela noite; a testa franzida do rei era um "hieróglifo" de reprovação. Pediam-lhe que lesse suas histórias em voz alta na biblioteca, e os pais e a irmã mais velha ficavam surpresos ao ver aquela menina tão quietinha representar com tamanha desenvoltura, esboçando gestos largos com o braço livre, arqueando as sobrancelhas quando fazia as vozes dos personagens, levantando a vista por alguns segundos durante a leitura para examinar os rostos dos ouvintes, cobrando sem nenhum pudor a atenção total da família enquanto exercia a magia da narrativa.

Mesmo sem a atenção, os elogios e o prazer evidente de seus familiares, teria sido impossível para Briony não escrever. Aliás, estava começando a perceber, como tantos escritores antes dela, que nem todo elogio ajuda. O entusiasmo de Cecília, por exemplo, parecia um pouco exagerado, talvez marcado por condescendência, e também intrometido; sua irmã mais velha queria que cada história encadernada fosse catalogada e colocada nas estantes de livros, entre Rabindranath Tagore e Tertuliano. Se a intenção era fazer graça, Briony fingia não perceber. Agora já havia deslanchado, e também encontrava satisfação em outros níveis; escrever histórias não apenas envolvia o segredo como também lhe proporcionava todos os prazeres da miniaturização. Era possível criar todo um mundo em cinco páginas, um mundo que dava mais prazer que uma fazenda em miniatura. A infância de um príncipe mimado era apresentada em meia página; um galope ao luar, passando por várias aldeias adormecidas, era uma só frase marcada por ênfases rítmicas; o ato de apaixonar-se cabia numa única palavra — um olhar. As páginas de uma história recém-terminada pareciam vibrar em sua mão, de tanta vida que continham. Também conseguia desse modo satisfazer sua paixão pela organização, pois o mundo caótico ficava exatamente como ela queria. Uma crise na vida da heroína podia coincidir com uma chuva de granizo, vendavais e trovões; já os casamentos eram normalmente abençoados por sol e brisas suaves. O amor à ordem também estava por trás dos princípios de justiça: a morte e o casamento eram seus principais instrumentos de implementação, aquela reservada exclusivamente aos que eram moralmente questionáveis, este um prêmio que só era conferido na última página.

A peça escrita para comemorar a volta de Leon era sua primeira incursão no teatro, e a transição lhe parecera bastante simples. Era um alívio não ter de estar escrevendo disse ela, nem descrevendo o tempo, a chegada da primavera, o rosto da heroína — a beleza, Briony constatara, ocupava uma faixa estreita. A feiúra, por outro lado, continha infinitas variações. Um universo reduzido ao que nele era dito era o máximo em matéria de ordem, quase a ponto de anular-se; para compensar, cada fala era proferida no auge de algum estado afetivo, cuja presença era necessariamente assinalada pelo ponto de exclamação. Arabella em apuros era certamente um melodrama, mas a autora ainda não conhecia o termo. O objetivo era inspirar não o riso, mas terror, alívio e edificação, nessa ordem, e a intensidade inocente com que Briony se entregou ao projeto — os cartazes, os ingressos, a bilheteria — tornava-a particularmente vulnerável ao fracasso. Ela poderia simplesmente receber Leon com mais uma de suas histórias, mas a notícia de que os primos do Norte vinham ficar com eles lhe havia instigado a explorar uma forma nova.

Briony deveria ter dado mais importância ao fato de que Lola, então com quinze anos, e Jackson e Pierrot, os gêmeos, de nove anos, eram refugiados de uma verdadeira guerra civil familiar. Ela já ouvira a mãe criticar o comportamento impulsivo de sua irmã mais moça, Hermione, lamentar a situação das três crianças e fazer acusações a seu cunhado Cecil, homem fraco e evasivo, que havia fugido da situação para o refúgio do Ali Soul's College, em Oxford. Briony ouvira a mãe e a irmã analisar as mais recentes peripécias e barbaridades, acusações e contra-acusações, e sabia que a visita de seus primos não tinha prazo para terminar, podendo até se estender após a volta às aulas. Ouvira dizer que na casa cabiam facilmente mais três crianças, e que os Quincey podiam ficar o tempo que quisessem, desde que os pais, se alguma vez viessem ao mesmo tempo ver as crianças, não brigassem naquela casa. Dois quartos perto do de Briony haviam sido espanados, instalaram-se cortinas novas e móveis foram transferidos de outros cômodos. Em circunstâncias normais Briony teria participado desses preparativos, mas eles coincidiram com seus dois dias de surto criativo e também com o início da construção do teatro. Briony tinha uma vaga idéia de que o divórcio era um problema sério, mas não o considerava um assunto apropriado e, portanto, não pensou mais naquilo. Era um desenredo mundano que não podia ser desfeito, e desse modo não oferecia oportunidades para o contador de histórias: fazia parte da esfera da desordem. Já o casamento, sim, esse interessava, uma cerimônia formal e organizada em que se recompensava a virtude, com pompas e banquetes emocionantes, e a promessa fascinante de união para toda a vida. Um bom casamento era uma representação disfarçada de algo ainda impensável — o êxtase sexual. Em igrejas rurais e magníficas catedrais na cidade grande, com a aprovação de toda uma sociedade de parentes e amigos, as heroínas e os heróis de Briony chegavam a um clímax inocente e não precisavam ir adiante.

Se o divórcio se manifestasse como a antítese vil de tudo isso, poderia facilmente entrar no outro prato da balança, juntamente com a traição, a doença, o roubo, a agressão e a mentira. Porém era apenas um processo de uma complexidade tediosa, cheio de disputas intermináveis, sem nenhum glamour. Tal como o rearmamento, a questão abissínia e a jardinagem, o divórcio simplesmente não servia como tema, e quando, após uma longa espera numa manhã de sábado, Briony por fim ouviu o som de rodas no cascalho à sua janela, pegou as páginas de seu texto e desceu correndo a escada, atravessou o hall e saiu à luz deslumbrante do meio-dia, foi menos por insensibilidade do que por ambição artística concentrada que gritou para os jovens recém-chegados, perplexos, parados ao lado de sua bagagem: "Já preparei os papéis de vocês todos, tudo pronto. A estréia é amanhã! Os ensaios começam daqui a cinco minutos!".

Imediatamente, a mãe e a irmã propuseram outro horário menos rígido. Os visitantes — todos os três ruivos e sardentos — foram conduzidos a seus quartos, suas malas foram levadas para cima por Danny, o filho de Hardman; depois beberam refresco na cozinha, conheceram toda a casa, tomaram um banho de piscina e almoçaram no jardim do lado sul, à sombra das trepadeiras. O tempo todo Emily e Cecilia Tallis falavam incessantemente, por certo impedindo que os recém-chegados se sentissem à vontade, como era a intenção delas. Briony sabia que, se tivesse viajado trezentos quilômetros, estivesse chegando a uma casa desconhecida e fosse submetida a um sem-fim de perguntas animadas e comentários espirituosos, e lhe dissessem de cem maneiras diferentes que ela estava livre para fazer o que quisesse, certamente se sentiria oprimida. As pessoas não percebiam que o que as crianças mais queriam era serem deixadas em paz. Porém os Quincey se esforçavam ao máximo para dar a impressão de que estavam se sentindo alegres e à vontade, o que era bom para Arabella em apuros: aqueles três claramente levavam jeito para ser o que não eram, muito embora não tivessem a menor semelhança com os personagens que deveriam representar. Antes do almoço, Briony deu uma escapulida e foi até o quarto vazio onde teriam lugar os ensaios — o antigo quarto das crianças — e ficou andando de um lado para outro sobre as tábuas pintadas no chão, pensando quem faria qual papel.

Sem dúvida, Arabella, cujo cabelo era tão negro quanto o de Briony, não teria pais sardentos, nem haveria de fugir com um conde estrangeiro sardento, nem alugar uma água-furtada de um taberneiro sardento, nem se apaixonar por um príncipe sardento e ser casada por um vigário sardento diante de uma congregação sardenta. Mas tudo teria de ser assim. A cor de seus primos era viva demais — praticamente fluorescente! — para que fosse possível disfarçá-la. O melhor que se podia dizer era que a ausência de sardas do rosto de Arabella era o sinal — e era o hieróglifo, como Briony poderia ter escrito — de sua distinção. Sua pureza de espírito jamais estaria em dúvida, embora ela vivesse num mundo maculado. Os gêmeos levantavam um outro problema, pois só as pessoas que os conheciam sabiam distinguir um do outro. Como poderia o conde mau ser tão parecido com o belo príncipe, ou os dois serem parecidos com o pai de Arabella e também com o vigário? E se Lola interpretasse o príncipe? Jackson e Pierrot pareciam ser meninos bem típicos, que provavelmente fariam tudo o que lhes fosse pedido. Mas será que a irmã deles aceitaria fazer papel de homem? Tinha olhos verdes e rosto ossudo, as faces cavadas, e havia algo de frágil em sua reserva que parecia indicar uma vontade firme e um gênio difícil. Talvez a simples idéia de Lola assumir aquele papel gerasse uma crise, e estaria Briony realmente disposta a ficar de mãos dadas com ela diante do altar, enquanto Jackson recitava passagens do Livro de oração comum?

Foi só às cinco da tarde que Briony conseguiu reunir seu elenco no quarto das crianças. Havia disposto três bancos numa fileira e acomodou seu próprio traseiro numa velha cadeirinha alta de criança — um toque boêmio que lhe conferia a vantagem da altura, como se fosse o árbitro numa partida de tênis. Os gêmeos vieram com relutância da piscina, onde haviam permanecido três horas sem interrupção. Estavam descalços, de camiseta e calção, e por onde passavam deixavam uma trilha de água no soalho. Dos cabelos emaranhados a água escorria-lhes pescoço abaixo; os dois tiritavam e esfregavam um joelho no outro para se esquentar. Com a longa imersão na água, sua pele ficara engelhada e esbranquiçada; assim, à luz relativamente pobre do quarto das crianças, suas sardas pareciam negras. A irmã, por outro lado, sentada entre eles, perna esquerda apoiada no joelho direito, estava perfeitamente à vontade, tendo se perfumado abundantemente e colocado um vestido de guingão verde para disfarçar o alvor da tez. As sandálias deixavam à vista uma tornozeleira e unhas pintadas de vermelho. Ao ver aquelas unhas, Briony sentiu uma constrição no peito e percebeu na mesma hora que não podia pedir a Lola que fizesse o papel do príncipe.

Estavam todos sentados, e a dramaturga estava prestes a dar início a seu pequeno discurso, em que resumiria o enredo e evocaria a emoção de apresentar-se para uma platéia de adultos no dia seguinte, à noite, na biblioteca. Mas foi Pierrot quem falou primeiro.

"Eu detesto teatrinho, essas coisas todas."

"Eu também, e botar fantasia", disse Jackson.

Na hora do almoço, fora explicado que era possível distinguir os gêmeos graças ao fato de que faltava um pequeno triângulo de carne no lóbulo esquerdo da orelha de Pierrot, por causa de um cachorro que ele havia atormentado quando tinha três anos de idade.

Lola desviou a vista. Argumentou Briony, razoável: "Como é que você pode detestar teatro?".

"É coisa de quem gosta de se mostrar." Pierrot deu de ombros ao enunciar essa verdade evidente.

Briony reconheceu que ele tinha uma certa razão. Era justamente por isso que ela adorava peças, ou pelo menos a peça dela; todo mundo ia adorá-la. Olhando para os meninos, vendo a água formar poças embaixo de seus assentos antes de escapulir por entre as tábuas do assoalho, deu-se conta de que eles jamais compreenderiam a sua ambição. A misericórdia suavizou seu tom de voz.

"E o Shakespeare, ele estava só querendo se mostrar?"

Pierrot olhou para Jackson, do outro lado de sua irmã. Aquele nome feroz, que evocava a escola e as certezas adultas, lhe era vagamente familiar, mas a presença de um dos gêmeos dava coragem ao outro.

"Estava, sim. Todo mundo sabe." É mesmo.

Quando Lola falou, dirigiu-se primeiro a Pierrot e, no meio da frase, virou-se para o outro lado, concluindo sua fala com Jackson. Na família de Briony, a sra. Tallis jamais tinha algo a dizer que precisasse ser dito simultaneamente a ambas as filhas. Agora Briony sabia como era.

"Vocês vão trabalhar na peça, senão vão levar um cascudo e depois vou contar para Os Pais."

"Se você der cascudo na gente, nós é que vamos contar para Os Pais."

"Vocês vão trabalhar na peça, senão eu vou contar prós pais."

Embora tivesse sido discretamente atenuada, nem por isso a ameaça perdera sua força, ao que parecia. Pierrot mordeu o lábio inferior.

"Por que é. que a gente tem que trabalhar?" Havia naquela pergunta uma concessão infinita, e Lola tentou despentear-lhe o cabelo grudento.

"Lembra o que Os Pais disseram? Nesta casa nós somos convidados, e aqui a gente tem que ser... o que é mesmo que a gente tem que ser? Vamos lá. O que é que a gente tem que ser?"

"Flequi-cível", responderam os gêmeos num coral desanimado, tropeçando na palavra difícil.

Lola virou-se para Briony e sorriu. "Por favor, conte para nós como é a sua peça."

Os Pais. A força institucional contida nesse plural estava prestes a rachar ao meio, o que talvez até já tivesse acontecido, mas por ora o fato não podia ser admitido, e mesmo os mais jovens tinham de ser corajosos. Briony de repente teve vergonha do egoísmo daquela sua iniciativa, pois jamais lhe ocorrera a possibilidade de que seus primos não quisessem desempenhar seus papéis em Arabella em apuros. Mas também eles estavam em apuros; acontecera uma catástrofe em suas vidas, e agora, como convidados na casa de Briony, julgavam lhe dever um favor. Pior ainda, Lola deixara claro que também ela estava agindo por obrigação. Os Quincey, vulneráveis, estavam sob coação. E no entanto — Briony esforçava-se para apreender a idéia complexa — não estaria havendo uma manipulação, não estaria Lola usando os gêmeos para transmitir alguma coisa a ela, algo hostil ou destrutivo? Sentia a desvantagem de ser dois anos mais moça que a outra menina, dois anos a menos de refinamento a pesar contra ela, e agora sua peça parecia uma infelicidade, um constrangimento.

Evitando o olhar de Lola o tempo todo, pôs-se a resumir o enredo, embora a consciência de que a peça era uma idiotice já começasse a avassalá-la. Não tinha mais ânimo de tentar convencer os primos de que a estréia seria emocionante.

Assim que terminou, Pierrot disse: "Quero ser o conde. Quero ser uma pessoa má".

Jackson disse apenas: "Eu sou um príncipe. Eu sou sempre um príncipe".

Briony teve vontade de abraçá-los e beijar seus rostinhos, porém arrematou: "Então está combinado".

Lola descruzou as pernas, alisou o vestido e se levantou, como se estivesse indo embora. Com um suspiro de tristeza ou resignação, disse: "Imagino que você, porque escreveu a peça, vai ser a Arabella...".

Não, não", disse Briony. "De jeito nenhum."

Embora dissesse não, queria dizer sim. Claro que ia fazer o papel de Arabella. O que estava negando era o "porquê" de Lola. Ela não ia ser Arabella porque havia escrito a peça, e sim porque nenhuma outra possibilidade jamais lhe passara pela cabeça, porque era assim que Leon tinha de vê-la, porque ela era Arabella.

Mas o fato era que tinha dito não, e agora Lola dizia, toda dengosa: "Se é assim, então você me deixa ser ela? Eu acho que vou saber fazer muito bem. Aliás, de nós duas...".

Não concluiu a frase, e Briony ficou olhando fixamente para ela, incapaz de conter uma expressão de horror, incapaz de falar. Estava perdendo o controle, sabia disso, mas não conseguia pensar em nenhum comentário que tivesse o efeito de reverter a situação. Lola aproveitou aquele silêncio para insistir.

"Ano passado fiquei um tempão doente, por isso eu acho que vou saber fazer direito essa parte também."

Também? Briony não conseguia fazer frente à menina mais velha. A infelicidade do inevitável turvava seus pensamentos.

Um dos gêmeos disse, orgulhoso: "E você inclusive fez aquela peça na escola".

Como lhes dizer que Arabella não era sardenta? Tinha pele clara e cabelo negro, e pensava os pensamentos de Briony. Mas como poderia ela dizer não a uma prima vinda de tão longe, cuja vida familiar estava destroçada? Lola estava lendo seus pensamentos, pois agora descartou o último trunfo, o ás irrecusável.

"Deixa. Vai ser a única coisa boa na minha vida nos últimos meses"

Está bem. Incapaz de forçar a língua a articular as palavras, Briony só conseguiu assentir com a cabeça, e nessa hora sentiu uma emoção pesada de auto-aniquilamento se espalhar por toda a sua pele e depois se expandir, como um balão, a latejar, escurecendo o quarto. Tinha vontade de ir embora, de se deitar de bruços e ficar sozinha, na cama, saboreando o azedume atroz naquele momento e ir retrocedendo na cadeia bifurcante de causalidade até chegar ao ponto em que a destruição começou. Precisava imaginar de olhos fechados toda a riqueza do que havia perdido, do que havia entregado de mão beijada, e antever a nova situação. Não apenas Leon, mas também o que seria daquele vestido antigo, de cetim cor de pêssego e creme, que sua mãe estava preparando para ela, para o casamento de Arabella? O vestido agora iria para Lola. Como poderia sua mãe rejeitar a filha que a amava havia tantos anos? Vendo o vestido adaptar-se perfeitamente às formas de sua prima, testemunhando o sorriso desalmado de sua mãe, Briony deu-se conta de que nesse caso, como a única coisa a fazer seria fugir, ia viver debaixo das sebes, comendo frutas silvestres e sem falar com ninguém, e ser encontrada por um mateiro barbudo numa madrugada de inverno, toda encolhida ao pé de um carvalho gigantesco, linda e morta, e descalça, ou talvez de sapatilhas, aquelas com as fitas rosa...

Autocomiseração exigia atenção concentrada, e só na solidão ela poderia evocar de modo vivido os detalhes torturantes, mas, no instante em que concordou — como um movimento de cabeça podia mudar toda a vida! —, Lola pegou no chão o manuscrito de Briony, enquanto os gêmeos se levantavam e seguiam a irmã até o espaço central do cômodo, que Briony havia preparado na véspera. Ousaria ela ir embora agora? Lola andava de um lado para o outro, com uma das mãos na testa, enquanto folheava as primeiras páginas da peça, murmurando o texto do prólogo. Disse então que não se perderia nada começando no início, e pôs-se a investir seus irmãos nos papéis dos pais de Arabella, explicando-lhes a cena inicial, como se já soubesse tudo. A usurpação de Lola era implacável e tornava irrelevante a autocomiseração. Ou a situação estaria ainda mais arrasadoramente deliciosa? Pois não restara para Briony nem mesmo o papel da mãe de Arabella, e aquele certamente era o momento de ir embora dali e mergulhar de bruços na escuridão da cama. Porém foi o jeito despachado de Lola, seu desinteresse por qualquer coisa que não fosse sua própria atividade, juntamente com a certeza de Briony de que seus sentimentos não seriam nem sequer percebidos, muito menos gerariam qualquer sentimento de culpa, que lhe deu forças para resistir.

Em toda a sua vida, quase sempre agradável e protegida, Briony nunca havia de fato enfrentado alguém. Agora ela entendia: era como mergulhar na piscina ainda no fim da primavera; era necessário obrigar-se a fazer o que tinha de ser feito. Enquanto desentalava-se da cadeirinha alta e caminhava em direção à prima, seu coração batia com força, inconveniente, e sua respiração estava ofegante.

Tirou o texto das mãos de Lola e disse, com uma voz apertada, mais aguda do que de costume: "Se você vai ser a Arabella, então eu vou ser a diretora, muito obrigada, e eu leio o prólogo".

Lola levou à boca a mão sardenta. "Desculpe!", gemeu. "Eu estava só tentando começar logo o ensaio."

Briony não sabia como reagir, por isso virou-se para Pierrot e arriscou: "Você não parece nem um pouco a mãe da Arabella".

Aquela contra-ordem que anulava a decisão de Lola, tal como o riso dos meninos por ela provocada, modificou o equilíbrio de poder. Lola deu de ombros com certo exagero e foi até a janela, onde ficou olhando para fora. Talvez ela também estivesse sentindo-se tentada a ir embora dali correndo.

Embora os gêmeos dessem início a uma sessão de luta livre, e sua irmã suspeitasse de que estava ficando com dor de cabeça, assim mesmo o ensaio começou. Foi num silêncio tenso que Briony começou a ler o prólogo.

Esta é a história de Arabella, a espontânea, que fugiu com um nativo de terra estranha. Seus pais muito sofreram ao constatar Que ela havia escafedido-se do lar Sem permissão...

Ao lado da esposa, junto ao portão de ferro de sua propriedade, o pai de Arabella primeiro insistia com a filha para que ela pensasse bem, implorando, e em seguida, desesperado, ordenava-lhe que ficasse. A sua frente, a heroína, triste mas obstinada; o conde ao lado dela; enquanto isso, os cavalos do casal, amarrados a um carvalho ali perto, relinchavam e escavavam o chão com as patas, impacientes. Os sentimentos mais ternos do pai faziam sua voz tremer quando ele dizia:

Filha querida, és jovem e formosa, Porém inexperiente, e, embora penses Que o mundo está a teus pés, Ele pode se levantar e te pisotear.

Briony posicionou seus atores; ela própria segurou o braço de Jackson; Lola e Pierrot estavam a alguns metros deles, de mãos dadas. Quando os olhares dos meninos se encontraram, eles tiveram um acesso de riso, e as meninas os mandaram se calar. Muita coisa já tinha dado errado, mas Briony só começou a se dar conta do abismo que se interpõe entre a idéia e sua concretização quando Jackson começou a ler suas falas num tom de voz apático e monótono, como se cada palavra fosse um nome numa lista de pessoas falecidas, e não conseguiu pronunciar inexperiente" mesmo depois que a palavra lhe foi repetida varias vezes, e omitiu as últimas palavras de sua fala, terminando com "ele pode se levantar". Lola, por sua vez, leu suas falas de modo correto, porém displicente, e às vezes sorria na hora errada, de algum pensamento interior, decidida a demonstrar que sua cabeça quase adulta estava em outro lugar.

E assim prosseguiram, os primos do Norte, por meia hora, destruindo aos poucos a criação de Briony, de modo que foi um alívio quando sua irmã mais velha veio chamar os gêmeos para o banho.

 

Em parte por ser ela jovem e por estar fazendo um dia glorioso, em parte porque a necessidade de fumar um cigarro florescia dentro dela, Cecilia Tallis meio que corria com suas flores pelo caminho que margeava o rio e também a velha piscina, com sua parede de tijolo coberta de musgo, antes de fazer uma curva e perder-se em meio ao bosque de carvalhos. A inatividade acumulada das semanas de verão que se estendiam após as provas finais também a apressava; desde que chegara em casa sua vida permanecia imobilizada, e um dia bonito como aquele a deixava impaciente, quase desesperada.

A sombra densa e fresca do bosque era um alívio; os troncos das árvores, esculpidos em formas intrincadas, eram encantadores. Tendo passado pelo portão de ferro e pelos rododendros no fosso, atravessou o parque aberto — vendido para um fazendeiro vizinho que o utilizava como pasto para vacas — e chegou atrás da fonte, emoldurada por um muro e uma reprodução, em escala reduzida, do Tritão de Bernini instalado na Piazza Barberini em Roma.

A figura musculosa, comodamente acocorada em sua concha, emitia através do búzio um jato d'água que não subia mais do que três centímetros, de tão fraca que era a pressão, e a água caía de volta em sua cabeça, descendo pelo cabelo cacheado de pedra e escorrendo pela espinha poderosa, deixando uma mancha brilhante de um verde-escuro. Estava muito longe de sua terra, naquele clima setentrional tão estranho, mas era belo à luz matinal, como eram belos os quatro golfinhos que sustentavam a concha de bordas onduladas na qual se instalava o tritão. Cecília contemplou as escamas improváveis dos golfinhos e das coxas do tritão, depois voltou a vista para a casa. A maneira mais rápida de se chegar à sala de estar era atravessar o gramado e o terraço e entrar pelas portas envidraçadas. Mas seu amigo de infância e colega de faculdade Robbie Turner estava lá, ajoelhado, arrancando ervas daninhas junto a uma sebe, e ela não queria conversar com ele. Pelo menos não naquele momento. Desde que ele chegara, a jardinagem era sua penúltima mania. A última era a idéia de fazer medicina, o que, após a obtenção de um diploma em literatura, parecia um tanto pretensioso. E presunçoso também, já que era o pai dela que teria de pagar.

Cecília refrescou as flores mergulhando-as na bacia da fonte, que era do tamanho da original, profunda e gelada, e evitou Robbie contornando a casa para chegar a ela pela frente — era uma desculpa, pensou, para ficar ao ar livre por mais alguns minutos. O sol da manhã, como qualquer outra iluminação, não conseguia disfarçar a feiúra da casa dos Tallis — mal completara quarenta anos de existência, tijolos de um laranja vivo, uma estrutura atarracada, janelas com caixilhos de chumbo, estilo gótico baronial; um dia seria condenada num artigo de Pevsner, ou de um membro de sua equipe, como uma tragédia de oportunidades dispensadas, e seria qualificada por um autor mais jovem da escola moderna como "totalmente desprovida de charme". Antes havia ali uma casa do século XVIII, que fora destruída por um incêndio no final da década de 1880. O que restava era o lago artificial com sua ilha e duas pontes de pedra por onde passava o caminho da garagem, além de um templo de estuque, em ruínas, à margem do lago. O avô de Cecilia, que fora criado num sobrado de uma loja de ferragens e fizera a fortuna da família patenteando diversos cadeados, fechaduras, trincos e ferrolhos, impusera à nova casa seu gosto por tudo que é sólido, seguro e funcional. No entanto, quem voltasse as costas para a entrada da frente e olhasse para o caminho, ignorando as vacas que já se reuniam à sombra das árvores, gozaria de uma bela vista, que dava a impressão de uma paz atemporal e imutável, a qual fortalecia em Cecilia a convicção de que ela precisava ir embora dali logo.

Entrou em casa, atravessou depressa o piso de ladrilhos pretos e brancos do hall — como era familiar o eco de seus próprios passos, como era irritante! — e fez uma pausa para recuperar o fôlego à entrada da sala de estar. Pingando gotas frescas em seus pés calçados em sandálias, o desengonçado buquê de carurus-amargosos e íris melhorou seu humor. O vaso que procurava encontrava-se numa mesa de cerejeira americana junto às portas envidraçadas, que estavam ligeiramente entreabertas. Elas eram voltadas para o sudeste e permitiam que paralelogramos de sol matinal avançassem pelo carpete azul-claro. A respiração de Cecilia estava mais lenta, e seu desejo de fumar, mais forte, mas assim mesmo ela se deteve à porta, absorta por um momento na contemplação da cena perfeita — os três sofás desbotados em torno da lareira gótica quase nova, enfeitada com carriços, ao lado do cravo desafinado e abandonado, com as estantes de jacarandá igualmente abandonadas, junto às pesadas cortinas de veludo, tenuemente presas por uma corda laranja e azul que terminava em bolas, emoldurando uma visão parcial do céu sem nuvens e do terraço amarelo e cinzento onde brotava camomila e monsenhor-amarelo nas rachaduras do cimento. Uma pequena escada levava ao gramado onde Robbie continuava trabalhando, e que se estendia até a fonte do tritão, a cinqüenta metros dali.

Tudo isso — o rio e as flores, a corrida, pois raramente ela corria agora, a textura dos troncos de carvalho, o pé-direito alto da sala, a geometria da luz, o latejar em seus ouvidos morrendo pouco a pouco no silêncio —, tudo isso lhe dava prazer, à medida que o familiar ia se transformando numa deliciosa estranheza. Porém Cecília sentia-se também culpada pelo tédio que a casa lhe inspirava. Tinha voltado de Cambridge com a vaga consciência de que sua família merecia sua presença por um longo período ininterrupto. Mas seu pai permanecia na cidade, e sua mãe, quando não estava curtindo uma enxaqueca, parecia distante, até antipática. Cecília levava bandejas de chá ao quarto da mãe — tão espetacularmente bagunçado quanto o seu — na esperança de entabular alguma conversa mais íntima. Porém Emily Tallis só queria lhe contar pequenos aborrecimentos domésticos, ou então ficava largada sobre o travesseiro, com uma expressão no rosto que a penumbra tornava inescrutável, esvaziando sua xícara num silêncio lânguido. Briony estava totalmente entregue às suas fantasias literárias — o que antes parecia ser uma mania passageira se transformara numa obsessão absorvente. Cecília os vira na escada naquela manhã, sua irmã menor levando os primos, coitados, que tinham chegado na véspera, ao quarto das crianças para ensaiar a peça que Briony queria representar naquela noite, quando Leon e seu amigo eram esperados. Tinham chegado havia muito pouco tempo, e um dos gêmeos já tinha sido posto de castigo por Betty por ter aprontado alguma coisa na cozinha.

Cecília não tinha vontade de ajudar — estava muito quente, e, fizesse ela o que fizesse, o projeto haveria de terminar em catástrofe, pois as pretensões de Briony eram excessivas, e ninguém, muito menos os primos, estava à altura de sua visão frenética.

Cecilia sabia que não podia continuar desperdiçando os dias no caos de seu quarto, deitada na cama, numa nuvem de fumaça, queixo apoiado na mão, sentindo o braço formigar enquanto avançava na leitura de Clarissa, de Richardson. Havia começado, sem muito empenho, a esboçar uma árvore genea-lógica; mas do lado paterno, antes de seu bisavô abrir sua humilde loja de ferragens, os ancestrais perdiam-se num pântano indevassável de trabalhadores rurais, com mudanças de sobrenome suspeitas e confusas, e casamentos informais jamais registrados nas paróquias rurais. Ela não podia continuar ali; sabia que tinha de elaborar planos, mas não fazia nada. Havia várias possibilidades, nenhuma delas premente. Cecilia tinha um pouco de dinheiro no banco, o bastante para lhe garantir uma vida modesta por um ano, mais ou menos. Leon vivia insistindo para que ela passasse um tempo com ele em Londres. Os colegas de faculdade se ofereciam para lhe arranjar um emprego — sem dúvida seria um emprego besta, mas lhe daria independência. Tinha tios e tias interessantes por parte de mãe que sempre gostavam de recebê-la, inclusive a doida da Her-mione, mãe de Lola e dos gêmeos, que no momento estava em Paris com um amante que trabalhava no rádio.

Ninguém retinha Cecilia, ninguém se incomodaria muito se ela fosse embora. Não era o torpor que a mantinha ali — por vezes sentia-se tão indócil que chegava a ficar irritada. Ela simplesmente gostava de sentir que a impediam de partir, de que tinham necessidade dela. De vez em quando se convencia de que estava ali por causa de Briony, ou para ajudar a mãe, ou porque aquela era de fato sua última estada mais prolongada na casa dos pais e por isso valia a pena ficar até o fim. Na verdade, a ideia de fazer as malas e partir no trem da manhã seguinte não a animava. Partir só por partir. Ficar ali, entediada e acomodada, era uma forma de autopunição mesclada com prazer, ou com a expectativa de prazer; se ela fosse embora, alguma coisa ruim poderia acontecer, ou, pior ainda, uma coisa boa, algo que ela não podia perder. E ainda por cima Robbie, que a irritava com sua afetação de distância e seus planos mirabolantes que só discutia com o pai dela. Eles se conheciam desde os sete anos de idade, ela e Robbie, e era incômodo constatar que os dois ficavam constrangidos quando conversavam. Embora achasse que a culpa era mais dele — será que o diploma de primeira classe lhe subira à cabeça? —, sabia que aquele era um assunto que seria necessário pôr em pratos limpos antes de pensar em partir.

Pelas janelas abertas vinha o cheiro suave e áspero de estérco de vaca que só desaparecia nos dias mais frios e era apenas percebido por quem havia passado algum tempo fora. Robbie havia largado a colher de jardineiro e se levantado para enrolar um cigarro, um remanescente de sua passagem pelo Partido Comunista — mais uma mania que deixara para trás, juntamente com a ambição de estudar antropologia e o plano de viajar de carona de Calais a Istambul. E os cigarros dela estavam dois lances de escada acima, em um de vários bolsos possíveis.

Cecília entrou na sala e enfiou as flores no vaso. O vaso pertencera ao tio Ciem; ela se lembrava muito bem do dia em que ele fora enterrado, ou reenterrado, no final da guerra: a carreta chegando ao cemitério rural, o caixão envolto na bandeira do regimento, as espadas erguidas, o toque de cometa junto à sepultura e — o mais memorável de tudo para uma criança de cinco anos — seu pai chorando. Ciem era o único irmão dele. A história daquele vaso era contada numa das últimas cartas que o jovem tenente escreveu para a família. Estava atuando como oficial de ligação no setor francês, organizando, na última hora, uma evacuação de uma cidadezinha a oeste de Verdun antes que fosse bombardeada. Talvez cinqüenta mulheres, crianças e velhos tenham sido salvos. Mais tarde o prefeito e outros funcionários da cidadezinha levaram o tio Ciem até um museu semi-destruído. O vaso foi retirado de uma vitrine estraçalhada e entregue a ele em sinal de gratidão. Não havia como recusar o presente, por mais inconveniente que fosse combater com uma peça de porcelana de Meissen debaixo do braço. Um mês depois, o vaso foi guardado numa casa de fazenda, e o tenente Tallis atravessou um rio que estava em cheia, a vau, para pegá-lo depois, e tornou a atravessá-lo à meia-noite para voltar a sua unidade. Nos últimos dias da guerra, ele foi enviado em missão de patrulha, deixando o vaso com um amigo. Por etapas, o vaso acabou sendo reencaminhado para o quartel-general do regimento e foi entregue à família Tallis alguns meses depois do enterro do tio Ciem.

Realmente, não tinha sentido tentar fazer um arranjo com flores silvestres. Elas haviam encontrado uma simetria toda sua, e estava claro que se os íris ficassem para um lado e os carurus-amargosos para o outro, a coisa perderia a graça. Cecilia passou alguns minutos fazendo ajustes para conseguir um efeito caótico natural. Enquanto isso, pensava em ir ter com Robbie. Era mais prático do que subir correndo dois lances de escada. Porém sentia-se desconfortável e encalorada, e antes queria olhar-se no espelho grande, de moldura dourada, acima da lareira. Mas se ele se virasse — estava de costas para a casa, fumando —, olharia diretamente para dentro da sala. Por fim Cecilia terminou, e deu um passo para trás outra vez. Agora o amigo de seu irmão, Paul Marshall, poderia acreditar que as flores tinham sido simplesmente largadas dentro do vaso com a mesma espontaneidade com que haviam sido colhidas. Não fazia sentido, ela sabia, dispor as flores no vaso antes de colocar água — mas não tinha jeito; não conseguia resistir à tentação de mexer nelas outra vez, porque nem tudo que as pessoas faziam se dava na ordem certa, lógica, principalmente quando elas estavam sozinhas. Sua mãe queria flores no quarto de visitas, e era um prazer para Cecília fazer sua vontade. Para pegar água, precisava ir à cozinha. Mas Betty estava começando a preparar o jantar, e seu mau humor era aterrorizante. Não seria apenas o menininho, Jackson ou Pierrot, quem ficaria acuado, mas também a empregada contratada na aldeia especialmente para aquele dia. Mesmo da sala de estar, já dava para ouvir de vez em quando um grito de raiva abafado e o barulho de uma panela largada com força excessiva. Se Cecília entrasse agora na cozinha, teria de encontrar uma posição intermediária entre as vagas instruções de sua mãe e o estado de espírito despótico de Betty. Sem dúvida, era mais sensato sair de casa e ir encher o vaso na fonte.

Uma vez, quando Cecília era adolescente, um amigo de seu pai que trabalhava no Victoria and Albert Museum viera examinar o vaso e o aprovara. Porcelana de Meissen autêntica, obra do grande artista Hõroldt, que a pintara em 1726. Era quase certo que pertencera ao rei Augusto. Muito embora valesse mais do que os outros objetos que havia na casa, em sua maioria quinquilharias colecionadas pelo avô de Cecília, Jack Tallis resolvera que o vaso continuaria sendo usado, em homenagem à memória de seu irmão. Não ficaria preso numa vitrine. Se havia sobrevivido à guerra — raciocinava ele —, então conseguiria sobreviver aos Tallis. Sua mulher não se opôs. Na verdade, por mais precioso que fosse, e à parte seu valor sentimental, Emily Tallis não gostava muito do vaso. As figuras chinesas reunidas numa pose formal num jardim, em torno de uma mesa, em meio a plantas ornamentais e pássaros improváveis, lhe pareciam excessivas e opressoras. De modo geral, não achava graça em motivos chineses. Cecília não tinha nenhuma opinião formada, embora às vezes ficasse imaginando por quanto aquela peça seria arrematada na Sotheby's. O vaso era respeitado não pela maestria de Hõroldt revelada nos esmaltes multi-cor, na barra ornamentada com folhas entrelaçadas em azul e dourado, mas pelo tio Ciem, que havia salvado várias vidas, atravessado um rio à meia-noite e morrido apenas uma semana antes do armistício. As flores, especialmente por serem silvestres, eram certamente uma homenagem adequada.

Cecilia segurou o vaso fresco com as duas mãos, equilibrada sobre um dos pés, enquanto escancarava as portas envidra-çadas com o outro. Saindo ao sol, sentiu um cheiro de pedra quente que era como um abraço. Duas andorinhas faziam vôos rasantes sobre a fonte, e o canto de um pássaro perfurava o ar, vindo da penumbra pesada sob o gigantesco cedro-do-líbano. As flores balançavam-se na brisa leve, roçando-lhe o rosto enquanto ela atravessava o terraço e descia cuidadosamente os três degraus desmoronados que levavam ao caminho de cascalho. Ao ouvi-la se aproximar, Robbie virou-se de repente.

"Eu estava com a cabeça longe", ele começou a se explicar.

"Você enrola pra mim um desses seus cigarros bolchevi-ques?"

Robbie jogou fora o cigarro que estava fumando, pegou a lata de fumo, jogada sobre seu paletó no gramado, e caminhou ao lado de Cecilia até a fonte. Ficaram em silêncio por alguns instantes.

"Lindo dia", disse ela, suspirando.

Robbie a olhava com uma desconfiança bem-humorada. Havia algo entre eles, e até mesmo Cecilia teve de reconhecer que seu comentário inócuo sobre o tempo era descabido.

"O que você está achando de Clarissa?" Ele olhava para os dedos enquanto enrolava o cigarro.

"Chato."

"Não é coisa que se diga."

"Não sei por que ela não age logo de uma vez."

"Ela vai agir. E a história vai ficar melhor."

Diminuíram o passo e pararam para que Robbie pudesse fazer os arremates finais no cigarro.

Disse ela: "Sou muito mais o Fielding".

Sentiu que tinha dito uma bobagem. Robbie estava com o olhar distante, voltado para o parque, as vacas junto ao bosque de carvalho que margeava o vale do rio, o bosque que ela atravessara correndo naquela manhã. Talvez estivesse pensando que ela lhe falava em código, dando a entender que preferia coisas mais robustas e sensuais. Fora um erro, claramente, e agora, sem jeito, Cecilia não sabia como remediar a situação. Gostava dos olhos de Robbie, pensou, aquela justaposição de laranja e verde sem haver mistura, ainda mais granuloso à luz do sol. E agradava-a também ele ser tão alto. Era uma combinação interessante num homem: inteligência e tamanho. Cecilia pegou o cigarro pronto, e Robbie o acendia para ela.

"Entendo o que você quer dizer", ele observou enquanto se aproximavam da fonte. "Fielding tem mais vida, mas a psicologia dele às vezes é grosseira em comparação com a de Richardson."

Ela colocou o vaso sobre um dos degraus irregulares que levavam à bacia da fonte. A última coisa que queria agora era uma discussão acadêmica sobre literatura setecentista. Fielding não lhe parecia grosseiro, nem a psicologia de Richardson sofisticada, mas ela se recusava a se deixar envolver, a defender, definir, atacar. Estava cansada desse tipo de coisa, e Robbie era persistente nas discussões.

Em vez disso, Cecilia comentou: "O Leon chega hoje, você sabia?".

"Ouvi dizer. Fantástico."

"Ele vem com um amigo, um tal de Paul Marshall."

"O milionário do chocolate. Ah, não! E você dando flores pra ele!"

Cecilia sorriu. Estaria ele fingindo sentir ciúmes dela para ocultar o fato de que sentia mesmo? Ela já não o compreendia. Eles haviam se tornado distantes um do outro em Cambridge. Teria sido difícil agir de modo diferente. Ela mudou de assunto.

"O velho diz que você vai fazer medicina."

"Estou pensando nisso."

"Você deve adorar a vida de estudante."

Ele desviou a vista outra vez, mas agora só por um segundo ou menos, e, quando voltou a encará-la, Cecilia julgou perceber um toque de irritação. Teria ela adotado um tom condescendente? Olhou para os olhos de Robbie de novo, laivos verdes e laranja, como bolas de gude. Quando falou, foi num tom perfeitamente simpático.

"Eu sei que você nunca gostou dessa vida, Cee. Mas pra ser médico não tem outro jeito, não é?"

"Justamente o que eu estou dizendo. Mais seis anos. Por quê?"

Ele não estava ofendido. Era ela que estava fazendo interpretações excessivas, que estava insegura na presença dele, e essa constatação a fez se irritar com seu próprio comportamento.

Ele estava levando a pergunta a sério. "Ninguém vai me empregar como paisagista. Não quero dar aula nem virar funcionário público. E a medicina me interessa..." Interrompeu-se, como se uma idéia lhe tivesse ocorrido. "Olhe, eu falei com o seu pai que depois eu pago o que ele gastar. Foi o que ficou combinado."

Não foi nada disso que eu quis dizer."

Cecília surpreendeu-se por ele estar levantando a questão financeira. Isso era falta de generosidade da parte de Robbie. O pai dela custeara os estudos dele a vida toda. Alguém algum dia reclamara? Ela achava que estava imaginando coisas, mas na verdade tinha razão — havia mesmo algo de desagradável na conduta de Robbie nos últimos dias. Sempre que podia, ele dava um jeito de desconcertá-la. Dois dias antes havia tocado a campainha da frente — o que por si só já era estranho, pois sempre entrara como se a casa fosse sua. Quando Cecília foi chamada e desceu, ele estava em pé do lado de fora pedindo um livro emprestado, falando alto e num tom impessoal. No momento, Polly estava de gatinhas, lavando os ladrilhos do hall. Robbie fez questão de tirar as botas, que não estavam de modo algum sujas, e depois, como se pensando melhor, tirou as meias também, e atravessou o soalho molhado na ponta dos pés, num exagero cômico. Tudo o que fazia tinha a intenção de distanciar-se dela. Estava representando o papel do filho da faxineira que vinha à casa grande a mando da mãe. Entraram juntos na biblioteca, e, quando ele encontrou o volume que queria, ela o convidou a ficar para tomar café. Era fingimento, aquela recusa constrangida — Robbie era uma das pessoas mais cheias de confiança que ela conhecia. Cecília sabia que ele estava zombando dela. Sentindo-se rejeitada, saiu da sala e subiu para seu quarto; deitada na cama com Clarissa nas mãos, lia sem entender uma só palavra, sentindo que sua irritação e sua confusão estavam cada vez maiores. Robbie estava zombando dela, ou então castigando-a — ela não sabia o que era pior. Cas-tigando-a por ela ter um círculo de amizades diferentes em Cambridge, por não ser filha de faxineira; zombando dela por não ter um diploma de primeira classe — aliás, a universidade não concedia tais diplomas a mulheres.

Desajeitadamente, pois ainda estava com o cigarro, pegou o vaso e equilibrou-o na beira da fonte. Faria mais sentido tirar as flores primeiro, mas ela estava irritada demais para isso. Suas mãos estavam quentes e secas, o que a obrigava a segurar o vaso de porcelana com mais força. Robbie estava calado, mas ela percebia, com base em sua expressão — um sorriso forçado, esticado, sem separar os lábios —, que ele estava arrependido do que tinha dito. Mas isso não lhe servia de conforto. Era o que acontecia quando conversavam agora; ou um ou o outro sempre dizia o que não devia, e depois tentava retirar o comentário já feito. Não havia espontaneidade nem estabilidade naquelas conversas, nenhuma possibilidade de relaxar. Tudo eram farpas, armadilhas e desvios desconfortáveis que tinham o efeito de fazer Cecília ficar com quase tanta raiva de si própria quanto de Robbie, embora não tivesse dúvida de que era ele o principal culpado. Ela não havia mudado, mas estava claro que ele, sim, mudara. Estava se distanciando da família que se abrira completamente para ele e lhe dera tudo. Fora só por esse motivo — porque já esperava que ele dissesse não e já antevira seu próprio aborrecimento com essa recusa — que não o havia convidado para jantar naquela noite. Se ele queria distância, então que agüentasse.

Dos quatro golfinhos cujas caudas sustentavam a concha sobre a qual se equilibrava o tritão, o mais próximo a Cecília estava com a boca escancarada cheia de musgos e algas. Os olhos de pedra esféricos, grandes como maçãs, eram de um verde iridescente. Toda a estátua havia adquirido, no lado voltado para o norte, uma patina de um azul esverdeado, de modo que, visto de certos ângulos, na penumbra, o musculoso tritão parecia de fato estar cem léguas abaixo da superfície do mar. Certamente a intenção de Bernini era de que a água escorresse das bordas irregulares da concha larga, gotejando sonora sobre a bacia. Mas a pressão era muito pequena, e a água escorria silenciosamente pela face inferior da concha, onde um limo oportunista pendia dos pontos de que a água pingava, como estalactites numa caverna de calcário. A bacia tinha mais de um metro de profundidade e era límpida. O fundo era de uma pedra clara e cremosa, e sobre ela retângulos ondulantes de sol refratado, com bordas brancas, se dividiam e superpunham.

