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Series & Trilogias Literarias
Coloque dez dúzias de ladrões órfãos numa toca úmida feita de abóbadas e túneis embaixo do que antes havia sido um cemitério, deixe-os sob a supervisão de um velho parcialmente aleijado e logo você descobrirá que controlá-los se torna um negócio delicado.
O Aliciador, eminência carrancuda no reino dos órfãos sob o Morro das Sombras na velha Camorr, ainda não estava decrépito a ponto de algum de seus pequenos aprendizes sujos ter esperança de enfrentá-lo sozinho. Mesmo assim, ele permanecia alerta à perdição que espreitava nas mãos ávidas e nos impulsos lupinos de uma turba que ele treinava para ficar mais predatória a cada dia. A ordem da qual sua vida dependia era frágil como papel molhado, na melhor das hipóteses.
Sua presença era capaz de forçar a obediência num certo raio, claro. Onde quer que sua voz chegasse e seus sentidos captassem um mau comportamento, os órfãos estavam controlados. Mas, para manter o grupo desregrado na linha quando ele estava bêbado, dormindo ou mancando pela cidade a negócios, era essencial que se tornassem ávidos parceiros de sua própria sujeição.
Ele moldava a maioria dos garotos e garotas mais velhos no Morro das Sombras, formando uma espécie de guarda de honra, garantindo-lhes pequenos privilégios e algumas migalhas de quase respeito. Mais importante, trabalhava duro para que sempre o temessem. Nenhum fracasso era recebido sem dor ou a promessa de dor, e os seriamente insubordinados acabavam desaparecendo. Ninguém nutria qualquer ilusão de que eles tivessem ido para um lugar melhor.
Assim ele garantia que seus poucos escolhidos, impregnados de medo, não tivessem qualquer alívio a não ser ao dar vazão às frustrações sobre as crianças um pouco mais novas, que, aterrorizadas, oprimiam a classe de vítimas ainda mais fracas. Nível a nível, o sofrimento era compartilhado e a autoridade do Aliciador cascateava até os limites mais submissos de sua massa de órfãos.
Era um sistema admirável, a não ser que, claro, por acaso você fizesse parte dessa margem externa – os pequenos, os excêntricos, os que não tinham amigos. Nesse caso, a vida no Morro das Sombras era como um chute na cara a cada hora do dia.
Locke Lamora tinha 5 ou 6 anos. Ninguém sabia ao certo, nem se importava com isso. Era extremamente pequeno, inegavelmente excêntrico e vivia perpetuamente sem amigos.
Mesmo quando arrastava os pés em meio a um grande aglomerado fedorento de órfãos, um entre dezenas, estava sozinho e sabia muito bem disso.
Hora da reunião. Um momento ruim embaixo do Morro. A multidão de órfãos cercava Locke como uma floresta desconhecida, escondendo problemas em toda parte.
A primeira regra para sobreviver nessas circunstâncias era evitar chamar atenção. Enquanto o exército murmurante de órfãos ia em direção à grande câmara no centro
do Morro das Sombras, para onde o Aliciador os chamara, Locke olhava de relance para os dois lados. O truque era identificar valentões conhecidos a uma distância
segura sem fazer contato visual – não havia nada pior do que isso, era o erro dos erros –, do modo mais casual possível, mover-se para colocar crianças neutras entre
si mesmo e cada ameaça até que ela passasse.
A segunda regra era evitar reagir quando a primeira regra fosse insuficiente, o que acontecia com frequência.
A multidão se dividiu atrás dele. Como todos os animais que temem ser presas, Locke possuía um instinto afiado para o mal que se aproximava. Teve tempo suficiente
para se encolher antes de receber o soco, rápido e forte, bem entre as duas omoplatas. Locke se chocou contra a parede do túnel e mal conseguiu ficar de pé.
Risos familiares seguiram-se ao golpe. Era Gregor Foss, anos mais velho e 13 quilos mais pesado, tão além dos poderes de represália de Locke quanto o Duque de Camorr.
– Pelos deuses, Lamora, que sujeitinho fraco e desajeitado você é! – Gregor pôs a mão na nuca de Locke e o arrastou pela parede úmida e suja, até que sua testa ricocheteou
dolorosamente num dos velhos suportes de madeira do túnel. – Não tem força nem para ficar de pé sozinho. Diabos, se você tentasse foder uma barata, ela iria virar
você de costas e meter no seu rabo.
Todo mundo que estava perto riu, uns poucos por diversão genuína, o resto por medo de ser visto sério. Locke continuou andando aos tropeços, furioso mas em silêncio,
como se fosse uma coisa perfeitamente natural ter o rosto coberto de terra e um latejamento na testa. Gregor o empurrou mais uma vez, porém sem vigor, depois bufou
e abriu caminho pela turba adiante.
Bancar o morto. Fingir que não se importa. Era sua forma de impedir que alguns instantes de humilhação se tornassem horas ou dias de dor, de impedir que os hematomas
se tornassem ossos quebrados ou coisa pior.
A procissão de órfãos seguia para uma reunião rara e grandiosa que congregava quase todo o Morro; na câmara principal, o ar já estava mais pesado e rançoso do que
o usual. O Aliciador estava sentado em sua cadeira de espaldar alto, a cabeça quase imperceptível acima da multidão de crianças, enquanto os súditos mais velhos
abriam caminho para ocupar os lugares costumeiros perto dele. Locke procurou uma parede distante e ficou grudado nela, fazendo seu melhor papel de sombra. Ali, no
conforto bem-vindo das costas protegidas, tocou a testa e cedeu a um beicinho momentâneo: seus dedos estavam escorregadios de sangue.
Depois de alguns instantes, o fluxo de órfãos diminuiu até parar, e o Aliciador pigarreou.
Era um Dia da Penitência durante o Septuagésimo Sétimo Ano de Sendovani, um dia de enforcamentos, e, fora das cavernas imundas embaixo do Morro das Sombras, o pessoal
do Duque de Camorr dava nós em cordas sob um luminoso céu de primavera.
3
– É um negócio lamentável – disse o Aliciador. – É isso que é. Ter alguns dos nossos irmãos e irmãs arrancados para os braços implacáveis da justiça do Duque. É
tremendamente deplorável que eles tenham sido relapsos a ponto de serem apanhados! Infelizmente. Como sempre, me esforcei para lembrar a vocês, meus amados, que
nossa profissão é delicada, nem um pouco apreciada por aqueles com quem a praticamos.
Locke limpou a terra do rosto. Era provável que a manga de sua túnica tivesse depositado mais sujeira do que removido, porém o ritual de se arrumar era calmante.
Enquanto ele cuidava de si mesmo, o senhor do Morro continuava falando:
– Dia triste, meus amores, uma verdadeira tragédia. Mas, quando o leite azeda, nós podemos esperar um queijo, não é? Ah, sim! Oportunidade! Lá fora está fazendo
um tempo lindo para enforcamentos, pouco comum nesta estação. Isso significa multidões com bolsas para gastar, e os olhos delas estarão fixos no espetáculo, certo?
Com dois dedos tortos (quebrados muito tempo atrás e mal curados), ele fez a mímica de uma pessoa chegando a uma borda e saltando à frente. Ao fim da queda, os dedos
se sacudiram espasmódicos e algumas crianças mais velhas deram risadinhas. Alguém no meio do exército de órfãos soluçou, mas o Aliciador não pareceu se importar.
– Todos vocês irão em grupos assistir aos enforcamentos. Que isso ponha medo em seus corações, meus amores! Indiscrição, falta de jeito ou de confiança... hoje vocês
verão as únicas recompensas possíveis para tais coisas. Para viver a vida que os deuses lhes deram, vocês devem roubar com esperteza e fugir. Fugir como os cães
do inferno ao sentir o cheiro de um pecador! É assim que nos livramos da forca. Hoje vocês olharão pela última vez para alguns amigos que não conseguiram fazer isso.
E, antes de retornarem – acrescentou ele, baixando a voz –, cada um de vocês será melhor do que eles. Tragam de volta um belo bocado de moedas ou coisas de valor,
não importa o risco. Mãos vazias rendem barrigas vazias.
– A gente precisamos ir? – perguntou alguém em um gemido desesperado.
Locke viu que quem falava era Tam, um recém-apanhado, um dos mais baixos dos mais baixos, que mal havia começado a aprender sobre a vida no Morro das Sombras. E
devia ser ele que estava soluçando antes.
– Tam, meu cordeirinho, você não precisamos fazer nada – respondeu o Aliciador numa voz que parecia veludo mofado. Ele foi andando pela multidão de órfãos, afastando-os
como hastes de trigo sujas até que sua mão pousou no crânio raspado de Tam. – Mas eu também não preciso fazer nada se você não trabalhar, certo? Tudo bem, fique
fora desta excursão grandiosa. Um suprimento ilimitado de terra fria de cemitério espera você para o jantar.
– Mas... eu não posso, tipo, fazer outra coisa?
– Ora, você poderia polir minha bela prataria de chá se eu tivesse uma. – O Aliciador se ajoelhou, sumindo brevemente da visão de Locke. – Tam, esse é o trabalho
que eu tenho, portanto é o trabalho que você vai fazer, certo? Bom garoto. Garoto forte. Por que esses riachinhos escorrendo dos olhos? Só por causa dos enforcamentos?
– Eles... eles era nossos amigos.
– O que só significa...
– Tam, seu mijãozinho idiota, enfie o choro nesse rabo estúpido!
O Aliciador girou e o garoto que havia falado se encolheu ao levar um tapa na lateral da cabeça. Houve uma agitação entre os órfãos espremidos enquanto o alvo infeliz
cambaleava para trás e era posto de pé outra vez por empurrões de seus amigos que davam risinhos. Locke não conseguiu conter um sorriso. Seu coração sempre se aquecia
ao ver um valentão mais velho levando pancada.
– Veslin – disse o Aliciador com um bom humor perigoso –, você gosta de ser interrompido?
– N-não... não, senhor.
– Fico feliz ao ver que pensamos do mesmo modo a esse respeito!
– C-claro. Desculpe, senhor.
O olhar do Aliciador voltou-se para Tam, e seu sorriso, que havia se evaporado como névoa ao sol um momento atrás, retornou de súbito.
– Eu estava falando sobre nossos amigos, nossos amigos lamentados... É uma pena. Mas não é um grande espetáculo que eles vão oferecer para nós, pendurados lá? Eles
não estão convocando uma multidão suculenta como uma ameixa madura? Que tipo de amigos nós seríamos se nos recusássemos a aproveitar essa oportunidade? Bons? Corajosos?
– Não, senhor – murmurou Tam.
– Isso mesmo. Nem bons nem corajosos. Por isso vamos aproveitar essa chance, certo? E vamos lhes dar a honra de não desviar os olhos quando eles caírem, não é?
– Se... se o senhor diz, senhor...
– É o que acontecerá. – O Aliciador deu um tapinha mecânico no ombro de Tam. – Façam isso. Os enforcamentos começam ao meio-dia; os Mestres das Cordas são as únicas
criaturas pontuais nesta maldita cidade. Se vocês se atrasarem, terão que trabalhar dez vezes mais, garanto. Inspetores! Chamem seus provocadores e pegadores. Mantenham
os irmãos novatos em rédea curta.
Enquanto os órfãos se dispersavam e as crianças mais velhas chamavam por seus parceiros e subordinados, o Aliciador arrastou Veslin até uma das paredes de terra
da câmara para trocarem uma palavra em particular.
Locke deu um risinho e se perguntou de quem seria parceiro na aventura do dia. Do lado de fora do Morro, havia bolsas para afanar, truques para colocar em prática,
furtos para realizar. Mesmo sabendo que seu entusiasmo pelo roubo era parte do que o tornava uma curiosidade e um pária, ele era tão desprovido de comedimento nesse
aspecto quanto de asas nas costas.
Essa meia-vida de abusos sob o Morro das Sombras era apenas algo que ele precisava suportar nos intervalos entre aqueles momentos luminosos em que poderia trabalhar,
com o coração martelando, correndo depressa para a segurança e levando os pertences de outra pessoa apertados nas mãos. Pelo que seus 5, 6 ou 7 anos haviam lhe ensinado,
roubar os outros era a melhor sensação em todo o mundo e a única liberdade verdadeira que ele possuía.
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– Acha que pode melhorar minha liderança, é, garoto? – Apesar de sua limitada capacidade de segurar, o Aliciador ainda tinha os braços de um adulto e espremeu Veslin
contra a parede de terra como um carpinteiro a ponto de pregar um enfeite. – Acha que eu preciso de seu humor e sua sabedoria quando estou falando em voz alta?
– Não, excelência! Perdão!
– Veslin, minha joia, eu não perdoo sempre? – Com um gesto falsamente casual, o Aliciador empurrou de lado uma lapela de seu casaco puído e revelou o cabo do cutelo
de açougueiro que mantinha pendurado no cinto. O brilho débil da lâmina reluziu na escuridão. – Eu perdoo. Eu lembro às pessoas. Você vai lembrar, garoto? Vai lembrar
muito bem?
– Vou, sim, senhor. Por favor...
– Maravilha. – O Aliciador soltou Veslin e deixou o casaco cair de novo sobre a arma. – Que conclusão feliz para nós dois, então.
– Obrigado, senhor. Desculpe. É só que... Tam estava choramingando a manhã inteira. Ele nunca viu ninguém ser pendurado na corda.
– Houve um tempo em que isso era novidade para todos nós. – O Aliciador suspirou. – Deixe o garoto chorar, desde que ele roube uma bolsa. Se não roubar, a forca
é um instrutor maravilhoso. Mesmo assim, vou colocá-lo com mais dois outros problemas num grupo com supervisão especial.
– Problemas?
– Tam, por causa da delicadeza. E Banguela.
– Pelos deuses – disse Veslin.
– É, é, o bostinha desmiolado é tão burro que não conseguiria cagar nas próprias mãos nem se elas estivessem costuradas no cu. Mesmo assim será ele. Tam. E mais
um.
O Aliciador lançou um olhar significativo para um canto distante, onde um menininho carrancudo estava encostado com os braços cruzados, olhando os outros órfãos
formarem suas matilhas.
– Lamora – sussurrou Veslin.
– Supervisão especial. – O Aliciador roeu com nervosismo as unhas da mão esquerda. – Há um bom dinheiro a ser arrancado dele se alguém o mantiver sensato e discreto.
– Ele quase queimou metade da porcaria da cidade, senhor.
– Só os Estreitos, cuja falta não seria muito sentida. E recebeu um tremendo castigo por isso, sem se encolher. Considero o assunto encerrado. O que ele precisa
é de um sujeito responsável para mantê-lo sob controle.
Veslin não conseguiu conter a expressão de desprazer, e o Aliciador deu um sorrisinho.
– Não você, garoto. Preciso de você e do seu macaquinho, o Gregor, num serviço de distração. Se alguém for descoberto, vocês deverão fazer a cobertura. E voltem
para mim imediatamente se algum órfão for apanhado.
– Obrigado, senhor, muito obrigado.
– Você deve agradecer mesmo. Tam chorão... Banguela burro... e um dos próprios diabos do inferno vestindo calças curtas. Preciso de uma vela luminosa para vigiar
esse grupo. Vá acordar alguém do Janelas para mim.
– Ah. – Veslin mordeu a bochecha. O grupo Janelas, chamado assim porque era especializado em roubo tradicional de residências, era a verdadeira elite entre os órfãos
do Morro das Sombras. Seus membros eram poupados da maior parte das tarefas, habitualmente trabalhavam no escuro e tinham permissão de dormir até bem depois do meio-dia.
– Eles não vão gostar.
– Não ligo a mínima para o que eles gostam. Eles não têm trabalho esta noite, de qualquer modo. Traga-me um que seja esperto. – O Aliciador cuspiu uma lasca de unha
suja e limpou os dedos no casaco. – Diabos, traga-me Sabeta.
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– Lamora!
O chamado veio finalmente, e era do próprio Aliciador. Locke foi andando com cautela pelo chão de terra até onde o senhor do Morro estava sentado, sussurrando instruções
para uma criança mais alta de costas para Locke.
Diante do Aliciador aguardavam dois outros garotos. Um era Tam. O outro era Banguela, um pirralho infeliz cujas surras dadas por crianças mais velhas acabaram lhe
garantindo o apelido. Um sentimento premonitório se aninhou nas entranhas de Locke.
– Cá estamos, então – disse o Aliciador. – Três garotos corajosos e aptos. Vocês trabalharão juntos numa tarefa especial, sob uma autoridade especial. Conheçam sua
inspetora.
A criança mais alta se virou.
Estava suja, como todos eles, e, apesar de ser difícil dizer à luz pálida e prateada das lanternas alquímicas da câmara, parecia cansada. Usava calções marrons sujos,
uma túnica longa e larga que em algum passado distante fora branca e uma boina de couro sobre um lenço apertado, de modo que nem um fio de cabelo era visível.
Mas não havia dúvida de que era uma ela. Pela primeira vez na vida de Locke, algum instinto animal destreinado se esgueirou debilmente para alertá-lo desse fato.
O Morro estava cheio de garotas, mas Locke nunca havia parado para pensar em uma garota. Ele inspirou bruscamente e percebeu que podia sentir um pinicar de nervosismo
nas pontas dos dedos.
Ela tinha pelo menos um ano e uns bons 15 centímetros a mais do que ele e, mesmo cansada, sua postura natural fazia com que os meninos pequenos se sentissem como
um inseto embaixo de um calcanhar. Locke não tinha a eloquência nem a experiência para perceber a situação dessa forma. Só sabia que perto dela, diferentemente de
todas as garotas que ele vira no Morro das Sombras, sentia-se tocado por algo misterioso e muito mais vasto do que ele próprio.
Sentia vontade de pular de alegria. Sentia vontade de vomitar.
De repente, se ressentiu da presença de Tam e Banguela, ressentiu-se da implicação da palavra “inspetora” e ansiou por fazer alguma coisa, qualquer coisa, para impressionar
a garota. Suas bochechas arderam ao pensar na possível aparência do calombo em sua testa e no fato de estar na mesma equipe de dois moleques inúteis e chorões.
– Esta é Beta – apresentou o Aliciador. – Ela vai cuidar de vocês hoje, garotos. Recebam o que ela disser como se viesse de mim. Mãos firmes, cabeças controladas.
Nada de vagabundagem nem de cabriolas. A última coisa de que precisamos é que vocês se tornem ambiciosos – concluiu o Aliciador, lançando um olhar gélido a Locke.
– Muito obrigada, senhor – agradeceu Beta, sem nada que se assemelhasse a gratidão verdadeira. Em seguida, empurrou Tam e Banguela para uma das saídas da câmara.
– Vocês dois, esperem na entrada. Preciso trocar uma palavrinha com o seu amigo aqui.
Locke ficou espantado. Uma palavrinha com ele? Será que ela havia adivinhado que ele sabia se virar pegando e provocando, que não era nem um pouco parecido com os
outros dois? Beta olhou ao redor, depois colocou as mãos nos ombros dele e se ajoelhou. Algum animal nervoso nas entranhas de Locke deu cambalhotas quando os olhos
dela ficaram no mesmo nível dos olhos dele. A antiga compulsão de recusar contato visual não foi apenas posta de lado, mas vaporizou de sua mente.
Então aconteceram duas coisas.
Primeiro, Locke se apaixonou – ainda que fossem se passar anos até ele perceber que aquilo era amor e que complicaria totalmente a sua vida.
Segundo, ela falou diretamente com ele pela primeira vez, e Locke se lembraria das palavras com uma clareza que abalaria seu coração muito depois que os outros incidentes
daquela época se desbotassem numa névoa de meias verdades em sua memória:
– Você é o Lamora, certo?
Ele assentiu, ansioso.
– Bom, olhe aqui, seu merdinha. Já ouvi tudo sobre você, então cale a boca e mantenha essas mãos bobas nos bolsos. Juro por todos os deuses: se você me causar um
mínimo de encrenca, vou jogá-lo de uma ponte e isso vai parecer um maldito acidente.
6
Era desagradável sentir-se de repente com 1 centímetro de altura.
Atordoado, Locke acompanhou Beta, Tam e Banguela para fora da escuridão das câmaras do Morro das Sombras, saindo ao sol do fim da manhã. Seus olhos ardiam e o motivo
era apenas parcialmente a luz do dia. O que tinha feito (e quem havia contado a ela?) para merecer o desprezo da única pessoa a quem ele agora queria impressionar
mais do que qualquer outra no mundo?
Seus pensamentos se desviaram inquietos para o ambiente ao redor. Ali fora, no espaço aberto e sempre mutável, havia tanta coisa para ver, tanta coisa para ouvir!
Seus instintos de sobrevivência foram assumindo aos poucos o controle. No fundo, sua mente estava toda ligada em Beta, mas ele forçou os olhos para a situação presente.
Naquele dia, Camorr estava luminosa e movimentada, aproveitando ao máximo a folga das chuvas cinzentas e duras da primavera. Janelas estavam escancaradas. As pessoas
mais prósperas haviam trocado de pele, substituindo as capas impermeáveis e os xales por roupas de verão. Os pobres continuavam enrolados nos mesmos trapos fétidos
que usavam em todas as estações. Como o pessoal do Morro das Sombras, eles precisavam manter as roupas às costas para não correrem o risco de perdê-las para os ladrões
de trapos.
Enquanto os quatro órfãos cruzavam a ponte do canal que ia do Morro das Sombras para os Estreitos – Lamora sentia-se ao mesmo tempo orgulhoso e incrédulo com o fato
de o Aliciador estar tão convencido de que um pequeno ardil de sua autoria podia ter queimado todo o bairro –, Locke viu pelo menos três barcos de pescadores de
cadáveres usando ganchos para puxar corpos inchados de debaixo de molhes e pilastras do cais. Às vezes, eles permaneciam ignorados durante dias no tempo frio e ruim.
Beta guiou os garotos pelos Estreitos, esgueirando-se por escadas de pedra e pequenas pontes precárias de madeira, evitando os becos mais apinhados e sinuosos onde
bêbados, cachorros vadios e perigos menos óbvios certamente espreitavam. Tam e Locke seguiam logo atrás, mas Banguela vivia se desviando ou se retardando. Quando
saíram dos Estreitos e atravessaram os caminhos com mato crescido do Mara Camorrazza, o antigo parque da cidade, Beta estava arrastando Banguela pelo colarinho.
– Seu cérebro de ervilha, fique grudado nos meus calcanhares e pare de causar encrenca!
– Não tô causando encrenca – murmurou Banguela.
– Quer estragar tudo e passar fome esta noite? Quer dar desculpa a algum brutamontes feito o Veslin para arrancar algum dente seu que ele ainda não tenha arrancado?
– Nããããão. – Banguela alongou a palavra com um bocejo entediado, olhou em volta como se notasse o mundo pela primeira vez, depois se soltou bruscamente da mão de
Beta. – Quero usar o seu chapéu.
Locke engoliu em seco, nervoso. Já tinha visto Banguela ter um daqueles ataques súbitos e irracionais. Alguma coisa não estava em seu devido lugar na cabeça do garoto.
Com frequência, ele sofria por chamar a atenção para si dentro do Morro, onde individualidade sem força significava dor.
– Não pode – retrucou Beta. – Controle-se.
– Eu quero. Eu quero! – Banguela bateu os pés no chão e fechou os punhos. – Eu prometo que vou me comportar. Me dá seu chapéu!
– Você vai se comportar porque eu estou mandando!
Banguela saltou e arrancou a boina de couro da cabeça de Beta. Puxou-a com tanta força que o lenço também saiu e um jorro desgrenhado de cachos castanho-arruivados
se derramou até os ombros. O queixo de Locke caiu.
Havia algo tão indefinivelmente adorável, tão certo em ver aquele cabelo livre ao sol que ele se esqueceu por um momento que seu fascínio não era recíproco e que
isso não era nem um pouco conveniente para a tarefa deles. Locke notou que só a parte perto das pontas era castanha. Acima das orelhas, os fios ganhavam um tom ruivo-ferrugem.
Ela havia tingido o cabelo, mas ele já crescera.
Assim que o choque passou, Beta foi ainda mais rápida do que Banguela e, antes que o garoto pudesse fazer qualquer coisa, o chapéu estava de volta nas suas mãos.
Ela bateu com ele vigorosamente no rosto de Banguela.
– Ai!
Ainda não satisfeita, Beta o golpeou de novo e ele se encolheu. Locke recuperou o tino e assumiu a expressão vazia usada no Morro pelos que não estavam envolvidos
quando alguém por perto levava uma surra.
– Para! Para! – gritava Banguela, soluçando.
– Se você algum dia puser a mão neste chapéu de novo – sibilou Beta, sacudindo-o pelo colarinho –, juro por Aza Guilla que conta os mortos: vou entregá-lo direto
a ela. Seu imbecilzinho idiota!
– Eu prometo! Eu prometo!
Ela soltou-o, fazendo cara feia e, com alguns movimentos hábeis, os cachos ruivos sumiram de novo sob o lenço apertado. A boina lacrou-os e Locke ficou um pouco
desapontado.
– Você tem sorte porque mais ninguém viu – disse Beta, empurrando Banguela para a frente. – Os deuses amam você, sua lesminha. Depressa, agora. Nos meus calcanhares,
vocês dois.
Locke e Tam a acompanharam sem dizer nada, tão perto quanto patinhos nervosos grudados à cauda da mãe.
Locke tremia de empolgação. Ficara horrorizado com a incompetência dos companheiros designados para ele, mas agora imaginava se os problemas deles poderiam ajudar
a torná-lo melhor aos olhos de Beta. Ah, sim. Que eles choramingassem, que tivessem chiliques, que fossem para casa com as mãos abanando. Diabos, que eles chamassem
a atenção dos guardas da cidade e fossem perseguidos pelas ruas ao som de apitos e cães latindo. Ela teria que preferir qualquer coisa a isso, inclusive ele.
7
Finalmente saíram do Mara Camorrazza e adentraram um redemoinho de sons e confusão.
De fato aquele era um clima de beleza rara para um dia de enforcamentos, e os arredores normalmente lúgubres da Antiga Cidadela, o local onde era exercida a justiça
do Duque, estava agitado como um parque de diversões. A plebe se comprimia nas pedras do calçamento, enquanto aqui e ali as carruagens dos ricos passavam chacoalhando,
com guardas contratados correndo ao lado, fazendo ameaças e dando empurrões. Em alguns sentidos, Locke já sabia, o mundo fora do Morro era bem parecido com o mundo
lá dentro.
Os quatro órfãos fizeram uma corrente humana para abrir caminho através do tumulto. Locke se segurava com força em Tam, que por sua vez se segurava em Beta. Ela
estava tão disposta a não perder Banguela de vista que o empurrava à frente de todos como um aríete. De sua perspectiva, Locke vislumbrava alguns rostos adultos;
o mundo se tornava uma procissão interminável de cintos, barrigas, abas de casacas e rodas de carruagens. Foram para o oeste devido à sorte e à perseverança, na
direção da Via Justiça, o canal usado para enforcamentos havia quinhentos anos.
Na margem do canal, um muro baixo de pedras impedia o mergulho direto na água que ficava 2 a 3 metros abaixo. Essa barreira estava desmoronando, mas ainda era suficientemente
sólida para crianças se sentarem em cima. Beta não deixou de segurar Banguela nem por um segundo enquanto ajudava Locke e Tam a subir, escapando da pressão da turba.
Locke tentou sentar-se ao lado de Beta, mas foi Tam que se espremeu contra ela; não havia como afastá-lo sem provocar uma cena. Tentou esconder a frustração adotando
uma expressão objetiva e olhando ao redor.
Dali, pelo menos, tinha uma visão melhor das coisas. Havia multidões dos dois lados do canal e vendedores em barcos apregoando pão, salsichas, cerveja e suvenires.
Eles usavam cestos presos em varas para recolher as moedas e entregar as mercadorias aos que estavam acima.
Locke podia identificar grupos de vultos pequenos se esgueirando na floresta de casacas e pernas – colegas órfãos do Morro das Sombras trabalhando. Avistava também
as casacas amarelo-escuras da guarda citadina movendo-se em meio ao povo em esquadrões com escudos pendurados às costas. Aconteceria um desastre se esses elementos
opostos se encontrassem e se misturassem como alquimia malfeita, mas até agora não houvera gritos, apitos dos guardas nem sinais de qualquer coisa errada.
O tráfego fora interrompido na Ponte Negra. As lâmpadas que salpicavam o grande arco de pedra estavam cobertas com panos pretos e um pequeno grupo de sacerdotes,
prisioneiros, guardas e autoridades ducais se encontrava atrás da plataforma de execução que se projetava da lateral da ponte. Dois barcos de casacas-amarelas haviam
ancorado, um em cada margem do canal, para manter livre a água embaixo dos prisioneiros que seriam pendurados.
– A gente não temos que fazer nosso negócio? – perguntou Banguela. – A gente não temos que pegar uma bolsa, um anel ou alguma coisa...
Beta, que havia tirado as mãos dele por meio minuto, agarrou-o de novo e sussurrou com rispidez:
– Não fale sobre isso enquanto a gente estiver no meio do povo. Boca fechada! Vamos ficar sentados aqui, atentos. Vamos trabalhar depois do enforcamento.
Tam estremeceu e pareceu mais arrasado do que nunca. Locke suspirou, confuso e impaciente. Era triste que alguns colegas do Morro das Sombras fossem enforcados,
mas, afinal de contas, era triste que eles tivessem sido apanhados pelos casacas-amarelas. Pessoas morriam por toda parte em Camorr, em becos, canais e casas públicas,
em incêndios, pestes que devastavam bairros inteiros. Tam era órfão também; ele não havia percebido tudo isso? Morrer parecia quase tão rotineiro para Locke quanto
jantar ou mijar, e ele não conseguia se sentir mal porque isso estava acontecendo com alguém que mal conhecera.
Parecia que a coisa ia acontecer logo. Um rufar de tambores soou na ponte, ecoando sobre água e pedra, e aos poucos o murmúrio empolgado da multidão foi cessando.
Nem mesmo os serviços religiosos podiam deixar os camorris tão respeitosamente atentos quanto o estalar de pescoços em público.
– Leais cidadãos de Camorr! Agora chega o meio-dia, este décimo sétimo instante, este mês de Tirastim no nosso Septuagésimo Sétimo Ano de Sendovani! – gritou de
cima da Ponte Negra um arauto de barriga enorme usando plumas negras. – Esses criminosos foram considerados culpados de crimes capitais contra a lei e os costumes
de Camorr. Pela autoridade de Sua Graça, o Duque Nicovante, e pelos sinetes de seus honoráveis magistrados da Câmara Vermelha, eles foram trazidos aqui para receberem
a justiça.
Houve um movimento atrás dele na ponte. Sete prisioneiros foram empurrados, cada um acompanhado por dois guardas com capuzes escarlates. Locke viu que Tam estava
mordendo os nós dos dedos. Beta passou o braço pelos ombros do garoto e Locke trincou os dentes. Ele estava executando seu serviço, comportando-se, recusando-se
a fazer um espetáculo, e era Tam que recebia a ternura de Beta?
– Você se acostuma, Tam – disse Beta baixinho. – Honre-os agora. Mantenha-se firme.
Na plataforma da ponte, os Mestres das Cordas apertaram os nós em volta do pescoço dos condenados. As cordas tinham mais ou menos o tamanho de cada prisioneiro e
estavam presas em elos logo atrás do pé dos criminosos. Não havia mecanismos inteligentes ali, nenhum truque chique. Não estavam em Tal Verrar. No leste, as pessoas
eram simplesmente empurradas pela borda.
– Jerevin Tavasti! – gritou o arauto, consultando um pergaminho. – Incêndio criminoso, conspiração para receber mercadorias roubadas, ataque a um oficial do Duque!
Malina Contada, falsificação e uso indevido do nome e da imagem de Sua Graça, o Duque. Caio Vespasi, invasão de residência, pantomima maliciosa, incêndio criminoso
e roubo de cavalo! Lorio Vespasi, conspiração para receber mercadorias roubadas.
E acabaram os adultos. O arauto seguiu até as três crianças. Tam soluçou e Beta sussurrou:
– Sshhh.
Locke notou que Beta permanecia numa calma fria e tentou imitar seu ar de desinteresse. Olhos cautelosos, queixo erguido, boca praticamente fechada numa carranca.
Sem dúvida, se ela o encarasse durante a cerimônia, iria notar e aprovar...
– Mariabella, sem sobrenome! – continuou o arauto. – Roubo e desobediência imoderada! Zilda, sem sobrenome. Roubo e desobediência imoderada!
Os Mestres estavam amarrando pesos extras nas pernas desse último trio de prisioneiros, já que seus corpos magros poderiam não puxar a corda o suficiente e retardar
o processo.
– Lars, sem sobrenome. Roubo e desobediência imoderada.
– Zilda era boa comigo – sussurrou Tam com a voz embargada.
– Os deuses sabem. Quieto agora.
– Pelos crimes do corpo vocês sofrerão a morte do corpo – prosseguiu o arauto. – Serão suspensos acima da água corrente e ficarão pendurados pelo pescoço até a morte.
Seus espíritos inquietos serão carregados sobre a água até o Mar de Ferro, onde não poderão causar mais mal a qualquer alma ou habitação no domínio do Duque. Que
os deuses recebam suas almas com misericórdia, em bom tempo. – O arauto baixou o rolo de pergaminho e encarou os prisioneiros. – Em nome do Duque, eu lhes dou justiça.
Tambores rufaram. Um dos Mestres das Cordas desembainhou uma espada, para o caso de algum prisioneiro lutar contra os guardas. Locke já vira um enforcamento e sabia
que os condenados tinham apenas uma chance de manter alguma dignidade que lhes restasse.
Naquele dia, as cordas correram fáceis. O rufar foi silenciado. Cada par de casacas-amarelas encapuzados avançou e empurrou seu prisioneiro da plataforma.
Tam se retraiu, como Locke imaginara que faria, mas nem ele estava preparado para a reação de Banguela quando as cordas se retesaram com os estalos que podiam ser
do cânhamo, dos pescoços ou das duas coisas.
– Aaaahhhh! Aaaaaaaahhhhhhh! AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!
Cada grito era mais longo e mais alto do que o anterior. Beta tapou a boca de Banguela e lutou contra ele. Sobre a água, quatro corpos grandes e três menores balançavam
como pêndulos em arcos que rapidamente ficavam cada vez menores.
O coração de Locke martelava. Todo mundo ali perto devia estar olhando para eles. Ouviu risinhos e comentários de desaprovação. Quanto mais atenção atraíssem, mais
difícil seria fazer seu trabalho de verdade.
– Sshhh – fez Beta, esforçando-se para manter Banguela sob controle. – Quieto, seu desgraçado. Quieto!
– Qual é o problema, garota?
Locke ficou consternado ao ver que uma dupla de casacas-amarelas havia aberto caminho pela multidão logo atrás deles. Pelos deuses, isso era pior do que qualquer
coisa! E se eles estivessem procurando órfãos do Morro das Sombras? E se fizessem perguntas difíceis? Conteve o impulso de pular na água e ficou imóvel, com os olhos
arregalados.
Beta manteve um dos braços cobrindo o rosto de Banguela, mas de algum modo conseguiu se virar e baixar a cabeça para os guardas.
– Meu irmãozinho nunca tinha visto um enforcamento – explicou ela, ofegando. – Não queremos criar confusão. Eu calei a boca dele.
Banguela parou de lutar mas começou a soluçar. O guarda que havia falado, um homem de meia-idade com o rosto cheio de cicatrizes, olhou para ele com desagrado.
– Vocês quatro vieram aqui sozinhos?
– Mamãe mandou – respondeu Beta. – Queria que os garotos assistissem a um enforcamento. Para verem o que se ganha com a vagabundagem e as más companhias.
– Uma mulher que pensa direito. Nada melhor do que um bom enforcamento para arrancar a maldade de um moleque. – O casaca-amarela franziu a testa. – Por que ela não
está aqui com vocês?
– Ah, mamãe adora um enforcamento – disse Beta e acrescentou, baixando a voz até um sussurro: – Mas, ah, ela está mal das tripas. O negócio está feio. O dia inteiro
ela ficou sentada na...
– Ah. Tudo bem, então. – O guarda tossiu. – Que os deuses lhe deem saúde. É melhor você não trazer esse aí de novo para a cerimônia do Dia da Penitência durante
um tempo.
– Concordo, senhor. – Beta baixou a cabeça outra vez. – Mamãe vai arrancar o couro dele por causa disso.
– Então vão andando, garota. Não precisamos de mais escândalos.
– Claro, senhor.
Os guardas se afastaram pela multidão, que retornava à vida. Beta deslizou do muro de pedras sem muito jeito, pois segurava rigidamente Banguela e Tam se recusava
a soltar seu outro braço. Ele não havia gritado como Banguela, mas Locke viu seus olhos marejados e notou que ele estava mais pálido do que antes. Locke passou a
língua pelo céu da boca, que tinha ficado seco sob o escrutínio dos casacas-amarelas.
– Venham – ordenou Beta. – Para longe daqui. Já vimos tudo que havia para ver.
8
Outra passagem pelo mar de casacos, pernas e barrigas. Sentindo a empolgação crescer de novo, Locke se agarrou de leve nas costas da túnica de Beta para não perdê-la
e ficou ao mesmo tempo satisfeito e desapontado quando ela não reagiu. Beta levou-os de volta para as sombras verdes do Mara Camorrazza, onde a solidão silenciosa
reinava a menos de 40 metros de uma multidão de centenas de pessoas, e assim que estavam abrigados em segurança num nicho escondido, ela empurrou Tam e Banguela
para o chão.
– E se outro grupo do Morro visse aquilo? Pelo amor dos deuses!
– Desculpa – gemeu Banguela. – Mas eles... mas eles... eles foram mor...
– As pessoas morrem quando são enforcadas. É por isso que as enforcam! – Beta torceu a frente de sua túnica com as duas mãos, depois respirou fundo. – Agora se recuperem.
Cada um de vocês deve roubar uma bolsa ou outra coisa antes da gente voltar.
Banguela irrompeu num novo ataque de soluços, rolou de lado e mordeu os nós dos dedos. Tam, parecendo mais cansado do que Locke imaginaria possível, disse:
– Não posso, Beta. Desculpe. Eu vou ser apanhado. Não posso mesmo.
– Vai ficar sem janta esta noite.
– Tudo bem. Me leve de volta, por favor.
– Maldição. – Beta esfregou os olhos. – Preciso levar vocês de volta com alguma coisa para mostrar, senão vou ficar tão encrencada quanto vocês, entenderam?
– Você é do Janelas – murmurou Tam. – Não tem com que se preocupar.
– Se ao menos fosse assim! Vocês dois precisam se manter firmes...
– Não posso, não posso, não posso!
Locke pressentiu uma oportunidade gloriosa. Beta os salvara de uma encrenca na beira do canal e ali estava um momento perfeito para ele retribuir. Sorrindo ao pensar
na reação dela, empertigou-se o máximo que pôde e pigarreou.
– Tam, não seja idiota – ralhou Beta, ignorando totalmente Locke. – Você vai pegar alguma coisa ou criar uma distração para alguém poder pegar. Não vou lhe dar outra
chance...
– Desculpe – interrompeu Locke, hesitante.
– O que você quer?
– Cada um deles pode ficar com uma coisa minha.
– O quê? – Beta se virou para ele. – Do que você está falando?
De debaixo da túnica, Locke pegou duas bolsas de couro e um belo lenço de seda só um pouquinho manchado.
– Três peças. Nós somos três. Apenas diga que cada um pegou uma e a gente pode ir para casa agora.
– Onde diabos você conseguiu...
– Na multidão. Você estava com o Banguela... estava prestando tanta atenção nele que não deve ter visto.
– Eu ainda não mandei você roubar nada!
– Bom, você não disse para não roubar.
– Mas isso é...
– Eu posso devolver – cortou Locke, muito mais petulante do que havia pretendido.
– Não seja malcriado comigo! Ah, pelo amor de Deus, não faça tromba. – Beta se ajoelhou e pôs as mãos nos ombros dele. Com o toque e a atenção dela, Locke sentiu
subitamente um tremor incontrolável. – O que foi? Qual é o problema?
– Nada. Nada.
– Deuses, que garotinho estranho você é! – Beta olhou de novo para Tam e Banguela. – Um bando de desastrados, vocês três. Dois não querem trabalhar. Um trabalha
sem receber ordem. Acho que não temos escolha.
Beta pegou as bolsas e o lenço. Seus dedos roçaram nos de Locke e ele estremeceu. Os olhos de Beta se estreitaram.
– Você bateu com a cabeça antes?
– Bati.
– Quem empurrou você?
– Eu só caí.
– Claro que caiu.
– Sério!
– Isso parece estar perturbando você. Ou talvez você esteja doente. Você está tremendo.
– Eu... estou bem.
– Tudo bem, então. – Beta fechou os olhos e massageou-os com as pontas dos dedos. – Acho que você me poupou um bocado de encrenca. Quer que eu... olhe, quer que
eu dê um jeito na pessoa que está incomodando você?
Locke ficou espantado. Uma garota mais velha, essa garota mais velha, logo ela, e ainda por cima membro do Janelas, estava lhe oferecendo proteção? Será que ela
poderia fazer isso? Será que poderia colocar Veslin e Gregor em seus devidos lugares?
Não. Locke forçou os olhos a se afastarem do rosto fascinante de Beta para se obrigar a voltar à terra. Sempre haveria outros Veslins, outros Gregors. E se eles
ficassem mais ressentidos ainda por causa da interferência dela? Beta era do Janelas; ele era do Ruas. Seus dias e noites eram invertidos. Locke nunca a vira antes
daquele dia; que tipo de proteção poderia obter? Continuaria bancando o morto. Evitando chamar atenção. Primeira e segunda regras. Como sempre.
– Eu só caí – repetiu ele. – Tudo bem.
– Ótimo – replicou ela com um pouco de frieza. – Como quiser.
Locke abriu e fechou a boca algumas vezes, tentando desesperadamente imaginar algo que pudesse dizer para encantar aquela criatura alienígena. Tarde demais. Ela
se virou e puxou Tam e Banguela de pé.
– Nem acredito, mas vocês dois, idiotas, devem um jantar ao incendiário dos Estreitos aqui. Entendem o inferno que a gente vai sofrer se vocês disserem uma palavra
disso a alguém?
– Entendo – respondeu Tam.
– Eu ficaria muito chateada se sofresse alguma coisa – continuou Beta. – Qualquer coisa! Ouviu, Banguela?
O pobre coitado assentiu, depois chupou os nós dos dedos outra vez.
– De volta ao Morro, então. – Beta deu um puxão no lenço de cabeça e ajeitou o chapéu. – Vou ficar com as coisas e entregar pessoalmente ao chefe. Nenhuma palavra
sobre isso. A ninguém.
Continuou segurando Banguela até voltarem ao cemitério. Tam a seguia junto aos calcanhares, parecendo exausto mas aliviado. Locke ia atrás, tramando com toda a extensão
de sua experiência totalmente inadequada. O que ele tinha dito ou feito de errado? O que avaliara mal? Por que ela não o estava adorando por ter lhe poupado tanta
encrenca?
Beta não lhe disse nada durante toda a volta para casa. Então, antes que ele pudesse encontrar uma desculpa para falar com ela de novo, a garota foi embora, sumiu
nos túneis que levavam ao domínio particular do Janelas, onde ele não poderia segui-la.
Naquela noite, Locke ficou mal-humorado, comendo pouco do jantar que seus dedos ágeis haviam feito por merecer, furioso não só com Beta, mas consigo mesmo por tê-la
afastado de algum modo.
9
Dias se passaram, mais longos do que qualquer um que Locke já vivera, agora que tinha algo com que se preocupar além da breve empolgação dos crimes cotidianos e
das tarefas constantes de sobrevivência.
Beta não saía dos seus pensamentos. Ele sonhava com ela, sonhava com seus cabelos se derramando de debaixo da boina, captando a luz que se filtrava pelo verde entrelaçado
do Mara Camorrazza. Estranhamente, nos sonhos, o cabelo era todo ruivo, das pontas às raízes, intocados pela tintura ou pelo disfarce. O preço dessas visões era
que ele acordava com desapontamentos frios e duros e ficava deitado na escuridão, debatendo-se com emoções misteriosas que nunca o haviam incomodado antes.
Teria que vê-la outra vez. De algum modo.
A princípio, alimentou a esperança de que ficaria no grupo de encrenqueiros permanentemente, de que Beta poderia ser a inspetora deles de novo. Infelizmente, o Aliciador
não parecia ter esses planos. Locke percebeu aos poucos que, se quisesse ter outra chance de impressioná-la, precisaria se arriscar.
Era difícil quebrar as rotinas que havia estabelecido para si mesmo, sem falar das rotinas esperadas de alguém em sua posição subalterna. Porém, começou a andar
com mais frequência pelas câmaras e túneis de seu lar, ansioso por um vislumbre de Beta, expondo-se a abusos e à ridicularização das crianças mais velhas e entediadas.
Bancava o morto. Não reagia. Primeira e segunda regras. Quase conseguia gostar de ganhar hematomas com um objetivo genuíno.
Os órfãos mais inferiores do Ruas – isto é, quase todos – dormiam em massa no piso de câmaras laterais, como em um abrigo de refugiados, várias dúzias em cada cômodo.
Agora, quando seus sonhos o acordavam à noite, Locke tentava ficar acordado, apurar os ouvidos para escutar além dos murmúrios e dos movimentos dos que estavam ao
redor, para detectar as idas e vindas do Janelas em suas tarefas secretas.
Antes, sempre dormira em segurança no meio de seus colegas que roncavam, ou encostado numa parede boa e reconfortante. Agora se arriscava em posições na borda da
massa comprimida, onde poderia captar vislumbres de pessoas nos túneis. Cada sombra que passava e cada passo que ouvia poderia ser dela, afinal de contas.
Os êxitos foram poucos. Viu-a na hora do jantar várias vezes, mas Beta nunca falava com ele. Na verdade, se o notava, não demonstrava nem um pouco. E quanto a puxar
papo por iniciativa própria, com ela cercada por seus amigos do Janelas, perto dos valentões mais velhos do Ruas... nenhuma presunção poderia ser mais fatal. Assim
Locke se esforçava ao máximo, debilmente, para se esconder e espioná-la, adorando o arrepio no estômago sempre que captava ao menos meio segundo de vislumbre. Os
vislumbres e as sensações o recompensavam por muitos dias de saudade frustrada.
Mais dias, mais semanas transcorreram no presente eterno e nebuloso do período da infância. Os breves momentos que havia passado na presença de Beta, falando com
ela e ouvindo-a, ganhavam cada vez mais refinamento em sua memória, até que a própria vida poderia ter se iniciado naquele dia.