A intenção de Cecilia era debruçar-se sobre o parapeito e segurar as flores dentro do vaso enquanto o afundava na água, mas foi nesse momento que Robbie, tentando remediar a situação, resolveu ajudá-la.

"Deixe que eu seguro", disse ele, estendendo a mão. "Eu encho pra você, e você segura as flores."

"Não precisa, obrigada." Ela já estava segurando o vaso acima da bacia.

Mas Robbie insistiu: "Olhe, eu já peguei". E de fato estava segurando o vaso com força, entre o indicador e o polegar. "O seu cigarro vai se molhar. Pegue as flores."

Tentou dar um tom de urgência e autoridade masculina a essa ordem. O efeito que teve sobre Cecilia foi fazê-la segurar com mais força ainda. Ela não tinha tempo, e certamente não tinha vontade, de explicar que, mergulhando o vaso com as flores na água, seria acentuado o efeito natural que ela desejava no arranjo. Agarrou o vaso com força e afastou-se dele, curvando-se para trás. Não era tão fácil livrar-se de Robbie. Com um ruído que lembrava um galho seco se partindo, uma parte da borda do vaso soltou-se na mão dele e quebrou-se em dois pedaços triangulares, que caíram na água e desceram para o fundo num movimento oscilante sincronizado, e lá ficaram, afastados um do outro por alguns centímetros, tremulando à luz fragmentada.

Cecilia e Robbie imobilizaram-se em pleno combate. Seus olhares encontraram-se, e o que ela viu na mistura raivosa de verde e laranja não era susto nem culpa, e sim uma forma de desafio, até mesmo de triunfo. Teve presença de espírito suficiente para recolocar no degrau o vaso quebrado antes de enfrentar a gravidade do acidente. Era irresistível, ela sabia, até mesmo delicioso, pois, quanto mais grave fosse, pior seria para Robbie. Seu tio morto, irmão querido de seu pai, a guerra desastrosa, a travessia do rio traiçoeiro, o valor incomensurável que ia além do dinheiro, o heroísmo e a bondade, todos os anos de história acumulados naquele vaso, até chegar ao gênio de Hõroldt, e, antes dele, à mestria dos alquimistas que haviam reinventado a porcelana.

"Seu idiota! Olha o que você fez."

Robbie olhou para dentro da água, depois para ela, e limitou-se a balançar a cabeça enquanto levava a mão à boca, cobrindo-a. Com esse gesto ele assumia a total responsabilidade, mas naquele momento Cecilia odiou-o por aquela reação inadequada. Ele olhou para a bacia e suspirou. Por um momento Robbie pensou que ela fosse dar um passo para trás e esbarrar no vaso, e por isso levantou a mão, apontando, embora não dissesse nada. Em vez disso, começou a desabotoar a camisa. Imediatamente, ela percebeu o que ele pretendia fazer. Intolerável. Ele viera até a casa e tirara os sapatos e as meias — pois bem, ela iria lhe dar uma lição. Descalçou as sandálias, desabotoou a blusa e tirou-a, abriu a saia e despiu-a, e foi até a beira da fonte. Ele ficou parado, com as mãos nos quadris, olhando, enquanto ela entrava na água só com a roupa de baixo. Recusar a ajuda dele, recusar qualquer possibilidade de reparação, era o castigo dele. A água inesperadamente gelada, que a fez conter um grito, era o castigo dele. Cecilia prendeu a respiração e mergulhou; seu cabelo abriu-se em leque na superfície. Se ela se afogasse, seria o castigo dele.

Quando Cecilia voltou à tona alguns segundos depois com um pedaço de porcelana em cada mão, ele nem tentou se oferecer para ajudá-la a sair. A frágil ninfa branca, da qual a água escorria numa cascata bem mais vistosa do que a que descia do robusto tritão, cuidadosamente pôs os cacos ao lado do vaso. Vestiu-se depressa, enfiando com dificuldade os braços molhados nas mangas de seda e metendo a blusa desabotoada dentro da saia. Recolheu as sandálias e colocou-as debaixo do braço, guardou os cacos no bolso da saia e pegou o vaso. Seus movimentos eram ferozes e seu olhar evitava o dele. Ele não existia, tinha sido banido, e isso também era o castigo. Robbie permaneceu parado e mudo enquanto ela se afastava, caminhando descalça pelo gramado, e ficou vendo o cabelo escurecido de Cecília caindo pesado sobre seus ombros, encharcando a blusa. Então se virou e olhou para dentro d'água para ver se havia algum pedaço que ela não tinha pegado. Era difícil ver, porque a superfície perturbada ainda não recuperara sua placidez, e a turbulência era mantida pelos vestígios da raiva que ela deixara para trás. Ele encostou a mão espalmada na superfície, como que para tranqüilizá-la. Ela, nesse ínterim, já havia entrado na casa.

 

De acordo com o cartaz no hall, a estréia de Arabella em apuros seria apenas um dia após o primeiro ensaio. Porém não era fácil para a autora-diretora achar hora para concentrar-se em seu trabalho. Tal como na tarde anterior, o problema era reunir o elenco. Durante a noite, Jackson, o severo pai de Arabella, havia urinado na cama, como é comum acontecer com meninos pequenos em crise quando dormem fora de casa, e foi obrigado, segundo a praxe da época, a levar seus lençóis e seu pijama até a lavanderia e lavá-los ele próprio, à mão, sob a supervisão de Betty, que fora instruída a ser distante e firme. Tudo isso fora apresentado ao menino não como uma punição, e sim como uma maneira de mostrar a seu inconsciente que qualquer deslize no futuro implicaria inconveniências e trabalho pesado; mas Jackson certamente julgava estar sendo castigado, ali diante do grande tanque de pedra que chegava até a altura de seu peito, a espuma cobrindo seus braços nus e molhando as mangas arregaçadas, os lençóis encharcados pesados como um cachorro morto, e a sensação geral de calamidade a embotar sua vontade. Briony ia de vez em quando ver como ele estava se saindo. Estava proibida de ajudá-lo, e Jackson, naturalmente, jamais lavara coisa alguma em sua vida; as duas lavagens, os incontáveis enxágües, a luta corporal com a massa de pano molhado, bem como os quinze minutos trêmulos que ele passara depois sentado à mesa da cozinha comendo pão com manteiga e tomando um copo d'água, consumiram duas horas do tempo de ensaio.

Betty disse a Hardman, quando ele entrou, após uma manhã trabalhando sob o sol, para tomar uma cerveja, que já não bastava ela ter de preparar um jantar especial com carne assada naquele calorão, e que na sua opinião aquele castigo era excessivamente severo; melhor seria dar umas boas palmadas no traseiro do menino e depois ela própria lavar os lençóis. Essa solução também teria agradado a Briony, pois a manhã estava quase perdida. Quando sua mãe desceu para ver se a tarefa fora cumprida, era inevitável que uma sensação de libertação se apossasse de todos os participantes, e que a sra. Tallis fosse tomada por um certo grau de culpa não reconhecida, de modo que, quando Jackson perguntou, com uma vozinha tímida, se podia tomar banho de piscina e se seu irmão podia ir também, seu desejo foi imediatamente atendido, e as objeções de Briony generosamente postas de lado, como se fosse ela a pessoa que estava impondo tarefas desagradáveis a uma pobre criança. Assim, foram para a piscina, e depois estava na hora do almoço.

O ensaio havia continuado sem Jackson, mas era um problema não poder elaborar até a perfeição a importante primeira cena — a despedida de Arabella —, e Pierrot estava tão preocupado com o destino de seu irmão nas profundezas da casa que não foi muito convincente no papel de um malévolo conde estrangeiro; o que quer que acontecesse com Jackson haveria de ser o seu futuro também. A toda hora ele ia ao banheiro no final do corredor.

Quando Briony voltou de uma de suas visitas à lavanderia, o menino perguntou-lhe: "Ele já levou a surra?".

"Ainda não."

Como seu irmão, Pierrot tinha o dom de esvaziar totalmente o sentido de suas falas. Transformava as palavras em listas de chamada: "Pensas-que-és-capaz-de-escapar-de-minhas-garras?". Tudo no lugar, tudo correto.

"É uma pergunta", interveio Briony. "Você não entende? Tem que subir no final."

"Subir no final?"

"Isso. Você acabou de fazer. Você começa embaixo e termina em cima. É uma pergunta."

Pierrot engoliu fundo, prendeu a respiração e fez uma outra tentativa, e dessa vez saiu uma lista de chamada que ia subindo numa escala cromática.

"No final. Só sobe no final!"

Dessa vez saiu uma lista de chamada num tom só, como antes, com uma súbita quebra de registro, um grito agudo, na sílaba final.

Lola fora ao quarto das crianças naquela manhã vestida como a adulta que no fundo acreditava ser. Trajava uma calça de flanela franzida, boca-de-sino, larga à altura das cadeiras, e uma suéter de cashmere de manga curta. Entre outros sinais de maturidade havia uma gargantilha de veludo cravejada de pérolas minúsculas, um prendedor de esmeralda fixando as melenas cor de gengibre atrás da nuca, três pulseiras de prata trouxas em torno do pulso sardento e mais o fato de que, aonde quer que ela fosse, o ar a sua volta tinha gosto de água-de-rosas. Sua condescendência, por estar totalmente contida, tornava-se mais potente do que nunca. Ela reagia com frieza às sugestões de Briony, dizia suas falas, que parecia ter decorado da noite para o dia, com uma expressividade suficiente, e incentivava com jeito o irmãozinho, sem interferir de modo algum com a autoridade da diretora. Era como se Cecilia, ou mesmo a mãe delas, tivesse resolvido passar algumas horas com as crianças assumindo um papel na peça e estivesse decidida a não trair o menor sinal de tédio. O que faltava era toda e qualquer demonstração de entusiasmo infantil escancarado. Quando, na véspera, Briony mostrou aos primos a bilheteria e a caixa do dinheiro, os gêmeos brigaram pelos melhores postos antes do início do espetáculo, mas Lola, de braços cruzados, fez elogios decorosos e adultos com um meio-sorriso nos lábios opacos demais para deixar entrever qualquer ironia.

"Que maravilha. Você é mesmo muito sabida, Briony, para pensar nisso. Você jura que fez tudo sozinha?"

Briony suspeitava que por trás dos modos perfeitos de sua prima houvesse uma intenção destrutiva. Talvez Lola estivesse certa de que os gêmeos estragariam a peça na mais completa inocência, e que ela não precisava fazer nada, só assistir.

Essas suspeitas impossíveis de confirmar, a detenção de Jackson na lavanderia, o péssimo desempenho de Pierrot e o calor colossal daquela manhã oprimiam Briony. Além disso, ela ficou incomodada quando percebeu que, da porta, Danny Hardman estava assistindo à cena. Teve de pedir-lhe que saísse dali. Não conseguia penetrar no distanciamento de Lola, nem arrancar de Pierrot as inflexões da fala cotidiana. Foi um alívio, pois, ver-se de repente sozinha no quarto. Lola dissera que precisava repensar seu cabelo, e o irmão dela saíra pelo corredor afora, rumo ao banheiro, ou a algum lugar mais distante.

Briony sentou no chão, encostou-se num dos armários embutidos de brinquedos e se abanou com as páginas de seu texto. O silêncio na casa era completo — não havia vozes nem passos no andar de baixo, nenhum murmúrio vindo do encanamento; no espaço entre as vidraças de uma das janelas de guilhotina abertas, uma mosca aprisionada desistira de lutar, e lá fora o som líquido do canto do pássaro tinha evaporado no calor. Briony esticou as pernas à sua frente e deixou que as dobras de seu vestido de musselina branca e a imagem simpática da pele frouxa de seus joelhos enchessem seu campo de visão. Ela devia ter mudado o vestido daquela manhã. Pensou que devia cuidar mais de sua aparência, como Lola. Não ligar para a aparência era coisa de criança. Mas isso exigia muito esforço. O silêncio sibilava em seus ouvidos, e sua visão estava ligeiramente distorcida — as mãos em seu colo pareciam grandes demais e ao mesmo tempo longínquas, como se ela as estivesse vendo de uma distância imensa. Levantou uma das mãos, flexionou os dedos e ficou a se perguntar, como já fizera algumas vezes antes, de que modo aquela coisa, aquela máquina de segurar, aquela aranha de carne na extremidade de seu braço, podia ser algo seu, totalmente controlada por ela. Ou teria a mão uma vidinha própria? Dobrou o dedo e esticou-o. O mistério estava no instante antes de ele se mexer, quando sua intenção surtia efeito. Era como uma onda a se quebrar. Se ela conseguisse surpreender-se na crista da onda, pensou, talvez descobrisse o segredo de si própria, daquela parte dela que realmente mandava. Aproximou o indicador do rosto e olhou fixamente para ele, ordenando que se mexesse. O dedo permaneceu imóvel porque ela estava fingindo, ela não estava de todo falando sério, e porque mandar o dedo se mexer, ou estar prestes a mexê-lo, não era a mesma coisa que mexê-lo de verdade. E quando por fim ela dobrou o dedo, a ação parecia ter início no próprio dedo e não em alguma parte de sua mente. Quando era que ele resolvia se mexer, quando era que ela resolvia mexê-lo? Não havia como pegar a si própria em flagrante. Era ou isso, ou aquilo. Não havia uma dobra, uma costura, e no entanto ela sabia que por trás da textura lisa e contínua havia um eu verdadeiro — seria a alma? — que tomava a decisão de parar de fingir e dar a ordem final.

Esses pensamentos lhe eram tão familiares e tão confortadores quanto a configuração exata de seus joelhos, sua aparência igual porém contrastante, simétrica e reversível. Um segundo pensamento sempre vinha após o primeiro, um mistério gerava outro: seriam todas as demais pessoas realmente tão vivas quanto ela? Por exemplo, seria sua irmã realmente importante para si própria, tão valiosa para ela mesma quanto Briony era? Ser Cecília seria uma coisa tão intensa quanto ser Briony? Sua irmã também teria um eu verdadeiro por trás da onda que se quebrava, e passaria tempo pensando nisso, com o dedo quase encostado na cara? E as outras pessoas, inclusive seu pai, e Betty, e Hardman? Se a resposta fosse sim, então o mundo, o mundo social, era insuportavelmente complicado, dois bilhões de vozes, os pensamentos de todo mundo a se debater, todos com igual importância, investindo tanto na vida quanto os outros, cada um se achando o único, quando ninguém era único. Era possível afogar-se naquele mar de irrelevância. Mas se a resposta fosse não, então Briony estava cercada de máquinas, inteligentes e agradáveis vistas de fora, mas sem aquele sentimento vivo oculto, interior, que Briony tinha. Era uma idéia sinistra e desoladora, além de improvável. Pois, por mais que seu senso de ordem se sentisse agredido, ela sabia que era muitíssimo provável que todo mundo tivesse pensamentos como os dela. Isso ela sabia, mas apenas de um modo um tanto árido; não conseguia senti-lo de verdade.

Os ensaios também agrediam seu senso de ordem. O mundo auto-suficiente que ela havia traçado com linhas claras e perfeitas fora desfigurado com os rabiscos de outras mentes, outras necessidades; e o próprio tempo, no papel tão fácil de dividir em atos e cenas, naquele exato momento estava escapulindo por entre seus dedos, de modo incontrolável. Talvez ela só conseguisse ter Jackson de volta depois do almoço. Leon e seu amigo estariam chegando à tardinha, ou até mesmo antes, e o espetáculo fora marcado para as sete horas. E ainda não tinha havido um ensaio decente, e os gêmeos não sabiam atuar, nem sequer falar, e Lola se apossara do papel que por direito cabia a Briony, e nada dava certo, e fazia calor, um calor absurdo. A menina remexeu-se, inquieta, na sua opressão; então se levantou. A poeira do rodapé sujara suas mãos e seu vestido atrás. Perdida em seus pensamentos, limpou as palmas das mãos na frente do vestido enquanto caminhava em direção à janela. A maneira mais simples de impressionar Leon teria sido escrever uma história para ele, colocá-la em suas mãos e ficar olhando para ele enquanto lia. As letras do título, a capa ilustrada, as páginas encadernadas, amarradas — essa palavra por si só continha o fascínio daquela forma clara, limitada e incontrolável que ela deixara para trás ao decidir escrever uma peça. Uma história era algo direto e simples, que não permitia que nada se intrometesse entre ela e seu leitor — nenhum intermediário incompetente e cheio de ambições próprias, nenhuma pressão de tempo, nenhuma limitação de recursos. Na história era só querer, era só escrever e ter um mundo inteiro; numa peça era necessário utilizar o que estava disponível: não havia cavalos, não havia ruas, não havia mar. Não havia cortina. Agora que era tarde demais, a idéia lhe parecia óbvia: uma história era uma forma de telepatia. Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos da sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados.

A gente via a palavra castelo e pronto, lá estava ele, visto ao longe, com bosques verdejantes a se estender a sua frente, o ar azulado e embaçado pela fumaça que subia da forja do ferreiro, e uma estrada com calçamento de pedra a serpentear à sombra das árvores...

Briony havia chegado a uma das janelas escancaradas do quarto e certamente viu o que estava diante de seus olhos por alguns segundos antes de registrar o que via. Era uma paisagem que facilmente poderia conter, ao menos a distância, um castelo medieval. A alguns quilômetros das terras dos Tallis elevava-se a serra de Surrey, com suas multidões imóveis de carvalhos de copas espessas, seu verde suavizado por uma névoa quente e leitosa. Então, mais perto, o parque aberto da propriedade, que hoje tinha uma aparência seca e selvagem, tórrido como uma savana, onde árvores isoladas projetavam sombras curtas e abruptas, e a grama alta já estava tocaiada pelo amarelo leonino do verão. Mais perto, dentro dos limites da balaustrada, ficavam os jardins de rosas e, mais perto ainda, a fonte do tritão e, ao lado do muro da bacia, estava sua irmã, e, bem à frente dela, Robbie Turner. Havia algo um tanto formal na sua posição, a alguns metros da moça, a cabeça um pouco para trás. Uma proposta de casamento. Briony não ficaria surpresa. Ela própria havia escrito uma história em que um humilde lenhador salvava uma princesa que estava se afogando e terminava se casando com ela. O que se apresentava ali fazia sentido. Robbie Turner, filho único de uma humilde faxineira, pai desconhecido, Robbie, cujos estudos haviam sido financiados pelo pai de Briony, desde a escola até a universidade, que antes queria ser paisagista e agora queria estudar medicina, tinha ambição e ousadia suficientes para pedir a mão de Cecília. Fazia muito sentido. Essas violações de fronteiras eram comuns nos romances cotidianos.

Menos compreensível, porém, foi o gesto de Robbie, que agora levantava a mão com autoridade, como se desse uma ordem a que Cecília não ousaria desobedecer. Era extraordinário ela não poder resistir a ele. Por insistência de Robbie, ela estava tirando as roupas, e muito depressa. Já havia despido a blusa, agora deixava a saia cair no chão e saía de dentro dela, enquanto ele olhava, impaciente, as mãos nos quadris. Que estranho poder ele teria sobre ela. Chantagem? Ameaças? Briony levou as duas mãos ao rosto e afastou-se um pouco da janela. Devia fechar os olhos, pensou, para não ver a vergonha de sua irmã. Mas isso seria impossível, porque mais surpresas estavam acontecendo. Cecília, felizmente ainda com a roupa de baixo, estava entrando no laguinho, a água até a cintura; estava fechando as narinas com os dedos — e então sumiu. Agora só se via Robbie, e mais as roupas jogadas sobre o cascalho, e, ao longe, o parque silencioso, a serra azul na distância.

A seqüência era ilógica — a cena de afogamento, seguida do salvamento, deveria ocorrer antes do pedido de casamento. Foi a última coisa que Briony pensou antes de aceitar que não conseguia compreender e que só lhe restava assistir. Sem que ninguém a visse, do andar de cima, à luz reveladora de um dia de sol, ela estava tendo acesso privilegiado ao comportamento adulto, a ritos e convenções sobre os quais nada sabia, ainda. Sem dúvida, aquilo era o tipo de coisa que acontecia. No momento exato em que a cabeça de sua irmã irrompeu na superfície — graças a Deus! —, Briony pela primeira vez se deu conta, de modo ainda tímido, de que para ela agora não poderia mais haver castelos nem princesas como nas histórias de fada, e sim a estranheza do aqui e agora, o que se passava entre as pessoas, as pessoas comuns que ela conhecia, e o poder que uma tinha sobre a outra, e como era fácil entender tudo errado, completamente errado. Cecília havia saído do lago e estava ajeitando a saia, e com dificuldade vestia a blusa sobre a pele encharcada. Virou-se abruptamente e pegou, na sombra profunda projetada pelo muro da fonte, um vaso de flores que Briony não havia visto antes, e veio com ele em direção à casa. Não trocou nenhuma palavra com Robbie, nem sequer olhou em sua direção. Agora ele estava olhando para dentro d'água, e também ele caminhava com passos rápidos, sem dúvida satisfeito, contornando a casa. De repente o cenário estava vazio; o trecho molhado no chão onde Cecília havia saído do lago era o único sinal de que alguma coisa havia acontecido.

Briony encostou-se numa parede e olhou para o outro lado do quarto, sem nada ver. Era uma tentação para ela mergulhar no mágico e no dramático, e encarar a cena que havia testemunhado como algo encenado só para ela, uma moral especial para ela envolta num mistério. Mas sabia muito bem que, se não tivesse se levantado na hora exata em que se levantara, a cena teria acontecido assim mesmo, pois nada tinha a ver com ela. Apenas o acaso a levara a se aproximar da janela. Aquilo não era uma história de fadas, era a realidade, o mundo adulto em que sapos não falavam com princesas e onde as únicas mensagens eram aquelas que as pessoas enviavam. Havia também a tentação de correr para o quarto de Cecília e exigir uma explicação. Briony resistiu porque queria explorar sozinha a vaga e emocionante possibilidade que havia sentido antes, a excitação evanescente diante de algo que ela estava quase definindo, ao menos no plano emocional. A definição haveria de se refinar com o passar dos anos. Ela admitiria que talvez tivesse atribuído mais deliberação do que lhe seria possível aos treze anos de idade. Na ocasião, é possível que as palavras não tivessem se colocado de modo preciso; na verdade, talvez ela tivesse sentido a vontade impaciente de voltar a escrever de novo.

Parada no quarto, aguardando a volta dos primos, Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de baquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a idéia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramóias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.

Seis décadas depois, ela mostraria como, aos treze anos de idade, havia atravessado, com seus escritos, toda uma história da literatura, começando com as histórias baseadas na tradição folclórica européia, passando pelo drama com intenção moral simples, até chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha, numa manhã específica, durante uma onda de calor em 1935. Ela teria perfeita consciência do quanto havia de automitificação nesse relato, que apresentava num tom irônico ou herói-cômico. Suas obras de ficção eram conhecidas por sua anioralidade, e, como todos os escritores a quem é sempre feita a mesma pergunta, sentiu-se obrigada a produzir uma história, um enredo de sua autoria, que contivesse um momento em que ela se tornara a pessoa que reconhecia como ela própria. Sabia que não era correto falar em suas peças no plural, que seu tom zombeteiro a distanciava da criança séria e pensa-tiva, e que o que estava evocando agora não era aquela manhã tão distante, e sim os relatos que havia feito dela posteriormente. Era possível que a contemplação de um dedo dobrado, a idéia insuportável da existência de outras mentes e a superioridade das histórias sobre as peças fossem pensamentos que lhe haviam ocorrido em dias diferentes. Sabia também que o que quer que houvesse ocorrido de verdade ganhava importância a partir de sua obra publicada, e não teria sido lembrado se não fosse ela.

Porém não conseguia trair-se por completo; não havia dúvida de que alguma forma de revelação ocorrera. Quando a menina voltou à janela e olhou para baixo, a mancha úmida sobre o cascalho já havia evaporado. Agora não restava nada da cena muda ocorrida junto à fonte senão o que sobrevivia na memória, em três lembranças separadas que se sobrepunham. A verdade se tornara tão espectral quanto a invenção. Ela podia começar naquele momento, anotando o ocorrido tal como o vira, e enfrentar o desafio recusando-se a condenar a quase nudez chocante de sua irmã, em plena luz do dia, bem perto da casa. Então a cena podia ser refeita, vista pelos olhos de Cecília, e depois pelos de Robbie. Mas agora não era a hora de começar. Seu senso de responsabilidade, bem como seu instinto de ordem, era poderoso; era necessário completar o que havia começado a fazer; um ensaio estava em andamento, Leon estava a caminho, toda a casa aguardava um espetáculo aquela noite. Era preciso descer mais uma vez até a lavanderia para ver se Jackson continuava em apuros. Ela escreveria depois, quando estivesse livre.

 

Foi só à noitinha que Cecilia deu o vaso por consertado. Ele passara toda a tarde numa mesa junto a uma janela da biblioteca voltada para o sul, pegando sol, e agora só se viam três finas linhas sinuosas, convergindo como rios num atlas, riscando a superfície vitrificada. Ninguém jamais saberia. Enquanto atravessava a biblioteca segurando o vaso com as duas mãos, ouviu o que lhe pareceu ser o som de pés descalços no corredor junto à porta da sala. Após passar muitas horas esforçando-se para não pensar em Robbie Turner, pareceu-lhe uma ofensa pessoal que ele tivesse voltado para a casa, mais uma vez tendo tirado as meias. Foi até o corredor, decidida a encarar a insolência ou o deboche de Robbie, e em vez dele deu de cara com sua irmã, visivelmente atormentada. Suas pálpebras estavam inchadas e avermelhadas, e ela apertava o lábio de baixo entre o polegar e o indicador, algo que em Briony, desde pequena, indicava que ela estava prestes a abrir o berreiro.

"Meu amor! O que foi?"

Na verdade, os olhos dela estavam secos e eles baixaram alguns milímetros para ver o vaso; depois a menina seguiu em frente, até o cavalete que sustentava o cartaz, com o título alegre, multicolorido, e uma montagem de cenas da peça à Chagall em torno das letras — os pais chorosos dando adeus à filha, a viagem enluarada rumo ao litoral, a heroína acamada, um casamento. Briony parou diante do cartaz e então, com um gesto violento, rasgou o papel pelo meio, na diagonal, e jogou no chão o pedaço arrancado. Cecília largou o vaso e veio depressa, ajoelhando-se para recolher o papel antes que sua irmã pudesse pisoteá-lo. Não seria a primeira vez que ela salvava Briony da autodestruição.

"Maninha. É por causa dos primos?"

Ela queria confortar a menina, pois sempre adorara mimar a caçula. Quando Briony era pequena e sofria de pesadelos — aqueles gritos terríveis no meio da noite —, Cecília corria para seu quarto e a acordava. Passou, sussurrava ela. Foi só um sonho. Passou. E então a carregava para sua própria cama. Teve vontade de pôr o braço sobre os ombros dela agora, mas Briony não estava mais puxando o lábio inferior; havia caminhado até a porta da frente e apoiado uma das mãos na grande maçaneta de latão em forma de cabeça de leão, que a sra. Turner havia polido naquela tarde.

"Os primos são uns bobocas. Mas não é só isso, não. E..." Ela se atrapalhou; não sabia se devia confessar a revelação que tivera pouco antes.

Cecília analisava o triângulo de papel pensando no quanto sua irmãzinha estava mudando. Teria preferido que Briony chorasse e deixasse que ela a confortasse na chaise-longue de seda da sala de estar. As carícias e os murmúrios tranqüilizadores teriam sido um alívio para Cecília após um dia frustrante, cheio de sentimentos contraditórios que ela preferia não examinar.

Dedicar-se aos problemas de Briony com palavras doces e chamegos faria com que ela se sentisse mais dona da situação. Havia porém, um toque de autonomia no sofrimento da irmã. Ela lhe dera as costas e estava escancarando a porta.

"Mas então o que é?" Cecília percebeu o tom de súplica em sua própria voz.

Lá fora, do outro lado do lago, o caminho de cascalho atravessava o parque em curva, estreitava-se e convergia, subindo, e ali um vulto diminuto, distorcido pelas ondas de calor, foi aumentando aos poucos, depois estremeceu e pareceu se afastar. Certamente era Hardman, que dizia estar velho demais para aprender a dirigir, trazendo as visitas na carruagem.

Briony mudou de idéia e virou-se para a irmã. "Foi uma péssima idéia. Não devia ter escolhido esse..." Ela prendeu a respiração e desviou a vista — sinal, percebeu Cecília, de que uma palavra aprendida no dicionário ia fazer sua primeira aparição. "Não devia ter escolhido esse gênero!" Porém atrapalhou-se com a proparoxítona e engoliu a segunda sílaba.

"Genro?" Cecilia exclamou enquanto a irmã se afastava. "Que história é essa?"

Mas Briony já caminhava, com as solas dos pés muito brancas, pelo cascalho em fogo.

Cecilia foi até a cozinha, encheu o vaso e levou-o até seu quarto, para pegar as flores no lavabo. Quando as largou dentro dele, mais uma vez as flores se recusaram a formar um padrão artisticamente desordenado, como ela queria, e, em vez disso, imersas na água, se dispuseram com uma simetria teimosa, os caules mais altos uniformemente distribuídos em torno da boca. Cecilia levantou as flores e soltou-as outra vez, e de novo elas formaram um padrão ordenado. Mas não tinha tanta importância ssim. Era pouco provável que o tal sr. Marshall reclamasse porque as flores na sua cabeceira estavam dispostas numa simetria excessiva. Cecilia levou o arranjo ao segundo andar, passando pelo corredor cheio de rangidos, até chegar ao cômodo conhecido como o quarto da tia Venus, e pôs o vaso sobre uma cômoda ao lado de uma cama de baldaquino, finalmente atendendo ao pedido que sua mãe lhe fizera naquela manhã, oito horas antes.

Porém não saiu de imediato, porque o quarto estava agra-davelmente vazio, e não amontoado de objetos pessoais — na verdade, fora o quarto de Briony, era o único na casa que não era bagunçado. E estava fresco ali, pois o sol agora batia do outro lado da casa. Todas as gavetas estavam vazias, todas as superfícies expostas estavam livres da menor impressão digital. Sob a colcha de chintz, os lençóis estariam puros e engomados. Cecilia sentiu um impulso de enfiar a mão por entre as cobertas para apalpá-las, mas em vez disso continuou avançando quarto adentro. Ao pé da cama de baldaquino, o assento do sofá Chippendale fora tão cuidadosamente alisado que sentar-se nele seria uma verdadeira profanação. O ar estava suave com o cheiro de cera, e àquela luz cor de mel as superfícies luzidias dos móveis pareciam ondular e respirar. A medida que ela ia caminhando e seu ângulo de visão se modificava, as figuras pintadas na tampa de um velho baú de enxoval começavam a dançar. A sra. Turner certamente havia passado por ali naquela manhã. Com um dar de ombros, Cecilia afastou da mente a associação com Robbie. Estar ali era uma espécie de invasão, quando o futuro ocupante do quarto se encontrava a apenas algumas centenas de metros da casa.

De onde estava, junto da janela, Cecilia viu que Briony havia atravessado a ponte e chegado à ilha, e estava caminhando pela margem coberta de grama, já quase sumindo por entre as árvores que cercavam o templo. Mais ao longe, Cecilia conseguiu divisar dois vultos de chapéu sentados no banco atrás de Hardman. Agora via uma terceira figura em que não havia reparado antes, caminhando com passos largos em direção à carruagem. Certamente seria Robbie Turner indo para casa. Ele parou, e quando as visitas se aproximaram, seu contorno pareceu fundir-se com os delas. Cecilia podia bem imaginar a cena — os socos másculos no ombro, os risos. Irritou-se por seu irmão não saber que Robbie havia caído em desgraça; virou-se da janela com uma interjeição de contrariedade e foi para seu quarto em busca de cigarros.

Ainda lhe restava um maço, e foi só depois de vários minutos de busca exasperada em meio à bagunça que ela o encontrou, no bolso de um robe de seda azul jogado no chão do banheiro. Acendeu o cigarro enquanto descia a escada em direção ao hall, cônscia de que não ousaria fazer tal coisa se seu pai estivesse em casa. Ele tinha idéias muito firmes a respeito de onde e quando uma mulher podia ser vista fumando: não na rua, nem em qualquer outro lugar público, nem ao entrar numa sala, nem em pé, e apenas quando alguém lhe oferecesse um cigarro, jamais um cigarro seu — idéias que lhe pareciam evidentes, ditadas pela natureza das coisas. Apesar dos três anos vividos entre as pessoas sofisticadas do Girton College, ela não havia criado coragem suficiente para enfrentá-lo. Os comentários levemente irônicos de que ela se valeria entre suas amigas evaporavam na presença do pai, e sua própria voz, ela percebia, ficava frágil quando arriscava alguma contradição suave. Na verdade, quando discordava de seu pai a respeito do que quer que fosse, mesmo o mais insignificante detalhe doméstico, sentia-se incomodada, e nada do que a grande literatura fizera no sentido de modificar sua sensibilidade, nenhuma das lições da critica prática, conseguia libertá-la da obediência filial. Fumar na escada enquanto seu pai estava no ministério, em Whitehall, era o máximo de revolta que sua educação permitia, e mesmo assim isso lhe custava um certo esforço.

Ao chegar ao patamar largo que dava vista para o hall, viu Leon aparecer com Paul Marshall na porta da frente. Danny Hardman vinha atrás com a bagagem. O velho Hardman estava lá fora, contemplando em silêncio a nota de cinco libras em sua mão. A luz indireta da tarde, refletida no cascalho e filtrada pela bandeira da porta, inundava o hall com os tons amarelados de uma fotografia sépia. Os homens tiraram os chapéus e ficaram esperando por ela, sorrindo. Cecília perguntou-se, como fazia às vezes quando era apresentada a um homem, se seria com aquele que ela terminaria se casando e se haveria de se lembrar daquele momento pelo resto de sua vida — com gratidão ou com um arrependimento profundo.

"Man... Cecília!", gritou Leon. Quando se abraçaram, ela sentiu contra a clavícula, através do tecido do paletó do irmão, a presença de uma caneta-tinteiro grossa, e percebeu um cheiro de fumaça de cachimbo nas dobras de suas roupas, que por um instante a fez relembrar, com nostalgia, os chás das cinco em quartos das faculdades masculinas, ocasiões um tanto formais e insossas, de modo geral, mas assim mesmo alegres, principalmente no inverno.

Paul Marshall trocou um aperto de mãos com ela e fez uma pequena mesura. Havia algo de comicamente melancólico em seu rosto. Sua primeira fala foi desinteressante e convencional.

"Já ouvi falar muito na senhorita."

"E eu no senhor." Tudo de que ela se lembrava era uma conversa telefônica com o irmão alguns meses antes, durante a qual discutiram se já haviam alguma vez comido, ou alguma vez viriam a comer, uma barra Amo.

"A Emily está deitada."

Nem era necessário dizê-lo. Quando crianças, diziam que desde o outro lado do parque sabiam se a mãe estava ou não com enxaqueca, só de ver se as janelas estavam escurecidas.

"E o velho está na cidade?"

"Talvez ele venha mais tarde."

Cecília tinha consciência de que Paul Marshall estava olhando fixamente para ela, mas antes de olhar para ele era necessário preparar algo para dizer.

"As crianças iam montar uma peça, mas tenho impressão que a coisa desandou." Disse Marshall: "Acho que foi a sua irmã que eu vi perto do lago. Ela estava dando uma boa surra nas urtigas".

Leon deu um passo para o lado para que o filho de Hard-man entrasse com as malas. "Onde é que vamos instalar o Paul?"

"No andar de cima." Cecília havia inclinado a cabeça de modo que essas palavras fossem dirigidas ao jovem Hardman. Tendo chegado ao pé da escada, ele se virara para trás e, com uma mala de couro em cada mão, olhava para os três, agrupados no meio do assoalho de piso em xadrez. Tinha no rosto uma expressão de incompreensão tranqüila. Cecília o tinha visto aproximando-se das crianças ultimamente. Talvez estivesse interessado em Lola. Estava com dezesseis anos e certamente não era mais um menino. Não havia mais em suas faces aquelas bochechas arredondadas de que ela ainda se lembrava, e o arco de seus lábios se tornara alongado, com uma crueldade inocente. Na sua testa, uma constelação de espinhas parecia nova em folha, o tom vermelho suavizado pela luminosidade sépia. Aquele dia todo, Cecilia se deu conta, ela estava se sentindo estranha e vendo tudo com estranheza, como se as coisas que a cercavam já estivessem num passado distante, tornadas mais vividas por ironias póstumas que ela não compreendia bem.

Disse, paciente, ao rapaz: "O quarto grande depois do quarto das crianças".

"O quarto da tia Venus", disse Leon.

A tia Venus fora, durante quase meio século, uma enfermeira muito atuante nos Territórios do Norte do Canadá. Não era tia de ninguém em particular; ou melhor, era tia da falecida prima em segundo grau da sra. Tallis, mas ninguém questionou, depois que ela se aposentou, seu direito de ocupar o quarto no segundo andar, onde, durante a maior parte da infância de Leon e Cecília, ela vivera acamada, uma velhinha simpática que foi definhando até morrer, sem queixas, quando Cecília tinha dez anos de idade. Uma semana depois, Briony nasceu.

Cecília conduziu os visitantes até a sala de estar, depois passaram pelas portas envidraçadas, pelas rosas, em direção à piscina, que ficava atrás do estábulo e era cercada dos quatro lados por um bambuzal alto, com uma entrada que parecia um túnel. Entraram por ali, abaixando a cabeça para passar sob os bambus mais baixos, e saíram num terraço pavimentado com uma pedra tão branca que chegava a ofuscar a vista; o calor elevava-se dela em ondas. Na sombra profunda, a uma certa distância da beira da água, havia uma mesa de metal pintada de branco com um jarro de ponche gelado sob um quadrado de gaze. Leon desdobrou as cadeiras de lona, e os três, com seus copos, se instalaram em círculo, voltados para a piscina. Situado entre Leon e Cecilia, Marshall assumiu o controle da conversa com um monólogo que durou dez minutos. Comentou como era bom estar longe da cidade, na tranqüilidade e no ar puro do campo; ele havia passado nove meses, durante cada minuto de cada dia, escravizado a um projeto, entre a sede da empresa, a sala de reuniões e a fábrica. Havia comprado uma casa grande em Clapham Common e mal tivera tempo de visitá-la. O lançamento da Rainbow Amo fora um sucesso, mas antes havia ocorrido uma série de problemas graves de distribuição que agora tinham sido resolvidos; a campanha publicitária ofendera alguns bispos idosos, e por isso foi necessário fazer outra; depois vieram os problemas gerados pelo próprio sucesso, vendas inacreditáveis, novas quotas de produção, disputas sobre o pagamento de horas extras, e a procura por um local para uma segunda fábrica, o que irritou os quatro sindicatos envolvidos, que precisaram ser tranqüilizados e apaziguados como se faz com crianças; e, agora que tudo tinha sido levado a cabo, havia um desafio ainda maior pela frente: a Army Amo, a barra caqui com o slogan "Passe a munição!"; sua concepção fundava-se na idéia de que era necessário aumentar os gastos com as forças armadas enquanto o sr. Hitler não abaixasse o facho; havia até a possibilidade de que a barra fosse incorporada à ração-padrão dos soldados; nesse caso, se houvesse um recrutamento geral, seria necessário abrir mais cinco fábricas; alguns membros da diretoria achavam que deveria haver — e acabaria havendo — uma acomodação com a Alemanha, e que a Army Armo ia dar em nada; um membro chegara a acusar Marshall de estar fomentando uma guerra; porém, por mais exausto que ele estivesse, e ainda que o caluniassem, mesmo assim não abriria mão de seu objetivo, de sua visão. Terminou repetindo que era muito bom estar ali, "bem longe de tudo", onde a gente podia, por assim dizer, tomar fôlego.

Observando-o durante os primeiros minutos de sua fala, Cecilia sentiu uma vertigem agradável no estômago ao imaginar como seria deliciosamente autodestrutivo, quase erótico, ser casada com um homem como aquele, quase bonito, de uma riqueza imensa e uma burrice infinita. Ele a encheria de filhos de cara larga, todos eles meninos barulhentos e broncos, apaixonados por armas, futebol e aviões. Ela ficou a observar seu perfiu depois que ele se virou para dirigir-se a Leon. Um múscu-alongado estremecia acima da linha de seu maxilar quando ele falava. Uns poucos fios negros espessos se destacavam de sua sobrancelha, e fios semelhantes brotavam de seus ouvidos, en-rodilhados, como pêlos púbicos, com um efeito cômico. Ele devia instruir o barbeiro.

Com um mínimo golpe de vista, seu olhar voltou-se para o rosto de Leon, porém ele estava olhando fixamente para o amigo, numa atitude respeitosa, e parecia estar decidido a não trocar olhares com ela. Quando crianças, costumavam atormentar-se um ao outro com "o olhar" nos almoços de domingo que seus pais davam para uns parentes idosos. Eram ocasiões muito especiais, merecedoras do antiqüíssimo serviço de prata; os venerandos avós e tios-avós eram vitorianos, parentes do lado da mãe, uma gente perplexa e severa, membros de uma tribo perdida, que chegavam envoltos em capas negras, após perambu-lar, emburrados, por duas décadas, num século estranho e frívo-lo. Eles metiam muito medo em Cecília, que tinha dez anos, e em seu irmão, que estava com doze, e um ataque de risos era um risco sempre presente. Quem era vítima do olhar nada podia fazer; quem o infligia tornava-se imune. Na maioria das vezes, o poder pertencia a Leon, cujo olhar era uma paródia de seriedade, e consistia em voltar para baixo os cantos da boca ao mesmo tempo que rolava os olhos. Ele pedia, por exemplo, que Cecília lhe passasse o sal, com a voz mais inocente do mundo, e, mesmo que a menina virasse o rosto e respirasse fundo, por vezes bastava saber que o irmão estava fazendo o olhar para que ela se visse condenada a noventa minutos de tortura, estremecendo toda por dentro. Enquanto isso, Leon permanecia livre, bastando-lhe reforçar o efeito do olhar de vez em quando, ao perceber que ela estava começando a se recuperar. Era raro Cecília conseguir dominá-lo com uma careta altiva. Como às vezes as crianças eram sentadas entre adultos, praticar o olhar também tinha seus perigos — quem fazia caretas à mesa caía em desgraça e ia para a cama cedo. O segredo era fazer a tentativa entre, por exemplo, o ato de lamber os beiços e um sorriso largo, no momento exato em que o outro estava olhando. Uma vez os dois se entreolharam e fizeram seus olhares simultaneamente, o que levou Leon a espirrar sopa pelas narinas sobre o punho de uma tia-avó. As duas crianças ficaram de castigo em seus respectivos quartos o resto do dia.

Cecilia sentia uma forte vontade de chamar seu irmão para o canto e lhe dizer que o sr. Marshall tinha pentelhos nos ouvidos. Ele estava relatando o confronto que tivera durante a reunião com o homem que o acusara de estar fomentando guerra. Cecilia semi-ergueu o braço como que para alisar o cabelo. Automaticamente, a atenção de Leon foi atraída pelo movimento, e naquele instante sua irmã lhe dirigiu o olhar que havia mais de dez anos ele não via. Ele apertou os lábios e desviou a vista, e encontrou um objeto de interesse perto de seu sapato. Quando Marshall virou-se para Cecilia, Leon levantou a mão em concha para ocultar o rosto, mas não conseguiu disfarçar da irmã o tremor nos ombros. Felizmente para ele, Marshall estava chegando ao desfecho da história.

"... onde a gente pode, por assim dizer, recuperar o fôlego."

Imediatamente, Leon pôs-se de pé. Andou até a beira da piscina e contemplou uma toalha vermelha encharcada largada perto do trampolim. Depois voltou para junto dos outros, com as mãos nos bolsos, perfeitamente recuperado.

Disse a Cecilia: "Adivinhe quem a gente encontrou quando estava chegando".

"O Robbie." Eu o convidei para vir jantar conosco."

"Leon! Não acredito!"

Ele estava querendo provocá-la. Talvez por vingança. Disse ao amigo: "Pois é, o filho da faxineira ganha uma bolsa na escola> depois ganha uma bolsa em Cambridge, vai estudar lá na mesma época em que a Cee — e ela praticamente não lhe dirige a palavra em três anos! Ela não admitia que ele chegasse nem perto das ex-colegas dela da Roedean School".

"Você devia ter me perguntado antes."

Ela estava mesmo aborrecida; observando o fato, Marshall disse, tentando aplacá-la: "Conheci lá em Oxford uns rapazes que vieram da escola pública, e alguns eram mesmo até muito inteligentes. Mas às vezes eram ressentidos, o que eu achava de amargar".

Perguntou ela: "O senhor tem um cigarro?".

Ele lhe ofereceu um, numa cigarreira de prata, jogou outro para Leon e pegou um para si. Agora estavam todos em pé, e, quando Cecília se debruçou em direção ao isqueiro de Marshall, Leon disse: "Ele tem um cérebro de primeira. Não entendo o que diabo ele vive fazendo, às voltas com canteiros".

Cecília foi se sentar no trampolim e tentou parecer relaxada, mas seu tom de voz era tenso. "Ele está pensando em fazer medicina. Leon, eu preferia que você não tivesse chamado o Robbie."

"O velho topou?"

Ela deu de ombros. "Olha, eu acho que você devia ir até o bangalô e pedir a ele pra não vir."

Leon havia caminhado até a extremidade rasa da piscina e olhava para ela do outro lado da extensão de água de um tom azulado, que balançava de leve.

"Como é que eu posso fazer uma coisa dessas?"

"Isso é problema seu. Arranje uma desculpa."

"Alguma coisa aconteceu entre vocês dois."