Em algum momento daquela primavera, Tam morreu. Locke ouviu os murmúrios. O garoto foi apanhado tentando roubar uma bolsa e a vítima arrebentou seu crânio com uma
bengala. Esse tipo de coisa não era incomum. Se o homem tivesse testemunhas da tentativa de roubo, provavelmente perderia um dedo de sua mão mais fraca. Se ninguém
confirmasse a história, ele seria enforcado. Camorr era civilizada, afinal de contas; havia momentos aceitáveis e inaceitáveis para matar crianças.
Banguela se foi pouco depois, atropelado por uma carroça em plena luz do dia. Locke imaginou se não teria sido melhor assim. Ele e Tam sofriam no Morro e talvez
os deuses pudessem encontrar algo melhor para fazer com os dois. De qualquer modo, isso não era da sua conta. Locke tinha sua própria obsessão para perseguir.
Alguns dias depois da morte de Banguela, Locke chegou em casa após uma tarde longa e quente trabalhando no bairro do Canto Norte, vigiando e roubando barracas de
vendedores no mercado chique de lá. Sacudiu a chuva da capa improvisada, que era o mesmo pedaço de couro fedorento que lhe servia de cobertor toda noite. Foi encontrar
o grupo dos mais velhos, comandado por Veslin e Gregor, que arrochavam as crianças todo dia quando elas chegavam com os ganhos.
Em geral eles gastavam a maior parte da energia provocando e ameaçando os colegas de Locke, mas naquele dia estavam falando empolgados sobre outra coisa. Locke captou
trechos da conversa enquanto esperava sua vez de sofrer abusos.
– ... ele está bem infeliz... ela era uma das que mais ganhavam.
– Sei que era. E ainda assim não era metida a besta.
– Mas, pra você, o Janelas é tudo assim, não é? Eles não é tudo igual? Bom, essa é uma coisa que eles não vão gostar. Isso prova que eles é mortal que nem a gente.
Eles faz merda do mesmo jeito.
– Foi um mês ruim pra gente. Aquele pobre coitado que teve a cabeça arrebentada... aquele merdinha que a gente deixou sem dente... e agora ela.
Locke sentiu um aperto nas tripas.
– Quem? – perguntou.
Veslin encarou Locke como se estivesse espantado com o fato de que as pequenas criaturas do Ruas tinham capacidade de falar.
– Quem o quê, seu coçador de cu?
– De quem vocês estão falando?
– Você não ia querer saber, porra.
– QUEM?
Os punhos de Locke haviam se fechado por conta própria e seu coração martelava enquanto ele gritava de novo a plenos pulmões:
– QUEM??
Veslin só precisou de um único chute para derrubá-lo. Locke viu o pé do valentão subindo em direção ao seu rosto, mas ainda assim não pôde evitar o golpe. Teto e
chão se inverteram e, quando voltou a enxergar, estava de costas, com o calcanhar de Veslin no peito. O sangue quente, com gosto de cobre, escorria pelo fundo da
sua garganta.
– Aonde ele vai parar falando com a gente assim? – perguntou Veslin em tom afável.
– Não sei. É uma porra triste, é mesmo – falou Gregor.
– Por favor – pediu Locke. – Diga...
– Dizer o quê? Que direito você tem de saber alguma coisa? – Veslin se ajoelhou no peito de Locke, revistou suas roupas e pegou as coisas que ele conseguira roubar
naquele dia: duas bolsas, um colar de prata, um lenço e alguns tubos de madeira com cosméticos jereshtis. – Sabe de uma coisa, Gregor? Acho que não me lembro de
ter visto o Lamora aqui chegar em casa com alguma coisa esta noite.
– Nem eu, Ves.
– É. Está vendo só que coisa triste, seu mijãozinho? Se quiser jantar, pode comer sua própria bosta.
Locke estava acostumado demais ao tipo de gargalhada que brotou no túnel para prestar atenção a ela. Tentou se levantar e foi chutado no pescoço.
– Eu só quero saber o que aconteceu... – disse, ofegando.
– Por que você se importa?
– Por favor... por favor...
– Bom, se você vai ser respeitoso... – Veslin largou os ganhos de Locke num saco de pano sujo. – O Janelas teve uma noite ruim.
– Foram apanhados direitinho, foram mesmo – completou Gregor.
– Pegos roubando uma casa grande. Nem todos se livraram. Perderam um no canal.
– Quem?
– Beta. Ela se afogou.
– Vocês estão mentindo – sussurrou Locke. – VOCÊS ESTÃO MENTINDO! – Veslin chutou-o na lateral da barriga e Locke se retorceu. – Quem disse... quem disse que ela...
– Eu digo, porra.
– Quem contou a você?
– Eu recebi uma carta do Duque, seu retardado da porra. Foi o chefe, foi ele! Beta se afogou ontem à noite. Ela não vai voltar para o Morro. Você está caidinho por
ela ou o quê? Que piada!
– Vá para o inferno – sussurrou Locke. – Vá você para o...
Veslin o interrompeu com outro chute forte no mesmo lugar.
– Gregor, temos um problema de verdade aqui. Esse aí não bate bem. Esqueceu o que pode e o que não pode dizer a pessoas como a gente.
– Eu tenho a coisa certa para isso, Ves.
Gregor chutou Locke entre as pernas. A boca de Locke se abriu, mas não saiu nada, a não ser um chiado seco de agonia.
– Vamos acabar com o merdinha. – Veslin sorriu e, junto com Gregor, começou a dar em Locke chutes fortes, mirados cuidadosamente. – Gosta disso, Lamora? Gosta do
que você ganha quando fica metido a besta com a gente?
Só a proibição de assassinato, imposta pelo Aliciador entre os órfãos, salvou a vida de Locke. Sem dúvida os garotos o teriam destroçado se seus próprios pescoços
não fossem o preço pago pela diversão e, mesmo assim, quase foram longe demais.
Passaram-se dois dias até que Locke pudesse se mover o suficiente para trabalhar de novo e, nesse intervalo, sem ter amigos para cuidar dele, foi atormentado pela
fome e pela sede. Mas não sentiu satisfação em se recuperar e nenhum júbilo na volta ao trabalho.
Estava de novo bancando o morto, de novo se escondendo nos cantos, de volta à primeira e à segunda regras. Mais uma vez estava totalmente sozinho no Morro.
LIVRO I
A SOMBRA DELA
NÃO POSSO lhe dizer agora.
Quando a força e os redemoinhos do vento
Não me soprarem mais,
E o vento for finalmente um sussurro...
Talvez então eu lhe conte
em outra ocasião.
Carl Sandburg, “The Great Hunt”
Capítulo Um
As coisas pioram
1
A luz fraca do sol em suas pálpebras o arrancou do sono. A claridade se intrometeu, cresceu, fez com que ele piscasse, grogue. Uma janela estava aberta, deixando
o ar ameno da tarde entrar com um cheiro de água doce. Não era Camorr. Som de ondas batendo numa praia de areia. Definitivamente não era Camorr.
Estava de novo embolado nos lençóis, atordoado. O céu da boca parecia couro seco ao sol. Lábios rachados se descolaram quando ele grasnou:
– O que está...
– Sshh. Eu não queria acordar você. O quarto precisava de um pouco de ar.
Um borrão escuro à esquerda, mais ou menos da altura de Jean. O piso rangeu quando a sombra se moveu. O farfalhar suave de tecido, o estalar de uma bolsa de moedas,
o tilintar de metal. Locke se apoiou nos cotovelos, preparado para a tontura. Ela chegou pontualmente.
– Eu estava sonhando com ela – murmurou. – A época em que... quando a gente se conheceu.
– Ela?
– Ela. Você sabe.
– Ah. A ela canônica.
Jean se ajoelhou ao lado da cama e estendeu um copo d’água, que Locke pegou com a mão esquerda trêmula e bebeu agradecido. O mundo estava entrando lentamente em
foco.
– Tão nítido... – disse Locke. – Achei que podia tocar nela. Dizer... como lamento.
– Isso é o melhor que você consegue? Sonha com uma mulher daquela e a única coisa que consegue pensar em fazer com seu tempo é pedir desculpas?
– Não estava sob meu controle...
– Os sonhos são seus. Tome as rédeas.
– Eu era só um garotinho, pelo amor dos deuses.
– Se ela aparecer de novo, avance dez ou quinze anos. Quero ver um pouco de rubor e voz gaguejando na próxima vez que você acordar.
– Você vai sair?
– Um pouco. Fazer a ronda.
– Jean, não adianta. Pare de se torturar.
– Acabou? – Jean pegou o copo vazio.
– Nem de longe. Eu...
– Não vou demorar muito. – Jean pousou o copo na mesa e espanou descuidadamente as lapelas do casaco enquanto se dirigia até a porta. – Descanse mais um pouco.
– Você não escuta a voz da razão, não é?
– Você sabe o que dizem sobre imitação e lisonjas.
A porta se fechou e Jean sumiu, seguindo para as ruas de Lashane.
2
Lashane era famosa por ser uma cidade onde qualquer coisa poderia ser comprada ou deixada para trás. Pela graça do regio, a mais alta e rarefeita ordem de nobreza
da cidade – na qual um título que remontasse a mais de duas gerações qualificava alguém como pertencente à velha guarda –, praticamente qualquer um com dinheiro
na mão e pulso suficiente para manter a semiconsciência podia ter o sangue transmutado numa imitação razoável de azul.
Vinham de todo canto do mundo terim: mercadores e criminosos, capitães mercenários e piratas, jogadores, aventureiros e exilados. Ainda plebeus, entravam na crisálida
de uma casa de contabilidade, entregavam enormes quantidades de metal precioso e emergiam à luz do dia como recém-nascidos pares de Lashane. O regio cunhava semibarões,
barões, viscondes, condes e até algum marquês ocasional, com estilos que eram em grande parte de sua própria invenção. Os títulos honoríficos eram tirados de uma
lista e tinham custo extra: “Defensor da Duodécupla Fé” era bastante popular. Também havia meia dúzia de ordens de cavalaria sem importância que pareciam maravilhosas
numa lapela de casaca.
Como essa respeitabilidade comprada era algo novo para aqueles que as adquiriam, Lashane vinha a ser a cidade mais violentamente cônscia das boas maneiras que Jean
Tannen já visitara. Eles não tinham séculos de ascendência aristocrática para garantir seu valor, por isso os neófitos lashanis compensavam exageradamente com a
cerimônia. Suas regras de precedência eram como fórmulas alquímicas e os jantares formais matavam mais deles a cada ano do que as vítimas combinadas das febres e
dos acidentes. Parecia que pouca coisa poderia ser mais empolgante para os que haviam acabado de comprar seus nomes de família do que arriscá-los (para não mencionar
sua carne mortal) por causa de pequenos insultos.
O recorde, pelo que Jean ouvira dizer, era de três dias desde a casa de contabilidade até a área de duelos e a carruagem fúnebre. O regio, claro, não devolvia o
dinheiro aos parentes do falecido.
Em resultado desse absurdo, era difícil, para quem não possuía títulos, independentemente da cor das suas moedas, obter acesso aos melhores galenos da cidade. Eles
se tornavam símbolos tão grandes de status devido à sua clientela nobre que raramente precisavam procurar ouro em outras fontes.
O sabor do outono estava no vento frio soprando do Amatel, o Lago das Joias, que se estendia até o horizonte ao norte de Lashane. Jean estava vestido de modo conservador
para os padrões locais, com uma casaca de veludo marrom e sedas que não valeriam mais do que, digamos, três meses de pagamento para um comerciante mediano. Isso
o identificava de imediato como um empregado e servia à sua tarefa atual. Nenhum cavalheiro importante esperava pessoalmente no portão do jardim de um galeno.
O Erudito Erkemar Zodesti era considerado o melhor galeno de Lashane, um prodígio com a serra de ossos e o cadinho de alquimista. Demonstrara completo desinteresse,
durante três dias seguidos, pelos pedidos de consulta feitos por Jean.
Naquele dia, Jean se aproximou de novo do portão de barras de ferro nos fundos do jardim de Zodesti, por trás do qual um serviçal idoso o espiava com insolência
reptiliana. Na mão estendida de Jean, um envelope de pergaminho e um quadrado de cartão branco, como nos três dias anteriores. Jean estava ficando irritado.
O serviçal estendeu a mão entre as barras sem dizer uma palavra e pegou tudo o que Jean oferecia. O envelope, contendo a propina costumeira, composta de uma quantidade
grande demais de moedas de prata, sumiu no casaco do serviçal. O velho leu ou fingiu ler o cartão, arqueou as sobrancelhas para Jean e se afastou.
O cartão dizia o mesmo de sempre: Contempla va cora frata eminenza. Ou seja, “Considere o pedido de um amigo eminente” em trono terim; essa era a afetação educada
para esse tipo de gesto. Em vez de dar o nome do aristocrata, a mensagem indicava que alguém poderoso desejava pagar anonimamente para que outra pessoa fosse examinada.
Era um modo comum de fazer com que os ricos resolvessem o problema de, digamos, uma amante grávida, sem revelar a identidade de alguém importante.
Jean passou os longos minutos de espera examinando a casa do galeno. Era um local bom e sólido, mais ou menos do tamanho de uma pequena mansão no Alcegrante, em
Camorr. Porém, era mais nova e seu estilo imitava o de Tal Verrar, esforçando-se para proclamar a importância dos habitantes. A cobertura era de telhas de vidro
vulcânico e as janelas tinham molduras com relevos decorativos mais adequados a um templo.
Vindos do coração do jardim propriamente dito, isolado das vistas por um muro de pedras de 3 metros de altura, Jean podia ouvir os sons de uma festa animada. Copos
tilintando, gargalhadas agudas e, ao fundo, o zumbido de uma viola de nove cordas e outros instrumentos.
– Lamento informar ao seu senhor que no momento o Erudito é incapaz de aceitar seu pedido de consulta.
O serviçal reapareceu atrás do portão de ferro com as mãos vazias. O envelope, uma garantia de seriedade, havia sumido, claro – Jean não sabia se nas mãos de Zodesti
ou do velho.
– Talvez o senhor pudesse me dizer quando seria mais conveniente o Erudito receber a petição do meu senhor, já que obviamente o meio da tarde ao longo de meia semana
foi inadequado.
– Não sei dizer. – O serviçal bocejou. – O Erudito está tomado de trabalho.
– De trabalho. – Jean ficou furioso ao ouvir aplausos na festa. – É mesmo. Meu senhor tem um caso que exige a maior capacidade e discrição possíveis...
– O seu senhor poderia contar com a discrição do Erudito. Infelizmente, a capacidade dele é exigida com urgência em outro local neste momento.
– Maldição, homem! – O autocontrole de Jean se evaporou. – Isso é importante!
– Não admito que falem comigo de modo vulgar. Bom dia.
Jean pensou em enfiar as mãos através das barras de ferro e agarrar o velho pelo pescoço, mas isso seria contraproducente. Não estava usando couros de luta por baixo
das roupas finas e seus sapatos decorativos seriam piores do que pés descalços. Apesar do par de machadinhas escondido embaixo da casaca, não estava equipado nem
mesmo para invadir uma festa de jardim.
– O Erudito se arrisca a ofender um cidadão de importância considerável – rosnou Jean.
– O Erudito já está ofendendo, seu sujeito simplório. – O velho deu um risinho. – Vou lhe dizer claramente: ele tem pouco interesse por negócios arranjados deste
modo. Não acredito que um único cidadão nobre seja tão pouco familiarizado com o Erudito a ponto de temer ser recebido na porta da frente.
– Voltarei amanhã – avisou Jean, esforçando-se para manter a compostura. – Talvez eu possa falar sobre uma quantia que penetrará até mesmo na indiferença do seu
senhor.
– O senhor merece elogios pela persistência, ainda que não pela percepção. Amanhã o senhor deve fazer o que seu senhor pede. Por hora já me despedi.
– Bom dia. Que os deuses protejam a casa onde reside tamanha gentileza.
Inclinou-se rigidamente e saiu.
Não havia mais nada a fazer no momento naquela cidade amaldiçoada onde nem mesmo jogar envelopes cheios de moedas garantia a atenção para um problema.
Enquanto voltava pisando forte à sua carruagem alugada, Jean xingou Maxilan Stragos pela milésima vez. O filho da mãe tinha mentido sobre coisas demais. Por que,
no fim das contas, o maldito veneno fora a única coisa sobre a qual ele optara por dizer a verdade?
3
O lar, por enquanto, era uma suíte alugada na Villa Suvela, uma casa de cômodos sem adornos porém escrupulosamente limpa, uma das preferidas pelos viajantes que
vinham a Lashane para tomar as águas do Amatel, que supostamente curavam reumatismo. Contudo, Jean ainda não vira alguém sair do banho saltando e dançando. A casa
dava para uma praia de areia preta no litoral norte da cidade e os outros hóspedes eram discretos.
– Desgraçado – praguejou Jean enquanto abria a porta do apartamento interno da suíte. – Réptil lashane sem mãe. Ganancioso filho de um penico e de um peido fedorento.
– Minha aguda percepção das nuances sutis revela que você deve estar frustrado.
Locke estava sentado e parecia totalmente desperto.
– Nós fomos esnobados outra vez – explicou Jean, franzindo a testa. Apesar do ar puro entrando pela janela, o apartamento ainda cheirava a suor velho e sangue fresco.
– Zodesti não virá. Pelo menos não hoje.
– Para o diabo com ele, então, Jean.
– Ele é o único galeno de reputação com quem ainda não consegui falar. Alguns dos outros foram difíceis, mas ele está sendo impossível.
– Eu fui beliscado e sangrado por cada lunático maldito desta cidade que já enfiou uma pílula numa garganta. Um a mais não faz diferença.
– Ele é o melhor. – Jean jogou sua casaca sobre uma cadeira, pousou as machadinhas e tirou uma garrafa de vinho azul de um armário. – Um especialista alquímico.
E também um verdadeiro fodedor de ratos metido a besta.
– Então é melhor assim. O que os vizinhos pensariam se eu me consultasse com um fodedor de ratos?
– Precisamos da opinião dele.
– Estou cansado de ser uma curiosidade médica. Se ele não vem, não vem.
– Vou lá amanhã de novo. – Jean serviu duas taças de vinho e completou com água até ficarem numa agradável cor de céu da tarde. – De um jeito ou de outro vou trazer
o sacana metido.
– O que você vai fazer? Quebrar os dedos do sujeito se ele não quiser dar a consulta? Isso pode tornar a situação meio esquisita para mim. Especialmente se ele quiser
cortar alguma coisa fora.
– Ele pode encontrar uma solução.
– Ah, pelo amor dos deuses. – O suspiro frustrado de Locke virou uma tosse. – Não há solução.
– Confie em mim. Amanhã eu vou estar num dos meus dias especialmente persuasivos.
– Pelo que vejo, só custou algumas moedas de ouro descobrirmos como somos pouco chiques. A maioria dos fracassos sociais tem um preço muito maior, imagino.
– Em algum lugar por aí deve haver uma doença que deixe as pessoas humildes, afáveis e agradáveis. Um dia vou descobri-la e garantir que você tenha a pior contaminação
possível.
– Tenho certeza de que eu nasci imune a ela. Por falar em agradável, esse vinho vai chegar às minhas mãos ainda este ano?
Locke parecia bastante alerta, mas sua voz estava engrolada e mais fraca do que no dia anterior. Inquieto, Jean se aproximou da cama, com as taças estendidas como
uma oferenda de paz a alguma criatura desconhecida e potencialmente perigosa.
Locke já estivera nessa situação, magro e pálido demais, barba por fazer havia semanas. Só que dessa vez não havia ferimento óbvio do qual cuidar, nenhum corte para
receber um curativo. Apenas o legado traiçoeiro de Maxilan Stragos fazendo seu trabalho silencioso. Os lençóis de Locke estavam sujos de sangue e com manchas escuras
de suor febril. Seus olhos brilhavam nas órbitas feridas.
Toda noite Jean examinava uma pilha de textos médicos, mas ainda não encontrara palavras adequadas para o que acontecia com Locke. Ele estava sendo descosturado
por dentro; as veias e os tendões se desfaziam. O sangue escorria dele como se devido a um capricho demoníaco. Numa hora era tossido; na outra, saía pelos olhos
ou pelo nariz.
– Maldição – sussurrou Jean enquanto Locke tentava pegar a taça. A mão esquerda dele estava vermelha, como se os dedos tivessem mergulhado em sangue. – O que é isso?
– Nada incomum. – Locke riu. – Começou depois de você sair... vindo de debaixo das unhas. Posso segurar a taça com a outra mão...
– Você estava tentando esconder isso de mim? Quem é que troca a porcaria dos seus lençóis?
Jean pousou os copos e foi até a mesa embaixo da janela, onde estavam pilhas de toalhas de linho, uma jarra e uma tigela, cuja água tinha cor de ferrugem por causa
do sangue velho.
– Não dói, Jean – murmurou Locke.
Ignorando-o, Jean pegou a tigela. A janela dava para o pátio interno da vila, que felizmente estava deserto. Jean jogou a água velha pela janela, encheu o recipiente
de novo usando a jarra e mergulhou um pano de linho dentro.
– Mão – ordenou Jean. Locke obedeceu, carrancudo, e Jean enrolou o pano molhado em volta dos seus dedos. Ele ficou rosado. – Mantenha levantada durante um tempo.
– Eu sei que parece feio, mas na verdade não é tanto sangue assim.
– Só resta muito pouco em você!
– Além disso, estou com falta de vinho.
Jean pegou os copos de novo e pôs um cuidadosamente na mão direita de Locke. Os tremores não pareciam muito ruins no momento, o que era bom. Ultimamente, ele tinha
dificuldade para segurar as coisas.
– Um brinde – disse Locke. – Aos alquimistas. Que todos sofram cagando merda de fogo. – Ele tomou um gole. – Ou sejam estrangulados na cama. O que for mais conveniente.
Não é difícil me satisfazer.
Durante o gole seguinte, ele tossiu e uma gota cor de rubi desceu espiralando no vinho, deixando uma trilha arroxeada ao se dissolver.
– Pelos deuses. – Jean engoliu o resto de seu vinho e pousou o copo. – Vou chamar o Malcor.
– Jean, não preciso de outra porcaria de sanguessuga de cachorro neste momento. Ele já esteve aqui seis ou sete vezes. Por que...
– Alguma coisa pode ter mudado. Alguma coisa pode estar diferente. – Jean pegou sua casaca. – Talvez ele possa ajudar com o sangramento. Talvez finalmente encontre
alguma pista...
– Não existe pista, Jean. Não há antídoto que vá brotar do Malcor, do Kepira, do Zodesti ou de qualquer fraudulento furador de pústula em toda esta tediosa cidade
de merda.
– Volto logo.
– Maldição, Jean, poupe o dinheiro! – Locke tossiu de novo e quase deixou o vinho cair. – É apenas bom senso, seu brutamontes cabeça-dura! Seu obstinado...
– Volto logo.
– ... obstinado, ahn, alguma coisa... alguma coisa ferina, inteligente e bastante convincente! Ei, se você sair agora, não vai me ver sendo bastante convincente!
Maldição.
Jean fechou a porta e não ouviu o que quer que Locke pudesse ter dito em seguida. O céu do lado de fora estava tingido pelo crepúsculo, o laranja no horizonte cedendo
ao prata e depois ao roxo na profunda tigela do céu. Roxo como a cor do sangue se dissolvendo em vinho azul.
Um bloco cinza deslizando ao norte, vindo do Amatel, prometia uma tempestade em breve. Isso servia muito bem a Jean.
4
Fazia seis semanas que haviam partido do pequeno porto de Vel Virazzo num iate de 40 pés, recém-saídos de uma série de desastres mais ou menos miseráveis que os
tinham deixado com uma fração da vasta fortuna que esperavam recuperar em troca de dois anos investidos numa trama complexa.
Enquanto saía para as ruas de Lashane, Jean passou os dedos por uma mecha de cabelo escuro e encaracolado, bem amarrada com tiras de couro. Mantinha-a sempre num
bolso do casaco ou enfiada no cinto. De todas as coisas que perdera recentemente, o dinheiro era a menor das suas preocupações.
Locke e Jean haviam discutido a ideia de velejar para o leste, em direção a Tamalek e Espara... de volta a Camorr. Mas a maior parte do mundo que eles tinham conhecido
lá fora varrida para longe, e a maioria dos velhos amigos estavam mortos. Em vez disso, foram para o oeste. Noroeste.
Seguindo pelo litoral, dando o máximo de suas habilidades grosseiras, passaram ao largo de Tal Verrar, pelos restos enegrecidos da outrora luxuosa Salon Corbeau,
e discutiram se iriam mais ao norte até Balinel, no Reino dos Sete Tutanos. Os dois falavam vadrã bem o bastante para fazer praticamente qualquer coisa enquanto
procuravam alguma nova atividade criminosa.
Deixaram o mar e entraram no continente, subindo o largo rio Cavendria, que fora domado pelos Ancestres e era adequado a embarcações oceânicas. O Cavendria corria
para o oeste a partir do Amatel, o mar interior que separava as antigas cidades irmãs, Kartane e Lashane. Um dia Locke e Jean haviam tido esperança de comprar um
ingresso para a nobreza lashani. O plano revisado era apenas encher o barco com suprimentos para a viagem até Balinel.
Os sintomas de Locke se revelaram no dia em que entraram no estuário do Cavendria.
A princípio não passaram de ataques de tontura e visão turva, mas, à medida que os dias avançavam e eles bordejavam lentamente contra a correnteza, Locke começou
a sangrar pelo nariz e pela boca. Quando chegaram a Lashane, ele não conseguia mais rir daquilo nem esconder sua fraqueza cada vez maior. Em vez de pegar suprimentos,
os dois alugaram cômodos e, sob os protestos de Locke, Jean começou a gastar quase todas as moedas que eles possuíam em busca de confortos e curas.
A partir do submundo de Lashane – que era toleravelmente pitoresco, ainda que nem de longe do tamanho do de Camorr –, ele consultara cada envenenador e alquimista
negro que pudera subornar. Todos haviam balançado a cabeça e expressado admiração profissional pelo que fora feito a Locke; a substância em questão estava além de
seus poderes. Locke fora obrigado a beber uma centena de purgativos, chás e elixires, cada um parecendo mais nojento e caro do que o anterior, todos absolutamente
inúteis.
Depois disso, Jean se vestira bem e começara a procurar galenos autorizados. Referia-se a Locke como “serviçal confidencial” de uma pessoa rica, o que poderia ser
qualquer coisa, desde amante secreto até assassino particular. Os galenos também expressaram pesar e fascínio em medida igual. A maioria se recusara a tentar curas,
oferecendo paliativos para aliviar a dor de Locke. Jean entendia completamente o significado disso, mas não ligava para o pessimismo deles. Apenas levava cada um
até a porta, pagava os honorários exorbitantes e ia atrás do galeno seguinte da lista.
O dinheiro não durou. Depois de alguns dias, Jean vendeu o barco com o gato residente, essencial para a sorte no mar, e ficou feliz em obter metade do que haviam
pagado por ele.
Agora até essa verba estava acabando e Erkemar Zodesti era praticamente o único galeno em Lashane que ainda não dissera a Jean que não havia esperança para a situação
de Locke.
5
– Nenhum sintoma novo – informou Malcor, um velho rotundo com uma barba grisalha que brotava encaracolada do queixo como uma tempestade se aproximando.
Malcor era um sanguessuga de cachorro, um galeno de rua sem estudos ou licença formais. Porém, de todos os disponíveis em Lashane, era o que estava sóbrio com mais
frequência.
– É meramente uma nova expressão de sintomas familiares. Anime-se.
– Acho difícil – replicou Locke. – Mas obrigado pela mãozinha.
Malcor havia passado um emplastro de pasta de milho com mel nos dedos de Locke, depois os envolvera com bandagens de linho secas, transformando sua mão esquerda
numa inutilidade volumosa.
– Bem, os deuses amam um homem que ri das dificuldades.
– As dificuldades são uma chatice infernal. O difícil é conseguir rir se você não consegue ficar bêbado.
– Então o sangramento não é novidade? Não é nada pior do que antes? – perguntou Jean.
– É uma nova inconveniência, sem dúvida. – Malcor hesitou, depois deu de ombros. – Quanto à perda total dos humores sanguíneos do corpo... não sei. Um exame detalhado
da água dele poderia, talvez...
– Se você quer uma tigela cheia de mijo – interrompeu Locke –, pode tirar a rolha da sua reserva particular. Já dei o suficiente desde que cheguei aqui.
– Tudo bem, então. – Os joelhos de Malcor estalaram como dobradiças enferrujadas quando ele se levantou. – Se não vou examinar seu mijo, não vou examinar seu mijo.
Mas posso deixá-lo com uma pílula que deve lhe trazer um alívio excelente por 12 a 24 horas, e talvez encorajar seus humores exauridos a se reacenderem...
– Esplêndido. Desta vez será aquela feita basicamente de giz? Ou a de açúcar? Prefiro a de açúcar.
– Olha... seu... olha aqui! – O rosto velho e enrugado de Malcor ficou vermelho. – Eu posso não ter os mantos do Colégio Terim, mas, quando eu for aos deuses, eles
saberão que eu me importei tremendamente em aliviar o sofrimento dos meus pacientes!
– Paz, velho. – Locke tossiu e esfregou os olhos com a mão sem bandagem. – Sei que você tem boas intenções. Mas me poupe do seu placebo.
– Mande seu amigo tirar as bandagens daqui a algumas horas – disse Malcor, irritado, vestindo uma capa velha cheia de manchas escuras. – Se for beber, seja frugal.
Ponha água no vinho.
– Fique tranquilo, meu amigo aqui põe água no meu vinho como a acompanhante nervosa de uma princesa virgem.
– Desculpe – falou Jean, conduzindo Malcor até a porta. – Ele fica difícil quando está doente.
– Ele tem mais dois ou três dias.
– O senhor não pode estar falando...
– Posso, sim. O sangramento piorou. A enervação dele está mais pronunciada. Seus humores estão desequilibrados de modo terminal e tenho certeza de que um exame da
sua água revelaria sangue. Tentei animá-lo, mas seu amigo obviamente não se engana.
– Mas...
– Assim como o senhor não deveria se enganar.
– Tem de haver alguém que possa fazer alguma coisa!
– Os deuses.
– Se eu pudesse convencer o Zodesti...
– Zodesti? – Malcor gargalhou. – Que desperdício de dom, aquele. Zodesti trata apenas de duas doenças: riqueza e proeminência. Ele nunca irá aceitar sequer medir
a pulsação de seu amigo.
– Então o senhor não tem mais nenhuma ideia? Nenhuma sugestão?
– Chame sacerdotes. Enquanto ele ainda está lúcido. – Jean fez uma carranca e o velho sanguessuga segurou-o suavemente pelos ombros. – Não sei qual é o veneno que
está matando seu amigo. Mas o que está matando o senhor chama-se esperança.
– Obrigado pelo seu tempo – resmungou Jean. Em seguida, tirou várias moedas de prata da bolsa. – Se eu precisar de novo dessas máximas maravilhosas...
– Uma única duvesta será adequada – garantiu Malcor. – E, apesar do seu humor agora, saiba que eu virei sempre que o senhor pedir. O desconforto do seu amigo provavelmente
vai aumentar, e não diminuir, antes do fim.
O sol havia ido embora e os tetos e torres da cidade ganhavam vida como labaredas contra a noite que se adensava. Enquanto observava Malcor desaparecer na rua, Jean
queria, mais do que qualquer coisa, ter alguém em quem bater.
6
– Um bom dia ao senhor – cumprimentou Jean, aproximando-se de novo do portão do jardim. Era a segunda hora da tarde do dia seguinte e o céu não passava de uma confusão
borbulhante e cinzenta. A chuva ainda não começara a cair, mas ia chegar com certeza, e logo. – Estou aqui para a petição usual.
– Algo totalmente inesperado – retrucou o velho por trás das barras de ferro.
– É uma hora conveniente? – De dentro do jardim, Jean podia ouvir risos de novo e uma série de pancadas ecoavam, como se algo estivesse sendo jogado numa parede
de pedra. – Ou será que o Erudito está consumido...
– Pelo trabalho. Estranho, a conversa que tivemos ontem fugiu da sua memória?
– Devo implorar, senhor. – Jean colocou o máximo possível de sinceridade passional na voz. – Um homem bom está morrendo, precisando desesperadamente de ajuda. O
seu senhor não prestou juramento como galeno do Colégio?
– Os juramentos dele não são da sua conta. E muitos homens bons estão morrendo, com uma necessidade desesperada de ajuda, em Lashane, Kartane e em todos os lugares
do mundo. Você vê o Erudito selando o cavalo para examiná-los?
– Por favor. – Jean sacudiu um novo envelope, tilintando com moedas. – Pelo menos leve a mensagem, pelo amor de todos os deuses.
Com meia carranca e meio sorriso, o serviçal estendeu a mão pelas barras. Jean largou o envelope, agarrou o velho pelo colarinho e bateu-o com força contra o portão.
Um instante depois, uma arma brotou em sua mão livre.
Era uma adaga em forma de T, do tipo que se usa impelindo o punho. A lâmina que saía entre os dedos de Jean tinha 15 centímetros de comprimento e era curva como
uma garra de animal.
– Só há um uso para uma arma assim – sussurrou Jean. – Está vendo? Se tentar gritar ou se afastar, a gordura de sua barriga servirá de avental. Abra o portão.
– Você vai morrer por causa disso – sibilou o serviçal. – Eles vão arrancar sua pele e fervê-lo em água salgada.
– E que consolo será para você, hein? – Jean cutucou-o na barriga com a adaga. – Abra o portão ou eu arranco as chaves do seu cadáver.
Com a mão trêmula, o velho obedeceu. Jean empurrou-o de lado, depois agarrou-o de novo e o virou. Agora a arma estava às costas do sujeito.
– Leve-me ao seu senhor. Mantenha a compostura. Diga que surgiu um caso importante e que ele vai querer ouvir minha oferta.
– O Erudito está no jardim. Mas você é louco... Ele tem amigos em lugares importantes... Ai!
Jean cutucara-o de novo com a lâmina, instigando-o.
– Claro – concordou Jean. – Mas você tem algum amigo mais perto do que a minha adaga?
No centro do jardim, um homem baixo e robusto, de cerca de 35 anos, dava gargalhadas calorosas com uma mulher que ainda não teria 20. Os dois vestiam calções leves,
camisas de seda e luvas de couro acolchoadas. Isso explicava o som rítmico de antes. Estavam usando a parte liberada de uma parede de pedras para jogar pursava,
a “caça do parceiro”, um primo aristocrático do handebol.
– Senhor, senhora, mil perdões – disse o serviçal depois de outro cutucão de Jean, que estava meio passo atrás, onde nem Zodesti nem sua convidada poderia avistar
o verdadeiro motivo para sua entrada no jardim. – Uma questão muito urgente, senhor.
– Urgente? – Zodesti tinha uma juba de cachos pretos, agora escorregadios de suor, e os restos de um sotaque verrari de classe alta. – Por quem esse sujeito veio
falar?
– Um amigo eminente – respondeu Jean. – Do modo de sempre. Não seria adequado discutir essas questões diante de sua jovem...
– Pelos deuses, eu digo o que é adequado ou não no meu próprio jardim! Esse sujeito é petulante mesmo, Loran. Você conhece minhas preferências. É melhor que isso
seja sério.
– Tremendamente sério, senhor.
– Faça com que ele deixe as informações específicas. Se eu achá-lo adequado, ele pode vir de novo depois do jantar.
– Agora seria melhor – retrucou Jean. – Para todo mundo.
– Quem, por todos os infernos, você acha que é? Estou cagando para sua tremenda urgência! Loran, enxote esse...
– A recusa foi notada e cordialmente rejeitada. – Jean empurrou Loran no chão. Meio segundo depois, estava em cima de Zodesti, com o antebraço carnudo envolvendo
o pescoço do galeno e a lâmina erguida de modo que a jovem visse. – Se gritar pedindo ajuda, eu uso isto, senhora. Eu odiaria que algum mal causado ao Erudito pesasse
na sua consciência.
– Eu... eu... – gaguejou ela.
– Balbucie o quanto quiser, desde que não grite. Quanto a você... – Jean apertou a traqueia do sujeito, para demonstrar sua força, e o galeno ofegou. – Eu tentei
ser educado. Teria pagado bem. Mas agora vou lhe ensinar um novo modo de fazer negócios. Você tem um kit que levaria para um caso de envenenamento? Materiais de
que precisaria para uma consulta?
– Sim – respondeu Zodesti, engasgado. – Na minha sala de trabalho.
– Vamos entrar calmamente na sua casa, todos nós. De pé, Loran. Você tem uma carruagem com cocheiro aqui, Erudito?
– Tenho.
– Para dentro, então, como se nada estivesse errado. Se algum de vocês me causar problema, pelos deuses, vou começar a praticar cirurgia de pescoço.
7
A parte complicada era levar todos para a sala de trabalho de Zodesti, passando pelos olhares curiosos de um cozinheiro e um menino ajudante de cozinha. Mas nenhum
refém de Jean fez cena e logo a porta do escritório estava entre eles e qualquer interferência. Jean trancou-a, sorriu e disse:
– Loran, poderia por favor...
Nesse momento, o velho encontrou coragem para uma última luta desesperada. Por pior que estivesse seu humor, Jean não teve coragem de esfaquear o pobre idiota e,
em vez disso, bateu com a lateral da mão que segurava a adaga no queixo do homem. O serviçal tombou no chão sem sentidos. Zodesti saltou para uma mesa no canto e
abriu uma gaveta antes que Jean o agarrasse pelo colarinho e o jogasse no chão ao lado de Loran. Jean olhou para dentro da gaveta e gargalhou.
– Ia lutar comigo usando um abridor de cartas? Sentem-se, vocês dois.
Jean indicou um par de poltronas encostadas na parede dos fundos. Zodesti e sua companheira obedeceram, de olhos arregalados, como alunos esperando o castigo de
um tutor. Jean cortou uma cortina pendurada ao lado da janela fechada, rasgou-a em tiras e jogou-as para Zodesti.
– Não entendo...
– Sua jovem amiga representa um problema. Não desejo ofendê-la de modo algum, senhora, mas com um refém já é suficientemente difícil de lidar, quanto mais com dois.
Em especial quando são reféns amadores e desajeitados, não acostumados aos papéis e às expectativas. Portanto, vamos deixá-la naquele belo armário grande ali, onde
a senhora não será encontrada tarde demais nem cedo demais.
– Como você ousa... – disse a jovem. – Saiba que o meu tio é...
– O tempo é precioso e minha adaga é afiada. Quando algum serviçal enfim abrir o armário, eles devem encontrá-la viva ou morta?
– Viva – respondeu ela, engolindo em seco.
– Amordace-a, Erudito – ordenou Jean. – Depois dê alguns nós bons, firmes. Eu mesmo vou verificá-los em seguida. Quando ela estiver bem presa, faça o mesmo com o
velho Loran.
Enquanto Zodesti amarrava sua parceira de pursava (se é que esse era de fato o limite da parceria), Jean arrancou outra cortina e cortou-a em mais tiras. Seu olhar
pousou nos armários com portas de vidro. Eles continham uma coleção de livros, frascos, amostras de ervas, pós alquímicos e bizarros instrumentos cirúrgicos. Jean
se animou: se os badulaques estranhos de Zodesti refletiam sua verdadeira capacidade, talvez ele tivesse uma resposta, afinal de contas.
8
– Aqui está bom – avisou Jean.
– Michel – falou Zodesti, inclinando-se pela janela do seu lado –, pare aqui.
A carruagem parou chacoalhando e o cocheiro saltou para abrir a porta. Com a adaga meio escondida pelo punho largo da casaca, Jean sinalizou para Zodesti sair primeiro.
O Erudito obedeceu, carregando uma bolsa de couro e uma trouxa de roupas.
Tinha começado a chuviscar e Jean agradeceu. Isso manteria as pessoas fora das ruas e o céu fechado dava à cidade uma aparência de crepúsculo, e não de meio da tarde.
Um sequestrador não poderia pedir coisa melhor.
Jean havia ordenado que parassem a uns dois quarteirões da Villa Suvela, na frente de um beco que levaria até lá por meio de viradas e conexões com uma dúzia de
outros possíveis destinos ramificando-se pelo caminho.
– O Erudito precisará de várias horas – disse Jean, entregando um pedaço de pergaminho dobrado ao cocheiro. – Espere neste endereço até nós encontrarmos você de
novo.
O local era um café no distrito mercantil de Lashane, a 800 metros de distância. O cocheiro franziu a testa.
– Isso está bom para o senhor? O senhor vai perder o jantar...
– Está bem, Michel – garantiu Zodesti com uma leve exasperação. – Apenas obedeça.
– Claro, senhor.
Assim que a carruagem se afastou pela rua, Jean empurrou Zodesti para o beco.
– Você pode sobreviver a isto. Vista-se enquanto conversamos.
A trouxa de roupa incluía um chapéu velho e uma capa manchada de chuva, ambos pertencentes a Loran, que era mais ou menos do tamanho do patrão. Zodesti pôs a capa
e Jean tirou do bolso um pedaço de cortina cortada.
– Que diabo é isso agora? – perguntou Zodesti.
– Pensou mesmo que eu teria todo esse trabalho e deixaria você ver aonde o estou levando? Achei que preferiria a venda à inconsciência.
Zodesti ficou imóvel enquanto Jean o vendava, levantava o capuz da capa e enfiava o chapéu em cima. O resultado foi satisfatório. De alguns metros de distância,
a venda estaria escondida pelo chapéu ou perdida nas sombras do capuz.
Jean pegou uma garrafa de vinho na bolsa de equipamento médico de Zodesti, que havia encontrado meio cheia no escritório. Tirou a rolha e jogou um pouco em cima
do galeno, derramou o resto no chão e pôs a garrafa vazia na mão direita de Zodesti. Pelo cheiro ao redor deles, Jean supôs que havia acabado de desperdiçar um kameleona
muito valioso.
– Bom, você é meu amigo bêbado, sendo acompanhado até a segurança. Fique de cabeça baixa. – Jean pôs a bolsa na mão esquerda de Zodesti. – Estou com os braços em
volta de você, para impedir que tropece, e minha adaga está mais perto do que você gostaria.
– Você vai ferver vivo por causa disso, seu filho da puta.
– Vamos manter minha mãe fora disso. Cuidado com os pés.
Demoraram uns dez minutos para chegarem cambaleando à casa. Não houve complicações. Pelo jeito, as poucas pessoas que estavam na chuva tinham coisas melhores em
que prestar atenção do que num par de bêbados.
Assim que estavam dentro da suíte, Jean trancou a porta da frente e empurrou Zodesti para uma cadeira.
– Agora você está bem longe de qualquer pessoa. Se tentar fugir, se levantar a voz ou se chamar atenção de qualquer modo, vou machucá-lo. E muito.
– Pare de me ameaçar e mostre a droga do paciente.
– Daqui a pouco. – Jean abriu a porta do apartamento interior, viu que Locke estava acordado e rapidamente gesticulou em sua linguagem de sinais particular: Não
use nenhum nome.
– O que eu sou, um idiota? – murmurou Locke. – Eu sabia que ele não viria por vontade própria.
– Como...?
– Você estava usando as botas de lutar e deixou os sapatos chiques no armário. E todas as suas armas sumiram.
– Ah. – Jean tirou a venda e o disfarce de Zodesti. – Fique à vontade e comece a trabalhar.
O galeno sopesou sua sacola e, lançando um olhar de ódio para Jean, foi para perto da cama de Locke. Encarou-o por alguns instantes, depois puxou uma cadeira e sentou-se.
– Sinto cheiro de vinho – disse Locke. – Kameleona, acho. Imagino que você não tenha trazido um pouco, não é?
– Só o que o seu amigo usou para me banhar. – Zodesti estalou os dedos algumas vezes diante dos olhos de Locke, depois mediu os batimentos nos dois pulsos. – Céus,
você está péssimo. Acha que foi envenenado?
– Não – respondeu Locke tossindo. – Eu caí da porra de uma escada. O que isso parece?
– Você não pode ser educado com nenhum dos seus galenos? – perguntou Jean.
– Foi você que o sequestrou, porra.
– Já que parece que não tenho escolha – falou Zodesti –, vou fazer um exame minucioso. Isso pode causar um pouco de desconforto, mas não reclame. Não vou prestar
atenção.
O primeiro exame de Zodesti demorou um quarto de hora. Ignorando os resmungos de Locke, cutucou e sondou suas juntas e seus membros, dos ombros até os pés.
– Você está perdendo a sensibilidade nas extremidades – afirmou Zodesti por fim.
– Como diabos você sabe?
– Acabei de enfiar um bisturi em cada um dos dedões dos seus pés.
– Você fez buracos nos meus pés?
– Estou acrescentando lágrimas a um rio, comparado com o sangue que você está perdendo por outros lugares.
Zodesti remexeu na bolsa, pegou um invólucro de seda e extraiu dele um par de ópticos com lentes enormes. Usando-os, puxou os lábios de Locke para trás e examinou
suas gengivas e seus dentes.
– Eu nhão xou a porr dum caualo.
– Quieto. – Zodesti segurou a parte limpa de uma das bandagens descartadas contra as gengivas de Locke durante vários segundos, tirou-a e franziu a testa.
– Suas gengivas estão sangrando. E estou vendo que suas unhas estão cortadas – disse Zodesti.
– O que é que tem?
– Elas foram cortadas num Dia da Penitência?
– Como é que eu vou lembrar?
– Cortar as unhas em qualquer dia que não seja o Dia da Penitência enfraquece o sangue. Diga, quando você teve pela primeira vez seus sintomas, pensou em engolir
uma ametista?
– Por que eu teria uma ametista à mão?
– Sua ignorância em relação à medicina básica é o seu próprio infortúnio. Mas você fala como alguém do leste, logo não posso dizer que estou surpreso.
O resto do trabalho do galeno demorou uma hora, com Zodesti realizando testes cada vez mais esotéricos e Jean o rondando, alerta para qualquer sinal de traição.
Por fim, Zodesti suspirou e se levantou, enxugando as mãos sangrentas nos lençóis de Locke.
– Sua distinção infeliz é ter sido envenenado por uma substância que está fora da minha experiência – comentou Zodesti. – Dado o fato de que tenho um Anel de Mestre
em alquimia do Colégio Terim...
– Danem-se as suas joias – cortou Jean. – Você pode fazer alguma coisa?
– Nos primeiros estágios do envenenamento, quem poderia dizer? Mas agora... – Zodesti deu de ombros.
– Seu verme! – Jean agarrou Zodesti pelas lapelas, girou-o e jogou-o contra a parede ao lado da cama de Locke. – Sua fraudezinha arrogante! Você é o melhor que esta
cidade tem? FAÇA ALGUMA COISA!