"Não, não aconteceu nada."

"Ele anda incomodando você?"

"Pelo amor de Deus!"

Cecilia levantou-se, irritada, e foi caminhando em direção ao pavilhão da piscina, uma estrutura aberta sustentada por três pilares acanalados. Ficou encostada contra o pilar central, fumando e olhando para o irmão. Dois minutos antes, eram aliados; agora estavam em conflito — era mesmo uma volta à infância. Paul Marshall estava entre os dois, virando a cabeça ora para um lado, ora para o outro, quando eles falavam, como se assistisse a uma partida de tênis. Tinha um ar neutro, vagamente curioso, e não parecia estar perturbado por aquela briga de irmãos. Isso, pelo menos, pensou Cecilia, era um ponto a seu favor.

Disse o irmão dela: "Você acha que ele não sabe segurar os talheres".

"Leon, pare com isso. Você não tinha nada que convidar o Robbie."

"Que bobagem!"

O silêncio que se seguiu foi em parte mitigado pelo zumbido da bomba de filtração. Não havia nada que ela pudesse fazer, nada que pudesse convencer Leon a fazer, e de repente deu-se conta da inutilidade daquela discussão. Espreguiçou-se contra a pedra quente, terminando o cigarro e contemplando a cena à sua frente — o retângulo, deformado pela perspectiva, de água clorada; a câmara preta de um pneu de trator encostada numa espreguiçadeira; os dois homens com ternos de linho de cor creme, com uma diferença infinitesimal de tom entre eles; a fumaça azulada subindo contra o verde dos bambus ao fundo. A cena parecia esculpida, fixa, e mais uma vez ela teve aquela sensação: aquilo já acontecera muito tempo antes, e todas as conseqüências, em todas as escalas — da mais mínima a mais colossal —, já estavam determinadas. O que viesse a acontecer no futuro, por mais estranho ou chocante que inicialmente parecesse, também teria algo de familiar, que a estimulava a dizer, porém apenas a si mesma: Ah, é claro; isso. Eu devia ter imaginado.

Disse ela, num tom animado: "Sabe o que eu acho?"

- O que?

"Acho que a gente devia entrar, e que você devia preparar um drinque especial pra nós."

Paul Marshall juntou as mãos com estrépito, e o som ricocheteou entre as colunas e a parede dos fundos do pavilhão. "Está aí uma coisa que eu sei fazer muito bem", disse ele. "Com gelo picado, rum e chocolate amargo derretido."

A sugestão provocou uma troca de olhares entre Cecilia e seu irmão, e desse modo a rixa foi resolvida. Leon já estava se afastando, e enquanto Cecilia e Paul Marshall o seguiam, convergindo na passagem entre os bambus, ela observou: "Eu prefiro uma coisa amarga. Ou até mesmo ácida".

Ele sorriu e, como foi o primeiro a chegar à passagem, fez uma pausa para que ela fosse à sua frente, como se estivessem diante da porta de um salão, e ao passar Cecilia sentiu que ele a tocou de leve no antebraço.

Ou então foi uma folha.

 

Nem os gêmeos nem Lola ficaram sabendo exatamente o que levara Briony a abandonar os ensaios. Naquele momento, ainda nem sabiam que ela os abandonara. Estavam ensaiando a cena em que Arabella, acamada, recebe pela primeira vez em sua água-furtada o príncipe disfarçado de médico, e tudo estava correndo razoavelmente bem, ou pelo menos não estava pior do que antes; a inépcia com que os gêmeos diziam suas falas não havia aumentado. Quanto a Lola, ela não queria sujar sua suéter dei-tando-se no chão, e por isso ficou largada numa poltrona, e a diretora não tinha como reclamar por isso. A menina mais velha assumiu tão integralmente sua atitude de obediência indiferente que se sentia imune a qualquer crítica. Briony, pacientemente, estava dando instruções a Jackson, quando fez uma pausa, franziu a testa, como se fosse se corrigir, e então saiu do quarto. Não houve nenhum momento-chave de discordância artística, nenhum rompante de raiva. Ela simplesmente virou e saiu, como se estivesse indo ao banheiro. Os outros esperaram, sem saber que todo o projeto chegara ao fim. Os gêmeos achavam que estavam se esforçando muito, e Jackson em particular, ainda convicto de que havia caído em desgraça com a família Tallis, julgava que deveria tentar reabilitar-se agradando Briony.

Enquanto aguardavam, os meninos jogavam bola com um bloco de madeira, e a irmã deles olhava pela janela, cantarolando baixinho. Após um intervalo de tempo incomensurável, ela saiu para o corredor e foi até a porta aberta de um quarto sem uso. Da janela do quarto via-se o caminho até o lago, sobre o qual pendia uma coluna de fosforescência branca e tremelu-zente, conseqüência do calor feroz da tarde. No meio dessa coluna Lola divisou a figura de Briony além do templo da ilha, parada à beira do lago. Talvez até estivesse com os pés dentro da água — naquela luminosidade era difícil saber. Ela não parecia ter a intenção de voltar. Ao sair do quarto, Lola viu ao lado da cama uma mala de couro pardo, aparentando ser masculina, com alças pesadas e etiquetas de navios, já desbotadas. A mala lhe trazia à mente vagas lembranças de seu pai; aproximou-se dela e sentiu um leve cheiro de fuligem de trem. Correu o dedo por um dos fechos. O metal polido estava fresco, e seu toque deixou sobre ele pequenas manchas de condensação que logo foram diminuindo. Lola assustou-se quando o fecho abriu-se de repente, saltando com um estalo ruidoso. Ela o fechou e saiu do quarto mais que depressa.

Agora os primos tinham pela frente todo um tempo inerte. Lola mandou os gêmeos descer para ver se a piscina estava livre — sentiam-se constrangidos em usá-la na presença de adultos. Os meninos voltaram para dizer que Cecilia estava lá com dois outros adultos, mas não encontraram a irmã no quarto das crianças. Ela estava em seu próprio quartinho, ajeitando o cabelo diante de um espelho de mão apoiado no parapeito da janela. Os meninos deitaram-se na cama estreita de Lola e ficaram fazendo cócegas um no outro; depois começaram a lutar, uivando bem alto. Não conseguiram fazer com que a irmã os mandasse ir para o quarto deles. Agora que não havia mais ensaios e que a piscina não estava disponível, aquele tempo vazio os oprimia. Sentiram saudades de casa quando Pierrot disse que estava com fome — a hora do jantar ainda estava muito distante, e não seria apropriado descer e pedir comida. Além disso, os meninos não queriam entrar na cozinha porque tinham pavor de Betty, que haviam visto subindo a escada, carrancuda, com duas folhas de borracha nas mãos, indo em direção ao quarto deles.

Pouco depois, os três estavam de volta ao quarto das crianças; fora os quartos em que tinham sido instalados, aquele era o único cômodo em que se sentiam à vontade. O bloco de madeira azul, arranhado, estava no lugar exato onde o haviam deixado, e tudo permanecia como antes.

Ficaram parados, olhando para os lados, e Jackson disse: "Eu não gosto daqui".

A simplicidade do comentário desconcertou seu irmão, que se aproximou da parede, achou algo interessante no rodapé e começou a cutucá-lo com o bico do sapato.

Lola pôs a mão em seu ombro e disse: "Não fique assim não. A gente vai voltar pra casa logo". O braço dela era muito mais fino e leve do que o de sua mãe, e Pierrot começou a chorar, porém baixinho, ainda cônscio de estar numa casa estranha em que era da maior importância agir de modo educado.

Jackson também estava choroso, porém ainda conseguia falar. "Que voltar pra casa, que nada. Isso é história sua. A gente não pode voltar pra casa..." Fez uma pausa para criar coragem. E o divórcio!"

Pierrot e Lola ficaram petrificados. A palavra nunca tinha sido usada na frente das crianças e nunca fora pronunciada por elas. As consoantes macias insinuavam uma obscenidade impensável, a sibilante sussurrava a vergonha da família. O próprio Jackson pareceu consternado no momento em que a palavra lhe escapou dos lábios, mas agora não havia como desdi-zê-la, e, na sua imaginação, pronunciá-la em voz alta era um crime tão grave quanto o próprio ato que ela designava, fosse o que fosse. Nenhum deles, nem mesmo Lola, sabia muito bem o que era. Ela avançou em direção ao irmão, os olhos verdes apertados como olhos de gato.

"Você tem coragem de dizer uma coisa dessas?"

"Mas é", murmurou Jackson, desviando a vista. Sabia que a coisa estava preta para ele, e que fora por sua culpa; estava prestes a tentar escapulir quando a irmã o agarrou pela orelha e quase encostou o rosto no dele.

"Se você me bater", ele disse mais que depressa, "eu conto prós pais." Mas ele mesmo tornara aquela invocação inútil, transformara-a no totem em ruínas de uma idade do ouro perdida.

"Você nunca mais vai usar essa palavra de novo. Está ouvindo?"

Envergonhadíssimo, ele fez que sim, e Lola soltou-o.

De tão chocados, os meninos tinham parado de chorar, e Pierrot, sempre ansioso por reparar uma situação desagradável, disse, animado: "O que é que a gente vai fazer agora?".

"É o que eu fico pensando o tempo todo."

Um homem alto de terno branco parado à porta talvez já estivesse ali havia um bom tempo, o suficiente para ouvir Jackson pronunciar a palavra, e foi esse pensamento, e não o choque causado por sua presença, que realmente impediu Lola de lhe dar uma resposta. Será que o homem sabia a respeito da família deles? Nada lhes restava a fazer senão ficar olhando para ele e esperar para descobrir. O homem aproximou-se e estendeu a mão.

"Paul Marshall."

Pierrot, o que estava mais próximo, apertou em silêncio a mão do rapaz, e foi imitado por seu irmão. Quando chegou a vez da menina, ela disse: "Lola Quincey. Este é o Jackson e este é o Pierrot".

"Vocês têm uns nomes muito bonitos. Mas como é que eu vou saber qual dos dois é quem?"

"Normalmente eu sou considerado o mais simpático", disse Pierrot. Era uma brincadeira da família, uma resposta inventada pelo pai, que normalmente provocava o riso nos estranhos que faziam aquela pergunta. Porém o homem nem sequer sorriu ao dizer: "Vocês devem ser os primos do Norte".

Os três, tensos, ficaram à espera, para ver o que mais o homem sabia, vendo-o andar até o outro lado do quarto e abaixar-se para pegar o bloco de madeira, que jogou para o alto e agarrou no ar com um gesto destro e um som seco de madeira contra pele.

"Eu vou ficar num quarto aqui neste corredor."

"Eu sei", disse Lola. "O quarto da tia Venus."

"Justamente. O quarto que era dela."

Paul Marshall instalou-se na poltrona em que pouco antes Arabella curtia sua doença. Era mesmo um rosto curioso, todas as feições apertadas em torno das sobrancelhas, e um queixo largo e vazio de vilão de história em quadrinhos. O rosto era cruel, porém seus modos eram simpáticos, e Lola achou essa combinação atraente. Ele ajeitou o vinco das calças enquanto olhava de um membro da família Quincey para outro. O que mais atraiu a atenção de Lola foi o couro preto e branco de seus borzeguins; ele o percebeu, e ficou balançando um dos pés conforme um ritmo que ouvia em sua imaginação.

"Pena que não vai ter mais a peça de vocês."

Os gêmeos se aproximaram um do outro, numa reação de defesa inconsciente e instintiva, desencadeada pelo raciocínio de que, se aquele homem sabia mais do que eles a respeito dos ensaios, certamente haveria de saber muitas outras coisas também. Jackson deu voz às preocupações mais íntimas dos dois ao perguntar:

"O senhor conhece os nossos pais?"

"O senhor e a senhora Quincey?"

"É!"

"Já li sobre eles no jornal."

Os meninos ficaram olhando fixamente para ele enquanto digeriam aquela informação; não conseguiam falar, pois sabiam que os jornais só falavam em coisas grandiosas: terremotos e desastres ferroviários, o que o governo e os outros países faziam a cada dia, se era necessário gastar mais dinheiro em armas como precaução para um possível ataque de Hitler à Inglaterra. Ficaram impressionados, mas não de todo surpresos, de saber que a catástrofe de sua família era comparável a esses assuntos excelsos. Ali havia o toque da verdade.

Para se acalmar, Lola pôs as mãos nos quadris. Seu coração batia tão forte que doía, e ela temia dizer alguma coisa, embora soubesse que devia falar. Tinha a impressão de que estava participando de um jogo cujas regras desconhecia, mas estava certa de que aquilo era uma impropriedade, talvez até um insulto. Sua voz fraquejou quando ela começou a falar, e foi obrigada a pigarrear e começar de novo.

"O que foi que o senhor leu sobre eles?"

Ele arqueou as sobrancelhas, que eram espessas e se fundiam acima do nariz, e emitiu um som de muxoxo pelos lábios. "Ah, não sei. Nada. Bobagens."

"Então eu lhe peço encarecidamente que não toque no assunto na frente das crianças."

Era uma expressão que Lola certamente ouvira alguém dizer, e ela a repetira movida pela fé cega, como um aprendiz que repete o sortilégio de um mago.

Pelo visto, funcionou. Marshall fez uma careta em reconhecimento de seu erro e se debruçou em direção aos gêmeos. "Vocês dois escutem o que vou dizer com atenção. Todo mundo sabe muito bem que seus pais são pessoas maravilhosas que gostam muito de vocês e pensam sempre em vocês."

Jackson e Pierrot concordaram com a cabeça, muito sérios. Tendo cumprido seu dever, Marshall voltou sua atenção para Lola. Após dois drinques com gim bem fortes tomados na sala de estar com Leon e a irmã dele, Marshall havia subido para encontrar seu quarto, desfazer as malas e trocar de roupa para o jantar. Sem tirar os sapatos, havia se esticado na cama imensa e, tranqüilizado pelo silêncio do campo, o efeito do álcool e o calor da noitinha, mergulhou num sono leve em que suas irmãs mais moças apareciam, todas as quatro, em torno de sua cama, falando alto, pegando nele, puxando suas roupas. Acordou, sentindo calor no peito e na garganta e uma excitação desconfortável; por um instante não sabia onde estava. Depois, sentado na cama, bebendo água, ouviu as vozes que certamente teriam provocado aquele sonho. Caminhou pelo corredor cheio de rangidos, entrou no quarto e num primeiro momento viu três crianças. Agora se dava conta de que a menina já era quase uma moça, compenetrada e altiva, uma verdadeira princesinha pré-rafaelita, toda pulseiras e tranças, unhas pintadas e gargantilha de veludo.

Disse Marshall a ela: "Você tem muito bom gosto em matéria de roupa. Essa calça cai muito bem em você, a meu ver".

Lola ficou mais lisonjeada do que constrangida, e correu os dedos de leve pelo tecido, no ponto mais largo da calça à altura dos quadris estreitos. "A gente comprou lá na Liberty's, quando minha mãe me levou a Londres para assistir uma peça."

"E o que foi que vocês viram?"

"Hamlet." Na verdade, fora um espetáculo de mímica, uma matinê no London Pavillion, durante o qual Lola virou um copo de refrigerante em cima da saia; a Liberty's ficava do outro lado da rua.

"Uma das minhas favoritas", disse Paul. Felizmente para Lola, ele também não lera nem vira a peça, tendo estudado química. Porém sabia o bastante para dizer, com ar sonhador: "Ser ou não ser".

"Eis a questão", concordou ela. "E eu gostei dos seus sapatos."

Ele entortou o pé para examinar a qualidade do trabalho. "É. Ducker's, The Turl. Lá eles fazem um negócio de madeira igual ao seu pé e guardam numa prateleira pra sempre. Têm milhares desses negócios guardados no porão, e a maioria das pessoas já morreu há muito tempo."

"Que coisa horrível."

"Estou com fome", disse Pierrot de novo.

"Ah", disse Paul Marshall, apalpando o próprio bolso. "Tenho uma coisa pra mostrar a vocês se conseguirem adivinhar qual é a minha profissão."

"O senhor é cantor", disse Lola. "Pelo menos a sua voz é muito bonita."

"Bondade sua, mas não. Sabe, você parece a minha irmã preferida..."

Jackson interrompeu. "O senhor tem uma fábrica de chocolate."

Antes que seu irmão fosse coberto de glórias, Pierrot acrescentou: "A gente ouviu o senhor falando lá na piscina".

"Então não vale."

Ele tirou do bolso uma barra retangular embrulhada em papel-manteiga, com cerca de dez centímetros de comprimento e dois de largura. Colocou-a no colo, desembrulhou-a cuidadosamente e exibiu-a para todos. Respeitosos, eles se aproximaram. A barra era recoberta por uma camada lisa de um verde fosco; Paul Marshall deu-lhe um peteleco com a unha.

"É uma camada de açúcar, viu? Por dentro é chocolate ao leite. Assim, não estraga mesmo se derreter."

Levantou a mão e apertou com mais força, e todos viram o tremor em seus dedos, exagerado pela barra.

"Vai haver uma barra dessas na mochila de cada soldado deste país. Como parte da ração oficial."

Os gêmeos se entreolharam. Eles sabiam que adulto não tinha nada a ver com guloseimas. Disse Pierrot: "Soldado não come chocolate".

O irmão dele acrescentou: "Soldado gosta é de cigarro".

"E por que é que os soldados vão ganhar chocolate de graça, e não as crianças?"

"Porque eles vão estar lutando pela pátria."

"O papai diz que não vai ter guerra."

"Pois ele está enganado."

Marshall parecia um pouco irritado, e Lola apressou-se a consertar: "Pode ser que tenha guerra, sim".

Ele sorriu para a menina. "O nome da barra é Army Amo."

"Amo amas amat", disse ela.

"Isso mesmo."

Disse Jackson: "Não sei por que tudo que a gente compra sempre termina com O".

"É uma chatice", disse Pierrot. "Polo e Aero."

"E Oxo e Brillo."

"Acho que o que eles estão querendo me dizer", disse Paul Marshall a Lola, entregando-lhe a barra, "é que eles não querem."

Lola aceitou o presente com a maior seriedade, e depois dirigiu aos gêmeos um olhar que significava "bem feito". Eles sabiam que ela tinha razão. Agora não podiam pedir um pedaço de Amo. Viram a língua da irmã ficar verde após roçar na cobertura de açúcar. Paul Marshall recostou-se na poltrona, olhando atentamente para a menina por cima das mãos que juntara, palmo contra palmo, diante do rosto.

Cruzou e descruzou as pernas. Depois respirou fundo. "Dê uma mordida", disse ele em voz baixa. "Você tem que morder."

Com um estalo ruidoso, a cobertura cedeu aos incisivos intactos da menina, revelando o branco do lado interno da camada de açúcar e o chocolate negro por baixo. Foi então que ouviram, vindo da escada, uma voz de mulher chamando os meninos, e depois, mais insistente, do corredor; dessa vez os gêmeos reconheceram a voz e trocaram um olhar de súbita perplexidade.

Lola ria com a boca cheia de Amo. "É a Betty procurando vocês. Hora do banho! Já pro banho, os dois. Já."

 

Não muito tempo depois do almoço, após verificar que os filhos de sua irmã e Briony haviam se alimentado direito e prometido não entrar na piscina durante pelo menos duas horas, Emily Tallis recolheu-se do brilho claro do calor da tarde para o quarto fresco e escurecido. Não estava sentindo dor, ainda não, porém estava recuando diante da ameaça da dor. Havia pontos luminosos em sua visão, pequenos como furos de alfinetes, como se o tecido desgastado do mundo visível estivesse encobrindo uma luz muito mais forte. Sentia um peso do lado direito da parte de cima do cérebro, o peso inerte de um animal adormecido, enrascado num canto; porém, quando levava a mão à cabeça e a apertava, a presença desaparecia das coordenadas do espaço real. Agora o bicho estava no lado direito da parte de cima do cérebro, e em sua imaginação ela se via na ponta dos pés, estendendo a mão direita para alcançá-lo. Convinha, porém, não provocá-lo; se a criatura preguiçosa se deslocasse da periferia para o centro, as dores lancinantes apagariam todos os pensamentos, e não haveria possibilidade de ela jantar com Leon e o resto da família. Aquele animal não tinha nada contra ela, era indiferente a seu sofrimento. Deslocava-se em seu cérebro como uma pantera dentro da jaula: por estar acordado, por tédio, pelo prazer de se mexer, ou sem motivo nenhum, sem nenhuma consciência. Emily estava deitada em sua cama sem travesseiro, um copo d'água ao alcance de sua mão e, a seu lado, um livro que ela se sabia incapaz de ler. A escuridão era perturbada apenas por uma tira comprida e indefinida de luz solar refletida no teto acima da sanefa. Ela permanecia rígida, apreensiva, a faca contra o peito, sabendo que o medo não a deixaria dormir e que a única esperança era permanecer imóvel.

Emily pensou no calor imenso que subia da casa e do parque, estendendo-se por toda a região como fumaça, sufocando fazendas e cidadezinhas, e pensou nos trilhos ardentes que estavam trazendo Leon e seu amigo, e no vagão de teto preto, um verdadeiro forno, dentro do qual eles estariam sentados ao lado da janela aberta. Ela havia mandado preparar um assado para o jantar, e o calor estaria sufocante demais para se comer. Ouvia a casa dilatando de tão quente. Ou seriam as vigas e colunas que, ao se ressecar, contraíam-se contra a alvenaria? Encolhendo, tudo estava encolhendo. Por exemplo, o futuro de Leon, diminuindo a cada ano por ter ele recusado a ajuda do pai, uma oportunidade de arranjar alguma coisa decente no serviço público, preferindo tornar-se o mais humilde dos empregados de um banco privado e viver para os fins de semana e a equipe de remo. Emily ficaria com raiva de Leon se ele não tivesse um gênio tão bom, não estivesse tão contente, cercado de amigos bem-sucedidos. Bonito demais, popular demais, nem um pingo de infelicidade nem de ambição. Algum dia ele traria, talvez, um amigo que se casaria com Cecília, se os três anos por ela passados no Girton College não a tivessem tornado inviável como esposa, com sua mania de ficar sozinha, seu hábito de fumar no quarto, a saudade absurda de uma época que mal terminara, daquelas moças da Nova Zelândia, gordas e de óculos, com quem ela dividira um quarto, ou teria sido apenas uma criada? O jargão pretensioso de Cambridge — Halls, Maids' Dancing, Little-Go — e a afetação de pobreza, as calcinhas secando sobre a serpentina da calefação, a escova de cabelo dividida com uma colega, tudo isso deixava Emily Tallis um pouco irritada, mas não com ciúmes, de modo algum. Ela estudara em casa até os dezesseis anos, sendo depois mandada à Suíça para passar dois anos, embora tivesse ficado apenas um, por motivo de economia, e ela sabia muito bem que toda essa papagaiada, isso de moça fazer faculdade, era no fundo uma infantilidade, na melhor das hipóteses uma brincadeira inocente, como o torneio de remo feminino, meninas tentando brilhar ao lado dos irmãos em nome do sacrossanto progresso social. As moças nem recebiam um diploma de verdade. Quando Cecília voltou para casa em julho com o resultado das provas finais — e ela ainda tivera a petulância de ficar decepcionada! —, não tinha nenhuma habilitação profissional, nenhum emprego, e continuava precisando encontrar um marido e enfrentar a dura tarefa de ser mãe. E o que teriam a lhe dizer sobre isso suas professoras feministas — aquelas mulheres que tinham apelidos ridículos e faziam medo às alunas? Mulheres metidas a besta, que ficavam famosas na universidade pelas excentricidades mais bobas e inofensivas — passear com um gato na coleira como se fosse um cachorro, andar em bicicleta de homem, exibir-se na rua com um sanduíche na mão. Uma geração depois, essas mulheres tolas e ignorantes já estariam mortas há muito tempo e continuariam sendo reverenciadas na High Table, seus nomes pronunciados com vozes respeitosas.

Sentindo que a criatura de pêlos pretos começava a se mexer, Emily deixou que seus pensamentos se afastassem da filha mais velha e estendeu as gavinhas de sua preocupação em direção à caçula. Briony, coitadinha, tão frágil, fazendo o que podia para distrair, com a peça que escrevera do fundo do coração, aqueles primos calejados. Amá-la era um bálsamo para a alma. Mas como protegê-la do fracasso, como protegê-la de Lola, a encarnação da irmã mais moça de Emily, que fora tão precoce e tão intrigante quanto ela naquela idade, e que acabava de dar um jeito de escapulir de seu casamento com a desculpa de um colapso nervoso? Não, não podia deixar que Her-mione invadisse seus pensamentos. Em vez disso, Emily, respirando silenciosamente na escuridão, tentou saber em que pé estava a casa, ouvindo seus ruídos. No estado em que se encontrava, era a única contribuição capaz de dar. Colocou a palma da mão sobre a testa e ouviu outro estalo; a casa encolhera mais um pouco. Lá de baixo veio um clangor metálico, talvez uma tampa de panela caindo; o assado absurdo estava começando a ser preparado. Do andar de cima, um tropel de pés sobre tábuas corridas e vozes de crianças, duas ou três ao menos, falando ao mesmo tempo, mais alto, mais baixo, mais alto outra vez, talvez numa discussão encarniçada, talvez concordando com veemência. O quarto das crianças ficava no andar superior, imediatamente acima do cômodo ao lado do seu. Arabella em apuros. Se ela não estivesse tão mal, subiria agora para supervisionar os ensaios ou mesmo ajudar, pois aquilo era demais para eles, ela sabia. Por causa da doença, não dava mais aos filhos tudo o que uma mãe deve dar. Percebendo isso, os filhos já começavam a chamá-la pelo primeiro nome. Cecília devia ajudar, mas estava ensimesmada demais, era intelectual demais para perder tempo com crianças... Emily conseguiu resistir à tentação de prosseguir com esse raciocínio, e começou então a mergulhar não exatamente no sono, mas numa nulidade de doente, livre dos pensamentos, e foram-se muitos minutos até que ela ouviu no corredor, junto à porta de seu quarto, passos na escada, e pelo som abafado concluiu que devia ser de pés descalços, e portanto de Briony. A menina recusava-se a usar sapatos quando fazia calor. Minutos depois, novamente no quarto das crianças, mais passos vigorosos e alguma coisa dura rolando pelo soalho. Os ensaios haviam gorado; Briony se recolhera, emburrada; os gêmeos estavam brincando de correr; e Lola, se era tão parecida com a mãe quanto Emily pensava, estaria tranqüila e triunfante.

O hábito de se preocupar com os filhos, o marido, a irmã, a criadagem, deixara seus sentidos em carne viva; a enxaqueca, o amor materno e, no decorrer dos anos, as muitas horas que passava imóvel na cama haviam destilado de sua sensibilidade um sexto sentido, uma consciência tentacular que emergia da penumbra do quarto e se movimentava por toda a casa, vendo tudo sem que ninguém a visse. Só trazia de volta a verdade, pois o que ela sabia, sabia. Um murmúrio indistinto de vozes, ouvido através de um soalho acarpetado, era para ela mais nítido que uma transcrição datilografada; uma conversa que atravessasse uma parede, ou, melhor ainda, duas paredes, chegava-lhe despida de todas as inflexões e nuanças que não as essenciais. O que em outras pessoas teria embotado os sentidos, nela os acentuara, deixando-os bem sintonizados, como os bigodes-de-gato de um velho rádio de galena, uma amplificação quase insuportável. Deitada no escuro, ela sabia tudo. Quanto menos se sentia capaz de fazer, mais consciente se tornava. No entanto, embora às vezes tivesse vontade de se levantar e intervir, especialmente quando achava que Briony precisava dela, o medo da dor a imobilizava. Nos piores ataques, duas facas de cozinha afiadas lhe riscavam o nervo ótico e depois repetiam o golpe, com uma pressão para baixo mais forte ainda, e ela ficava inteiramente fechada e só. Até mesmo os gemidos aumentavam a agonia.

Assim, Emily permanecia deitada, enquanto a tardinha se esvaía. A porta da frente se abrira e fechara. Briony teria saído, mal-humorada, provavelmente para ficar junto à água, na piscina, no lago, ou talvez até mesmo no rio. Ouviu um passo cuidadoso na escada — Cecília finalmente levando as flores para o quarto das visitas, uma tarefa simples que ela lhe pedira que fizesse várias vezes naquele dia. Depois, mais tarde, Betty chamando Danny, e o som da carruagem sobre o cascalho, e Cecília descendo para receber as visitas, e logo em seguida, a se espalhar pela penumbra, um levíssimo cheiro de cigarro — quantas vezes já pedira a Cecília que não fumasse na escada, mas ela queria impressionar o amigo de Leon, o que aliás talvez não fosse má idéia. Vozes ecoando no hall, Danny subindo a escada carregando a bagagem, depois descendo, e silêncio — certamente Cecília levara Leon e o sr. Marshall até a piscina para tomar o ponche que Emily fizera pessoalmente naquela manhã. Ouviu uma criatura quadrúpede descendo a escada — seriam os gêmeos querendo ir à piscina e logo decepcionando-se ao ver que ela estava ocupada.

Emily mergulhou num cochilo e foi despertada pelo bordão de uma voz masculina no quarto das crianças e vozes infantis respondendo. Certamente não seria Leon, o qual, encontrando a irmã depois de tanto tempo, não conseguiria se separar dela. Haveria de ser o sr. Marshall — cujo quarto ficava ao lado — conversando com os gêmeos, concluiu, e não com Lola. Estariam eles sendo impertinentes? Pois Emily já percebera que os gêmeos costumavam se comportar como se cada um deles só fosse responsável por metade de suas obrigações sociais. Agora era Betty que vinha escada acima, chamando-os enquanto subia, talvez com excesso de aspereza, levando-se em conta o mau pedaço por que Jackson passara naquela manhã. Hora do banho, hora do chá, hora de ir para a cama — as dobra-diças do dia: esses sacramentos infantis de água, comida e sono já haviam praticamente desaparecido da rotina da casa. O nascimento tardio e inesperado de Briony os mantivera vivos até os quarenta e tantos anos de Emily, e, para ela, tais sacramentos sempre foram tranqüilizadores, reparadores; o sabão de lanoli-na, a toalha de banho alva e grossa, a vozinha de menina ecoando na acústica do banheiro enevoado de vapor; o ato de embrulhá-la na toalha, prendendo-lhe os braços e pegando-a no colo, devolvendo-a por um momento à condição de bebê, que fora tão prazerosa para Briony num tempo que nem era assim tão remoto; porém agora o bebê e a água do banho haviam desaparecido por trás de uma porta trancada, se bem que isso não era muito freqüente, pois a menina parecia estar sempre carente de um bom banho e roupas limpas. Ela havia sumido num mundo interior inacessível, e seus escritos eram apenas a superfície visível desse mundo, a casca protetora que não podia ser penetrada, nem mesmo por uma mãe amorosa — não, principalmente por uma mãe amorosa. Sua filha estava sempre distante, perdida em sua própria mente, a se debater com algum problema secreto criado por ela própria, como se o velho mundo visível pudesse ser recriado por uma criança. Inútil perguntar a Briony no que ela estava pensando. Outrora ela teria respondido com uma observação inteligente e complexa, que por sua vez redundaria em perguntas bobas e profundas às quais Emily respondia da melhor maneira que lhe era possível; e, ainda que não conseguisse se lembrar detalhadamente das hipóteses sinuosas que propunha, sabia que jamais falara tão bem quanto naquelas conversas com sua caçula de onze anos. Em nenhum jantar, em nenhuma reunião na sombra junto de uma quadra de tênis ela jamais discorrera de modo tão livre, tão criativo. Agora os demônios da autoconsciência e do talento haviam emudecido sua filha, e, embora ela continuasse tão amorosa quanto antes — naquele dia mesmo, no café da manhã, se aproximara da mãe e enlaçara seus dedos nos dela —, Emily lamentava o fim daquela idade de eloqüência. Ela nunca mais falaria assim com ninguém, e era isso o que significava querer ter outro filho. Estava prestes a completar quarenta e sete anos.

O trovão abafado do encanamento — ela não percebera o início — cessou com um solavanco que fez o ar estremecer. Agora os meninos de Hermione estariam no banheiro, os corpi-nhos estreitos e ossudos um em cada ponta da banheira, duas toalhas brancas idênticas sobre a cadeira de palhinha azul desbotada, e no chão o grande tapete de cortiça que tivera uma ponta mastigada por um cachorro que já morrera havia muito; só que, em vez de vozes infantis, um silêncio terrível, na ausência da mãe, substituída por Betty, cujo coração bondoso nenhuma criança jamais descobriria. Como poderia Hermione ter um colapso nervoso — o termo geralmente usado para se referir a seu amigo que trabalhava no rádio —, como poderia ela escolher o silêncio, o medo, o sofrimento para seus filhos? Ocorreu-lhe que ela própria deveria estar supervisionando aquele banho. Porém Emily sabia que, mesmo se as facas não estivessem pairando acima de seu nervo ótico, ela cuidaria dos sobrinhos só por obrigação. Eles não eram dela: era isso. Além do mais, eram meninos e, portanto, pouco comunicativos por natureza, sem o dom da intimidade, e ainda por cima haviam diluído suas identidades, pois ela jamais encontrara o famoso triângulo de carne a menos na orelha de um deles. Aqueles dois, só era possível conhecer de modo geral.

Emily equilibrou-se cuidadosamente sobre o cotovelo e levou aos lábios o copo de água. Estava começando a se dissipar a presença do animal que a atormentava, e ela conseguiu ajeitar os travesseiros contra a cabeceira para poder se recostar. A manobra era lenta e desajeitada porque ela temia todo movimento súbito, e com isso o ranger das molas do colchão prolongou-se e obscureceu em parte o som de uma voz masculina. Equilibrada sobre o cotovelo, imobilizou-se, apertando com uma das mãos uma ponta do travesseiro, e dirigiu sua atenção viva para os quatro cantos da casa. Não havia nada, e aí, como uma lâmpada que se acende e se apaga na escuridão completa, ouviu-se um risinho agudo, rapidamente abafado. Então era Lola, no quarto das crianças com Marshall. Continuou a se acomodar e por fim relaxou os músculos sobre o travesseiro, bebendo um gole de água morna. Aquele jovem empresário talvez não fosse tão mau assim, se estava disposto a passar o dia distraindo as crianças. Logo ela poderia correr o risco de acender o abajur da cabeceira e vinte minutos depois já seria capaz de participar da vida da família, explorando as diferentes direções de sua ansiedade. O mais urgente de tudo era uma expedição à cozinha para ver se não era tarde demais para transformar o cozido em frios e saladas, e depois precisava receber o filho, avaliar seu amigo e dar-lhe as boas-vindas. Tão logo cumprisse essa obrigação, verificaria se os gêmeos estavam bem cuidados, e talvez preparasse algumas guloseimas para eles, como forma de compensação. Então já seria hora de telefonar para Jack, que teria esquecido de lhe avisar que não vinha para casa. Ela falaria com a telefonista lacônica e com o rapaz pretensioso do escritório, e faria tudo para que seu marido não se sentisse culpado. Depois iria atrás de Cecília para ver se ela havia feito o arranjo de flores conforme lhe pedira, e sua filha tinha mais era que tentar assumir algumas das responsabilidades de anfitriã aquela noite, vestir uma roupa bonita, e não tumar em todos os cômodos da casa. Por fim, o mais importante de tudo, tinha de procurar Briony, porque o fracasso da peça era um golpe terrível, e a menina precisaria de todo o conforto que uma mãe podia dar. Para encontrá-la, seria necessário expor-se à luz direta do sol, e mesmo o sol enfraquecido da tar-dinha era capaz de provocar um ataque. Assim, precisaria procurar os óculos escuros, e era essa, e não a ida à cozinha, a prioridade, porque eles certamente estariam no seu quarto, numa gaveta, no meio de um livro, num bolso, e seria muito incômodo ter de subir de novo para procurá-los. Era bom também calçar sapatos sem salto, porque Briony talvez tivesse ido até o rio... Então Emily ficou mais alguns minutos recostada nos travesseiros, agora que a criatura havia ido embora, e pacientemente fez planos, e os revisou, colocando-os cuidadosamente em ordem. Primeiro tranqüilizaria a casa, que lhe parecia, ali naquele quarto escurecido de doente, um continente conturbado, com baixa densidade populacional, cujas imensidões cobertas de florestas faziam exigências e contra-exigências a sua atenção inquieta. Ela não tinha ilusões: os planos antigos, se era possível lembrar-se deles, os planos que haviam sido atropelados pelo tempo, normalmente eram marcados por uma visão febril e excessivamente otimista dos acontecimentos. Emily podia enviar suas gavinhas para cada cômodo da casa, porém não havia como penetrar o futuro com elas. Sabia também que, em última análise, seu objetivo era conservar sua própria paz de espírito; era prudente não separar o interesse próprio da bondade. Com todo o cuidado, ergueu-se dos travesseiros, baixou os pés até o chão e enfiou-os nos chinelos. Por cautela, não abriu as cortinas, ainda não, acendeu o abajur e começou a procurar os óculos escuros. Já sabia por onde daria início àquela busca.

 

O templo da ilha, construído no estilo de Nicholas Revett no final da década de 1780, fora feito para ser um ponto de interesse, algo que atraísse a vista e desse um toque bucólico, não tendo, é claro, nenhum propósito religioso. Ficava bem perto da beira d'água, numa espécie de península, de modo a projetar um reflexo interessante no lago, e de quase todos os ângulos a fileira de colunas e o frontão no alto ficavam graciosamente semi-ocultados pelos olmos e carvalhos que haviam crescido ao seu redor. Mais de perto, o templo tinha uma aparência menos vistosa: a umidade tinha atravessado o revestimento, e pedaços de estuque haviam despencado. No final do século XIX alguém tentara restaurá-lo com cimento sem pintura, mas o cimento escureceu, dando ao prédio um aspecto manchado, como se ele estivesse doente. Em alguns pontos, as ripas expostas, já apodrecidas, pareciam as vértebras de um animal faminto. As portas duplas que davam para uma câmara circular, com teto em forma de cúpula, tinham sido removidas muitos anos antes, e o chão de pedra estava coberto de folhas, barro e excrementos dos diversos pássaros e outros animais que entravam e saíam. Todas as vidraças das graciosas janelas em estilo georgiano haviam sido quebradas por Leon e seus amigos no final da década de 1920. Nos nichos altos, onde outrora ficavam estátuas, agora só se viam os restos imundos de teias de aranha. O mobiliário fora reduzido a um banco trazido de um campo de críquete — mais uma vez, obra do jovem Leon e seus terríveis colegas de escola. Os pés do banco tinham sido arrancados e usados para quebrar as janelas, e agora, jogados lá fora, apodreciam lentamente em meio às urtigas e aos incorruptíveis cacos de vidro.

Tal como o pavilhão da piscina atrás do estábulo imitava características do templo, também o templo, ao que se dizia, continha referências à casa original, embora ninguém na família Tallis fosse capaz de identificá-las. Talvez fosse o estilo das colunas, ou do frontão, ou as proporções das janelas. Em ocasiões diferentes, mas principalmente no Natal, quando os ânimos se elevavam, membros da família, ao caminhar pelas pontes, prometiam pesquisar o assunto, mas ninguém conseguia achar tempo para isso depois que começava o ano novo e seus mil compromissos. Mais do que seu estado de conservação, era essa associação, essa lembrança perdida dos aspectos mais grandiosos do templo, que dava à pequena estrutura inútil seu ar melancólico. O templo era o filho órfão de uma grande dama da sociedade, e, agora que não havia ninguém que tomasse conta dele, ninguém que lhe desse um bom exemplo, o filho envelhecera antes da época e deixara de se cuidar. Havia uma mancha de fuligem da altura de um homem, larga embaixo e estreitando-se para cima, numa das paredes exteriores, assinalando o local onde dois vagabundos uma vez tiveram a desfaçatez de acender uma fogueira para assar uma carpa que não lhes pertencia. Por muito tempo uma bota engelhada ficou exposta na grama que os coelhos cuidavam de aparar. Mas quando Briony procurou por ela, agora, a bota havia desaparecido, tal como tudo haveria de desaparecer um dia. A idéia de que o templo, com aquela faixa estreita de luto, chorava a morte da mansão incendiada e ansiava por uma presença grandiosa e invisível, emprestava-lhe um leve ar de religiosidade. A tragédia impedira que o templo fosse completamente falso.

É difícil ficar um bom tempo fustigando as urtigas sem que uma história se imponha, e Briony logo se sentiu absorta, saboreando um prazer amargo, muito embora para o resto do mundo parecesse uma menina de péssimo humor. Havia encontrado um galho fino de aveleira e o despira de folhas. Tinha trabalho pela frente, e entregou-se a ele. Uma urtiga alta, de aparência orgulhosa, fazia charme, inclinando a cabeça um pouco, as folhas do meio viradas para fora, afirmando sua inocência — aquela era Lola, e, embora choramingasse pedindo piedade, o açoite de um metro de comprimento atingiu-a nos joelhos, e o resto do corpo inútil foi parar longe. Aquilo dava tanto prazer que não se podia parar, e as próximas urtigas também eram Lola; uma delas, debruçada para cochichar no ouvido da vizinha, foi derrubada com uma mentira gritante nos lábios; e lá estava ela de novo, destacada das outras, a cabeça entortada, tramando intrigas venenosas; mais adiante ela se pavoneava em meio a um grupo de admiradoras mais jovens, espalhando boatos a respeito de Briony. Era lamentável, porém as admiradoras teriam de morrer junto com ela. Então Lola ergueu-se outra vez, ostentando seus diversos pecados — orgulho, gula, avareza, falta de cooperação —, e por cada um deles pagou com a própria vida. Seu ato final de despeito foi cair aos pés de Briony e queimar os dedos de seus pés. Quando Lola já havia morrido suficientemente, três pares de urtigas tenras foram sacrificadas para pagar a incompetência dos gêmeos — o castigo era indiferente, e não concedia privilégios a crianças. Então a dramaturgia transformou-se numa urtiga, aliás numa série delas; a superficialidade, o tempo desperdiçado', a desorganização das outras mentes, a inutilidade do faz-de-conta — no jardim das artes, era uma erva daninha que devia morrer.

Não sendo mais dramaturga e sentindo-se muito aliviada por isso, atenta para os cacos de vidro, Briony continuou a contornar o templo, percorrendo a fímbria entre a grama mordiscada e a vegetação rasteira e rebelde que transbordava por entre as árvores. Açoitar as urtigas se transformara num ato de autopurificação; e agora o castigo dirigia-se à infância, já que esta não lhe era mais necessária. Um espécime magricela tornou-se o representante de tudo o que ela fora até aquele momento. Mas não bastava. Firmando os pés na grama, Briony livrou-se de sua velha personalidade ano a ano, em treze golpes. Cortou fora a dependência doentia do bebê e da criança pequena, a menininha que adorava se mostrar e receber elogios, e a garota de onze anos ridiculamente orgulhosa de suas primeiras histórias, sempre dependendo das opiniões da mãe. Iam voando por cima de seu ombro esquerdo e caíam a seus pés. A ponta fina do galho emitia um som com dois tons no momento em que riscava o ar. Chegou!, ela o fazia dizer. Mais um! Não mais!

Em pouco tempo, era o ato em si que a absorvia, isso e mais a reportagem que ela redigia ao ritmo dos golpes. Ninguém no mundo era melhor nisso do que Briony Tallis, que iria representar seu país no ano seguinte nas Olimpíadas de Berlim e que certamente ganharia a medalha de ouro. As pessoas a examinavam atentamente e se deslumbravam com sua técnica, sua preferência por ficar descalça para melhorar seu equilíbrio — coisa tão importante nesse esporte exigente —, cada dedo do pé desempenhando seu papel; o modo como ela avançava com o pulso e girava a mão apenas no final do golpe, o modo como distribuía o peso e usava a rotação dos quadris para ganhar mais força, o hábito característico de esticar os dedos da mão livre — ninguém nem sequer chegava perto dela. Autodidata, filha mais nova de um alto funcionário público. Vejam só a concentração em seu rosto, calculando o ângulo, sem perder nenhum golpe, acertando cada urtiga com uma precisão sobre-humana. Para chegar a esse nível, era necessária a dedicação de toda uma existência. E dizer que por um triz ela não desperdiçou esse seu talento na dramaturgia!

De repente deu-se conta da carruagem que se aproximava, atravessando ruidosamente a primeira ponte. Leon, finalmente. Sentia o olhar dele sobre ela. Seria essa a irmãzinha que ele vira pela última vez na estação de Waterloo apenas três meses atrás, agora membro de uma elite internacional? Por pirraça, Briony decidiu não se permitir virar e reconhecer a presença do irmão; ele precisava aprender que ela agora não dependia mais das opiniões dos outros, nem mesmo das dele. Era então uma mestra, totalmente imersa na complexidade de sua arte. Além disso, Leon certamente haveria de parar a carruagem e vir correndo até ela, que teria de suportar aquela interrupção pacientemente.

O som das rodas e dos cascos dos cavalos atravessando a segunda ponte e se afastando indicava, pensou ela, que seu irmão sabia o que distância e profissionalismo significavam. Assim mesmo, um pouco de tristeza começou a descer sobre Briony enquanto ela continuava a golpear, seguindo adiante, contornando o templo da ilha, até chegar a um ponto de onde não se via mais a estrada. Uma fileira irregular de urtigas cortadas sobre a grama assinalava seu progresso, tal como os vergões brancos em seus pés e tornozelos. A ponta do chicote descrevia seu arco cantando, folhas e galhos se despedaçavam, porém era cada vez mais difícil invocar a ovação do público. As cores estavam se esvaindo de sua fantasia, o gozo narcisista do movimento e do equilíbrio se dissipava, seu braço doía. Ela estava se transformando numa menina solitária a fustigar as urtigas com um graveto; por fim parou, jogou o graveto em direção às árvores e olhou à sua volta.

O preço dos devaneios profundos era sempre aquele momento de retorno, o reencontro do que havia antes e agora parecia um pouco pior. Sua fantasia, antes cheia de detalhes plausíveis, transformara-se numa bobagem passageira diante da massa dura do real. Era difícil voltar, admitir que tudo aquilo havia passado. Passou, dizia sua irmã, sussurrando, quando a despertava de um pesadelo. Briony perdera seu poder demiúrgico de criação, mas era só naqueles momentos de retorno que a perda se tornava evidente; parte do fascínio do devaneio era a ilusão de que fosse impossível resistir à sua lógica: obrigada pela rivalidade entre nações a competir no nível mais elevado com os melhores do mundo e a aceitar os desafios que eram a conseqüência de ser a melhor de todos no que se faz — no caso, açoitamento de urtigas —, levada a ir além de seus limites para aplacar a multidão delirante, e ser a melhor de todos, ser, mais importante ainda, única. Porém, é claro, fora só ela o tempo todo — ela a autora, ela o assunto, e agora estava de volta ao mundo, não um mundo que ela podia criar, e sim aquele que a criara, e sentia-se diminuindo sob aquele céu de fim de tarde. Estava cansada de estar no quintal, mas ainda não estava preparada para voltar para casa. Então a vida era só aquilo, casa ou quintal? Não havia um terceiro lugar para as pessoas irem? Deu as costas para o templo da ilha e caminhou lentamente pelo gramado perfeito preparado pelos coelhos, em direção à ponte. A sua frente, iluminada pelo sol poente, havia uma nuvem de insetos, cada um deles oscilando a esmo, como se amarrado a um elástico invisível — uma misteriosa dança de acasalamento, ou apenas pura exuberância animal, a desafiar qualquer tentativa sua de encontrar um significado. Num espírito de resistência rebelde, subiu a encosta íngreme, coberta de grama, até a ponte, e chegando ao caminho de cascalho resolveu ficar ali e esperar até que alguma coisa importante acontecesse com ela. Era esse o desafio que estava impondo à existência — permaneceria imóvel ali, não sairia para o jantar, nem mesmo se sua mãe a chamasse. Ficaria simplesmente esperando na ponte, tranqüila e obstinada, até que os acontecimentos, os acontecimentos reais, e não suas próprias fantasias, aceitassem seu desafio e dissipassem sua insignificância.

 

A noitinha, as nuvens de grande altitude para os lados do poente formaram uma camada de um amarelo ralo que foi se intensificando mais e mais, e depois engrossou até que um brilho laranja filtrado se estendeu acima das cristas imensas das árvores do parque; as folhas assumiram um tom pardacento de noz, os galhos entre elas ficaram negros, luzidios, e a grama ressecada copiou as cores do céu. Um fauvista que se especializasse em cores improváveis talvez imaginasse uma paisagem assim, especialmente depois que céu e chão ganharam um brilho avermelhado e os troncos inchados dos velhos carvalhos ficaram tão negros que começaram a parecer azuis. Embora o sol enfraquecesse à medida que se punha, a temperatura dava a impressão de aumentar, pois a brisa que durante todo o dia trouxera um pouco de alívio agora havia cessado, deixando o ar denso e parado.

Essa cena, ou um pequeno fragmento dela, poderia ser vista por Robbie Turner através da clarabóia se ele se levantasse da banheira, dobrasse os joelhos e entortasse o pescoço. Durante todo o dia, seu quarto, o banheiro e o cubículo espremido entre os dois que ele chamava de escritório haviam sido castigados pelo sol que batia no lado sul do telhado do bangalô. Depois que voltou do trabalho, passou mais de uma hora imerso na água tépida enquanto seu sangue e — era a impressão que dava — seus pensamentos aqueciam a água. Sobre sua cabeça, o retângulo emoldurado de céu lentamente percorria seu segmento limitado do espectro, amarelo a laranja, enquanto ele peneirava sentimentos desconhecidos e voltava vezes seguidas a certas lembranças. Nada esmaecera. De vez em quando, uns dois centímetros abaixo da superfície da água, os músculos de seu ventre contraíam-se involuntariamente quando ele relembrava mais um detalhe. Uma gota de água no antebraço dela. Molhado. Uma flor bordada, costurada na parte central do sutiã. Os seios dela, bem separados e pequenos. Nas costas, uma pinta semicoberta por uma alça. Quando ela emergiu da fonte, a visão fugidia do triângulo escuro que a calcinha devia ocultar. Molhada. Ele via, ele se obrigava a ver de novo. Os ossos da pélvis esticando o tecido, fazendo-o destacar-se da pele, a curva profunda da cintura, a brancura surpreendente. Quando estendeu o braço para pegar a saia, o pé, levantado com descuido, revelou um pouco de terra na planta de cada um dos dedinhos delicados, um menor que o outro. Uma outra pinta do tamanho de uma moeda pequena na coxa e algo arroxeado na batata da perna — uma marca, uma cicatriz. Não eram defeitos. Eram enfeites.

Ele a conhecia desde a infância, e nunca havia olhado para ela. Em Cambridge ela veio uma vez a seu alojamento com uma moça de óculos, da Nova Zelândia, e uma colega; ele estava com um amigo de Downing. Passaram uma hora contando piadas nervosas, fumando cigarros. De vez em quando se cruzavam na rua e sorriam. Ela parecia sempre constrangida — é o filho da nossa faxineira, talvez cochichasse para suas amigas depois que se afastava. Ele gostava de deixar claro para todos que não se importava — lá vai a filha da patroa da minha mãe, disse uma vez a um amigo. Tinha suas convicções políticas para se proteger, suas teorias científicas sobre as classes sociais, sua própria autoconfiança um tanto forçada. Eu sou o que sou. Ela era como uma irmã, quase invisível. Aquele rosto comprido e estreito, a boca pequena — se alguma vez tivesse pensado nela de verdade, talvez dissesse que tinha cara de cavalo. Agora percebia que era de uma beleza estranha — algo de esculpido e imóvel no rosto, especialmente em torno dos planos inclinados dos malares, narinas fogosas, lábios cheios e reluzentes em forma de botão de flor. Os olhos eram escuros e pensativos. Era um olhar de estátua, porém os movimentos eram rápidos e impacientes — o vaso não teria se quebrado se ela não tivesse tentado arrancá-lo tão de repente das mãos dele. Ela estava indócil, disso não havia dúvida; sentia-se entediada e confinada na casa dos pais, e logo iria embora.

Robbie teria de falar com ela em breve. Levantou-se por fim da banheira, com um arrepio, sabendo com toda a certeza que estava passando por uma grande transformação. Nu, atravessou o escritório e chegou ao quarto. A cama desfeita, a bagunça das roupas largadas por todos os lados, uma toalha no chão, o calor equatorial do quarto, tudo era de uma sensualidade paralisante. Estendeu-se na cama, com a cara enfiada no travesseiro, e gemeu. A doçura, a delicadeza da sua amiga de infância, que agora corria o perigo de tornar-se inatingível. Tirar a roupa daquele jeito — sim, a tentativa cativante de parecer excêntrica, de ser ousada, tinha algo de exagerado, de caseiro. Agora ela estaria arrependida, torturando-se, e não podia adivinhar o que havia feito com ele. E tudo isso não seria problema nenhum, teria solução, se ela não estivesse tão zangada com ele por causa de um vaso quebrado, que havia se partido na sua mão. Porém ele também amava aquela fúria dela. Virou-se para o lado, os olhos fixos sem enxergar, e se entregou a uma fantasia cinematográfica: ela socava as lapelas do casaco dele antes de se entregar, com um pequeno soluço, ao abrigo de seus braços e deixar que ele a beijasse; não o perdoava, simplesmente entregava os pontos. Robbie contemplou aquela cena várias vezes até retornar ao que era a realidade: ela estava irritada com ele e ficaria mais irritada ainda quando soubesse que ele era um dos convidados para o jantar. Lá fora, àquela luz feroz, não tivera presença de espírito para recusar o convite de Leon. Automaticamente murmurara que sim, e agora teria de enfrentar a irritação dela. Gemeu outra vez, e nem se importava se o ouvissem no andar de baixo; gemeu ao se lembrar dela despindo-se à sua frente — com total indiferença, como se ele fosse um bebê. E claro. Agora ele compreendia com clareza. A intenção fora humilhá-lo. Era esse o fato inegável. Humilhação. Era o que ela quisera lhe fazer. Ela não era só doçura, e Robbie não podia se dar ao luxo de ser condescendente, pois ela era forte, era capaz de levá-lo até onde ele perdia o pé, e em seguida afogá-lo.

Mas talvez — agora estava deitado de costas — aquela raiva não devesse ser levada a sério. Não seria teatral demais? Certamente ela tinha uma intenção melhor, apesar da raiva. Apesar da raiva, queria mostrar-lhe como era bonita, queria prendê-lo a ela. Como podia acreditar numa idéia tão interes-seira, nascida da esperança e do desejo? Tinha de acreditar. Cruzou as pernas, pôs as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, sentindo a pele esfriar à medida que secava. O que diria Freud? Que tal essa: ela ocultou o desejo inconsciente de exibir-se para ele por trás de um acesso de raiva. Esperança patética! Aquilo era uma castração, uma condenação, e o que ele estava sentindo agora, essa tortura, era o castigo por ter quebrado aquele vaso ridículo. Ele nunca mais deveria vê-la. Precisava vê-la naquela noite. Não tinha opção, de qualquer modo — estava indo embora. Ela o desprezaria por comparecer. Ele deveria ter recusado o convite de Leon, mas no momento em que ele fora feito seu coração batera mais depressa, e o sim murmurado escapara de seus lábios. Ele estaria na mesma sala que ela naquela noite, e o corpo que vira, os sinais, a brancura, a mancha arroxeada, estariam ocultos pelas roupas. Só ele saberia, e Emily também, é claro. Mas só ele estaria pensando naquelas coisas. E Cecília não falaria com ele, não olharia para ele. Mesmo isso seria melhor do que estar deitado ali gemendo. Não, seria pior, mas assim mesmo ele queria. Precisava. Queria que fosse pior.

Por fim levantou, vestiu-se, ainda que não por completo, entrou no escritório e sentou-se diante da máquina de escrever, pensando na carta que deveria escrever para ela. Tal como o quarto e o banheiro, o escritório ficava sob o ponto mais alto do telhado do bangalô e era pouco mais do que um corredor entre os dois outros cômodos, com um metro e oitenta de comprimento por um e meio de largura. Como nos outros, também ali havia uma clarabóia com esquadria de pinho. Num canto estava empilhado seu equipamento de montanhismo — botas, bastão, mochila de couro. Uma mesa de cozinha riscada por facas ocupava a maior parte do espaço. Robbie reclinou a cadeira para trás e contemplou a mesa como quem contempla a vida. Numa das extremidades havia uma pilha alta, chegando até o teto inclinado, de pastas e cadernos que utilizara a fim de se preparar para os exames finais nos últimos meses. Não precisava mais daquelas anotações, mas estavam associadas a tanto trabalho e tanto sucesso que ainda não conseguira se livrar delas. Por cima daquele material havia alguns mapas que usara em suas caminhadas, do Norte de Gales, Hampshire e Surrey, e da caminhada que desistira de fazer até Istambul. Havia também uma bússola com espelho quebrado, que usara uma vez para ir até Lulworth Cove sem utilizar mapas.

Atrás da bússola estavam os Poemas de Auden e Um rapaz de Shropshíre, de Housman. Na outra extremidade da mesa havia vários livros de história, tratados de teoria e manuais práticos de paisagismo. Em cima de dez poemas datilografados, uma carta de rejeição da revista Críteríon, impressa, porém rubricada pelo próprio sr. Eliot. Mais perto da cadeira ficavam os livros referentes ao novo interesse de Robbie. A Anatomia, de Gray, estava aberta ao lado de um bloco grande que continha seus próprios desenhos. Havia decidido desenhar e memorizar os ossos da mão. Tentava se distrair repetindo seus nomes agora, em voz baixa: capitato, hamato, piramidal, falange média... O melhor desenho que conseguira fazer até o momento, a tinta e lápis de cor, um corte transversal do esôfago e das vias respiratórias, estava preso com percevejo num caibro acima da mesa. Num caneco sem asa ficavam todas as canetas e os lápis. A máquina de escrever era uma Olympia razoavelmente nova, presente de Jack Tallis quando ele completara vinte e um anos, ocasião festejada com um almoço na biblioteca da casa. Leon, como o pai, fizera um discurso, e Cecilia certamente estava presente. Mas Robbie não conseguia lembrar se havia trocado alguma palavra com ela. Seria por isso que ela estava zangada agora, por ele tê-la ignorado por tantos anos? Mais uma esperança patética.

Perto da borda da mesa, várias fotografias: o elenco de Noite de Reis no gramado da faculdade, ele a caráter, no papel de Malvolio, com ligas cruzadas nas pernas. Muito apropriado. Havia uma outra foto de grupo, ele e as trinta crianças francesas a quem dera aula num colégio interno perto de Lille. Numa moldura de metal estilo belle époque, tingida de verdete, uma foto de seus pais, Grace e Ernest, três dias antes do casamento. Atrás deles via-se a ponta de um carro — que certamente não era deles — e, mais ao longe, um forno para lúpulo atrás de um muro de tijolo. A lua-de-mel fora boa, Grace sempre contava, duas semanas colhendo lúpulo com a família do marido, dormindo num trailer de ciganos estacionado num pátio. Seu pai estava com uma camisa sem colarinho. O lenço em torno do pescoço e a corda em lugar de cinto prendendo a calça de flanela talvez fossem toques ciganos de araque. A cabeça e o rosto eram redondos, mas o efeito não era de todo jovial, pois o sorriso que ele dirigia à câmara fotográfica não era suficiente para descerrar os lábios, e em vez de segurar a mão de sua jovem noiva ele estava de braços cruzados. Ela, em contraste, apoiava-se nele, a cabeça sobre seu ombro, segurando-lhe a camisa na altura do cotovelo, numa posição desajeitada, com as duas mãos. Grace, sempre bem-disposta, bem-humorada, sorria pelos dois. Mas a boa disposição e a bondade não lhe bastariam. Ernest dava a impressão de que estava com a cabeça em outro lugar, já antevendo aquele verão, sete anos depois, em que abandonaria o emprego de jardineiro na casa dos Tallis, abandonaria o bangalô, sem bagagem, sem nem sequer um bilhete de despedida na mesa da cozinha, deixando a mulher e o filho de seis anos pensando o resto da vida no fim que ele teria levado.

Espalhados entre as pilhas de notas de aula, paisagismo e anatomia havia diversos cartões-postais e cartas: contas não pagas do alojamento em Oxford, cartas de professores e amigos parabenizando-o pelo diploma de primeira classe, que ainda lhe dava prazer reler, e outras que perguntavam, sem muita ênfase, o que ele faria agora. A mais recente, rabiscada com tinta marrom em papel timbrado de Whitehall, era um bilhete em que Jack Tallis concordava em ajudá-lo a custear os estudos de medicina. Havia formulários, num total de vinte páginas, e manuais grossos, impressos com letras pequenas, de faculdades em Edimburgo e Londres, textos metódicos e exigentes que pareciam prenunciar um novo tipo de rigor acadêmico. Porém naquele momento o que eles representavam era não uma aventura e um recomeço, e sim o exílio. Robbie já via em sua mente a rua feia, longe dali, o cubículo recoberto de papel de parede com flores, o guarda-roupa sombrio, a colcha de algodão, os novos amigos empolgados, quase todos mais moços que ele, os tanques de formol, os auditórios cheios de ecos — e, em tudo aquilo, a ausência de Cecília.

Pegou, em meio aos livros sobre paisagismo, o volume dedicado a Versailles que tomara emprestado na biblioteca dos Tallis. Foi no dia em que pela primeira vez percebeu o constrangimento que sentia na presença dela. Ajoelhando-se para retirar os sapatos junto à porta da frente, deu-se conta do estado em que estavam suas meias — furadas na ponta e no calcanhar, talvez até fedorentas — e, num impulso, tirou-as. Sentia-se um perfeito idiota, andando atrás dela pelo hall e entrando na biblioteca descalço. Só pensava em sair o mais rápido possível. Havia escapulido pela cozinha, tendo de pedir a Danny Hard-man que desse a volta na casa até a frente para pegar seus sapatos e suas meias.

Ela provavelmente não teria lido aquele tratado sobre as instalações hidráulicas de Versailles, escrito por um dinamarquês do século XVIII que louvava em latim o gênio de Le Nôtre. Com a ajuda de um dicionário, Robbie havia conseguido ler cinco páginas numa manhã; então desistira e resolvera se contentar com as ilustrações. Não era o tipo de livro que agradaria a ela, ou a qualquer outra pessoa, na verdade, porém ela o havia pegado para ele, subindo na escadinha da biblioteca, e em algum lugar naquela superfície de couro estavam as suas impressões digitais. Contra sua própria vontade, levou o livro à altura do nariz e respirou fundo. Poeira, papel velho, cheiro de sabonete em suas próprias mãos, mas nada dela. Como chegara àquele ponto, àquele estado avançado de fetichismo do objeto amoroso? Freud certamente teria algo a dizer sobre o assunto em seus Três ensaios sobre a sexualidade. E também Keats, e Shakespeare, e Petrarca, e todo mundo, e mais o Romance da Rosa. Ele passara três anos estudando, distanciado, os sintomas, que lhe pareciam simples convenções literárias, e agora, na solidão, como um cortesão com um traje cheio de babados e plu-mas na entrada de um bosque a contemplar um lenço caído no chão, estava adorando os vestígios dela — não um lenço, mas as impressões digitais! — ao mesmo tempo em que sofria o desdém de sua dama.

Apesar disso, quando colocou uma folha de papel na máquina de escrever não esqueceu o papel-carbono. Pôs a data, a saudação, e logo deu início a um pedido de desculpas por ter agido "de modo desajeitado e estouvado". Então parou. Deveria demonstrar algum sentimento? Nesse caso, em que nível?

"Se isso servir de desculpa, foi só recentemente que me dei conta de que fico um pouco atordoado na sua presença. Nunca antes entrei descalço na casa de uma pessoa. Só pode ser o calor!"

Como parecia superficial aquela frivolidade protetora. Ele parecia um tuberculoso fingindo que está apenas resfriado. Deu duas linhas em branco e reescreveu: "Sei que como desculpa é insuficiente, mas nos últimos tempos percebo que fico um pouco atordoado na sua presença. Que idéia foi essa a minha, de entrar descalço na sua casa? E quando foi que eu quebrei a beira de um vaso antigo antes?". Repousou as mãos no teclado enquanto enfrentava o impulso de datilografar o nome dela outra vez. "Cee, acho que a culpa não é do calor!" Agora o tom de humor fora substituído pelo melodrama, ou pelo queixume. As perguntas retóricas tinham algo de repulsivo; o ponto de exclamação era o primeiro recurso daqueles que gritam para se exprimir com mais clareza. Ele só perdoava essa pontuação nas cartas de sua mãe, onde cinco exclamações enfi-leiradas indicavam uma piada das boas. Ele girou o tambor da máquina e datilografou um "x". "Cee, acho que a culpa não é do calor." Agora o humor desaparecera, e um toque de autoco-miseração se insinuara. Seria necessário recolocar o ponto de exclamação. Claramente, a função do tal ponto não era apenas a de aumentar o volume.

Robbie ficou mais quinze minutos mexendo no rascunho e por fim colocou folhas em branco na máquina e passou-o a limpo. As linhas cruciais ficaram assim: "Você poderia pensar que enlouqueci — por entrar na sua casa descalço, ou por quebrar seu vaso antigo. A verdade é que me sinto um pouco tonto e aparvalhado na sua presença, Cee, e acho que a culpa não é do calor! Você me perdoa? Robbie". Então, após alguns momentos de devaneio, com a cadeira inclinada para trás, em que ficou a pensar na página em que sua Anatomia tendia a se abrir nos últimos dias, recolocou a cadeira no lugar e, antes que conseguisse se conter, datilografou: "Em meus sonhos, beijo tua boceta, tua boceta úmida. Em meus pensamentos, passo o dia inteiro fazendo amor contigo".

Pronto — estragara tudo. A carta estava estragada. Tirou a folha da máquina, colocou-a de lado e escreveu sua carta a mão, certo de que o toque pessoal era adequado à ocasião. Consultou o relógio e se lembrou de que antes de sair devia engraxar os sapatos. Levantou da cadeira com cuidado para não dar uma cabeçada no caibro.

Não ficava constrangido em situações sociais — o que, para algumas pessoas, era uma impertinência. Uma vez, num jantar em Cambridge, quando se fez silêncio de repente na mesa, um homem que não gostava de Robbie perguntou-lhe bem alto a respeito de seus pais. Encarando-o, ele respondeu, com uma voz agradável, que seu pai havia abandonado a família muitos anos antes e que sua mãe era faxineira e complementava sua renda trabalhando de vez em quando como vidente. Disse isso com o tom de quem tolera com bom humor a ignorância alheia. Deu mais alguns detalhes e terminou perguntando delicadamente a respeito dos pais de seu interlocutor. Segundo alguns, era a inocência, ou o desconhecimento do mundo, que protegia Robbie; ele era uma espécie de santo, capaz de atravessar, sem se queimar, salões que eram como brasas acesas. A verdade, que Cecília conhecia, era mais simples. Ele passara a infância entre o bangalô e a casa-grande. Jack Tallis era seu protetor, Leon e Cecília eram seus melhores amigos, pelo menos até ele entrar para o colégio preparatório. Na universidade, onde Robbie descobriu que era mais inteligente que muitas das pessoas a sua volta, sua libertação foi completa. Não precisava nem sequer exibir arrogância.

Grace Turner adorava lavar suas roupas — era só assim, e preparando-lhe as refeições, que ela podia demonstrar o amor materno quando seu único filhote já estava com vinte e três anos —, porém Robbie fazia questão de engraxar seus sapatos ele próprio. Com uma camiseta branca e a calça do terno, desceu a escada curta e reta só de meias, com os borzeguins pretos na mão. Junto à porta da sala havia um espaço estreito que terminava com a porta de vidro fosco da entrada da frente, atravessada por uma luz difusa alaranjada que projetava um padrão vivido de hexágonos no papel de parede bege e verde-oliva. Robbie deteve-se com uma das mãos na maçaneta, surpreso com aquela transformação, e depois entrou. O ar da sala parecia úmido e quente, um pouco salgado. Certamente uma sessão havia acabado de terminar. Sua mãe estava no sofá, com os pés para cima, os chinelos pendurados nas pontas dos pés.

"A Molly esteve aqui", disse ela, aprumando-se para recebê-lo. "E, olhe, uma boa notícia: vai dar tudo certo com ela."

Robbie pegou o estojo de engraxar sapatos na cozinha, sentou-se na poltrona mais próxima a sua mãe e estendeu sobre o tapete uma página do Daily Sketch de três dias antes.

"A senhora fez bem", comentou. "Eu vi que a senhora estava trabalhando e fui tomar um banho."

Ele sabia que devia sair logo, devia estar engraxando os sapatos, mas em vez disso jogou o corpo para trás e se espregui-çou, esticando o corpo comprido, e bocejou.

"Limpando gramado! Que diabo estou fazendo com a minha vida?"

Havia mais humor do que angústia no tom de sua voz. Cruzou os braços e ficou olhando para o teto enquanto massa-geava um pé com o dedão do outro.

Sua mãe olhava para o espaço acima da cabeça dele. "Ora, que história é essa? Aconteceu alguma coisa. O que é que você tem? E não vá me dizer que não é nada."

Grace Turner passara a trabalhar como faxineira dos Tallis uma semana depois do desaparecimento de Ernest. Jack Tallis não tinha coragem de despedir uma mulher jovem com um filho pequeno. Encontrou no vilarejo um jardineiro e faz-tudo que não precisava dormir no emprego. Todos imaginaram que Grace ficaria no bangalô mais um ano ou dois, depois se casaria de novo e iria embora. Sua simpatia e sua habilidade como faxineira — tinha uma grande dedicação pela superfície das coisas, era o comentário jocoso da família — a tornaram popular, porém o que a salvou — a ela e a Robbie — foi a paixão que despertou em Cecilia, então com seis anos, e Leon, com oito. Nas férias escolares, Grace tinha permissão para vir trabalhar com seu filho, que estava com seis anos também. Robbie passou a infância com pleno acesso ao quarto das crianças e aos outros cômodos em que elas podiam entrar, bem como ao quintal. Para subir nas árvores, seu companheiro era Leon, e Cecilia era a ir mãzinha que lhe dava a mão, confiante, fazendo-o sentir-se imensamente sábio. Alguns anos depois, quando Robbie ganhou a bolsa de estudos para o colégio preparatório, Jack Tallis deu o primeiro passo em sua longa carreira de protetor, custeando o uniforme e os livros. Foi nesse ano que nasceu Briony. Após o parto difícil, Emily passou um bom tempo doente. Grace foi tão prestativa que sua posição ficou garantida: no Natal daquele ano — 1922 —, Leon, de cartola e calça de montaria, atravessou o quintal coberto de neve e foi levar ao bangalô o envelope verde que lhe entregara o pai. A carta do advogado informava a Grace que o bangalô agora lhe pertencia, independentemente de ela continuar trabalhando para os Tallis. Porém ela não largou o emprego e, quando as crianças cresceram, voltou a trabalhar como faxineira, responsabilizando-se pelos polimentos mais caprichados.

A respeito de Ernest, sua teoria era que ele tinha ido para a guerra com um nome falso e jamais voltara. Pois, se não havia sido assim, a falta de curiosidade a respeito do filho era desumana. Muitas vezes, nos minutos que tinha para pensar todos os dias quando caminhava do bangalô para a casa, refletia a respeito dos acidentes felizes de sua existência. Ernest sempre lhe inspirou um pouco de medo. Talvez não tivessem sido tão felizes juntos quanto ela fora sozinha com seu adorado filho gênio, naquela casinha que era dela. Se o sr. Tallis fosse uma pessoa diferente... Algumas das mulheres que lhe pagavam um xelim para saber alguma coisa a respeito do futuro haviam sido abandonadas pelos maridos, e muitas mais haviam ficado viúvas com a guerra. Aquelas mulheres levavam uma vida apertada, e por pouco Grace não tivera o mesmo destino que elas.

"Nada", disse Robbie, respondendo à pergunta da mãe. "Não tenho nada, não." Enquanto pegava uma escova e uma lata de graxa, comentou: "Quer dizer que a Molly tem um belo futuro pela frente".

"Vai casar de novo dentro de cinco anos. E vai ser muito feliz. Um homem do Norte, formado."

"Ela merece."

Permaneceram num silêncio agradável; Grace ficou a vê-lo limpar os sapatos com uma flanela amarela. Os músculos das faces, junto aos malares bonitos, se contraíam com cada movimento, e os dos antebraços se abriam e mudavam de posição, formando padrões complicados sob a pele. Ernest devia ter alguma coisa de bom para lhe dar um menino como aquele.

"Quer dizer que você vai sair."

"O Leon chegou na hora exata em que eu estava vindo embora. Estava com o tal amigo, a senhora sabe, o milionário do chocolate. Me convenceram a ir jantar com eles."

"Ah, passei a tarde toda limpando a prataria. E arrumando o quarto dele."

Robbie pegou os sapatos e pôs-se de pé. "Quando eu olhar a minha cara na colher, só vou ver a senhora."

"Se apronte logo. As suas camisas estão penduradas na cozinha"

Ele pôs as coisas no estojo e guardou-o, depois escolheu uma camisa de linho creme das três que estavam no cabide. Voltou à sala a caminho da porta da frente, mas a mãe queria detê-lo mais um pouco.

"E os filhos dos Quincey, coitadinhos. O menino que molhou a cama e tudo o mais. Pobrezinhos."

Robbie deteve-se à porta e deu de ombros. Passara pela piscina e os vira, gritando e rindo no calor da tarde. Teriam enfiado o carrinho de mão de Robbie no trecho fundo se ele não os tivesse impedido. Danny Hardman estava lá também, olhando de esguelha para a irmã deles em vez de trabalhar.

"Eles vão sobreviver", retrucou.

Impaciente para sair, subiu as escadas três degraus de cada vez. De volta em seu quarto, terminou de se vestir às pressas, assobiando desafinado enquanto se abaixava diante do espelho do armário para passar brilhantina no cabelo e penteá-lo. Não tinha nenhum ouvido para música, não conseguia dizer se uma nota era mais aguda ou mais grave que a outra. Agora que se comprometera a ir ao jantar, sentia-se animado e, curiosamente, livre. A coisa não podia ficar pior do que já estava. Com gestos metódicos, deliciando-se com sua própria eficiência, como quem se prepara para uma viagem ou incursão militar perigosa, realizou todas as pequenas tarefas — localizou as chaves, encontrou uma nota de dez xelins dentro da carteira, escovou os dentes, bafejou na mão em concha para sentir seu próprio hálito, pegou a carta em sua mesa, dobrou-a e colocou num envelope, encheu a cigarreira e testou o isqueiro. Pela última vez, olhou-se no espelho. Expôs as gengivas, virou-se de perfil e olhou por cima dos ombros para ver sua própria imagem. Por fim apalpou os bolsos e desceu as escadas, novamente três degraus de cada vez, gritou um até logo para a mãe e saiu pelo caminho estreito, pavimentado com tijolos, que passava por entre os canteiros de flores e terminava num portão na cerca.

Em anos futuros, ele pensaria muitas vezes naquele momento em que tomou o atalho que passava por um canto do bosque de carvalhos e se encontrava com o caminho principal na curva que dava para o lago e a casa. Não estava atrasado, e no entanto mal conseguia refrear seus passos. Muitos prazeres imediatos, e outros mais longínquos, se confundiam na riqueza daqueles minutos: o crepúsculo avermelhado, já escurecendo, o ar quente e imóvel, saturado de cheiros de grama seca e terra estorricada, seus membros soltos após um dia trabalhando nos jardins, a pele lisa depois do banho, a sensação da camisa e daquele terno, seu único terno. O misto de antegozo e medo que lhe inspirava a idéia de se encontrar com ela era também uma espécie de prazer sensual, e, a envolvê-lo, como um abraço, uma sensação geral de euforia — talvez doesse, era terrivelmente inconveniente, talvez não desse em nada de bom, porém ele descobrira o que era estar apaixonado, e o sentimento o empolgava. Outros afluentes engrossavam a corrente de sua felicidade; ainda lhe dava satisfação pensar no seu diploma de primeira classe — tinha sido o melhor resultado do ano, ele soubera. E agora Jack Tallis confirmava que continuaria a ajudá-lo. Uma nova aventura pela frente, seria isso e não um exílio, de repente tinha certeza. Era bom, era certo ele estudar medicina. Não teria conseguido explicar seu otimismo — estava feliz, e portanto estava fadado a ter sucesso.

Uma palavra encerrava tudo o que ele sentia e explicava por que recordaria com insistência aquele momento depois. Liberdade. Na vida e nos braços e nas pernas. Muitos anos antes, quando ele nem sabia o que era um colégio preparatório, inscreveram-no para um exame que lhe valeu uma bolsa de estudos num deles. Cambridge, para sua delícia, foi a escolha de seu ambicioso diretor. Até mesmo sua área de concentração foi escolhida por um professor carismático. Agora, finalmente, com o exercício de sua vontade, sua vida adulta tivera início. Estava tecendo uma história em que ele próprio era o protagonista, e a cena inicial já causara um certo espanto em seus amigos. O paisagismo não passava de uma fantasia boêmia, além de uma ambição débil — era a conclusão a que chegara, com a ajuda de Freud — de substituir ou ultrapassar seu pai desaparecido. A carreira de professor secundário — dentro de quinze anos, titular da cadeira de inglês, o sr. R. Turner, MA Cambridge — também não fazia parte da história, nem a de professor universitário. Apesar de seu diploma de primeira classe, o estudo da literatura inglesa parecia-lhe agora, em retrospecto, um jogo de salão apaixonante; ler livros e ter opiniões a respeito deles era sem dúvida um complemento desejável de uma vida civilizada. Mas não era o centro, dissesse o que dissesse o dr. Leavis em suas conferências. Não era o sacerdócio necessário, nem o empreendimento mais vital para uma mente inquieta, nem a primeira e a última barreira contra a horda dos bárbaros, como também não era nada disso o estudo da pintura, nem da música, nem da história, nem da ciência. Nas várias palestras a que assistira no seu último ano de curso, Robbie ouvira um psicanalista, um sindicalista comunista e um físico defenderem a primazia de seus respectivos campos com tanta paixão quanto Leavis defendera o seu, e de modo tão convincente quanto ele. Afirmativas semelhantes provavelmente eram feitas com relação à medicina também, mas para Robbie a questão era mais simples e mais pessoal: ele daria vazão a sua natureza prática e a suas aspirações científicas frustradas, desenvolveria habilidades bem mais complexas do que as adquiridas no campo da crítica e, acima de tudo, teria tomado a decisão ele próprio. Alugaria um quarto numa cidade estranha — e começaria.

Havia saído do bosque e chegado ao ponto em que o atalho juntava-se ao caminho principal. A luz fraca do entardecer ampliava a extensão do parque, e o suave brilho amarelo nas janelas, visto do outro lado do lago, fazia com que a casa parecesse quase grandiosa e bela. Ela estava lá dentro, talvez em seu quarto, preparando-se para o jantar — oculta, no fundo da casa, no segundo andar. Com vista para a fonte. Afastou aquelas imagens vividas e diurnas dela, não queria chegar sentindo-se perturbado. As solas duras de seus sapatos estalavam sobre a superfície de macadame como o tiquetaque de um relógio gigantesco, e ele se obrigou a pensar no tempo, esse seu grande tesouro, o luxo de uma fortuna ainda não gasta. Nunca antes tivera tanta consciência de sua juventude, nem experimentara tamanho apetite, tamanha impaciência, para que a história começasse logo. Havia em Cambridge homens que demonstravam agilidade mental como professores, ainda jogavam tênis razoavelmente bem, ainda remavam, e que eram vinte anos mais velhos que ele. Vinte anos no mínimo para desenvolver sua história mais ou menos em seu nível atual de bem-estar físico — quase tanto tempo quanto já vivera até então. Vinte anos depois, estaria na data futurista de 1955. Que coisas importantes ele saberia então que estavam obscuras agora? Ainda lhe restariam mais trinta anos adicionais, para serem vividos num ritmo mais tranqüilo? Imaginou-se em 1962, aos cinqüenta anos de idade, quando estaria velho, mas não tão velho a ponto de ser inútil; pensou que seria um médico calejado e sábio, com histórias secretas, uma fileira de tragédias e sucessos em seu passado. Além de uma pilha de livros, milhares deles, pois haveria de ter um escritório, grande e sombrio, ricamente atulhado de troféus acumulados em toda uma vida de viagens e meditações — plantas raras da floresta tropical, flechas envenenadas, invenções elétricas que não deram certo, figuras esculpidas em pedra-sabão, crânios encolhidos, obras de arte aborígene. Nas estantes, livros de referência de medicina e meditações, sem dúvida, mas também os livros que agora enchiam seu cantinho no sótão do bangalô — os poemas setecentistas que quase o haviam convencido a se tornar paisagista, seu exemplar de Jane Austen de terceira edição, Eliot, Lawrence, Wilfred Owen, as obras completas de Conrad, sua inestimável edição de 1783 de A aldeia de Crabbe, Housman, o exemplar de A dança da morte autografado por Auden. Pois essa era a questão, sem dúvida: ele seria um médico melhor por ter estudado literatura. Que leituras aprofundadas a sua sensibilidade refinada não faria do sofrimento humano, da autodestruição ou do azar que leva os homens à doença! Nascimento, morte e, entre os dois, a enfermidade. Ascensão e queda — esse era o tema do médico, e da literatura também. Estava pensando no romance do século XIX. Tolerância larga e visão abrangente, coração discretamente caloroso e cabeça fria; um médico como ele estaria atento para as configurações monstruosas do destino e para a negação inútil e cômica do inevitável; ele tomaria o pulso enfraquecido, ouviria o último suspiro, sentiria a mão febril começando a esfriar e meditaria, como só fazem os que conhecem a literatura e a religião, sobre a mesquinhez e a nobreza da espécie humana...

Seus passos foram se apressando no silêncio da noitinha de verão, seguindo o ritmo de seus pensamentos exultantes. A sua frente, a cerca de cem metros, estava a ponte, e nela, pensou ele, destacando-se contra a escuridão da estrada, havia um vulto branco que de início parecia fazer parte do parapeito de pedra clara. Quando fixou a vista no vulto, seus contornos se dissolveram, porém mais alguns passos adiante ele assumiu uma forma vagamente humana. Daquela distância não dava para saber se o vulto estava ou não virado para ele. Ele não se movia, e Robbie concluiu que estava sendo observado. Tentou por alguns segundos divertir-se com a idéia de que era um fantasma, mas não acreditava no sobrenatural, nem mesmo naquele ser nada exigente que presidia à igreja normanda do vilarejo. Era uma criança, ele percebia agora, e portanto haveria de ser Briony, com o vestido branco que ele a vira usando naquele mesmo dia. Agora distinguia a menina com clareza; levantou a mão e chamou-a, dizendo: "Sou eu, Robbie", mas ela continuou imóvel.

Quando ele se aproximava da casa, ocorreu-lhe que talvez fosse preferível que sua carta chegasse antes dele. Caso contrário, seria obrigado a entregá-la a Cecília à vista de outras pessoas, talvez da mãe dela, que o tratava com certa frieza desde que ele voltara. Talvez nem conseguisse entregar a carta a Cecilia que se manteria distante. Se Briony entregasse a carta, ela teria tempo de lê-la e pensar a sós. Aqueles minutos a mais talvez a amolecessem.

"Eu queria saber se você podia me fazer um favor", disse Robbie ao aproximar-se da menina.

Ela fez que sim e ficou esperando.

"Será que você podia dar uma corrida e entregar essa carta à Cee?"

Enquanto falava, pôs o envelope na mão de Briony, que o segurou sem dizer palavra.

"Eu estou indo daqui a uns minutos", começou a dizer, mas ela já estava correndo pela ponte. Robbie encostou-se no parapeito e pegou um cigarro enquanto via o vulto de Briony correndo, diminuindo, desaparecendo no lusco-fusco. Era uma idade incômoda para uma menina, pensou ele, satisfeito. Doze, ou seria treze? Perdeu-a de vista por um segundo ou dois, depois viu-a atravessando a ilha, destacando-se contra a massa mais escura das árvores. Em seguida ela sumiu outra vez, e foi só quando reapareceu, já depois da segunda ponte, e estava saindo da estrada para tomar um atalho pelo gramado, que ele estacou de repente, dominado pelo horror e por uma certeza absoluta. Um grito involuntário, sem palavras, escapou-lhe da boca; deu mais alguns passos apressados, hesitou, correu mais um trecho, depois parou de novo, sabendo que era inútil. Não via mais Briony quando, com as mãos em concha ao redor da boca, gritou com força o nome da menina. Também aquilo era inútil. Permaneceu parado, forçando a vista para vê-la — como se isso adiantasse alguma coisa — e forçando a memória também, tentando desesperadamente se convencer de que estava enganado. Mas não estava. A carta escrita à mão ele havia deixado sobre a Anatomia de Gray, seção de esplancnologia, página 1546, a vagi-na. A página datilografada, que ele largara junto à máquina de escrever, fora a que ele havia pegado, dobrado e colocado no envelope. Nem precisava de sutilezas freudianas — a explicação era simples e mecânica: a carta inócua ficara sobre a figura 1236, a gravura de duas páginas que ostentava uma coroa de pêlos pubianos, enquanto o rascunho obsceno estava sobre a mesa, bem à mão. Gritou o nome de Briony mais uma vez, embora tivesse certeza de que àquela altura ela já teria chegado à porta da frente. De fato, segundos depois um losango distante de luz ocre, contendo a silhueta da menina, alargou-se, imobilizou-se, em seguida se estreitou até desaparecer, quando ela entrou na casa e fechou a porta.

 

Em duas ocasiões num intervalo de meia hora, Cecilia saiu do quarto, viu sua própria imagem no espelho de moldura dourada que ficava no alto da escada e, sentindo-se imediatamente insatisfeita, voltou a abrir o armário. Sua primeira escolha tinha sido um vestido preto de crepe da China, o qual, segundo o espelho da penteadeira, lhe emprestava, graças ao corte inteligente, uma certa severidade de formas. O ar de invulnerabilidade era ressaltado pelo negrume dos olhos. Em vez de contrabalançar o efeito com um colar de pérolas, pegou, num momento de inspiração, um outro de azeviche puro. O arco de batom saiu perfeito logo na primeira aplicação. Após inclinar a cabeça em diversos ângulos para apreender visões em tríptico, ela se convenceu de que seu rosto não era comprido demais, ou pelo menos não naquela noite. Havia prometido à mãe passar na cozinha, e Leon estava à sua espera, ela sabia, na sala de estar. Assim mesmo, encontrou tempo, no momento em que ia sair, para voltar à penteadeira e aplicar perfume nas pontas dos cotovelos, um toque jocoso que se harmonizava com seu estado de espírito ao sair de seu quarto e fechar a porta.

Porém o olhar público do espelho no alto da escada, no momento em que ela passou apressada por ele, revelou uma mulher a caminho de um enterro, uma mulher austera, desprovida de alegria, e que, além disso, ostentava uma carapaça negra que lembrava um desses insetos que eram guardados em caixas de fósforos. Um besouro! Era ela no futuro, aos oitenta e cinco anos de idade, com seu traje de luto de viúva. Não hesitou — girou em torno do salto do sapato, também negro, e voltou para o quarto.

Tinha lá suas dúvidas, porque sabia que a cabeça pregava essas peças. Ao mesmo tempo, estava com a cabeça — em todos os sentidos da expressão — no lugar onde ia passar a noite, e tinha de estar em paz consigo própria. Despiu o vestido de crepe negro, largando-o no chão, e, de salto alto e roupa de baixo, começou a examinar as possibilidades contidas em seu guarda-roupa, sabendo que os minutos estavam passando. Era detestável a idéia de parecer austera. Queria sentir-se relaxada e, ao mesmo tempo, contida. Acima de tudo, queria dar a impressão de que não havia gastado mais do que um momento pensando em sua aparência, e isso levaria tempo. Lá embaixo, um nó de impaciência estaria apertando-se cada vez mais na cozinha, enquanto os minutos que ela planejava passar a sós com seu irmão se esgotavam. Logo sua mãe apareceria para discutir quem ficaria sentado onde, Paul Marshall desceria de seu quarto e seria necessário fazer sala para ele, e então Robbie estaria chegando. Como podia ela pensar com clareza?

Correu a mão por uns poucos metros de história pessoal, sua breve crônica do gosto em matéria de roupas. Lá estavam os vestidos de melindrosa de sua adolescência, que agora lhe pareciam ridículos, frouxos, assexuados, e, embora um estivesse com manchas de vinho e outro com um furo de cigarro — seu primeiro cigarro —, não tinha coragem de se desfazer deles. Ali estava o vestido com as primeiras tímidas ombreiras, depois outros, mais decididos, como irmãs mais velhas e mus-culosas, a deixar de lado os anos da infância, redescobrindo cinturas e curvas, descendo as bainhas com um desprezo auto-suficiente pelas esperanças dos homens. Seu melhor vestido, o mais recente, comprado para comemorar o fim dos exames finais, antes de ela ficar sabendo que recebera apenas um mísero diploma de terceira classe, era um soirée verde-escuro fren-te-única, justo, com alças de amarrar no pescoço. Chique demais para estrear em casa. Continuou a correr a mão pelos vestidos e encontrou um de seda moiré com blusa plissada e barra ondulada — uma escolha prudente, pois o tom de rosa era suave e discreto o bastante para usar à noite. O espelho triplo concordou. Cecilia trocou os sapatos, substituiu o azeviche pelas pérolas, retocou a maquiagem, ajeitou o cabelo, pôs um pouco de perfume na base do pescoço, pois agora uma parte maior dele estava exposto, e voltou ao corredor menos de quinze minutos depois.

Algumas horas antes ela vira o velho Hardman andando pela casa com uma cesta de vime, trocando lâmpadas elétricas. Talvez agora a iluminação no alto da escada estivesse mais forte, pois ela nunca tivera antes esse tipo de problema com o espelho de lá. Quando ainda estava a quarenta passos dele, percebeu que ele não a deixaria passar; o tom de rosa era de uma palidez inocente, a cintura estava alta demais, o vestido brilhava como uma roupa de festa de uma menina de oito anos de idade. Só faltavam os botões em forma de coelhinhos. A medida que foi se aproximando, uma irregularidade na superfície do velho espelho encolheu sua imagem, e ela viu à sua frente a criança de quinze anos antes. Parou e, para testar, levou as mãos à cabeça e segurou chumaços de cabelo. O mesmo espelho já a teria visto descendo a escada assim em dezenas de ocasiões, a caminho de tantos aniversários de amigas. Não ajudaria nem um pouco a seu estado de espírito descer daquele jeito, parecida — ou julgando-se parecida — com Shirley Temple.

Com mais resignação do que irritação ou pânico, voltou ao quarto. Não havia confusão em sua cabeça: aquelas impressões excessivamente vividas e nada confiáveis, suas inseguranças, a clareza visual invasiva e as diferenças misteriosas que haviam recoberto o familiar não passavam de continuações, variações do modo como estivera se sentindo no decorrer de todo o dia. Sentindo, mas preferindo não pensar. Além disso, sabia o que devia fazer, desde o começo que sabia. Só possuía uma única roupa de que gostava mesmo, e era essa que devia usar. Largou o vestido rosa em cima do preto e, livrando-se com desprezo daquela pilha de roupas, pegou o vestido, o frente-única verde comprado para comemorar as provas finais. Enquanto o vestia, aprovou a pressão firme do corte em viés através da seda da anágua, e sentiu-se lisa, inexpugnável, escorregadia, segura de si; foi uma sereia quem emergiu à sua frente no espelho de corpo inteiro. Conservou o colar de pérolas, calçou novamente os sapatos pretos de salto alto, mais uma vez retocou o cabelo e a maquiagem, desistiu de mais um pouco de perfume e então, ao abrir a porta, deu um grito de pavor. Alguns centímetros à sua frente havia um rosto e um punho erguido. Sua percepção imediata e apavorante foi de uma perspectiva radical, à Picasso, em que lágrimas, olhos vermelhos e inchados, lábios molhados e nariz por assoar se confundiam numa imagem úmida e avermelhada de sofrimento. Recuperou-se, pôs as mãos nos ombros ossudos e delicadamente virou o corpinho de lado para poder ver a orelha esquerda. Era Jackson, prestes a bater à sua porta. Na outra mão havia um pé de meia cinza. Dando um passo para trás viu que ele estava de camisa branca e calças curtas cinza, roupas bem passadas, porém descalço.