– Não posso – respondeu Zodesti com uma nova firmeza na voz. – Pense o que quiser, faça o que quiser. Ele está além da minha capacidade de intervir. Ouso dizer que
isso o coloca além da capacidade de qualquer um.
– Deixe-o ir – falou Locke.
– Deve haver alguma coisa...
– Deixe-o ir!
Locke teve uma ânsia de vômito, cuspiu mais sangue e começou a ter um ataque de tosse. Jean soltou Zodesti e o galeno deslizou para longe, encarando-o com fúria.
– Pouco depois da administração do veneno – continuou o galeno –, eu poderia ter tentado um purgativo. Ou enchido o estômago dele com leite e polpa de pergaminho.
Ou o sangrado para tornar o veneno mais ralo. Mas essa coisa já está nele há muito tempo. – Zodesti começou a recolocar seus instrumentos na bolsa. – Mesmo com venenos
conhecidos, chega um ponto em que o dano aos órgãos ou aos humores não pode ser revertido. Os antídotos não restauram carne morta. E ainda por cima um veneno desconhecido?
O sangue está jorrando dele. Simplesmente não posso colocá-lo de volta.
– Maldição – sussurrou Jean.
– A questão não é mais se e, sim, quando. Olhe, seu desgraçado feio, apesar do modo como você me trouxe para esta confusão, eu dei minha atenção total e justa a
ele.
– Sei. – Jean andou lentamente até a mesa onde estava a roupa de cama, pegou um copo de cerâmica e encheu-a com água da jarra. – Você tem alguma coisa aí que possa
provocar um sono pesado? Para o caso de a dor piorar?
– Claro. – Zodesti tirou um pequeno embrulho de papel de dentro da bolsa. – Faça com que ele tome isso com água ou vinho e ele não conseguirá ficar de olhos abertos.
– Ei, espere um minuto aí – disse Locke.
– Me dê. – Jean pegou o pacote, derramou o conteúdo na água e sacudiu o copo várias vezes. – Quanto tempo isso vai durar?
– Horas.
– Ótimo. – Jean entregou o copo a Zodesti e gesticulou com a adaga. – Beba.
– O quê?
– Não quero que você vá correndo ao primeiro guarda que possa encontrar assim que eu deixá-lo na rua.
– Não pense que eu seria idiota a ponto de tentar fugir de você...
– Não pense que eu ligo a mínima. Beba a coisa toda ou eu quebro os seus braços.
Zodesti engoliu depressa o conteúdo do copo.
– Como vou rir quando pegarem você, seu filho da puta! – Ele jogou o copo descuidadamente na cama de Locke e sentou-se encostado na parede. – Todos os juízes de
Lashane são meus pacientes. Seu amigo está doente demais para fugir. Se ele ainda estiver vivo quando pegarem você, vão arrastá-lo e esquartejá-lo só para você ter
algo para ver enquanto espera sua própria exe... execução...
Alguns segundos depois, sua cabeça tombou para a frente e ele começou a roncar.
– Acha que ele está fingindo? – perguntou Locke.
Jean enfiou a ponta da adaga na batata da perna direita de Zodesti, que estava estendida. O galeno não se mexeu.
– Odeio dizer que eu avisei – falou Locke, acomodando-se contra as almofadas e cruzando as mãos diante do corpo. – Espere, não, não odeio. Seria bom ter uma garrafa
de vinho e, desta vez, não ponha água...
– Vou chamar o Malcor. Vou fazer com que ele passe a noite aqui. Atenção constante.
– Maldição, Jean, acorde. – Locke tossiu e deu um soco no peito. – Que mudança, hein? Em Vel Virazzo, eu queria morrer e você me fez ter tino de novo. Agora estou
morrendo de verdade e você perdeu o tino.
– Existem...
– Chega de galenos, Jean. Chega de alquimistas, chega de sanguessugas de cachorro. Chega de levantar pedras procurando milagres.
– Como você consegue ficar aí deitado feito um peixe jogado em terra, sem lutar?
– Eu poderia me sacudir um pouco, se você acha que isso vai ajudar.
– O Rei Cinza cortou você como um pedaço de vitela e você conseguiu se recuperar, mais irritante do que nunca.
– Cortes de espadas. Se eles não ficam verdes, a gente pode esperar a cura. É a natureza das coisas. Com a alquimia negra, quem diabos sabe?
– Vou lhe dar vinho, mas quero que você tome com duas partes de água, como Malcor orientou. E quero que você coma esta noite tudo o que puder. Mantenha as forças...
– Vou comer, mas só para dar um pouco de lastro ao vinho. Não há outro motivo, Jean. Não acontecerá uma cura.
– Se você não puder ser curado, terá que suportar. Durar mais do que o veneno, até que ele saia como uma febre.
– É mais provável que o veneno fique do que eu. – Locke tossiu e limpou a boca com um lençol. – Jean, você atraiu uma tremenda encrenca roubando esse fuinha da casa
dele. Sem dúvida você consegue enxergar isso.
– Eu fui muito cuidadoso.
– Você sabe muito bem que ele vai se lembrar da sua cara e Lashane não é muito grande. Olhe, pegue o dinheiro que resta e saia da cidade esta noite. Você pode exercer
uma dúzia de atividades diferentes, fala quatro línguas, pode ser rico de novo em...
– Que tagarelice incompreensível! – Jean sentou-se na beira da cama e gentilmente afastou os cabelos suados da testa de Locke. – Não entendo uma palavra do que você
está dizendo.
– Jean, eu conheço você: é capaz de matar meio quarteirão se está com o sangue quente, mas nunca vai cortar a garganta de um homem adormecido que não fez nenhum
mal de verdade a nós. Isso quer dizer que cedo ou tarde os policiais vão bater à nossa porta. Por favor, não esteja aqui quando isso acontecer.
– Você é que atraiu isso ao me enganar pondo aquele antídoto no meu copo. As consequências são suas...
– Que inferno, não são! Você também teria me roubado aquela escolha! Deuses, quanta manobra só para obter vantagem moral! Parece que nós somos casados. – Locke tossiu
e arqueou as costas. – Os deuses devem mesmo abominar você para torná-lo meu enfermeiro – acrescentou ele, baixinho. – Não só uma vez, mas duas, agora.
– Diabos, eles me tornaram seu enfermeiro quando eu tinha 10 anos. Você é capaz de derrubar reinos apenas por capricho. Só precisa de alguém para garantir que não
seja atropelado por uma carruagem ao atravessar a rua.
– Mas agora isso acabou. E tudo seria melhor se eu tivesse sido atropelado por uma carruagem...
– Está vendo isto? – Jean estendeu a mecha de cabelos escuros e encaracolados que havia tirado do bolso da casaca. – Está vendo isto, seu desgraçado? Você sabe de
onde isto veio. Eu estou farto de perder. Ouviu, porra? Estou farto de perder. Me poupe da sua preciosa autopiedade, porque não estamos num palco e eu não paguei
dois cobres para abrir o berreiro por causa do discurso de morte de alguém. Você não vai ganhar um discurso, entendeu? Não me importa se você tossir baldes de sangue.
Baldes eu posso carregar. Não me importa se você uivar feito um cão durante meses. Você vai comer, beber e continuar lutando.
– Bom... – disse Locke depois de alguns momentos de silêncio, e deu um sorriso torto. – Se você vai ser um filho da puta intratável, por que não abre aquele vinho
para que a gente comece logo a beber?
9
Jean deixou Zodesti num beco a uns três quarteirões a oeste da Villa Suvela, tomando o cuidado de escondê-lo bem e de cobrir sua bolsa com lixo. Ele não ficaria
satisfeito ao acordar, mas pelo menos estaria vivo.
O estado de Locke mudou pouco naquela noite; ele teve um sono entrecortado, bebericou vinho, mastigou de má vontade carne fria e pão macio, ainda sangrando. Jean
adormeceu sentado e conseguiu derramar cerveja num tratado inútil sobre venenos. Recentemente, a maioria das noites tinha sido assim.
A chuva continuou a cair até a noite seguinte, envolvendo a cidade em umidade. Logo antes do crepúsculo, Jean foi buscar novos suprimentos. Havia uma estalagem de
mercadores a menos de dez minutos da Villa Suvela, usada para atender a necessidades em horas incomuns.
Quando voltou, a porta da frente estava completamente normal. Ele não tinha motivo para suspeitar de algo errado, até olhar para baixo e ver a quantidade de água
que ensopava a soleira.
Movimento dos dois lados – atacantes demais, preparados demais. Uma cesta de comida e vinho não era uma arma nem de longe. Jean foi soterrado por uma confusão de
corpos. Com força desesperada, ele esmagou um nariz, chutou um pé, tentou abrir caminho até as machadinhas...
– Chega – ordenou uma voz autoritária.
Jean ergueu os olhos. A porta do apartamento interno estava aberta e havia homens de pé junto à cama de Locke.
– Não! – gritou Jean, interrompendo a luta.
Quatro homens o agarraram e o arrastaram para o quarto, onde ele contou pelo menos mais cinco oponentes visíveis. Um deles pegou uma toalha e levou-a ao nariz que
sangrava.
– Desculpe – disse Locke, rouco. – Eles chegaram logo depois que você saiu...
– Quieto.
Quem falava era um homem rude, mais ou menos da idade de Jean, com o queixo marcado por cicatrizes de briga e um nariz que parecia ter se quebrado após uma queda
violenta. O cabelo era raspado e ele usava couros de luta de qualidade por baixo de uma casaca marrom comprida. Se Jean tivesse pensado direito, teria imaginado
que não só os guardas de Lashane poderiam puni-los pelo sequestro de Zodesti.
– Como está sua cabeça, Leone?
– Guebrei a borra do dariz – disse o homem, segurando uma toalha contra o rosto.
– É bom para melhorar o caráter.
O homem de casaca preta pegou uma cadeira, colocou-a na frente de Jean e deu-lhe um chute na barriga, forte e rápido, mal lhe dando tempo de se encolher antes da
dor. Jean grunhiu e os quatro homens que o seguravam comprimiram-no com todo o peso, para que não tentasse nada idiota.
– Esperem. – Locke tossiu. – Por favor.
– Se eu precisar dizer “quieto” de novo – disse o homem de preto –, vou cortar a porra da sua língua e pregá-la na parede. Agora cale a boca. – Ele sentou-se na
cadeira e sorriu. – Meu nome é Cortessa.
– Sussurros – disse Jean.
Aquilo era muito pior do que a polícia. Sussurros Cortessa era um alto poder no submundo lashani.
– É como me chamam. Presumo que você seja Andolini.
Jean assentiu: esse era o nome que Jean tinha dado ao alugar os aposentos.
– Se for verdadeiro, eu sou o Rei dos Sete Tutanos – retrucou Cortessa. – Mas ninguém se importa. Você pode me dizer por que estou aqui?
– Ficou sem ovelhas para trepar e saiu em busca de alguma ação?
– Pelos deuses, eu adoro os camorris. São totalmente incapazes de fazer as coisas do modo fácil. – Cortessa estapeou Jean, forte o bastante para fazer seus olhos
lacrimejarem. – Tente de novo. Por que estou aqui?
– Você ouviu dizer – Jean ofegou – que nós enfim descobrimos a cura para quem nasce com uma cara que parece o cu de um cão vadio.
– Não. Se fosse verdade, vocês teriam se curado.
O próximo golpe de Cortessa foi um tapa com o dorso da mão, capaz de causar um hematoma. Jean piscou enquanto o quarto oscilava ao redor.
– Bom, eu adoraria ficar aqui sentado e pintar o chão com o seu sangue. Leone provavelmente adoraria mais ainda. Mas acho que posso poupar um bocado de tempo para
todos nós. – Cortessa fez um sinal e um dos homens parados junto à cama de Locke levantou um porrete. – O que o seu amigo vai perder primeiro? Um joelho? Os dedos
dos pés? Eu posso ser criativo.
– Não. Por favor. – Jean teria baixado a cabeça até os pés de Cortessa se não o estivessem segurando. – Sou eu que você quer. Não vou desperdiçar mais do seu tempo.
Por favor.
– De repente é você que eu quero? Por que eu iria querer você?
– Algo a ver com um galeno, acho.
– Cá estamos. Não foi tão difícil, afinal de contas. – Cortessa estalou os nós dos dedos. – O que você achou que poderia acontecer quando alguém como Zodesti chegasse
em casa vindo da merda que você aprontou ontem?
– Sem dúvida seria bom se ele não tivesse dito nada.
– Não seja simplório. Bom, eu sei que você tem traquejo social. Ouvi coisas. Quando você chegou a Lashane, sabia como agir. Manteve a paz, deu os presentes, comportou-se.
Você entende claramente como as coisas funcionam no nosso mundo. Então você acha que Zodesti saiu correndo pela rua, gritando que foi roubado feito uma criança?
Ou acha que ele mandou algumas mensagens particulares para pessoas influentes?
– Merda – praguejou Jean.
– É. Então eu peguei o serviço e fiquei pensando comigo mesmo... não havia um sujeito grandão procurando alquimistas e sanguessugas de cachorro na semana passada?
O que eles poderiam dizer sobre ele? Ah, um envenenamento ruim? Um homem sangrando até a morte numa cama na Villa Suvela? – Cortessa abriu os braços e deu um sorriso
beatífico. – Alguns problemas simplesmente se resolvem sozinhos.
– Como eu posso consertar isso?
– Não pode. – Cortessa se levantou gargalhando.
– Por favor, não faça nada com o meu amigo. Ele não teve nada a ver com o galeno. Faça o que quiser comigo. Eu coopero. Só...
– Ora, você passou de duro a mole, grandão. Vai cooperar? Claro que vai cooperar, porra, há quatro homens sentados em cima de você.
– Tenho dinheiro. Dinheiro, ou eu poderia trabalhar para você...
– Você não tem nada que eu queira. E esse é o seu problema. Mas eu tenho um problema sério.
– É?
– Normalmente, esta seria a parte em que nós faríamos sopa com seus bagos e observaríamos você tomá-la. Normalmente. Mas temos o que você poderia chamar de conflito
de interesses. Por um lado você é um estrangeiro e tocou num lashani que tem todos os amigos certos. Isso significa que você deveria morrer, porra.
Ele fez uma pausa e continuou:
– Por outro lado, está claro que você é ou foi algum tipo de homem com ligações em Camorr. O grande Barsavi pode não estar mais conosco, que os deuses façam descansar
sua alma torta, mas ninguém com a mente no lugar quer sacanear os Capas. Você poderia ser primo de alguém. Quem sabe? Daqui a um ou dois anos talvez alguém venha
procurar você. Fazer perguntas pela cidade. Epa! Alguém diz para eles olharem no fundo do lago. E quem é mandado de volta a Camorr numa caixa, para pagar a dívida?
Este seu criado. Isso significa que você não deveria morrer, porra.
– Como eu disse, eu tenho algum dinheiro – insistiu Jean. – Se isso ajudar.
– O dinheiro não é mais seu. Mas o que ajuda é que o seu amigo aqui já está morrendo... e pelo jeito ele vai ficar bem feliz em partir.
– Olhe, se você só deixar que ele fique, ele precisa descansar...
– Eu sei. É por isso que estou chutando o rabo de vocês para fora de Lashane. – Cortessa gesticulou para seu pessoal. – Limpem o lugar. Toda a comida, todo o vinho.
Cobertores, bandagens, dinheiro. Tirem a lenha da lareira. Joguem fora a água da jarra. Avisem ao estalajadeiro que esses dois escrotos estão sob interdição.
– Por favor. Por favor...
– Cale a boca. Vocês podem ficar com as roupas e as armas. Não vou mandá-los embora nus. Mas quero que vão embora. Ao nascer do sol, estejam fora da cidade ou Zodesti
vai cortar pessoalmente suas orelhas. Seu amigo pode achar outro local para morrer. – Cortessa deu um tapinha na perna de Locke. – Pense com carinho em mim quando
chegar ao inferno, pobre coitado.
– Talvez você não demore muito para chegar lá – replicou Locke. – Vou dar um grande abraço em você.
Os homens de Cortessa saquearam a suíte. Empilharam cuidadosamente as armas de Jean no chão; todo o resto foi levado ou arrebentado. Deixaram Locke na cama vazia
com as calças e a túnica sujas de sangue. A bolsa particular de Jean e a que continha as economias deles foram esvaziadas e, depois, o conteúdo foi enfiado nos bolsos
por um dos homens.
– Ah, mais uma coisa – disse Cortessa a Jean enquanto o tumulto diminuía. – Leone vai ter um minuto a sós com você no canto. Em troca do nariz dele.
– Oz deuses o abenzoem, jefe – murmurou Leone, cutucando cautelosamente os hematomas inchados que haviam se espalhado até os lábios.
– E você vai ter que aceitar, estrangeiro. Levante só um dedo e vou mandar seu amigo ser estripado. – Cortessa deu um tapinha no rosto de Jean e se virou para ir
embora. – Ao nascer do sol. Saiam da porra de Lashane. Ou nossa próxima conversa vai acontecer no porão de Zodesti.
10
– Jean – sussurrou Locke assim que o último capanga de Cortessa havia saído. – Jean! Você está bem?
– Estou. – Jean estava encolhido onde ficava a mesa do quarto antes que os homens de Cortessa a removessem. Leone fora pouco imaginativo mas entusiasmado, e Jean
sentia-se como se tivesse sido jogado por uma encosta rochosa. – Só estou... curtindo o chão. Que teve a gentileza de amparar minha queda.
– Jean, escute. Eu peguei um pouco de dinheiro quando chegamos aqui de barco... e escondi. Afrouxei uma tábua do piso embaixo da cama.
– Eu sei. Desafrouxei a tábua. Peguei de volta.
– Seu imbecil! Eu queria que você tivesse alguma coisa para levar quando...
– Eu sabia que você iria tentar isso, Locke. Não havia muitos esconderijos disponíveis perto da cama.
– Argh!
– Argh você! – Jean deitou-se de costas, arfando, e olhou para o teto, com a respiração curta. Nada parecia quebrado, mas suas costelas e tudo o que se ligava a
elas estavam fazendo fila para reclamar. – Me dê uns minutos. Vou arranjar uns cobertores para você. Posso conseguir uma carroça. Talvez um barco. Vou tirar você
daqui de algum modo, antes do amanhecer. Temos um bocado de escuridão a nosso favor.
– Jean, você vai ser vigiado até ir embora. Eles não vão deixar você... – Locke tossiu várias vezes – ... roubar nenhuma coisa grande. E não vou deixar que você
me carregue.
– Não vai deixar que eu o carregue? Com que você vai se defender, com sarcasmo?
– Você deveria ter alguns milhares de solaris para se virar, Jean. Poderia ter ido para qualquer lugar... poderia fazer qualquer coisa com eles.
– Eu fiz exatamente o que queria com eles. Agora você vai comigo. Ou eu fico aqui para morrer com você.
– É impossível argumentar com você.
– E você é um modelo exemplar de comprometimento. Maldito egoísta com cérebro de porco.
– Essa disputa não é justa. Você tem mais energia para pensar em xingamentos. – Locke gargalhou. – Deuses, olhe para nós. Dá para acreditar que eles levaram até
a lenha?
– Hoje em dia muito pouca coisa me surpreende. – Jean se levantou devagar, contraindo-se de dor. – Então vamos ao inventário. Nenhum dinheiro. Roupas, só as do corpo.
A maior parte no meu corpo. Algumas armas. Nenhuma lenha. Como duvido que teremos permissão de roubar qualquer coisa na cidade, parece que terei de fazer algum serviço
de salteador de estrada.
– Como você planeja parar as carruagens?
– Vou jogar você na estrada e esperar que eles parem.
– Gênio do crime. Eles vão parar por simpatia sincera?
– Por repulsa, mais provavelmente.
Houve uma batida à porta.
Locke e Jean se entreolharam inquietos e Jean pegou uma adaga na pequena pilha de armas que fora deixada para ele.
– Talvez eles tenham voltado para pegar a cama – disse Locke.
– Por que eles se incomodariam em bater?
Jean manteve a maior parte do corpo atrás da porta enquanto a abria, escondendo a adaga às costas.
Não era Cortessa, nem um sanguessuga de cachorro, nem mesmo o dono da Villa Suvela, como Jean havia esperado. Era uma mulher vestida com uma capa impermeável ricamente
bordada escorrendo água. Segurava nas mãos um globo alquímico e, à luz pálida, Jean pôde ver que ela não era jovem.
Jean examinou o meio-fio atrás dela. Nenhuma carruagem ou liteira, nenhum tipo de escolta – só a escuridão nevoenta e o barulho da chuva. Uma moradora local? Outra
hóspede da Villa Suvela?
– Eu, ahn... em que posso ajudar, senhora?
– Acredito que podemos nos ajudar mutuamente. Posso entrar? – Ela tinha uma voz suave e adorável, com um sotaque muito próximo do lashani. Próximo, mas não exato.
– Nós estamos... lamento, mas no momento estamos com alguma dificuldade. Meu amigo está doente.
– Sei que eles levaram seus móveis.
– Sabe?
– E sei que você e seu amigo não tinham muita coisa a mais, para início de conversa.
– Parece que eu estou em desvantagem com relação à senhora.
– E parece que eu estou na chuva.
– Ah. – Jean fez a adaga desaparecer na manga da túnica. – Bom, como eu disse, meu amigo está muito doente. A senhora deveria saber...
– Não me importo. – Ela entrou aproveitando um momento de hesitação de Jean e saiu do caminho graciosamente enquanto ele fechava a porta. – Afinal de contas, o veneno
só é contagioso nos jantares.
– Como diabos... A senhora é galena?
– Nem de longe.
– A senhora está com o Cortessa?
A mulher apenas riu e jogou para trás o capuz. Teria uns 50 anos, o tipo de 50 anos bem cuidados que só a riqueza tornava possível, e o cabelo era cor de trigo seco
de outono, com fios grisalhos nas têmporas. Tinha um rosto meio quadrado, com olhos espantosamente grandes e escuros.
– Aqui, pegue isso. – Ela jogou o globo alquímico para Jean, que o pegou num reflexo. – Sei que eles levaram suas luzes também.
– Ah, obrigado, mas...
– Ora, ora.
A mulher soltou a capa e tirou-a dos ombros num movimento circular enquanto entrava no apartamento. Seu casaco e a saia eram de um rico brocado com fios de prata,
e tufos de renda prateada saíam de debaixo das mangas, cobrindo parte das mãos. Ela olhou para Locke.
– “Doente” é um eufemismo.
– Desculpe por não me levantar – disse Locke. – E por não lhe oferecer uma cadeira. E por não estar adequadamente vestido. E por não... ligar a mínima.
– Está reduzido aos últimos fiapos do seu charme, pelo que vejo.
– Reduzido aos últimos fiapos de meu tudo. Quem é a senhora, afinal?
A mulher sacudiu a capa e jogou-a em cima de Locke, como se fosse um cobertor.
– O-obrigado.
– É difícil ter uma conversa séria com alguém cuja dignidade está comprometida, Locke.
O som seguinte na sala foi de Jean batendo com força o trinco da porta da frente. Num instante, ele retornou ao apartamento com a adaga na mão. Jogou o globo de
luz na cama e Locke evitou que quicasse para o chão.
– Para ser sincero – falou Jean –, minha paciência com as merdas misteriosas saíram por aquela porta com o dinheiro e a mobília. Então explique como sabe esse nome
e eu não terei que sentir culpa por...
– Duvido que você sobrevivesse caso seguisse esse impulso, Jean Tannen. Sei que seu orgulho não sobreviveria. Guarde essa adaga.
– De jeito nenhum!
– Pobres Nobres Vigaristas – disse a mulher baixinho – tão longe de casa... Mas sempre às nossas vistas.
– Não – falou Jean num sussurro incrédulo.
– Ah, pelo amor dos deuses! – exclamou Locke. Em seguida, tossiu e fechou os olhos. – São vocês. Eu suspeitava que bateriam à nossa porta cedo ou tarde.
– Você parece desapontado. – A mulher franziu a testa. – Como se tivesse acabado de faltar a um compromisso incômodo. Realmente preferiria a morte a uma conversinha,
Locke?
– As conversinhas com os Magos-Servidores nunca terminam bem.
– Vocês são o motivo para estarmos aqui – resmungou Jean. – Vocês e seus jogos em Tal Verrar. Suas cartas malditas!
– Não totalmente.
– Vocês não nos amedrontaram no Mercado Noturno. – Jean apertou com mais força o punho da adaga e a dor da surra recente foi esquecida por completo. – Vocês não
nos amedrontam agora, porra!
– Então vocês não nos conhecem nem um pouco.
– Acho que conheço. E não ligo a mínima para a porcaria das suas malditas regras!
Jean já estava em movimento, partindo para cima da mulher de costas para ele. A maga não teve chance de falar nem de fazer um gesto com as mãos; Jean enlaçou o pescoço
dela e cravou a adaga com o máximo de força possível, direto entre as omoplatas.
11
Num momento, a carne da mulher era quente e sólida sob o braço de Jean; no outro, sua lâmina furou o ar.
Jean havia enfrentado muitos oponentes rápidos na vida, mas jamais um que se dissolvesse instantaneamente sob seu toque. Aquilo não era velocidade humana e, sim,
feitiçaria.
Ele perdera a oportunidade.
Jean inspirou fundo e um tremor frio percorreu suas costas, a sensação familiar de um passo errado e de um golpe a ponto de ser recebido. Sua pulsação batia feito
um tambor dentro do crânio e ele esperou a dor da represália que viria...
– Ah, sim, seria muito inteligente da minha parte, Jean Tannen – comentou a visitante em tom afável em algum lugar atrás dele. – Deixar-me à mercê de um homem forte
e seus ressentimentos.
Jean se virou devagar e viu que a mulher se encontrava 2 metros à esquerda dele, junto à janela onde antes a mesa estivera.
– Controlo o seu nome verdadeiro como um pássaro engaiolado. Suas mãos e seus olhos vão enganá-lo caso você tente me fazer mal.
– Pelos deuses. – Jean sentiu-se subitamente dominado por uma frustração enorme. – Você precisa brincar com sua comida? – Ele sentou-se na beira da cama de Locke
e jogou a adaga no chão, onde ela se cravou na madeira, tremendo. – Só me mate como a porra de uma pessoa normal. Não serei seu brinquedo.
– O que você vai ser?
– Vou ficar parado e ser entediante. Acabe logo com isso.
– Por que você presume que estou aqui para matá-lo?
– Se não é para matar, é para algo pior.
– Não tenho intenção de assassinar nenhum de vocês. Nunca. – A mulher cruzou as mãos diante do peito. – Que prova a mais você precisa, além do fato de que ainda
está vivo? Você poderia ter me impedido?
– Vocês não são deuses – falou Locke debilmente. – Poderiam nos ter à sua mercê, mas já acabamos com um de vocês antes.
– Isso era para ser a paródia pobre de uma ameaça? Uma lembrança de que por acaso vocês estavam presentes quando o terrível julgamento do Falcoeiro enfim o alcançou?
– Como está o querido Falcoeiro hoje em dia? – perguntou Locke.
– Bem cuidado. Em Kartane. – A mulher suspirou. – Do mesmo modo como estava quando agentes de Camorr o levaram para casa. Estúpido e letárgico.
– Ele parecia não reagir bem à dor – disse Jean.
– E você acha que foi a tortura de vocês que o enlouqueceu?
– Não pode ter sido nossa conversa – respondeu Locke.
– O problema verdadeiro foi infligido por ele próprio. Veja bem, nós podemos entorpecer a mente para abrandar qualquer sofrimento da carne. Mas essa arte exige cautela.
É bastante perigosa se usada às pressas.
– Estou adorando ouvir isso – comentou Locke. – Você está dizendo que, quando ele tentou escapar da dor...
– Sua mente se aprisionou numa névoa que ele próprio criou – completou a mulher. – Por isso não pudemos corrigir sua condição.
– Maravilhoso. Não me importo de fato como ou por que isso aconteceu; mesmo assim, fico feliz. Na verdade, encorajo o resto de vocês a usar esse poder sem o menor
cuidado.
– Você é injusto com muitos de nós.
– Sua puta, se eu tivesse condições, arrancaria seu coração do peito e usaria como bola – vociferou Locke, tossindo. – Faria isso com todos vocês. Vocês matam quem
vocês querem e fodem a vida dos que os ameaçam de modo justo por causa disso.
– Desprezar-nos pode se assemelhar a olhar num espelho, então.
– Eu desprezo vocês – reagiu Locke, esforçando-se para se levantar. – Por Calo e Galdo, por Pulga, por Nazca e Ezri, por todo o tempo que nós... perdemos em... Tal
Verrar.
Com o rosto vermelho e trêmulo, ele caiu de volta na cama vazia.
– Vocês são assassinos e ladrões – continuou a mulher. – Deixam uma trilha de confusão e ultraje onde quer que estejam. Derrubaram pelo menos um governo e impediram
a destruição de outro por motivos sentimentais. Estão mesmo falando sério quando nos amaldiçoam por fazermos o que queremos?
– Estamos – respondeu Jean. – E eu pretendo levar a questão da Ezri de modo muito pessoal.
– Você ao menos conheceria a mulher se nós não tivéssemos intervindo nos seus negócios? Vocês teriam ido para o mar?
– Nenhum de nós pode dizer...
– Então nós levamos totalmente a culpa por seus infortúnios, mas não recebemos crédito pelos acidentes mais felizes.
– Eu...
– Nós interferimos aqui e ali, Jean, mas você se acha demais se imagina que criamos um plano tão intricado para vocês. A mulher morreu em batalha e não tivemos nada
a ver com isso. Lamento sua perda.
– Você é capaz de lamentar alguma coisa?
A mulher se aproximou de Jean, estendendo a mão esquerda, e ele precisou de todo o autocontrole para não saltar para longe. Ele se levantou e a encarou ferozmente
enquanto ela encostava os dedos quentes com suavidade em seu rosto.
– O tempo é precioso – continuou a maga. – Retiro minha interdição a você, Jean Tannen. Esta é minha carne verdadeira encostada na sua. Eu poderia impedi-lo se você
tentasse me fazer mal, mas agora isso é muito menos garantido. Então, o que vai fazer? Devemos lutar agora ou podemos conversar?
Jean estremeceu; a ânsia de esmagá-la estava se inflamando dentro dele. Teria de golpear mais rápido do que jamais fizera na vida, com o máximo de força que músculos
e tendões permitissem. Quebrar o crânio dela, esganá-la, pressioná-la contra o chão e rezar aos deuses para causar dano suficiente e adiar qualquer palavra ou qualquer
gesto dela.
Ficaram parados por um momento longo e tenso, perfeitamente imóveis, os olhos escuros dela encarando-o sem piscar. Então, a mão direita de Jean fechou-se em volta
do pulso esquerdo dela, com um aperto selvagem. Podia sentir ossos finos sob a pele fina e soube que uma boa torção com força...
A mulher se encolheu. Um medo verdadeiro brilhou nas profundezas daqueles olhos, um clarão brevíssimo antes que seu vasto autodomínio retornasse como águas ressurgentes
afogando suas fraquezas humanas. Mas a coisa estivera ali, genuína como a carne sob os dedos dele. Jean afrouxou o aperto, fechou os olhos e expirou devagar.
– Maldição. Acho que você não está mentindo.
– Isso é muito importante – sussurrou ela.
Jean manteve a mão direita onde estava e estendeu a esquerda, para empurrar a renda prateada que se projetava da manga do casaco dela. Havia anéis pretos tatuados
ao redor do pulso, linhas precisas sobre a pele clara.
– Cinco anéis – disse Locke. – Sempre ouvi dizer que, quanto mais, melhor. Quantos alguém de vocês pode ter, afinal?
– Esse número – respondeu a mulher com um sorrisinho.
Jean soltou o braço dela e deu um passo atrás. Ela levantou a mão esquerda ao lado da cabeça e acariciou as tatuagens suavemente com os dedos da outra mão. O negrume
virou prata, prata ondulante, como se ela usasse pulseiras de luar líquido.
Enquanto olhava o brilho fantasmagórico, Jean sentiu uma coceira fria atrás dos olhos e uma pressão forte contra as pontas dos dedos da mão direita. Numa vertigem,
imagens relampejaram em sua mente: dobras e mais dobras de seda clara, agulhas entrando e saindo de renda delicada, a borda áspera de um tecido se desfazendo em
fios. A pressão em seus dedos era de uma agulha de verdade, subindo e descendo, numa dança interminável pelo tecido...
– Ah – murmurou ele, levando uma das mãos à testa conforme as sensações iam perdendo intensidade. – Que diabo foi isso?
– Eu – explicou a Maga-Servidora. – Por assim dizer. Você já se lembrou de alguém por causa do cheiro de tabaco, de um perfume ou da sensação da pele? Memórias profundas
sem palavras?
– Já – respondeu Locke, massageando as têmporas. Jean supôs que, de algum modo, havia compartilhado com ela a breve visão.
– Na minha sociedade, nós falamos entre mentes. Nós... nos anunciamos usando esse tipo de impressão. Construímos imagens de certas lembranças ou paixões. Chamamos
essas imagens de chancelas. – Ela puxou a manga rendada de novo para cima do pulso, onde os anéis pretos haviam perdido totalmente o brilho fantasmagórico, e sorriu.
– Agora que compartilhei a minha com vocês, é menos provável que pulem de susto se eu precisar me comunicar com suas mentes sem usar a voz.
– Que diabo é você? – perguntou Jean.
– Nós somos quatro – respondeu a mulher. – Num mundo ideal, os mais sábios e poderosos dos cinco-anéis. No mínimo temos o direito de morar nas casas maiores.
– Vocês governam os Magos-Servidores – compreendeu Locke, incrédulo.
– Governamos é uma palavra forte demais. Ocasionalmente conseguimos evitar o caos total.
– Você tem um nome?
– Paciência.
– O quê, você tem alguma regra contrária a dizer seu nome agora?
– Não, é como eu sou chamada. Paciência.
– Está de sacanagem? Seus colegas devem ter uma tremenda consideração por você.
– O nome não significa nada, assim como uma garota chamada Violeta não precisa ser roxa. É um título. Arquidama Paciência. Então, decidimos que ninguém vai assassinar
ninguém aqui?
– Acho que depende do que você queira conversar – respondeu Jean.
– Vocês dois – disse Paciência. – Estou prestando atenção em vocês já há algum tempo. A partir dos fragmentos que pude tirar das memórias do Falcoeiro. Nossos agentes
recuperaram as posses dele em Camorr depois que ele foi... aleijado. Dentre elas havia uma faca que já pertencera a uma das irmãs Anatolius.
– Uma faca que tinha o meu sangue – acrescentou Jean.
– Assim, foi fácil ter uma pista sua.
– E, assim, foderam com a nossa vida.
– Preciso que vocês entendam como sabem pouco. Eu salvei a vida de vocês em Tal Verrar.
– Engraçado, não me lembro de ter visto você por lá – disse Jean.
– O Falcoeiro tem amigos – explicou Paciência. – Colegas, seguidores, instrumentos. Apesar de todos os defeitos, ele era popular. Vocês viram os truques de salão
dele no Mercado Noturno, mas foi só isso que eu permiti. Sem a minha intervenção, eles teriam matado vocês.
– Você pode chamar aquela coisa de “truques de salão”. Mesmo assim, a interferência em Tal Verrar causou um problemão para a gente.
– Melhor do que a morte, com certeza – reagiu Paciência. – E muito mais gentil do que eu seria, dadas as circunstâncias.
– Circunstâncias?
– O Falcoeiro era arrogante, maligno, equivocado. Estava agindo em obediência a um contrato, o que consideramos uma obrigação sagrada, mas não vou negar que ele
intensificou a brutalidade daquilo para além do que era necessário.
– Ele ia ajudar a transformar centenas de pessoas em cascas vazias. Em malditos vegetais. Isso não era suficientemente brutal? – perguntou Jean.
– Elas faziam parte do contrato. Você e seu amigo, não.
– Bom, se isso é uma espécie de pedido de desculpas, vá para o inferno – vociferou Locke, tossindo. – Não me importa que você se considere uma bruxa velha humana,
e não me importo como ou por que o Falcoeiro perdeu a cabeça. Se eu tivesse mais tempo, usaria cada segundo para sangrá-lo. Tudo o que ele ganhou foi uma partícula
minúscula do que merecia de fato.
– Isso é mais verdadeiro do que você imagina, Locke. Ah, é muito mais verdadeiro do que você imagina. – Paciência cruzou as mãos e suspirou. – E ninguém entende
isso tão bem quanto eu. Afinal de contas, o Falcoeiro é meu filho.
i n t e r l ú d i o
A garota desafogada
1
O mundo se alargou para Locke Lamora no verão do Septuagésimo Sétimo Ano de Sendovani, o verão depois do desaparecimento de Beta, o verão em que ele foi vendido
pelo Aliciador ao Padre Correntes, o famoso Sacerdote Cego do Templo de Perelandro. De repente, suas antigas preocupações e dores sumiram, sendo substituídas por
um novo conjunto de perplexidades diárias.
– E se um sacerdote ou uma sacerdotisa de outra ordem passar? – perguntou Correntes, ajustando o manto branco com capuz que os Sanzas haviam acabado de jogar sobre
a cabeça de Locke.
– Eu faço o sinal do nosso... é... serviço conjunto. – Locke envolveu a mão esquerda com a direita e baixou a cabeça até quase encostá-la nos polegares. – E não
falo a não ser que falem comigo antes.
– Ótimo. E se você cruzar o caminho com um iniciado de outra ordem?
– Dou a bênção para que os problemas fiquem longe dele. – Locke estendeu a mão direita com a palma para cima e depois fez um movimento para o alto como se empurrasse
algo sobre o ombro esquerdo.
– E...?
– Ah, eu cumprimento se me cumprimentarem... e não digo mais nada?
– E se você encontrar um iniciado de Perelandro?
– Sempre cumprimento?
– Falta uma coisa.
– Ahn... Ah, é. O sinal do serviço conjunto. Sempre cumprimentar. Falar... ah, cordialmente com iniciados e calar a boca para qualquer um... é... mais elevado.
– E os sinais alternativos para quando estiver chovendo num Dia de Penitência? – perguntou um dos Sanzas.
– Ahn... – Locke tossiu, nervoso. – Eu não... não sei bem...
– Não existe sinal alternativo para quando estiver chovendo no Dia da Penitência. Nem em qualquer outro dia – murmurou Correntes. – Bom, agora você está com a aparência
para o papel. E acho que é confiável com relação ao ritual exterior. Nada mau para quatro dias de aprendizado. A maioria dos iniciados demora alguns meses até que
possamos confiar que contem acima de dez sem precisar tirar os sapatos.
Correntes se levantou e ajeitou o próprio manto branco. Ele e os garotos estavam no santuário do Templo de Perelandro, uma sala parecida com uma caverna úmida, que
proclamava não somente a humildade dos seguidores do deus mas também sua aparente indiferença ao cheiro de mofo.
– Então agora, imbecil destro e imbecil canhoto: peguem minhas xarás.
Calo e Galdo foram às pressas até a parede onde estavam os grilhões puramente cerimoniais de seu senhor, presos em uma enorme argola de ferro engastada na pedra.
Os dois disputaram corrida para arrastar as correntes e prender as algemas no grandalhão.
– Arrá – disse o primeiro ao terminar –, você é mais lento do que um peido embaixo d’água!
– Que engraçado – retrucou o segundo. – Ei, o que é isso no seu queixo?
– Hein?
– Parece um punho!
Num instante, Locke se viu diante de um redemoinho de membros de Sanzas e, pela centésima vez em seus poucos dias como guardião de Correntes, Locke perdeu a noção
de qual irmão era qual. Os gêmeos riam loucamente enquanto lutavam, então uivaram quando Correntes estendeu as mãos com uma precisão calma e agarrou cada um por
uma orelha.
– Seus idiotas, podem colocar seus mantos e carregar a cuia de esmolas para fora depois que Locke e eu ocuparmos nossos lugares.
– Você disse que nós não íamos nos sentar nos degraus hoje! – reagiu um dos irmãos.
– Não vão mesmo. Só não estou com vontade de carregar a cuia. Depois de carregarem, podem descer e cuidar das suas tarefas.
– Tarefas?
– Lembram-se daqueles documentos da alfândega que eu disse que estava falsificando ontem à noite? Não eram nada disso, mas problemas de aritmética. Duas páginas
para cada um de vocês. Tem carvão, tinta e pergaminho na cozinha. Vão trabalhar.
– Aaaaaaaaah.
O som simultâneo dos Sanzas desapontados foi curiosamente afinado. Locke já ouvira os gêmeos ensaiando canto, e eram bastante bons. Eles costumavam harmonizar as
vozes, não sabia se sem querer ou de propósito.
– Agora abra a porta, Locke.
Correntes amarrou a última e mais importante peça de sua fantasia: a venda ajustada de modo exato para sugerir sua completa impotência ao mesmo tempo que lhe permitia
não tropeçar na bainha do manto.
– O sol nasceu e todo aquele dinheiro lá fora não vai se roubar sozinho.
Locke ativou o mecanismo escondido atrás de uma das tapeçarias mofadas e houve um leve ribombar dentro das paredes do templo. Uma linha vertical cor de ouro queimado
surgiu na parede do leste enquanto as folhas da porta se separavam e rapidamente o santuário foi inundado pela luz quente da manhã. Correntes estendeu uma das mãos
e Locke correu para segurá-la.
– Preparado?
– Se o senhor diz que estou... – murmurou Locke.
De mãos dadas, o fictício Sacerdote Cego e seu mais novo iniciado fictício saíram de sua fictícia prisão de pedra. O calor que emanava das pedras da cidade era tão
feroz que Locke sentia seu gosto e seu cheiro.
Pela primeira de mil vezes, eles saíram juntos para roubar os passantes, com tanta segurança quanto se fossem assaltantes, armados com nada mais do que algumas palavras
e uma cuia de cobre vazia.
2
Em seus primeiros meses com o Padre Correntes, Locke começou a desaprender a cidade de Camorr que ele conhecera e a descobrir algo totalmente distinto. Como um menino
do Morro das Sombras, ele vira a luz do dia em lampejos, explorando o mundo de cima e depois correndo de volta para a escuridão familiar do cemitério como um mergulhador
voltando à superfície antes que o fôlego acabasse. O Morro era cheio de perigos, mas eram perigos conhecidos, ao passo que a cidade acima era cheia de mistérios
infinitos.
Agora o sol, que um dia lhe parecera um grande olho queimando em julgamento, não fazia nada além de esquentar sua cabeça enquanto ele se sentava nos degraus do templo
com o pequeno manto branco. Um menino mais feliz poderia se entediar com as longas horas como pedinte, mas Locke aprendera a ser paciente do modo mais garantido
possível: escondendo-se para sobreviver. Passar metade de uma noite agarrado à mesma sombra não era nada extraordinário para ele, que adorava a ideia de ficar à
toa enquanto as pessoas lhe traziam dinheiro.
Observava os ritmos da vida cotidiana no Bairro dos Templos. Quando ninguém estava perto o suficiente para escutar, Correntes respondia baixinho às suas perguntas
e, lentamente, a grande massa de camorris se revelava a ele. O que já fora um mar de detalhes confusos foi se definindo pouco a pouco até que Locke podia identificar
os sacerdotes das doze ordens, separar os muito ricos dos meramente abastados e fazer uma dúzia de outras distinções úteis.
Seu coração ainda pulava ao ver uma patrulha de casacas-amarelas passando pelos degraus do templo, mas a indiferença educada deles era puro deleite. Alguns até o
saudavam. Locke ficava pasmo ao ver que o fino manto de algodão que ele usava poderia lhe proporcionar aquela armadura contra um poder que antes parecia tão arbitrário
e absoluto.
Guardas o saudando! Deuses do céu.
Dentro do templo, no refúgio secreto sob a fachada de pobreza, outras transformações eram operadas. Locke se alimentava bem pela primeira vez na vida, provando todas
as culinárias de Camorr sob a orientação entusiasmada de Correntes. Apesar de ter começado como um estorvo inepto para os Sanzas, que eram mais experientes, aprendeu
depressa a separar os carunchos da farinha, a cortar carnes e a distinguir uma faca de filetar de um garfo para enguia.
– Abençoados somos todos nós – comentou Correntes uma noite, dando um tapinha na barriga de Locke. – Você não é mais o cadaverzinho maltrapilho que chegou tantas
semanas atrás. A comida e a luz do sol o ressuscitaram como por obra de bruxaria. Você ainda é pequeno, mas agora parece que consegue suportar uma brisa moderada.
– Excelente – falou um dos Sanzas. – Logo ele vai estar gordo e poderemos retalhá-lo como todos os outros, para fazer um assado do Dia da Penitência.
– O que meu irmão quer dizer – explicou o outro gêmeo – é que todos os outros morreram de causas puramente naturais e você não tem nada a temer de nossa parte. Agora
coma mais pão.
A vida aos cuidados do Padre Correntes oferecia mais conforto a Locke do que ele jamais tivera no Morro das Sombras. Tinha o suficiente para comer, roupas novas
e uma cama própria de lona. Nada mais perigoso o ameaçava além das tentativas dos Sanzas de pregar peças toda noite. Mas, estranhamente, Locke nunca diria que a
vida nova era mais fácil do que a que ele deixara.
Dias depois da sua chegada, ele fora treinado como um “iniciado de Perelandro” e, a partir daí, as lições só se intensificaram. Correntes não se parecia nem um pouco
com o Aliciador – não permitia que Calo e Galdo aterrorizassem Locke e não punia o fracasso brandindo um cutelo de açougueiro. Mas Correntes podia ficar desapontado.
Ah, se podia. Nos degraus do templo, ele era capaz de usar seus poderes misteriosos para afastar os passantes, implorar com lógica ou fazer sermões furiosos até
que eles abrissem mão das moedas ganhas duramente; nos ensinamentos, ele concentrava esses mesmos poderes em Locke até fazer parecer que o seu desapontamento era
uma censura pior do que uma surra.
Eram coisas novas e estranhas, sem dúvida. Locke temia o que Correntes seria capaz de fazer caso fosse provocado (a bolsa de couro que Locke era obrigado a usar
pendurada no pescoço, com o dente de tubarão dentro, era uma lembrança inescapável), mas ele não temia o próprio Correntes. O sujeito grande e barbudo parecia genuinamente
satisfeito quando Locke acertava as lições, parecia emanar ondas de aprovação que aqueciam feito a luz do sol. Com seus dois extremos de humor, o desapontamento
agudo e a satisfação luminosa, Correntes fazia todos os seus garotos passarem pelos testes constantes.
Havia as questões óbvias do treinamento de Locke: ele aprendia a cozinhar, a se vestir, a se manter razoavelmente limpo. Aprendia mais sobre a Ordem de Perelandro
e sua sede fictícia dentro dela. Aprendia os significados das flâmulas nas carruagens e dos brasões nas túnicas dos guardas, assim como a história do Bairro dos
Templos e seus marcos.