"Pimpolho! O que foi?"

Por um momento ele não conseguiu falar. Limitou-se a levantar a meia e apontar para o lado. Cecilia pôs a cabeça para fora e olhou para a extremidade do corredor, onde Pierrot, também descalço, também levantava um pé de meia, e os observava.

"Então cada um tem um pé."

O menino fez que sim e engoliu, e por fim conseguiu falar. "A senhorita Betty disse que a gente vai apanhar se não descer agora pra tomar chá, mas a gente só tem um par de meias."

"E vocês estão brigando por isso."

Jackson concordou com a cabeça, enfático.

Enquanto caminhava com os gêmeos em direção ao quarto deles, um dos meninos tomou-lhe a mão, depois o outro fez o mesmo, e Cecilia constatou, surpresa, que aquele gesto a contentara muito. Não conseguiu deixar de pensar no vestido.

"Por que não pediram pra irmã de vocês ajudar?"

"Ela não está falando com a gente agora."

"E por que não?"

"Ela odeia a gente."

O quarto dos meninos era uma bagunça deplorável de roupas, toalhas molhadas, cascas de laranja, pedaços rasgados de uma revista em quadrinhos dispostos ao redor de uma folha de papel, cadeiras viradas para cima parcialmente cobertas por mantas, travesseiros fora do lugar. Entre as camas havia uma mancha úmida grande no carpete, no centro da qual havia um sabonete e muito papel higiênico molhado. Uma das cortinas estava torta, e, embora as janelas estivessem descerradas, o ar estava úmido, como se respirado muitas vezes. Todas as gavetas do armário estavam abertas e vazias. A impressão era de tédio por ficar dentro de casa pontuado por disputas e projetos — pular de uma cama para outra, montar um acampamento começar a inventar um jogo de tabuleiro e desistir no meio. Ninguém na casa dos Tallis estava tomando conta dos gêmeos Quincey, e para disfarçar seu sentimento de culpa Cecília disse, num tom alegre: "Não vamos conseguir encontrar nada no meio dessa bagunça".

Começou a restaurar a ordem, refazendo as camas, descalçando os sapatos de salto alto e subindo numa cadeira para endireitar a cortina, incumbindo os gêmeos de pequenas tarefas realizáveis. Obedeciam a suas ordens ao pé da letra, porém trabalhavam em silêncio, cabisbaixos, como se Cecília quisesse castigá-los e não salvá-los, movida pela severidade e não pela bondade. Estavam com vergonha do quarto. No alto da cadeira, com seu vestido verde justo, contemplando as cabecinhas ruivas a zanzar de um lado para o outro, cumprindo suas tarefas, ela pensou como deveria ser desanimador e apavorante para eles viver sem amor, criar uma nova vida a partir do nada numa casa estranha.

Com dificuldade, pois não dava para dobrar muito os joelhos, desceu da escada, sentou-se na beira de uma das camas e fez sinal para que os dois se sentassem a seu lado. Mas os meninos continuaram em pé, olhando para ela, na expectativa. Cecília dirigiu-se a eles no tom de voz levemente cantado de uma professora de maternal que ela admirara no passado.

"A gente não precisa chorar por causa de uma meia perdida, não é mesmo?"

Disse Pierrot: "A gente queria mesmo era ir pra casa".

Sentindo-se repreendida, retomou o tom de uma conversa entre adultos. "No momento isso é impossível. A mãe de vocês está em Paris com... está tirando umas feriazinhas, e o pai está trabalhando na universidade, de modo que vocês vão ter que ficar aqui por uns tempos. Se nós não temos dado atenção a vocês, peço desculpas. Mas até que vocês se divertiram um bocado lá na piscina..."

Disse Jackson: "A gente queria trabalhar na peça, aí a Briony sumiu e até agora não voltou".

"Você tem certeza?" Mais um motivo de preocupação. Briony já deveria ter voltado havia muito tempo. Isso, por sua vez, lhe trouxe à mente as pessoas que a aguardavam lá embaixo: a mãe, a cozinheira, Leon, a visita, Robbie. Até mesmo o calor da noite que entrava no quarto pelas janelas abertas atrás dela lhe impunha responsabilidades; aquela era o tipo de noite de verão com que as pessoas passavam o ano todo sonhando, e agora que tinha chegado, finalmente, com sua fragrância pesada, havia toda uma série de exigências e pequenas desgraças que a impediam de aproveitá-la. Mas era preciso aproveitá-la. Seria um pecado não fazê-lo. Seria um paraíso tomar um gim-tônica lá fora, no terraço, com Leon. Não era culpa sua se a tia Hermione havia fugido de casa com um pateta que pronunciava sermões no rádio toda semana. Chega de tristeza. Cecilia levantou-se e juntou as mãos.

"É, a coisa da peça é mesmo uma pena, mas a gente não pode fazer nada. Vamos achar umas meias pra vocês e seguir em frente."

Após uma busca, constatou-se que as meias que os gêmeos haviam trazido no corpo estavam sendo lavadas e que, no arrebatamento da paixão, a tia Hermione só havia colocado mais um par na mala. Cecilia foi até o quarto de Briony e remexeu a gaveta até encontrar as meias menos femininas de todas — meias soquete brancas, com morangos vermelhos e verdes na bainha. Imaginou que haveria agora uma briga pelas meias cinza, mas foi o contrário; para evitar mais sofrimentos, foi obrigada a voltar ao quarto de Briony para pegar outro par. Dessa vez foi até a janela e contemplou o fim de tarde, pensando onde estaria sua irmã. Afogada no lago, violentada por ciganos, atropelada por um automóvel, pensou ritualmente, com base no sólido princípio segundo o qual a realidade nunca coincidia com a imaginação; era um método eficiente de excluir as piores possibilidades.

De volta ao quarto dos meninos, ajeitou o cabelo de Jack-son com um pente umedecido na água de um vaso de flores, segurando com força o queixo do menino com o indicador e o polegar enquanto traçava sobre seu couro cabeludo um risco fino e reto. Pierrot aguardou sua vez pacientemente, e depois, sem uma palavra, os dois desceram correndo juntos para enfrentar Betty.

Cecilia seguiu-os num passo mais lento, passando pelo espelho crítico com uma olhadela, completamente satisfeita com o que viu. Ou melhor, importando-se menos, porque o episódio dos gêmeos havia alterado seu estado de espírito; seus pensamentos haviam se ampliado de modo a incluir uma decisão vaga, que tomou forma sem nenhum conteúdo específico e não implicava nenhum plano em particular: ela precisava ir embora. A idéia era tranqüilizadora e agradável, e nem um pouco desesperada. Chegou ao patamar do primeiro andar e deteve-se. Lá embaixo, sua mãe, cheia de culpa por haver se ausentado da família, estaria espalhando ansiedade e confusão por toda parte. A isso seria acrescentada a notícia, se fosse de fato o caso, de que Briony estava sumida. Tempo e preocupação seriam consumidos até que ela fosse encontrada. Alguém telefonaria do departamento para dizer que o sr. Tallis tivera de trabalhar até mais tarde e dormiria na cidade. Leon, que tinha o puro dom de evadir-se das responsabilidades, não assumiria o papel do pai. A sra. Tallis seria a substituta oficial, mas em última análise o sucesso da noite dependeria de Cecilia. Tudo isso estava claro, e nem valia a pena lutar contra essas coisas — ela não ia poder se entregar à delícia de uma noite de verão, não teria uma longa conversa com Leon, não caminharia descalça pelo gramado sob as estrelas à meia-noite. Sentiu sob sua mão o pinho escurecido dos balaústres vagamente neogóticos, de uma solidez e uma falsidade inabaláveis. Acima de sua cabeça pendia por três correntes um enorme candelabro de ferro fundido que jamais fora aceso desde que ela se entendia por gente. Usavam-se, em vez dele, duas luminárias na parede, ornadas com borlas, por trás de quartos de círculo feitos de imitação de pergaminho. A luz débil e amarelenta dessas luminárias, Cecília atravessou rapidamente o patamar e olhou de relance em direção ao quarto da mãe. A porta entreaberta e a coluna de luz que se espalhava pelo carpete do corredor confirmavam que Emily Tallis havia se levantado. Cecília voltou à escada e hesitou outra vez; relutava em descer. Mas não tinha outra opção.

Não havia nada de novo nos preparativos, e ela não se angustiou. Havia dois anos que seu pai desaparecera por trás dos misteriosos documentos de consulta do Ministério do Interior. Sua mãe sempre vivera na terra de sombras dos doentes, Briony sempre exigira os cuidados maternos da irmã, Leon sempre fora livre para fazer o que quisera, e Cecília o amava por isso. Não imaginara que seria tão fácil reassumir os antigos papéis. Cambridge lhe causara uma mudança fundamental, e ela se julgava imune. Ninguém em sua família, porém, percebera a transformação por ela sofrida, e ela não conseguira resistir ao poder das expectativas habituais. Não punha a culpa em ninguém, mas passara o verão inteiro em casa, estimulada por uma vaga idéia de estar restabelecendo uma ligação importante com a família. Porém as conexões nunca tinham sido rompidas, ela percebia agora, e além disso seus pais eram ausentes, cada um a sua maneira, Briony vivia imersa em suas fantasias e Leon estava na cidade. Agora chegara a sua hora de partir. Precisava de uma aventura. Um tio e uma tia a tinham convidado para acompanhá-los a Nova York. A tia Hermione estava em Paris. Cecília podia ir para Londres e arranjar um emprego — era o que seu pai esperava dela. O que ela sentia era animação, não inquietação, e não deixaria que aquela noite a frustrasse. Haveria outras noites como aquela, e para aproveitá-las ela teria de estar em outro lugar.

Animada por essa nova certeza — a escolha do vestido adequado certamente ajudara —, atravessou o hall, empurrou a porta forrada de baeta e caminhou com passos largos até a cozinha pelo corredor de ladrilhos xadrezes. Mergulhou numa nuvem em que cabeças sem corpos surgiam em alturas diferentes, como esboços num caderno de artista, e todos os olhos estavam voltados para algo colocado sobre a mesa da cozinha, oculto da vista de Cecília pelas costas largas de Betty. O brilho vermelho à altura dos calcanhares vinha das brasas do forno de duas portas, que naquele exato instante alguém fechou com o pé, com um estrondo e um grito irritado. Um vapor espesso subia de um caldeirão de água fervente ao qual ninguém dava atenção. A ajudante da cozinheira, Doll, uma moça magra do vilarejo, que tinha o cabelo preso num coque austero, esfregava as tampas das panelas na pia, produzindo um ruído mal-humorado, mas também ela estava meio virada para ver o que Betty colocara na mesa. Um dos rostos era de Emily Tallis, o outro de Danny Hardman, o terceiro do pai dele. Flutuando acima dos outros, talvez por terem subido em banquinhos, estavam os rostos de Jackson e Pierrot, muito sérios. Cecília sentia o olhar do jovem Hardman fixo sobre ela. Devolveu o olhar com ferocidade e ficou satisfeita quando o rapaz desviou a vista. O trabalho naquela cozinha fora intenso e prolongado o dia inteiro naquele calor, e havia resíduos por toda parte: o chão de pedra estava grudento de gordura do assado e cascas pisadas; panos de prato encharcados — tributos a trabalhos heróicos já esquecidos - pendiam sobre o fogão como bandeiras militares apodrecidas numa igreja; roçava a canela de Cecília uma cesta cheia até a boca de restos de legumes, que Betty levaria para sua casa para dar ao porco que estava engordando para dezembro. A cozinheira olhou por cima do ombro para ver quem havia entrado, e, antes que ela se virasse para a frente outra vez, Cecilia teve tempo de perceber a fúria naqueles olhos que a gordura das bochechas reduzira a fatias gelatinosas.

"Pode tirar!", gritou ela. Não havia dúvida de que a irritação era dirigida à sra. Tallis. Doll saltou da pia para o fogão, escorregou e quase caiu, pegou dois panos para tirar o caldeirão do fogo. Agora Cecilia pôde ver Polly, a camareira que todos diziam ser meio boba, que ficava até mais tarde quando havia festa. Cecilia contornou Betty para ver o que todo mundo estava vendo — um tabuleiro enorme, enegrecido, recém-tirado do forno, contendo uma porção de batatas assadas que ainda chiavam um pouco. Eram talvez cem ao todo, formando fileiras irregulares cor de ouro pálido, que a espátula de metal de Betty escavava e raspava e virava. No lado de baixo as batatas ostentavam um brilho amarelo mais lustroso, e aqui e ali uma borda se destacava num tom de marrom anacarado, com uma ou outra filigrana delicada a irradiar-se em torno de uma casca rompida. Estavam — ou estavam ficando — perfeitas.

Tendo virado a última fileira, Betty disse: "Então a senhora quer que isso vire uma salada de batatas?".

"Isso mesmo. Corte fora as partes queimadas, retire a gordura, coloque tudo naquela tigela toscana grande, ponha bastante azeite e depois..." Com um gesto vago, Emily indicou uma pilha de frutas junto à porta da despensa, entre as quais talvez houvesse um limão.

Betty falava dirigindo-se ao teto. "A senhora quer uma salada de couve-de-bruxelas?"

"Ora, Betty."

"Uma salada de couve-flor gratinada? Uma salada com molho de rábano?"

"Você está fazendo uma tempestade num copo d'água."

"Uma salada de pudim de pão com manteiga?"

Um dos gêmeos soltou um riso sufocado.

No momento exato em que Cecília previu o que ia acontecer, a coisa começou a acontecer. Betty virou-se para ela, agarrou-a pelo braço e dirigiu-lhe um apelo. "Senhorita Cee, mandaram fazer um assado e a gente passou o dia todo fazendo o assado, num calorão que o sangue da gente quase ferveu."

A cena era nova, os espectadores formavam um elemento diferente, mas o dilema era bem conhecido: como manter a paz sem humilhar sua mãe. Além disso, Cecília tomara a decisão de ir para perto do irmão, no terraço; portanto era importante escolher o lado vitorioso e conseguir uma vitória rápida. Chamou a mãe para um canto, e Betty, que conhecia bem o mecanismo, deu ordens para que todos reassumissem suas funções. Emily e Cecília Tallis estavam junto à porta que dava para a horta.

"Meu amor, está um calor tremendo e ninguém vai me convencer a não querer uma salada."

"Emily, eu sei que está quente demais, mas o Leon está morrendo de saudade dos assados da Betty. Ele não fala noutra coisa. Até para o senhor Marshall ele disse maravilhas do assado."

"Ah, meu Deus", exclamou Emily.

"Eu estou com você. Também não quero comer assado. O melhor é deixar que cada um escolha. Mande a Polly cortar umas alfaces. Tem beterraba na despensa. Mande a Betty cozinhar mais umas batatas e depois deixar esfriar."

"Meu amor, você tem razão. Eu não quero de jeito nenhum decepcionar o Leonzinho."

E assim ficou decidido, e o assado foi salvo. Com tato e dignidade, Betty mandou Doll descascar mais batatas, e Polly saiu para a horta com uma faca.

Quando deixaram a cozinha, Emily pôs os óculos escuros e disse: "Ainda bem que o assunto está resolvido, porque estou preocupada mesmo é com a Briony. Eu sei que ela está chateada. Está lá fora, emburrada, eu vou lá mandar ela entrar".

"Boa idéia. Eu também estava preocupada", disse Cecília. Não se sentia inclinada a convencer a mãe a não se afastar muito do terraço.

A sala de estar, que deslumbrara Cecília naquela manhã com seus paralelogramos de luz, agora estava escura, iluminada por uma única luminária perto da lareira. As portas envidraçadas abertas emolduravam um céu esverdeado, e contra esse fundo destacavam-se, em silhueta, a certa distância, a cabeça e os ombros tão conhecidos de seu irmão. Enquanto atravessava a sala, Cecília ouviu o tilintar de gelo num copo e, saindo no terraço, sentiu um cheiro de poejo, camomila e matricária esmagados, mais forte do que naquela manhã. Ninguém mais se lembrava do nome, nem mesmo da cara, do jardineiro contratado temporariamente alguns anos antes, que resolvera plantar essas ervas nas fendas entre as pedras do calçamento. Na época, ninguém entendeu o que ele tinha em mente. Talvez por isso ele fora demitido.

"Maninha! Estou há uns quarenta minutos aqui fora e já estou ficando alto."

"Desculpe. Cadê o meu drinque?"

Numa mesa de madeira baixa encostada nos fundos da casa havia um lampião a parafina, e à sua volta fora montado um bar improvisado. Finalmente Cecília tinha um copo de gim-tônica na mão. Acendeu um cigarro no do irmão, e os dois brindaram batendo os copos.

"Gostei do vestido."

"Dá pra ver?"

"Dê uma volta. Lindíssimo. Eu tinha me esquecido dessa sua pinta."

"E como está o banco?"

"Chato e agradável. A gente vive pras noites e os fins de semana. Quando é que você vai me visitar?"

Haviam se afastado do terraço, chegando ao caminho de cascalho entre as roseiras. A fonte do tritão surgiu a sua frente — um vulto negro cujo contorno complexo se destacava contra um céu cada vez mais verde à medida que a luz morria. Ouviram o ruído da água, e Cecília teve a impressão de sentir o cheiro também, prateado e forte. Talvez fosse o copo na sua mão.

Disse ela, depois de uma pausa: "Estou quase enlouquecendo aqui".

"Voltou a ser mãe de todo mundo. Sabe, agora tem todo tipo de trabalho que aceita mulher. Pode até fazer concurso pro funcionalismo público. O velho ia ficar satisfeito."

"Com diploma de terceira classe eles não iam me aceitar."

"Depois que a sua vida começa de verdade você vê que esse tipo de coisa não tem a menor importância."

Chegaram à fonte e viraram-se de frente para a casa, permanecendo em silêncio por algum tempo, debruçados sobre o parapeito, bem no lugar onde ela passara aquele vexame. Imprudente, ridículo e acima de tudo vergonhoso. Apenas o tempo, um véu pudico de algumas horas, impediu que seu irmão a visse naquele estado. Mas nada a protegera de Robbie. Ele a vira, ele sempre poderia vê-la, mesmo depois que o tempo reduzisse aquela lembrança a uma história de botequim. Ainda estava irritada com o irmão por tê-lo convidado, mas precisava de Leon, queria compartilhar de sua liberdade. Solícita, pediu que lhe contasse as novidades.

Na vida de Leon — ou melhor, no relato que ele fazia de sua vida — ninguém era mesquinho, ninguém tramava, mentia nem traía. Todos eram de alguma maneira louvados, como se a existência de cada pessoa fosse uma maravilha a ser comemorada. Ele se lembrava da melhor frase de cada amigo seu. Quem ouvia Leon falando ficava mais tolerante com a humanidade e seus defeitos. Todo mundo era, na pior das hipóteses, "um bom sujeito" ou "uma pessoa decente", e jamais se atribuía uma motivação que não fosse coerente com o comportamento explícito. Se havia algum mistério ou alguma contradição num amigo, Leon encarava a coisa por um ângulo distanciado e encontrava uma explicação benévola. Literatura e política, ciência e religião não o entediavam — simplesmente não havia lugar para tais coisas em seu mundo, nem para nenhuma questão a respeito da qual as pessoas discordassem. Ele havia se formado em direito e fazia questão de deixar toda aquela experiência para trás. Era difícil atribuir-lhe sentimentos de solidão, tédio ou desânimo; sua equanimidade era inesgotável, tal como sua falta de ambição, e ele presumia que todos fossem mais ou menos como ele. Apesar de tudo isso, sua imperturbabilidade era perfeitamente tolerável, até mesmo tranqüilizadora.

Primeiro falou de seu clube de remo. Recentemente fora voga da equipe e, embora todos gostassem da sua atuação, ele preferia acompanhar o ritmo de outra pessoa. No banco, haviam-lhe acenado com uma promoção, mas quando a coisa não deu em nada ele ficou um tanto aliviado. Quanto a garotas: a atriz Mary, que fora tão maravilhosa em Vidas privadas, havia de repente ido para Glasgow, sem nenhuma explicação. Leon desconfiava de que ela estava cuidando de um parente moribundo. Francine, que falava um francês tão bonito e que escandalizara a todos usando um monóculo, fora com ele assistir a uma opereta de Gilbert e Sullivan na semana anterior, e no intervalo viram o rei, que parecia olhar na direção deles. Barbara, a moça tão simpática, confiável e bem relacionada que Jack e Emily achavam que ele devia desposar, o havia convidado para passar uma semana no castelo dos pais dela na Escócia. Leon julgava que seria uma indelicadeza recusar o convite.

Sempre que o irmão parecia ficar sem assunto, Cecília fazia-lhe mais uma pergunta. Inexplicavelmente, o aluguel que ele pagava no Albany Hotel havia baixado. Um velho amigo seu havia engravidado uma moça que tinha a língua presa, casara-se com ela e agora estava muito feliz. Um outro estava comprando uma motocicleta. O pai de um colega seu havia adquirido uma fábrica de aspiradores de pó e dizia que era uma verdadeira mina de dinheiro. A avó de um conhecido seu era uma velhota admirável, pois conseguira caminhar quase um quilômetro com a perna quebrada. Doce como o ar da noite, aquela conversa a atravessava e contornava, evocando um mundo de boas intenções e resultados felizes. Um ao lado do outro, meio em pé, meio sentados, estavam virados para a casa em que haviam passado a infância, cujas confusas referências medievais agora pareciam bem-humoradas; a enxaqueca de sua mãe era um interlúdio cômico numa opereta, a tristeza dos gêmeos uma extravagância sentimental, o incidente na cozinha apenas um choque alegre entre personalidades fortes.

Quando chegou sua vez de falar sobre os eventos dos últimos meses, foi-lhe impossível não ser influenciada pelo tom de Leon, embora sua versão fosse inevitavelmente irônica. Ridicularizou suas tentativas no campo da genealogia — a árvore da família só possuía galhos secos e nus, além de não ter raízes. O avô Harry Tallis era filho de um trabalhador rural que, por algum motivo, havia trocado o nome original, Cartwright; a respeito de seu nascimento e seu casamento não havia registros. Quanto a Clarissa — depois de tantas horas passadas na cama com o braço dormente —, era na verdade o contrário de Paraíso perdido: à medida que ia se revelando a virtude da heroína, por fim selada pela morte, mais repulsiva ela parecia. Leon concordou com um gesto de cabeça e não disse nada; não ia fingir que sabia do que ela estava falando, nem tampouco a interromperia. Cecilia resumiu em tom de farsa suas semanas de tédio e solidão; contou-lhe que viera passar um tempo com a família, para compensar o longo afastamento, e constatara que seus pais e sua irmã estavam distantes, cada um a seu modo. Estimulada pela reação generosa do irmão, que chegou às raias do riso, esboçou algumas cenas cômicas, evocando sua necessidade diária de adquirir cigarros, Briony rasgando o cartaz, os gêmeos recorrendo a ela, cada um com um pé de meia, e a mãe querendo o milagre do banquete: batatas assadas transformadas em salada de batatas. Leon não captou a referência bíblica. Havia desespero em tudo o que ela dizia, um vazio no âmago, ou alguma coisa excluída e oculta que a fazia falar mais depressa e exagerar sem convicção. A nnlidade agradável da vida de Leon era um artefato polido; sua espontaneidade era enganosa, suas limitações eram produto de muito trabalho invisível e acidentes de caráter, coisas que ela não poderia jamais imitar. Cecilia tomou o braço do irmão e apertou-o. Mais uma qualidade de Leon: uma companhia suave e encantadora, porém o braço, por trás do tecido do paletó, era duro como madeira de lei. Ela se sentia totalmente macia e transparente. Leon a olhava com afeto.

"E o que você conta de bom, Cee?"

"Nada. Nada, mesmo."

"Você devia vir me visitar e passar uns tempos comigo."

Um vulto se movia no terraço, e luzes se acendiam na sala de estar. Briony gritou para os irmãos.

Leon respondeu: "Estamos aqui".

"A gente devia entrar", disse Cecília, e ainda de braços dados foram caminhando em direção à casa. Ao passarem pelas roseiras, ela se perguntou se havia mesmo alguma coisa que queria contar a Leon. Confessar-lhe o que havia feito naquela manhã certamente não era possível.

"Eu gostaria muito de ir a Londres." Ao mesmo tempo que pronunciava as palavras, imaginava-se sendo arrastada de volta para casa, impedida de fazer as malas e de pegar o trem. Talvez não quisesse ir, porém repetiu, com um pouco mais de ênfase:

"Eu gostaria muito."

Briony aguardava impaciente no terraço para saudar o irmão. Alguém falou com ela de dentro da sala, e ele virou a cabeça para trás para responder. Enquanto Cecilia e Leon se aproximavam, a voz se fez ouvir outra vez — era a mãe deles, tentando ser severa.

"Só vou mandar mais uma vez. Venha pra casa agora tomar banho e se vestir."

Ainda olhando para os irmãos, Briony começou a se deslocar em direção às portas envidraçadas. Havia algo em sua mão.

Disse Leon: "A gente arranjava alguma coisa pra você bem depressa".

Quando entraram na sala, clareada por várias luminárias, Briony ainda estava lá, descalça e com o vestido branco imundo, e a mãe estava parada à porta do outro lado da sala, com um sorriso indulgente nos lábios. Leon estendeu os braços e disse, com o sotaque cômico de cockney que reservava para ela:

"Ué, ó só a minha maninha!"

Ao passar correndo por Cecilia, Briony rapidamente pôs na mão dela um pedaço de papel dobrado duas vezes; gritou o nome do irmão e pulou para seus braços.

Percebendo que a mãe a estava observando, Cecilia assumiu um ar de curiosidade bem-humorada enquanto desdobrava a folha. Teve o mérito de continuar a manter a mesma expressão enquanto assimilava o sentido do pequeno parágrafo datilografado e num só olhar compreendia tudo — uma unidade de significado cuja força e cujo sabor derivavam da única palavra repetida. A seu lado, Briony falava a Leon sobre a peça que havia escrito para ele, lamentando não ter conseguido montá-la. Arabella em apuros, ela repetia sem parar. Arabella em apuros. Ela parecia estranhamente animada, uma excitação nunca vista antes. Continuava abraçada ao pescoço do irmão e ficou na ponta dos pés para esfregar a bochecha na dele.

De saída, uma única expressão ficou dando voltas na cabeça de Cecilia: É claro, é claro. Como ela não percebera antes? Tudo estava explicado. O dia inteiro, as últimas semanas, sua infância. Toda sua vida. Agora estava tudo claro. Por que ela levara tanto tempo para escolher um vestido, disputara a posse de um vaso, achara tudo tão diferente e não conseguira sair dali. O que a tornara tão cega, tão obtusa? Vários segundos já haviam passado, e não podia mais ficar olhando fixamente para um pedaço de papel. O ato de dobrá-lo teve o efeito de fazê-la se dar conta de um fato óbvio: ele não poderia ter sido entregue aberto. Virou-se e olhou para a irmã.

Leon estava olhando para ela: "Que tal? Eu sou bom em fazer vozes, e você é melhor ainda. Vamos ler a peça em voz alta, juntos.

Cecilia contornou-o, para que Briony a visse.

"Briony? Briony, você leu isso?"

Mas a menina, respondendo à sugestão de Leon com uma voz excitada, saltitava, abraçada a ele, e, evitando o olhar de Cecilia, virou o rosto, enfiando-o no paletó do irmão.

Do outro lado da sala Emily disse, apaziguadora: "Calma aí".

Mais uma vez, Cecília mudou de posição de modo a ficar do outro lado do irmão. "Cadê o envelope?"

Briony virou o rosto outra vez e riu de modo espalhafatoso de algo que Leon estava lhe dizendo.

Então Cecília percebeu uma outra presença, nas fímbrias de seu campo de visão, a mover-se atrás dela, e, quando se virou, deu de cara com Paul Marshall. Numa das mãos ele levava uma bandeja de prata onde havia cinco taças, cheias de uma substância marrom viscosa. Ele levantou uma delas e a entregou a Cecília.

"Faço questão de que a senhorita prove."

A complexidade dos sentimentos de Briony parecia confirmar que ela estava de fato penetrando na arena adulta de emoções e dissimulações, o que sem dúvida beneficiaria seu trabalho literário. Que conto de fadas poderia conter tantas contradições? Uma curiosidade selvagem e imprudente a levara a tirar a carta do envelope — ela a leu no hall assim que Polly abriu a porta para ela — e, embora o choque da mensagem a convencesse de que valera a pena fazê-lo, nem por isso ela deixou de se sentir culpada. Era errado ler a correspondência dos outros, mas para ela era certo, era essencial, saber tudo. Briony estava mesmo muito feliz de ver seu irmão, mas isso não a impedia de exagerar seus sentimentos para se esquivar da pergunta acusadora que lhe fazia sua irmã. E depois ela apenas fingira obedecer prontamente à ordem de sua mãe quando correu para seu quarto; além de querer fugir de Cecilia, precisava ficar a sós para repensar Robbie e esboçar os parágrafos iniciais de uma história impregnada de vida real. Chega de princesas! A cena junto à fonte, com seu ar desagradável de ameaça, e o final, quando cada um foi para seu lado, deixando uma ausência luminosa a tremeluzir e uma mancha molhada no cascalho — tudo isso teria de ser reconsiderado. Com a carta entrara em cena algo de visceral, brutal, talvez até criminoso, algum princípio escuso, e, apesar de estar tão empolgada com as possibilidades, Briony não duvidava de que sua irmã estivesse sendo ameaçada de algum modo e que precisasse de sua ajuda.

A palavra: tentava impedir que ela ressoasse em seus pensamentos, porém ela dançava em meio às suas idéias, obscena, um demônio tipográfico, sugerindo anagramas vagos e insi-nuantes — boteca, tabeco, cabeto. As palavras que rimavam ganhavam forma com base nos seus livros infantis — rodela de crochê em forma de rosa, trejeito facial, astro sem luz própria que gravita em torno de uma estrela. Naturalmente, nunca ouvira ninguém pronunciar aquela palavra, nem a vira em letra de fôrma ou a encontrara entre asteriscos. Ninguém na sua presença se referira à existência da palavra, e, mais ainda, ninguém, nem sequer sua mãe, jamais se referira à existência daquela parte de seu corpo que — disso Briony não tinha dúvida—a palavra designava. Ela não tinha dúvida de que era isso. O contexto ajudava, porém não era só isso, a palavra era coerente com seu significado, era quase uma onomatopéia. O arredondado das formas da segunda, terceira e quarta letras era tão claro quanto uma série de desenhos anatômicos. Três figuras ajoelhadas ao pé da cruz da quinta letra. O fato de que a palavra fora escrita por um homem que confessava uma imagem por ele mentalizada, que confidenciava um pensamento íntimo, a enojava profundamente.

Ela havia lido o bilhete no centro do hall de entrada, desavergonhadamente, sentindo de imediato o perigo contido naquela crueza. Algo de inexoravelmente humano, ou masculino, ameaçava a ordem da família, e Briony sabia que, se ela não ajudasse a irmã, todos sofreriam. Era igualmente claro que seria necessário ajudá-la, com muito tato e delicadeza. Caso contrário como Briony sabia por experiência própria, Cecilia haveria de se voltar contra ela.

Esses pensamentos a ocupavam enquanto ela lavava as mãos e o rosto e escolhia um vestido limpo. As meias que queria usar não estavam em lugar nenhum, mas não quis perder tempo procurando. Pegou um outro par, calçou os sapatos e sentou-se à sua escrivaninha. Lá embaixo os adultos estavam tomando drinques, o que lhe daria ao menos vinte minutos. Poderia escovar o cabelo antes de descer. Lá fora, pela janela aberta, vinha o ruído de um grilo. Havia à sua frente um caderno de papel almaço do escritório do pai; a luminária da mesa projetava um retalho tranqüilizador de luz amarela; a caneta-tinteiro estava na sua mão. Os animais domésticos estavam perfeitamente enfileirados no parapeito da janela, e as bonecas rígidas, cada uma numa posição, nos diferentes cômodos de sua mansão aberta, aguardavam a jóia de sua primeira frase. Naquele momento, o impulso de escrever era mais forte do que qualquer idéia que ela tivesse a respeito de um tema. O que Briony desejava era se entregar aos desdobramentos de uma idéia irresistível, ver o fio negro desenrolar-se da ponta da pena de prata e ir formando palavras. Mas como fazer justiça às mudanças que a haviam finalmente transformado numa escritora de verdade, e ao emaranhado caótico de impressões, ao misto de repulsa e fascínio que a dominava? Era necessário impor a ordem. Ela começaria, tal como havia resolvido fazer antes, com uma narrativa direta da cena ocorrida na fonte. Mas aquele episódio visto à luz do sol não era tão interessante quanto o entardecer, os minutos de ócio passados na ponte em meio a um devaneio e o súbito aparecimento de Robbie na penumbra, a chamá-la, tendo nas mãos o pequeno quadrado branco que continha a carta que continha a palavra. E o que continha a palavra?

Escreveu ela: "Um dia, uma velha engoliu uma mosca".

Sem dúvida, não seria infantilidade dizer que tinha de haver uma história; e que era a história de um homem de quem todos gostavam, mas a respeito do qual a heroína sempre tivera suas dúvidas, e por fim ela poderia revelar que ele era a própria encarnação do mal. Mas ela — isto é, Briony, a escritora — não era sofisticada demais agora para entreter idéias tão primárias quanto o bem ou o mal? Tinha de haver algum lugar elevado, quase divino, de onde fosse possível julgar todas as pessoas da mesma maneira, não considerando uma contra a outra, como se a vida fosse uma eterna partida de hóquei, porém como seres a esbarrar ruidosamente um no outro, todos juntos em sua gloriosa imperfeição. Se existia um lugar assim, ela não merecia estar nele. jamais conseguiria perdoar a mente nojenta de Robbie.

Presa entre o impulso de escrever um relato simples das experiências daquele dia, como num diário, e a ambição de fazer a partir delas algo maior, algo elaborado, autônomo e obscuro, passou vários minutos olhando, de testa franzida, para a folha de papel e a citação infantil nela escrita, sem conseguir produzir mais nenhuma palavra. As ações, ela se julgava capaz de relatar direito, e diálogo era o seu forte. Sabia descrever a floresta no inverno e a aspereza do muro de um castelo. Mas o que fazer com os sentimentos? Era muito fácil escrever Ela estava triste, ou descrever atos plausíveis de uma pessoa triste, mas o que fazer com a tristeza em si, como exprimi-la de modo que fosse possível senti-la com toda a sua terrível realidade? Mais difícil ainda era a ameaça, ou a confusão de se debater entre sentimentos contraditórios. Com a caneta na mão, olhou para as bonecas de expressão fixa do outro lado do quarto, as companheiras já distanciadas de uma infância que ela considerava extinta. Era uma sensação dura, crescer. Nunca mais voltaria a sentar-se no colo de Emily ou de Cecilia; se o fizesse, seria de brincadeira. Dois verões atrás, quando Briony completou onze anos, seus pais, seus irmãos e uma quinta pessoa cuja identidade ela não lembrava a levaram até o gramado e a jogaram onze vezes para o alto num lençol esticado, e depois mais uma para dar sorte. Seria possível agora a liberdade hilariante daquele vôo breve, a confiança cega na firmeza das mãos dos adultos, se a quinta pessoa podia muito bem ter sido Robbie?

Ao ouvir um pigarro suave de mulher, levantou a vista, surpresa. Era Lola. Estava à porta, fazendo menção de entrar e, assim que seu olhar encontrou o da prima, ela bateu de leve na porta com os nós dos dedos.

"Posso entrar?"

Foi entrando logo de uma vez, os movimentos um pouco limitados pelo vestido tubinho de cetim azul. Os cabelos estavam soltos, os pés descalços. Assim que ela se aproximou, Briony guardou a caneta e cobriu a frase escrita com um canto do livro. Lola sentou na beira da cama e suspirou com força. Era como se as duas sempre conversassem ao final do dia, como irmãs.

"Passei uma tarde horrorosa."

Quando seu olhar feroz obrigou Briony a arquear a sobrancelha, ela prosseguiu:

"Os gêmeos me torturaram."

Ela pensou que era apenas uma maneira de dizer, porém Lola virou o ombro para a frente e revelou, no alto do braço, um arranhão comprido.

"Que horror!"

Exibiu os punhos. Em cada um deles havia uma marca vermelha de irritação.

"Beliscões!"

"Isso mesmo."

"Vou pegar um anti-séptico pro seu braço."

"Eu já passei."

Era verdade, o odor feminino do perfume de Lola não conseguia ocultar o cheiro infantil de Germolene. O mínimo que Briony podia fazer era levantar de sua cadeira e se sentar ao lado da prima.

"Coitadinha!"

A compaixão de Briony encheu de lágrimas os olhos de Lola, e sua voz ficou trêmula.

"Todo mundo acha que eles são uns anjinhos só porque são iguais, mas são duas pestes."

Conteve um soluço, como se o prendesse entre os dentes, com um tremor no queixo, e depois respirou fundo várias vezes, as narinas dilatadas. Briony segurou-lhe a mão, pensando que começava a entender como alguém poderia passar a gostar de Lola. Então foi à cômoda, pegou um lenço, desdobrou-o e deu-o à prima. Lola ia usá-lo, porém, ao ver o padrão alegre de vaqueiras e laços que o enfeitava, emitiu um som que começava grave e terminava agudo, o tipo de ruído que as crianças fazem para imitar um fantasma. Lá embaixo a campainha tocou, e momentos depois ouviu-se, bem baixo, o som de saltos altos apressados sobre o soalho ladrilhado do hall. Era Robbie, e Cecília ia abrir a porta ela mesma. Temendo que o choro de Lola fosse ouvido lá embaixo, Briony levantou-se e fechou a porta do quarto. O sofrimento da prima teve o efeito de deixá-la inquieta, inspirando-lhe uma agitação que era quase júbilo. Voltou para a cama, sentou-se e pôs o braço no ombro de Lola, que levou as mãos ao rosto e começou a chorar. Briony admirava-se de ver uma jovem tão dura e dominadora reduzida àquele estado por dois meninos de nove anos; isso lhe dava uma idéia de seu próprio poder. Era o que estava por trás daquele sentimento de quase júbilo. Talvez ela não fosse tão fraca quanto sempre imaginara; em última análise, a gente tinha de se medir em relação às outras pessoas — não havia outro critério, de vez em quando, sem nenhuma intenção, alguém lhe ensinava algo a respeito de si própria. Sem saber o que dizer, acariciou o ombro da prima e pensou que Jackson e Pierrot sozinhos não poderiam ser responsáveis por tanto sofrimento; lembrou que havia outras tristezas na vida de Lola. A casa da família no Norte — Briony imaginava ruas com fábricas enegrecidas e homens desolados indo para o trabalho com sanduíches em marmitas. O lar dos Quincey estava fechado e talvez nunca mais voltasse a abrir.

Lola estava começando a se recuperar. Briony perguntou, delicada: "O que aconteceu?".

A outra assoou o nariz e pensou por um momento. "Eu estava me preparando pra tomar um banho. Eles entraram de repente e pularam em cima de mim. Me derrubaram no chão..." Ao se lembrar da cena, fez uma pausa para reprimir outro soluço.

"Mas por que eles fizeram uma coisa dessas?"

Lola respirou fundo e se acalmou. Olhou para a frente com um olhar que nada via. "Eles querem ir pra casa. Eu disse que não podia. Eles acham que sou eu que estou prendendo eles aqui."

Os gêmeos descarregando sua frustração na irmã — tudo isso fazia sentido para Briony. Porém o que perturbava seu espírito organizado agora era a idéia de que em breve iam chamá-las para descer e seria necessário que sua prima estivesse controlada.

"Eles não compreendem", disse Briony, sábia, indo até o lavabo e enchendo a bacia com água quente. "São crianças, e passaram por um mau pedaço."

Cheia de tristeza, Lola baixou a cabeça, concordando, de tal modo que Briony sentiu uma onda de ternura por ela; conduziu-a até o lavabo e pôs uma flanela em suas mãos. Então, movida por uma série de impulsos diversos — necessidade prática de mudar de assunto, desejo de contar um segredo e mostrar à menina mais velha que também ela tinha experiência do mundo, mas acima de tudo simpatia por Lola e vontade de aproximar-se dela —, Briony falou-lhe sobre o encontro com Robbie na ponte e a carta; contou que a havia lido e revelou seu conteúdo. Em vez de pronunciar a palavra, o que seria impensável, soletrou-a de trás para a frente. O efeito sobre Lola foi recompensador. Ela levantou o rosto encharcado com a boca escancarada. Briony entregou-lhe uma toalha. Passaram-se alguns segundos enquanto Lola fingia encontrar as palavras apropriadas. Sua representação estava um pouco forçada, mas fazia sentido, tal como o sussurro áspero dela.

"Pensando nisso o tempo todo?"

Briony fez que sim e desviou a vista, como que para meditar sobre a tragédia. Ela podia aprender a ser um pouco mais expressiva com a prima, que aproveitou a deixa para colocar a mão no ombro da menina, confortando-a.

"Que coisa horrível pra vocês. Esse homem é um psicopata."

Psicopata. A palavra tinha refinamento, e o peso de um diagnóstico médico. Havia tantos anos que ela o conhecia, e ele sempre fora isso. Quando Briony era pequena, ele a carregava nas costas e fingia ser um bicho. Ela ficara sozinha com Robbie muitas vezes no lago, onde ele num verão a ensinou a boiar e a nadar de peito. Agora que o mal fora identificado, ela sentia um certo consolo, embora o mistério do incidente na fonte estivesse ainda mais denso. Já havia decidido não contar aquela história, desconfiada de que a explicação era simples e que seria melhor não expor sua própria ignorância.

"O que a sua irmã vai fazer?"

"Não faço idéia." Mais uma vez, não mencionou que morria de medo ao pensar na conversa que teria com Cecília.

"Sabe, na nossa primeira tarde eu achei que ele era um monstro quando ouvi ele gritando com os gêmeos lá na piscina."

Briony tentou relembrar momentos semelhantes em que os sintomas de psicopatia poderiam ter sido observados. Disse: "Ele sempre fingiu ser ótima pessoa. Enganou a gente esses anos todos".

A mudança de assunto havia funcionado, pois a área em torno dos olhos de Lola, antes vermelha, voltara à palidez sar-denta habitual, e ela tornara a ser a pessoa de sempre. Segurou a mão da prima. "Acho que a polícia devia ser avisada."

O policial da aldeia era um homem bondoso, de bigode encerado, casado com uma mulher que criava galinhas e entregava ovos frescos de bicicleta. Falar-lhe a respeito da carta e a palavra nela contida, até mesmo soletrá-la de trás para a frente, era inconcebível. Briony tentou soltar a mão, mas Lola apertou-a com mais força ainda, parecendo ler os pensamentos da menina.

"É só a gente mostrar a carta a eles."

"Ela é capaz de não querer."

"Vai querer, sim. Um psicopata pode atacar qualquer pessoa."

De repente Lola pareceu ficar pensativa e deu ares de estar prestes a revelar alguma coisa nova à prima. Em vez disso, porém, levantou-se de um salto, pegou a escova de Briony, postou-se diante do espelho e começou a escovar vigorosamente o cabelo. Mal havia começado quando ouviram a sra. Tallis chamando para descerem para jantar. Na mesma hora Lola ficou irritada, e Briony concluiu que aquelas súbitas mudanças de estado de espírito eram conseqüência do aborrecimento que ela tivera recentemente.

"Não vai dar. Estou longe de estar pronta", disse ela, quase chorando outra vez. "Nem comecei a me maquiar."

"Eu desço", tranqüilizou-a Briony. "Digo pra eles que você ainda vai demorar um pouco." Mas Lola já estava saindo do quarto, parecendo não ouvi-la.

Depois que ajeitou o cabelo, Briony permaneceu diante do espelho, examinando-se, perguntando o que faria quando chegasse sua época de se maquiar, que sabia estar próxima. Mais uma coisa a tomar seu tempo. Ao menos não tinha sar-das para disfarçar, o que certamente lhe pouparia trabalho. Muitos anos antes, quando tinha dez anos, decidira que batom a fazia ficar com cara de palhaço. Essa idéia teria de ser revista. Mas não agora, quando tinha tantas outras coisas com que se preocupar. Aproximou-se da mesa e maquinalmente tampou a caneta-tinteiro. Escrever uma história era uma bobagem quando havia forças tão poderosas e caóticas soltas a seu redor, e quando durante todo o dia uma sucessão de eventos havia absorvido ou transformado o que se passara antes. Um dia, uma velha engoliu uma mosca. Começou a pensar se não teria sido um erro terrível abrir-se com a prima — Cecília certamente não ficaria nem um pouco satisfeita se Lola, excitável como era, começasse a demonstrar que conhecia o conteúdo do bilhete de Robbie. E como poderia descer agora e sentar-se à mesa com um psicopata? Se a polícia o prendesse, ela, Briony, talvez tivesse de comparecer ao tribunal e dizer a palavra em voz alta, como prova.

Com relutância, saiu do quarto e percorreu o corredor de paredes escuras até chegar à escada, onde parou para escutar. As vozes continuavam na sala de estar — ouvia a mãe e o sr. Marshall, e depois, separadamente, os gêmeos conversando entre si. Nada de Cecília, nada de psicopata. Briony sentiu o coração bater mais forte quando começou, contra a vontade, a descer a escada. Sua vida deixara de ser simples. Apenas três dias antes estava concluindo Arabella em apuros e aguardando a chegada dos primos. Havia desejado que tudo fosse diferente, e seu desejo se realizara; e não apenas a situação estava ruim como também logo ia piorar mais ainda. Parou de novo no primeiro patamar para elaborar um plano; iria manter distância de sua prima imprevisível, nem sequer trocaria olhares com ela — não podia correr o risco de se tornar uma conspiradora e não queria ocasionar uma revelação desastrosa. Quanto a Cecilia, a quem queria proteger, não ousava chegar perto dela. Robbie, naturalmente, ela deveria evitar, por cautela. Sua mãe, preocupada com tudo, não ajudaria nem um pouco as coisas. Seria impossível pensar direito na presença dela. Os gêmeos eram a solução — seriam eles o seu refúgio. Decidiu ficar perto deles e lhes dar atenção. Aqueles jantares de verão sempre começavam muito tarde — já passava das dez —, e os meninos deviam estar cansados. Outra saída era puxar conversa com o sr. Marshall, fazer-lhe perguntas sobre chocolate — quem era que inventava os diferentes tipos, como eram feitos. Aquele plano era um sinal de covardia, mas Briony não conseguia imaginar nenhuma alternativa. Agora que já era hora do jantar, seria impensável mandar chamar na aldeia o sr. Vockins, o policial. Briony continuou a descer a escada. Devia ter aconselhado Lola a mudar de roupa para ocultar o arranhão no braço. Se lhe perguntassem o que fora aquilo, ela podia começar a chorar outra vez. Mas talvez fosse impossível convencê-la a tirar aquele vestido que dificultava tanto o movimento de suas pernas. Tornar-se adulto implicava aceitar com avidez tais dificuldades. Ela própria as estava assumindo. O arranhão não era nela, porém Briony sentia-se responsável por ele, por tudo o que estava prestes a acontecer. Quando seu pai se encontrava em casa, a família se organizava em torno de um ponto fixo. Ele não organizava nada, não andava pela casa se preocupando com os outros, raramente mandava alguém fazer alguma coisa — na verdade, passava a maior parte do tempo na biblioteca. Porém sua presença impunha ordem e permitia a liberdade. Vários ônus desapareciam. Quando o pai estava presente, pouco importava que a mãe ficasse recolhida em seu quarto-bastava que ele estivesse sentando no andar de baixo com um livro no colo. Quando o pai assumia seu lugar na mesa de jantar, tranqüilo, afável, absolutamente seguro de si, uma crise na cozinha não passava de uma cena de comédia; sem ele, era um drama que pesava nos corações. Ele sabia a maioria das coisas que valia a pena saber; quando não sabia, tinha idéia de qual autoridade devia ser consultada, e levava Briony às estantes para ajudá-lo a encontrar o livro em questão. Se não fosse, como ele próprio dizia, um escravo do ministério e do planejamento para contingências, se estivesse em casa, mandando Hardman pegar mais vinho na adega, conduzindo a conversação, decidindo, sem parecer fazê-lo, quando era a hora de "tocar adiante", ela não estaria atravessando o hall agora com um passo tão pesado.

Foi a lembrança do pai que a fez andar mais devagar quando passou pela porta da biblioteca, que estava fechada, o que era estranho. Ela parou para escutar. Da cozinha, o tilintar de metal contra porcelana; da sala de estar, sua mãe falando em voz baixa, e, mais perto, um dos gêmeos dizendo com uma voz aguda e nítida: "E com O, aliás", e seu irmão respondendo: "Tanto faz. Põe no envelope". E depois, de dentro da biblioteca fechada, um ruído áspero de algo raspando em algo, um baque e um murmúrio que podia ser de homem ou de mulher. Retrospectivamente — e Briony mais tarde pensou bastante nesse detalhe —, ela não tinha nenhuma expectativa em particular no momento em que pôs a mão na maçaneta de latão e a girou. Porém tinha lido a carta de Robbie, havia assumido o papel de protetora da irmã e fora instruída pela prima: o que ela viu certamente foi moldado em parte pelo que já sabia, ou que julgava saber.

De início, quando abriu a porta e entrou, não viu nada. A única luz vinha de uma luminária de vidro esverdeado sobre a escrivaninha, cujo alcance não ia muito além da superfície de couro trabalhado sobre a qual ficava. Quando deu mais alguns passos foi que os viu, vultos escuros no canto mais distante do recinto. Embora estivessem imóveis, sua percepção imediata era de que havia interrompido um ataque, uma luta corporal. A cena era uma concretização tão cabal de seus piores temores que ela teve a impressão de que sua imaginação excitada havia projetado aquelas figuras nas lombadas dos livros nas estantes. Essa ilusão, ou esperança de ilusão, dissipou-se assim que sua vista se adaptou à penumbra. Ninguém se mexia. Briony olhou por cima do ombro de Robbie e viu os olhos apavorados de sua irmã. Ele havia se virado para trás para ver quem tinha entrado, mas não soltou Cecilia. Apertara seu corpo contra o dela, levantando-lhe a barra da saia acima do joelho, e a encurralara no ângulo reto formado pelas estantes. Com a mão esquerda atrás da nuca da moça agarrava-lhe o cabelo, e com a direita segurava-lhe o braço erguido num gesto de protesto, ou de autodefesa.

Ele parecia tão enorme e feroz, e Cecilia, ombros nus e braços finos, tão frágil, que Briony não tinha idéia do que lhe seria possível fazer quando partiu para cima deles. Queria gritar, porém estava sem fôlego, e sua língua estava lenta e pesada. Robbie movimentava-se de tal modo que a impedia completamente de ver a irmã. Em seguida, Cecilia tentou se livrar, e logo ele a soltou. Briony parou e pronunciou o nome da irmã. Quando Cecilia passou por Briony, não havia nela nenhum sinal de gratidão nem de alívio. Seu rosto não tinha nenhuma opressão, estava quase tranqüilo, e ela olhava diretamente para a porta pela qual ia sair. Então saiu, e Briony ficou sozinha com Robbie. Também ele não quis encará-la. Em vez disso, olhava para o canto, enquanto ajeitava o paletó e a gravata. Desconfiada, a menina foi andando para trás, afastando-se, porém ele não fez nenhum gesto ameaçador, nem sequer olhou para ela. Assim, Briony virou-se e saiu correndo da sala para encontrar Cecília. Mas o hall estava vazio, e não estava claro em que direção sua irmã tinha ido.

 

Apesar do acréscimo posterior de hortelã picada a uma mistura de chocolate derretido, gema de ovo, leite de coco, rum, gim, banana amassada e açúcar de confeiteiro, o coquetel não ficou muito revigorante. Os apetites, já atenuados pelo calor da noite, diminuíram ainda mais. Quase todos os adultos, ao entrar na sala de jantar abafada, sentiram-se nauseados ao pensar em enfrentar um assado, ou mesmo carne assada com salada, e teriam se contentado com um copo de água fresca. Mas a água só foi oferecida às crianças, os outros sendo obrigados a se refrescar com vinho generoso servido à temperatura ambiente. Três garrafas aguardavam sobre a mesa a hora de ser abertas — na ausência de Jack Tallis, normalmente Betty fazia escolhas inspiradas. Nenhuma das janelas altas podia ser aberta, porque havia muitos anos as esquadrias estavam empenadas, e os convidados foram recebidos por um aroma de poeira aquecida subindo do tapete persa. Por sorte, a caminhonete da pei-xaria, a qual ficara de trazer o caranguejo que seria o primeiro prato da noite, pifou e não pôde vir.

A sensação de sufocamento era acentuada pela madeira escura que revestia as paredes desde o chão, cobrindo o teto, e pelo único quadro da sala, uma tela enorme que ficava acima da lareira jamais acesa desde que fora construída — por falha no projeto arquitetônico original, não havia espaço para uma chaminé. Era um retrato à maneira de Gainsborough, representando uma família aristocrática — pai e mãe, duas moças adolescentes e uma criança pequena, todos de lábios finos, pálidos como espectros — posando diante de uma paisagem vagamente toscana. Ninguém sabia quem eram aquelas pessoas, porém o mais provável era que Harry Tallis imaginasse que elas emprestariam um ar de solidez à sua casa.

Emily, à cabeceira da mesa, ia indicando o lugar de cada um à medida que os convidados entravam. Colocou Leon à sua direita e Paul Marshall à sua esquerda. A direita de Leon sentaram-se Briony e os gêmeos; à esquerda de Marshall ficaram Cecília, depois Robbie e por fim Lola. Em pé atrás da cadeira, agarrando o encosto para se apoiar, Robbie estava atônito por ninguém perceber que seu coração ainda estava disparado. Havia escapado do coquetel, mas também ele estava sem fome. Desviou a vista de Cecília e, enquanto os outros se sentavam, ele percebeu, com alívio, que estava perto das crianças.

Quando a mãe lhe fez sinal, Leon proferiu uma breve oração de graças — pelo que estamos prestes a receber — e o ruído das cadeiras arrastando fez as vezes de amém. O silêncio que se seguiu, enquanto os comensais se instalavam em seus lugares e desdobravam os guardanapos, teria sido preenchido com facilidade por Jack Tallis, que puxaria algum assunto levemente interessante enquanto Betty servia a carne. Na ausência dele, todos ficaram a olhar para ela, ouvindo-a murmurar algo diante de cada pessoa, ouvindo a colher e o garfo roçar na travessa de prata. O que mais poderiam fazer, se a única outra presença era a de seu próprio silêncio? Emily Tallis jamais soubera jogar conversa fora, e não fazia questão de saber. Leon, totalmente à vontade, refestelava-se em sua cadeira, garrafa de vinho na mão, examinando o rótulo. Cecília, imersa nos acontecimentos de dez minutos antes, não teria conseguido formar uma única frase. Robbie sentia-se em casa entre os presentes e certamente teria dito algo, porém também ele estava perturbado. Mal conseguia fingir ignorar o braço nu de Cecilia a seu lado — ele sentia seu calor — e o olhar hostil de Briony, sentada do outro lado da mesa, na diagonal. E, mesmo que fosse considerado correto as crianças puxarem assunto, também elas não teriam conseguido: Briony só conseguia pensar na cena que havia testemunhado; Lola estava sob o impacto duplo do ataque físico e de um torvelinho de emoções contraditórias; e os gêmeos estavam elaborando um plano.

Foi Paul Marshall que interrompeu o intervalo de mais de três minutos de silêncio sufocante. Inclinou-se para trás para se dirigir a Robbie por trás da cabeça de Cecilia.

"Mas sim, ainda está de pé a partida de tênis amanhã?" Havia um arranhão de três centímetros, observou Robbie, que partia do canto do olho de Marshall, corria paralelo ao nariz e atraía a atenção para o modo como suas feições se concentravam na parte superior do rosto, comprimidas sob os olhos. Por coisa de uns poucos milímetros ele não ostentava uma beleza máscula. Em vez disso, seu rosto tinha algo de ridículo — a vasta expansão vazia do queixo contrastava com a testa superpovoada. Por educação, Robbie também se inclinou para trás para ouvir a pergunta do outro, mas, apesar do estado em que se encontrava, ficou um pouco chocado. Não era correto, no início de uma refeição, o convidado não dar atenção à anfitriã e iniciar uma conversa a dois.

Respondeu Robbie, seco: "Acho que sim". Então, para compensar a indelicadeza do outro, comentou, dirigindo-se a todos os presentes: "Será que alguma vez já fez tanto calor assim na Inglaterra?".

Esquivando-se da aura de calor em torno do corpo de Cecília e desviando o olhar de Briony, terminou dirigindo sua pergunta aos olhos assustados de Pierrot, na diagonal à sua esquerda. O menino engoliu em seco, raciocinando furiosamente, como se estivesse na sala de aula, numa prova de história. Ou seria geografia? Ou ciências?

Briony debruçou-se por cima de Jackson e tocou no ombro de Pierrot, sem tirar os olhos de Robbie. "Por favor, deixe ele em paz", disse num cochicho audível, e depois, num tom mais suave, para o menino: "Você não precisa responder".

Da outra ponta da mesa Emily repreendeu-a: "Briony, foi um comentário sobre o tempo perfeitamente inofensivo. Peça desculpas ou então vá já para o seu quarto".

Sempre que a sra. Tallis dava uma ordem na ausência do marido, as crianças sentiam-se na obrigação de impedir que ela parecesse desprovida de autoridade. Briony, que não teria de modo algum deixado de proteger a irmã, baixou a cabeça e disse, olhando para a toalha: "Peço mil desculpas. Eu não devia ter dito isso".

Os legumes, servidos em travessas com tampas ou em pratos de porcelana Spode desbotada, foram passando de mão em mão, e era tal a desatenção de todos, ou a vontade de ocultar, por uma questão de delicadeza, a falta de apetite que a maioria se serviu de batatas assadas com salada de batata, couve-de-bruxelas e beterraba, com folhas de alface boiando em molho de carne.

"O velho não vai ficar muito satisfeito", disse Leon, pondo-se de pé. "É um Barsac 1921, mas já está aberto." Encheu o copo da mãe, depois o da irmã e o de Marshall, e, quando estava servindo Robbie, disse: "É um bom gole reparador para o nosso médico. Eu gostaria de saber mais a respeito desse novo plano".

Porém não esperou a resposta. Ao voltar para sua cadeira disse: "Adoro a Inglaterra quando faz uma onda de calor. Vira um país diferente. Todas as regras mudam".

Emily Tallis pegou seus talheres, e todos a imitaram.

Disse Paul Marshall: "Bobagem. Me diga uma única regra que muda".

"Pois bem. Lá no clube o único lugar em que a gente pode tirar o paletó é a sala de bilhar. Mas quando a temperatura chega a trinta e dois graus, antes das três da tarde, é permitido tirar o paletó no bar do andar de cima no dia seguinte."

"No dia seguinte! Um país diferente, sim."

"Você sabe o que eu quero dizer. As pessoas ficam mais à vontade — bastam dois dias de sol que viramos italianos. Na semana passada, lá na Charlotte Street tinha gente jantando em mesas nas calçadas."

"Os meus pais", disse Emily, "achavam que o calor levava os jovens a se comportar mal. Menos camadas de roupa, mil lugares a mais pra se encontrar. Fora de casa, fora do controle. A sua avó em particular ficava muito preocupada no verão. Ela inventava mil pretextos para que eu e minhas irmãs não saíssemos de casa."

"Bem", disse Leon, "o que você acha disso, Cee? Será que hoje você se comportou pior até que o normal?"

Todos olharam para ela, e a brincadeira do irmão era implacável.

"Ora, você ficou vermelha. Então a resposta deve ser sim."

Sentindo-se na obrigação de defendê-la, Robbie foi dizendo-. "Na verdade...".

Mas Cecilia interrompeu-o. "Eu estou morrendo de calor, só isso. E a resposta é sim. Eu me comportei muito mal. Convenci a Emily, contra a vontade dela, de que o jantar devia ser um assado em sua homenagem, apesar do calor. Agora você está comendo salada enquanto todos nós estamos sofrendo por sua causa. Assim, passe os legumes para ele, Briony, e quem sabe ele fica quieto."

Robbie julgou perceber um tremor em sua voz.

"Cee velha de guerra. Em plena forma", aprovou Leon.

Disse Marshall: "Agora você vai ter que meter a viola no saco".

"Acho melhor eu implicar com uma pessoa do meu tamanho." Leon sorriu para Briony, sentada a seu lado. "Você fez alguma coisa errada hoje por causa do calor? Você quebrou as regras? Por favor, diga que sim." Pegou a mão da irmã, fingindo implorar, mas ela retirou-a.

Ela ainda era uma criança, pensou Robbie, que podia perfeitamente confessar ou deixar escapar que havia lido seu bilhete, o que por sua vez talvez a levasse a descrever a cena que havia interrompido. Ele a observava com atenção enquanto ela ganhava tempo, levando o guardanapo aos lábios, porém não sentia muito medo. Se a coisa tinha de acontecer, que acontecesse. Por mais terrível que fosse, aquele jantar não se prolongaria para sempre, e ele daria um jeito de se ver a sós com Cecília de novo naquela noite, e juntos enfrentariam aquele extraordinário fato novo em suas vidas — aquela mudança em suas vidas — e retomariam o interrompido. Só de pensar nisso sentiu um vazio no estômago. Até aquele momento, tudo seria irrelevante, e ele não tinha medo de nada. Bebeu um gole grande daquele vinho morno e adocicado e esperou.

Disse Briony: "Sem querer decepcionar ninguém, eu não fiz nada de errado hoje".

Robbie a subestimara. Aquela ênfase certamente era dirigida a ele e Cecilia.

Ao lado dela, Jackson falou. "Ah, fez sim. Você acabou com a peça. A gente queria trabalhar na peça." O menino olhava a sua volta, os olhos verdes brilhando de tristeza. "E você disse que queria que a gente trabalhasse."

O irmão dele concordava com a cabeça. "É, sim. Você queria que a gente trabalhasse." Ninguém imaginava o grau da decepção daqueles dois.

"Pronto, eu não disse?", exclamou Leon. "A Briony tomou uma decisão de cabeça quente. Se o dia estivesse mais fresco, a gente agora estaria na biblioteca assistindo à peça."

Aquelas trivialidades inofensivas, bem mais suportáveis que o silêncio, permitiam que Robbie se recolhesse por trás de uma máscara de atenção bem-humorada. Cecilia apoiava a mão esquerda no rosto à altura dos olhos, provavelmente para excluí-lo da periferia de sua visão. Fingindo dar atenção a Leon, que relatava o episódio do rei num teatro no West End, Robbie podia contemplar o braço e o ombro nus de Cecilia, e ao fazê-lo imaginou que ela sentia na pele o contato do ar que saía de suas narinas, uma idéia que o excitava. No alto do ombro da moça havia uma pequena depressão no osso, ou entre dois ossos, com uma penugem suave nas bordas. Em breve a sua língua percorreria o contorno oval daquela mossa e penetraria nela. A excitação que ele sentia assemelhava-se a dor e era exacerbada pela pressão das contradições: Cecilia era familiar como uma irmã, exótica como uma amante; ele sempre a conhecera, ele não sabia nada sobre ela; ela era feia, ela era bela; era forte — com que facilidade se defendera do irmão — e, vinte minutos antes, havia chorado; a carta idiota de Robbie a repugnara, porém tivera o efeito de libertá-la. Ele lamentava seu erro, ele exultava por tê-lo cometido. Logo estariam os dois a sós, com mais contradições — hilaridade e sensualidade desejo e medo por sua ousadia, temor e impaciência para começar. Em algum quarto vazio no segundo andar, ou longe da casa, sob as árvores à beira do rio. Onde? A sra. Tallis não era nada boba. Fora da casa. Protegidos pelo cetim da escuridão começariam outra vez. E isso não era fantasia, era a realidade era seu futuro próximo, ao mesmo tempo desejável e inevitável. Mas fora justamente isso que o infeliz Malvolio pensara, o Mal-volio cujo papel ele havia representado uma vez na faculdade — "nada pode me separar da completa realização de minhas esperanças".

Meia hora antes, não havia esperança alguma. Depois que Briony entrou na casa com a carta na mão, ele continuara andando, torturado, sem saber se voltava ou não. Mesmo diante da porta da casa ainda não estava decidido, e aguardou alguns minutos sob a lâmpada da entrada, com uma única mariposa fiel, tentando decidir qual das duas opções infelizes seria a menos desastrosa. As alternativas eram estas: entrar, encarar a raiva e a repulsa de Cecília, dar uma explicação que não seria aceita e, muito provavelmente, ser despachado — uma humilhação insuportável; ou voltar para casa sem dizer palavra, dando a impressão de que a carta fora intencional, padecer um verdadeiro suplício a noite inteira e nos próximos dias, sem ter idéia da reação dela — mais insuportável ainda. E covarde. Repassou todas as possibilidades outra vez e chegou à mesma conclusão. Não havia saída, o jeito era falar com ela. Levou a mão à campainha. No entanto, ainda era tentadora a idéia de ir embora. Ele podia escrever um pedido de desculpas na segurança de seu escritório. Covarde! A porcelana fresca estava sob a ponta de seu dedo indicador, e antes que a argumentação recomeçasse em sua cabeça ele se obrigou a apertar o botão. Deu um passo atrás como um suicida que acaba de engolir uma pílula de veneno — nada a fazer, só esperar. Ouviu passos lá dentro, o staccato de passos femininos sobre o soalho do bali.

Quando ela abriu a porta, ele viu o bilhete dobrado em sua mão. Por alguns segundos ficaram a se entreolhar fixamente, Sem dizer palavra. Apesar de tanta hesitação, ele não havia preparado nada para dizer. A única idéia que lhe ocorreu foi que ela era ainda mais bonita na realidade do que nas suas fantasias. O vestido de seda que trajava parecia venerar cada curva e reen-trância de seu corpo flexível, porém a boca, pequena e sensual, estava apertada em sinal de reprovação, talvez até de repulsa. Atrás dela, as luzes fortes da casa ofuscavam a vista, e ele não conseguia determinar a expressão precisa em seu rosto.

Por fim Robbie disse: "Cee, foi um equívoco".

"Um equívoco?"

Vozes chegaram a ele, pela porta aberta da sala de estar. Ouviu a voz de Leon, depois a de Marshall. Talvez por temer a chegada de outra pessoa, ela deu um passo para trás e escancarou a porta para ele. Robbie seguiu-a até a biblioteca, que estava às escuras, e esperou à porta enquanto ela procurava o interruptor de uma luminária sobre a escrivaninha. Após acender a luz, ele entrou e fechou a porta. Imaginava que dentro de alguns minutos estaria voltando para o bangalô.

"Não era essa a versão que eu pretendia lhe mandar."

"Não."

"Eu pus a carta errada no envelope." bim.

Ele não conseguia concluir nada a partir daquelas respostas secas e ainda não podia ver com clareza a expressão no rosto dela. Cecilia afastou-se da luz, em direção às estantes. Ele avançou para dentro do recinto, não exatamente indo atrás dela, frias para que não se abrisse uma distância maior entre eles dois.

Ela poderia tê-lo despachado de uma vez à porta da casa, e agora havia uma oportunidade de lhe dar uma explicação antes de ir embora.

Disse ela: "A Briony leu".

"Ah, meu Deus. Desculpe."

Ele estava prestes a evocar para ela um momento secreto de exuberância, uma impaciência passageira com a convenção, quando lera a edição Orioli de O amante de Lady Chatterley, que ele comprara clandestinamente no Soho. Mas esse elemento novo — a criança inocente — tornava seu erro irreparável. Inútil insistir. A única coisa que pôde fazer foi se repetir, dessa vez num sussurro:

"Desculpe..."

Ela se afastava mais e mais, em direção ao canto, à escuridão mais profunda. Embora julgasse que ela estava fugindo, deu mais dois passos em sua direção.

"Foi uma estupidez minha. Não era pra você ler aquilo. Nem você nem ninguém."

Ela continuava recuando. Um dos cotovelos estava apoiado na estante, e ela parecia deslizar, como se num instante fosse desaparecer em meio aos livros. Ele ouviu um som suave e úmido, o som que se produz quando se está prestes a dizer algo e a língua descola do céu da boca. Porém ela não disse nada. Foi só então que ocorreu a Robbie a possibilidade de que ela não estivesse fugindo, e sim atraindo-o para o canto mais escuro da biblioteca. Desde o momento em que tocara a campainha, ele não tinha mais nada a perder. Assim, foi avançando lentamente enquanto ela recuava até chegar ao canto, onde parou e ficou olhando para ele. Também Robbie parou, a pouco mais de um metro dela. Estava agora perto o suficiente, e havia luz o bastante para que ele percebesse que ela estava começando a chorar e tentando falar. Por um momento não conseguiu e balançou a cabeça para que ele esperasse. Virou-se para o lado, uniu as mãos e sob elas ocultou o nariz e a boca, colocando as pontas dos dedos nos cantos dos olhos.

Controlando-se, Cecilia disse: "Isso já está durando semanas..."- Sua garganta apertou, e ela foi obrigada a se interromper. Imediatamente Robbie julgou entender o que ela dizia, porém reprimiu a idéia. Ela respirou fundo e prosseguiu, num tom mais pensativo: "Talvez meses. Não sei. Mas hoje... o dia inteiro foi muito estranho. Quer dizer, estou vendo as coisas de uma maneira estranha, como que pela primeira vez. Tudo parece diferente — nítido demais, real demais. Até as minhas mãos pareciam diferentes. As vezes era o contrário, era como se as coisas que eu estava vendo tivessem acontecido fazia anos. E o dia inteiro eu estava furiosa com você — e comigo. Eu pensava que ia ficar feliz se nunca mais visse você nem falasse com você. Eu pensei que você ia pra faculdade de medicina e que eu ia ser feliz. Eu estava furiosa com você. Acho que era uma maneira de não pensar nisso. Muito prático, até...".

E deu uma risada tensa.

Disse ele: "Isso?".

Até então ela estava olhando para baixo. Quando voltou a falar, tinha os olhos voltados para ele. Robbie via apenas o brilho nos brancos de seus olhos.

"Você entendeu antes. Alguma coisa aconteceu, não é? E você entendeu antes. É como estar perto de uma coisa tão grande que a gente nem vê. Mesmo agora, não sei se estou vendo direito. Mas sei que a coisa está aí."

Ela olhou para baixo e ele esperou.

"Eu sei que está aí porque me fez fazer uma coisa ridícula. E você, é claro... Mas hoje de manhã, eu nunca antes tinha feito uma coisa assim. Depois fiquei furiosa. Aliás, na mesma hora. Fiquei pensando que dei a você uma arma pra usar contra mim. Então, agora à tarde, quando comecei a entender. Mas como é que eu pude ser tão ignorante em relação a mim mesma? E tão burra?" Ela parou de repente, tomada por uma idéia desagradável. "Você sabe do que eu estou falando. Me diga que sabe." Temia que não houvesse nada em comum na verdade, que todas as suas conclusões estivessem erradas, e que com suas palavras ela houvesse se isolado ainda mais, e que ele a julgasse uma idiota.

Ele se aproximou. "Eu sei. Sei exatamente. Mas por que você está chorando? Tem alguma outra coisa?"

Robbie imaginou que ela fosse mencionar um obstáculo intransponível, e era claro que o sentido do que ele dissera era alguma outra pessoa, mas ela não entendeu. Não sabia como responder, e ficou olhando para ele, completamente desconcertada. Por que estava chorando? Como poderia ela lhe explicar quando havia tanta emoção, tantas emoções, a dominá-la? Ele, por sua vez, sentiu que sua pergunta fora injusta, imprópria, e se esforçava para achar uma maneira de consertar a situação. Olhavam um para o outro confusos, sem conseguir falar, sentindo que um equilíbrio delicado entre eles podia ser posto a perder. O fato de que eram velhos amigos de infância se transformara numa barreira — sentiam-se envergonhados diante do que tinham sido no passado. A amizade entre eles havia se tornado vaga, até mesmo constrangida, nos últimos anos, mas continuava a ser um velho hábito, e quebrá-lo agora para se tornarem estranhos e assumirem uma relação íntima exigia uma firmeza de propósito que por um momento lhes faltava. Naquele instante, não parecia haver nenhuma solução que envolvesse palavras.

Robbie pôs as mãos nos ombros dela, e sua pele nua estava fresca. Quando seus rostos se aproximaram, ele não sabia se ela iria se afastar de um salto, ou lhe dar um tapa cinematográfico no rosto, com a mão aberta. Sua boca tinha gosto de batom e sal. Afastaram-se por um segundo, ele a abraçou e beijaram-se outra vez, com mais confiança. Ousados, deixaram que as pontas das línguas se tocassem, e foi então que ela emitiu o som débil, como um suspiro, o qual — ele se deu conta depois — assinalou uma transformação. Até então havia algo de ridículo em estar um rosto conhecido tão próximo do seu. Sentiam-se observados por suas próprias infâncias. Mas com o contato das línguas, daqueles músculos vivos e escorregadios, carne úmida tocando carne, e o som estranho que o contato provocou nela, tudo mudou. Aquele som pareceu penetrá-lo, percorrer seu corpo de alto a baixo, abrindo-o por inteiro, permitindo-lhe sair de si próprio e beijá-la livremente. O que antes era constrangido agora era impessoal, quase abstrato. Aquela espécie de suspiro que ela emitia era uma expressão de avidez, e tinha o efeito de torná-lo ávido também. Ele empurrou-a com força contra o canto, entre os livros. Enquanto se beijavam, com gestos lângui-dos ela repuxava-lhe a camisa, o cinto. Suas cabeças rolavam uma sobre a outra, e os beijos se transformavam em mordidas. Ela o mordeu no rosto, não de todo de brincadeira. Ele afastou o rosto, depois se reaproximou, e ela o mordeu com força no lábio inferior. Ele beijou-a no pescoço, forçando-a a encostar a cabeça nas lombadas dos livros; ela puxou-lhe o cabelo e apertou o rosto dele contra seus seios. Ele procurou um pouco, sem jeito, até encontrar o mamilo, pequeno e duro, e abocanhá-lo. Todo o corpo dela enrijeceu, depois estremeceu com força. Por um momento Robbie achou que ela havia desmaiado. Os braços dela envolviam sua cabeça, e quando ela começou a apertar com força, quase a ponto de sufocá-lo, ele aprumou-se e abraçou-a, comprimindo-lhe a cabeça contra o peito. Ela mordeu-o outra vez e puxou-lhe a camisa. Quando ouviram um botão cair no chão de tábua corrida, foram obrigados a conter os sorrisos contrafeitos e desviar a vista. Uma cena de comédia os teria destruído. Ela tomou-lhe o mamilo entre os dentes. A sensação era insuportável. Robbie virou o rosto dela para cima e, prendendo-a contra suas costelas, beijou-lhe os olhos e abriu os lábios dela com sua língua. Indefesa, ela emitiu outra vez um som que parecia um suspiro de decepção.

Por fim tornaram-se estranhos, seus passados foram esquecidos. Eram também estranhos para si próprios, pois já não lembravam quem eram nem onde estavam. A porta da biblioteca era espessa e barrava todos os sons comuns que poderiam tê-los lembrado, tê-los contido. Estavam além do presente, fora do tempo, sem lembranças e sem futuro. Só existiam as sensações que tudo obliteravam, mais e mais intensas, e o som de pano sobre pano e pele sobre pano, e braços e pernas deslizando uns contra os outros naquele corpo-a-corpo sensual. A experiência dele era limitada; sabia apenas, de segunda mão, que não era necessário que se deitassem. Quanto a ela, além de todos os filmes que tinha visto e dos romances e poemas líricos que tinha lido, não tinha experiência nenhuma. Apesar dessas limitações, não se surpreenderam de ver que sabiam muito bem de que necessitavam. Beijaram-se outra vez, os braços dela enlaçados atrás da cabeça dele. Ela lambeu-lhe a orelha, depois mordeu o lóbulo. Aos poucos essas mordidas iam-no excitando e irritando, instigando-o a seguir em frente. Ele tateou sob o vestido e encontrou as nádegas, apertou-as com força, virou-a para dar-lhe uma palmada em retaliação, mas não havia espaço para isso. Mantendo os olhos fixos nos dele, ela abaixou-se para descalçar os sapatos. Houve mais movimentos hesitantes, envolvendo botões e reposicionamentos de pernas e braços. Ela não tinha nenhuma experiência. Sem dizer uma palavra, ele foi guiando o pé dela até a prateleira mais baixa. Eram desajeitados, porém estavam despojados de suas individualidades a ponto de não mais sentirem vergonha. Quando ela levantou o vestido justo de seda outra vez, ele pensou que a expressão de incerteza no rosto dela espelhava a que estava estampada no seu. Mas só havia um fim inevitável, e não havia nada que pudessem fazer senão seguir naquela direção.

Apoiada contra o canto pelo peso dele, ela mais uma vez pôs as mãos entrelaçadas atrás do pescoço de Robbie, apoiou os cotovelos em seus ombros e continuou a beijar-lhe o rosto. O momento em si foi fácil. Eles prenderam a respiração antes de partir-se a membrana, e, quando a coisa aconteceu, ela desviou a vista rapidamente, porém não emitiu nenhum som — isso parecia ser uma questão de orgulho para ela. Apertaram-se um contra o outro, indo mais fundo, e então, por segundos infindáveis, tudo parou. Em vez de um frenesi de êxtase, fez-se a imobilidade. O que os imobilizava não era o fato espantoso da chegada, e sim a consciência assustadora do retorno — estavam face a face na penumbra, vendo o pouco que se podia ver nos olhos um do outro, e então foi a impessoalidade que desapareceu. Naturalmente, não havia nada de abstrato naqueles rostos. O filho de Grace e Ernest Turner, a filha de Emily e Jack Tallis, amigos de infância, colegas de faculdade, num estado de júbilo expansivo e tranqüilo, confrontaram a mudança extraordinária que haviam realizado. A proximidade de um rosto familiar não era ridícula, era maravilhosa. Robbie contemplava a mulher, a moça que conhecia desde pequeno, pensando que a mudança se dera inteiramente nele, e que era tão fundamental, tão fundamentalmente biológica, quanto o nascimento. Nada de tão singular, de tão importante jamais lhe havia acontecido desde o dia em que nascera. Ela retribuiu seu olhar, deslumbrada com a consciência de sua própria transformação e maravilhada com a beleza de um rosto que o hábito de toda uma existência a ensinara a ignorar. Cochichou o nome dele como uma criança que experimenta os diferentes sons. Quando ele respondeu com o nome dela, parecia ser uma palavra nova — as sílabas permaneciam iguais, o significado era diferente. Ele pronunciou as três palavras simples que nem toda a arte barata e toda a má-fé do mundo conseguem trivializar de todo. Ela as repetiu, com exatamente a mesma ênfase sutil no verbo, como se fosse a primeira pessoa a pronunciá-las na história. Ele não tinha crenças religiosas, porém era impossível não imaginar uma presença ou testemunha invisível ali, não acreditar que essas palavras pronunciadas em voz alta eram como assinaturas num contrato invisível.

Estavam imóveis havia cerca de meio minuto, talvez. Para continuar assim por mais tempo, teria sido necessário que dominassem alguma arte tântrica extraordinária. Começaram a fazer amor encostados nas estantes da biblioteca, que rangiam com seus movimentos. É comum, em tais situações, a fantasia de que se está chegando em algum lugar remoto e elevado. Ele se imaginou caminhando no pico de uma montanha, um terreno liso e arredondado, entre dois picos mais altos ainda. Caminhava sem pressa, examinando os arredores, tendo tempo para se aproximar de um abismo rochoso e olhar de relance para o despenhadeiro quase vertical no qual em breve teria de se lançar. Era uma tentação saltar para o espaço vazio agora, mas ele era um homem do mundo e podia dar um passo atrás e esperar. Não era fácil, pois ele estava sendo atraído e tinha de resistir. Desde que não pensasse no abismo, não se aproximaria dele e não seria tentado. Obrigou-se a pensar nas coisas mais desinteressantes que conhecia — graxa de sapato, um formulário, uma toalha molhada no chão do quarto. E também uma tampa de lata de lixo virada para cima com dois centímetros de água de chuva dentro, e o círculo incompleto deixado na capa de sua edição dos poemas de Housman por uma xícara de chá. Esse inventário precioso foi interrompido pela voz dela. Ela o estava chamando, convidando, murmurando em seu ouvido. Exatamente. Eles pulariam juntos. Ele estava com ela agora, contemplando o despenhadeiro, e juntos viam as nuvens lá embaixo. De mãos dadas, eles cairiam para trás. Ela repetiu, murmurando em seu ouvido, e dessa vez ele a ouviu com clareza.

"Alguém entrou."

Robbie abriu os olhos. Estava numa biblioteca, numa casa, imersa num silêncio completo. Trajava seu melhor terno. Sim, tudo lhe voltou à mente com relativa facilidade. Forçou a vista, olhando por cima do ombro de Cecilia, e viu apenas a escrivaninha fracamente iluminada, tal como antes, como se a tivesse visto num sonho. De onde estavam, naquele canto, não era possível ver a porta. Mas não se ouvia nada, absolutamente nada. Ela se enganara, ele desejava desesperadamente que ela estivesse enganada; estava, sim. Virou-se para ela e ia dizer-lhe isso quando sentiu um aperto mais forte em seu braço, que o fez olhar para trás mais uma vez. Briony lentamente entrou em seu campo de visão, parou ao lado da escrivaninha e os viu. Ficou parada, apatetada, olhando para eles, os braços caídos ao longo do corpo, como um pistoleiro numa cena de duelo num western. Naquele instante de desencantamento ele se deu conta de que jamais odiara uma pessoa até aquele momento. Era um sentimento tão puro quanto o amor, porém desapaixonado e friamente racional. Não havia nada de pessoal nele, pois teria odiado qualquer pessoa que entrasse. Estavam servindo bebidas na sala de estar e no terraço, e era lá que Briony deveria estar — com a mãe, o irmão que ela adorava e os priminhos. Não havia nenhum motivo razoável para ela estar na biblioteca, senão o propósito de encontrá-lo e negar-lhe o que era seu. Ele entendeu esse fato com clareza, sabia como havia acontecido: ela abrira um envelope fechado, lera seu bilhete e ficara enojada, e de algum modo obscuro sentira-se traída. Viera procurando pela irmã — sem dúvida movida por uma idéia grandiosa de protegê-la, ou de admoestá-la, e ouvira um ruído vindo de dentro da biblioteca fechada. Impelida pela profundeza de sua própria ignorância, imaginação pueril e retidão de menina, entrara para interrompê-lo. E nem foi preciso fazer nada — espontaneamente, eles dois já haviam se separado e virado cada um para um lado, e agora ajeitavam discretamente suas roupas. Terminara.

Os pratos já tinham sido retirados da mesa havia muito tempo e Betty tinha voltado com o pudim de pão com manteiga. Seria imaginação sua, pensava Robbie, ou alguma intenção maligna da parte dela, que fazia com que as porções dos adultos parecessem o dobro das servidas às crianças? Leon enchia os copos com a terceira garrafa de Barsac. Havia tirado o paletó, permitindo, desse modo, que os outros dois homens fizessem o mesmo. Ouviam-se suaves batidas nas vidraças das janelas, insetos noturnos chocando-se contra o vidro. A sra. Tallis levou ao rosto o guardanapo e dirigiu um olhar amoroso aos gêmeos. Pierrot estava cochichando no ouvido de Jackson.

"Nada de segredos à mesa do jantar, meninos. Todos nós queremos saber, se você não se incomoda."

Jackson, o porta-voz, engoliu em seco. Seu irmão olhava para baixo.

"A gente queria pedir licença para ir ao banheiro, tia Emily."

"Mas é claro. Só que é 'nós', e não 'a gente'. E basta pedir licença, sem entrar em detalhes."

Os gêmeos desceram das cadeiras. Quando chegaram à porta, Briony gritou, apontando.

"Minhas meias! Eles estão com as minhas meias dos moranguinhos!"

Os meninos pararam e se viraram; olharam envergonhados para os pés e depois para a tia. Briony estava semilevantada da cadeira. Robbie imaginou que as emoções fortes que a menina tinha de reprimir estavam tendo vazão.

"Vocês entraram no meu quarto e pegaram na minha gaveta."

Cecilia falou pela primeira vez durante a refeição. Também ela estava pondo para fora sentimentos mais profundos.

"Cale a boca, pelo amor de Deus! Você está mesmo uma prima-dona insuportável. Os meninos não tinham meias limpas, por isso eu peguei as suas."

Briony olhou para ela, atônita. Atacada, traída, pela pessoa que ela só queria proteger. Jackson e Pierrot ainda olhavam para a tia, que os despachou com um movimento de cabeça discreto. Eles saíram, fechando a porta com uma delicadeza exagerada, talvez até satírica, e, no momento em que soltaram a maçaneta, Emily pegou a colher; os outros a imitaram.

Disse ela, suave: "Você podia ser um pouco menos severa com a sua irmã".

Quando Cecilia se virou para a mãe, Robbie sentiu um leve cheiro de transpiração em suas axilas, o que o fez pensar em grama recém-cortada. Em breve estariam lá fora. Por um instante, fechou os olhos. Uma jarra grande de creme foi posta a seu lado, e ele ficou a imaginar se teria forças para levantá-la.

"Desculpe, Emily. Mas é que hoje ela está mesmo impossível."

Briony retrucou com uma tranqüilidade de adulto. "Essa é muito boa, vindo de você."

"O que você quer dizer com isso?"

Aquela pergunta, Robbie sabia, não deveria ter sido feita. Naquele momento de sua vida, Briony habitava um espaço de transição indefinido entre a esfera da infância e o mundo adulto, o qual ela cruzava de um lado para o outro de modo imprevisível. Na situação atual, seria menos perigosa no papel de menininha indignada.

Na verdade, Briony não tinha uma idéia muito clara do que ela própria queria dizer, mas Robbie não sabia disso, e rapidamente interveio para mudar de assunto. Virou-se para Lola à sua esquerda e disse, num tom que claramente se dirigia a todos os presentes: "Eles são muito simpáticos, os seus irmãos".

"Ha!", interveio Briony com ferocidade, sem dar à prima tempo de responder. "Pelo visto, você não está mesmo sabendo de nada."

Emily largou a colher. "Meu amor, se isso continuar vou ter que pedir para você se levantar da mesa."

"Mas olhe só o que eles fizeram com ela. Arranharam a cara dela e deram beliscões no braço!"

Todos os olhos fixaram-se em Lola. Seu rosto ficou vermelho por baixo das sardas, tornando o arranhão menos visível-

Disse Robbie: "Não parece ser nada sério".

Briony olhou para ele com raiva. Sua mãe disse: "Unhas de meninos. Seria bom passar uma pomada".

Lola bancou a corajosa. "Já passei. Não está mais doendo muito."

Paul Marshall pigarreou. "Eu vi a coisa acontecer — Tive que intervir e separar os meninos dela. Confesso que fiquei surpreso, uns meninos tão pequenos. Partiram para cima dela com vontade..."

Emily havia se levantado da cadeira. Colocou-se ao lado de Lola e ergueu seus braços. "Olhe só os braços dela! Isso não é só beliscão. Você está machucada até os cotovelos. Como foi que esses meninos fizeram isso?"

"Não sei, titia."

Mais uma vez, Marshall esticou-se para trás na sua cadeira Falando por trás das cabeças de Cecília e Robbie, dirigiu-se à menina, que olhava para ele com os olhos cheios de lágrimas. "Você não precisa se envergonhar de fazer queixa. Você é muito corajosa, mas o que fizeram com você não foi brincadeira."

Lola esforçava-se para não chorar. Emily encostou a sobrinha em seu ventre e acariciou-lhe a cabeça.

Disse Marshall a Robbie: "Você tem razão, eles são bons meninos. Mas imagino que estejam passando por maus bocados".

Robbie queria saber por que Marshall não havia tocado no assunto antes se Lola estava mesmo tão machucada, porém havia agora um estado de comoção geral na mesa. Leon perguntou à mãe: "Quer que eu telefone para um médico?". Cecília estava se levantando da mesa. Robbie tocou seu braço e ela se virou; pela primeira vez depois de deixarem a biblioteca, trocaram um olhar. Não havia tempo de estabelecer qualquer coisa além da conexão em si, e logo ela foi ter com a mãe, que começou a dar as instruções para o preparo de uma compressa fria. Emily murmurava palavras tranqüilizadoras, olhando para a cabeça da sobrinha. Marshall permaneceu sentado e encheu seu copo. Também Briony se levantou e, ao fazê-lo, deu mais um de seus gritos lancinantes de menina. Pegou um envelope que estava na cadeira de Jackson e levantou-o para que todos ouvissem.

"Uma carta!"

Ela estava prestes a abri-la. Robbie não conseguiu conter a pergunta: "A quem ela é dirigida?".

"Está escrito assim: 'A todos'."

Lola despregou-se da tia e enxugou o rosto com um guar-danapo. Emily, exercendo uma autoridade nova e surpreendente, disse: "Não abra. Faça o que estou lhe dizendo, traga a carta para mim".

Briony percebeu o tom de voz diferente de sua mãe e, obediente, contornou a mesa com o envelope na mão. Emily deu um passo para trás, afastando-se de Lola, e retirou uma folha de papel pautado. Enquanto lia, Robbie e Cecília também liam.

Nós vamos fugi porque a Lola e a Betty tratam agente muito mal e agente quer ir para casa. Desculpe agente levou umas frutas E além disso não teve pessa.

Haviam assinado apenas com os primeiros nomes, com muitos floreios em ziguezague.

Terminada a leitura, fez-se silêncio. Lola levantou-se e deu dois passos em direção à janela, depois mudou de idéia e voltou para a mesa. Olhava para um lado e para o outro, confusa, murmurando sem parar: "Que inferno, que inferno...".

Marshall aproximou-se dela e pôs a mão em seu braço. "Não se preocupe. Vamos organizar uns grupos de busca, e já, já vamos encontrar os dois."

"É claro", disse Leon. "Eles saíram ainda há pouco."

Mas Lola não os ouvia e parecia estar decidida. Enquanto caminhava em direção à porta, disse: "A mamãe vai me matar".

Quando Leon tentou segurá-la pelo ombro, ela se livrou com um gesto brusco e saiu pela porta afora. Todos ouviram-na correndo pelo hall.

Leon virou-se para a irmã. "Cee, você vem comigo."

Disse Marshall: "Não tem lua. Está muito escuro lá fora".

O grupo caminhava em direção à porta, e Emily disse: "É bom alguém ficar aqui esperando, e nesse caso fico eu".

Disse Cecília: "Tem lanternas atrás da porta do porão".