Mais difícil do que tudo, a princípio, era ler e escrever. Duas horas por dia eram passadas nessa instrução, antes e depois de sentar-se nos degraus. No início,
tinha apenas um conhecimento fragmentado das trinta letras do alfabeto terim e podia fazer somas simples quando tinha algo para contar à frente, como moedas. Mas
Correntes o fazia recitar e escrever as letras até que elas dançassem em seus sonhos, então passou a decifrar pequenas palavras, depois as grandes e, em seguida,
frases inteiras.
Correntes começou a deixar instruções escritas para ele a cada manhã e Locke não tinha permissão de comer o desjejum até tê-las decifrado. Mais ou menos quando os
parágrafos curtos deixaram de ser páreo para ele na batalha de perspicácia, Locke se pegou enfrentando a aritmética com lousas e giz. Chegar às respostas de cabeça
não era mais suficiente.
– Vinte e seis menos doze – disse Correntes numa noite no início do outono.
Era um tempo incomumente agradável em Camorr, com dias quentes e noites cálidas que não encharcavam nem escaldavam a cidade. Correntes estava absorto num jogo de
Pegue o Duque contra Galdo, movendo alternadamente as peças e recitando problemas de matemática para Locke. Os três estavam à mesa da cozinha, sob a luz dourada
do fabuloso lustre alquímico de Correntes, e Calo permanecia sentado junto a uma bancada ali perto, tocando um pequeno instrumento triste chamado harpa de estradeiro.
– Ahn... – Locke rabiscou em sua lousa, tendo o cuidado de mostrar o trabalho. – Catorze.
– Muito bem – elogiou Correntes. – Some 21 e 13.
– Agora vá em frente! – exclamou Galdo, empurrando uma das suas peças ao longo dos quadrados do tabuleiro. – Avance e morra pelo rei Galdo.
– Agora mesmo – disse Correntes, reagindo imediatamente ao movimento.
– Como vocês dois estão em guerra – interveio Calo –, o que acham disto?
Pôs-se a tocar uma música na harpa simplificada e cantou em voz aguda e suave:
“Da bela e antiga Camorr até o Morro do Portão Divino
Três mil corajosos guerrearam num clamor.
Cem vintenas ainda estão caídas,
No solo vermelho que reivindicaram para Camorr.”
Galdo pigarreou enquanto mexia em suas peças e, quando o gêmeo continuou, ele cantou junto. Mal se passou um instante até os Sanzas encontrarem sua fantasmagórica
e perfeita harmonia:
“Da bela e antiga Camorr até o Morro do Portão Divino
Foi um duque que não admitia ser escravo.
Sua Graça em seu túmulo ainda está caído,
No solo vermelho reivindicado pelos bravos.
“Da bela e antiga Camorr até o Morro do Portão Divino
Por 100 duras léguas a terra se espalha.
Mas nossa hoste morta ainda está caída,
No solo avermelhado por sua batalha!”
– Uma execução adequada desperdiçada numa porcaria de canção cagada por idiotas frouxos para justificar a tolice de um velho – murmurou Correntes.
– Todo mundo a canta nas tavernas – alegou Calo.
– E deveriam cantar mesmo. Mas, por um breve tempo, eu fiz parte daqueles três mil homens e quase todo mundo que eu conheci naqueles dias ainda está caída por lá.
Por favor, faça a gentileza de cantar algo mais alegre.
Calo mordeu o interior da bochecha, afinou de novo a harpa e recomeçou:
“Disse o patrão à donzela nova na herdade:
Deixe-me mostrar os animais da propriedade!
Aqui está a vaca que dá leite e o porco no chiqueiro
Aqui está o cachorro, uma cabra e um cordeiro;
Aqui está um cavalo orgulhoso e um falcão treinado e valente,
Mas o que você deve ver mesmo é este pinto excelente!”
– Onde você aprendeu isso?! – gritou Correntes.
Calo explodiu num ataque de riso, mas Galdo continuou a canção com uma expressão impassível:
“Alguns pintos acordam cedo e alguns crescem bastante,
Mas o pinto em questão trabalha mais que o restante!
Trabalhar é uma virtude, eu concordo e não minto.
E então, queridinha, venha segurar o meu...”
A batida inconfundível da entrada secreta do refúgio ecoou no túnel de Vidrantigo ao lado da cozinha, sendo fechada por alguém que não se importava em ser ouvido.
Correntes levantou-se num giro. Calo e Galdo correram atrás dele, postando-se junto às facas de cozinha. Locke ficou de pé em sua cadeira, com a lousa da aritmética
segura como um escudo.
No instante em que viu quem virava a esquina, a lousa escorregou de seus dedos e bateu com estardalhaço no chão.
– Querida, você voltou cedo! – exclamou Correntes.
Ela estava mais alta do que Locke recordava e seu cabelo estava bem tingido num tom uniforme de castanho-claro. Mas era ela. Era inegavelmente Beta.
3
– Você não pode estar aqui – disse Locke. – Você está morta!
– Claro que posso estar aqui. Eu moro aqui. – Beta largou a bolsa de couro marrom que estava carregando e soltou o cabelo, deixando-o cair sobre os ombros. – Quem
seria você?
– Eu... ahn... você não sabe?
– Eu deveria saber?
A perplexidade de Locke se mesclou com uma frustração amarga. Enquanto as engrenagens de sua mente giravam em fúria para conjurar uma resposta, ela o examinou. Seus
olhos se arregalaram.
– Ah, pelos deuses. É o garoto Lamora, não é?
– É – respondeu Correntes.
– Comprou ele também, foi?
– Já paguei mais caro por alguns dos meus almoços, mas, sim, eu o tirei de seu antigo senhor.
Correntes desgrenhou o cabelo de Beta com afeição paterna e ela beijou as costas de sua mão.
– Mas você estava morta – insistiu Locke. – Disseram que você tinha se afogado!
– É – respondeu ela suavemente.
– Mas por quê?
– Nossa Sabeta tem um passado complicado – explicou Correntes. – Quando eu a tirei do Morro das Sombras, montei um teatrinho para ocultar seu rastro.
Beta. Sabeta. Eles haviam mencionado Sabeta pelo menos uma dúzia de vezes desde que Locke fora morar ali. De repente, sentiu-se um idiota por não associar os dois
nomes antes... mas, afinal de contas, tinha pensado que ela estava morta, não era? Sob a perplexidade, o embaraço, a frustração, um calor subia na boca do seu estômago.
Beta estava viva... e morava ali!
– Bom, onde é... aonde você foi? – perguntou Locke.
– Treinar – respondeu Sabeta.
– E como foi? – indagou Correntes.
– Mestra Sibella disse que eu não fui tão vulgar e desajeitada como a maioria das camorris a quem ela ensina.
– Então você... é, ahn... – gaguejou Locke.
– É um tremendo elogio, vindo daquela pedante de marca maior – comentou Correntes, ignorando Locke. – Vejamos se ela acertou. Galdo, fique ao lado de Sabeta para
um quatro-passos. Complar entant.
– É necessário mesmo?
– Boa pergunta. É necessário eu continuar alimentando você?
Galdo saiu correndo de trás de Correntes e fez uma reverência diante de Sabeta, tão exagerada que seu nariz quase roçou o chão.
– Encantado, demoiselle. Posso requisitar o prazer de uma dança? Meu patrão não me alimentará mais se eu não fingir que estou gostando desta bosta.
– Que macaquinho ousado você é – comentou Sabeta. Os dois foram para a maior área liberada no cômodo, entre a mesa e as bancadas.
– Calo, por obséquio – pediu Correntes.
– Certo, certo, já sei.
Calo dedilhou a harpa por um instante, então começou uma música rápida, ritmada, mais complexa do que as cançonetas que ele havia tocado.
Galdo e Sabeta se moveram ao mesmo tempo, a princípio devagar, mas ganhando confiança e velocidade à medida que a música prosseguia. Locke olhava, pasmo porém fascinado,
enquanto eles dançavam de um modo mais controlado do que ele já vira numa taverna ou num beco. A chave parecia ser bater no chão com força usando os calcanhares,
quatro batidas entre cada movimento maior dos braços. Eles juntavam as mãos, giravam, separavam-se, trocavam de lugar, e o tempo todo mantinham um ritmo quase perfeito
com os pés.
– Essa dança é popular entre os ricaços – explicou Correntes, e Locke percebeu que estava se dirigindo a ele. – Todos os dançarinos formam um círculo e o mestre
de dança chama os parceiros. Os casais escolhidos dançam na área principal, no centro de tudo, e se fizerem besteira, bom... há penalidades. Provocações. Frustração
romântica, imagino.
Locke não prestava total atenção à explicação, pois seus olhos e pensamentos estavam perdidos na dança. Em Galdo, reconhecia a rapidez nervosa de um colega órfão,
a graça nascida da necessidade que separava os sobreviventes no Morro das Sombras de figuras como Banguela. Mas Sabeta tinha isso e algo mais; não apenas velocidade,
mas fluidez. Os joelhos e cotovelos dela pareciam se evaporar, tornando-se curvas, redemoinhos, círculos. Suas bochechas ficaram vermelhas com o esforço e a luz
dourada do lustre fazia o cabelo castanho reluzir até que Locke, hipnotizado, quase podia imaginá-lo ruivo também...
Correntes bateu palmas três vezes, encerrando a dança, ainda que não o feitiço de Locke. Se Sabeta sabia que estava sendo observada, foi educada demais ou desdenhosa
demais para encará-lo.
– Dá para ver que não caguei em vão essa fonte de ouro – disse Correntes. – Parabéns, garota. Nem mesmo ter Galdo como parceiro pareceu atrapalhar você.
– E isso alguma vez atrapalha? – Sabeta sorriu, ainda agindo como se Locke não estivesse no cômodo, e voltou para a mesa onde Galdo e Correntes estavam jogando antes.
Olhou o tabuleiro por alguns segundos e afirmou: – Você está condenado, Sanza.
– Nem pelo cacete de um burro!
– Na verdade, eu acabo com ele em três movimentos – garantiu Correntes, acomodando-se em sua cadeira com um sorriso. – Mas eu ia embromar um pouco mais.
Enquanto Galdo quebrava a cabeça analisando sua situação no tabuleiro, ele, Calo e Sabeta iniciaram uma conversa animada com Correntes sobre assuntos que Locke ignorava:
danças, costumes nobres, pessoas de quem ele jamais ouvira falar, cidades que para ele eram apenas nomes. Correntes foi ficando cada vez mais espalhafatoso até que,
após alguns minutos, fez um gesto para Calo.
– Arranje uma coisa doce. Vamos brindar a volta de Sabeta.
– Xerez Negro Lashani? Eu sempre quis experimentar. – Calo abriu um pequeno armário e tirou com cuidado uma garrafa de vidro esverdeada cheia de algo escuro feito
nanquim. – Deuses, que coisa nojenta!
– Falou igual à parteira que ajudou sua mãe a parir – disse Correntes. – Traga copos para todos nós, e vamos brindar.
As quatro crianças se reuniram em volta da mesa enquanto Correntes arrumava os copos e abria a garrafa. Estrategicamente, Locke deixou que os Sanzas ficassem entre
ele e Sabeta, arranjando um ângulo melhor para continuar encarando-a. Correntes encheu um copo até a borda com o xerez, que ondulava preto e dourado à luz do lustre.
– Este copo é para o patrono e protetor, o Guardião Torto, Pai dos Pretextos Necessários. – Correntes empurrou o copo de lado cuidadosamente, afastando-o dos outros.
– Esta noite ele trouxe de volta nossa amiga, sua servidora Sabeta. – Correntes levou a mão esquerda aos lábios e soprou na palma. – Minhas palavras. Minha respiração.
Essas coisas atam minha promessa. Cem peças de ouro, devidamente roubadas de homens e mulheres honestos, a serem lançadas no mar na fase escura da Lua do Órfão.
Nós agradecemos pela segurança de Sabeta.
A Lua do Órfão, Locke sabia, vinha uma vez por ano, no fim do inverno, quando as duas maiores luas do mundo estavam juntas na fase escura. No solstício de verão,
os plebeus que sabiam suas datas de nascimento ficavam legalmente um ano mais velhos. A Lua do Órfão significava a mesma coisa para aqueles, como ele, cuja idade
exata era um mistério.
Correntes encheu os copos e os distribuiu. Locke ficou surpreso ao ver que, enquanto as outras crianças recebiam um quarto de copo do xerez assustadoramente escuro,
o seu estava quase cheio. Correntes sorriu para ele e levantou seu copo.
– Obrigado pelos bolsos fundos mal vigiados.
– Obrigada pelos guardas que dormem no serviço – continuou Sabeta.
– Obrigado pela cidade que nos nutre e pela noite que nos oculta – acrescentou Calo.
– Obrigado pelos amigos que nos ajudam a gastar os roubos!
Assim que Galdo terminou o brinde que Locke já ouvira muitas vezes desde que viera para os Nobres Vigaristas, cinco copos se dirigiram a cinco pares de lábios. Locke
segurou o seu com as duas mãos, com medo de derramar.
O xerez negro bateu na garganta de Locke com uma explosão de sabores doces: creme, mel, framboesas e muitos outros cujo nome ele não tinha esperança de saber. Vapores
quentes e pinicantes pareciam deslizar para dentro do nariz e ondular atrás dos olhos, até que ele parecia sentir cócegas por dentro do crânio, feitas por dúzias
de penas ao mesmo tempo. Sabendo como seria mal-educado estragar um brinde solene, usou de toda a sua força de vontade para engolir todo o conteúdo.
– Uarr! – exclamou ao terminar. Era um cruzamento entre uma tosse educada e o último ofegar de um pássaro agonizante. Ele bateu no peito. – Uarr, uarr, uarrrrrr!
– Concordo – disse Galdo num sussurro áspero. – Adorei.
– Todas as virtudes exteriores da merda líquida – observou Correntes, meditando sobre seu copo vazio – e um gosto como puro júbilo mijado por anjos felizes. Veja
bem, isso não tem importância no mundo lá fora. Não bebam nenhuma outra coisa que se pareça com isto, a não ser que queiram uma libertação rápida das preocupações
mortais.
– Fico pensando... – falou Locke. – Não fazem vinho cor de vinho em outras cidades? – Em seguida fitou seu copo que, como os dedos que o seguravam, começava a ficar
com as bordas turvas.
– Algumas coisas ficam muito mais interessantes quando os alquimistas põem as mãos nelas – respondeu Correntes. – Sua cabeça, por exemplo. O xerez negro é conhecido
por chutar feito uma mula.
– Ééé, conhecido... – disse Locke, sorrindo feito um idiota.
Sua barriga estava quente, a cabeça parecia não pesar um grama e suas intenções estavam desconectadas dos movimentos pelo intervalo de um batimento cardíaco. Tinha
consciência de que, se já não estava bêbado, ia nessa direção como um dardo lançado contra uma parede.
– Agora, Locke – disse Correntes, a voz parecendo vir de longe –, eu tenho umas coisas para discutir com esses três. Talvez você queira ir para a cama mais cedo
hoje.
Uma pontada aguda furou a bolha morna de contentamento que praticamente o havia engolido. Ir para a cama cedo? Deixar a companhia de Sabeta, em cuja beleza turva
ele estava fixado, mal conseguindo se dar o tempo necessário para piscar de vez em quando?
– Ahn... Hein?
– Não foi um pedido, Locke – replicou Correntes com gentileza. – Você terá uma tarde ocupada amanhã, garanto, e precisa de todo o sono possível.
– Amanhã?
– Você vai ver. – Correntes se levantou, rodeou a mesa e tirou com cuidado o copo vazio da mão de Locke, que, surpreso, olhou para baixo, já esquecido de que o estava
segurando. – Vá.
Uma parte minúscula da mente de Locke, a cautela fria que fora seu sentinela no Morro das Sombras, percebeu que Correntes havia planejado muito antes mandá-lo descansar
cedo, alegremente atordoado. Mesmo através da névoa induzida pelo vinho, isso doeu. Ele sentia-se cada vez mais em casa, mas nem bem Sabeta entrara pela porta e
tudo se tornara Ruas e Janelas de novo; ele era mandado para algum canto escuro sem os privilégios desfrutados pelas crianças mais velhas.
– Eu – murmurou ele, afastando o olhar de Sabeta pela primeira vez em vários minutos, mas ainda se dirigindo a ela. – Eu vou. Mas... estou feliz porque você está
aqui.
Sentiu uma ânsia de dizer mais alguma coisa, algo com peso e inteligência, que faria virar aquela cabeça linda, um espelho da sua, e chamar-lhe a atenção para ele.
Porém, mesmo bêbado, sabia que tinha mais probabilidade de arrancar rubis da bunda do que de falar como as pessoas mais velhas, com palavras que eram de algum modo
cuidadosas, poderosas e certas.
– Sabeta – completou ele, meio que resmungando.
– Obrigada – agradeceu ela, encarando a mesa.
– Quero dizer, eu sabia... Você sabia que eu estava falando de você, Sabeta... Desculpe. Eu só... fico feliz porque você não se afogou, sabe.
Mais do que qualquer coisa, naquele momento ele só queria ouvi-la dizer seu nome, chamá-lo de qualquer coisa que não “ele” ou “o garoto Lamora”. Reconhecer sua existência...
sua parceria na gangue de Correntes... Pelos deuses, ele se exilaria na cama cedo toda noite se ao menos pudesse ouvir seu nome brotar daqueles lábios.
– Boa noite – disse ela.
4
No dia seguinte, Locke acordou sentindo que o conteúdo de seu crânio tinha sido arrancado e recolocado de cabeça para baixo.
– Aqui – falou um Sanza, que estava perto da sua cama com um livro.
O Sanza – atordoado como estava, Locke não conseguia identificá-lo – entregou-lhe um copo de madeira com água. Estava morna mas limpa, e Locke engoliu-a sem delicadeza,
admirando-se com a própria sede.
– Que horas são? – falou ele, rouco, ao terminar.
– Deve passar do meio-dia.
– Meio-dia? Mas... as minhas tarefas...
– Hoje não há trabalho de verdade. – O Sanza se espreguiçou e bocejou. – Nada de aritmética. Nada de Pegar o Duque. Nada de idiomas. Nada de dança.
– Nem de ficar sentado nos degraus! – gritou o outro Sanza no cômodo ao lado. – Nem luta de espadas. Nem nós e cordas. Nem moedas.
– Nem música – continuou o Sanza que estava com o livro. – Nem boas maneiras. Nem história. Nem a maldita heráldica.
– O que vamos fazer, então?
– Calo e eu precisamos garantir que você consiga ficar de pé – respondeu o Sanza do livro. – Nem que a gente tenha que pregar você numa tábua.
– E depois você deve lavar todos os pratos.
– Sabeta... – Locke esfregou os olhos e rolou da cama. – Ela é mesmo uma de nós?
– Claro que é – falou o Sanza do livro.
– Ela... está aqui agora?
– Não, não. Saiu com o Correntes. Procurando coisas para esta noite.
– O que tem esta noite?
– Não sei. Só sei que agora é de tarde, e a tarde, para você, são os pratos.
5
Apesar de enérgicos quando tinham uma tarefa, Calo e Galdo eram virtuoses da preguiça se deixados por conta própria. Entre interferências sutis e palhaçadas explícitas,
conseguiram estender a meia hora de que normalmente Locke precisaria para cuidar dos pratos até quase três horas. No momento em que a porta secreta do templo acima
se fechou com um estrondo após o retorno do Padre Correntes, os dedos de Locke estavam enrugados e descorados por causa do polidor alquímico que estivera usando
na prataria.
– Ah – fez Correntes. – Ótimo, ótimo. Você parece estar mais ou menos entre os vivos. Sente-se esperto?
– Acho que sim.
– Temos um serviço esta noite. Invasão de casa. Trabalho de janelas, e a maior parte do serviço vai ficar nos seus ombros pequenos. – Correntes deu um tapa na barriga
ampla e sorriu. – Parei de escalar e escapar há um bom tempo.
– Trabalho de janelas? – indagou Locke, esquecendo instantaneamente a chatice de sua longa tarde na cozinha. – Eu... eu adoraria. Mas achava que vocês, é... não
faziam esse tipo de coisa.
– Geralmente não. Mas preciso descobrir umas coisas sobre você, Locke.
– Ah, ótimo. – Locke sentiu a empolgação esfriar um pouco. – Outro teste. Quando eles acabam?
– Quando você estiver enterrado, meu garoto. – Correntes se ajoelhou e deu um aperto amigável na nuca de Locke. – Quando você estiver embaixo da terra e mais frio
do que as tetas de um peixe. É aí que acaba. Agora escute. Recebi uma dica de um amigo na Meraggio. – Correntes andou rapidamente pela cozinha, pegando giz e uma
lousa, onde rabiscou às pressas. – Parece que um certo mercador de azeitonas quer casar seu filho inútil com uma mulher nobre. Para adoçar o acordo, ele vai precisar
colocar os esplendores da família de novo em circulação.
– O que isso quer dizer? – perguntou Locke.
– Que ele precisa vender suas joias e suas coisas – respondeu Calo.
– Garoto esperto. Há cerca de uma hora, o empregado do mercador saiu da casa de contabilidade com uma bela porção de antiguidades na bolsa. Vai ficar numa casa em
Razona; só ele e dois guardas. O velho e um séquito maior virão amanhã da propriedade dele no campo. Portanto, esta noite temos uma oportunidade.
– Por que nós? – A empolgação de Locke era temperada por uma perplexidade genuína. – Se ele só tem dois guardas, qualquer um que quisesse poderia entrar lá com uma
gangue.
– Jamais – disse Correntes com um risinho. – Barsavi não admitiria. Razona é um bairro calmo onde as portas não são arrombadas com chutes. Trata-se da Paz. Quem
violá-la pode ter suas partes preciosas cortadas e costuradas nos olhos. Assim, em vez de mandar brutamontes pela porta, mandamos uma figura discreta pela janela.
Correntes virou a lousa na direção de Calo, Galdo e Locke. A metade de cima estava tomada por um diagrama tosco de casas e das ruas e becos ao redor. Abaixo, havia
o desenho de um colar, com grandes formas ovoides pendendo de uma grossa corrente. Correntes bateu com um dedo no desenho.
– Uma peça. É isso que queremos. Uma dentre cerca de vinte, e eles não terão tempo de fazer muito estardalhaço a respeito. Um colar de ouro com nove esmeraldas pendentes.
Basta tirar as pedras, vendê-las em nove direções e derreter o ouro. Lucro impossível de ser rastreado.
– Como vamos fazer isso? – indagou Locke.
– Bom, essa é metade da diversão. – Correntes coçou o queixo. – Você mesmo disse: é um teste. Você vai trabalhar com Sabeta, já que ela tem mais experiência. Calo
e Galdo vão ser seus olhos de cima, isto é, vão vigiar a área para cobrir o rabo de vocês. Eu vou estar no chão, por perto, mas não vou me envolver diretamente.
Minhas pequenas maravilhas desonestas terão que resolver o resto sozinhas.
O coração de Locke disparou. Teste ou não, a chance de trabalhar com Sabeta, ainda mais em alguma coisa empolgante? Os deuses o amavam!
– Onde ela está?
– Aqui. – Correntes apontou para um quadrado desenhado na parte de cima da lousa. – Na Via Selaine. Uma casa de quatro andares com jardim no terraço. É o nosso alvo.
Ela vai estar ali perto até o escurecer; ao primeiro nascer de lua, vai se encontrar com você neste beco. – Correntes passou o dedo por uma série de linhas de giz,
borrando-as. – Assim que os Sanzas estiverem posicionados para ficar de olho na rua, o resto é com você e Sabeta.
– Então é isso?
– É. E lembre-se: quero um colar de esmeraldas. Não preciso de dois, nem da escritura da casa, nem das malditas joias da coroa de Camorr. Esta é definitivamente
uma noite para você realizar pouco.
6
Noite densa em Camorr, enfim, depois de um crepúsculo passado nervosamente inquieto num beco, esperando o contato de Sabeta. Agora Locke estava com ela, no telhado
da casa vizinha ao alvo, agachado entre as velhas estruturas de madeira e os vasos vazios de um jardim descuidado havia muito tempo. Acabava de passar do segundo
nascer de lua e o céu escancarado pegava fogo com estrelas, dez mil olhos brancos piscantes encarando Locke, como se ansiosos para vê-lo trabalhar.
A 1 metro de distância estava Sabeta, um vulto baixo grudado ao parapeito de pedra. Suas únicas palavras para ele ao se encontrarem haviam sido “Cale a boca, fique
perto e quieto”. Ele obedecera, subindo atrás dela pela parede da casa em que estavam agora, usando parapeitos de janelas e relevos decorativos para escalar com
pouco esforço. Desde então, sua ânsia de falar com ela fora dominada pelo terror de irritá-la e, assim, Locke achava que tinha feito uma ótima imitação de cadáver
desde o momento em que haviam chegado. Quando ela enfim disse alguma coisa, sua voz suave espantou-o.
– Acho que finalmente foram dormir.
– O-o quê? Quem?
– As três velhas que moram aqui. – Sabeta encostou a cabeça nas pedras da cobertura e prestou atenção durante vários minutos. – Elas dormem no segundo andar, mas
ter cuidado nunca é demais.
– Ah. Claro.
– Nunca trabalhou num telhado antes. É isso, garoto?
Sabeta moveu-se um pouco, e tão silenciosamente, que Locke não ouviu um único farfalhar da túnica escura ou da calça. Ela espiou por cima do parapeito por um tempo
que não passou de dez batimentos cardíacos, depois se agachou de novo.
– Eu, ahn, não. Assim, não.
– Bom, acha que pode se conter e só roubar o que foi mandado? Ou será que devo avisar aos casacas-amarelas para fazer filas de gente com baldes para o caso de você
incendiar Razona?
– Eu... vou fazer o que você mandar. Vou ter cuidado.
– O que eu mandar? – Quando se virou para ele, o rosto de Sabeta estava envolto em uma sombra prateada, mas os olhos captavam a luz das estrelas, por isso Locke
pôde vê-los com clareza. – Sério?
– Ah, sim. – Locke assentiu várias vezes. – Juro. Haja o inferno ou o fogo dos Ancestres.
– Ótimo. Então talvez você não faça merda. – Ela gesticulou em direção ao parapeito. – Mova-se devagar. Levante-se só o bastante para espiar por cima da borda. Dê
uma boa olhada.
Foi o que Locke fez no lado sul da residência; a casa-alvo, com o denso jardim no terraço, ficava à direita e, quatro andares abaixo, havia um trecho limpo de rua
calçada de pedras, lavada pelo luar. Razona parecia um lugar gentil, calmo – sem bêbados esparramados nas sarjetas, sem portas de tavernas abrindo e fechando constantemente
com pancadas fortes, sem casacas-amarelas movendo-se em esquadrões com porretes nas mãos e escudos à frente do corpo. Dezenas de globos alquímicos ardiam no nível
da rua, atrás de janelas e acima de portas, como cachos de frutas em chamas. Só os becos e os telhados pareciam envoltos em algo parecido com verdadeira escuridão.
– Está vendo Calo e Galdo? – perguntou Sabeta.
– Não.
– Ótimo. Isso significa que eles estão onde devem estar. Se alguma coisa der errado, se um esquadrão de casacas-amarelas aparecer na rua, digamos, aqueles dois vão
começar a berrar “O mestre quer mais vinho, o mestre quer mais vinho”.
– E aí?
– Eles vão fugir, e nós também. – Sabeta se arrastou até ficar perto dele e Locke sentiu a respiração se prender na garganta. As palavras seguintes dela foram ditas
em seu ouvido: – A primeira regra do trabalho no telhado é: saiba como descer. Você sabe?
– Ahn... do mesmo modo como a gente subiu?
– É devagar demais. Arriscado demais. Descer escalando depressa é mais perigoso do que subir, especialmente à noite. – Ela apontou para uma linha fina e cinza no
meio do telhado, uma linha que o olhar de Locke acompanhou até uma confusão de potes e treliças quebradas. – Eu ancorei aquele cabo quando subi. É de semisseda,
deve levar a gente até a 1,5 metro do chão. Se precisarmos fugir, jogue-o pela borda, deslize para baixo o mais depressa possível e deixe-o para trás. Entendeu?
– Entendi.
– Agora, olhe por aqui. – Ela meneou a cabeça por cima do parapeito de novo e apontou para um beco do outro lado da rua. – Essa é a rota de fuga. Você vai ter que
atravessar a rua, mas um dos Sanzas deve estar na cobertura, observando você. Correntes está um ou dois quarteirões além. Se tudo der errado, procure um Sanza. Entendeu?
– Sim. Mas e se não formos apanhados?
– O mesmo plano, garoto. Só vamos fazer mais devagar. Pronto?
– Claro. Quando você mandar. Como a gente... é... atravessa para lá?
– Tábua de incêndio. – Sabeta se arrastou até o parapeito virado para a casa-alvo, sinalizando para que ele a seguisse. Deu um tapinha numa tábua comprida encostada
na parede de pedra. – Se um lugar pega fogo, você põe a tábua atravessando até o vizinho e torce para que ele goste de você.
Trabalhando em silêncio e devagar, as duas crianças levantaram a tábua de 4,5 metros até o parapeito; Locke pôs todo o seu peso sobre uma das extremidades enquanto
Sabeta girava-a por cima do beco. Sentia-se inquieto como uma pedra de catapulta prestes a voar, temendo que a outra ponta caísse, mas, após alguns instantes complicados,
Sabeta conseguiu acomodá-la no parapeito da casa-alvo. Ela saltou graciosamente em cima e depois ficou de quatro.
– Um de cada vez – sussurrou ela. – Fique abaixado e não tenha pressa.
Ela atravessou enquanto o coração de Locke disparava com a empolgação familiar de um crime prestes a acontecer. O cheiro de fazenda do Vento do Carrasco encheu o
ar e uma brisa morna agitou o cabelo de Locke. A nordeste, erguiam-se as sombras impossivelmente altas das Cinco Torres, com suas coroas de prata e lamparinas de
ouro, quentes constelações artificiais misturando-se às estrelas frias e verdadeiras.
Então chegou a vez de Locke. Para um adulto, a estreiteza da tábua daria nos nervos, mas alguém do tamanho de Locke poderia girar em cima dela sem se dar o trabalho
de ficar de pé. Ele passou com facilidade, rolou da beira e se agachou em meio aos cheiros úmidos de um jardim vivo. Folhas escuras farfalhavam acima e ele quase
pulou quando Sabeta estendeu a mão para fora das sombras e o agarrou pelo ombro.
– Sem barulho – sussurrou ela. – Eu vou pegar o colar. Você, vigie o teto. Garanta que a tábua fique onde nós precisamos.
– E... e se acontecer alguma coisa?
– Bata três vezes no chão. Se acontecer alguma coisa que você possa ver antes de mim, não vamos poder fazer nada, a não ser fugir. Não use meu nome de jeito nenhum
se tiver que gritar avisando.
– Não vou usar. Boa... ahn, boa sorte...
Mas ela já havia ido e, um instante depois, ele ouviu alguns estalos fracos. Em algum lugar no jardim, Sabeta tentava abrir uma fechadura com gazuas. Ela logo conseguiu
e as dobradiças de uma porta rangeram suavemente.
Locke montou guarda junto à tábua por longos minutos, olhando ao redor toda hora, apesar de admitir que uma dúzia de homens poderia estar escondida na escuridão
das trepadeiras e folhas. Às vezes, olhava por cima do parapeito, para o outro lado da ponte estreita. O outro telhado continuava tranquilizadoramente vazio.
Locke já estava se sentando de novo após a quarta ou quinta espiada quando ouviu uma comoção abaixo dos pés. Ajoelhou-se e encostou um ouvido na pedra quente; era
um murmúrio. Uma pessoa falando, depois outra. Um alarido de vozes adultas. Então começaram os gritos.
– Ah, merda – sussurrou Locke.
Ouviu uma série de pancadas surdas vindas da direção que Sabeta havia tomado, depois o som alto de uma porta sendo escancarada. Ela saiu voando das sombras na direção
dele, agarrou-o pelos braços e o empurrou para cima da tábua.
– Ande, ande, ande – ordenou ela, ofegante. – O mais rápido possível.
– O que aconteceu?
– Ande, maldição! Eu firmo a tábua.
Locke fugiu pelos 4,5 metros o mais rápido que já havia se movido na vida, tão depressa que tropeçou do parapeito ao chegar e teve que rolar desajeitadamente para
não aterrissar de cara. Levantou-se com a cabeça rodando e girou de volta para Sabeta.
– Venha! – gritou. – Venha!
– A corda – sussurrou ela. – Jogue a porra da corda!
– Eu vou f-firmar a tábua para você agora.
Locke apertou a tábua, trincou os dentes e se preparou, sabendo, com uma parte da mente, como devia ser ridícula aquela demonstração precária de força. Por que ela
não vinha?
– A CORDA! – gritou ela. – FUJA!
Locke levantou os olhos a tempo de ver vultos irromperem do jardim atrás dela. Adultos. Os braços se estendiam para ela, mas Sabeta não tentava escapar; nem estava
se virando para eles. Suas mãos se encontravam sobre a tábua e ela estava...
– Não! – berrou Locke. – NÃO!
Sabeta foi agarrada por trás e levantada no ar, mas, enquanto subia, conseguiu girar sua extremidade da tábua para fora do parapeito e empurrá-la no vazio. Locke
teve a sensação terrível daquele peso tombando e mergulhando no beco, peso demais para ele segurar. A ponta levantou e bateu no seu queixo, jogando-o para trás.
Ao cair de bunda, ouviu o estrondo da tábua batendo no chão, quatro andares abaixo.
– FUJA! – gritou Sabeta mais uma vez, e sua voz soou meio abafada.
Locke cuspiu sangue, levantando-se de novo.
– O outro telhado! – Era uma voz nova, de um homem. – Desçam para a rua!
Locke queria ficar, manter Sabeta à vista, fazer alguma coisa por ela, mas seus pés, sempre mais rápidos do que o pensamento, já o conduziam. Ele agarrou a corda
enquanto corria tropeçando, jogou-a por cima do parapeito oposto e, sem hesitar, lançou-se por cima da borda. As pedras da parede passaram voando e a pressão da
corda na palma de sua mão se intensificou depressa até uma dor quente, lancinante. Ele gritou e soltou-a assim que chegou ao fim, quase jogando-se pelo último 1,5
metro e aterrissando embolado, desajeitadamente.
O queixo doía, as palmas pareciam ter sido esfoladas com um machado cego e a cabeça continuava rodando, mas pelo menos nada parecia quebrado. Começou a correr. Enquanto
os pés descalços batiam nas pedras da rua, a porta da casa-alvo se escancarou, revelando dois homens delineados em luz dourada. Um instante depois, estavam atrás
dele.
Locke disparou para a escuridão do beco, forçando as pernas a subir e descer como pistões de um motor d’água. Sabia que precisaria de cada centímetro de vantagem
que já possuía se quisesse escapar. Formas vagas e negras surgiam das sombras como algo saído de um pesadelo, apenas transformando-se em objetos normais quando ele
passava correndo: barris vazios, pilhas de lixo, carroças quebradas.
Atrás dele vinham as batidas de pés calçados com botas. Locke respirava em haustos curtos e rápidos e rezava para não pisar numa tigela ou garrafa quebrada. Os pés
descalços eram melhores para escalar, mas, numa corrida louca, alguém de sapatos tinha toda a vantagem. Os homens estavam chegando mais perto...
Algo bateu em Locke com tanta força que achou que havia se chocado contra uma parede. O ar foi expulso de seus pulmões e alguém o agarrou pela túnica e o jogou para
baixo; outra pessoa pulou do escuro e correu na direção para onde ele ia antes. Alguém mais ou menos do seu tamanho ou um pouquinho maior...
– Shhhh – fez um dos Sanzas, direto em seu ouvido. – Banque o morto.
Locke estava deitado com o rosto encostado na pedra molhada, olhando para uma abertura estreita numa passagem com paredes de tijolos. Percebeu que tinha sido puxado
para um beco menor que se ramificava daquele por onde tentara escapar. O Sanza que o segurava puxou alguma coisa pesada, úmida e fétida para cima deles, deixando
apenas um espaço mínimo para enxergarem. Uma fração de segundo depois, os perseguidores de Locke passaram em disparada, bufando e xingando. Continuaram atrás do
vulto que havia tomado o lugar de Locke e nem lançaram um olhar para os dois garotos encolhidos e cobertos, a poucos metros dali.
– Calo vai botá-los para correr bastante e então voltar para cá quando os tiver despistado – explicou o Sanza após alguns segundos.
– Galdo, eles a pegaram. Pegaram a Beta.
– Nós sabemos. – Galdo empurrou a camuflagem de lado. Parecia uma antiga capa de couro, mordida por animais e coberta com todo tipo de imundície que um beco poderia
cultivar. – Quando ouvimos os gritos, corremos e ficamos em posição para pegar você. Agora depressa e quieto.
Galdo ergueu Locke, virou-se e seguiu rapidamente pelo beco secundário.
– Eles a pegaram – repetiu Locke, de repente cônscio de que suas bochechas estavam quentes de lágrimas. – Eles a pegaram, a gente precisa fazer alguma coisa, a gente
precisa...
– Eu sei, maldição. – Galdo agarrou-o pela mão e puxou-o. – Correntes vai dizer o que devemos fazer. Venha.
Como Sabeta havia prometido, Correntes não estava longe. Galdo conduziu Locke para o oeste, em direção ao cais, para as fileiras de armazéns mais baratos junto ao
canal que marcava o limite mais distante de Razona. Correntes esperava ali, usando roupas comuns e uma capa marrom comprida, dentro de um armazém vazio que cheirava
a podridão e cânfora. Quando os dois garotos entraram, Correntes sacudiu um globo alquímico, produzindo uma luz fraca, e se apressou até eles.
– Deu errado – avisou Galdo.
– Eles a pegaram – acrescentou Locke, sem se importar por estar choramingando. – Eles a pegaram, desculpe, eles... eles a pegaram.
Locke se jogou contra o Padre Correntes, que, sem hesitar, pegou-o no colo e o abraçou, dando tapinhas nas suas costas até que os soluços violentos se acalmaram.
– Pronto, garoto, pronto. Você está conosco agora. Está tudo bem. Quem a pegou? Você pode dizer?
– Não sei... homens na casa.
– Não eram casacas-amarelas?
– Acho... acho que não. Desculpe, eu não pude... tentei pensar em alguma coisa, mas...
– Você não poderia ter feito nada – respondeu Correntes com firmeza. Em seguida pousou Locke e usou a manga do casaco para enxugar suas bochechas. – Você conseguiu
fugir, e isso basta.
– Nós não p-pegamos o colar...
– Foda-se o colar. – Correntes se virou para o Sanza que havia trazido Locke. – Cadê o Galdo?
– Eu sou Galdo.
– Cadê o...
– Calo está se livrando de dois homens que perseguiram a gente.
– Que tipo de homens? Uniformes? Armas?
– Não creio que fossem casacas-amarelas. Podiam estar com o velho que você queria que a gente roubasse.
– O inferno está chamejando merda. – Correntes pegou sua bengala, um detalhe do disfarce, mas um belo modo de ter uma arma à mão. – Fiquem aqui. Apaguem a luz e
se escondam. – Tirou a adaga de uma bainha de couro e a jogou para Galdo. – Tente não esfaquear o Calo se ele voltar antes de mim.
– Aonde você vai? – perguntou Locke.
– Descobrir com quem estamos lidando.
Correntes saiu pela porta com uma velocidade que negava suas frequentes afirmações de enfermidade avançada. Galdo lançou a minúscula luz alquímica para Locke, que
a escondeu nas mãos fechadas. Sozinhos no escuro, os garotos se acomodaram para esperar o que viria em seguida.
7
Correntes voltou menos de uma hora depois, rebocando o pálido Calo. Locke parou de bloquear a luz quando eles entraram no armazém, e correu até os dois.
– Onde ela está? – perguntou.
Correntes olhou para os três garotos e suspirou.
– Preciso do menor – disse baixinho.
– Eu?
– Claro que é você, Locke.
Correntes agarrou os Sanzas. Ajoelhou-se ao lado deles e sussurrou instruções breves que Locke não conseguiu ouvir. Calo e Galdo pareceram se retrair.
– Maldição, garotos – falou Correntes. – Vocês sabem que não temos opção. Voltem para casa. Fiquem juntos.
Os dois saíram correndo do armazém sem falar mais nada. Correntes se levantou e se virou para Locke.
– Venha. Esta noite o tempo não é nosso amigo.
– Aonde a gente vai? – Locke se esforçou para acompanhá-lo.
– Não é longe. Uma casa um quarteirão ao norte de onde você estava.
– É... A gente deveria mesmo voltar para lá?
– Agora que você está comigo, é perfeitamente seguro.
Fiel à sua palavra, Correntes havia virado para o leste, seguindo por uma rua, e não um beco, e andava depressa para a região de onde Locke tinha acabado de fugir.
– Quem a pegou? Os casacas-amarelas?
– Não. Eles a levariam a um posto da guarda, e não a uma residência particular.
– Os... ahn... os homens que a gente tentou roubar?
– Não. Pior do que isso. – Locke não conseguia ver o rosto de Correntes, mas, por suas palavras, imaginou que estivesse carrancudo. – Agentes do Duque. Sua polícia
secreta. Comandada pelo homem sem nome.
– Sem nome?
– Ele é chamado de Aranha. O pessoal dele faz os trabalhos que são delicados demais para os casacas-amarelas. São espiões, assassinos, andam disfarçados. Gente perigosa,
mais perigosa do que a maior parte das Pessoas Certas.
– Por que eles estavam na casa?
– O azar é uma possibilidade reconfortante demais. Acredito que minha informação sobre o colar era uma dica envenenada.
– Mas então... puta merda, isso significa que nós temos um informante!
– É um pecado maligno essa palavra sair levianamente dos lábios de gente como nós. – Correntes girou e Locke cambaleou para trás, surpreso. O rosto do Sacerdote
Cego estava mais sério do que jamais vira. Balançando um dedo para enfatizar as palavras, ele continuou: – É a pior coisa que uma Pessoa Certa pode dizer ou pensar
sobre outra. Antes de acusar, é melhor saber. Se soltar essa palavra sem pensar é melhor estar armado, entendeu?
– S-sim. Desculpe.
– Meu homem na Meraggio é confiável. – Correntes se virou e, seguido de perto por Locke, prosseguiu pela rua às pressas. – Minhas crianças são irretocáveis, todos
vocês.
– Eu não quis dizer...
– Eu sei. Isso significa que a informação em si era uma isca para uma armadilha. Eles provavelmente nem sabiam quem morderia o anzol. Jogaram a linha e esperaram
um peixe.
– Por que eles iriam se importar com isso?
– É do interesse deles – resmungou Correntes. – Os ladrões que têm contatos na Meraggio, ladrões dispostos a trabalhar num lugar bom e calmo como Razona... esse
tipo de pessoa merece ser vigiado. Ou pisado.
Locke segurava a manga de Correntes enquanto voltavam para os bairros nobres, onde a paz e a calma pareciam bastante surreais, dada a agitação que ele e Sabeta haviam
provocado tão recentemente. Por fim, Correntes guiou Locke para o jardim baixo e bem cuidado nos fundos de uma fileira de casas de três andares. Apontou para a residência
mais adiante e os dois se agacharam atrás de um muro de pedras um tanto arruinado para observar a cena.
Meio visível além da casa, havia uma carruagem sem brasão, vigiada por pelo menos dois homens. As luzes na construção estavam acesas, mas cortinas cobriam quase
todas as janelas de grossos vidros em mosaico. A única exceção ficava na parede dos fundos do segundo andar; um brilho alaranjado irradiava-se de uma fresta.
– Ela está aí dentro? – sussurrou Locke.
– Está. Naquela janela aberta.
– Como vamos tirá-la de lá?
– Não vamos.
– Mas... nós estamos aqui... você me trouxe aqui...
– Locke. – Correntes pôs a mão no ombro direito dele. – Ela está amarrada naquela sala no alto. Eles têm quatro homens lá dentro, mais dois na frente com a carruagem.
Homens do Duque, acima de qualquer lei. Você e eu não podemos lutar contra eles.
– Então por que me trouxe aqui?
Correntes enfiou a mão na túnica e lhe estendeu um pequeno objeto pendurado em seu pescoço após arrebentar o barbante que o prendia. Era um frasco de vidro, mais
ou menos do tamanho do dedo mindinho de Locke.
– Pegue isso. Você é pequeno e pode subir pelas trepadeiras daquela parede dos fundos, chegar à janela e...
– Não. – A percepção do que o frasco significava fez Locke sentir vontade de vomitar. – Não, não, não!
– Escute garoto, escute! O tempo está correndo. Não podemos tirá-la. Eles vão começar a fazer perguntas logo. Você sabe como eles fazem isso? Com ferros quentes.
Facas. Quando terminarem, eles saberão tudo sobre você, eu, Calo, Galdo. O que fazemos e onde trabalhamos. Nunca mais estaremos seguros em Camorr e nossa laia vai
estar tão sedenta pelo nosso sangue quanto o pessoal do Duque.
– Não, ela é inteligente, ela vai...
– Nós não somos feitos de ferro, garoto. – Correntes agarrou a mão direita de Locke, apertou-a com firmeza e pôs o frasco morno em sua palma. – Somos de carne e
sangue e, se eles nos machucarem por tempo suficiente, vamos dizer qualquer coisa que quiserem.
Correntes dobrou suavemente os dedos de Locke sobre o frasco, depois afastou suas mãos devagar.
– Ela vai saber o que fazer.
– Não posso – reagiu Locke, com novas lágrimas escorrendo pelo rosto. – Não posso. Por favor.
– Eles vão torturá-la – disse Correntes baixinho. – Você sabe que ela vai lutar enquanto puder. Por isso, tudo vai durar horas. Talvez dias. Vão quebrar os ossos
dela. Vão lhe arrancar a pele. E você é o único que pode subir até aquela janela. Você... tropeça na língua quando está perto dela. Você gosta dela, não é?
– É – respondeu Locke, olhando para a escuridão, tentando desesperadamente pensar em alguma coisa mais ousada, mais inteligente, mais corajosa do que subir até a
janela e entregar a uma garota linda um frasco com o qual ela iria se matar.
Não teve nenhuma ideia.
– Não é justo. – Ele soluçou. – Não é justo, não é justo.
– Não podemos tirá-la de lá, Locke. – A gentileza e o pesar na voz de Correntes atraíram a atenção de Locke de um modo que uma bronca ou uma ordem não conseguiria.
– O que acontece agora está por sua conta. Se você não conseguir chegar lá, ela vai viver. Durante um tempo. E vai experimentar o inferno. Mas, se você alcançar
aquela janela... se lhe entregar o frasco...
Locke assentiu e se odiou por fazer isso.
– Garoto corajoso – sussurrou Correntes. – Não espere. Vá. Veloz e silencioso como uma brisa.
Não era um feito fantástico atravessar 10 metros de jardim escuro, encontrar apoios para mãos e pés na trepadeira luxuriante nos fundos da casa e subir. Mas o processo
pareceu levar horas e, quando Locke se equilibrou ao lado da janela do segundo andar, estava tremendo tanto que tinha certeza de que qualquer pessoa na casa o ouviria.
Pela graça do Guardião Torto, não houve gritos de alarme, nem janelas se escancarando, nem homens armados correndo para o jardim. Com todo o cuidado, ele pôs os
olhos ao nível da fresta de 5 centímetros na base da janela aberta e moveu a cabeça à direita, apenas o suficiente para espiar o cômodo.
Engoliu em seco ao ver Sabeta sentada numa cadeira pesada, de encosto alto, de costas para ele. Ao lado, algum tipo de armário... Não, era um homem enorme com capa
preta comprida. Locke se encolheu para fora das vistas. Pelos deuses, Correntes estava certo pelo menos quanto a uma coisa: eles não poderiam lutar contra um brutamontes
daquele, com ou sem uma casa cheia de outros homens.
– Eu não sou inimigo, sabe. – O sujeito tinha uma voz profunda, bem articulada, com uma levíssima sugestão de sotaque estrangeiro. – Queremos pouca coisa. Você deve
saber que seus amigos não podem salvá-la. Não de nós.
Houve um longo silêncio. O homem suspirou.
– Talvez você pense que não podemos fazer as coisas que eu sugeri antes. Não com uma garotinha linda. Mas você está praticamente enforcada. Isso deixa a nossa consciência
mais leve. Cedo ou tarde você vai confessar. Nem que seja entre gritos. Eu, ahn, vou deixar você sozinha um pouquinho. Deixar que você pense. Mas pense bem, garota.
Somos pacientes apenas quando nos mandam ser.
Houve uma batida, uma porta pesada se fechando, e então um ligeiro estalo metálico: o homem tinha girado uma chave.
Agora era a hora. Hora de entrar no cômodo, entregar o frasco e escapar o mais depressa possível. Assim, Sabeta iria se matar e Locke iria... iria...
– Foda-se – sussurrou consigo mesmo.
Empurrou a janela, aumentando a abertura. Janelas que deslizavam para cima e para baixo eram uma novidade cara em Camorr, tão raras que até Locke sabia serem especiais.
O mecanismo daquela ali estava bem lubrificado e a janela subiu com pouca resistência. Sabeta virou a cabeça na direção do barulho e Locke passou pelo parapeito
e pulou dentro. Os olhos dela se arregalaram de surpresa.
– Oi – sussurrou Locke, menos dramaticamente do que esperava.
Ergueu-se no tapete com 2 centímetros de espessura e examinou a cadeira de Sabeta. Seu coração se encolheu. Era de madeira de lei brilhante, mais alta do que a janela,
e devia pesar mais do que ele. Além disso, apesar de Sabeta estar com os braços livres, suas pernas estavam algemadas.
– O que você está fazendo? – sussurrou ela.
– Tirando você daqui.
Locke olhou em volta, refletindo ansiosamente. Estavam numa biblioteca, mas as prateleiras e os suportes de pergaminhos se encontravam vazios. Nenhum livro à vista.
Nenhum objeto pontudo, nem alavancas, nem ferramentas. Examinou a porta, esperando ver algum tipo de tranca ou barra interna que pudesse tirar, e ficou desapontado
outra vez.
– Não posso sair desta cadeira – disse Sabeta, a voz baixa e urgente. – Eles podem voltar a qualquer momento. O que é isso que você está segurando?
Locke se lembrou de repente do frasco que apertava com força na mão direita. Antes que pudesse pensar em outra coisa, escondeu-o às costas feito um idiota.
– Nada.
– Eu sei por que o Correntes mandou você aqui. – Sabeta fechou os olhos enquanto falava. – Tudo bem. Eu e ele já conversamos uma vez sobre isso. É...
– Não. Vou pensar em alguma coisa. Me ajude.
– Vai ficar tudo bem. Me dê.
– Não posso. – Locke levantou as mãos, implorando. – Me ajude a tirar você dessa cadeira.
– Locke – falou Sabeta. Ouvi-la finalmente dizer seu nome foi como uma marretada no coração. – Você jurou fazer o que eu mandasse. Houvesse o inferno ou o fogo dos
Ancestres. Você falou sério?
– Falei – sussurrou ele. – Mas você vai morrer.
– Não há outro modo.
Ela estendeu a mão.
– Não.
Ele esfregou os olhos, sentindo as lágrimas recomeçando a cair.
– Então você é leal a quem, Locke?
Locke sentiu um frio na barriga. Cada fracasso que ele havia experimentado nos poucos anos de vida, toda vez que fora apanhado ou enganado, toda vez que cometera
um erro, fora castigado, passara fome – nem mesmo todos esses momentos borbulhando e sendo revividos ao mesmo tempo poderiam se igualar ao peso da derrota que se
assentava em suas entranhas agora.
Pôs o frasco de vidro na mão dela e, por um momento, os dedos mornos dos dois se encontraram. Sabeta apertou de leve sua mão e Locke ofegou, soltando o frasco. Os
dedos dela se fecharam sobre o vidro e agora não havia como recuar.
– Vá – sussurrou ela.
Ele a encarou, incapaz de acreditar que tinha feito aquilo, e então enfim se virou. Eram só três passos até a janela, mas seus pés pareciam distantes e entorpecidos.
Firmou uma das mãos no parapeito, mais para se apoiar do que para escapar.
Um estalo alto ecoou na sala e a porta começou a se abrir.
Locke passou pelo parapeito, tentou rapidamente apoiar os pés na trepadeira agarrada ao exterior de tijolos da casa e rezou para descer rápido o bastante a fim de
não ser notado, ou pelo menos ganhar vantagem...
– Locke, espere! – exclamou uma voz profunda e familiar.
Locke se agarrou precariamente ao parapeito e se esforçou para levantar a cabeça e olhar dentro do cômodo. Diante da porta escancarada, estava o Padre Correntes.
– Não – sussurrou Locke, percebendo de súbito qual era o verdadeiro objetivo daquele exercício noturno. Isso significava... isso significava que Sabeta não precisaria...
Ficou tão espantado que se soltou e, com um grito agudo, caiu de costas sobre o jardim escuro.
8
– Eu disse que ele não estava morto. – Era um dos Sanzas, a voz saindo da escuridão. – Eu sou como um galeno. Deveria cobrar pela opinião.
– Claro. – Agora era o outro Sanza, falando perto do ouvido direito de Locke. – Espero que goste de ser pago com chutes na cabeça.
Locke abriu os olhos e se viu numa mesa, num cômodo bem iluminado que tinha a mesma estranha falta de opulência da biblioteca onde Sabeta estivera algemada. Havia
também algumas cadeiras, mas nenhuma tapeçaria ou enfeites, nada indicando que alguém morava ali. Locke se contraiu, respirou fundo e sentou-se de repente. Suas
costas e a cabeça doíam.
– Calma, garoto. – Correntes estava ao seu lado num instante. – Você levou um tremendo tombo. Maldição, se não fosse tão rápido com os pés, eu poderia tê-lo convencido...
Correntes esticou o braço para empurrá-lo para baixo suavemente e Locke afastou suas mãos com um safanão.
– Você mentiu – rosnou.
– Desculpe – disse Correntes baixinho. – Ainda havia uma coisa que precisávamos saber sobre você, Locke.
– Você mentiu! – A profundeza de sua fúria foi um choque; não conseguia se lembrar de ter sentido nada parecido, nem contra atormentadores como Gregor e Veslin.
E ele havia matado os dois, certo? – Nada daquilo era real!
– Seja razoável. É meio arriscado arquitetar um sequestro usando agentes do Duque de verdade.
– Não. Foi errado. Foi errado! Eles não teriam feito daquela forma. Eu poderia tê-la tirado de lá!
– Você não pode lutar contra homens adultos. Você fez o melhor que poderia numa situação ruim.
– FOI ERRADO! – Locke se obrigou a se concentrar, a articular o que suas entranhas estavam lhe dizendo. – Eles iriam... Os guardas de verdade poderiam ter feito
de um jeito diferente. Sem acorrentá-la. Isso tudo foi feito para mim. Foi tudo feito para que eu não tivesse opção!
– É – concordou Correntes. – Era um jogo que você não poderia ganhar. Uma situação que todos nós encontramos, cedo ou tarde.
– Não – replicou Locke, sentindo a raiva arder da cabeça aos pés. – Foi tudo errado!
– Ele fez isso com a gente também, uma vez – interveio Calo, segurando seu braço direito. – Deuses, nós quisemos morrer, de tão ruim que foi.
– Ele fez isso com todos nós – completou Sabeta, e Locke girou ao escutar a voz. Ela estava parada num canto, de braços cruzados, examinando-o com uma mistura de
interesse e inquietação. – Ele está certo. A gente precisava saber se você conseguiria fazer isso.
– E se saiu maravilhosamente bem – assegurou Correntes. – Melhor do que poderíamos...
– Não foi justo! – gritou Locke. – Não foi um teste justo! Não havia como ganhar!
– É a vida. É a sua única herança garantida, como gente de carne e osso. Ninguém vence o tempo todo, Locke.
Locke se soltou de Calo e se levantou sobre a mesa, de modo a olhar Correntes de cima para baixo.
Pelo amor dos deuses, ele pensara que Sabeta havia morrido uma vez, e tinha se regozijado ao encontrá-la viva. Depois fora mandado para matá-la. Essa era a fúria,
percebeu, queimando feito brasa em seu coração. Durante alguns terríveis minutos, Correntes o fizera acreditar que ele a perdera de novo. Estreitara seu mundo à
única escolha medonha e fizera com que ele se sentisse impotente.
– Nunca mais vou perder. – Ele assentiu lentamente consigo mesmo, como se suas palavras fossem a solução para uma charada difícil de decifrar. Então, gritou a plenos
pulmões, sem se importar se seria ouvido por toda a extensão de Razona: – Vocês ouviram? EU NUNCA MAIS VOU PERDER!
Capítulo Dois
O negócio
1
– Que os deuses sejam misericordiosos! – exclamou Locke. Aos olhos de Jean, ele parecia genuinamente pasmo. – Seu filho de verdade, sangue do seu sangue? Pelos...
ahn... meios tradicionais?
– Sem dúvida ele não foi gerado num caldeirão.
– Ah, como se a gente pudesse diferenciar...
– Só existe o modo tradicional de fazer uma coisa assim.
– Maldição. E eu tinha achado que esta seria uma conversa incômoda...
– O Falcoeiro ainda está vivo. Vocês não têm nada a temer da minha parte.
– Você espera que a gente acredite? – perguntou Jean.
Seus instintos de defesa, aguçados em anos de triunfos e desastres alternados, estavam em alerta total. Mesmo se Paciência optasse por não representar uma ameaça
imediata, com certeza engrenagens giravam em algum lugar na mente dela.
– Os amigos dele teriam nos matado, mas você pode apenas descartar tudo com um sorriso triste?
– Vocês dois não se davam bem – interveio Locke.
– Digamos que isso é um eufemismo – explicou Paciência. Em seguida olhou para os pés, um gesto que pareceu a Jean totalmente alheio a sua personalidade. – Mesmo
antes de ele ganhar seu primeiro anel no pulso... o Falcoeiro era meu antagonista em todas as filosofias, mágicas ou não. Se nossas posições estivessem invertidas,
ele não se sentiria obrigado a me vingar.
Paciência levantou devagar a cabeça até que seus olhos escuros encontraram os de Jean, e ele pôde realmente examiná-los pela primeira vez. Certas pessoas tinham
o que Jean considerava olhos de arqueiro – uma frieza firme, uma precisão distanciada. Pessoas desse tipo podiam separar o mundo ao redor em alvos, disparar primeiro
antes que quem estivesse próximo ao menos soubesse que o tempo de conversar havia passado. Olhos assim pertenciam a assassinos, e Paciência, com toda a porra da
certeza, tinha esse tipo de olhar.
– O Falcoeiro e eu convivemos com as consequências das decisões que tomamos antes de ele aceitar o contrato em Camorr – disse ela com firmeza. – Se eu opto por explicar
essas decisões ou não, é da minha conta.
– É justo – comentou Jean, dando instintivamente meio passo atrás e levantando as mãos.
– De fato. Vá com calma. – Locke conteve uma tosse. – Bom, você poderia nos assassinar, mas pelo jeito não quer. Seu filho transformou a própria mente em picles,
mas você diz que está cagando e andando para isso. Então qual é a história, Paciência? Por que está em Lashane me emprestando sua capa?
– Vim oferecer um trabalho a vocês dois.
– Um trabalho? – Locke gargalhou, depois irrompeu em tosses que pareciam mais dolorosas. – Um trabalho? Espero que você precise que alguém forre um caixão para você,
sua pobre bruxa de Kartane, porque esse é o único trabalho que estou qualificado para fazer no momento.
– Até que você enfim perca o jeito para o sarcasmo, Locke, eu não contrataria nenhuma carpideira.
– Eu estou no caminho. – Locke bateu no peito algumas vezes. – Acredite, já escapei de pagar essa conta antes, mas desta vez tenho certeza de que a casa vai me obrigar
a quitar. Você deveria ter tentado... não sei, não revelar a porra dos meus planos ao maldito Arconte de Tal Verrar para ele me envenenar, porra! Talvez, então,
minha agenda para o futuro próximo estivesse um pouquinho mais... livre.
– Eu posso remover o veneno do seu corpo.
O silêncio caiu sobre o quarto. Jean estava perplexo, Locke deu um muxoxo incrédulo e Paciência deixou as palavras pairarem no ar vazio sem mais adornos. As madeiras
do teto estalaram levemente sob o toque do vento.
– Conversa fiada – murmurou Locke por fim.
– Você presume que meus poderes são infinitos para lhe causar desconforto. Por que não me creditar uma capacidade equivalente de ajudar? – Paciência cruzou os braços.
– Sem dúvida algum dos alquimistas negros que você consultou deve ter sugerido...
– Não estou falando da droga da sua feitiçaria. Estou falando que vejo o jogo agora. Conversa fiada sua. Ato um: aqueles sacanas lashanis arrebentam o lugar. Ato
dois: uma salvadora misteriosa aparece no meio da noite e nós compramos o que você está vendendo. Você arranjou essa bagunça toda.
– Eu não tenho nada a ver com o Cortessa. Jean atraiu os lashanis quando lidou mal com o galeno ontem.
– Que desculpa eminentemente razoável! Pelos bons deuses, mulher, com quem, diabos, você acha que está falando aqui? – Locke explodiu num ataque de tosse e, com
a mesma velocidade, controlou-o com evidente força de vontade. – Estou preparado para identificar uma armação quando ela cai bem em cima da minha cabeça!
– Calma, Locke. – Jean sentia os batimentos cardíacos até a base da garganta. – Pense um pouco nisso.
Tinha de ser um truque, um plano, algum tipo de manipulação, mas, por todos os deuses, o que era isso comparado com a certeza total da morte? Jean fez um pedido
silencioso ao Guardião Torto para dar a Locke alguns instantes de raciocínio lúcido.
– Não tenho dinheiro – continuou Locke. – Nenhum recurso. Nenhum tesouro. E estou doente demais até para me levantar. Assim, resta só uma coisa que você ainda pode
me tirar.
– Precisamos considerar...
– Você quer o meu nome, não é? – A voz de Locke estava rouca e provocadora. Ele parecia triunfante por ter algo com que alimentar uma verdadeira discussão; evidentemente,
o deus dos ladrões não tinha bom senso disponível para emprestar no momento. – Você arranca tudo de mim, depois aparece no último minuto, balançando uma moratória.
E só precisa do meu nome de verdade, não é? Ah, você quer uma vantagem, isso é certo. Você não perdoou ninguém pelo que aconteceu com o Falcoeiro.
– Você está morrendo – retrucou Paciência. – Acha mesmo que eu me esforçaria tanto só para apertar seus parafusos? Pela graça dos deuses, quanta pressão a mais eu
poderia aplicar?
– Acredito que você faria qualquer coisa se quisesse mesmo me fisgar. – Locke enxugou os lábios com as costas da mão e Jean viu que a saliva estava manchada de sangue.
– Sei uma ou duas coisas sobre vingança e você tem poderes com os quais eu só posso sonhar. Por isso devo acreditar que você faria qualquer coisa.
– Por que me incomodar se eu poderia ter seu nome verdadeiro quando quisesse?
– Ah, isso é mais conversa fiada arrogante ain...
– Seria simplesmente uma questão de quanto tempo você poderia observar Jean Tannen sofrer antes de implorar o privilégio de me contar.
– Você não é diferente do Falcoeiro. A mesma porra...
– Locke! – interrompeu Jean, muito alto.
– ... de atitude com relação... Hein?
– Faça a gentileza de calar a porcaria da boca – respondeu Jean, enunciando cada palavra como se ensinasse a frase a uma criancinha pela primeira vez. O olhar de
Locke, de queixo caído, foi gratificante.
– Ela está certa – continuou Jean, incapaz de afastar uma empolgação crescente da voz. – Se ela só quisesse o seu nome de verdade, por que não me torturar? Eu estou
entregue, estou impotente. Seria rápido e simples. Então por que não estou gritando agora mesmo?
– Porque, se essas pessoas fossem boas em algo “rápido e simples”, o Falcoeiro teria matado nós dois em Camorr.
– Não, maldição. Pense mais.
– Porque você tem um rosto doce e inocente?
– Porque, se ela não quer o seu nome verdadeiro do modo fácil...
– Então ela tem outro motivo. Doce bosta de jumento dançarino, Jean! – Locke rolou na direção de Paciência, mas fechou os olhos e esfregou-os. – Ela quer que eu
ponha a cabeça na forca por vontade própria. Entendeu? Ela quer que eu pule do penhasco. Que eu corte os pulsos para que ela possa cantar vantagem... me humilhar...
Locke irrompeu em outro violento ataque de tosse e Jean sentou-se na cama e bateu de leve nas suas costas. O movimento rítmico não fez bem à nova coleção de dores
e hematomas de Jean, mas rapidamente acalmou Locke.
– O que estamos discutindo – insistiu Paciência – é emprego, e não chantagem. Eu tenho inteligência suficiente para lembrar o destino de Luciano Anatolius e Maxilan
Stragos. Coagir vocês dois parece nunca dar certo. Estamos dispostos a trocar serviço por serviço.
– Paciência, você pode mesmo se livrar desse veneno? – perguntou Jean. – Pode fazer isso sem usar o nome verdadeiro dele?
– Se nos apressarmos, sim.
– Se você estiver mentindo, se estiver escondendo alguma coisa, vou tentar matá-la outra vez. Entendeu? Vou pôr nisso tudo o que eu tenho, nem que a minha tentativa
force você a me matar no ato.
Paciência assentiu.
– Então vamos falar de negócios.
– Não vamos – rosnou Locke. – Vamos mostrar a porta a essa vaca e vamos nos recusar a ser marionetes.
– Cale a boca. – Jean empurrou os ombros de Locke com força para baixo, frustrando sua tentativa de rolar para fora da cama. – Fale desse serviço.
Locke respirou com aspereza para cuspir mais um pouco de loucura idiota. Com os reflexos que o mantinham vivos quando lâminas eram sacadas, Jean lhe tapou a boca
com a mão antes que ele pudesse falar, e empurrou sua cabeça de volta para o travesseiro.
– Não posso concordar com nada em nome de Locke, mas quero que a gente ouça a proposta. Diga qual é o serviço.
– É político.
– Mmmmmf mmf – fez Locke, lutando em vão contra o braço de Jean. – Mmmmf prrra fmmmmf!
– Ele quer ouvir mais – explicou Jean. – Disse que está muito empolgado para ouvir tudo.
2
– Preciso regular uma eleição.
– Regular como?
– Numa estimativa cautelosa? – Paciência se virou para a janela e observou a chuva. – Preciso que ela seja fraudada de cabo a rabo.
– Questões governamentais estão um pouco fora da nossa experiência – comentou Jean.
– Bobagem. Vocês vão se sentir totalmente à vontade. O que é o governo, senão roubo consentido? Vocês vão circular numa sociedade de espíritos irmãos.
– Que tipo de eleição devemos emporcalhar?
– A cada cinco anos, os cidadãos de Kartane elegem uma assembleia, o Konseil. Dezenove representantes para dezenove distritos. Essa bagunça digna governa a cidade
e eu preciso que a maioria dos assentos vá para o partido da minha preferência.
– É para isso que você nos quer? – Locke enfim empurrara a mão de Jean para longe. – Está falando sério? Com os seus poderes, você teria que estar totalmente fora
de si para aceitar alguma coisa que eu e Jean podemos fazer! Você poderia balançar os dedos e fazer com que eles elegessem cachorros e gatos, pelo amor da porra.
– Não – replicou Paciência. – Para o público, os magos se mantêm afastados do governo da cidade. Somos proibidos de usar qualquer uma das nossas artes. Nem sobre
o mais pobre cidadão de Kartane, nem para um único voto.
– Você não usa sua feitiçaria no povo de Kartane? – perguntou Jean. – Nem um pouco?
– Ah, Kartane é nossa cidade. Nós ajustamos tudo para servir às nossas necessidades, e isso inclui os habitantes. Nessa disputa é que não podemos tocar. Na eleição.
– Parece extremamente esquisito. Por que a limitação?
– Vocês viram algumas das nossas artes. Vocês se opuseram ao Falcoeiro. Sobreviveram em Tal Verrar.
– Por assim dizer – murmurou Locke.
– Imaginem uma sociedade de homens e mulheres onde esses poderes são universais. Imaginem... sentar-se para jantar com quatrocentas pessoas, cada uma com uma balestra
carregada ao lado da taça de vinho. Algumas regras muito rígidas precisarão ser estabelecidas se alguém quiser viver o suficiente para ver o último prato.
– Acho que entendo – disse Jean. – Vocês têm algum tipo de regra sobre não cagar no mesmo lugar onde comem?
– Os magos jamais devem usar magia uns contra os outros. Somos tão humanos quanto vocês, igualmente complicados, inseguros e impelidos a discussões. A única diferença
é que qualquer um de nós, a partir de alguma irritação mínima, poderia fazer alguém evaporar com um gesto. Nós não duelamos. Nem ao menos provocamos uns aos outros
com nossas artes. Nós nos separamos tenazmente de qualquer situação em que objetivos opostos nos deixem tentados a fazer isso.
– Situações como essa eleição.
– É. Nós precisamos controlar o Konseil, de um modo ou de outro. Assim que a eleição terminar, o novo governo se tornará uma ferramenta geral. Nós ajustamos seus
membros por consenso. Mas, durante a disputa em si, quando nosso sangue está quente, precisamos manter nossas artes completamente fora de jogo. Precisamos ser meros
espectadores.
Paciência levantou as mãos com as palmas para cima, como se apresentasse dois objetos invisíveis para avaliação.
– Existem duas facções especiais entre meu povo. Dois grandes partidos na política kartani. Nós lutamos pelo mandato. Cada lado tem permissão de escolher agentes.
Indivíduos empreendedores, nunca magos. Nós os deixamos livres para combater a nosso favor. Desta vez, convenci meu pessoal a contratar alguém com um portfólio de
realizações mais incomum.
– Por quê? – perguntou Jean.
– Algumas pessoas jogam handebol – respondeu Paciência, sorrindo. – Algumas jogam Pegar o Duque. Esse é o nosso esporte. A eleição afasta boa parte da frustração
que nossas facções sentem umas pelas outras e traz prestígio ao lado que apoia o vencedor. Tornou-se uma tradição ansiosamente aguardada.
– Eu imaginava que vocês comandavam a diversão em Kartane – comentou Locke. – Nunca suspeitaria disso. Que pilhéria com todos os pobres idiotas que fazem fila para
votar a cada cinco anos!
– Independentemente do vencedor, eles ganham uma cidade ordeira. Em Kartane, ninguém esvazia o tesouro e desaparece. Ninguém usa máscaras grandiosas toda noite enquanto
as ruas se enchem de excremento e animais mortos. Nós garantimos isso.
– Uma cidade de marionetes realmente ligaria se vocês não garantissem? – indagou Locke, com a respiração chiando. Em seguida, pigarreou. – Você quer que nós cometamos
fraude a serviço da ordem e da higiene pública. Que ideia fantástica!
– O roubo não é roubo? As mentiras não são mentiras? Esse não é bem o tipo de oportunidade que vocês passariam anos perseguindo se fosse ideia de vocês mesmos? Além
disso, o trabalho serve a vocês tanto quanto a qualquer um. Aceitá-lo vai salvar sua vida.
– Por quanto tempo você precisaria de nós? – perguntou Locke.
– A eleição acontecerá em seis semanas.
– E quanto a recursos? Roupas, dinheiro, hospedagem...
– Temos identidades completas preparadas para vocês, todos os confortos possíveis e uma grande verba para usar nos negócios.
– Só nos negócios? – perguntou Locke.
– Vocês serão tratados luxuosamente durante seis semanas. O que mais poderiam querer?
– Pelos bagos de Perelandro, um pequeno incentivo para vencer seria bom.
– Incentivo? A vida em si não é um incentivo? Vocês vão estar bem-vestidos, você vai recuperar a saúde e vão estar em uma situação muito favorável para retomar sua...
carreira. Se vencerem, nossa gratidão poderia facilmente se estender a ponto de oferecermos um transporte confortável para a cidade que vocês escolherem.
– E se perdermos?
– Vocês não podem esperar que recompensemos o fracasso. Ainda estarão livres para ir embora, mas farão isso a pé.
– Só posso responder por mim – disse Locke, e o coração de Jean se encolheu. – Eu falei sério. Não faço ideia de quais são todos os seus poderes. Não confio em você.
Não confio nessa situação e não tenho nenhuma chance razoável de me vingar se você estiver mentindo. Se você não está sendo sincera, isto é uma armadilha; se está,
isto é uma espécie bizarra de trepada por pena.
– E todos os anos que você poderia ter pela frente? Todas as coisas que ainda não fez?
– Me poupe. Você não é minha mãe. Se Jean aceitar o serviço, você não vai encontrar um homem melhor em lugar nenhum. Ele pode fazer qualquer coisa que eu poderia
e se mantém inteiro melhor. Obrigado por ter vindo até aqui me divertir, mas me deixe em paz.
– Espere aí... – começou Jean.
– Estou desapontada – falou Paciência. – Eu imaginava que você tinha pelo menos mais um motivo pelo qual viver. Você pode dizer honestamente que nunca teve esperança
de reencontrar Sabeta, em algum lugar no...
– Vá se foder – rosnou Locke. – Não me importa o que você acha que sabe. Esse é um assunto do qual você não pode presumir nada.
– Como quiser. – Paciência flexionou a mão direita e Jean notou o brilho do fio de prata entre os dentes. – Parece que desperdicei nosso tempo. Devo esperá-lo em
Kartane quando seu amigo estiver morto, Jean?
– Espere! – exclamou Jean. – Paciência, por favor, me dê um tempo para conversar com ele. Em particular.
Paciência assentiu rapidamente e moveu os dedos da mão direita. O brilho prateado de sua cama de gato se alterou. Jean piscou e, nesse instante, fio e mulher desapareceram
no ar.
– Fantástico – disse Jean. – Magnífico pra caralho. Acho que você enfim conseguiu mesmo deixá-la puta da vida.
– É bom saber que ainda levo jeito.
– Você realmente perdeu a droga da cabeça? Ela poderia salvar sua vida.
– Ela poderia fazer um monte de coisas.
– Aproveite a chance, Locke.
– Ela está aprontando alguma coisa.
– Que revelação! Que dedução espantosa! Desculpe, mas me lembre de novo quais são suas opções.
– Ela quer alguma coisa de mim, maldição, mais do que está revelando! Mas ela já tem tudo que pode tirar de você, não é? Você mesmo disse isso. Se ela quiser pegar
você, vai pegar. Mas, se ela agir certo com você, você estará numa posição forte para seguir em frente.
– A coisa funciona para nós dois.
– Não vou ser brinquedinho daquela bruxa. Nem por todo o dinheiro de Kartane. Ela não é humana. Nenhum deles é.
Jean encarou-o, irritado e com frieza. Coberto com a capa de Paciência, Locke tinha um aspecto louco incongruente com o fino tecido impermeável. Um animal acuado,
preparando-se para morrer, encolhido sob um material delicado que valia vários anos da vida de um trabalhador hábil. Os brancos de seus olhos estavam ficando rosados.
– Paciência estava certa – disse Jean baixinho. – Ela desperdiçou nosso tempo. Você vai morrer sufocado no próprio sangue. Hoje. Amanhã. Não importa. E você vai
estar muito feliz consigo mesmo. Porque, de algum modo, morrer se tornou uma realização.
– Jean, espere...
– Espere, espere, espere.
Os ressentimentos e as frustrações das últimas semanas pareceram borbulhar enquanto Jean falava. O antigo temperamento familiar, estalando como uma corda esgarçada
até restar apenas um fio, a fúria parecendo uma pressão quente embaixo da pele, pulsando do crânio às pontas dos dedos. Porém, era pior do que o usual, porque não
havia nada em que ele pudesse bater. Zodesti, Cortessa... Jean teria partido os ossos deles como se fossem cerâmica mal cozida. Até Paciência – ela atacaria seu
pescoço, desafiaria sua feitiçaria. Mas, com Locke, estava limitado às palavras, por isso pesou-as com escárnio e disparou:
– O que, diabos, eu fiz além de esperar? Esperar no barco para ver se você adoecia. Esperar aqui, semana após semana, olhando você piorar. Dia e noite, perseguindo
qualquer esperança que esta porra de cidade poderia oferecer, enquanto você...
– Jean, eu estou falando, todos os meus instintos dizem que isso é armação.
– Não brinca! E, como sabemos que eles pretendem nos usar, por que não podemos usá-los também, para tudo o que pudermos arrancar do acordo?
– Desista de mim, Jean. Deixe-me ir e a diversão deles desaparece. Então eles terão muito menos motivos para serem falsos com você.
– Ah, maravilhoso. Maravilhoso pra caralho. Você vai estar morto e eles vão sofrer uma inconveniência. Talvez até fiquem ligeiramente desapontados. Que troca valiosa!
Igual a cortar a própria garganta antes que o oponente possa tomar uma peça no Pegar o Duque.
– Mas...
– Cale a boca. Cale-se. Sabe, quando está saudável, você gargalha na cara dos deuses. Mas, quando está convalescendo, doce inferno, você é um sacana miserável.
– Eu sempre admiti...
– Não. Você nunca admitiu isso. Você não fica parado, Locke. Em Tal Verrar, quando falamos sobre nos aposentarmos com o dinheiro, eu concordei, mas aquilo era papo
furado e nós dois sabíamos. Você não se aposenta. Você nem tira férias. Você parte de um esquema para outro, pulando feito uma aranha numa frigideira quente. E,
quando é obrigado a parar, quando não existem mil coisas acontecendo para distraí-lo de seus próprios pensamentos, você sente vontade de morrer. Vejo isso agora.
Sou tão desgraçadamente lento e idiota que só percebi isso agora pela primeira vez!
– De que diabo você está falando?
– Você e eu, no barco, depois de incendiarmos o refúgio de vidro. Depois de matarmos o assassino do Pulga. Você lembra sobre o que conversamos? Como você estava?
E em Vel Virazzo. Você tentou acabar com o trabalho do Rei Cinza se afogando em vinho. Agora isso. Você não é só mal-humorado quando fica doente, Locke, você tem...
Olha, isso se chama Endliktgelaben. É uma palavra em alto vadrã. Aprendi isso durante os estudos como iniciado de Aza Guilla. Significa... é... amor pela morte,
desejo de morrer. É difícil traduzir. Existem situações em que você quer se destruir absolutamente. Não se trata de uma ideia preguiçosa, de autopiedade. Mas uma
certeza!
– Pelo amor de Perelandro, Jean, eu não iria querer isso se tivesse a porra de uma chance!
– Você não quer isso aqui – retrucou Jean, apontando para a própria cabeça. – Você quer em algum lugar mais fundo, tão fundo que não reconhece. Você acha que tem
alguma desculpa lógica, nobre, para mandar Paciência porta afora. Mas na verdade é essa escuridão por dentro, tentando foder com você de uma vez por todas. Alguma
coisa o apavorou a ponto de você ver tudo pelo avesso.
– O que é, então? Se você é tão inteligente, o que é?
– Não sei. Talvez Paciência consiga ler pensamentos como um livro. Eu, não! Mas posso dizer de que diabos eu estou com medo. De ficar sozinho. De ser o último de
nós de pé, só porque você é um covarde egoísta e teimoso.
– Isso não é justo – chiou Locke.
– Não, não é. Muitas pessoas boas morreram para trazer você até aqui. Se continuar com essa merda, você vai se encontrar com elas daqui a pouco. O que vai dizer
a Calo, Galdo e Pulga? A Correntes? A Nazca? – Jean se inclinou e praticamente sussurrou as palavras seguintes: – O que vai dizer à mulher que eu amei? À mulher
que queimou para que você tivesse a mínima chance de ao menos estar aqui, para começo de conversa?
Toda a cor fraca que restava no rosto de Locke havia se esvaído; ele moveu os lábios, mas pareceu incapaz de convencer alguma palavra a passar pela garganta.
– Se eu consigo me levantar e viver cada maldito dia, você também pode, seu filho da puta. – Jean se afastou da cama. – Vou lá para fora. Faça sua escolha.
– Jean... chame-a de volta.
– Você só está sendo condescendente?
– Não. Por favor. Chame Paciência de volta.
– Você está com vergonha?
– Estou! Estou, como poderia não estar, seu escroto?
– E você vai seguir em frente? Independentemente do que seja necessário, do que Paciência exija para manter você vivo?
– Traga-a de volta para o quarto. Traga! Pelos deuses, eu preciso que ela me conserte para que eu possa socar suas tripas até virarem sopa.
– Esse é o espírito. Paciência! – gritou Jean, virando-se para a porta do apartamento. – Paciência! Você está...
– É claro.
Jean se virou. Ela já estava no quarto, parada atrás dele.
– Eu não disse que ia para longe – falou ela, respondendo a sua pergunta antes que ela fosse feita. – Vocês dois aceitam?
– É, aceitamos...
– Haverá algumas condições – interrompeu Locke.
– Maldição, Locke – praguejou Jean.
– Confie em mim. – Locke tossiu e encarou Paciência. – Primeiro, quero que fique claro que nossa obrigação para com você começa e termina com essa eleição. É o nosso
lado do acordo. Sem surpresas ocultas. Sem babaquice de mago, sem traições nem duplicidades.
– Como assim? – perguntou Paciência.
– Você me ouviu. – A voz de Locke ainda estava rouca, mas, para Jean, parecia infundida de uma força genuína. Ou de raiva, o que era igualmente bom, por enquanto.
– Não quero um de vocês saindo do meu cu daqui a cinco anos e sugerindo que ainda estou no anzol porque minha vida foi poupada. Quero ouvir isso de você, cara a
cara. Assim que o trabalho se encerrar, não vamos dever merda nenhuma a vocês.
– Como você consegue transformar insolência em uma arte elevada! – exclamou Paciência. – Se esse é o jogo que você acha que precisa jogar, tudo bem. Serviço em troca
de serviço e uma separação limpa, como eu disse.
– Ótimo. E quero outro privilégio também.
– Nosso lado da barganha já é excepcionalmente generoso.
– Com quem você acha que está regateando, com a porra de um vendedor de tortas? Se você prefere perder sua eleição...
– Diga qual é o pedido.
– Respostas. Quero respostas para cada pergunta que eu fizer, quando eu fizer, do melhor modo que você puder responder. Não quero que abane as mãos e me venha com
qualquer papo furado sobre como tudo é fantástico, terrível e incompreensível.
– Que perguntas?
– Qualquer coisa. Magia, Kartane, você mesma, o Falcoeiro. Qualquer coisa que me venha à mente. Estou cansado dessa porcaria de dança de sombras que vocês chamam
de conversa. Se vou trabalhar para você, quero que me explique algumas coisas.
Paciência pensou nisso durante algum tempo.
– Eu tenho uma vida particular e uma vida profissional – comentou por fim. – Posso estar preparada para discutir essa última. Se você não respeitar a primeira, vai
sofrer... consequências.
– Está bom. – Locke enxugou a boca com a manga da túnica, acrescentando sangue novo a manchas antigas. – Certo, Jean, você ainda quer o trabalho?
– Quero.
– Ótimo. Eu também quero. Você nos contratou, Paciência. Agora faça sua parte. Tire esta merda de mim.
– Não posso trabalhar aqui. Vamos precisar nos mover, e depressa. Um navio está esperando no cais para nos levar ao outro lado do Amatel; tudo de que preciso está
a bordo.
– Certo – concordou Jean. – Vou chamar uma...
Paciência estalou os dedos e a porta exterior se abriu. Uma carruagem estava na rua, com as lâmpadas amarelas brilhando fracas em meio a um chuvisco, seu quarteto
de cavalos parado em prontidão silenciosa.
– Isso é que é ser teatral – disse Locke.
– Já perdemos tempo suficiente domando seu orgulho, Locke. Precisamos de cada instante possível para você sobreviver ao que vem em seguida.
– Espere aí – reagiu Jean. – O que você quer dizer com “sobreviver ao que vem em seguida”?
– Em parte, é minha culpa. Eu demorei a abordar vocês. Deveria ter feito isso antes que você tivesse a chance de começar a sequestrar galenos. Agora a situação de
Locke está pior do que precária, e isso já seria bem difícil com alguém em saúde perfeita.
– Mas você...
– Fique frio, Jean, é o mesmo tipo de venda que nós fazemos – disse Locke. – Primeiro, promessas espantosas, depois senões importantes. Vá em frente, Paciência.
Faça o pior que puder. Estou irritado a ponto de aguentar qualquer feitiçaria que você jogar em mim.
– Jean deve ter dito alguma coisa muito interessante para envergonhá-lo a ponto de você reencontrar a coragem. – Paciência bateu palmas e dois homens altos entraram
pela porta da frente. Usavam chapéus de aba larga e capas de couro preto e carregavam uma maca dobrável. – Mantenha essa vergonha acesa se quiser viver.
Paciência tocou brevemente na testa de Locke, então chamou os cocheiros para colocá-lo na maca. Jean olhou com cautela, mas deixou que eles cuidassem sozinhos do
trabalho, já que pareciam firmes e bastante cuidadosos.
– A única coisa que posso garantir com certeza absoluta – disse Paciência enquanto observava esse processo delicado – é que o que preciso fazer quando chegarmos
ao navio será uma das piores coisas que já aconteceram a você.
i n t e r l ú d i o
O garoto que perseguia vestidos vermelhos
1
– Você ainda está com raiva de mim – disse Correntes.
Não era uma pergunta. A atitude de Locke seria óbvia até para alguém que tivesse a empatia de um tijolo de latrina.
Um dia havia se passado desde a “captura” de Sabeta e, apesar de ter se curado logo dos efeitos de sua queda no jardim, Locke permanecera irritado e carrancudo.
Tinha se recusado peremptoriamente a ajudar a preparar o jantar e a comê-lo e, depois de uma breve tentativa desajeitada de refeição, Correntes enfim levou-o à cobertura
do templo.
Agora estavam sentados ali, sob a aura agonizante da Falsaluz, a hora em que cada centímetro visível do Vidrantigo de Camorr lançava radiância sobrenatural suficiente
para provocar um segundo pôr do sol. Cada ponte, cada avenida e cada torre ganhava uma aura fantasmagórica e, sob o céu azul-aço, a cidade era uma tapeçaria escura
tecida com dez mil pontos reluzentes.
Os parapeitos do jardim descuidado no terraço do templo abrigavam Locke e Correntes de olhares curiosos. Sentaram-se separados por alguns passos em meio a cacos
de cerâmica, encarando-se. Correntes estava dando tragadas com uma frequência incomum em sua folha de tabaco enrolado, as brasas vermelhas chamejando a cada inspiração.
– Olhe para mim – murmurou. – Você me fez fumar o Anacasti Preto. Que só uso nos feriados. Claro que você ainda está com raiva de mim. Você tem uns 7 anos e sua
visão do mundo é desse tamanho.
Correntes estendeu o polegar e o indicador da mão esquerda e a distância entre eles não era generosa. Isso finalmente arrancou Locke do silêncio.
– O que aconteceu não foi justo!
– Justo? Quer dizer que você afirma, de cara limpa, que engole essa heresia, garoto? – Correntes deu uma última tragada longa no charuto agonizante e jogou o resto
no escuro. – Todo mundo em Pegafogo morreu, a não ser você e seus colegas filhotes de lobo. No Morro das Sombras, você evitou a morte por pelo menos dois erros grandiosos
que fariam as bolas de um homem adulto serem descascadas como uvas, e ainda quer falar de...
– Não – interrompeu Locke, com a expressão de irritação indignada mudando instantaneamente para a de embaraço espantado, como se tivesse sido acusado de mijar nas
calças. – Não, não, eu não disse que aquelas coisas foram justas. Eu sei que a vida não é justa. Mas eu pensei... eu pensei... que você era.
– Ah – fez Correntes. – Bom, ora, eu sempre me considerei justo até certo ponto. Olhe, com o que você está mais chateado, com o fato de que eu menti sobre o que
precisava acontecer com Sabeta ou o fato de que a disputa que eu criei não foi, ahn... tão aberta à improvisação quanto você poderia desejar?
– Não sei. As duas coisas! Tudo!
– Locke, você pode ser novo demais para a retórica formal, mas pelo menos precisa tentar separar seus problemas e explicá-los pedaço por pedaço. Bom, aqui vai outra
pergunta importante: você se sente confortável neste templo?
– Sim!
– Você come bem e dorme bem. Suas roupas são limpas, você tem muitas distrações e até toma banho uma vez por semana.
– É. É, eu gosto muito, vale a pena até ser obrigado a tomar banho!
– Humm. Se você viver o suficiente para seus bagos descerem, me diga se tomar banho é mesmo uma coisa tão difícil quando as mulheres perto de você tiverem peitos
mais do que teóricos.
– O quê? Quando os meus o quê?
– Deixe pra lá. Esse assunto já será suficientemente confuso no seu tempo apropriado. Portanto, você gosta daqui. Está confortável, está protegido. Eu me comportei
mal? Tratei você como você era tratado no Morro das Sombras?
– Bom, não... não, de jeito nenhum.
– Mas nada disso me garante consideração pelo que aconteceu ontem à noite? Nenhuma migalha de confiança? Um único instante de benefício da dúvida?
– Eu, ahn, bom, não é... ahn, bosta. – Locke fez uma tentativa desesperada de ser eloquente, em vão, como sempre. – Não quero dizer... não é que eu não me sinta
agradecido...
– Calma, Locke, calma. Só porque você é meio grosseiro não significa que não tenha razão. Mas ouça agora: esta casa onde nós moramos é pequena. O templo pode parecer
maravilhoso comparado com vida e morte em meio a amontoados de pessoas, mas acredite: as paredes espremem quem vive dentro delas, cedo ou tarde.
– Elas não me incomodam – disse Locke rapidamente.
– Mas não são tanto as paredes, Locke, são as pessoas. Este vai ser o seu lar por muitos anos, se os deuses quiserem, e você, Sabeta e os Sanzas vão se tornar tão
próximos quanto uma família. Vão provocar fagulhas uns nos outros. Você não pode enfiar o polegar no cu e fazer a melhor imitação de uma parede de tijolos a cada
vez que ficar chateado. Que o Guardião Torto nos ajude, nós precisamos estar prontos e dispostos a conversar, caso contrário vamos acordar com a garganta cortada
cedo ou tarde.
– Eu... Desculpe.
– Não baixe a cabeça como um cachorrinho chutado. Só pense nisso. Se você vai viver aqui, manter-se bem-educado é um dever tanto quanto sentar-se na escadaria ou
lavar os pratos. Agora, enquanto eu desfruto do brilho de mais um sermão feito com a precisão de um mestre esgrimista, guarde seus aplausos e vamos voltar a ontem
à noite. Você está chateado porque a situação foi criada para lhe dar apenas um meio verdadeiro de resolvê-la, sem levar em conta se enroscar e chorar até entrar
em estupor.
– É! Se eles fossem guardas de verdade, não seria daquela forma. Se não estivessem... você sabe, me esperando.
– Você está certo. Se aqueles homens fossem agentes verdadeiros do Duque, alguns poderiam ser incompetentes ou estar abertos ao suborno, e talvez não levassem muito
a sério o serviço de vigiar uma menina. Correto?
– Ahn, é.
– Claro, se eles fossem agentes verdadeiros do Duque, também poderiam tê-la levado a algum lugar realmente inexpugnável, como o Palácio da Paciência. E, em vez de
seis, quem sabe fossem doze, ou vinte, ou toda a Companhia Vidronoite, rondando as ruas para ter uma conversa pessoal e urgente com você. – Correntes se inclinou
para a frente e cutucou a testa de Locke. – É assim que a sorte funciona, garoto. Pode tagarelar o quanto quiser sobre como as coisas poderiam ser mais favoráveis
para você, mas tenha certeza de que as coisas sempre podem ser piores. Sempre. Entendeu?
– Acho que sim – respondeu Locke, com o tom neutro de um aluno aceitando cautelosamente as afirmações do professor sobre algo que está muito além de sua verificação
pessoal, como o número de anjos que poderiam jogar handebol na borda de uma pétala de rosa.
– Bom, se eu conseguir fazer com que você pense nisso, é uma espécie de vitória, na sua idade. Sem ofensa. – Correntes estalou os nós dos dedos antes de continuar:
– Afinal de contas, você prometeu publicamente nunca mais perder, o que é quase tão provável quanto eu aprender a cagar barras de ouro na hora que quiser.
– Mas...
– Deixe pra lá. Conheço o seu temperamento, garoto, e sou sábio demais para tentar lhe dar mais do que algumas cutucadas de cada vez. Então, a outra coisa: você
está chateado porque eu menti sobre o que precisava ser feito com Sabeta.
– Bom, é.
– Você sente alguma coisa por ela.
– Eu... eu não, é...
– Pare. Isso é importante. Você sente alguma coisa por ela. Há algo mais aí do que um pequeno orgulho ferido. Você pode falar sobre isso?
Lentamente, de má vontade, mesmo querendo se levantar e sair correndo, Locke conseguiu se esforçar para dar a Correntes o melhor resumo de seu primeiro encontro
com Sabeta e do desaparecimento dela mais tarde.