Leon disse à mãe: "Acho que você devia ligar para o policial".

Robbie foi o último a sair da sala de jantar e o último, pensou, a se adaptar à nova situação. Sua primeira reação, que não foi atenuada quando ele saiu para o hall relativamente fresco, foi pensar que fora logrado. Não conseguia acreditar que os gêmeos estivessem correndo perigo. Ficariam com medo das vacas e logo voltariam para casa. A imensidão da noite lá fora, as árvores escuras, as sombras convidativas, a grama fresca, recém-cortada — tudo isso fora reservado, tudo isso ele determinara que pertencia exclusivamente a ele e Cecilia. Tudo os aguardava, tudo era para uso deles. Amanhã, qualquer hora que não agora, não serviria. Porém, de repente, a casa despejara todo seu conteúdo na noite, que agora pertencia a uma crise doméstica meio cômica. Passariam horas lá fora, um gritando para o outro, brandindo as lanternas, e os gêmeos por fim seriam encontrados, cansados e sujos, Lola seria acalmada, e após uma troca de elogios em torno do último drinque a noite chegaria ao fim. Dias depois, ou até mesmo horas depois, tudo aquilo já teria se transformado numa lembrança engraçada, a ser inevitavelmente evocada nas reuniões de família: a noite em que os gêmeos fugiram.

Os grupos de busca já estavam partindo quando ele chegou à porta da frente. Cecilia estava de braço dado com o irmão e, enquanto se afastavam, ela olhou para trás e viu Robbie parado sob a luminária da porta. Ela dirigiu-lhe um olhar, um dar de ombros, cujo sentido era: por ora não podemos fazer nada. Antes que ele pudesse esboçar algum gesto de aceitação amorosa, ela se virou para a frente; saiu com Leon gritando os nomes dos meninos. Marshall seguia adiante, descendo a estrada principal; dele só se via a lanterna em sua mão. Lola não estava à vista. Briony caminhava em torno da casa. Ela, naturalmente, não ia querer ficar na companhia de Robbie, e isso lhe proporcionou um certo alívio, pois já havia decidido: se não podia estar com Cecilia, se não podia tê-la só para si, então também tal como Briony, faria sua busca sozinho. Essa decisão, como viria a reconhecer muitas vezes, transformou sua vida.

 

Por mais elegante que fosse outrora o velho prédio em estilo Adam, a dominar toda a paisagem do parque, suas paredes certamente não eram tão sólidas quanto as da esplêndida casa que a substituiu, e os cômodos da antiga mansão não encerrariam o silêncio teimoso que por vezes sufocava o lar dos Tallis. Emily sentia a presença acachapante daquele silêncio agora, ao fechar a porta da frente após a partida dos grupos de busca e virar-se para atravessar o hall. Betty e suas ajudantes ainda estariam comendo a sobremesa na cozinha, sem saber que a sala de jantar agora estava vazia. Não se ouvia nenhum som. As paredes, o revestimento de madeira, o peso dos apliques quase novos, os trasfogueiros colossais, as lareiras em que cabia uma pessoa em pé, feitas com pedra branca e nova, tudo remontava a uma época longínqua de castelos isolados e florestas silenciosas. A intenção de seu sogro, imaginava ela, fora a de criar um ambiente de solidez e tradição familiar. Um homem que passara a vida inventando ferrolhos e fechaduras haveria de conhecer o valor da privacidade. Os barulhos do mundo exterior eram quase completamente excluídos, e até mesmo os ruídos do próprio lar eram abafados, por vezes mesmo eliminados.

Emily suspirou, não conseguiu ouvir seu próprio suspiro direito e suspirou outra vez. Estava ao lado do telefone, que ficava numa mesa semicircular de ferro batido ao lado da porta da biblioteca, e sua mão pousou no fone. Para falar com o policial Vockins, ela primeiro teria de conversar com a esposa dele, uma mulher tagarela que gostava de falar sobre ovos e assuntos cor-relatos — o preço da ração das galinhas, as raposas, a fragilidade dos sacos de papel hoje em dia. Seu marido recusava-se a manifestar a deferência que seria de esperar num policial. Tinha ele um modo sincero de encarar os lugares-comuns que os fazia ressoar por trás da túnica apertada como se fossem pérolas de sabedoria conquistadas a duras penas: com ele, cesteiro que fazia um cesto fazia um cento, a preguiça era a mãe de todos os vícios e uma maçã podre estragava todo o barril. Comentava-se na aldeia que antes de se tornar policial e deixar crescer o bigode ele fora sindicalista. Alguém o vira, nos tempos da grande greve geral, levando panfletos num trem.

Além disso, o que ela pediria ao policial? Ele comentaria que menino era assim mesmo, acordaria meia dúzia de homens da região para formar um grupo de busca e, enquanto isso, já teria se passado uma hora e os gêmeos teriam voltado por conta própria, apavorados com a imensidão do mundo à noite. Na verdade, não estava preocupada com os meninos, e sim com a mãe deles, sua irmã; ou melhor, sua irmã encarnada no corpo esguio de Lola. Quando se levantou da mesa para ir confortar a menina, Emily detectou em si própria, surpresa, um travo de ressentimento. Quanto mais o sentia, mais carinhos fazia em Lola para disfarçar. O arranhão em seu rosto era inegável, o machucado no braço era mesmo chocante, levando-se em conta que fora obra de meninos pequenos. Porém um velho antagonismo torturava Emily. Era sua irmã Hermione que ela estava tranqüilizando — era Hermione, aquela pequena atriz que sempre roubava a cena, que ela apertava contra o seio. Tal como outrora, quanto mais Emily fervia por dentro, mais cuidadosa ficava. E, quando a pobre Briony encontrou o bilhete dos meninos, foi o mesmo antagonismo que levou Emily a se dirigir à filha com uma aspereza inusitada. Que injustiça! Porém a idéia de que sua filha, ou qualquer moça mais jovem que ela, abriria o envelope e elevaria a tensão dos ouvintes fazendo tudo um pouco mais lento do que necessário, e depois leria o bilhete em voz alta, dando a notícia e colocando-se no centro dos acontecimentos — essa idéia evocava velhas lembranças e pensamentos nada generosos.

Hermione passara a infância ceceando, saltitando e saraco-teando, sem desperdiçar uma única oportunidade de se exibir, sem perceber — assim pensava sua irmã mais velha, sempre calada e de cenho franzido — quanto seu comportamento parecia ridículo e desesperado. Havia sempre um adulto por perto para incentivar aquela ostentação implacável. E quando, aos onze anos de idade, num episódio famoso, Emily assustou toda uma sala cheia de visitas ao atravessar correndo uma vidraça, cortando a mão tão feio que uma chuva de sangue formou um buquê rubro no vestido de musselina branca de uma menina que estava por perto, foi sua irmã de nove anos que se tornou alvo de todas as atenções com um acesso de gritos. Enquanto Emily, deitada no chão, à sombra do sofá, era ignorada por todos, menos pelo tio médico, que lhe aplicava um torniquete, mais de dez parentes tentavam acalmar o faniquito de Hermione. E agora ela estava em Paris, saçaricando com um homem que trabalhava no rádio, enquanto Emily cuidava de seus filhos. Plus ça change, como diria o policial Vockins.

E Lola, tal como a mãe, era incontrolável. Assim que foi lida a carta, ela roubou as atenções com sua saída dramática. Mamãe vai me matar, pois sim. Ela estava mais era mantendo vivo o espírito da mãe. Quando os gêmeos voltassem, sem dúvida Lola ainda estaria desaparecida. Movida por um férreo princípio de egoísmo, ela prolongaria sua permanência na escuridão, envolvendo-se em alguma desgraça de sua própria autoria, de modo que, quando reaparecesse, o alívio de todos fosse mais intenso e todas as atenções se fixassem novamente nela. Naquela tarde, sem sair de sua cama, Emily adivinhara que Lola estava solapando o teatrinho de Briony, uma suspeita que foi confirmada pelo cartaz rasgado. E, tal como ela previra, Briony estava fora de casa, emburrada, em algum lugar onde ninguém conseguia encontrá-la. Lola era mesmo igualzinha a Hermione — sempre conseguindo fazer com que os outros se destruíssem sem que respingasse nenhuma culpa nela.

Emily permanecia parada no hall, indecisa, sem vontade de ir para nenhum cômodo em particular, tentando ouvir as vozes dos grupos de busca lá fora e — para ser franca — aliviada por não estar ouvindo nada. Era um drama em torno de coisa alguma, o sumiço dos gêmeos; era uma intromissão da vida de Hermione na sua. Não havia motivo para se preocupar com os meninos. Era pouco provável que eles se aproximassem do rio. Certamente ficariam cansados e voltariam para casa. Emily estava cercada por espessas muralhas de silêncio que zumbiam em seus ouvidos, ora mais alto, ora mais baixo, num ritmo todo seu. Ela retirou a mão do telefone e massageou a testa — nenhum sinal da fera da enxaqueca, graças a Deus — e foi em direção à sala de estar. Outro motivo para não ligar para o policial Vockins era que em breve Jack estaria telefonando, pedindo desculpas. O telefonema seria feito por intermédio da telefonista do ministério; em seguida, ela ouviria o jovem assessor de voz nasalada que parecia um relincho e por fim a voz do marido, falando de sua mesa, a ressoar na sala imensa com teto decorado. Que ele trabalhava até tarde, ela sabia-porém sabia também que ele não dormia no clube, e ele sabia que ela sabia disso. Mas não havia nada a dizer. Ou melhor havia coisas demais a dizer. Os dois tinham em comum o horror às brigas, e a regularidade daqueles telefonemas noturnos, embora ela não acreditasse no que ele dizia, tinha o efeito de confortar a ambos. Se essa falsidade era hipocrisia convencional, Emily tinha de admitir que a hipocrisia tinha lá sua utilidade. Havia coisas em sua vida que lhe davam contentamento — a casa, o parque e, acima de tudo, os filhos; para preservá-las, ela não questionava Jack. E sentia falta menos de sua presença que de sua voz ao telefone. Aquelas mentiras constantes, embora não fossem amor, eram uma forma de atenção; certamente ele haveria de gostar dela para inventar mentiras tão complexas durante tanto tempo. A falsidade de Jack era sua maneira de afirmar a importância de seu casamento.

Injustiçada como filha, injustiçada como esposa. Porém não era tão infeliz quanto devia ser. O primeiro papel a havia preparado para o segundo. Emily parou na entrada da sala de estar e observou que as taças de coquetel sujas de chocolate ainda não tinham sido levadas para a cozinha e que as portas que davam para o jardim continuavam abertas. Uma brisa levíssima agora começava a agitar os carriços diante da lareira. Duas ou três mariposas de corpos grossos voejavam em torno da luminária em cima do cravo. Será que alguém algum dia voltaria a tocar nele? O hábito que tinham as criaturas noturnas de ser atraídas pelas luzes, colocando-se no exato lugar onde mais se expunham aos predadores, era um dos mistérios que lhe davam um certo prazer. Ela preferia não conhecer a explicação. Uma vez, num jantar formal, um professor universitário, especialista em alguma ciência, para puxar conversa apontou para alguns insetos que voavam ao redor de um candelabro. O professor lhe disse que era a impressão visual de uma escuridão ainda mais profunda além da luz que os atraía. Embora se arriscassem a ser devorados, eram obrigados a obedecer ao instinto que os fazia buscar o lugar mais escuro, do outro lado da luz — o que, no caso, era uma ilusão. Emily achou aquilo um sofisma, ou uma explicação dada só pelo prazer de explicar. Como alguém podia conhecer o mundo visto pelos olhos de um inseto? Nem tudo no mundo tinha uma causa, e achar que sempre havia causa era uma interferência no funcionamento do mundo, uma coisa inútil que podia até levar ao sofrimento. Havia coisas que simplesmente eram porque eram.

Emily não queria saber por que Jack passava tantas noites consecutivas em Londres. Ou melhor, não queria que lhe dissessem por quê. Também não queria saber mais detalhes a respeito do trabalho que o obrigava a ficar até tão tarde no ministério. Alguns meses antes, não muito tempo depois do Natal, Emily entrou na biblioteca para despertá-lo — ele havia cochilado após o almoço — e viu um fichário aberto sobre a mesa. Uma tímida curiosidade conjugal levou-a a olhar, pois não tinha muito interesse por questões governamentais. Numa das páginas havia uma lista de itens: controles cambiais, racionamento, evacuação em massa de grandes cidades, recrutamento de mão-de-obra. A outra página estava escrita à mão. Nela havia uma série de cálculos aritméticos intercalados por blocos de texto. Em sua letra empinada e cuidadosa, Jack dizia que era necessário tomar cinqüenta como multiplicador. Para cada tonelada de explosivos lançados, devia-se calcular cinqüenta baixas. Se fossem lançadas cem mil toneladas de bombas em duas semanas, o resultado seria cinco milhões de baixas. Ela não havia ainda acordado o marido, e seu ronco suave, sibilante, combinava com o canto de algum pássaro hibernal que vinha do outro lado do gramado. Um sol aquoso brilhava nas lombadas dos livros e havia um cheiro de poeira quente por toda parte. Emily foi até a janela e olhou para fora, tentando localizar o pássaro em meio aos galhos nus de carvalho que se destacavam negros contra um céu riscado de cinza e azul-páli-do. Ela sabia perfeitamente que era necessário elaborar aquelas suposições burocráticas. E, naturalmente, os administradores tomavam precauções para se proteger de qualquer eventualidade. Mas aqueles números extravagantes haveriam de ser uma forma de megalomania, uma extravagância irresponsável. Era de esperar que Jack, o protetor da família, a pessoa que garantia a tranqüilidade dos seus, pensasse a longo prazo. Mas aquilo era uma bobagem. Quando ela o despertou, ele resmungou, inclinou-se para a frente e, com um movimento súbito, fechou o fichário, e então, ainda sentado, levou a mão da esposa aos lábios e deu-lhe um beijo seco.

Emily resolveu não fechar as portas envidraçadas e sentou-se numa das pontas do sofá. Sentia que não estava exatamente esperando. Ninguém sabia que ela possuía o dom de permanecer imóvel, sem nem sequer um livro no colo, e atravessar lentamente seus próprios pensamentos, como quem explora um jardim desconhecido. O aprendizado daquela paciência era fruto de anos contornando as crises de enxaqueca. A preocupação, o pensamento concentrado, a leitura, o olhar fixo, o desejo — tudo isso tinha de ser evitado; era se entregar a uma lenta correnteza de associações, enquanto os minutos se acumulavam como neve e o silêncio se aprofundava ao seu redor. Ali no sofá, sentia a aragem noturna balançar-lhe a barra do vestido, que roçava em sua canela. Sua infância era tão palpável quanto a seda furta-cor do vestido — um sabor, um som, um odor, tudo junto, formando uma única entidade que certamente era mais que um estado de espírito. Havia uma presença na sala, ela própria aos dez anos de idade, uma menina ressentida, negligenciada, ainda mais calada do que Briony, que se espantava com o vazio do tempo e se admirava de pensar que o século XIX estivesse prestes a terminar. Era típico dela, estar numa sala como essa e permanecer alheia a todos. Esse fantasma fora evocado não por Lola imitando Hermione, nem pelos gêmeos inescru-táveis a desaparecer na noite. Fora a lenta retração de Briony, seu recolhimento na autonomia, assinalando que sua infância chegava ao fim. Briony era sua última filha, e agora não havia nada, entre aquele momento e a morte, que algum dia viesse a ser tão visceralmente importante e delicioso quanto criar um filho. Emily não era boba. Sabia que era autocomiseração, essa contemplação melancólica do que lhe parecia ser sua própria desgraça: sem dúvida, Briony iria estudar no mesmo colégio que a irmã, e ela, Emily, ficaria com os membros cada vez mais duros e se tornaria cada vez mais irrelevante; a idade e o cansaço fariam com que Jack voltasse para ela, e nada seria dito, nada precisaria ser dito. E lá estava o fantasma de sua infância, espalhado pela sala, para lembrá-la do arco limitado da existência. Como a história terminava depressa! Não era imensa, nem vazia, e sim precipitada. Implacável.

Aquelas reflexões banais não tinham o efeito de deprimi-la. Emily flutuava acima delas, olhando para baixo, distanciada, entremeando-as com outros pensamentos. Estava pensando em plantar um tufo de ceanotos à margem do caminho da piscina. Robbie andava tentando convencê-la a construir uma pérgula e lazer com que nela se estendesse uma glicínia, uma trepadeira de crescimento lento; sua flor e seu perfume a agradavam. Porém, quando o efeito desejado fosse conseguido, ela e Jack já estariam mortos há muito tempo. A história teria chegado ao fim. Pensou em Robbie, que durante o jantar tinha algo de enlouquecido e vidrado no olhar. Estaria ele fumando os tais cigarros de maconha sobre os quais ela lera numa revista, que levavam jovens de tendências boêmias à loucura? Emily até gostava dele, e ficava feliz por Grace Turner ao ver que ele se tornara um rapaz inteligente. Mas no fundo Robbie era uma espécie de hobby de Jack, a prova viva de algum princípio igualitário que ele seguia havia anos. Quando falava sobre Robbie, o que não era muito freqüente, era sempre com um tom de quem reivindica uma vitória. Ele conseguira provar algo, algo que Emily imaginava ser uma crítica a ela. Pois ela fora contra a intenção de Jack de custear a escolarização do menino; achava uma intromissão e uma injustiça com Leon e as meninas. A seu ver, o fato de que Robbie concluíra seu curso em Cambridge com um diploma de primeira classe não provava que ela estava errada. Pelo contrário, tivera o efeito de constranger Cecília, com seu diploma de terceira, ainda que fosse um absurdo ela fazer de conta que estava decepcionada. Era a ascensão social de Robbie. "Isso não vai dar certo" era a expressão que ela sempre usava; a que Jack retrucava, orgulhoso, que aquilo já dera muito certo.

Fosse como fosse, Briony não tinha nada que falar com Robbie do modo como fizera durante o jantar. Emily compreendia perfeitamente que a menina tivesse seus ressentimentos; era de esperar. Mas manifestá-los era falta de dignidade. Ao pensar no jantar outra vez — realmente, o sr. Marshall soubera deixar todos à vontade. Seria um bom candidato? Bonito não era, infelizmente; a metade de cima do rosto parecia um quarto com excesso de mobília. Talvez com o tempo aquele queixo se tornasse másculo, aquele queixo que parecia uma fatia de queijo. Ou chocolate. Se ele conseguisse mesmo abastecer todo o exército britânico com suas barras Amo, ficaria riquíssimo. Mas Cecilia, que aprendera em Cambridge as formas modernas do esnobismo, achava que um homem formado em química era incompleto como ser humano. Palavras textuais dela. Havia passado três anos no Girdon College lendo os livros que poderia perfeitamente ter lido em casa — Jane Aus-ten, Dickens, Conrad, tinha tudo aquilo na biblioteca da casa, as obras completas. Por que motivo o fato de ter lido os romances que todos liam nas horas de lazer fazia com que ela se achasse melhor que todo mundo? Até mesmo um químico tinha lá sua utilidade. E aquele havia descoberto uma maneira de fazer chocolate com açúcar, substâncias químicas, corante marrom e óleo vegetal. Sem manteiga de cacau. A produção de uma tonelada dessa substância, ele explicara enquanto tomavam aquele estranho coquetel por ele preparado, saía quase de graça. Ele conseguiria vender mais barato que seus concorrentes e além disso aumentar sua margem de lucro. Talvez um pensamento vulgar, mas quanto conforto, quantos anos de tranqüilidade não poderiam ser gerados por aqueles toneis baratos?

Mais de meia hora se passou despercebida enquanto aqueles fragmentos — lembranças, juízos de valor, decisões vagas, perguntas — se desenrolavam silenciosamente à sua frente; sentada no sofá ela praticamente não mudara de posição e não ouvira o relógio dar o quarto de hora. Sentia que a brisa ficava mais forte, chegando a fechar uma das portas envidraçadas antes de esmorecer outra vez. Perturbou-a depois a presença de Betty, acompanhada por suas ajudantes, levando os pratos da sala de jantar, mas depois esses sons também morreram e mais uma vez Emily foi se afastando pelas estradas ramificadas de seus devaneios, passando de associação em associação, tudo isso com uma perícia que era fruto de mil dores de cabeça, evitando todas as coisas súbitas ou ásperas. Quando por fim o telefone tocou, ela se levantou imediatamente, sem esboçar nenhum gesto de susto ou surpresa, foi até o hall, pegou o fone e exclamou, como sempre, num tom de pergunta:

"Casa dos Tallis?"

Ouviu-se a telefonista, o assessor de voz nasalada, uma pausa, os estalidos do interurbano, e por fim o tom neutro de Jack.

"Meu amor. Mais tarde do que de costume. Mil desculpas."

Eram onze e meia. Mas ela não se importava, pois ele estaria de volta no fim de semana, e um dia voltaria para ficar, e nem uma só palavra indelicada seria pronunciada.

Disse ela: "Não tem problema".

"São as revisões do Comunicado sobre Defesa. Vai haver uma segunda tiragem. E mil e uma outras coisinhas."

"Rearmamento", disse ela, num tom tranqüilizador.

"Infelizmente."

"Sabe, está todo mundo contra."

Ele riu baixinho. "Não aqui no trabalho."

"Eu também estou."

"Pois é, amor. Espero convencer você um dia."

"E eu você."

Aquele diálogo continha um vestígio de afeto, e sua familiaridade era confortadora. Como sempre, ele pediu um relato dos acontecimentos do dia. Ela falou do calorão, da peça de Briony que acabou não havendo, da chegada de Leon com seu amigo, a respeito do qual ela disse: "Ele está do seu lado. Mas ele quer mais soldados para poder vender o chocolate dele ao governo".

"Sei. Chocolates em armas."

Ela fez um relato do jantar e falou do olhar esgazeado de Robbie durante a refeição. "Será que a gente realmente precisa custear a faculdade de medicina dele?"

"Sim. É uma jogada audaciosa. Típica dele. Eu sei que ele vai se dar bem."

Então Emily contou como havia terminado o jantar, com o bilhete dos gêmeos, e as equipes de busca se espalhando pelos arredores da casa.

"Aqueles malandrinhos. E onde eles tinham se enfiado?" "Não sei. Ainda estou aguardando notícias." Fez-se silêncio na linha, interrompida apenas pelos estali-dos mecânicos distantes. Quando o alto funcionário falou por fim, já havia tomado suas decisões. O fato de chamá-la pelo primeiro nome, coisa rara, demonstrava a seriedade de suas palavras.

"Vou desligar agora, Emily, porque vou chamar a polícia." "Será que é mesmo necessário? Até eles chegarem aqui..." "Assim que você tiver alguma notícia, me avise na mesma hora."

"Espere aí..."

Ao ouvir um ruído, Emily tinha se virado. Leon estava entrando pela porta da frente. Atrás dele vinha Cecilia, com um olhar de espanto mudo. Depois, Briony com o braço nos ombros da prima. O rosto de Lola estava tão branco e rígido, como uma máscara de argila, que Emily, incapaz de entender sua expressão, na mesma hora compreendeu que o pior havia acontecido. Onde estavam os gêmeos?

Leon atravessou o hall, vindo em direção à mãe, estendendo a mão para pegar o fone. Havia um risco de lama da boca da calça até a altura do joelho. Lama, num tempo tão seco. Ele estava esbaforido por ter feito algum esforço, e uma mecha de cabelos oleosos caiu-lhe sobre o rosto quando tomou da mãe o fone, dando-lhe as costas.

"É você, pai? Sim. Olha, acho melhor o senhor vir pra cá

agora. Não, não achamos, mas isso é o de menos. Não, não, não posso dizer agora. Se der, hoje mesmo. Vamos ter que chamar de qualquer jeito. Melhor o senhor chamar."

Emily pôs a mão no coração e deu dois passos para trás, em direção a Cecília e às meninas, que assistiam à cena. Leon agora estava sussurrando, falando depressa, ao telefone. Emily não conseguia ouvir nada, nem queria ouvir. Tinha vontade de se recolher a seu quarto, mas Leon concluiu a ligação com um estalar de baquelita e virou-se para ela. Seus olhos estavam apertados e duros; Emily não sabia se o que estava estampado neles era raiva. O rapaz tentava respirar cada vez mais fundo, esticando os lábios sobre os dentes, fazendo uma careta estranha.

Disse ele: "Vamos até a sala de estar, pra todo mundo poder sentar".

Ela entendeu perfeitamente. Ele não ia lhe contar nada naquele momento, não queria que ela caísse no chão de ladrilho e quebrasse a cabeça. Olhava para o filho, mas não se mexeu.

"Venha, Emily", disse ele.

Leon pousou a mão quente e pesada em seu ombro, e através da seda do vestido ela percebeu o quanto estava úmida. Impotente, deixou-se ser guiada até a sala de estar, todo seu terror concentrado no simples fato de que ele queria vê-la sentada antes de dar a notícia.

 

Dentro de meia hora, Briony cometeria seu crime. Cônscia de que havia um psicopata à solta na noite, de início ela se manteve próxima às paredes ensombradas da casa, agachan-do-se sempre que passava por uma janela iluminada. Sabia que ele estaria seguindo pela alameda principal porque era para lá que sua irmã e Leon tinham ido. Assim que julgou estar a uma distância segura, Briony afastou-se da casa, ousada, descrevendo um arco amplo que a levava em direção ao estábulo e à piscina. Certamente fazia sentido procurar os gêmeos lá, onde poderiam estar brincando com as mangueiras, ou flutuando de bruços na água, mortos, indistinguíveis até o fim. Ficou a imaginar como descreveria a cena, os gêmeos a oscilar levemente na superfície iluminada da água, os cabelos se espalhando como gavinhas, os corpos vestidos a se chocar um com o outro. O ar seco da noite penetrava pelo tecido de seu vestido, roçan-do-lhe a pele, e ela sentia-se lisa e ágil na escuridão. Não havia nada que ela não soubesse descrever-, o passo suave de um psicopata caminhando sinuosamente pela alameda, pisando na grama para que ninguém o visse se aproximar. Mas seu irmão estava com Cecília, e por isso não havia por que se preocupar com ela. Sabia descrever aquele ar delicioso também, a grama a desprender um maravilhoso cheiro de gado, a terra estorricada, que ainda continha as brasas do calor do dia e exalava um odor mineral de argila, e a brisa leve que trazia do lago um sabor de verde e prata.

Começou a correr num ritmo tranqüilo pela grama e pensou que seria capaz de continuar assim a noite inteira, cortando o ar sedoso como uma faca, impelida pelo impulso férreo do chão duro sob seus pés e pela escuridão que parecia duplicar a sensação de velocidade. Briony tinha sonhos em que corria assim, depois se inclinava para a frente, abria os braços e, confiando na fé — a única parte difícil, mas que dormindo era até fácil —, desprendia-se do chão com um simples passo, sobrevoava a baixa altura sebes, portões e telhados, depois ganhava altura, aproximando-se, exultante, da camada de nuvens, vendo os campos lá embaixo, e depois descia outra vez. Sentia agora de que modo isso seria possível, apenas com a força do desejo; o mundo que ela atravessava correndo a amava e lhe daria tudo que ela quisesse, e permitiria que isso acontecesse. E então, quando acontecesse, ela o descreveria. Pois escrever não era uma espécie de vôo, uma forma realizável de vôo da fantasia, da imaginação?

Porém havia um psicopata caminhando pela noite, com um coração negro e frustrado — fora ela que já o frustrara uma vez — e era preciso permanecer com os pés na terra para descrevê-lo também. Antes de mais nada, precisava proteger sua irmã e depois encontrar maneiras de evocá-lo, sem qualquer perigo, no papel. Briony agora caminhava num passo mais lento, pensando no quanto ele devia odiá-la por tê-lo interrompido na biblioteca. E, embora a idéia a horrorizasse, era também mais um limiar-, a primeira vez que era odiada por um adulto. As crianças odiavam de modo generoso e caprichoso, era um ódio que não tinha importância. Porém ser odiada por um adulto era ser iniciada num mundo novo, um mundo mais sério. Era uma promoção. Ele poderia ter voltado e estar à sua espera escondido atrás do estábulo, cheio de pensamentos assassinos. Mas Briony estava tentando não ter medo. Havia conseguido encará-lo na biblioteca quando sua irmã passou por ela, sem lhe dirigir nenhum olhar de reconhecimento por ela a haver salvado. Mas o que a interessava não era gratidão, ela sabia, não era nenhuma recompensa. Em questões de amor altruísta, não era necessário dizer nada, e ela protegeria sua irmã mesmo que Cecilia não reconhecesse sua dívida com ela. E agora Briony não podia ter medo de Robbie; era bem melhor deixar que ele se tornasse objeto de seu ódio e sua repulsa. Eles lhe haviam proporcionado tantas coisas boas, eles, os Tallis: o lar em que ele crescera, incontáveis viagens à França, o uniforme de seu colégio, os livros, e depois Cambridge — e, em retribuição, ele usara uma palavra terrível contra sua irmã, abusando da hospitalidade da família de modo absurdo, usara sua força contra ela também, depois aboletando-se à mesa de jantar como se nada houvesse acontecido. Quanto fingimento, e como ela tinha vontade de desmascará-lo! A vida de verdade, sua vida, que tinha início agora, lhe havia trazido um vilão na forma de um velho amigo da família, com braços fortes e desajeitados e um rosto másculo e simpático, que outrora a carregava nas costas e nadava com ela no rio, protegendo-a para que a correnteza não a levasse. Tudo isso fazia sentido — a verdade era estranha e enganosa, e era necessário lutar contra ela, lutar contra o fluxo do cotidiano. Era exatamente o que ninguém poderia esperar, e isso também fazia sentido — a entrada em cena de um vilão não era anunciada com sussurros e monólogos, e eles não vinham envoltos em capas pretas, fazendo caras feias. Do outro lado da casa, caminhando em sentido contrário a ela, estavam Leon e Cecília. Talvez ela estivesse lhe falando sobre o ataque que sofrera. Neste caso, ele teria colocado o braço em seu ombro. Juntos, os filhos da família Tallis haveriam de despachar aquele bruto, eliminá-lo de suas vidas. Teriam de enfrentar e converter seu pai, e confortá-lo quando ele reagisse com raiva e decepção. Então seu protegido revelava-se um psicopata! A palavra de Lola levantava uma poeira de outras palavras que a cercavam — psicótico, patológico, patético — e confirmavam o diagnóstico.

Briony contornou o estábulo e parou sob o arco da entrada, junto à torre do relógio. Gritou os nomes dos gêmeos, mas em resposta ouviu apenas o ruído de cascos e o baque de um corpo pesado contra a parede da baia. Felizmente ela jamais se afeiçoara a nenhum cavalo ou pônei, pois àquela altura de sua vida não estaria cuidando dele devidamente. Não se aproximou dos animais, embora eles sentissem sua presença. Do ponto de vista deles, um gênio, um deus, rondava a periferia de seu mundo, e eles estavam tentando atrair sua atenção. Porém Briony virou-se e seguiu em direção à piscina. Responsabilizar-se por alguém, mesmo por uma criatura como um cavalo ou um cão, não seria uma coisa fundamentalmente incompatível com a febril jornada interior exigida pela literatura? Preocupar-se em proteger um outro ser, envolver-se com uma mente alheia ao penetrá-la, assumir o papel dominante de guiar o destino de outro — tais coisas sem dúvida impediam a liberdade mental. Talvez ela viesse a se tornar uma dessas mulheres — objetos de piedade ou de inveja — que optavam por não ter filhos. Seguia] o caminho de tijolo que contornava o estábulo. Tal como a terra, os tijolos irradiavam o calor captado durante o dia. Ela o sentia no rosto e na perna nua enquanto passava.

Atravessou aos tropeços a escuridão do túnel de bambu e emergiu na geometria tranqüilizadora das pedras do pavimento.

As luzes da piscina, debaixo da água, haviam sido instaladas naquela primavera e ainda eram uma novidade. Aquele brilho azulado conferia a tudo em torno da piscina um ar incolor, como o luar, como uma fotografia. Havia uma jarra de vidro, dois copos e um pano sobre a velha mesa de metal. Um terceiro copo, contendo pedaços amolecidos de fruta, fora colocado em cima do trampolim. Não havia corpos na piscina, nem vinham risadas contidas do pavilhão escuro, nem cochichos das sombras do bambuzal. Briony circundou a piscina lentamente; não estava mais procurando nada, porém se sentia atraída pelo brilho e a imobilidade vítrea da água. Apesar da ameaça que o psicopata representava para sua irmã, era delicioso estar fora de casa tão tarde, com permissão da mãe. No fundo, não acreditava que os gêmeos estivessem correndo perigo. Mesmo que tivessem visto o mapa da região pendurado na biblioteca e fossem espertos o bastante para compreendê-lo, pretendendo seguir em direção ao norte caminhando a noite inteira, teriam de seguir a alameda que atravessava o bosque ao longo da ferrovia. Nessa época do ano, quando as folhagens das árvores estavam espessas, o caminho ficava imerso em total escuridão. A única outra rota era a que saía pelo portão em direção ao rio. Porém ali também não havia luz, não havia como se manter no caminho e evitar os galhos baixos das árvores, nem como se esquivar das urtigas que cresciam dos dois lados. Eles não teriam coragem suficiente para se envolver numa situação de risco.

Os gêmeos não corriam perigo; Cecilia estava com Leon, e ela, Briony, tinha liberdade de andar pelo parque escuro e pensar sobre o dia extraordinário que tivera. Sua infância chegara ao fim — decidiu enquanto voltava da piscina, no momento em que rasgou o cartaz. Havia deixado para trás os contos de fadas, e no intervalo de umas poucas horas havia testemunhado mistérios, lido uma palavra indizível, interrompido uma brutalidade e, tornando-se alvo do ódio de um homem em quem todos até então confiavam, passara a participar do drama da vida adulta. Agora só faltava descobrir as histórias, não apenas os temas, mas também o modo de desenvolvê-las, que fizessem justiça ao seu conhecimento recém-adquirido. Ou seria mais apropriado dizer: sua consciência acentuada de sua própria ignorância?

Os minutos que passara contemplando a água da piscina a fizeram pensar no lago. Talvez os meninos estivessem escondidos no templo da ilha. Era um lugar escuro, mas não muito isolado da casa, um local simpático que fornecia o consolo da água ( e não continha muitas sombras. Talvez os outros tivessem atravessado diretamente a ponte sem olhar lá. Ela resolveu seguir em frente e chegar ao lago após contornar os fundos da casa.

Dois minutos mais tarde, estava passando pelas roseiras e pelo caminho de cascalho à frente da fonte do tritão, cenário de mais um mistério que claramente prenunciava as brutalidades ocorridas depois. Enquanto passava pela fonte, julgou ouvir como que um grito sufocado, e teve a impressão de divisar, com o rabo do olho, uma luzinha se acendendo e apagando. Parou e ficou tentando ouvir algum som por trás do ruído de água gotejando. O grito e a luz tinham vindo do bosque junto ao rio, umas poucas centenas de metros dali. Briony caminhou naquela direção por meio minuto, parou e escutou outra vez. Mas não havia nada, só a massa escura do bosque discernível contra o azul acinzentado do céu para os lados do oeste. Após esperar um pouco, Briony resolveu voltar atrás. Para retomar a alameda, seguiu por um trecho diretamente em direção à casa, ao terraço, onde um lampião de parafina iluminava os copos, as garrafas e o balde de gelo a sua volta. As portas envidraçadas da sala de estar continuavam escancaradas para a noite. Briony olhou para dentro da sala. A luz de uma única luminária, viu, parcialmente coberta pela dobra de uma cortina de veludo, uma das extremidades de um sofá, acima do qual um objeto cilíndrico parecia pairar, enviesado. Foi só depois de avançar mais cinqüenta metros que se deu conta de que estava vendo uma perna humana separada do corpo. Ao aproximar-se ainda mais, apreendeu a perspectiva; era a perna de sua mãe, naturalmente, que esperava os gêmeos. A maior parte de seu corpo estava atrás da cortina, e uma das pernas, envolta numa meia, apoiava-se no joelho da outra, o que lhe dava aquela curiosa aparência enviesada, como se estivesse levitando.

Ao chegar perto da casa, Briony seguiu em direção a uma janela a sua esquerda, para que Emily não a visse. Do ângulo em que estava, não podia ver os olhos da mãe. Enxergava apenas a depressão do malar formada pela órbita do olho. Briony tinha certeza de que ela estaria de olhos fechados. A cabeça estava inclinada para trás, e as mãos se encontravam pousadas sobre o colo, entrelaçadas. O ombro direito subia e descia um pouco, ao ritmo de sua respiração. Briony não via a boca da mãe, mas conhecia a curva voltada para baixo, que facilmente podia ser tomada por sinal — hieróglifo — de repreensão. Porém a impressão era falsa, pois eram infinitas a bondade e a doçura de sua mãe. Vê-la sentada ali, sozinha, tarde da noite, era triste, porém aquela tristeza era agradável. Imbuída de uma sensação de adeus, Briony ficou a contemplar a mãe. Emily tinha quarenta e seis anos, uma idade já muito avançada. Um dia ela morreria. Haveria um enterro na cidadezinha, durante o qual Briony manteria uma atitude de silêncio digno que seria um sutil indício da imensidão de sua dor. Quando seus amigos viessem murmurar seus pêsames, eles haveriam de ficar impressionados pela grandiosidade de sua tragédia. Briony imaginava-se sozinha, em pé, numa grande arena, dentro de um coliseu monumental, sendo vista não apenas por todas as pessoas que conhecia, mas também por todas aquelas que viria a conhecer o elenco completo de sua existência, todos reunidos para amá-la em seu momento de perda. E no cemitério, no trecho conhecido como "canto dos avós", ela, Leon e Cecília permaneceriam unidos num abraço interminável, diante da lápide nova, cercada de capim alto, também sendo observados. Era necessário que houvesse testemunhas. Era a piedade daqueles observadores que fazia seus olhos marejar.

Naquele momento, poderia ter entrado em casa para abraçar-se à mãe e fazer para ela um resumo do dia. Se o tivesse feito, não teria cometido seu crime. Tantas coisas não teriam acontecido, nada teria acontecido, e a mão do tempo, que tudo aplaca, transformaria aquela noite numa noite nada memorável: apenas a noite em que os gêmeos fugiram. Quando foi mesmo, 34, 35, 36? Mas, por nenhum motivo em particular, apenas pela vaga obrigação de participar da busca e pelo prazer de estar fora de casa tão tarde, ela se afastou e, ao fazê-lo, seu ombro esbarrou numa das portas envidraçadas, fechando-a. Foi um baque nítido — pinho sobre madeira de lei —, que pareceu uma recriminação. Para ficar ali, ela teria de se explicar, e por isso fugiu para a escuridão, seguindo na ponta dos pés sobre as lajes e as ervas aromáticas que brotavam entre elas. Logo em seguida estava no gramado, entre as roseiras, onde era possível correr sem fazer barulho. Contornou a casa e chegou à frente, ao cascalho em que havia pisado descalça naquela tarde.

Ali diminuiu o ritmo dos passos ao entrar na alameda que dava na ponte. Tinha retornado ao ponto de partida e esperava ver os outros, ou ouvir seus gritos. Mas não havia ninguém. Os vultos escuros das árvores espaçadas do outro lado do parque a faziam hesitar. Alguém a odiava, era preciso lembrar-se disso, e esse alguém era imprevisível e violento. Leon, Cecilia e o sr. Marshall já estariam longe a essa altura. As árvores mais próximas, ou ao menos seus troncos, tinham forma humana. Ou podiam ocultar algum ser humano. Até mesmo um homem que estivesse parado diante de uma árvore seria invisível para ela agora. Pela primeira vez, percebeu a brisa que vinha das copas das árvores, e aquele som tão conhecido a perturbou. Milhões de agitações separadas e precisas bombardeavam seus sentidos. Quando o vento aumentou por alguns instantes, para morrer em seguida, o som foi se afastando dela, atravessando, como um ser vivo, o parque escuro. Briony parou e ficou pensando se teria coragem de seguir em frente até a ponte, atravessá-la, descer a encosta íngreme da ilha e entrar no templo. Ainda mais por não ter nenhum bom motivo para isso — apenas a intuição de que talvez os gêmeos tivessem se enfiado lá. Ao contrário dos adultos, ela estava sem lanterna. Não se esperava nada dela; todos a consideravam apenas uma criança. Os gêmeos não estavam correndo perigo.

Briony permaneceu parada no cascalho por um minuto ou dois; o medo não era forte a ponto de fazê-la voltar atrás, mas ela também não se sentia confiante o bastante para seguir em frente. Podia voltar para a mãe e fazer-lhe companhia na sala enquanto ela esperava. Podia seguir por uma rota menos perigosa, pela alameda principal, e depois retornar antes de entrar no bosque — e com isso dar a impressão de estar de fato participando da busca. Então, precisamente porque aquele dia lhe havia mostrado que ela não era mais uma criança, que ela agora era personagem de uma história mais rica e tinha de provar a si própria que merecia estar ali, obrigou-se a seguir em frente e atravessar a ponte. Sob seus pés, amplificado pelo arco de pedra, vinha o sibilar da brisa a agitar a sebe e um súbito bater de asas contra água que cessou abruptamente. Eram sons cotidianos amplificados pela escuridão. E a escuridão não era nada — não era uma substância, não era uma presença, não era nada mais do que ausência de luz. A ponte levava apenas a uma ilha artificial num lago artificial. Estava ali havia quase duzentos anos, e destacava-se de tudo o que havia a sua volta, e pertencia mais a Briony do que a qualquer outro. Ela era a única pessoa que costumava freqüentar aquele lugar. Para os demais, era só um corredor pelo qual passavam quando saíam de casa ou voltavam para ela, uma ponte entre as outras, um ornamento tão familiar que se tornara invisível. Hardman ia ali com o filho duas vezes por ano para cortar a grama em torno do templo. Vagabundos haviam passado pela ilha. De vez em quando, gansos migrantes desgarrados honravam com sua presença a pequena costa coberta de grama. Fora isso, era um lugar solitário habitado por coelhos, aves marítimas e ratos-d'água.

Assim, deveria ser uma coisa simples descer a encosta, atravessar o gramado e entrar no templo. Porém mais uma vez ela hesitou, e simplesmente olhou, sem nem sequer chamar os gêmeos pelo nome. A brancura indistinta do prédio brilhava na escuridão. Quando ela olhava diretamente para ele, o templo desaparecia por completo. Estava a cem metros dela, menos que isso, e à sua frente, no centro da expansão de gramado, havia um arbusto de cuja presença ela não se recordava. Ou melhor, lembrava-se dele mais perto da água. As árvores também não estavam tal como deveriam estar, até onde ela conseguia divisá-las. O carvalho parecia bulboso demais, o olmo esgarçado demais, e em sua estranheza os dois pareciam estar mancomunados. Quando Briony estendeu o braço para pôr a mão no parapeito da ponte, um pato assustou-a com um grasni-do agudo, desagradável, quase humano em sua entonação descendente. Era a encosta íngreme, naturalmente, que a fazia hesitar, a idéia de descer, e mais o fato de não haver muito sentido em ir ali. Porém ela já tomara sua decisão. Foi descendo de costas, agarrando-se nos tufos de capim, e ao final da descida parou apenas para limpar as mãos no vestido.

Caminhou diretamente para o templo, já havia dado sete ou oito passos e estava prestes a chamar pelos gêmeos quando o arbusto que estava diretamente a sua frente — o arbusto que deveria estar mais perto da água — começou a se dissolver, ou duplicar, ou estremecer, e depois bifurcou-se. Estava mudando de forma de modo complicado, tornando-se mais fino na base ao mesmo tempo que se erguia uma coluna de mais de um metro e meio de altura. Briony teria estancado imediatamente se ainda não estivesse convencida de que o vulto era de fato um arbusto, e que aquele efeito visual era algum truque causado pela escuridão e a perspectiva. Mais um ou dois segundos, mais dois passos, e ela viu que estava enganada. Então parou. A massa vertical era um vulto humano, uma pessoa que agora se afastava dela e já começava a se confundir com as árvores mais escuras ao fundo. A outra mancha escura que permanecia no chão era também uma pessoa, que mudou de forma outra vez quando se levantou, sentou e chamou-a pelo nome.

"Briony?"

Percebeu um tom de impotência na voz de Lola — era o som que ela atribuíra a um pato —, e no mesmo instante Briony compreendeu perfeitamente. A repulsa e o medo eram tamanhos que ela sentiu náusea. Então a figura maior reapareceu, contornando a clareira e seguindo em direção à ponte pela qual ela viera. Briony sabia que devia cuidar de Lola, mas não conseguia despregar os olhos do homem que subia a rampa depressa e sem esforço, desaparecendo na estrada. Ouviu seus passos caminhando em direção à casa. Não tinha dúvida. Ela seria capaz de descrevê-lo. Não havia nada que ela não soubesse descrever.

"Lola. Você está bem?"

Briony tocou-lhe o ombro, tentando sem sucesso alcançar sua mão. Lola estava sentada no chão, inclinada para a frente os braços cruzados sobre o peito, abraçando seu próprio corpo balançando-se lentamente. A voz saiu fraca e distorcida, como se tolhida por algum obstáculo, uma bolha, muco na garganta. Ela precisou pigarrear. Disse, incerta: "Desculpe, eu não, desculpe...".

Briony sussurrou: "Quem era?", e, antes que tivesse resposta, acrescentou, com toda a tranqüilidade de que era capaz. "Eu vi. Eu vi."

Submissa, Lola concordou: "É".

Pela segunda vez naquela noite, Briony sentiu uma onda de ternura pela prima. Juntas, estavam encarando terrores de verdade. Elas duas estavam próximas. Briony, de joelhos, tentava abraçar Lola e puxá-la para si, mas aquele corpo ossudo e resistente estava fechado em si mesmo como uma concha. Uma ostra. Lola se abraçava e balançava.

Disse Briony: "Foi ele, não foi?".