– Diabos – praguejou Correntes baixinho ao término da história. O céu e a cidade haviam escurecido enquanto Locke tropeçava com a explicação. – Vejo por que você
desmoronou quando esse tapete foi puxado pela segunda vez. Desculpe, Locke, eu honestamente não sabia dos seus sentimentos por ela no Morro das Sombras.
– Tudo bem – murmurou Locke.
– Acho que você tem uma paixonite.
– Tenho?
Locke tinha uma vaga ideia do que significava a palavra e, de algum modo, ela não parecia certa. Não parecia suficiente.
– Não é para tirar a importância dos seus sentimentos, garoto. Uma paixonite pode ser forte e ardente como uma febre. Sei exatamente como é. Vão se passar anos até
que seu corpo esteja ao menos preparado para, ahn, para o que acontece entre homens e mulheres, mas uma paixonite não se importa com isso. Ela tem poder próprio.
Essa é a má notícia.
– E a boa?
– As paixonites passam. Isso é tão certo quanto você e eu estarmos sentados aqui. São como fagulhas lançadas de uma fogueira: quentes e brilhantes num momento, depois
somem.
Locke franziu a testa, sem ter certeza de que desejava ser libertado dos sentimentos por Sabeta. Eles eram um feixe de mistérios e cada tentativa de decifrá-los
parecia provocar um tremor morno e agradável em cada nervo de seu corpo.
– Humm. Você não acredita em mim ou não quer acreditar. É justo. Mas você vai viver com Sabeta dia sim, dia não, em todo o tempo em que um de vocês não estiver fora,
em treinamento. Acho que daqui a alguns anos ela será como uma irmã para você. A familiaridade tem o dom de aparar as arestas do que sentimos pelas outras pessoas.
Você vai ver.
2
O tempo passou, dias e meses se encadeando para formar anos, e Jean Tannen juntou-se aos Nobres Vigaristas. No verão do Septuagésimo Sétimo Ano de Perelandro, dois
anos depois da chegada de Jean, um raro período seco baixou sobre a cidade-estado de Camorr, e o Angevino corria 3 metros abaixo da altura usual. Os canais ficaram
cinzentos e túrgidos, densos como sangue nas veias de um cadáver que apodrecia.
As árvores dos canais, aquelas gloriosas artificialidades que em geral percorriam as correntes da cidade redemoinhando com suas longas raízes flutuantes bebendo
a imundície ao redor, agora balouçavam em massas sombrias, confinadas ao rio e ao Mercado Flutuante. Suas folhas brilhantes como seda ficavam opacas e os galhos
tombavam; as raízes pendiam frouxas na água como tentáculos de monstros marinhos mortos. Dia após dia, o Bairro dos Templos era amortalhado em camadas de fumaça
à medida que cada denominação queimava qualquer coisa que lhe vinha à mente em sacrifícios, implorando uma chuva forte e purificante que não vinha.
No Caldeirão e na Borra, onde os mais miseráveis dormiam em casas sem janelas com dez pessoas em cada cômodo, o fluxo constante de assassinatos virou uma torrente.
Os caçadores de cadáveres do Duque, pagos por cabeça, assobiavam enquanto pescavam ex-cidadãos putrefatos em barris e fossas. Os criminosos profissionais da cidade,
mais conscienciosos do que os matadores impulsivos, contribuíam com o ar de Camorr jogando os restos das vítimas no porto à noite, onde os predadores do Mar de Ferro
faziam as oferendas desaparecerem silenciosamente.
Nessa atmosfera, na tarde quente de verão carregada com fumaça e o fedor de uma centena de putrefações diferentes, o terraço do templo estava fora de questão para
as reuniões, por isso Correntes deixou seus cinco jovens guardas se reunirem no frescor úmido da cozinha do refúgio de vidro. Suas refeições recentes, por ordem
do Sacerdote Cego, haviam sido mornas, com qualquer coisa cozida das barracas perto do Mercado Flutuante.
Tinham se reunido naquela semana, como um grupo completo, pela primeira vez em meio ano. Os programas de treinamento entrelaçados impostos por Correntes haviam assumido
a complexidade de um número de malabarismo com pratos giratórios: os jovens pupilos eram levados e trazidos de aprendizados em vários templos e profissões, aprendendo
os hábitos, os jargões, os rituais e as curiosidades. Essas excursões eram arranjadas pelo Sacerdote Cego por meio de uma notável rede de contatos, estendendo-se
muito além de Camorr e da fraternidade criminosa, e eram pagas, na maior parte, com a pequena fortuna que os cidadãos camorris lhes haviam doado, caridosamente,
no correr dos anos.
O tempo começara a provocar suas mudanças mais óbvias nos jovens Nobres Vigaristas. Calo e Galdo estavam enfrentando um estirão de crescimento que dera à sua graça
usual uma dose humilhante de falta de jeito, e suas vozes começavam a falhar loucamente. Jean ainda parecia um querubim, mas seus ombros iam se alargando e, desde
entreveros como a Guerra dos Meias-Coroas, adquirira o ar confiante de alguém bem versado na arte de apresentar rostos às pedras do calçamento.
Dados esses sinais evidentes de progresso físico ao redor, Locke estava secretamente insatisfeito com a própria condição. Sua voz ainda não tinha ficado grave e,
apesar de estar maior do que nunca, a relação de tamanho continuava a mesma, uma criança mediana cercada de todos os lados por outras mais altas e mais largas. E,
mesmo sabendo que os demais dependiam dele por ser o coração e o cérebro das operações conjuntas, sentia o bem-estar arrefecer quando Sabeta chegava em casa.
Sabeta jamais demonstrara incômodo com o fato de ser a única Nobre Vigarista do sexo feminino. Ela tinha acabado de retornar de semanas de treinamento imersivo como
aprendiz de escrivã da corte e também apresentava novos sinais de progresso físico. Estava mais alta ainda do que Locke e a cor natural do cabelo bem trançado permanecia
escondida por uma tintura castanha alquímica. Sua figura esguia parecia pressionar para fora, muito ligeiramente, a frente da blusa fina e seus movimentos no refúgio
de vidro haviam revelado, para os vigilantes olhos de Locke, as sugestões de outras curvas emergentes.
Sua postura natural tinha crescido em proporção direta com a idade e, ainda que Locke tivesse uma firme influência sobre os outros três garotos, Sabeta era um poder
separado, nem diminuindo o status dele na gangue nem o reconhecendo às claras. Havia nela uma seriedade que Locke achava profundamente fascinante, talvez porque
fosse única entre os cinco. Sabeta tinha embarcado numa espécie de miniatura de vida adulta e passara ao largo da louca zombaria que definia, por exemplo, os Sanzas.
Parecia a Locke que ela estava mais ansiosa do que os outros para ir aonde quer que o treinamento os levasse.
– Jovem dama – disse o Padre Correntes ao entrar na cozinha – e jovens cavalheiros, por assim dizer. Obrigado por atenderem prontamente à minha convocação, cortesia
que agora pagarei colocando-os num caminho de frustração e acrimônia. Decidi que vocês cinco não lutam o suficiente entre si.
– Perdão – retrucou Sabeta –, mas, se você olhar com mais atenção para Calo e Galdo, vai ver que não é bem assim.
– Ah, isso é apenas comunicação – replicou Correntes. – Assim como você e eu falamos formando frases, o discurso natural e particular dos Sanzas parece consistir
totalmente de peidos e surras violentas. O que eu quero é vocês cinco enfrentando uns aos outros.
– Você quer que a gente comece... a bater uns nos outros? – perguntou Locke.
– Ah, eu me ofereço para bater em Sabeta – disse Calo – e me ofereço para apanhar do Locke!
– Eu também me ofereço para apanhar do Locke – acrescentou Galdo.
– Quietos, seus macacos de beco com cérebro de nabo – reagiu Correntes. – Não quero vocês lutando boxe uns com os outros. Não necessariamente. Não, eu dei a todos
vocês um grande número de tarefas que os colocaram contra o mundo, como indivíduos e em grupo, e na maior parte das vezes vocês superaram minhas expectativas. Acho
que chegou a hora de arrancá-los de sua uniãozinha confortável e ver como se saem numa competição uns contra os outros.
– Que tipo de competição? – perguntou Jean.
– Uma competição extremamente divertida. – Correntes arqueou as sobrancelhas. – Segundo a perspectiva do velho que fica sentado olhando. A maioria de vocês já tem
três ou quatro anos de treino constante, e quero ver o que acontece quando cada um tenta colocar em prática o talento para o empreendimento criminoso contra um oponente
que tenha formação semelhante.
– Então, ahn, só para ficar claro, nenhum de nós vai lutar contra o Jean? – indagou Calo.
– A não ser que vocês sejam inconcebivelmente idiotas.
– Certo. Qual é o plano?
– Vou manter todos vocês aqui pelo resto do verão. Será uma folga com relação aos períodos de aprendizado. Podemos aproveitar juntos o clima maravilhoso e vocês
podem perseguir uns aos outros pela cidade. A começar por... – Ele levantou um dedo e apontou para Locke – ... você. Eeeeeee... – ele moveu o dedo devagar até apontar
para Sabeta – ... você!
– Ahn, isso quer dizer o quê? – perguntou Locke.
Seu estômago ficou cheio de borboletas no mesmo instante e as pequenas patifes estavam fortemente armadas.
– Um pouco de perseguição e evasão elementar, na Travessa dos Beija-Moedas. Amanhã ao meio-dia.
– Cercados por centenas de pessoas – completou Sabeta friamente.
– Isso mesmo, minha cara. É bastante fácil seguir alguém quando você tem a noite inteira para se esconder. Acho que vocês estão preparados para algo menos fácil.
Você vai começar bem na ponta sul da Travessa dos Beija-Moedas, carregando uma bolsa de mão aberta. Dentro dela, haverá quatro pequenos rolos de seda de cores diferentes.
Facilmente visíveis de 3 ou 4 metros de distância. Você vai dar um passeio tranquilo por toda a extensão do bairro.
Ele fez uma pausa e continuou:
– Em algum lugar, atrás, estará Locke, usando uma jaqueta com certo número de botões de latão; também será fácil contá-los de uma distância relativamente pequena.
O jogo é simples. Locke ganha se puder me dizer as cores das sedas. Sabeta vence se atravessar a Ponte do Vão Dourado desde a travessa até o Bosque Duas Pratas sem
revelá-las. Ela também vence se Locke for desajeitado a ponto de ela ver a quantidade de botões de seu casaco. Cada um de vocês só vai ter uma chance de me procurar
com a resposta, logo não podem ficar adivinhando até acertar.
– Espere aí – disse Locke. – Eu tenho um modo de vencer e ela tem dois?
– Talvez você possa tentar queimar a Ponte do Vão Dourado – falou Sabeta com doçura.
– É, ela tem dois – respondeu Correntes. – E, felizmente para Camorr, a ponte é de pedra. Sabeta tem um pacote para guardar e deve, como eu disse, mover-se tranquilamente,
com dignidade. Sem correr nem escalar. Locke, você não deve fazer nenhuma barbaridade, mas sua liberdade de movimento será menos restrita.
– Ah.
– Vocês não devem se tocar fisicamente. Não podem cobrir a seda ou os botões. Não podem machucar nem conter seu oponente de nenhum modo. Nem pedir ajuda a nenhum
dos outros Nobres Vigaristas.
– Onde a gente vai estar, então? – perguntou Galdo.
– Seguros em casa, sentados nos degraus, no meu lugar.
– Ah, vá se danar, nós queremos ver o que acontece!
– A disputa não precisa de um coro de curiosos acompanhando o tempo todo. Eu vou estar por perto, vigiando tudo, e garanto que vou fazer um relato muito animado
depois de voltar. Agora... – Ele pegou duas pequenas bolsas de couro e jogou-as para Locke e Sabeta. – Suas verbas operacionais.
Locke abriu sua bolsa e contou 7 sólons de prata.
– Vocês têm toda a noite para pensar no que vão fazer – afirmou Correntes. – Podem ir e vir como quiserem. Não se sintam compelidos a comprar nada, mas, se o fizerem,
as moedas que lhes dei são o limite absoluto.
– Para que tudo isso? – perguntou Locke.
– Para colocar vocês na berlinda e, com isso...
– Acho que ele quis perguntar: o que o vencedor ganha com isso? – interveio Sabeta.
– Ah – fez Correntes. – Claro. Bom, além de adquirir um vasto sentimento de satisfação pessoal, o vencedor vai passar as tarefas do jantar para o perdedor durante
três noites. O que acham?
Locke observou Sabeta e, quando ela assentiu, ele fez o mesmo. A garota já parecia perdida em pensamentos e Locke sentiu uma leve apreensão por baixo da crescente
empolgação. Tinha toda a confiança em suas habilidades, já que lhe haviam garantido tudo sem muita dificuldade, desde bolsas de moedas até cadáveres, mas desconhecia
todo o alcance da capacidade de Sabeta. As ausências dela do templo tinham sido mais longas do que as de qualquer um dos garotos, e no mundo lá fora ela podia ter
aprendido uma variedade infinita de surpresas malignas.
3
Sabeta pediu licença alguns minutos mais tarde e sumiu na noite, para fazer quaisquer arranjos que achasse necessários. Locke saiu logo depois, vestindo os mantos
brancos de iniciado de Perelandro, mas, quando chegou ao ar quente e enfumaçado da praça central do Bairro dos Templos, ela já havia desaparecido nas sombras. Será
que estaria aguardando ali fora, vigiando, esperando segui-lo e descobrir o que ele estava aprontando? A ideia o fez parar brevemente, mas o fato infeliz era que
ele não tinha nenhum plano, logo não importava se ela iria atrás dele.
Na falta de ideias melhores, decidiu percorrer a Travessa dos Beija-Moedas e refrescar a memória com relação aos marcos do bairro.
Foi andando a passos rápidos, os dedos entrelaçados dentro das mangas do manto, refletindo. Confiava que seu disfarce clerical iria lhe abrigar de qualquer inconveniência
ou mal (já que permanecia em bairros melhores) e, assim, foi tomado pelo redemoinho dos próprios pensamentos enquanto os pés o carregavam duas vezes por toda a extensão
da travessa.
As grandes casas de contabilidade ficavam fechadas durante a noite, os bares e cafés estavam praticamente vazios e o canal fétido tinha pouco do seu tráfego usual
de divertimento bêbado. Locke olhou os monumentos, as pontes e as longas praças desertas, mas nenhuma nova inspiração caiu do céu. Quando voltou para casa, um tanto
desencorajado, Sabeta ainda não retornara.
Caiu no sono ainda esperando ouvi-la chegar pelo túnel de vidro que vinha do templo acima.
4
Ao meio-dia, a Travessa dos Beija-Moedas estava num calor insuportável sob o sol de bronze derretido, mas as classes superiores de Camorr tinham fortunas e aparências
a manter. As praças vazias da noite anterior haviam se tornado um cortejo de multidões vestidas com exagero, às quais Locke e Sabeta se preparavam para se juntar.
– Eu lhes dou o campo em que os dois travarão sua portentosa batalha, de onde um sairá vencedor e o outro acabará com a louça.
Correntes ascendia às alturas implacáveis da moda trajando uma casaca de veludo preto e um gibão cravejado de pérolas, e três cintos com fivelas de prata lhe apertavam
a barriga. Usava um chapéu preto de aba larga por cima de uma peruca castanha encaracolada e tinha suor suficiente escorrendo pelo rosto para encher pelo menos um
canal da cidade.
Locke estava vestido de modo muito mais confortável, com um gibão branco e simples, calções pretos e sapatos respeitáveis. Correntes ficaria segurando a jaqueta
de Locke com os tais botões até que Sabeta recebesse a ordem de se afastar. Ela usava um vestido de linho e uma jaqueta simples, ambos de um vermelho meio escuro,
quase cor de canela. O cabelo e o rosto estavam escondidos sob um chapéu de quatro bicos com véus cinza pendentes – uma moda que logo voltara em meio ao calor e
ao fedor das últimas semanas. Correntes estudara essas roupas com cuidado e as aprovara. Locke e Sabeta poderiam passar por serviçais vestidos de forma moderada
ou por crianças ricas vestidas de maneira indolente, assim conseguiriam realizar o jogo sem suspeitas e sem interferência, desde que se comportassem.
– Bom, a luz do dia está ardendo – disse Correntes, ajoelhando-se e puxando as duas crianças. – Estão prontos?
– Claro – respondeu Sabeta.
Locke apenas assentiu.
– A jovem dama primeiro. Vantagem de vinte segundos, depois descubra a bolsa como combinamos. Eu estarei andando pela multidão ao lado de vocês, vigiando seu desempenho
como um deus implacável. Qualquer trapaça será tratada de modo meticulosamente memorável. Vão, vão, vão.
Correntes segurou com força o braço de Locke enquanto Sabeta entrava na multidão. Depois de alguns instantes, ele girou Locke, levantou seus braços e colocou a jaqueta.
Locke passou os dedos pela lapela direita, contando seis botões.
– Eu estico meu braço e lanço você no ar. – Correntes deu um leve empurrão em Locke. – Agora cace e vejamos se você é um falcão ou um periquito.
Locke deixou que o empurrão o conduzisse para o fluxo dos pedestres. Sua posição inicial parecia boa. Sabeta estava a cerca de 30 metros, indo para o norte, e era
difícil não ver seu vestido cor de canela. Além disso, Locke não podia deixar de notar que os clientes da Travessa dos Beija-Moedas formavam uma multidão ideal para
esse tipo de trabalho, tendendo a se mover em pequenos grupos autocentrados e não num caos mais esparso. Ele estaria perseguindo Sabeta por trilhas estreitas que
iriam se abrir e se fechar temporariamente ao redor dela e, mesmo se a garota fizesse um bom tempo, não era provável que pudesse se esconder num piscar de olhos.
Mesmo assim, Locke estava tão inquieto quanto empolgado, sentindo-se muito mais periquito do que falcão. Não tinha nenhum plano além de confiar na habilidade e nas
circunstâncias, enquanto Sabeta poderia ter arranjado qualquer coisa... Ou será que havia sumido na noite durante algumas horas vazias só para fazê-lo pensar que
poderia ter arranjado?
– Argh – murmurou enojado, pelo menos sensato o bastante para reconhecer o perigo de entrar em pânico antes mesmo que Sabeta agisse.
Nos primeiros minutos da perseguição, nada aconteceu, mas foram momentos de tensão. Locke conseguiu diminuir a distância em alguns passos, o que não era pouco, considerando
as pernas mais compridas de Sabeta. Enquanto se movia, as conversas peculiares da rua o envolveram de todos os lados. Homens e mulheres falavam sobre seus sindicatos
profissionais, navios de partida ou que deveriam retornar, escândalos, o clima. Na verdade, não era muito diferente dos papos nos bairros inferiores, exceto pelo
maior número de referências a coisas como taxas de juros compostos. E sempre havia quem falasse sobre handebol e sobre quem estava comendo quem.
Locke se apressou em meio ao barulho. Sabeta podia até ter notado que ele se aproximava furtivamente, mas não acelerou o passo. Talvez nem conseguisse se apressar,
pelo menos enquanto se mantinha “digna”, mas aqui e ali dava um passo de lado, movendo-se aos poucos cada vez mais para longe do lado do canal e mais para perto
dos degraus das casas de contabilidade, à esquerda de Locke.
Às vezes Locke podia ver a bolsa, pendurada de modo casual no ombro direito, e parecia que, com gestos bem inocentes, ela conseguia mantê-la mais à frente do quadril
direito, convenientemente fora de vista. Qual era o jogo, então? Sem usar os braços ou as mãos para esconder a fileira de botões, Locke garantia que suas várias
curvas no meio da multidão sempre fossem feitas com o ombro esquerdo virado para a frente.
Se Correntes – de vez em quando visível como uma grande forma espreitando em algum lugar à direita de Locke – tinha alguma objeção a essa leve quebra das regras,
ainda não estava pulando da multidão para acabar com a disputa. Forçando a vista, Locke olhou ao redor por alguns segundos, em busca de algo inesperado, então voltou
a fitar Sabeta bem a tempo de pegá-la provocando uma agitação.
Com uma falsidade ágil que, para o olho treinado de Locke, foi bem aparente, Sabeta “tropeçou” num mercador enorme, ricocheteando um pouco nos gigantescos hemisférios
de seu traseiro envolto em seda. Enquanto o homem girava, Sabeta já se virava de perfil para Locke – desculpando-se com uma reverência, escondendo a bolsa do outro
lado do corpo e espiando diretamente Locke por baixo dos véus. Prevenido, ele se virou ao mesmo tempo que ela, dando-lhe uma bela visão de seu lado esquerdo sem
botões e fingindo examinar alguma coisa terrivelmente importante à direita. Empate perfeito.
Locke estava longe demais para ouvir o que Sabeta disse ao mercador gordo, mas suas palavras provocaram rápida satisfação e ela andou correndo de novo para o norte
antes que ele ao menos se voltasse mais uma vez. Locke a acompanhou no mesmo instante, ruborizado com muito mais do que o calor insuportável do dia. Percebeu que
haviam coberto quase metade da área sul da Travessa dos Beija-Moedas; um quarto do campo de jogo já fora percorrido. Pior ainda, notou que Sabeta estaria sendo indulgente
se ao menos se incomodasse em contar seus botões. Tudo o que ela precisava fazer de verdade era mantê-lo bloqueado até que pudesse atravessar a última ponte até
o Bosque Duas Pratas.
Ela continuou se desviando para a esquerda, cada vez mais perto de uma alta casa de contabilidade, uma estrutura com muitas empenas e colunas quadradas na frente,
esculpidas com dezenas de representações diferentes do rotundo Gandolo, Preenchedor de Cofres, deus do comércio. Sabeta subiu os degraus do prédio e se escondeu
atrás de uma coluna.
Outra armadilha para tentar espiar sua jaqueta? Bastante alerta, mantendo cuidadosamente os preciosos botões afastados da última posição conhecida de Sabeta, ele
foi às pressas na direção das colunas. Será que ela estaria tentando chegar ao interior da casa de contabilidade? Não, ali estava ela...
Duas delas! Duas figuras idênticas saíram ao sol, com vestidos cor de canela, véus escuros e compridos e pequenas bolsas penduradas no ombro direito.
– Ela não pode ter feito isso – sussurrou Locke.
Mas claramente havia feito. Durante a noite, enquanto ele andava para um lado e para o outro pelas ruas escuras, Sabeta arranjara ajuda e um conjunto de roupas iguais.
Ela e seu duplo se afastaram das esculturas do deus gordo, foram para o norte em direção à Ponte das Sete Lanternas, o ponto médio da pequena disputa. Apesar de
todas as oportunidades que ele já tivera na curta vida para estudar cada característica de Sabeta, as duas meninas lhe pareciam exatamente iguais.
– Esperta – disse Locke baixinho.
Devia haver alguma diferença, quem sabe nas bolsas; sem dúvida seriam os elementos mais difíceis de sincronizar nas fantasias.
– Sangue pela chuva! – estrondeou uma voz profunda enquanto Locke entrava de novo na multidão.
Em sua direção, vinha uma procissão de homens usando mantos pretos e cinza que tinham emblemas de martelos cruzados com colheres de pedreiro, o que fazia deles sacerdotes
de Morgante, Pai da Cidade, deus da ordem, das hierarquias e das duras consequências. Ainda que nenhum dos deuses terins fosse chamado de inimigo, Morgante e seus
seguidores eram inegavelmente os menos hospitaleiros com a semi-heresia do Treze Sem Nome. Ele governava os carrascos, policiais e juízes, e nenhum ladrão poria
o pé, por espontânea vontade, em seus templos.
A procissão de mantos pretos, uma dúzia de sacerdotes, empurrava uma carroça aberta onde havia uma jaula de ferro. Um homem magro estava acorrentado de pé lá dentro,
o corpo coberto com talhos vermelhos e úmidos. Atrás, vinha um sacerdote segurando uma vara de madeira que tinha na ponta uma lâmina parecida com uma garra, mais
ou menos do tamanho de um dedo.
– Sangue pela chuva! – berrou de novo o líder dos sacerdotes, e os iniciados atrás dele estenderam cestos para a multidão que passava.
Era um sacrifício móvel, então. Para cada moeda jogada num cesto, o prisioneiro enjaulado recebia outro corte doloroso, porém medido com cuidado. O homem devia ser
um morador do Palácio da Paciência, procurando escapar de alguma coisa (amputação judicial, provavelmente) e oferecendo seu corpo para esse uso cruel. Locke não
tinha mais pensamentos para dedicar ao pobre coitado, já que as duas meninas de vestido vermelho-escuro estavam sumindo do lado esquerdo da procissão. Ele deu uma
volta pelo lado oposto, só para o caso de haver outra emboscada a caminho.
As garotas não se incomodavam com o alvoroço; iam direto para a Ponte das Sete Lanternas e estavam suficientemente perto para que Locke não ousasse diminuir a distância.
Ainda que a ponte tivesse largura para duas carroças passarem sem raspar as rodas, era estreita comparada com a praça; não havia como se esconder nem se desviar
caso as garotas tentassem algo mais esperto. Locke seguiu-as no ritmo delas, como um predador, ficando a uma distância de cerca de 10 metros. A disputa já estava
na metade e ele ainda não ganhara sequer meio metro!
A Ponte das Sete Lanternas era de pedra sólida e simples, sem nenhum brinquedo irritante deixado pelos Ancestres desaparecidos tanto tempo atrás. Os parapeitos eram
baixos e, enquanto Locke movia-se passo a passo subindo o arco suave, teve uma bela vista de dezenas de barcos movendo-se lentamente no canal embaixo – uma vista
que ele ignorou, concentrado como estava nas magras formas vermelhas das suas duas rivais. Não havia tráfego de carroças, então elas se separaram, movendo-se para
lados opostos da ponte. Pararam, cada uma virando o corpo como se estivessem olhando para a água.
– Merda diabos maldição – murmurou Locke, tentando pela primeira vez na vida imitar as longas correntes de palavrões trançadas pelos poucos modelos de comportamento
adulto que ele já tivera. – Macacos mijões de merda.
Qual era o jogo agora? Empacá-lo indefinidamente e deixar que o sol cozinhasse todos? Procurando inspiração, olhou ao redor.
Uma terceira garota com vestido vermelho-canela e véu cinza estava indo diretamente até ele, a menos de 20 metros, justo no ponto em que as pedras da praça encontravam
o início da ponte. O estômago de Locke deu uma cambalhota que seria o ponto alto da carreira de qualquer acrobata da corte.
Deu as costas para a recém-chegada, tentando não parecer espantado demais. Guardião Torto, ele fora idiota em não verificar toda a área em que Sabeta havia pegado
sua primeira isca. E agora, sim, seus olhos não apenas lhe pregavam peças: as duas garotas na frente dele lentamente, calmamente, timidamente esgueiravam-se na sua
direção. Ele estava encurralado numa ponte no centro de um triângulo de vestidos vermelhos cada vez menor. A não ser que corresse feito louco, o que sinalizaria
a Correntes e a Sabeta que ele havia abandonado o personagem e desistido, uma das garotas sem dúvida conseguiria contar seus botões.
Doces deuses, Sabeta o superara antes mesmo que ele acordasse de manhã.
– Ainda não estou acabado – murmurou, examinando desesperadamente a área em busca de alguma distração que pudesse arranjar. – Ainda não, ainda não.
Seu vago desapontamento havia explodido num pânico de perder, encharcado de suor – não, não era meramente de perder, mas de fracassar num grau tão espantoso em sua
primeira disputa contra a garota por quem ele engoliria pregos de ferro incandescente para impressionar. Isso não iria só embaraçá-lo: convenceria Sabeta que ele
era um menininho sem importância. Para sempre.
Por acaso, não foi uma inspiração nova e sutil que o salvou – foram seus antigos reflexos de provocador, os métodos insociáveis e grosseiros que ele usava para criar
incidentes de rua nos tempos do Morro das Sombras. Mal percebendo o que fazia, jogou-se de joelhos contra o parapeito mais próximo, com os botões de latão a meros
centímetros da pedra. Com todas as forças, fingiu que estava vomitando.
– Rooouuk – tossiu, um pequeno prelúdio para uma sinfonia nauseante. – Rggggk.... Ruuuu-gggghhhhkkk... HNNNNNNBLAAAAARG!
Os ruídos eram ótimos, os mais convincentes que ele já havia conjurado, e Locke fez força contra o parapeito com um braço trêmulo. Esse era sempre um toque fantástico;
os adultos caíam direitinho. Os que sentiam repulsa recuavam mais 1 metro e os que tinham simpatia praticamente tremiam.
Ele lançava olhares rápidos enquanto gemia, estremecia e demonstrava ânsias de vômito. Os passantes adultos se desviavam para longe dele, do modo típico dos ricos
e ocupados; não havia lucro em atender ao serviçal de outra pessoa ou a um garoto de recados. Quanto às suas nêmesis de vestido vermelho, todas tinham parado, oscilando
feito aparições com véus. Aproximar-se dele agora seria suspeito e perigoso, ao passo que ficar ali paradas feito estátuas chamaria rapidamente uma atenção desnecessária.
Locke se perguntou o que elas fariam, sabendo que ele apenas tivera sucesso em restaurar um impasse, mas com certeza era melhor do que deixar que a armadilha delas
o prendesse.
– Só continue fingindo que vomita – sussurrou para si mesmo.
Em termos de plano, talvez fosse o pior que ele já havia concebido, mas agora outra pessoa é que precisaria dar o próximo passo.
– O que é? – questionou uma mulher, cheia de autoridade. – Explique-se, garoto.
Locke viu que, por acaso, ela estava usando uma casaca amarelo-mostarda da guarda citadina.
– Não consegue guardar o café da manhã, é? – A mulher cutucou Locke com o bico de uma bota. – Olhe, vá andando e vomite no fim da ponte.
– Me ajude – sussurrou Locke.
– Não consegue ficar de pé sozinho? – O couro do arnês de luta da guarda estalou enquanto ela se agachava ao lado, e seu cassetete pendurado no cinto bateu no chão.
– Dê um minuto...
– Eu não estou vomitando de verdade! – Locke chamou-a com uma das mãos, escondendo o gesto de todas as outras pessoas com o corpo. – Abaixe-se, por favor. Estou
correndo perigo.
– De que diabo você está falando?
Ela parecia cautelosa, porém chegou mais perto.
– Não reaja. Não chame atenção. – Num instante, Locke tinha transferido sua bolsinha de moedas de prata, que até então ele não gastara, da mão direita para a esquerda.
Empurrou os dedos da mulher, fechando-os sobre a bolsa. – São 10 sólons. Meu senhor é rico. Me ajude e ele saberá o seu nome.
– Pela graça dos deuses. – Locke sabia que aquela bolsa de prata representava vários meses de salário para a guarda. Será que ela cairia? – O que está acontecendo?
– Estou correndo perigo. Estou sendo seguido. Um homem quer as mensagens que estou carregando para o meu senhor. Lá atrás na praça, ao sul daqui, ele tentou me agarrar
duas vezes.
– Vou levar você até meu posto da guarda, então.
– Não, não precisa. Só me leve ao lado norte desta ponte. Me carregue como se eu estivesse sendo preso. Se ele vir isso, não vai esperar por aqui. Vai dizer aos
patrões dele que a guarda me pegou e, assim que estivermos um pouco afastados, a senhora pode me deixar ir.
– Deixar ir?
– É só me colocar no chão, me soltar com uma repreensão, falar sério comigo.
– Isso vai parecer extremamente irregular.
– A senhora é da guarda. Pode fazer o que quiser e ninguém vai dizer nada!
– Ainda não sei...
– Olhe, a senhora não vai violar nenhuma lei. Só vai me dar uma ajuda. – Locke sabia que quase a convencera. Ela já havia pegado suas moedas; agora era uma questão
de aumentar um pouco a recompensa prometida: – Me tire desta ponte e meu senhor vai dobrar o que eu lhe dei. Facilmente.
A guarda pareceu pensar nisso durante alguns segundos, depois se levantou e pegou-o pelas costas da jaqueta.
– Você não está doente! – gritou ela. – Só está fazendo a droga de uma cena!
– Não, por favor! – berrou Locke, rezando para estar, de fato, testemunhando um desempenho comprado, e não uma mudança súbita de ânimo.
A guarda levantou-o, enfiou-o embaixo do braço esquerdo e marchou para o norte. Alguns espectadores bem-vestidos riram, mas todos saíram do caminho enquanto o transporte
improvisado de Locke o levava para longe da cena de sua quase humilhação.
Ele chutou e se debateu para manter seu lado da suposta farsa. Alguns dos movimentos eram bem reais, já que o cassetete da mulher ficava batendo nas suas costelas,
estragando o que seria um passeio surpreendentemente confortável. Pelo menos ele estava sendo carregado com os importantíssimos botões virados para o corpo da guarda.
Locke examinou o campo de visão inclinado e percebeu, para seu deleite, que as duas garotas de vestido vermelho à sua frente haviam corrido bem à esquerda e mantinham
distância dele e de sua casaca-amarela temporariamente domada. Sabeta acreditaria que ele fora mesmo apanhado contra a vontade? Talvez não, mas agora teria que imaginar
uma nova estratégia para atacar com suas cúmplices, quem quer que elas fossem.
Os planos de Locke estavam se desenvolvendo rapidamente enquanto ele fingia lutar contra a captora. Assim que chegasse bem à frente das garotas, poderia cortar o
avanço delas até o último ponto estreito, a Ponte do Vão Dourado. E, ainda que sua posição definitiva ali o deixasse de novo em menor número, um contra três, pelo
menos teria mais tempo para brincar de “descubra a verdadeira Sabeta”.
Chutando, rosnando e sacudindo os punhos, Locke foi carregado enfim até o lado oposto da ponte, na praça do norte. Ali se situavam os verdadeiros poderes da Travessa
dos Beija-Moedas, casas como a Meraggio e a Bonaduretta, cujas teias de dinheiro e crédito atravessavam o continente.
– Não me faça arrebentar seus dentes – rosnou a guarda para ele quando um grupo particularmente grande de curiosos passou.
Locke poderia ter aplaudido o senso teatral da mulher; casaca-amarela ou não, ela possuía bons instintos. Agora os dois só precisavam encontrar um local decente
para Locke ser posto no chão e ele estava praticamente...
– Ah, guarda, guarda, por favor, espere!
Locke ouviu o som fraco de pés correndo antes mesmo de escutar a voz de Sabeta e se retorceu feito louco, tentando vê-la antes de sua chegada. Tarde demais – ela
estava do outro lado da guarda, o véu jogado para trás por cima do chapéu de quatro bicos, e estendia uma bolsinha escura na mão direita.
– A senhora deixou isto cair, guarda!
– Deixei cair o quê?
A mulher se virou para Sabeta, colocando Locke em posição para olhá-la bem. As bochechas dela estavam vermelhas e, inexplicavelmente, a menina mantinha a bolsa aberta.
Boquiaberto, Locke fitou os quatro rolinhos de seda enfiados dentro: vermelho, verde, preto e azul.
– Você deve estar enganada, garota.
– De jeito nenhum. Eu mesma vi. Tenho certeza que é sua. – Sabeta apertou a bolsinha na mão livre da guarda, exatamente como Locke havia feito alguns instantes atrás,
ao mesmo tempo que se aproximava e acrescentava, baixando a voz: – São 4 sólons. Por favor, por favor, solte meu irmãozinho.
– O quê?
A guarda pareceu totalmente perplexa, mas Locke notou que ela enfiara a bolsa no casaco com reflexos ágeis. Ele começava a suspeitar que essa casaca-amarela tinha
alguma experiência anterior em fazer ofertas desaparecerem.
– Tenho certeza que ele não queria provocar uma cena – continuou Sabeta, deixando transparecer um quê de preocupação desesperada na voz. – Meu irmão não deveria
sair sozinho. Ele não é bom da cabeça.
– Ei – reagiu Locke, percebendo subitamente que o conhecimento das cores da seda não significaria muito se ele deixasse a situação escapar mais ainda ao controle.
Que diabos Sabeta estava fazendo? – Espere um minuto...
– Ele é um idiota completo – sussurrou Sabeta, apertando a mão livre da guarda. – Não é seguro ele sair sem acompanhante! Ele inventa histórias, veja bem. Por favor...
deixe que eu o leve para casa.
– Eu não... Eu só... Bom, olhe aqui...
Uma ou mais engrenagens estavam para se desconjuntar no motor azeitado dos processos mentais da guarda, e Locke se contraiu. De repente, uma forma ampla, escura,
insinuou-se entre a guarda e a figura vermelho-canela de Sabeta, empurrando a garota com delicadeza para o lado.
– Aaahhh, senhora guarda, estou deliciado em ver que a senhora recuperou os dois pacotes que eu deixei escapar – disse Correntes. – A senhora é uma joia de eficiência,
excelente mulher, um presente dos céus. Imploro permissão para apertar sua mão.
Pela terceira vez em alguns minutos, uma sacola de moedas escorregou para a palma da guarda absolutamente pasma. Essa troca foi mais rápida e muito mais sutil do
que as feitas pelas crianças; Locke só a viu porque estava na posição exata para captar um vislumbre minúsculo de algo escuro aninhado na mão de Correntes.
– É... bom, senhor, eu...
Correntes se inclinou e sussurrou algumas frases rápidas no ouvido dela. Mesmo antes de ele terminar, a mulher baixou Locke suavemente até o chão. Sem saber o que
fazer, o menino foi se postar ao lado de Sabeta, adotando uma expressão facial muito treinada, destinada a irradiar absoluta inofensividade.
– Ahhh – fez a guarda. A nova oferenda de Correntes se juntou às duas que estavam no casaco.
– De fato – falou Correntes, sorrindo. – Bênçãos dos Doze para a senhora, e que boas chuvas sigam-na, cara guarda. Esses dois não irão mais incomodá-la.
Correntes deu um aceno alegre (que foi retribuído da mesma forma pela guarda), depois se virou e empurrou Locke e Sabeta para o limite leste da praça, onde uma escadaria
levava a um atracadouro largo para os barcos de aluguel.
– O que aconteceu com suas pequenas cúmplices? – sussurrou Correntes.
– Mandei que elas sumissem depois que fui atrás daquela casaca-amarela – respondeu Sabeta.
– Ótimo. Agora calem a boca e se comportem enquanto eu arranjo um barco. É melhor sumirmos daqui.
Todas as gôndolas ali perto estavam partindo ou de passagem, a não ser uma que balouçava junto ao cais, a ponto de ser abordada por um homem de negócios de meia-idade
que enfiava a mão numa bolsa de moedas. Correntes passou por ele tranquilamente e fez um aceno peculiar para o gondoleiro.
– Desculpe o atraso – disse Correntes. – Nós estamos com uma pressa desesperada para alcançar um amigo de um amigo e eu sabia que esse seria o tipo de barco certo.
– O mais certo que existe, senhor.
O gondoleiro era jovem e magro, a pele bronzeada do tom de cocô de cavalo, e sua barba cor de areia ia até o meio da túnica azul manchada e estava trançada com amuletos
de prata e marfim, tantos que o homem tilintava ao mover a cabeça.
– Senhor, peço enormes desculpas, mas este é o cavalheiro que eu estava esperando.
– Esperando? – O homem parou de contar moedas e levantou a cabeça, espantado. – Mas você acabou de chegar!
– Mesmo assim, eu tinha um compromisso anterior. Agora peço perdão...
– Não, não, este barco é meu!
– Lamento corrigi-lo – interveio Correntes, consumando a apropriação da gôndola ao empurrar Sabeta para dentro. – Ainda assim, devo observar que o barco é propriedade
do jovem com a vara.
– E que, infelizmente, já está comprometido – completou o jovem.
– Ora... seu bando de merdinhas de cais desrespeitosos e descarados! Eu cheguei primeiro! Não ouse pegar esse barco, garoto!
Locke já estava seguindo Sabeta e o homem de meia-idade estendeu a mão e o agarrou pela frente da jaqueta. De modo igualmente rápido, Correntes lhe deu um tapa tão
forte com as costas da mão que o sujeito soltou Locke e cambaleou dois passos para trás, quase caindo no canal.
– Se tocar em alguma das minhas crianças de novo – ameaçou Correntes num tom diferente de tudo o que Locke já ouvira –, eu quebro você em tantos pedaços, porra,
que nenhuma puta na cidade jamais conseguirá saber que parte enrugada ela deve chupar.
– Cachorro! – gritou o homem de negócios, levando a mão aos lábios que sangravam. – Patife da porra! Vou ter o seu nome, senhor, o seu nome e um lugar onde meu homem
possa encontrá-lo. Vou pegá-lo por isso, seu...
Correntes passou um braço em volta do pescoço do sujeito. Puxando o infeliz, sussurrou com aspereza em seu ouvido – de novo, apenas algumas frases. Em seguida, o
empurrou para longe, e Locke ficou atônito ao ver como o rosto do homem havia empalidecido.
– Eu... ahn, eu... entendo – disse o homem. Ele parecia estar com dificuldade para pronunciar as palavras direito. – Peço, é... desculpas, profundas desculpas. Eu
só...
– Suma daqui.
– Agora mesmo!
Rapidamente o homem aceitou o conselho de Correntes, que ajudou Locke a entrar no barco. O garoto sentou-se num banco da proa bem ao lado de Sabeta, sentindo um
calor nas bochechas que não tinha nada a ver com o sol quando suas pernas roçaram nas dela. Enquanto Correntes se acomodava no banco diante das crianças, o gondoleiro
afastou o barco das pedras do cais, avançando pela água calma e suja do canal.
Nesse momento, Locke sentia uma admiração tão grande por Correntes quanto pela proximidade de Sabeta. Enfeitiçar casacas-amarelas, confiscar barcos e fazer homens
ricos se mijarem – tudo isso, sem contar com os subornos, usando apenas algumas palavras sussurradas aqui e ali. Quem e o que Correntes conhecia? Qual era seu lugar
verdadeiro na hierarquia de Capa Barsavi?
– Para onde? – perguntou o gondoleiro.
– Bairro dos Templos, cais de Venaporta – respondeu Correntes.
– Qual é a gangue de vocês?
– Nobres Vigaristas.
– Certo, ouvi falar. Parecem estar se saindo bem, misturando-se com a nobreza.
– Nós estamos bastante bem. Você é um dos rapazes do Diastema?
– Na bucha, irmão. Nós nos chamamos de Bem Espertos, somos da região oeste dos Estreitos. Alguns de nós têm o que vocês chamariam de emprego lucrativo, identificando
alvos prováveis nos canais. Ultimamente, os negócios estão uma merda.
– Aqui está um retrato do Duque para uma viagem tranquila.
Correntes botou 1 tirino de ouro no banco atrás dele.
– Vou beber à sua saúde esta noite, amigo, sem sacanagem.
Correntes deixou o gondoleiro seguir com seu trabalho e se virou para Locke e Sabeta, inclinando-se para perto deles. Entrelaçou as mãos e perguntou baixinho:
– Agora, que diabos eu acabei de ver na Travessa dos Beija-Moedas? Algum de vocês pode traduzir a porra da palhaçada em qualquer tipo de relato vagamente lógico?
– Ele tem seis botões – disse Sabeta.
– VermelhoverdepretoAZUL – cuspiu Locke.
– Ah, não – reagiu Correntes. – A disputa acabou. Eu declaro empate. Nem tentem se esgueirar para a vitória se aproveitando de algum detalhe técnico.
– Bom, eu tinha que tentar – falou Sabeta.
– Essa poderia ter sido a lição – murmurou Locke.
– A coisa não acaba até acabar de verdade verdadeira – completou Sabeta. – Ou sei lá o quê. Você sabe.
– Meus fantásticos alunos. – Correntes suspirou. – Às vezes uma disputa para perseguir um ao outro por uma praça apinhada é mesmo só uma disputa para perseguir um
ao outro por uma praça apinhada. Vamos começar com você, Locke. Qual era o seu plano?
– Ahhhh...
– Sabe, acredite ou não, “os deuses proverão” não é a porra de um plano, garoto. Você tem um talento infernal para improvisar, mas, quando isso o deixa na mão, deixa
muitíssimo na mão. Você precisa ter em mente o próximo movimento, como no Pegue o Duque. Lembra-se de como cuidou daquele negócio do cadáver? Eu sei que você pode
fazer melhor do que fez agora.
– Mas...
– É a vez de Sabeta. Pelo que pude ver, você estava ganhando. Você era a de trás, a que saiu depois que ele seguiu as duas primeiras para o norte, certo?
– É – respondeu Sabeta, cautelosa.
– Onde conseguiu as iscas?
– Eram garotas que eu conhecia do Janelas. Agora elas são ajudantes em duas gangues maiores. Nós roubamos os vestidos e bolamos o plano ontem à noite.
– Ah – fez Correntes. – Aí está a ideia encantadora que eu estava discutindo, Locke. Um estratagema. O que suas amigas tinham nas bolsas?
– Lã colorida. O melhor que pudemos conseguir.
– Nada mau. Mas tudo o que você conseguiu foi um empate com o Mestre Sem Planos aqui. Você o deixou num beco sem saída, e então... o que aconteceu exatamente?
– Bom, ele fingiu que estava vomitando. Aí apareceu aquela casaca-amarela e o pegou e eu... achei que o mais importante de tudo era ir atrás dele e libertá-lo.
– M-me libertar? – gaguejou Locke, surpreso. – Como assim, me libertar? Eu entreguei 10 sólons àquela mulher para me carregar até o norte!
– Achei que ela havia pegado você de verdade! – Os olhos castanho-claros de Sabeta escureceram e a cor subiu às suas faces. – Seu escrotinho, achei que estava salvando
você!
– Mas... por quê?
– Não tinha nada no chão quando eu fui atrás de vocês! – Sabeta tirou o chapéu com o véu e puxou com raiva os alfinetes laqueados do cabelo. – Não vi nenhum vômito
na ponte, por isso achei que isso havia entregado à casaca-amarela o fato de que você estava mentindo!
– Você achou que eu fui preso de verdade porque vomitei errado?
– Eu sei que tipo de sujeira você podia aprontar quando era um provocador de rua. – Sabeta sacudiu o cabelo. Alquimicamente ajustado ou não, foi uma visão que fez
o coração de Locke socar as costelas. – Não vi nenhuma sujeira daquelas, por isso achei que você havia sido apanhado! Eu dei àquela mulher todo o dinheiro que ainda
tinha!
– Olhe, eu costumava... eu costumava enfiar o dedo na garganta quando era pequeno, mas... não vou fazer isso sempre!
– Essa não é a questão!
Sabeta cruzou os braços e desviou o olhar. Agora estavam indo para o leste, pelo comprido canal curvo ao norte da Videnza, e ao longe, atrás dela, Locke podia ver
a forma escura e atarracada do Palácio da Paciência erguendo-se acima dos telhados de ardósia.
– Você sabia que estava perdendo, não tinha plano, então armou um escândalo e fez uma confusão dos diabos! Nem tentou vencer; você estava simplesmente metendo os
pés pelas mãos. E eu meti os pés pelas mãos!
– Eu tinha medo de que isso pudesse acontecer, cedo ou tarde – disse Correntes em tom pensativo. – Andei pensando que a gente precisa de um tipo de linguagem de
sinais mais elaborada, mais do que a que usamos com as outras Pessoas Certas. Algum tipo de código particular, para que possamos colocar uns aos outros a par quando
estivermos fazendo alguma trama.
– Não, Sabeta, olhe – replicou Locke, praticamente sem ouvir Correntes. – Você não meteu os pés pelas mãos, você foi brilhante, merecia ganhar...
– Isso mesmo. Mas você não perdeu, por isso eu não ganhei.
– Olhe, eu admito. Entrego o prêmio a você. Vou fazer todas as suas tarefas na cozinha durante três dias, como...
– Não quero a porcaria de uma concessão! Não vou aceitar sua pena como moeda.
– Não é... não é pena, sério! Eu só... Você achou que estava me salvando, eu lhe devo essa! Eu quero as suas tarefas, seria um prazer. Seria meu... meu privilégio.
Ela não se virou para ele, mas o fitou com o canto do olho por um longo momento silencioso. Correntes não disse nada; tinha ficado imóvel feito uma pedra.
– Idiota lambão – murmurou Sabeta por fim. – Você está tentando me agradar. Bom, eu não vou ser agradada por você, Locke Lamora.
Ela se arrastou no banco e agarrou a amurada da gôndola com as duas mãos, de modo a ficar totalmente de costas para ele.
– Pelo menos não hoje – completou baixinho.
A raiva de Sabeta picou-o como uma vespa engolida, mas essa dor foi suplantada por uma sensação mais quente, mais poderosa, que parecia inchar em seu crânio até
Locke ter certeza de que ele se partiria como um ovo.
Apesar de toda a aparente indiferença, apesar de toda a impenetrabilidade e frustração, ela havia se importado com ele a ponto de jogar a disputa fora no instante
em que achou que Locke corria perigo de verdade.
No resto daquele verão aparentemente interminável e miseravelmente calorento do Septuagésimo Sétimo Ano de Perelandro, ele se agarrou a essa percepção como a um
talismã.
i n t e r s e ç ã o ( I )
Combustível
No não tempo e não espaço do pensamento, a conspiração não poderia ter testemunhas. A mente do velho se estendeu por 200 quilômetros de ar e água. Brincadeira de
criança para quem tinha quatro anéis. Seu interlocutor respondeu imediatamente.
Está feito, então?
Os camorris aceitaram os termos dela. Como eu disse que fariam.
Nós jamais duvidamos. Ela não carece da capacidade de persuasão.
Estamos partindo agora.
Lamora está tão doente assim?
A Arquidama adiou isso demais. Foi um autêntico erro.
E não é o primeiro. E se Lamora morrer?
Seu exemplar esmagaria Tannen sozinho. Ele é formidável, mas já carrega um peso de luto.
Você não poderia... ajudar Lamora a partir mais depressa?
Eu disse que não iria tão longe. Não sob os olhos dela! Minha vida ainda significa alguma coisa para mim.
Claro, irmão. Foi uma sugestão indigna. Desculpe.
Além disso, ela não escolheu Lamora só para ferver o seu sangue. Há algo nele que você ainda não entende.
Por que você está falando dessa forma misteriosa em vez de me dar informações?
Não posso me arriscar a vazar isso. Isso, não. Esteja certo, o negócio é mais profundo do que o jogo de cinco anos, e Paciência quer que você saiba disso em breve.
ISSO me preocupa.
Não deveria. Só faça o jogo. Se conseguirmos salvar Lamora, seu exemplar terá seis semanas movimentadas.
Nossa recepção já está preparada.
Ótimo. Cuide-se, então. Estaremos em Kartane amanhã, independentemente do que aconteça.
Do início ao fim, a conversa durou o tempo de três batimentos cardíacos.
Capítulo Três
Sangue, respiração e água
1
O céu acima do porto de Lashane estava coberto por nuvens cor de carvão que se retorciam, bloqueando qualquer raio de luz das estrelas ou luar. Jean permanecia ao
lado de Locke enquanto os ajudantes de Paciência tiravam sua maca da carruagem e a carregavam através da chuva fraca, em direção ao cais e a uma dúzia de navios
ancorados cujas vergas estalavam e oscilavam ao vento.
Apesar de haver por perto guardas e funcionários lashanis de vários tipos, nenhum deles parecia querer se envolver com a procissão em torno de Locke. Eles o levaram
até a beira de um píer de pedra, onde um escaler esperava com uma lâmpada vermelha pendurada na proa.
Os ajudantes de Paciência puseram a maca sobre vários bancos, depois pegaram remos. Jean sentou-se aos pés de Locke enquanto Paciência se acomodava sozinha na proa.
Atrás dela, Jean podia ver ondas pretas e baixas como tremores na água. Para Jean, que havia se acostumado ao cheiro da água salgada e seus resíduos, parecia faltar
alguma coisa nos odores mais puros do Amatel.
O destino era um brigue que flutuava a poucas centenas de metros, na saída norte do porto. Suas lanternas de popa lançavam uma luz prateada sobre o nome pintado
acima das janelas da grande cabine: Andarilho do Céu. Pelo que Jean podia ver, parecia uma embarcação nova. Quando ficaram a sota-vento do barco, Jean viu homens
e mulheres ajustando uma grua com uma eslinga à meia-nau.
– Ahhh – fez Locke debilmente. – Que indignidade. Paciência, você não pode me fazer flutuar até lá em cima ou algo assim?
– Eu poderia dobrar minha vontade a um monte de truques mundanos. – Ela o olhou sem sorrir. – Acho que você vai preferir que eu esteja descansada para o que vai
acontecer.
Jean usou algumas cordas para prender Locke ao arnês da grua, que era um simples laço de couro reforçado, depois acenou para as pessoas em cima. Pendurado feito
uma marionete, Locke saiu do barco, bateu uma ou duas vezes na lateral do brigue e foi puxado em segurança para dentro do navio por várias mãos.
Jean subiu pela rede de abordagem e chegou ao convés no instante em que Locke estava sendo desamarrado. Empurrou o pessoal de Paciência de lado, tirou Locke e segurou-o
enquanto o arnês descia de novo, para Paciência. Jean demorou um instante examinando o Andarilho do Céu.
As primeiras impressões que tivera na água foram reforçadas. Era um navio novo, com cheiro agradável e cordame bem retesado. Mas Jean viu muito poucas pessoas no
convés – apenas quatro, todas trabalhando com a grua. Além disso, era uma embarcação estranhamente silenciosa. Os ruídos do vento, da água e da madeira estavam todos
ali, mas faltavam os elementos humanos, o arrastar de pés, as tosses, os murmúrios e os roncos abaixo do convés.
– Obrigada – agradeceu Paciência quando o arnês a trouxe para o convés. Ela saiu com leveza da alça de couro e deu um tapinha no ombro de Locke. – A parte fácil
está feita. Vamos logo aos negócios.
Seus ajudantes chegaram, desdobraram a maca outra vez e ajudaram Jean a acomodar Locke nela.
– Vamos zarpar – disse Paciência. – Levem nossos hóspedes para a grande cabine.
– E o bote, Arquidama? – perguntou um homem atarracado, de barba grisalha, usando uma capa impermeável com capuz abaixado, evidentemente satisfeito em deixar a chuva
escorrer pela cabeça. A órbita do olho direito era uma inquietante massa de tecido cicatricial e um buraco sombreado.
– Deixe-o – disse Paciência. – Eu cortei as coisas muito bem.
– Longe de mim lembrar à Arquidama que eu sugeri isso ontem à noite, e anteontem...
– Sim, Tutanofrio, longe de você – interrompeu Paciência.
– Seu mais voluntário abjeto, senhora. – O homem se virou, pigarreou e deu um grito: – Vamos zarpar! Nor-nordeste, mantenham o rumo firme!
– Nor-nordeste, manter o rumo firme, sim – respondeu uma mulher com voz entediada separando-se do grupo que desmontava a grua.
– Vamos pegar mais tripulantes? – perguntou Jean.
– Para quê? – retrucou Paciência.
– Bom, é só que... o vento está vindo de nor-nordeste. Vocês vão bordejar feito loucos para avançar e, pelo que posso ver, só tem sete ou oito pessoas para manobrar
o navio. Isso nem é suficiente para manobrá-lo no porto...
– Bordejar – disse Tutanofrio –, que conceito antiquado. Ajude-nos a colocar seu amigo na cabine de popa, camorri.
Jean obedeceu. O compartimento de popa do Andarilho do Céu não ficava no mesmo nível do convés principal; Locke precisou ser carregado por uma passagem estreita
com degraus traiçoeiros. Independentemente do objetivo para o qual o navio fora construído, não era fácil movimentar inválidos nele.
A cabine tinha mais ou menos o mesmo tamanho da que Locke e Jean haviam ocupado no Mensageiro Vermelho, mas era muito menos atulhada – sem armas penduradas nas anteparas
nem mapas ou roupas espalhados, nem almofadas ou redes. Uma mesa formada de tábuas postas sobre baús ficava no centro do cômodo iluminado por suaves lanternas amarelas.
Os postigos estavam bem fechados nas janelas de popa. O mais impressionante era que tinha cheiro de um lugar desabitado, um aroma de canela, óleos de cedro e outras
coisas que as pessoas enfiavam nos armários para expulsar o ranço.
Enquanto Jean ajudava a pôr Locke sobre a mesa, de alguma forma Tutanofrio surgiu com um cobertor fino de lã cinza e o entregou a Jean, que enxugou a chuva do rosto
de Locke e depois o cobriu.
– Melhor – sussurrou Locke –, moderadamente, levemente, desgraçadamente melhor. E... o que...
Uma pequena forma escura se destacou das sombras num canto da cabine, avançou e saltou no peito de Locke.
– Deuses, Jean, eu estou alucinando – disse Locke. – Estou alucinando de verdade.
– Não está, não. – Jean acariciou o gato preto e sedoso que deveria ter saído da vida dos dois havia muito tempo. Magnífico continuava exatamente como Jean lembrava,
até com a mancha branca no pescoço. – Também estou vendo o sacaninha.
– Ele não pode estar aqui – murmurou Locke. O gato girou a cabeça, ronronando alto. – É impossível.
– Que visão míope você tem dos esplendores da coincidência – ralhou Paciência, descendo a escada. – Foi um dos meus agentes que comprou seu antigo iate. Ele ficou
brevemente junto do Andarilho do Céu há algumas semanas e esse pequenino canalha aproveitou a oportunidade para mudar de residência.
– Não entendo – falou Locke, puxando com delicadeza o pelo do pescoço de Magnífico. – Eu nem gosto muito de gatos.
– Com certeza você já percebeu que os gatos não respeitam muito a opinião humana – observou Paciência.
– São iguais aos Magos-Servidores, então? – indagou Jean. – E o que fazemos agora?
– Agora vamos falar às claras – respondeu Paciência. – Jean, será difícil para você assistir ao que vai acontecer. Talvez difícil demais. Alguns... sem-dom não suportam
estar próximos de nosso trabalho. Se quiser ir para o convés do meio, vai encontrar redes de dormir e outras acomodações...
– Vou ficar – cortou Jean. – Durante a coisa toda. Isso não é negociável.
– Está decidido, então, mas ouça. Não importa o que aconteça, ou pareça acontecer, você não pode interferir. Não pode interromper. Isso poderia ser fatal, e não
somente para o Locke.
– Vou me comportar. Vou morder a droga dos dedos se for preciso.
– Perdoe-me por lembrar que eu conheço a natureza do seu temperamento...
– Olhe, se eu perder o controle, apenas fale a porcaria do meu nome e me faça ficar calmo. Sei que você pode fazer isso.
– Pode chegar a esse ponto. Desde que você saiba o que esperar caso crie problema. Por falar nisso, pegue seu amiguinho e o leve para a frente do navio.
– Vá, garoto.
Jean pegou Magnífico antes que o gato percebesse que teria de ser transportado. A macia bola de pelos bocejou e se aninhou na dobra do braço direito de Jean.
Jean carregou-o até o convés principal, onde ficou surpreso ao descobrir que a embarcação já se movia com a força das velas de gávea, apesar de não ter ouvido gritos
ou movimento em cima para enfuná-las. Subiu depressa a escada que levava ao tombadilho superior, do qual podia ver as luzes borradas de chuva de Lashane já sumindo
por trás das formas escuras que balouçavam no porto. O barco que eles haviam abandonado estava quase invisível, uma tábua minúscula nas ondas.
A mulher que estivera na grua agora se encontrava junto ao timão, logo atrás do mastro principal, marcando o limite do tombadilho superior. Seu rosto estava visível
apenas em parte sob o capuz, mas ela parecia perdida em pensamentos e, para o espanto de Jean, não tocava no timão. Sua mão esquerda estava levantada e ligeiramente
em concha, e de vez em quando ela abria os dedos e movia-a para a frente, como se empurrasse algum objeto.
Um raio espocou no alto e, sob o clarão súbito, Jean viu os outros tripulantes espalhados no convés, também com capas e capuzes, de pé e silenciosamente atentos
com as mãos erguidas de modo semelhante.
Enquanto um trovão ribombava sobre o Amatel, Jean foi para perto da timoneira.
– Com licença. Você pode falar? Qual é o nosso curso atual?
– Nor... nordeste – respondeu a mulher sonhadoramente, sem encará-lo. – Direto para Kartane.
– Mas isso é ir contra o vento!
– Estamos usando... um vento particular.
– Foda-me de lado – murmurou Jean. – Eu, ahn, preciso de algum lugar para colocar este gato.
– Escotilha do convés principal... que dá no porão do meio.
Jean carregou seu colega peludo para o poço do navio e encontrou uma escotilha de acesso, que abriu. Uma escada estreita descia 2 metros ou 2,5 metros até um espaço
mal iluminado, onde Jean podia ver palha no chão e paletes com algum material macio.
– Pelos bagos de Perelandro, sujeitinho – sussurrou Jean –, o que me fez pensar que eu conseguiria vencer pessoas que podem criar a porra do próprio clima?
– Mrrrrrrau.
– Isso mesmo. Eu estou desesperado. E sou idiota. – Jean soltou Magnífico, que pousou levemente na penumbra embaixo. – Fique de cabeça baixa, gatinho. Acho que a
merda vai se derramar por todo canto.
2
– Feche a porta com firmeza – pediu Tutanofrio quando Jean retornou.
– Tranco?
– Não. Só mantenha o clima do lado de fora, que é o lugar dele.
Paciência estava derramando um líquido amarelo-claro de um odre de couro numa caneca de cerâmica enquanto Jean descia a escada.
– Bom, Jean, se nada der certo, pelo menos eu ganho uma bebida antes de ir – disse Locke.
– O que é isso? – perguntou Jean.
– Várias coisas para a dor – respondeu Paciência.
– Então Locke vai dormir?
– Ah, não. Não, ele não poderá dormir nem por um instante, infelizmente.
A maga levou a caneca aos lábios de Locke e, com sua ajuda, ele conseguiu engolir o conteúdo.
– Aaarggh – fez ele, sacudindo a cabeça. – Tem gosto de mijo de peixeiro morto, sugado das entranhas dele uma semana após o enterro.
– É uma poção bastante funcional – falou Paciência. – Agora relaxe. Você vai sentir o efeito depressa.
– Uhhh – suspirou Locke. – Você não está errada.
Tutanofrio pôs um balde de água ao lado da mesa. Depois, tirou a túnica de Locke, expondo a pele pálida e as antigas cicatrizes no tronco. Estava óbvio que o vigor
havia fugido de cada músculo frouxo. Tutanofrio umedeceu um pano e limpou cuidadosamente o peito, os braços e o rosto de Locke. Paciência dobrou o cobertor cinza
e ajeitou-o sobre a parte de baixo do corpo dele.
– Agora, certas necessidades – disse Paciência.
A maga pegou uma ornamentada caixa de madeira-bruxa num canto da cabine. A um aceno de sua mão, ela se destrancou e se abriu, revelando bandejas com pequenos objetos,
como um kit de galeno.
Paciência pegou uma faca esguia na caixa, cortou várias mechas do cabelo úmido de Locke e colocou-as numa tigela de barro segura por Tutanofrio. Enquanto o barbudo
se movia, as mangas de sua roupa deslizaram o suficiente para Jean ver que ele tinha quatro anéis no pulso direito.
– Apenas algumas subtrações – explicou Paciência. – As pontas crescem. Certamente o corte será bom para ele.
Tutanofrio estendeu outra tigela sob a mão direita de Locke enquanto Paciência cortava lascas de suas unhas. Locke murmurou, virou a cabeça para trás e suspirou.
– Sangue também – acrescentou Paciência –, o pouco que ele puder ceder.
Ela furou dois dedos de Locke com a lâmina, sem provocar qualquer reação nele. Mas Jean foi ficando cada vez mais ansioso à medida que Tutanofrio coletava gotas
vermelhas numa terceira tigela.
– Espero que vocês não estejam planejando ficar com nada disso depois que essa... coisa terminar – disse Jean.
– Jean, por favor – replicou Paciência. – Ele terá sorte se estiver vivo depois que essa coisa terminar.
– Não vamos fazer nada impróprio – completou Tutanofrio. – Seu amigo é um bem valioso.
– É mesmo? – resmungou Jean. – Um bem? Um bem é uma coisa que você pode colocar numa prateleira ou escrever num livro-caixa, seu sacana sinistro. Não fale dele como...
– Jean – interrompeu Paciência enfaticamente. – Controle-se ou seja controlado.
– Ei, estou calmo. Plácido como fumaça de cachimbo. – Jean cruzou os braços. – Olhe como posso ficar plácido. O que você está fazendo agora?
– A última coisa de que preciso é um pouco de respiração.
Ela estendeu um frasco de cerâmica e o manteve durante um tempo diante da boca de Locke, depois tampou-o e guardou.
– Fascinante, tenho certeza – comentou Locke, grogue. – Agora tire essa merda de mim.
– Eu não posso tirá-la só com a força de vontade – retrucou Paciência. – A vida é muito mais fácil de ser destruída do que restituída. A magia não muda isso. De
fato, você não deveria pensar nisso como uma cura.
– Bom, então que diabo é? – questionou Jean.
– Redirecionamento – respondeu Paciência. – Imagine o veneno como uma fagulha queimando a madeira. Se ela virar chama, Locke morre. Precisamos fazer com que se gaste
em outro lugar, que destrua outra coisa. Assim que esse poder for arrancado, ela vai embora.
Jean ficou olhando, inquieto, durante os quinze minutos seguintes, enquanto Paciência e Tutanofrio usavam uma tinta preta com cheiro estranho para pintar uma intricada
rede de linhas no rosto, nos braços e no peito de Locke. Ainda que ele murmurasse de vez em quando, não parecia sentir um desconforto maior do que antes.
Enquanto a tinta secava, Tutanofrio pegou um candelabro alto de ferro e o colocou entre a mesa e as janelas de popa, que estavam fechadas. Paciência tirou três velas
brancas da caixa.
– Velas de cera, feitas em Camorr. Com um candelabro de ferro, também camorri. Tudo roubado, para estabelecer uma simpatia mais poderosa com seu amigo desafortunado.
Paciência rolou uma vela para trás e para a frente nas mãos e a superfície dela ficou turva e tremeluzente. Tutanofrio usou a faca de prata da maga para transferir
o sangue, o cabelo e as aparas de unhas de Locke para a cera. Em vez de escorrer pelos lados como Jean esperaria, as “certas necessidades” sumiram facilmente.
– Efígie, eu o nomeio – disse Paciência. – Portador do sangue, eu o crio. Sombra de uma alma, vaso enganador, eu lhe dou a carne de um homem vivo, mas não seu nome
do coração. Você é ele, e não ele.
A maga pôs a vela no candelabro. Em seguida, com a ajuda de Tutanofrio, repetiu o processo com as outras duas velas.
– Agora – continuou Paciência baixinho –, você deve ficar imóvel.
– Não estou exatamente dançando, porra – rebateu Locke.
Tutanofrio pegou um rolo de corda. Ele e Paciência usaram-na para amarrar Locke à mesa com uma dúzia de laçadas entre a cintura e os tornozelos.
– Uma coisa – disse Locke quando eles terminaram. – Antes de começarem, eu gostaria de ter um momento a sós com Jean. Nós somos... adeptos de um deus com quem talvez
vocês não queiram se associar.
– Nós podemos respeitar seus mistérios – respondeu Paciência. – Mas não demorem, e não mexam em nenhum dos preparativos.
Ela e Tutanofrio saíram da cabine, fechando a porta, e Jean se ajoelhou ao lado de Locke.
– Aquela maldita Paciência deixou as coisas turvas por um momento, mas acho que estou com parte do tino de volta – comentou Locke. – Então... eu já estive mais ridículo?
– Algum dia você não esteve ridículo?
– Vá se foder – xingou Locke sorrindo. – Aquela tal de End-likt-ge-sei-lá-o-quê...
– Endliktgelaben.
– É, essa merda de que você falou... Só estava tentando me deixar puto ou estava falando sério?
– Bom... eu estava tentando deixar você puto. – Jean fez uma careta. – Mas se falei sério? Acho que sim. Se estou certo? Não sei. Espero realmente que não. Mas você
é um maldito pirralho miserável quando decide se sentir culpado com relação a tudo. Eu gostaria que isso entrasse no registro oficial.
– Preciso dizer, Jean... eu não quero mesmo morrer. Talvez isso me torne algum tipo de covarde de merda. Falei sério sobre os magos: eu preferiria mijar na cara
deles a receber ouro de suas mãos, mas, ainda assim, não quero morrer... não quero!
– Calma aí. Calma. Tudo o que você precisa fazer para provar isso é não morrer.
– Me dê sua mão esquerda.
Os dois tocaram as mãos, palma com palma. Locke pigarreou.
– Guardião Torto, Treze Sem Nome, seu serviçal o invoca. Sei que sou um homem com tantos defeitos que fazer uma lista deles só iria nos atrasar. – Locke tossiu e
limpou sangue fresco da boca. – Mas falei sério... não quero morrer, não sem uma luta de verdade, não assim. Então, se você puder encontrar ânimo para mudar o peso
dessa balança a meu favor mais uma vez... Diabos, se não por mim, faça isso pelo Jean. Talvez o crédito dele seja maior do que o meu.
– Pedimos isso com o coração esperançoso – completou Jean. Em seguida, se levantou de novo. – Ainda está com medo?
– Me cagando.
– Então cuide para não fazer sujeira na mesa.
– Seu sacana. – Locke fechou os olhos. – Chame-os de volta. Vamos acabar com isto.
3
Instantes depois, Jean ficou observando Paciência e Tutanofrio assumirem posição dos dois lados de Locke.
– Libere o aço de sonho – disse Paciência.
Tutanofrio enfiou a mão na gola da túnica e retirou um pendente prateado preso a um cordão. A um sussurro de comando, pendente e cordão se tornaram um líquido luminoso
e ondulante que escorreu por seus dedos, aglutinando-se numa bola trêmula na mão em concha.
– Mercúrio? – perguntou Jean.
– De jeito nenhum – respondeu Paciência. – O mercúrio envenena o tino de quem o manuseia. O aço de sonho é uma coisa nossa. Ele se molda a partir dos nossos pensamentos
e é inofensivo como água... na maior parte do tempo.
Os magos estenderam os braços por cima da mesa. Finos fios de aço de sonho brotaram da massa tremeluzente na mão de Tutanofrio e deslizaram, caindo por entre seus
dedos. Pousaram no peito de Locke, não espirrando para todos os lados, mas com uma solidez espantosa. Apesar de a coisa correr feito água, o fluxo era lento e onírico.
Os filetes prateados se ajustaram às linhas pretas pintadas na parte superior do corpo de Locke. Com firmeza, sinuosamente, eles se esgueiraram pelo desenho, entrando
em cada curva e redemoinho. Quando a obra delicada enfim estava pronta e o último pedacinho de aço de sonho caiu da mão de Tutanofrio, cada linha na pele de Locke
tinha sido coberta precisamente com uma minúscula camada de prata ondulante.
– Isso vai parecer bem estranho – avisou Paciência.
Ela e Tutanofrio fecharam os punhos com força e, no mesmo instante, milhares de pontos do traçado complexo saltaram para cima, explodindo da pele de Locke, que arqueou
as costas, mas foi pressionado gentilmente de volta pelas mãos dos magos. O aço de sonho se acomodou como uma floresta de agulhas.
Como se tivesse sido espancado por um porco-espinho metálico, Locke tinha incontáveis hastes de prata finas como fios de cabelo cravadas em sua pele, acompanhando
as linhas pintadas.
– Frio – disse Locke. – Um frio desgraçado!
– O aço de sonho está onde precisa estar – retrucou Paciência.
Em seguida, pegou o frasco que usara para captar a exalação de Locke e o aproximou do candelabro.
– Efígie, eu o acendo – entoou ela, abrindo o frasco e passando-o sobre as três velas. – Compartilhador do hálito, eu lhe dou o vento de um homem vivo, mas não seu
nome do coração. Você é ele, e não ele.
Paciência fez um gesto com a mão direita e os pavios das três velas irromperam numa chama branca e tremeluzente.
Em seguida, voltou para o lado de Locke. Ela e Tutanofrio juntaram as mãos direitas, unindo as pontas dos dedos por cima do peito de Locke. O fio prateado que Paciência
usara antes reapareceu e, com movimentos hábeis que Jean mal conseguia acompanhar, os dois magos fizeram uma cama de gato conjunta. Jean estremeceu, lembrando-se
de que o Falcoeiro também havia usado um fio de prata.
Então, Paciência e Tutanofrio puseram as mãos livres nos braços de Locke.
– Não importa o que acontecer agora, Locke – disse a maga –, lembre-se da sua vergonha e da sua raiva. Fique com raiva de mim, se preciso. Odeie-me, odeie meu filho
e todos os magos de Kartane com toda a força que tiver, ou você não viverá para se levantar desta mesa.
– Pare de tentar me assustar – reagiu Locke. – Verei você quando isto terminar.
– Guardião Torto – murmurou Jean consigo mesmo –, você ouviu o pedido de Locke, agora ouça o meu. Gandolo, Pai da Riqueza, eu nasci de pais mercadores e imploro
para ser lembrado. Venaporta, Dama das Duas Faces, sem dúvida você já se divertiu conosco antes. Dê-nos um sorriso agora. Perelandro, clemente e misericordioso,
talvez não o tenhamos servido de verdade, mas colocamos seu nome em todos os lábios de Camorr. Aza Guilla – sussurrou ele, sentindo um fio de suor nervoso escorrer
pela testa –, Gentilíssima Senhora, eu espiei um pouco sob suas saias, mas você sabe que meu coração está no lugar certo. Por favor, tenha trabalhos urgentes em
outro lugar esta noite.
Houve uma coceira na nuca de Jean, a mesma sensação fantasmagórica que ele tivera na presença do Falcoeiro e dos magos que o haviam atormentado junto com Locke no
Mercado Noturno de Tal Verrar. Paciência e Tutanofrio estavam absortos.
– Ah – ofegou Locke. – Ah!
Um gosto metálico surgiu na boca de Jean e ele engasgou, descobrindo que a garganta havia secado. O céu da boca parecia áspero feito papel. O que havia acontecido
com sua saliva?
– Inferno – praguejou Locke, arqueando as costas. – Ah, isso é... isso é pior do que o frio...
As tábuas das anteparas da cabine estalaram, como se o navio estivesse sacolejando, ainda que todos os sentidos de Jean dissessem que o Andarilho do Céu seguia devagar
e tranquilamente como sempre. Então, o chacoalhar começou, a princípio suave, mas logo as lanternas alquímicas amarelas se sacudiam e as sombras no cômodo oscilavam.
Locke gemeu. Paciência e Tutanofrio se inclinaram adiante, mantendo os braços dele presos, enquanto as mãos juntas trançavam e destrançavam o fio de prata. A visão
seria hipnotizante em circunstâncias calmas, porém Jean não estava nem um pouco calmo. Seu estômago se revirou como se ele tivesse comido ostras podres que agora
imploravam para ser libertadas.
– Maldição – sussurrou Jean, e mordeu os nós dos dedos como havia prometido.
A dor ajudou a empurrar de volta a maré de náusea, mas a atmosfera no cômodo estava ficando mais estranha. Agora as lanternas chacoalhavam como chaleiras em fogo
alto, e as chamas brancas das velas saltavam e dançavam segundo uma brisa que não era sentida.
Locke gemeu de novo, mais alto do que antes, e os mil pontos de luz prateada cravados na parte superior de seu corpo formavam uma arte fantasmagórica enquanto ele
fazia força contra as cordas.
Houve um chiado, depois um estalo parecido com o de um chicote. As lanternas alquímicas se despedaçaram, lançando cacos de vidro na cabine junto com sopros de vapor
sulfuroso. Jean se encolheu e os Magos-Servidores se inclinaram para trás enquanto os fragmentos tilintavam no chão ao redor.
– Fui muito envenenado – murmurou Locke, sem motivo aparente.
– Ajude – sussurrou Tutanofrio em voz tensa.
– Como? De quê vocês precisam? – Jean foi tomado por outra onda de náusea e se agarrou a uma antepara.
– Não... você.
A porta da cabine se abriu com estrondo. Um dos ajudantes que haviam carregado Locke na maca desceu a escada correndo, largando a capa vermelha ao chegar. Ele pôs
as mãos nas costas de Tutanofrio e firmou os pés como se segurasse o velho contra alguma força física. Sombras oscilavam loucamente na cabine enquanto as chamas
das velas giravam, e a náusea de Jean aumentou; ele tombou de joelhos.
Havia uma vibração estranha no ar, no chão, nas anteparas, nos ossos de Jean. Era como se ele estivesse recostado num mecanismo gigantesco cujas engrenagens girassem
todas. Atrás de seus olhos, a vibração ultrapassou o incômodo, chegando à dor. Jean imaginou um inseto enlouquecido preso dentro do crânio, picando, raspando e batendo
as asas contra qualquer coisa que encontrasse lá dentro. Era demais. Golpeado por sensações medonhas, curvou a cabeça e vomitou no chão.
Uma linha fina e escura apareceu ao lado do vômito: sangue de seu nariz. Ele tossiu uma fieira de palavrões com o gosto ácido da última refeição e, apesar de não
encontrar forças para ficar de pé, conseguiu inclinar a cabeça para trás o suficiente para ver o que iria acontecer.
– Esta é a sua morte, efígie. Você é ele, e não ele! – gritou Paciência, com a voz falha.
Houve um som como ossos se partindo, e as chamas das três velas saltaram em conflagrações de um tamanho suficiente para engolir as mãos de Jean. Então, elas ficaram
pretas – pretas como as profundezas da noite, um tom que não era natural e causava dor só de olhar. Jean se encolheu para longe daquilo, os olhos jorrando lágrimas
quentes. A luz emitida pelos fogos pretos era de um cinza pálido e tomava a cabine com o tom de água estagnada de cemitério.
Outro tremor atravessou as tábuas do navio, e o jovem Mago-Servidor às costas de Tutanofrio se afastou subitamente da mesa, com sangue jorrando do nariz. Enquanto
ele tombava, a mulher que estivera no tombadilho superior passou pela porta, as mãos levantadas para proteger os olhos daquela claridade fantasmagórica. Ela cambaleou,
batendo numa antepara, mas se manteve de pé e começou a entoar um cântico acelerado numa língua áspera e desconhecida.
Quem, diabos, está pilotando o navio?, pensou Jean, enquanto a luz cinza e doentia pulsava com velocidade igual à do seu coração e o próprio ar parecia ficar denso
com um calor febril.
– Tome esta morte. Você é ele – Tutanofrio ofegou – e não ele! Esta morte é sua!
Houve um som como de unhas arranhando ardósia e os gemidos de Locke se transformaram em gritos – os gritos mais altos e mais longos que Jean já ouvira.
4
A dor não era nada de novo para Locke, mas dor era um termo inadequado para o que aconteceu quando os dois Magos-Servidores o pressionaram para baixo e o espremeram
entre suas feitiçarias.
O cômodo ao redor se tornou um turbilhão confuso – luz branca, ar ondulando. Seus olhos ficaram turvos de lágrimas até que mesmo os rostos de Paciência e Tutanofrio
escorriam como cera derretendo. Algo se despedaçou e agulhas quentes pinicaram seu couro cabeludo e a testa. Ele viu um estranho redemoinho de vapores amarelos,
depois ofegou e gemeu enquanto as agulhas de prata em seu corpo subitamente se aqueceram, afastando toda a preocupação com o ambiente ao redor. Era como se milhares
de brasas incandescentes estivessem sendo enfiadas em seus poros.
Esfaqueado, pensou, trincando os dentes e reprimindo um grito. Isso não é nada. Já fui esfaqueado antes. Esfaqueado no ombro. No pulso. No braço. Cortado, esmagado,
surrado, chutado... afogado... quase afogado. Envenenado.
Resgatou o longo catálogo de danos, percebendo com uma parte mais profunda e ainda vagamente sensível de sua mente que contar dores infligidas para afastar a dor
infligida era ao mesmo tempo muito idiota e muito engraçado.
– Fui muito envenenado – disse consigo mesmo, estremecendo num paroxismo nascido do conflito entre o riso e a dor.
Houve um barulho, as vozes dos Magos-Servidores e de Jean – depois estalos, gemidos, pancadas, batidas. Tudo ficou nebuloso enquanto Locke lutava pelo autocontrole.
Após um intervalo impossível de mensurar, uma voz enfim penetrou em seu sofrimento; na verdade, mais do que uma voz. Era um pensamento, moldado por Paciência, cujo
toque ele agora reconhecia instintivamente nas formas-palavras que se enfiavam no centro de sua consciência:
– Você é ele... e não ele!
Por baixo das picadas de vespa das agulhas de aço de sonho, algo se movia dentro de Locke, uma pressão em suas entranhas. A qualidade da luz e do ar ao redor mudou;
o brilho branco das velas ficou preto. Como uma cobra, a força dentro dele se desenrolou e deslizou para cima, por baixo das costelas, por trás dos pulmões, contra
o coração pulsante.
– P-porra – tentou dizer, tão profundamente inquieto que nenhum ar se moveu para além de seus lábios.
Então, a coisa dentro dele se elevou, espumou, devorou – como alcatrão aquecido instantaneamente até ferver, escaldando a superfície de cada órgão e cada cavidade
entre o nariz e a genitália. Todas aquelas fendas jamais pensadas do corpo, de súbito vivas em sua mente, delineadas em pura agonia vulcânica.
Pare ah pare ah por favor pare só faça a dor acabar, pensou, tão dominado que sua decisão anterior estava esquecida por baixo da pura súplica animal. Pare a dor
pare a dor...
– Você é ele... e não ele!
O pensamento-voz era um eco fraco acima da maré de fogo interno. Tutanofrio? Paciência? Locke não sabia mais. Seus braços e suas pernas estavam entorpecidos, dissolvendo-se
numa névoa sensorial sem sentido para além do cerne quente de sua agonia. Os Magos-Servidores e tudo para além deles se desfizeram em névoa. A mesa pareceu sair
de debaixo dele; o negrume assomou como a chegada do sono. Suas pálpebras estremeceram e se fecharam e, enfim, o entorpecimento abençoado se espalhou para a barriga,
o peito e os braços, apagando o inferno que havia irrompido ali.
Que seja. Não quero morrer, mas, pelos deuses, que esta seja a última dor.
O mundo exterior tinha ficado silencioso, mas ainda havia algum ruído na escuridão – seu próprio ruído. O leve latejar de um coração batendo. O tremor seco da respiração.
Sem dúvida, se ele estivesse morto, tudo isso teria acabado. Houve uma pressão em seu peito. Uma sensação de peso: alguém estava empurrando num ponto em cima do
seu coração, e o toque era frio. Surpreso com o esforço que precisou fazer, Locke abriu parcialmente os olhos.
A mão acima do seu coração era de Pulga e os olhos que o espiavam no rosto do garoto morto eram de um preto sólido.
– Não existe última dor – disse Pulga. – Sempre dói. Sempre.
Locke abriu a boca para gritar, mas nenhum som passou pelos lábios, apenas um sibilo seco e mal perceptível. Ele fez força para se mexer, mas seus membros eram de
chumbo. Até o pescoço se recusava a obedecer às suas ordens.
Isso não pode ser real, tentou dizer, e as palavras não ditas ecoaram na sua cabeça.
– O que é real?
A pele de Pulga estava pálida e estranhamente frouxa, como se a carne por trás tivesse desmoronado para dentro. Seu cabelo, não mais cacheado, pendia liso e sem
vida acima dos olhos pretos e mortos. Um quatrelo de balestra, com crosta de sangue seco, ainda estava enterrado em seu pescoço. A cabine se achava escura e vazia;
Pulga parecia estar agachado acima dele, mas o único peso que Locke sentia era a pressão fria da mão sobre seu coração.
Você não está aqui de verdade!
– Nós dois estamos aqui. – Pulga mexeu no quatrelo como se fosse um colarinho incômodo. – Sabe por que ainda estou por aqui? Quando você morre, seus pecados são
gravados nos seus olhos. Veja bem.
Incapaz de se conter, Locke encarou aquelas medonhas esferas escuras e viu que o negrume não era contínuo. Tinha uma qualidade áspera e em camadas, como se fosse
feito de um número incontável de pequenas linhas de escrita pretas, todas se juntando até formar uma massa sólida.
– Não consigo ver a saída deste lugar – falou Pulga baixinho. – Não consigo encontrar o caminho para o que há em seguida.
Você tinha 12 anos, porra. Quantos pecados você poderia ter...
– Pecados de omissão. Pecados dos meus professores e meus amigos.
O peso gélido sobre o coração de Locke ficou maior ainda.
Besteira, eu sei, sou sacerdote do Guardião Torto!
– Como isso está funcionando para você? – Filetes de sangue escorriam pelo seu pescoço e saíam nos dedos pálidos de Pulga como um pó marrom quando ele os limpava.
– Não parece ter sido muito bom para nenhum de nós.
Eu sou um sacerdote, sei como isso funciona, não é assim que deveria ser! Sou sacerdote do Treze Sem Nome.
– Bom... eu poderia dizer até onde você vai, confiando em pessoas quando nem sabe o verdadeiro nome delas.
A pressão no peito de Locke se intensificou.
Estou sonhando. Estou sonhando. É só um sonho.
– Você está sonhando. Está morrendo. Talvez seja a mesma coisa.
Os cantos dos lábios de Pulga se elevaram brevemente numa débil tentativa de sorrir. O tipo de sorriso, pensou Locke, que a gente dá para alguém ao ver que a pessoa
está enfiada na merda.
– Bom, você tomou todas as suas decisões. Não resta nada para você ver, a não ser qual de nós dois está certo.
Espere, espere, não...
A dor no peito de Locke chamejou de novo, espalhando-se aguda para fora do coração, e dessa vez era fria, de um frio mortal, uma insuportável pressão gélida que
o espremia como um torno. A escuridão vinha atrás e a consciência de Locke se partiu contra ela como um navio lançado nas pedras.
i n t e r l ú d i o
A Lua do Órfão
1
Deixaram-no finalmente na escuridão e o ar frio tocou sua pele depois de uma hora de impotência abafada.
Fora uma viagem dura até o lugar do ritual, onde quer que fosse. Os homens não haviam tido muita dificuldade para carregá-lo, pois Locke pesava bem pouco, mas parecia
que eles tinham descido muitas escadas e percorrido passagens estreitas, curvas. Girando e girando no escuro, ele fora erguido, ouvindo os grunhidos e sussurros
dos adultos e o som de sua própria respiração dentro do áspero saco de lã que cobria a cabeça.
Por fim, esse capuz foi tirado. Locke piscou na penumbra de um cômodo grande e abobadado, mal iluminado por globos pálidos postos em nichos. As paredes e as colunas
eram de pedra, e aqui e ali Locke via pinturas decorativas descascando com a idade. Escorria água em algum lugar por perto, mas isso não era incomum numa estrutura
na parte baixa de Camorr. O significativo era que aquele era um local humano, todo de blocos e argamassa, sem nem um pedacinho visível de Vidrantigo.
Locke estava deitado de costas no meio da sala, numa laje baixa. As mãos e os pés não estavam amarrados, mas sua liberdade de movimento foi contida bruscamente quando
um homem se ajoelhou e encostou uma faca em seu pescoço. Locke podia sentir o gume da lâmina contra a pele e soube no mesmo instante que não era o tipo com o qual
seria possível brincar.
– Você está atado e obrigado ao silêncio em todos os sentidos, em todas as ocasiões, desde agora até o momento de pesar sua alma, com relação ao que faremos aqui
esta noite – disse o homem.
– Estou atado e obrigado – confirmou Locke.
– Quem o ata e o obriga?
– Eu me ato e me obrigo.
– Romper o que o ata é ser condenado a morrer.
– Eu me condenaria de boa vontade pelo meu fracasso.
– Quem condenaria você?
– Eu me condenaria.
Locke estendeu a mão direita e colocou-a sobre os dedos do homem. O estranho recolheu a mão, deixando que Locke segurasse a faca encostada em seu próprio pescoço.
– Levante-se, irmãozinho – ordenou o homem.
Locke obedeceu e devolveu a faca ao homem, um garrista musculoso e de cabelos compridos que conhecia de vista, mas não de nome. O mundo que o Capa Barsavi governava
era um lugar grande.
– Por que você veio aqui esta noite?
– Para ser um ladrão entre os ladrões – respondeu Locke.
– Então aprenda nosso sinal. – O homem ergueu a mão esquerda, os dedos ligeiramente abertos, e Locke imitou o gesto, apertando sua palma com firmeza contra a do
garrista. – Mão esquerda com mão esquerda, pele com pele, dirá aos seus irmãos e irmãs que você não está segurando armas, que não recusa o toque deles, que não se
coloca acima deles. Vá e espere.
Locke fez uma reverência e se moveu até a sombra de uma coluna. Calculou que havia espaço suficiente para algumas centenas de pessoas ali dentro. No momento, via
apenas alguns homens e mulheres. Ele fora trazido cedo, aparentemente, como um dos primeiros postulantes a fazer o juramento de sigilo. Observou tudo, sentindo o
borbulhar da empolgação no estômago, à medida que mais garotos e garotas entravam no cômodo, tiravam os capuzes e recebiam o tratamento que lhe fora dado. Calo...
Galdo... Jean... um a um, juntaram-se a ele e contemplaram a procissão. Os companheiros de Locke estavam numa seriedade e num silêncio pouco característicos. Na
verdade, ele poderia dizer que os Sanzas estavam nervosos. Não os culpou.
O capuz retirado em seguida revelou Sabeta. Seus lindos cachos castanhos falsos se derramaram e Locke mordeu a parte interna da bochecha quando a faca se encostou
no seu pescoço. Ela fez o juramento com rapidez e calma, numa voz que havia ficado um pouquinho mais rouca na última estação. Lançou um olhar para ele enquanto ia
se juntar aos Nobres Vigaristas e Locke esperou, por alguns segundos, que ela optasse por ficar ao seu lado. Mas Calo e Galdo se separaram, oferecendo um lugar entre
os dois, e Sabeta aceitou. Locke mordeu de novo a parte interna da bochecha.
Juntos, os cinco olharam mais adultos entrarem e mais crianças mais ou menos da sua idade passarem sob a lâmina do juramento. Havia alguns rostos familiares naquele
fluxo.
Primeiro, veio Tesso Volanti, dos Meias-Coroas, com sua juba preto-noite cheia de óleo. Ele sentia uma grande estima pelo grupo de Locke apesar (ou provavelmente
por causa) do fato de que Jean Tannen lhe dera uma portentosa surra alguns verões antes. Em seguida, vieram Saulo Gordo e Saulo Mais Gordo, dos Cortadores da Falsaluz...
Dominaldo Filho da Puta... Amelie, a Pegadora, que havia roubado o suficiente para se tornar integrante do Lis Dourado... alguns garotos e garotas que deviam ter
saído da cova do Aliciador mais ou menos na mesma época em que Locke... e, então, a última iniciada a ter o capuz retirado, Nazca Belonna Jenavais Angeliza de Barsavi,
filha mais nova, e única do sexo feminino, do governador absoluto do submundo de Camorr.
Depois que terminou de recitar seus juramentos, Nazca tirou um par de ópticos de uma bolsa de couro e colocou-os sobre o nariz. Ainda que ninguém com a cabeça no
lugar fosse rir dela por fazer isso, Locke suspeitou que Nazca não teria medo de usá-los em público mesmo se não fosse filha do Capa.
Locke podia ver os irmãos dela, Pachero e Anjais, de pé nas fileiras dos iniciados mais velhos, mas o lugar dela era entre os neófitos. Sorrindo, Nazca foi até Locke
e empurrou-o suavemente de seu lugar encostado na coluna.
– Olá, Lamora – sussurrou ela. – Preciso ficar perto de um garotinho feio para parecer melhor.
Ela com certeza não precisava, pensou Locke. Dois centímetros mais alta do que ele, ultimamente Nazca estava parecida com Sabeta, mais perto de ser mulher do que
menina. Por algum motivo, ela também tinha uma queda pelos Nobres Vigaristas. Locke havia começado a suspeitar que os “pequenos favores” que o padre Correntes já
fizera pelo Capa Barsavi não eram tão pequenos como ele dera a entender, e que Nazca conhecia pelo menos parte da história. Não que ela já tivesse falado disso.
– É bom ver você aqui nos lugares mais inferiores, com a gente, Nazca – disse Sabeta enquanto cutucava Jean graciosamente, tirando-o de sua posição atrás de Locke.
Locke sentiu um arrepio na espinha.
– Não existe isso numa noite destas – retrucou Nazca. – Somos apenas ladrões entre ladrões.
– Mulheres entre meninos – completou Sabeta com um suspiro exagerado.
– Pérolas entre suínos – acrescentou Nazca, e as duas deram risinhos. As bochechas de Locke arderam.
Era o início do inverno do Septuagésimo Sétimo Ano de Aza Guilla, o mês de Marinel, tempo de céu vazio. Era a noite chamada de Lua do Órfão, quando Locke e todos
como ele ficavam um ano mais velhos, segundo o antigo costume terim.
Era a única noite, em cada ano, em que os jovens ladrões eram iniciados completamente nos mistérios do Guardião Torto, em algum lugar nas profundezas escuras e meio
desmoronadas da velha Camorr.
Era, segundo supunha Correntes, a noite do décimo terceiro aniversário de Locke.
2
As atividades do dia haviam começado com a obtenção de uma oferenda adequada.
– Vamos jogar o bolo naquele sujeito ali – disse Jean.
Era o meio da tarde, e ele e Locke estavam esperando num beco perto da Avenida dos Cinco Santos, no bairro de classe alta chamado Curva da Fonte.