Ela sentiu contra o peito, mais do que viu, sua prima fazer que sim, lenta e pensativamente. Talvez fosse exaustão.

Depois de vários segundos, Lola disse, no mesmo tom fraco e submisso: "Foi. Foi ele".

De repente, Briony quis que a prima pronunciasse o nome dele. Para selar o crime, emoldurá-lo com a maldição da vítima, determinar seu destino com o ato mágico de pronunciar um nome.

"Lola", cochichou ela, sentindo um entusiasmo estranho que não seria capaz de negar. "Lola. Quem foi?"

Ela parou de se balançar. Tudo na ilha estava totalmente imóvel. Sem exatamente mudar de posição, Lola parecia se afastar, ou recuar, numa espécie de dar de ombros, para fugir ao toque amoroso de Briony. Virou o rosto para o outro lado, contemplando o vazio na direção do lago. Talvez estivesse a ponto de dizer alguma coisa, de dar início a uma longa confissão em que descobriria o que ela própria estava sentindo ao falar e se arrancar daquele torpor, em direção a algo que parecia ao mesmo tempo terror e felicidade. O gesto de virar para o lado talvez não fosse um distanciamento, e sim um ato de intimidade, uma maneira de se acalmar para poder começar a expressar seus sentimentos para a única pessoa que lhe parecia, ali, tão longe de sua casa, digna de confiança. Talvez já tivesse respirado fundo e entreaberto os lábios. Mas não adiantaria, porque Briony já estava se preparando para interrompê-la, e a oportunidade seria perdida. Tantos segundos já haviam se passado — trinta? quarenta e cinco? —, e a menina mais jovem não conseguia se conter. Tudo fazia sentido. Fora ela que descobrira. A história era dela, a história que estava se escrevendo por si própria a sua volta.

"Foi o Robbie, não foi?"

O psicopata. Ela queria pronunciar a palavra.

Lola não disse nada e permaneceu imóvel.

Briony repetiu a frase, mas dessa vez sem nenhum tom de pergunta. Era a afirmação de um fato. "Foi o Robbie."

Embora ela não tivesse se virado, nem esboçado o menor movimento, claramente alguma coisa estava mudando em Lola, um calor a emanar de sua pele e um ruído de quem engole em seco, uma convulsão dos músculos da garganta que parecia uma sucessão de estalos.

Briony disse outra vez. Simplesmente. "Robbie."

De outro lado do lago veio o som gordo e redondo de um peixe saltando da água, um som preciso e solitário, pois a brisa havia morrido por completo. Agora não havia nada de assustador nas copas das árvores nem na sebe. Por fim Lola virou-se lentamente e encarou-a.

Disse ela: "Você viu".

"Como que ele pôde fazer isso?", gemeu Briony. "Como?"

Lola pôs a mão no antebraço nu da prima e agarrou-o. As palavras tranqüilas saíram bem espaçadas. "Você viu."

Briony puxou Lola mais para perto e cobriu-lhe a mão com a sua. "Você nem sabe ainda o que aconteceu na biblioteca antes do jantar, logo depois da nossa conversa. Ele estava atacando a minha irmã. Se eu não entro na hora, nem sei o que ele era capaz de fazer..."

Embora estivessem muito próximas uma da outra, não era possível perceber uma expressão facial. O disco escuro do rosto de Lola não demonstrava absolutamente nada, mas Briony percebeu que ela não estava prestando atenção a suas palavras, e essa impressão foi confirmada quando ela interrompeu-a para repetir: "Mas você viu. Você viu que era ele".

"Claro que eu vi. Como se fosse de dia. Era ele."

Apesar do calor da noite, Lola estava começando a estremecer, e Briony lamentava não estar usando nada que pudesse tirar e colocar sobre os ombros da outra.

Disse Lola: "Ele veio por trás, sabe. Ele me derrubou... e então., ele empurrou minha cabeça e cobriu meus olhos com a mão. Eu não, sabe, eu não consegui...".

"Ah, Lola." Briony estendeu a mão para tocar o rosto da prima e encostou-a em sua bochecha. Estava seca, mas não continuaria assim por muito tempo, disso ela sabia. "Escute o que eu estou dizendo. Eu não tenho dúvida que foi ele. Eu conheço o Robbie desde pequena. Eu vi."

"Porque eu não sei direito. Quer dizer, até podia ser ele, pela voz."

"O que foi que ele disse?"

"Nada. Quer dizer, o som da voz dele, respirando, os barulhos. Mas eu não vi. Eu não seria capaz de dizer quem era."

"Pois eu sou. Eu digo."

E assim as posições assumidas por cada uma delas, que seriam expressas em público no decorrer das semanas e dos meses que se seguiriam, e viriam atormentá-las secretamente como demônios por muitos anos, foram determinadas naqueles momentos à beira do lago, a certeza de Briony aumentando sempre que sua prima parecia manifestar dúvida. Não se exigiu muita coisa de Lola depois disso, pois ela conseguiu se recolher por trás de um ar de perplexidade vulnerável, e na condição de paciente valiosa, vítima em recuperação, criança perdida, deixou-se ser levada pela piedade e pela culpa dos adultos que a cercavam. Como pudemos permitir que uma coisa dessas acontecesse com uma criança? Lola não podia ajudá-los, e nem precisava. Briony ofereceu-lhe uma oportunidade, e ela agarrou-a instintivamente; não, menos que isso — apenas deixou que a oportunidade descesse sobre ela. Não precisava fazer muito mais do que permanecer em silêncio por trás do empenho da prima. Lola não precisou mentir, encarar o suposto agressor e reunir coragem para acusá-lo, porque todo esse serviço foi feito para ela, inocentemente, sem malícia, pela prima mais nova. De Lola só se exigia que não revelasse a verdade, que a banisse e a esquecesse por completo, e que se convencesse não de alguma versão diferente, mas apenas de sua própria incerteza. Ela não conseguiu ver nada, a mão dele cobria seus olhos, ela estava apavorada, ela não era capaz de dizer.

Briony estava lá para ajudá-la em todas as etapas. Do seu ponto de vista, tudo se encaixava; o terrível presente era a concretização do passado recente. Acontecimentos que somente ela havia testemunhado prenunciavam a calamidade vivida por sua prima. Ah, se ela, Briony, tivesse sido menos inocente, menos obtusa. Agora ela entendia tudo, as coisas eram coerentes demais, simétricas demais, para não serem tal como ela as descrevia. Ela se culpava por ter imaginado, ingenuamente que Robbie limitaria seu interesse a Cecília. Como pudera pensar uma coisa dessas? Ele era um psicopata, afinal de contas. Para ele, qualquer uma servia. E era fatal que atacasse a mais vulnerável — uma mocinha magra, perambulando na escuridão num lugar desconhecido, corajosamente procurando os irmãos no templo da ilha. Exatamente o que Briony ia fazer. Sua indignação tornava-se ainda mais furiosa quando se dava conta de que a vítima poderia perfeitamente ter sido ela própria. Se sua pobre prima não era capaz de afirmar a verdade, então faria isso por ela. Eu sou. Eu digo.

Já na semana seguinte, a superfície vítrea da certeza ostentava algumas marcas e rachaduras finas. Quando se dava conta delas, o que não acontecia com freqüência, Briony era levada de volta, com uma leve sensação de vazio no estômago, à consciência de que o que ela sabia não era literalmente — ou apenas — fundamentado no que vira. Não tinham sido apenas os seus olhos que lhe disseram a verdade. Estava escuro demais para isso. Até mesmo o rosto de Lola a meio metro de distância era uma oval vazia, e o vulto estava a vários metros de distância, e deu-lhe as costas ao contornar a clareira. Mas o vulto não estava de todo invisível, e seu tamanho e seu modo de andar lhe eram familiares. Seus olhos confirmaram tudo o que ela sabia e havia vivenciado recentemente. A verdade estava na simetria, ou seja, fundamentava-se no bom senso. A verdade orientara seus olhos. Assim, ao dizer, e repetir tantas vezes, que o vira, estava dizendo a verdade, estava sendo tão honesta quanto veemente. O que ela queria dizer era bem mais complexo do que o que todos estavam prontamente dispostos a entender, e seus momentos de intranqüilidade ocorriam quando ela se dava conta de que não conseguia exprimir essas nuanças. Briony não fez nenhuma tentativa séria de exprimi-las. Não havia oportunidade, não havia tempo, não havia permissão. Em apenas dois dias — não, em umas poucas horas — já havia se instaurado um processo que escapava totalmente de seu controle. Suas palavras despertaram forças terríveis naquela cidadezinha tão conhecida e pitoresca. Era como se todas aquelas autoridades aterrorizantes, aqueles agentes de uniforme, tivessem passado anos aguardando por trás das fachadas das casas tão bonitas, esperando uma catástrofe que, elas sabiam, haveria de acontecer. As autoridades sabiam o que pensavam, o que queriam, o que fazer. A pergunta lhe era repetida vezes seguidas, e, quanto mais ela dava a mesma resposta, mais o ônus da coerência a constrangia. Era necessário dizer de novo o que dissera antes. Cada pequeno desvio fazia com que testas cheias de sabedoria se franzissem, olhares solidários se tornassem um pouco mais frios. Passou a ser importante para ela agradar a seus ouvintes, e rapidamente deu-se conta de que qualquer pequena ressalva perturbaria o processo que ela própria havia desencadeado.

Briony era como uma noiva que começa a sentir uma náusea de indecisão à medida que o dia se aproxima, mas não ousa dizer o que pensa porque já foram feitos tantos preparativos em torno dela. A felicidade e o conforto de muita gente boa seriam comprometidos. São momentos passageiros de intranqüilidade secreta, que só podem ser dissipados quando ela se entrega à alegria e à animação das pessoas que a cercam. Não é possível que tanta gente decente esteja enganada, e dúvidas como as dela, dizem-lhe, eram esperadas. Briony não queria voltar atrás. Achava que não tinha coragem para isso, depois de toda a sua certeza inicial e de dois ou três dias de entrevistas pacientes e bondosas com o fim de extrair seu depoimento. Porém ela teria preferido fazer uma ressalva ou, de algum modo, relativizar sua utilização do verbo "ver". Era menos ver do que saber. Nesse caso, caberia a seus interrogadores decidir se o processo poderia ir em frente com base nesse tipo de visão. Eles permaneciam impassíveis sempre que ela hesitava, e com firmeza a faziam lembrar as afirmações feitas anteriormente. Seria ela uma menina boba — era o que pareciam dar a entender — que havia desperdiçado o tempo de todo mundo? Além disso, encaravam de modo austero o aspecto visual. Ficou decidido que havia luz suficiente, das estrelas e das nuvens que refletiam a iluminação de rua da cidade mais próxima. Ou bem ela tinha visto, ou bem não tinha visto. Não havia nenhuma posição intermediária; ninguém lhe dizia isso explicitamente, porém era o que indicava a atitude brusca das pessoas. Nesses momentos, quando sentia que elas se tornavam mais frias, Briony relembrava o seu ardor inicial e repetia: eu vi. Sei que foi ele. E era confortador sentir que estava confirmando o que todos já sabiam.

Briony jamais pôde se consolar com o pensamento de que fora pressionada ou intimidada. Porque isso não aconteceu. Briony caiu numa arapuca armada por ela própria, penetrou num labirinto construído por suas próprias mãos, e era jovem demais, estava impressionada demais, excessivamente sequiosa de agradar aos outros, para insistir numa retração. Não possuía essa independência de espírito, nem tinha idade suficiente para isso. Uma platéia imponente se congregara em torno de suas certezas iniciais, e agora estava esperando; ela não podia decepcioná-la ao pé do altar. A única maneira de neutralizar suas dúvidas era afundar ainda mais. Aferrando-se ao que julgava saber, estreitando seus pensamentos, reiterando seu depoimento, conseguiu evitar pensar na catástrofe que apenas intuía estar causando. Quando a questão foi encerrada, quando foi pronunciada a sentença e a platéia se dispersou, um implacável esquecimento juvenil, um apagamento consciente, protegeu-a durante boa parte da adolescência.

"Pois eu sou. Eu digo."

Ficaram em silêncio por algum tempo, e o tremor de Lola começou a cessar. Briony julgou que devia levar a prima para casa, mas relutava em quebrar aquela intimidade momentânea — estava abraçando os ombros da menina mais velha, que parecia agora aceitar seu toque. Do outro lado do lago viram uma luzinha a oscilar — uma lanterna sendo carregada por alguém na alameda —, mas não fizeram nenhum comentário sobre ela. Quando por fim Lola falou, foi num tom reflexivo, como se estivesse ponderando sutis correntes de contra-argumentação.

"Mas não faz sentido. Ele é tão amigo da sua família. Pode não ter sido ele."

Briony murmurou: "Você não diria isso se tivesse visto o que eu vi na biblioteca".

Lola suspirou e balançou a cabeça devagar, como se tentasse conciliar-se com a verdade inaceitável.

Ficaram caladas outra vez, e poderiam ter ficado ali por mais tempo se não fosse a umidade — ainda não era orvalho — que começava a descer sobre a grama à medida que as nuvens se dissipavam e a temperatura caía.

Quando Briony perguntou num cochicho "Você acha que consegue andar?", ela fez que sim, corajosa. Briony ajudou-a a se levantar, e, primeiro de braços dados, depois com Lola apoiando seu peso no ombro de Briony, atravessaram a clareira em direção à ponte. Chegaram ao pé da encosta, e foi ali que Lola finalmente começou a chorar.

Não vou conseguir subir isso", tentou dizer várias vezes.

Estou muito fraca." Seria melhor, Briony decidiu, correr até a casa e chamar alguém para ajudá-la, e justamente quando ia dizer isso a Lola e largá-la sentada no chão ouviram vozes vindo da estrada lá em cima, e em seguida uma lanterna iluminou seus rostos. Um milagre, pensou Briony, quando ouviu a voz, do irmão. Herói de verdade que era, ele desceu a encosta com uns poucos passos ágeis e, sem nem sequer perguntar o que ocorrera, tomou Lola nos braços e levantou-a como se fosse uma criancinha. Cecília chamava por elas com uma voz que parecia rouca de preocupação. Ninguém respondeu. Leon já estava subindo a encosta num passo tão rápido que era difícil acompanhá-lo. Mesmo assim, antes de chegarem à estrada, antes que ele pudesse largar Lola no chão, Briony começou a lhe contar o que havia acontecido, exatamente tal como ela vira.

As lembranças do interrogatório e dos testemunhos assinados, e da impressão causada pelo prédio do tribunal, no qual não pôde entrar por ser menor de idade, não viriam supliciá-la no futuro tanto quanto as imagens fragmentárias daquela madrugada de verão. A culpa refinava os métodos de tortura que ela se infligia, enfiando uma a uma as contas dos detalhes num fio eterno, um rosário que ela passaria o resto da vida dedilhando.

Finalmente de volta à casa, teve início um período onírico marcado por semblantes sérios, lágrimas e sussurros, passos apressados no hall, e o que continha sua sonolência era aquele entusiasmo atroz. Naturalmente, Briony era madura o bastante para saber que a dona daquele momento era Lola, mas sua prima foi logo levada para seu quarto, por mãos femininas carinhosas, para lá aguardar o exame médico. Do pé da escada Briony via Lola subir, soluçando ruidosamente, ladeada por Emily e Betty, e seguida por Polly, que levava uma bacia e toalhas. Tão logo sua prima saiu de cena, Briony passou a desempenhar o papel central — ainda não havia sinal de Robbie —, e o modo como a ouviam, a deferência que lhe prestavam, o modo sutil como tentavam extrair-lhe informações, tudo isso parecia confirmar sua maturidade recém-obtida.

Deve ter sido mais ou menos nesse momento que um Humber estacionou em frente à casa e dele saltaram dois policiais e dois inspetores de polícia. Briony era a única fonte de informação, e ela obrigou-se a falar com voz tranqüila. A consciência de que desempenhava um papel fundamental reforçava sua convicção. Isso foi no momento confuso antes das entrevistas formais, quando ela estava falando com os policiais em pé no hall, entre Leon e sua mãe. Mas como fora que sua mãe, antes à cabeceira de Lola, surgira assim tão subitamente? O inspetor mais velho tinha um rosto pesado, pleno de rugas, como se tivesse sido esculpido em granito. Briony sentia medo ao fazer seu relato diante daquela máscara atenta e imóvel; ao mesmo tempo sentia que um peso se desprendia de seus ombros e uma sensação cálida de submissão se espalhava do ventre em direção aos membros. Era uma espécie de amor, um amor repentino por aquele homem atento que defendia a causa do bem sem nenhum questionamento, que saía de casa a qualquer hora do dia ou da noite para combater o mal e que era apoiado por todo o poder e todo o saber humanos. Sob aquele olhar neutro, Briony sentia que sua garganta apertava e sua voz fraquejava. Queria que o inspetor a abraçasse, confortasse e perdoasse, embora ela não tivesse culpa alguma. Porém ele se limitava a olhar para ela e escutar. Foi ele. Eu vi. As lágrimas de Briony eram uma prova adicional da verdade que ela sentia e dizia, e quando a mão de sua mãe lhe acariciou a nuca ela caiu num pranto incontrolável e foi levada para a sala de estar.

Mas se ela estava sentada no sofá sendo consolada pela mãe, como poderia se lembrar da chegada do dr. McLaren, com seu colete preto e seu colarinho alto antiquado, e mais a maleta que havia assistido aos três nascimentos e a todas as doenças infantis da família Tallis? Leon reuniu-se com o médico, inclinando-se em direção a ele para lhe passar, num murmúrio viril, um resumo dos acontecimentos. Onde estava a leveza despreocupada de Leon agora? Aquela conversa silenciosa foi típica das horas que se seguiram. Cada nova pessoa que chegava era submetida ao mesmo sussurro; as pessoas — policiais, o médico, familiares, criados — reuniam-se em grupos que se desfaziam e voltavam a se formar nos cantos dos cômodos, no hall e no terraço, perto das portas envidraçadas. Nada era amplamente compartilhado ou formulado em público. Todos conheciam os detalhes terríveis da violação, porém o crime permanecia na condição de segredo comum a todos, discutido em cochichos pelos grupos que logo se dissolviam quando seus membros iam muito sérios cuidar de outros assuntos. Ainda mais grave, potencialmente, era a questão das crianças desaparecidas. Porém a opinião geral, repetida constantemente como se fosse uma fórmula mágica, era a de que estariam dormindo tranqüilamente em algum ponto do parque. Assim, a maioria das atenções estava concentrada na pobre moça recolhida a um quarto no andar de cima.

Paul Marshall voltou da busca e foi informado do ocorrido pelos inspetores. Andava pelo terraço de um lado para outro com eles, um de cada lado, oferecendo-lhes cigarros de uma cigarreira de ouro. Quando a conversa terminou, ele deu um tapinha no ombro do inspetor mais velho, como se os despachasse. Em seguida, entrou na casa para reunir-se com Emily Tallis. Leon levou o médico ao andar de cima, e este desceu algum tempo depois, de certo modo engrandecido pelo contato profissional que tivera com o centro de todas as preocupações. Também ele conversou um bom tempo com os dois inspetores, depois com Leon, e por fim com Leon e a sra. Tallis.

Pouco antes de ir embora, o médico se aproximou de Briony pôs a mãozinha seca em sua testa, tomou-lhe o pulso e deu-se por satisfeito. Pegou a maleta, mas, antes de sair, ainda teve uma última conversa murmurada junto à porta da frente.

Onde estava Cecília? Rondando as periferias, sem falar com ninguém, fumando sem parar, levando o cigarro aos lábios com um movimento rápido e faminto e depois retirando-o com uma repulsa nervosa. Às vezes andava pelo hall torcendo um lenço com as mãos. Em circunstâncias como aquela, o normal seria que ela assumisse o controle, administrando os cuidados com Lola, tranqüilizando sua mãe, ouvindo os conselhos do médico, consultando Leon. Briony estava perto quando seu irmão veio falar com Cecilia, a qual lhe deu as costas, incapaz de ajudar, incapaz de até mesmo falar. Quanto à mãe, ao contrário do que era de esperar, enfrentou a crise sem enxaqueca e sem necessidade de ficar sozinha. Ela parecia crescer enquanto sua filha mais velha recolhia-se ao sofrimento íntimo. Havia momentos em que Briony, mais uma vez chamada para dar depoimento ou repetir algum detalhe, via sua irmã aproximar-se o bastante para ouvir o que estava sendo dito e contemplar a cena com um olhar feroz e impenetrável. Briony começou a temê-la e a manter-se próxima da mãe. Os olhos de Cecilia estavam vermelhos. Enquanto os outros se reuniam em grupos e cochichavam, ela andava de um lado para outro, inquieta, de um cômodo para o outro, e pelo menos duas vezes saiu de casa e se colocou junto à porta. Nervosa, passava o lenço de uma mão para a outra e enrolava-o nos dedos; depois o desenrolava, formando uma bola com ele, passava-o para a outra mão e acendia outro cigarro. Quando Betty e Polly traziam chá, Cecilia recusava-se a prová-lo.

Espalhou-se a notícia de que Lola, a quem o médico dera um sedativo, estava finalmente dormindo, e todo mundo ficou temporariamente aliviado. Naquele momento, por coincidência, todos estavam reunidos na sala de estar, tomando chá em silêncio, exaustos. Ninguém dizia nada, mas estavam esperando por Robbie. Além disso, o sr. Tallis estava para chegar de Londres a qualquer momento. Leon e Marshall encontravam-se debruçados sobre um mapa do terreno da casa, que estavam desenhando para o inspetor. Este tomou o mapa, examinou-o e entregou a seu assistente. Os dois policiais, junto com outras pessoas, continuavam procurando por Pierrot e Jackson, e mais policiais, segundo se dizia, estariam a caminho do bangalô, na possibilidade de encontrar Robbie ali. Tal como Marshall, Cecilia estava isolada dos outros, sentada no banco do cravo. Quando se levantou para pedir que o irmão lhe acendesse o cigarro, o inspetor-chefe apressou-se para oferecer seu isqueiro. Briony estava sentada no sofá ao lado da mãe, e Betty e Polly serviam chá a todos. Briony depois não se lembraria do que lhe deu a idéia de repente. Muito límpida e convincente, a idéia pareceu-lhe brotar do nada, e ela não precisou anunciar sua intenção, nem pedir permissão para a irmã. Uma prova cabal, totalmente independente da versão por ela apresentada. Confirmação. Ou até mesmo um outro crime, diferente. Ela assustou os outros com sua interjeição e quase derrubou a xícara de chá que estava no colo da mãe quando se levantou.

Todos a viram sair às pressas da sala, mas ninguém lhe perguntou nada, de tão cansados que estavam. Briony, enquanto isso, subia a escada dois degraus de cada vez, movida pela consciência de estar fazendo o bem, de estar sendo boa, de estar prestes a fazer uma revelação inesperada que certamente lhe granjearia elogios. Era mais ou menos como o que uma pessoa sente, numa manhã de Natal, antes de dar um presente que certamente deliciará a pessoa presenteada, uma sensação de júbilo, de amor-próprio sem culpa.

Briony seguiu correndo pelo corredor do segundo andar até chegar ao quarto de Cecília. Como sua irmã conseguia viver naquela bagunça? As duas portas do armário estavam escancaradas. Vários vestidos pendiam tortos, e alguns estavam presos aos cabides apenas por um dos lados. Havia dois vestidos embolados no chão, um preto, um rosa, roupas aparentemente caras, de seda, e a seu lado sapatos largados de qualquer jeito. Briony foi contornando e saltando por cima daquele caos até chegar à penteadeira. Qual seria o impulso que impedia Cecília de tampar ou fechar todos os seus cosméticos e perfumes? Por que motivo jamais esvaziava seu cinzeiro fedorento? Nem fazia a cama, nem abria a janela para deixar entrar ar fresco? A primeira gaveta que Briony resolveu explorar só abriu uns poucos centímetros — estava abarrotada de frascos e mais uma caixa de papelão. Embora Cecília fosse dez anos mais velha que ela, sob certos aspectos era totalmente incapaz. Briony preocupava-se com o olhar esgazeado da irmã, mas mesmo assim era certo, pensava enquanto abria a outra gaveta, ela estar ali, pensando com clareza, agindo em prol da irmã. .

Cinco minutos depois, quando voltou triunfante para a sala de estar, ninguém lhe deu nenhuma atenção, e tudo estava exatamente como antes — um monte de adultos cansados e infelizes tomando chá e fumando em silêncio. Afobada, Briony não havia resolvido a quem daria a carta; na sua imaginação, todos a leriam ao mesmo tempo. Decidiu entregá-la a Leon. Atravessou a sala em direção ao irmão, mas, quando se viu diante dos três homens, mudou de idéia e pôs a folha de papel dobrada nas mãos do policial com rosto de granito. Se havia em sua face alguma expressão, ela não mudou quando ele pegou a carta, nem mesmo depois que a leu, o que fez rapidamente, quase com uma única vista de olhos. Seu olhar se encontrou com o de Briony, depois voltou-se para Cecília, que estava olhando para outro lado. Com um movimento mínimo do pulso, fez sinal ao seu colega para que ele lesse a carta. Quando terminou, passou-a para Leon, que leu e devolveu-a ao inspetor-chefe. Briony ficou impressionada com aquela reação muda — eram mesmo muito sofisticados aqueles três homens. Foi só então que Emily Tallis se deu conta do objeto de interesse deles. Em resposta à pergunta que ela fez sem muita ênfase, Leon respondeu: "É só uma carta".

"Quero ler."

Pela segunda vez naquela noite, Emily viu-se obrigada a afirmar seu direito de ler mensagens escritas que circulavam por sua casa. Percebendo que nada mais se exigia dela, Briony voltou para o sofá e ficou vendo, do ponto de vista da mãe, o mal-estar cavalheiresco de seu irmão e dos dois policiais.

"Quero ler."

Falou no mesmo tom de voz de antes, o que era algo ameaçador. Leon deu de ombros e forçou um sorriso de quem pede desculpas — que objeção poderia ele fazer? —, e o olhar tranqüilo de Emily voltou-se para os dois inspetores. Ela pertencia a uma geração que tratava os policiais como criados, qualquer que fosse sua posição hierárquica. Obedecendo ao sinal que lhe fez seu superior, o inspetor mais jovem atravessou a sala e entregou a carta a ela. Finalmente Cecilia, que devia estar com a cabeça muito longe, manifestou interesse. Agora a carta estava exposta, no colo da mãe, e Cecilia se levantou do banco de repente, aproximando-se dos homens.

"Que ousadia! Mas que ousadia de vocês!"

Leon levantou-se também, e tentou acalmá-la com um gesto de mãos abertas. "Cee..."

Quando ela fez menção de arrancar a carta da mãe, constatou que não apenas seu irmão como também os dois inspetores estavam na sua frente. Marshall também estava em pé porém não interferia.

"É minha", gritava ela. "Vocês não têm o direito, de jeito nenhum!"

Emily nem sequer levantou os olhos, porém se permitiu ler a carta várias vezes. Quando terminou, encarou a fúria da filha com uma versão mais fria do mesmo sentimento.

"Se você tivesse agido corretamente, mocinha, com toda a instrução que você teve, e tivesse me mostrado isso, então a gente poderia ter agido a tempo e a sua prima não teria passado por esse pesadelo."

Por um momento, Cecilia ficou parada no meio da sala, agitando os dedos da mão direita, olhando fixamente para uma pessoa de cada vez, incapaz de acreditar que tinha ligação com aquela gente, incapaz até mesmo de começar a dizer a todos o que ela sabia. E, embora Briony sentisse que a reação dos adultos lhe dava razão e estivesse começando a experimentar um êxtase interior delicioso, também dava graças por estar sentada ao lado da mãe no sofá, onde os homens em pé à sua frente protegiam-na parcialmente dos olhos de sua irmã, vermelhos e cheios de desprezo. Cecilia manteve a todos transfixados por seu olhar durante alguns segundos, e em seguida virou-se e saiu da sala. Quando passava pelo hall, emitiu um grito de dor que foi amplificado pela acústica do piso de ladrilhos. Na sala, houve uma sensação de alívio, quase de relaxamento, enquanto ouviam seus passos subindo a escada. Quando Briony voltou a pensar na carta, esta já se encontrava nas mãos de Marshall, que a devolveu ao inspetor, o qual a guardou desdobrada numa pasta que o policial mais jovem abrira para ele.

As horas da noite iam se desprendendo dela, e Briony ainda não estava cansada. Ninguém se lembrava de mandá-la se deitar. Depois que Cecilia subiu, decorreu um intervalo incomensurável até que Briony fosse com a mãe à biblioteca para ter sua primeira entrevista formal com a polícia. A sra. Tallis permaneceu em pé; Briony sentou-se de um lado da escrivaninha enquanto os inspetores sentaram do outro. O homem com rosto de pedra, que foi quem fez as perguntas, revelou-se dotado de uma bondade infinita; falava sem pressa com uma voz rouquenha que era ao mesmo tempo bondosa e triste. Como ela podia mostrar-lhes o local exato em que Robhie atacara Cecilia, foram todos para aquele canto para ver de perto. Briony espremeu-se entre as estantes para mostrar a posição em que sua irmã estava, e viu os primeiros sinais azulados da manhã nas vidraças das janelas altas da biblioteca. Depois saiu dali e virou-se para demonstrar a posição do agressor e indicar onde ela própria ficara.

Perguntou Emily: "Mas por que você não me disse nada?".

Os policiais olharam para Briony e ficaram esperando. Era uma boa pergunta, mas jamais lhe teria ocorrido incomodar sua mãe. O único resultado teria sido uma enxaqueca.

"Chamaram a gente pra jantar, e depois os gêmeos fugiram."

Ela explicou como a carta foi parar em sua mão, na ponte ao pôr-do-sol. O que a levou a abri-la? Difícil explicar o impulso daquele momento, em que ela não se permitiu pensar nas conseqüências antes de agir, explicar que a escritora que ela se tomara naquele exato dia precisava saber, compreender tudo o que encontrasse.

Ela respondeu: "Não sei. Fui terrivelmente intrometida, fiquei com raiva de mim mesma".

Foi mais ou menos nesse momento que um policial pôs a cabeça dentro da biblioteca para dar uma notícia que parecia bem apropriada àquela noite catastrófica. O motorista do sr. Tallis havia ligado de uma cabine telefônica perto do aeroporto de Croydon. O carro do ministério, que fora cedido em caráter de emergência pelo próprio ministro, havia pifado num subúrbio. Jack Tallis estava dormindo sob um cobertor no banco de trás, e provavelmente teria de seguir viagem no primeiro trem da manhã. Depois que esses fatos foram absorvidos e lamentados, Briony foi delicadamente levada a evocar o incidente em si, os acontecimentos da ilha do lago. Nesse primeiro momento, o inspetor teve o cuidado de não oprimir a menina com perguntas invasivas, e dentro daquele espaço criado com sensibilidade ela conseguiu construir e dar forma a sua narrativa com suas próprias palavras, determinando os fatos básicos: a luminosidade, embora parca, era suficiente para ela reconhecer um rosto familiar; quando ele recuou dela e contornou a clareira, seus movimentos e sua altura também lhe eram familiares.

"Então você o viu."

"Eu sei que foi ele."

"Vamos deixar de lado o que você sabe. Você está dizendo que o viu."

"Vi, sim."

"Tal como você está me vendo."

"Isso mesmo."

"Você o viu com seus próprios olhos."

"Vi, sim. Eu vi. Eu vi."

Assim terminou sua primeira entrevista formal. Enquanto ela esperava na sala de estar, finalmente sentindo cansaço, mas não querendo ir deitar, sua mãe foi interrogada, depois Leon e Paul Marshall. O velho Hardman e seu filho Danny também foram ouvidos. Briony ouviu Betty dizer que Danny passou a noite inteira em casa com o pai, que pôde testemunhar em seu favor. Vários policiais que tinham ido procurar os gêmeos chegavam à entrada da frente e eram conduzidos à porta da cozinha. No intervalo confuso e nada memorável das primeiras horas daquela manhã, Briony entendeu que Cecília se recusava a sair do quarto e descer para ser entrevistada. Nos dias que se seguiram, foi-lhe explicado que ela não tinha opção, e quando por fim Cecília apresentou sua própria versão do que acontecera na biblioteca — a qual foi, de certo modo, muito mais chocante do que a versão de Briony, embora o encontro tivesse sido consensual —, o efeito foi apenas o de confirmar a idéia geral que já havia se formado: o sr. Turner era um homem perigoso. Cecília insistia que deviam estar interrogando Danny Hardman, mas essa sugestão era ouvida em silêncio. Era compreensível, ainda que lamentável, que aquela jovem tentasse proteger seu amigo jogando suspeitas sobre um menino inocente.

Algum tempo depois das cinco, quando começava a se falar de preparar o café da manhã — ao menos para os policiais, pois ninguém mais estava com fome —, espalhou-se pela casa a notícia de que um vulto que talvez fosse Robbie fora divisado no parque, aproximando-se da casa. Talvez alguém estivesse olhando por uma janela do segundo andar. Briony não sabia quem tomara a decisão de que todos sairiam de casa para esperá-lo. De repente lá estavam todos, a família inteira, Paul Marshall, Betty e suas ajudantes, os policiais, um comitê de recepção amontoado em torno da porta da frente. Apenas Lola, sedada, e Cecília, furiosa, permaneciam no andar de cima. Talvez a sra. Tallis não quisesse que a presença do criminoso poluísse seu lar. O inspetor talvez temesse uma cena de violência, e nesse caso seria melhor estar do lado de fora, onde havia mais espaço para realizar a captura. Toda a magia do amanhecer já se dissipara, substituída por uma manhã cinzenta, com uma névoa de verão que logo haveria de evaporar.

De início ninguém viu nada, embora Briony julgasse escutar passos na alameda. Em seguida, todos passaram a ouvir o ruído, e um murmúrio coletivo emergiu do grupo inquieto quando divisaram um vulto indefinível, apenas uma mancha cinzenta contra o fundo branco, a quase cem metros de distância. A medida que o vulto foi se tornando nítido, o grupo voltou a silenciar-se. Impossível acreditar naquela forma que começava a surgir. Certamente era um efeito da névoa e da luminosidade. Ninguém, naquela era de telefones e automóveis, poderia acreditar que gigantes de dois metros e meio de altura existissem numa região densamente povoada como Surrey. Pois era o que viam, uma aparição inumana e determinada. A coisa era impossível e inegável, e estava se aproximando deles. Betty, que era católica, fez o sinal-da-cruz, e todos se aproximaram um pouco mais da porta. Apenas o inspetor-chefe deu dois passos à frente, e nesse momento tudo se esclareceu. A pista foi um segundo vulto, bem pequeno, que surgiu saltitante ao lado do primeiro. Claro — era Robbie, com um dos meninos sentado em seus ombros e o outro de mãos dadas com ele, seguindo um pouco atrás. Quando estava a menos de dez metros, Robbie parou, e parecia prestes a dizer alguma coisa, porém esperou que o inspetor e os outros policiais se aproximassem dele. O menino sentado em seus ombros parecia estar dormindo. O outro encostou a cabeça na cintura de Robbie e puxou-lhe a mão sobre seu peito, para se proteger ou aquecer.

A primeira reação de Briony foi de alívio, de ver que os meninos estavam bem. Mas, vendo Robbie aguardando calmamente, sentiu um lampejo de indignação. Então ele julgava que poderia ocultar seu crime por trás de uma bondade aparente, por trás da imagem de bom pastor? Sem dúvida, era uma tentativa cínica de conseguir perdão por um ato imperdoável. Mais uma vez, confirmava-se para ela a idéia de que o mal era complexo e enganador. De repente sentiu as mãos de sua mãe apertando-lhe os ombros com força e virando-a em direção à casa, entregando-a aos cuidados de Betty. Emily queria que sua filha ficasse bem distante de Robbie Turner. Finalmente chega-ra a hora de ir para a cama. Betty segurou-lhe a mão com firmeza e foi levando-a para dentro enquanto sua mãe e seu irmão iam buscar os gêmeos. A última coisa que Briony viu quando olhou para trás foi Robbie levantando as duas mãos, como se estivesse se rendendo. Ele levantou o menino que estava sentado em seus ombros e colocou-o delicadamente no chão.

Uma hora depois, estava deitada na sua cama de baldaqui-no, com a camisola limpa de algodão branco que Betty havia encontrado para ela. As cortinas estavam fechadas, mas a luz do dia brilhava com força em torno delas, e, apesar de o cansaço ser tanto que sua cabeça rodava, Briony não conseguia dormir. Vozes e imagens se agitavam ao redor de sua cama, presenças nervosas e importunas, entrechocando-se e fundindo-se, resistindo a suas tentativas de ordená-las. Estariam de fato todas contidas num único dia, num único período ininterrupto de vigília, entre o inocente ensaio de sua peça e o momento em que o gigante surgiu da névoa? O que se intercalava entre os dois eventos era tumultuado demais, fluido demais para ser compreendido, embora ela tivesse a impressão de que tivera sucesso, que até triunfara. Chutou para o lado o lençol e virou o travesseiro para encontrar um trecho mais fresco onde encostar a face. No estado de tonteira em que se encontrava, não sabia exatamente em que consistia seu sucesso; se tinha naquele dia conquistado a maturidade, não a percebia agora, pois sentia-se tão indefesa, tão infantil mesmo, por causa da falta de sono, que não lhe seria difícil começar a chorar. Se era um ato de coragem identificar uma pessoa totalmente má, então não estava certo essa pessoa surgir com os gêmeos daquela maneira, e ela sentia-se lograda. Quem acreditaria nela, agora que Robbie bancava o salvador das crianças perdidas? Todo o seu trabalho, toda a sua coragem e sangue-frio, tudo o que ela fizera para trazer Lola para casa — tudo isso por nada. Agora todos lhe dariam as costas, sua mãe, os policiais, seu irmão, e se reuniriam com Robbie Turner num conluio de adultos. Ela queria a mãe, queria abraçar o pescoço da mãe e puxar o lindo rosto dela para perto do seu, mas sua mãe não viria agora, ninguém viria ficar com Briony, ninguém ia querer falar com ela agora. Virou o rosto para o travesseiro e deixou que as lágrimas escorressem sentindo que a perda era ainda maior por não haver ninguém para testemunhar seu sofrimento.

Estava deitada na penumbra havia meia hora, saboreando aquela tristeza, quando ouviu o ronco do carro de polícia estacionado abaixo de sua janela. O carro deu a partida, avançou alguns metros sobre o cascalho, depois parou. Ouviram-se vozes e passos. Ela se levantou e entreabriu as cortinas. A névoa persistia, mas estava mais clara, como se iluminada por dentro, e Briony apertou um pouco os olhos enquanto eles se adaptavam à claridade. As quatro portas do Humber da polícia estavam escancaradas, e havia três policiais à espera junto ao carro. As vozes vinham de um grupo diretamente embaixo de sua janela, perto da porta da frente, que não lhe era possível ver. Então ouviram-se passos outra vez, e saíram os dois inspetores, com Robbie entre eles. Algemado! Briony viu que seus braços estavam voltados para a frente, e lá do alto era possível perceber o brilho do aço sob os punhos da camisa. A vergonha da cena horrorizou-a. Era mais uma confirmação de que ele era culpado e que se iniciava sua punição. Aquilo parecia uma danação eterna.

Chegaram ao carro e pararam. Robbie virou-se, mas Briony não conseguiu ver sua expressão. Permanecia ereto, vários centímetros mais alto que o inspetor, a cabeça erguida. Talvez se orgulhasse de seu feito. Um dos policiais sentou-se no banco do motorista. O inspetor mais moço foi até a porta de trás do outro lado, enquanto o chefe levava Robbie para o banco de trás. Ouviram-se gritos diretamente abaixo da janela e a voz de Emily Tallis, enérgica; e de repente surgiu uma figura correndo em direção ao carro o mais rápido que se pode correr com um vestido apertado. Cecilia diminuiu a velocidade ao aproximar-se. Robbie se virou e deu meio passo em direção a ela; surpreendentemente, o inspetor deu um passo para trás. As algemas eram plenamente visíveis, mas Robbie não parecia ter vergonha, nem sequer ter consciência delas quando encarou Cecilia e ouviu muito sério o que ela dizia. Os policiais assistiam à cena impassíveis. Se ela estava fazendo a acusação séria que Robbie merecia ouvir, não era o que sua expressão dava a entender. Embora não pudesse ver o rosto de Cecilia, Briony julgou que sua irmã falava num tom nem um pouco veemente. Suas acusações se tornariam ainda mais poderosas por estarem sendo murmuradas. Agora estavam mais próximos um do outro, e foi a vez de Robbie falar, rapidamente, levantando um pouco as mãos presas para logo depois deixá-las cair. Cecilia tocou-lhe as mãos, dedilhou sua lapela, depois agarrou-a e sacudiu-a de leve. Parecia um gesto amoroso, e Briony ficou enternecida de ver como sua irmã era capaz de perdoar, se era isso mesmo que estava acontecendo. Perdão. Antes aquela palavra nunca significara nada para ela, embora já tivesse ouvido tantos louvores ao conceito em mil e uma ocasiões na escola e na igreja. Enquanto isso, sua irmã compreendia muito bem o que era o perdão. Naturalmente, Briony desconhecia muita coisa a respeito de Cecilia. Porém haveria tempo de descobrir, pois essa tragédia certamente as aproximaria.

O inspetor bondoso com rosto de granito achou que já fora indulgente demais, pois deu um passo à frente, afastou a mão de Cecilia e se interpôs entre os dois. Robbie ainda disse a'guma coisa para ela rapidamente por cima do ombro do policial, antes de se virar para o carro. Por consideração, o inspetor pôs a mão sobre a cabeça de Robbie e empurrou-a para baixo para que ele não desse uma cabeçada ao entrar no carro. Os dois inspetores instalaram-se um de cada lado do prisioneiro. As portas se fecharam, e o único policial que não entrara no carro levou a mão ao capacete, fazendo continência, quando o automóvel deu a partida. Cecília permaneceu onde estava, olhando para a alameda, tranqüilamente observando o carro que se afastava, mas o tremor de seus ombros revelava que estava chorando, e Briony sentiu que jamais amara sua irmã mais do que naquele momento.

Deveria ter terminado assim, aquele dia inconsútil que se estruturara em torno de uma noite de verão, deveria ter concluído com o Humber desaparecendo na distância. Porém restava um confronto final. Mal o carro se afastara vinte metros quando começou a perder velocidade. Um vulto que Briony não percebera agora se aproximava pelo centro da alameda, sem manifestar qualquer intenção de sair da frente do automóvel. Era uma mulher, baixa, com um vestido estampado de florzinha, que caminhava gingando, levando na mão o que de início parecia ser um bastão, mas era na verdade um guarda-chuva masculino, que terminava numa cabeça de ganso. O carro parou e começou a buzinar, e a mulher postou-se diretamente diante da grade do radiador. Era a mãe de Robbie, Grace Turner. Ela levantou o guarda-chuva e gritou. O policial que vinha no banco do carona saltou e falou com ela, depois segurou-a pelo cotovelo. O outro policial, o que batera continência, corria em direção ao carro. A sra. Turner livrou-se com um safanão, ergueu o guarda-chuva outra vez, agora usando as duas mãos, e baixou-o com força, batendo com a cabeça do ganso no cap reluzente do Humber, com um ruído que foi como um tiro de pistola. Os policiais foram-na empurrando para o lado, e ela começou a gritar uma única palavra tão alto que dava para Briony ouvi-la de seu quarto.

"Mentira! Mentira! Mentira!", urrava a sra. Turner.

Com a porta da frente completamente aberta, o carro passou por ela devagar e parou para que o outro policial entrasse. Sozinho, o policial que ficou teve dificuldade de dominá-la. Ela conseguiu desferir mais um golpe com seu guarda-chuva, mas acertou a capota apenas de leve. O homem arrancou-lhe das mãos o guarda-chuva e o jogou para trás no gramado.

"Mentira! Mentira!" Grace Turner continuava gritando; ainda deu uns poucos passos desanimados em direção ao carro e depois parou, as mãos nos quadris, vendo o automóvel passar pela primeira ponte, atravessar a ilha, depois a segunda ponte, até desaparecer na brancura.

Horrores não faltavam, mas foi o detalhe inesperado que o impressionou e depois ficou a martelar em sua cabeça. Quando chegaram à passagem de nível, após caminhar cinco quilômetros por uma estrada estreita, ele viu o caminho que estava procurando, bifurcando-se para a direita, descendo e depois subindo em direção a um capão que cobria um morro baixo em direção ao noroeste. Pararam para que ele pudesse consultar o mapa. Porém o mapa não estava onde ele imaginava encontrá-lo. Não estava no bolso, nem enfiado no cinto. Teria caído no chão, ou teria sido largado na última parada? Ele deixou cair o capote, e já estava colocando a mão dentro da túnica quando se deu conta. O mapa estava na sua mão esquerda, e devia estar lá havia mais de uma hora. Ele olhou de relance para os dois homens, mas ambos estavam voltados para o outro lado, um afastado do outro, fumando em silêncio. O mapa continuava na sua mão. Ele o havia arrancado dos dedos de um capitão do Royal West Kent Regiment, que estava caído dentro de uma vala perto de... de onde mesmo? Aqueles mapas da retaguarda eram bem raros. Levou também o revólver do morto. Não estava tentando bancar o oficial. Havia perdido o fuzil, e apenas queria sobreviver.

O caminho que procurava tinha início ao lado de uma casa bombardeada, razoavelmente nova, talvez uma cabana de ferroviário reconstruída depois da última guerra. Havia trilhas de animais na lama em volta de uma poça d'água dentro de um sulco deixado por um pneu. Provavelmente cabras. Por toda parte viam-se farrapos de pano listrado com as bordas enegrecidas, restos de cortinas ou roupas, e uma esquadria de janela quebrada em torno de um arbusto; era forte o cheiro de fuligem úmida. Era o caminho deles...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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