– Ele parece do tipo certo – concordou Locke. Em seguida, sopesou o importantíssimo pacote nos braços: um cubo de papel de linho embrulhando uma estrutura de madeira,
com uma base de madeira forte; a coisa toda media cerca de 75 centímetros de lado. – De onde você vai vir?
– Da direita dele.
– Vamos lá conhecê-lo.
Seguiram em direções opostas: Jean diretamente para o leste, entrando na avenida, e Locke para o lado oeste do beco, de modo a ir para o norte pela paralela Avenida
dos Louros e fazer o caminho mais longo para interceptar o alvo escolhido.
A Curva da Fonte era um reduto nobre; dava para perceber isso apenas contando o número de serviçais nas ruas e notando o jeito como os casacas-amarelas passeavam
relaxados em volta dos jardins e avenidas. Os arneses deles eram perfeitamente oleados, as botas brilhavam, as casacas e os chapéus não tinham o desgaste do tempo.
A designação para uma área assim era dada apenas aos guardas com contatos e, logo que assumiam o posto, esforçavam-se para se tornar tão decorativos quanto funcionais,
a fim de não serem transferidos para algum lugar muito mais animado.
O inverno em Camorr podia ser agradável quando o céu não estava mijando feito um velho que perdera o controle da bexiga. Naquele dia, o sol quente e a brisa fresca
batiam na pele ao mesmo tempo e era fácil esquecer os mil e um modos que a cidade tinha de sufocar, asfixiar, feder e suar. Locke se apressou em direção ao norte
por dois quarteirões, depois virou à direita, entrando no Bulevar da Pegada Esmeralda. Vestido como estava, com roupas de serviçal, era perfeitamente aceitável que
ele corresse desajeitadamente com sua carga incômoda, num passo indigno.
Quando o bulevar encontrou a Avenida dos Cinco Santos, Locke dobrou à direita outra vez e logo viu sua vítima. Estava a 50 metros do homem, assim teve tempo suficiente
para diminuir o passo e aprontar seu número. Nada mais de se apressar – naquela rua, ele se tornou a cautela em pessoa, um jovem serviçal obediente cuidando de um
pacote delicado, andando a uma velocidade sensata. Quarenta metros... Trinta metros... E ali estava Jean, vindo atrás do alvo.
A 20 metros, Locke se virou um pouco, deixando claro que não poderia haver colisão possível se ele e o estranho continuassem no rumo atual. Dez metros... Jean estava
quase junto ao cotovelo do sujeito.
A 5 metros do homem, Jean trombou no alvo por trás, mandando-o atabalhoadamente na direção exata, com ímpeto suficiente para bater de frente no embrulho. Locke garantiu
que seu cubo frágil se partisse e se esmagasse de imediato, junto com os 6 quilos de bolo de especiarias e glacê que ele continha. Boa parte do doce caiu nas pedras,
fazendo um som parecido com carne batendo no balcão de um açougueiro, e o resto se chocou contra Locke, que teatralmente caiu de bunda.
– Ah, pelo amor dos deuses! – gritou ele. – O senhor me arruinou!
– Ora, eu... eu... eu não... maldição! – gaguejou o alvo, saltando para trás, afastando-se do bolo esparramado e verificando a própria roupa.
Era um sujeito bem nutrido, de ombros arredondados, vestindo roupas respeitáveis, com uma proteção de couro contra borrões de tinta no punho direito da casaca, o
que revelava uma vida atrás de uma mesa.
– Eu fui empurrado por trás!
– Foi mesmo – concordou Jean, que estava tão bem-vestido quanto o alvo, e era igualmente largo, apesar de ter um terço da idade. Estava segurando meia dúzia de invólucros
de pergaminhos. – Tropecei no senhor por acaso, e peço desculpas. Mas nós dois juntos esmagamos o bolo desse pobre serviçal.
– Bom, a culpa não é minha. – O alvo espanou com cuidado algumas migalhas de glacê das calças. – Só fui apanhado no meio da confusão. Ora, vamos, garoto, não precisa
chorar por causa disso.
– Ah, preciso, sim, senhor – replicou Locke, fungando mais artisticamente do que em todos os seus dias no Morro das Sombras. – Meu patrão vai arrancar minha pele
e usá-la para encadernar livros!
– Levante a cabeça, garoto. Todo mundo leva algumas surras de vez em quando. Suas mãos estão limpas? – O alvo estendeu uma das mãos, de má vontade, e ajudou Locke
a se levantar. – Foi só um bolo.
– Não é um bolo qualquer. – Locke soluçou. – É para o aniversário do meu patrão e foi encomendado há um mês. É um bolo de 1 coroa, do Zakasta. Com todo tipo de alquimia
e especiarias.
– Do Zakasta – repetiu Jean com uma admirável imitação de espanto. – Caramba! Isso é que é azar.
– É o meu salário de um ano inteiro – choramingou Locke. – Não vou poder receber pagamento de adulto nos próximos dois anos. Ele vai arrancar minha pele e o meu
bolso.
– Não seja precipitado – disse Jean, acalmando-o. – Não podemos lhe arranjar um bolo novo, mas pelo menos podemos devolver a coroa ao seu patrão.
– Como assim, “podemos”? – O alvo se virou para Jean. – Quem, diabos, é você para falar por mim, garoto?
– Jotar Tatis, aprendiz de procurador.
– Ah, sim? Qual procurador?
– A Sra. Donatella Viricona – respondeu Jean com um esboço de sorriso. – Da Meraggio.
– Aaahh – fez o alvo, como se Jean tivesse acabado de apontar uma balestra carregada diretamente para sua genitália.
A Sra. Viricona era uma das litigantes mais conhecidas de Camorr, porta-voz de várias famílias nobres poderosas. Qualquer um que tivesse como ganha-pão carregar
pergaminhos sabia de sua fama.
– Sei... mas...
– Nós devemos 1 coroa a este pobre garoto – disse Jean. – Ande, podemos dividir a quantia. Eu posso ter esbarrado no senhor, mas sem dúvida o senhor poderia tê-lo
evitado se fosse mais cuidadoso.
Locke conteve um sorriso que teria chegado às suas têmporas se não tivesse sido controlado.
– Mas...
– Aqui, eu carrego o suficiente, para uso corriqueiro. – Jean estendeu 2 tirinos de ouro na palma direita. – Certamente isso não é problema para o senhor também.
– Mas...
– O que o senhor é, um verrari? É tão pão-duro a ponto de 2 tirinos serem uma imposição para o senhor? Nesse caso, pelo menos me diga o seu nome, para que eu conte
à minha patroa quem não quis...
– Ótimo – interrompeu o homem, levantando as mãos na direção de Jean. – Ótimo! Vamos pagar a porcaria do bolo. Meio a meio. – Ele entregou um par de tirinos para
Locke e observou Jean fazer o mesmo.
– O-obrigado, senhores – agradeceu Locke com a voz embargada. – Vou ouvir o diabo por causa disso, mas nem de longe tanto quanto seria.
– É razoável – observou Jean. – Que os deuses vão com vocês dois.
– É, é – disse o homem, com uma carranca. – Seja mais cuidadoso na próxima vez que estiver carregando um bolo, garoto.
Ele se afastou rapidamente sem falar mais nada.
– A culpa é uma coisa linda – disse Locke, suspirando, enquanto pegava a sujeira do bolo na caixa, uma mistura horrenda de farinha velha, serragem e gesso branco
que valeria mais ou menos um centésimo do que o infeliz otário havia entregado. – É 1 tirino para cada um por esta noite.
– Acha que o Correntes vai ficar satisfeito?
– Esperemos que o Benfeitor é que fique satisfeito – respondeu Locke, sorrindo. – Só vou limpar esta sujeira e encontrar um local para jogá-la fora, assim os casacas-amarelas
não vão quebrar meu crânio. De volta para casa?
– É, pelo caminho mais distante. Vejo você em meia hora.
3
– Aí o sujeito recuou como se Jean tivesse começado a fazer malabarismo com escorpiões – contou Locke, pouco mais de meia hora depois. – E Jean começou a chamá-lo
de pão-duro, de verrari, de todo tipo de coisas, e o pobre coitado entregou duas moedas de ouro, assim. – Locke estalou os dedos e os Sanzas aplaudiram educadamente.
Calo e Galdo estavam sentados lado a lado em cima de uma mesa na cozinha do refúgio de vidro, desdenhando o uso de qualquer coisa óbvia, como cadeiras.
– E essa é a oferenda de vocês? – perguntou Calo. – Um tirino cada?
– É uma quantia justa – disse Jean. – E achamos que nos esforçamos para conseguir. Mérito artístico, coisa e tal.
– Demoramos duas horas para fazer o bolo – completou Locke. – E vocês deveriam ter visto a interpretação. Nós poderíamos estar no palco. O coração do sujeito derreteu;
eu parecia extremamente triste e desesperançado.
– Então não foi uma representação – comentou Galdo.
– Dê um polimento na minha adaga por mim, Sanza – rebateu Locke, fazendo um elaborado gesto de mão que os camorris só usavam em público quando queriam com certeza
provocar uma briga.
– Claro, eu vou pegar o menor trapo que há na cozinha enquanto você desenha um mapa de onde ela esteve escondida todos esses anos.
– Ah, seja justo – interveio Calo. – Nós podemos vê-la com facilidade sempre que Sabeta está na sala!
– Como agora? – perguntou Sabeta, aparecendo na esquina do túnel de entrada no refúgio.
O fato de Locke não ter morrido instantaneamente era uma prova de que um humano do sexo masculino pode sobreviver quando até a última gota de sangue quente em seu
corpo aflui para as bochechas.
Sabeta estivera se exercitando. Seu rosto estava vermelho, várias mechas de cabelo muito bem trançado haviam saído do lugar e a gola aberta da túnica creme revelava
uma camada de suor na pele. Em geral, os olhos de Locke teriam se fixado nela como se fossem conectados à túnica por fios invisíveis, mas ele fingiu que algo terrivelmente
importante tinha acabado de aparecer no canto mais distante da cozinha.
– E o que vocês dois ganham provocando o Locke? – perguntou Sabeta. – Se algum de vocês já tiver algum pelo nos bagos, foi porque o colocaram ali com um pincel.
– Você nos fere profundamente – replicou Calo. – E o bom gosto nos impede de responder à altura.
– Porém – observou Galdo –, se você saísse perguntando a algumas pessoas do Lis Dourado, descobriria que o seu...
– Vocês andaram visitando o Lis Dourado? – perguntou Jean.
– Aahh – fez Calo, tossindo. – Quero dizer, se nós visitássemos o... é... Lis Dourado, hipoteticamente...
– Hipoteticamente – repetiu Galdo. – Excelente palavra. Hipoteticamente.
– Ah, não sei. É a cara de vocês obrigar outra pessoa a fazer todo o trabalho, não é? – Sabeta revirou os olhos. – Então, o que vocês vão oferecer?
– Vinho tinto – respondeu Calo. – Duas dúzias de garrafas. Pegamos emprestadas daquele velho sacana meio cego, perto da Via do Cordoeiro.
– Fui vestido feito um grã-fino – completou Galdo – e, enquanto eu o mantinha ocupado pela loja, Calo entrou e saiu pela janela dos fundos, quieto feito uma aranha.
– Foi fácil demais – acrescentou Calo. – O coitado não seria capaz de diferenciar um cu de cachorro de um penico, nem se você lhe desse três tentativas.
– De qualquer modo, Correntes disse que elas poderiam ser usadas para o brinde depois da cerimônia – observou Galdo. – Já que o objetivo é se livrar das oferendas.
– Legal – falou Jean, coçando a leve penugem de seu queixo. – O que você andou aprontando, Sabeta?
– É, o que você vai oferecer? – indagaram os gêmeos ao mesmo tempo.
– Demorou a maior parte do dia e não foi fácil, mas eu gostei da aparência disto.
Ela tirou das costas três cassetetes de madeira-bruxa polida. Um era novo, outro estava moderadamente arranhado e o último parecia ter sido usado para rachar crânios
pelo mesmo número de anos de vida dos Nobres Vigaristas mais novos.
– Ah, você está brincando – disse Galdo.
– Não, você está brincando, porra – emendou Calo.
– Seus olhos não estão enganando vocês. – Sabeta girou os cassetetes pelas alças. – De fato, vários guardas famosos pela vigilância perderam seus porretes convincentes.
– Ah, pelos deuses – disse Locke, as tripas se revirando com uma mistura de admiração e consternação. Sua satisfação por ter espremido meia coroa do pobre coitado
na Curva da Fonte desapareceu. – Isso... isso é uma tremenda obra de arte!
– Ah, obrigada. – Sabeta fez uma reverência fingida para a plateia. – Devo admitir que só dois eu tirei de cintos. O terceiro estava caído num posto da guarda. Achei
que não tinha motivo para recusar esse tipo de tentação.
– Mas por que você não contou à gente o que ia fazer? – perguntou Locke. – Perseguir a guarda sozinha...
– Vocês sempre contam a todo mundo o que vão fazer? – indagou Sabeta.
– Mas você poderia ter usado alguns vigias, alguma distração, só para garantir – insistiu Locke.
– Bom, vocês estavam ocupados. Eu vi você e o Jean fazendo seu bolinho.
– Você está querendo se mostrar – replicou Calo. – Espera causar boa impressão?
– Você acha que vai haver uma escolha – observou Galdo, maroto.
– Correntes diz que há uma chance a cada ano. Isso pode se destacar. Vocês dois não pensaram nisso?
– No sacerdócio pleno? – Calo colocou a língua para fora. – Não é do nosso estilo. Não nos leve a mal, nós amamos o Guardião Torto, mas nós dois...
– Só porque gostamos de beber não significa que queremos administrar a taverna – concluiu Calo.
– E você, Jean? – indagou Sabeta.
– Pergunta interessante. – Jean tirou os ópticos e pôs-se a limpá-los na manga da túnica enquanto falava: – Eu ficaria surpreso se o Guardião Torto quisesse alguém
como eu para ser sacerdote. Meus pais fizeram juramento a Gandolo. Gosto de pensar que sou bem-vindo onde os deuses me puseram, mas não acredito que eu seja destinado
a algo como o sacerdócio.
– E você, Locke? – perguntou Sabeta baixinho.
– Eu, ahn, acho que não pensei de verdade nisso. – Era mentira. Locke sempre fora fascinado pelas pistas que Correntes deixava escapar sobre a estrutura secreta
do sacerdócio do Guardião Torto, mas não tinha certeza do que Sabeta queria ouvir. – Eu, ahn, imagino que você tenha pensado, não é?
– Pensei. – Ali estava aquele sorriso dela, que era como o sol saindo de trás de uma nuvem. – Eu quero. Quero saber por que Correntes sorri o tempo todo. E quero
ganhar isso. Quero ser a melhor...
Foi interrompida por uma pancada que ecoou no túnel de entrada. Só podia ser Correntes voltando ao refúgio depois dos vários preparativos que a noite exigiria. Ele
virou a esquina e sorriu ao ver todos reunidos.
– Ótimo, ótimo – murmurou. – Sanzas, o vinho está sendo carregado por pessoas que estarão menos ocupadas do que vocês. Todos os outros, imagino que tenham suas oferendas,
não é? – Ele pareceu satisfeito com as confirmações de cabeça que recebeu. Locke captou o brilho de empolgação incomum nos olhos dele, apesar dos círculos escuros
que havia por baixo. – Excelente. Então vamos jantar antes de irmos.
– Vamos ter que nos vestir ou tomar banho? – perguntou Sabeta.
– Ah, não, minha cara, não. O nosso templo é pragmático. Além disso, não adianta tentarem ficar bonitos, já que vão ter a cabeça enfiada num saco. Tentem parecer
surpresos. Esse é o único segredinho que vou revelar antes da hora.
4
Um silêncio baixou sobre os ladrões reunidos enquanto vários homens e mulheres, usando uma estrutura de madeira desmontável, penduravam cortinas sobre a porta pela
qual os postulantes tinham sido carregados. Sem levar em conta umas poucas aberturas de ventilação no teto, essa porta era a única entrada para o salão, pelo que
Locke podia ver. Guardas assumiram posição perto das cortinas – sujeitos fortes usando compridos casacos de couro, com porretes e machados a postos. Correntes explicara
que o objetivo deles era garantir privacidade ao ritual. Outros guardas estariam do lado de fora, toda uma rede, espreitando em cada rota que algum estranho poderia
usar para espionar ou atrapalhar os ritos da Lua do Órfão.
Havia cerca de 120 pessoas na câmara. Era uma pequena fração dos camorris cujas vidas supostamente eram governadas pelo deus de nome oculto, mas essa, segundo Correntes,
era a natureza da devoção. Era fácil murmurar orações e maldições no calor do momento, e menos conveniente se esconder no meio de lugar nenhum na única noite do
ano em que os dedicados se juntavam de fato.
– Este é o templo da igreja sem templos – disse uma mulher usando capa cinza com capuz, adiantando-se para o meio da câmara abobadada. – Esta é a cerimônia da ordem
que não tem cerimônias.
– Pai das nossas fortunas, nós consagramos este salão aos seus propósitos; para nos juntarmos à sua graça e receber seus mistérios – recitou Correntes, a voz profunda
e sonora. Ele ocupou seu lugar ao lado da mulher, usando um manto semelhante. – Somos ladrões entre ladrões; nosso terreno é compartilhado. Somos guardiões de sinais
e senhas e estamos aqui sem malícia ou perfídia.
– Esta é a nossa vocação e nossa profissão, que você nos deu por amor – continuou o garrista que havia tomado o juramento de sigilo dos postulantes, agora com um
manto cinza. – Pai das Sombras, que nos ensina a tomar o que ousarmos tomar, receba nossas devoções.
– Você nos ensinou que a boa fortuna pode ser tomada e compartilhada – disse a sacerdotisa.
– Que os ladrões prosperem – entoou a multidão.
– Você nos ensinou a virtude e a necessidade de nossas artes – prosseguiu Correntes.
– Que os ricos se lembrem.
– Você nos deu a escuridão para ser nosso escudo – falou o terceiro sacerdote. – E nos ensinou a bênção do companheirismo.
– Somos ladrões entre ladrões.
– Abençoados os rápidos e os ousados – continuou Correntes, indo para a frente do salão, onde um bloco de pedra fora coberto com um pano de seda preto. – Abençoados
os pacientes e os atentos. Abençoados aqueles que ajudam um ladrão, escondem um ladrão, vingam um ladrão e se lembram de um ladrão, porque eles herdarão a noite.
– Herdarão a noite – entoou solenemente a multidão.
– Estamos reunidos em paz, aos olhos do Benfeitor, o Décimo Terceiro Príncipe da Terra e do Céu, cujo nome é guardado – disse a sacerdotisa, ocupando um lugar do
lado esquerdo de Correntes. – Esta é a noite que ele reivindica para ser lembrado, a Lua do Órfão.
– Há algum dentre nós que assumiria um compromisso solene e faria um juramento de união? – perguntou o terceiro sacerdote.
Esse era o momento crucial. Qualquer ladrão, qualquer pessoa mesmo remotamente conectada a uma existência fora da lei era bem-vinda naquele grupo, desde que fizesse
o juramento de sigilo. Mas os que dariam o passo seguinte, o juramento de união, proclamariam sua escolha do Treze Sem Nome como patrono celestial. Sem dúvida eles
não estariam dando as costas para os outros deuses do panteão terim, mas ao patrono entregariam suas orações mais profundas e as melhores oferendas enquanto vivessem.
Nem mesmo as crianças que estudavam para se tornar sacerdotes faziam juramentos formais de união até o início da adolescência, e muitas pessoas jamais o faziam,
preferindo cultivar uma devoção frouxa a todos os deuses em vez de uma obrigação mais formal a apenas um.
Nazca foi a primeira a se adiantar e, atrás dela, acanhados, vieram todos os outros. Assim que os postulantes haviam se arrumado com o máximo de dignidade possível,
Correntes estendeu as mãos.
– Esta decisão, depois de tomada, não pode ser desfeita. Os deuses sentem ciúme das promessas e não admitirão que este juramento seja violado. Portanto, estejam
decididos, com sobriedade e solenidade, ou fiquem de lado. Não há vergonha em não estar preparado para este momento.
Nenhum postulante recuou. Correntes bateu palmas três vezes e o som ecoou na câmara.
– Salve o Guardião Torto – disseram os três sacerdotes em uníssono.
– PAREM!
Uma voz nova ecoou no fundo da câmara e, de trás da multidão de espectadores, veio um trio de homens usando mantos e máscaras pretos, seguidos por uma mulher de
vestido vermelho. Vieram intempestivamente pelo corredor no centro da câmara, empurrando os postulantes, e ficaram lado a lado entre eles e o altar.
– PAREM IMEDIATAMENTE! – berrou um homem cuja máscara era um sol de bronze estilizado, com raios esculpidos se espalhando de um rosto solene e sério. Ele segurou
Oretta, uma menina cheia de cicatrizes que tinha boa reputação como lutadora com facas, e a arrastou para a frente. – O Sol os comanda agora! Eu queimo as sombras,
expulso a noite, torno evidentes os pecados de vocês! Os homens honestos se levantam comigo e dormem quando eu me ponho! Sou o senhor e o pai de todas as propriedades.
Quem é você para me desafiar?
– Uma ladra entre ladrões – respondeu Oretta.
– Receba minha maldição. A noite será o seu dia, as luas pálidas serão o seu sol.
– Recebo sua maldição como uma bênção do meu patrono celestial.
– Esta aqui fala por todos vocês?
– Fala! – gritou o grupo de postulantes.
O Sol jogou Oretta no chão sem gentileza e deu as costas para todos eles.
– Agora ouçam as palavras da Justiça – disse a mulher de vestido vermelho, que era curto e rasgado. Tinha uma máscara de veludo como as que os magistrados do Duque
usavam para esconder a identidade. A Justiça empurrou Nazca pelos ombros e obrigou-a a se ajoelhar. – De todas as coisas que eu peso, a que mais importa é o ouro,
e você não tem nenhum. Todos os nomes eu leio, mas os que têm títulos me agradam mais, e você descende da terra comum. Quem é você para me desafiar?
– Uma ladra entre ladrões – respondeu Nazca.
– Receba minha maldição. Todos os que me servem serão vigilantes às suas falhas, cegos às suas virtudes e surdos às suas súplicas.
– Recebo sua maldição como uma bênção do meu patrono celestial.
– Esta aqui fala por todos vocês?
– Fala!
A Justiça empurrou Nazca no meio dos outros e lhe deu as costas.
– Eu sou o Homem Contratado – apresentou-se um homem com máscara de couro marrom. Um escudo e um porrete estavam pendurados nas costas de seu manto. Ele agarrou
Jean. – Eu barro todas as portas, guardo cada muro. Uso as rédeas seguradas por homens melhores. Encho as sarjetas com o sangue de vocês para ganhar meu pão. Seus
gritos são minha música. Quem é você para me desafiar?
– Um ladrão entre ladrões – respondeu Jean.
– Receba minha maldição. Vou caçá-lo sob o sol ou sob as estrelas. Usarei você e irei incitá-lo a trair seus irmãos e irmãs.
– Recebo sua maldição como uma bênção do meu patrono celestial.
– Recebe? – O homem sacudiu Jean ferozmente. – Este aqui fala por todos vocês?
– Fala!
O Homem Contratado soltou Jean, gargalhou e lhe deu as costas. Locke afastou vários outros postulantes para ser o primeiro a ajudar Jean a ficar de pé.
– Eu sou a Sentença – disse o último recém-chegado, um homem cuja máscara preta não tinha ornamentos. Com um laço de forca, prendeu Tesso Volanti pelo pescoço e
puxou-o para a frente. O garoto fez uma careta, segurou a corda e lutou para se equilibrar. – Ouça-me bem. Eu sou a misericórdia recusada. Sou a conveniência. Sou
uma assinatura num pedaço de pergaminho. E é assim que você morre: por escrivães, por carimbos, por selos em cera. Sou barato, sou fácil, estou sempre faminto. Quem
é você para me desafiar?
– Um ladrão entre ladrões – respondeu Tesso, ofegando.
– E todos eles serão enforcados com você, pelo companheirismo, e compartilharão a morte em partes iguais, como um saque?
– Ainda não fui apanhado – rosnou o garoto.
– Receba minha maldição. Eu esperarei você.
– Recebo sua maldição como uma bênção do meu patrono celestial.
– Esse idiota fala por todos vocês?
– Fala!
– Vocês todos nasceram para ser enforcados. – O homem soltou Tesso do laço de forca e se virou.
O garoto cambaleou para trás e foi segurado por Calo e Galdo.
– Partam, fantasmas! – gritou Correntes. – Vão de mãos vazias! Contem aos seus senhores como temos pouco medo de vocês e como nosso desprezo é profundo!
Os quatro antagonistas fantasiados marcharam de volta pelo corredor, até sumirem da visão de Locke em algum lugar atrás da aglomeração, perto da porta da câmara.
– Agora encarem seu juramento – disse Correntes.
A sacerdotisa pôs um livro encadernado em couro no altar e o sacerdote colocou uma bacia de metal ao lado. Correntes apontou para Locke. Tenso de empolgação, ele
foi até o altar.
– Como você se chama?
– Locke Lamora.
– Você é um servidor verdadeiro e voluntário de nosso décimo terceiro deus, cujo nome é guardado?
– Sou.
– Você consagra pensamentos, palavras e obras ao serviço dele, desde agora até o momento em que sua alma será pesada na balança?
– Consagro.
– Você selará esse juramento com sangue?
– Selarei com sangue sobre uma oferenda da minha profissão.
Correntes entregou a Locke uma faca cerimonial feita de aço enegrecido.
– Qual é a oferenda?
– Uma moeda de ouro roubada com minhas próprias mãos. – Locke usou a faca para furar o polegar esquerdo, espremeu sangue sobre o tirino que havia roubado com o ardil
do bolo e o pôs na bacia, devolvendo a lâmina a Correntes.
– Esta é a lei dos homens – falou Correntes, apontando para o livro encadernado em couro –, que lhe diz que você não deve roubar. O que é esta lei para você?
– Palavras em papel.
– Você renuncia e despreza esta lei?
– Com toda a minha alma. – Locke se inclinou adiante e cuspiu no livro.
– Que as sombras saibam que você é uma delas, irmão. – Correntes encostou uma moeda fria e reluzente na testa de Locke. – Eu o abençoo com prata, que é a luz da
lua e das estrelas.
– Eu o abençoo com o pó das pedras de calçamento em que você pisa – completou a mulher, passando um pouco de sujeira na bochecha direita de Locke.
– Eu o abençoo com as águas de Camorr, que trazem a riqueza que você espera roubar – acrescentou o terceiro sacerdote, encostando os dedos molhados na bochecha esquerda
de Locke.
E assim foi feito: o juramento de união, sem falha ou hesitação no ritmo. Sentindo um orgulho que aquecia seu corpo, Locke se juntou de novo aos outros garotos,
mas ficou separado deles por cerca de 1 metro.
O ritual continuou. Nazca em seguida, então Jean, e Tesso, e Sabeta. Houve um murmúrio geral de apreciação quando ela revelou a oferta de cassetetes roubados. Depois
disso, as coisas prosseguiram facilmente até que um dos Sanzas foi chamado e os dois avançaram juntos para o altar.
– Um de cada vez, garotos – disse Correntes.
– Nós vamos fazer juntos – explicou Calo.
– Nós achamos que o Guardião Torto não vai nos querer de outro modo – completou Galdo. Os gêmeos se deram as mãos.
– Então tudo bem! – Correntes sorriu. – O problema é de vocês se ele não quiser, garotos. Como vocês se chamam?
– Calo Giacomo Petruzzo Sanza.
– Galdo Castellano Molitani Sanza.
– Vocês são servidores verdadeiros e voluntários de nosso décimo terceiro deus, cujo nome é guardado?
– Somos!
– Vocês consagram pensamentos, palavras e obras ao serviço dele, desde agora até o momento em que suas almas serão pesadas na balança?
– Consagramos!
Assim que os Sanzas terminaram, os postulantes que restavam fizeram os juramentos sem mais complicações. Correntes se dirigiu à assembleia enquanto seus colegas
sacerdotes levavam para longe a bacia cheia de oferendas. Mais tarde naquela noite, eles entregariam o conteúdo às águas escuras do Mar de Ferro.
– Resta uma coisa, então. A possibilidade de uma escolha. Nós, sacerdotes do Guardião Torto, somos poucos, e poucos são chamados a se juntar às nossas fileiras.
Avaliem com cuidado se vocês se ofereceriam para o terceiro e último juramento, o juramento de serviço. Os que não desejam isso, juntem-se aos colegas nas laterais
da câmara. Os que se oferecem para a escolha, permaneçam onde estão.
O grupo de postulantes se afastou rapidamente. Alguns hesitaram, mas a maioria tinha uma expressão de perfeito contentamento, inclusive Jean e os Sanzas. Locke ponderou
em silêncio... Ele queria mesmo? Parecia certo? Não deveria haver sinais, presságios, algum tipo de orientação? Talvez fosse melhor apenas ficar de lado...
De repente, percebeu que a única pessoa ainda parada junto dele era Sabeta.
Não havia hesitação nos modos dela: braços cruzados, o queixo um pouco erguido, parecia pronta para lutar fisicamente contra qualquer um que questionasse seus sentimentos.
Estava olhando de rabo de olho para Locke, cheia de expectativa.
Seria esse o sinal? O que ela pensaria a seu respeito se ele desse as costas a essa chance? O pensamento de não conseguir igualar a coragem de Sabeta era como uma
faca em suas entranhas. Ele se empertigou e assentiu para Correntes.
– Duas almas ousadas – falou Correntes baixinho. – Ajoelhem-se e baixem a cabeça em silêncio. Nós três rezaremos pedindo orientação.
Locke obedeceu, cruzou as mãos e fechou os olhos. Guardião Torto, não deixe que eu cometa algum erro medonho diante de Sabeta, pensou; depois, percebeu que rezar
por seus próprios problemas num momento assim poderia ser blasfêmia. Merda, foi seu pensamento seguinte, e isso, claro, era ainda pior.
Lutou para manter a cabeça respeitosamente vazia e ouviu o murmúrio de vozes adultas. Correntes e seus colegas conferenciaram em particular durante algum tempo.
Por fim, Locke escutou passos se aproximando.
– Um será escolhido – disse a sacerdotisa – e deve responder diretamente. A chance, caso recusada, jamais será oferecida outra vez.
– Coisas pequenas nos guiam nesta escolha – observou o garrista de cabelos compridos. – Sinais do passado. A prova de seus feitos. Presságios sutis.
– Mas o Benfeitor não toma as decisões difíceis por nós – acrescentou a mulher. – Nós rezamos para que nossa escolha sirva aos melhores interesses dele, e portanto
aos nossos.
– Locke Lamora – concluiu Correntes, pousando as mãos nos ombros de Locke. – Você é chamado ao serviço do Décimo Terceiro Príncipe da Terra e do Céu, cujo nome é
guardado. Como responde a essa convocação?
Com os olhos arregalados de choque, Locke olhou de relance para Correntes, depois para Sabeta.
– Eu... – sussurrou ele, depois pigarreou e falou mais claramente: – Eu... devo. Eu aceito.
Aplausos irromperam na câmara, mas a expressão no rosto de Sabeta nesse instante cortou com frieza a empolgação de Locke. Era uma expressão que ele conhecia bem
demais, uma que ele próprio havia treinado: o rosto de jogo, o vazio perfeito, uma máscara neutra destinada a esconder emoções mais acaloradas.
Dada a atitude dela mais cedo, Locke não teve dificuldade para adivinhar quais eram essas emoções mais acaloradas.
Capítulo Quatro
Atravessando o Amatel
1
Tudo o que era errado chegou ao ápice ao mesmo tempo: os gritos de Locke, a vertigem incapacitante de Jean e as chamas pretas das velas, enchendo a cabine com sua
medonha não luz de água de sepultura.
Houve uma vibração no ar quente capaz de sacudir os ossos, uma sensação de que algo vasto e invisível estava passando em alta velocidade. Então, as chamas pretas
morreram, lançando o cômodo num breu. Os gritos de Locke foram se transformando em soluços ásperos.
A força de Jean se esvaiu. Comprimido pela náusea que sentia como um arnês cheio de pesos, ele tombou para a frente e seu queixo bateu no piso com força suficiente
para trazer de volta lembranças de suas brigas de rua menos bem-sucedidas. Decidiu descansar por apenas alguns batimentos cardíacos, que se tornaram respirações,
e depois minutos.
Outra seguidora de Paciência por fim abriu a porta da cabine e desceu a escada com uma lanterna. Sob essa luz oscilante e amarela, Jean pôde captar a cena.
Paciência e Tutanofrio permaneciam de pé, ainda conscientes, mas segurando-se mutuamente para se apoiar. Os dois Magos-Servidores mais jovens jaziam no chão, mas
Jean não conseguia se importar em saber se estavam vivos ou mortos.
– Arquidama! – exclamou a recém-chegada com a lanterna.
Paciência descartou a mulher com um aceno trêmulo.
Jean se levantou sobre um dos joelhos, gemendo. A náusea continuava, como a de dez ressacas pulsando numa cabeça chutada, mas o pensamento de que Paciência estava
de pé feriu seu orgulho o suficiente para lhe dar forças. Ele piscou, ainda sentindo uma inflamação ardida nos cantos dos olhos, e tossiu. O candelabro estava chamuscado
de preto e envolto numa fumaça de cheiro medonho. A mulher com a lanterna abriu as janelas de popa e, felizmente, o ar fresco do lago afastou parte do miasma.
Mais alguns instantes se passaram e, por fim, Jean se levantou, cambaleando. Ao lado de Tutanofrio, ele se agarrou à mesa e sacudiu o braço esquerdo de Locke.
Locke gemeu e arqueou as costas, para imenso alívio de Jean. A tinta e o aço de sonho escorreram da pele pálida de Locke numa centena de riachos pretos e prateados,
fazendo uma sujeira completa, mas pelo menos ele estava respirando. Jean notou que os punhos de Locke estavam cerrados com força e abriu suas mãos cuidadosamente.
– Funcionou? – murmurou Jean. Como ninguém respondeu, Jean tocou o ombro da maga. – Paciência, você pode...
– Foi por pouco. – Ela abriu os olhos devagar, retraindo-se. – O alquimista de Stragos conhecia o serviço.
– Mas Locke está bem?
– Claro que ele não está bem. – Ela se soltou do fio de prata que a prendia a Tutanofrio. – Olhe para ele. Só podemos garantir que ele não está mais envenenado.
A náusea de Jean foi diminuindo à medida que a brisa da noite preenchia o cômodo. Ele limpou parte do detrito preto e prateado de debaixo do queixo de Locke e sentiu
a pulsação fraca em seu pescoço.
– Jean – sussurrou Locke. – Você está péssimo.
– Bom, você parece que perdeu uma briga com um mercador de tinta bêbado!
– Jean – disse Locke com mais ênfase, e agarrou o antebraço esquerdo do amigo. – Jean, pelos deuses, isso é real. Ah, pelos deuses, eu pensei... eu vi...
– Calma. Você está em segurança.
– Eu... – Os olhos de Locke perderam o foco e sua cabeça pendeu.
– Maldição – murmurou Paciência. Ela limpou mais um pouco da sujeira do rosto de Locke e lhe tocou a testa. – Ele foi muito longe.
– O que há de errado agora? – perguntou Jean.
– O que você e eu suportamos foi apenas uma fração do choque que ele teve de suportar. O corpo dele foi levado aos limites mortais.
– E o que você vai fazer com relação a isso? Mais magia?
– Minhas artes não podem curar. Ele precisa de nutrição. Precisa ser preenchido de comida até não aguentar mais uma migalha. Nós fizemos arranjos para isso.
Tutanofrio gemeu, mas assentiu e saiu cambaleando da cabine.
Voltou carregando uma bandeja com uma pilha de toalhas, uma jarra d’água e vários pratos cheios de comida. Pousou-a na mesa, logo acima da cabeça de Locke, depois
limpou o rosto e o peito dele com as toalhas. Jean pegou um pedaço de carne cozida, puxou o queixo de Locke para baixo e enfiou-o em sua boca.
– Anda. Nada de cair no sono.
– Mmmmf – murmurou Locke. Em seguida, moveu o maxilar algumas vezes, começou a mastigar e abriu os olhos de novo. – Qhhh prrrrhh eeeffff – murmurou. – Hgggh.
– Engole.
– Mmmmf.
Locke obedeceu, depois fez um gesto na direção da água.
Jean ajudou Locke a se apoiar nos cotovelos e levou a jarra aos lábios dele. Tutanofrio continuou a limpar a tinta e o aço de sonho, mas Locke não notou. Tomou a
água em goles indignos até esvaziar a jarra.
– Mais – pediu Locke, voltando a atenção para a comida.
A maga com a lanterna pousou-a, pegou a jarra e saiu correndo.
A comida que estava na bandeja era simples: presunto cozido, pão escuro e áspero, algum tipo de arroz com molho. Locke atacou aquilo como se fosse a primeira comida
que os deuses haviam conjurado na terra. Jean segurou um prato enquanto ele empurrava o pão com as mãos trêmulas, puxava todo o resto para a boca e mal parava para
mastigar. Quando a jarra d’água retornou, ele estava no segundo prato.
Locke murmurou vários monossílabos de limitada utilidade filosófica. Seus olhos estavam brilhantes, mas tinham uma expressão atordoada. Sua consciência de mundo
parecia ter se reduzido ao prato e à jarra. Tutanofrio terminou de limpá-lo e Paciência estendeu uma das mãos sobre as pernas dele. A corda que havia atado Locke
à mesa se desamarrou e saltou para a mão dela, enrolando-se.
A primeira bandeja de comida – o bastante para alimentar quatro ou cinco pessoas famintas – logo terminou. Quando a maga ajudante trouxe uma segunda, Locke atacou-a
sem diminuir a velocidade. Paciência o observava, alerta. Enquanto isso, Tutanofrio cuidava dos jovens magos que haviam desmaiado durante o ritual.
– Estão vivos? – perguntou Jean, enfim encontrando um resíduo de cortesia, ainda que nada mais do que isso. – O que aconteceu com eles?
– Já tentou levantar uma coisa pesada demais? – Tutanofrio roçou os dedos na testa da jovem inconsciente. – Eles vão ficar bem, e mais sábios com a experiência.
As mentes jovens são frágeis. Nós, os mais velhos, já tivemos alguns desapontamentos. Deixamos de lado a ideia de que somos o centro do universo, por isso nossas
mentes se dobram sob a tensão em vez de enfrentá-la de cabeça. – Os joelhos de Tutanofrio estalaram quando ele se levantou. – Além de todos os nossos outros serviços
desta noite, um pouco de filosofia.
– Jean – murmurou Locke. – Jean, onde, diabos... o que eu estou fazendo?
– Tentando encher um buraco – respondeu Paciência.
– Bom, eu estava...? Parece que me perdi agora mesmo. Estou me sentindo tremendamente estranho.
Jean pôs a mão no ombro de Locke e franziu a testa.
– Você está ficando mais quente.
Encostou a palma da mão na testa dele e sentiu um calor febril.
– Certamente não parece, pelo meu lado das coisas – replicou Locke.
Trêmulo, estendeu a mão para o cobertor sobre as pernas. Jean envolveu seus ombros com ele.
– Então você está consciente de novo? – perguntou Jean.
– Estou? Diga você. Eu só... Nunca senti tanta fome. Nunca. Diabos, eu ainda estaria comendo, mas acho que não tenho espaço. Não sei o que aconteceu comigo.
– E vai acontecer de novo – avisou Paciência.
– Ah, que ótimo. Bom, talvez seja uma pergunta idiota, mas deu certo?
– Se não tivesse dado, você teria morrido há vinte minutos.
– Então aquilo saiu de mim – murmurou Locke, olhando para as mãos. – Pelos deuses. Que sujeira. Eu me sinto... Não sei. Fora as 100 toneladas que enfiei no estômago,
não sei se estou me sentindo melhor.
– Bom, eu tenho certeza de que estou me sentindo melhor – retrucou Jean.
– Estou com frio. Mãos e pés entorpecidos. Parece que envelheci cem anos. – Locke deslizou para fora da mesa, puxando o cobertor com mais força em volta do corpo.
– Mas acho que posso ficar de pé!
Demonstrou o otimismo questionável dessa declaração caindo de cara.
– Maldição – murmurou enquanto Jean o levantava. – Tem certeza de que não pode fazer nada a respeito disso, Paciência?
– Sr. Lamora, seu completo ingrato, não fiz milagres suficientes por uma noite?
– Puramente como investimento. Mas acho que, mesmo assim, eu deveria agradecer.
– É, mesmo assim. Quanto à sua força, agora tudo depende da natureza. Você precisa de comida e descanso como qualquer outro convalescente.
– Bom, ahn, se não for problema, eu gostaria de falar a sós com o Jean.
– Devo esvaziar a cabine?
– Não. – Locke encarou por um momento os jovens magos inconscientes. – Não, deixe seus aprendizes, ou sei lá o que são, curarem a ressaca. Um passeio pelo convés
vai me fazer bem.
– Eles têm nomes – disse Paciência. – Você vai trabalhar para nós; é melhor aceitar isso. Eles se chamam...
– Pare. Estou extremamente grato pelo que você fez aqui, mas não vai me levar a Kartane para ser amigo de ninguém. Desculpe se não me sinto cordial.
– Acho que eu deveria considerar seu retorno à grosseria um crédito às minhas artes – observou Paciência com um suspiro. – Vou dar instruções para trazerem mais
comida e água para você.
– Duvido que eu possa comer sequer um pedacinho.
– Ah, espere uns minutos. Eu já tive filhos. Confie em mim quando digo que você vai ser governado pela barriga durante algum tempo.
2
– Estou dizendo, Jean, ele estava lá. Estava lá, olhando para mim, mais perto do que você está agora.
Locke e Jean se achavam encostados no corrimão de popa do Andarilho do Céu, olhando o movimento suave das luzes-fantasmas que davam seu nome ao Lago das Joias. Elas
brilhavam nas profundezas negras, lascas de um fogo frio de rubi e de um suave branco de diamante, como estrelas submersas, fora do alcance humano. Sua natureza
era desconhecida. Alguns diziam que eram almas dos mil amotinados afogados pelo imperador louco Orixanos. Outros juravam ser tesouros dos Ancestres. Em Lashane,
Jean até lera um panfleto em que um Erudito do Colégio Terim argumentava que as luzes eram peixes reluzentes, imbuídos dos traços alquímicos que haviam se derramado
no lago nas décadas desde o aperfeiçoamento dos globos de luz.
O que quer que fossem, eram uma distração bastante bonita, ondulando suavemente na esteira do navio. Manchas cinzentas no horizonte sugeriam a aproximação do alvorecer,
mas um teto baixo de nuvens escuras ainda escondia o céu.
Locke estava trêmulo e febril, usando o cobertor como um xale. Entre as frases, mastigava nervosamente um pedaço de bolacha seca de bordo da pequena pilha que ele
carregava enrolada numa toalha.
– Dado o que estava acontecendo, Locke, acho que a aposta mais segura seria que você imaginou isso.
– Ele falou comigo com sua própria voz. – Locke estremeceu. Jean lhe deu um aperto amigável no ombro, mas Locke prosseguiu: – E os olhos... os olhos... você já ouviu
alguma coisa assim, nos templos em que entrou? Sobre os pecados de uma pessoa estarem gravados nos olhos?
– Não. Mas, afinal de contas, você conhece mais rituais secretos de pelo menos um templo do que eu. Seria pisar num dos seus votos se eu perguntasse se você...
– Não, não. Nunca ouvi falar de nada assim na ordem do Treze.
– Então você imaginou aquilo tudo.
– Por que diabos eu imaginaria uma coisa dessas?
– Porque você é um maldito idiota obcecado pela culpa?
– Para você é fácil falar.
– Não é. Olha, você acha mesmo que a vida além da vida é uma farsa tão grande que as pessoas andam por aí, em espírito, com os corpos mutilados? Acha que as almas
têm dois olhos na cabeça? Ou que precisam deles?
– Nós vimos certas verdades em formas limitadas para que possamos apreendê-las. Não vemos a vida depois da vida como ela é de verdade, porque aos nossos olhos ela
se conforma à nossa mecânica da natureza.
– Saído direto da teologia elementar, exatamente como eu aprendi. Várias vezes – disse Jean. – De qualquer modo, desde quando você é um conhecedor da revelação?
Algum dia, em algum ponto da sua vida desde que se tornou sacerdote, você foi golpeado pela luz da claridade celestial, por sonhos e visões, por presságios, ou por
qualquer coisa que fez você tremer dentro das calças e exclamar “Puta que o pariu, os deuses falaram”?
– Você sabe que eu teria lhe contado se isso tivesse acontecido. Além do mais, não é assim que as coisas funcionam; pelo menos não é como somos ensinados na nossa
ordem.
– Você acha que cada seita não ouve dizer a mesma coisa, Locke? Ou você acredita honestamente que há um templo por aí, em algum lugar, onde os sacerdotes são golpeados
na cabeça por raios de verdade incandescente enquanto o resto de vocês precisa tropeçar com a intuição?
– Você está ampliando a discussão, não é?
– De jeito nenhum. Depois de tantos anos, tantas lutas, tanto sangue, por que você começaria de repente a ter revelações verdadeiras de além-túmulo só agora?
– Não sei. Não posso presumir que falo pelos deuses.
– Mas é exatamente isso que você está fazendo. Escute, se entrar num bordel e se pegar sendo chupado, é porque colocou algum dinheiro no balcão, e não porque os
deuses transportaram um par de lábios para o seu pau.
– Isso é... uma metáfora realmente incrível, Jean, mas acho que eu gostaria de uma tradução.
– O que estou dizendo é que nós temos o dever de aceitar pela fé, mas também temos o dever de pesar e avaliar. Quando você insiste que alguma coisa mundana foi de
fato a mão milagrosa dos deuses, por que não tratar tudo do mesmo modo? Se você começa a encontrar mensagens do céu na salsicha do café da manhã, joga de lado a
responsabilidade de usar a cabeça. Se os deuses quisessem idiotas crédulos como sacerdotes, por que não o tornariam assim quando você foi escolhido?
– Isso não aconteceu quando eu estava tomando o café da manhã, pelo amor da porra.
– É, aconteceu enquanto você estava a essa distância da morte. – Jean estendeu o polegar e o indicador bem apertados um contra o outro. – Doente, exausto, drogado
e sob os cuidados gentis das pessoas que mais gostamos em todo o mundo. Eu acharia estranho se você não tivesse um ou dois pesadelos.
– Mas foi tão nítido! E foi tão...
– Você disse que ele estava frio e vingativo. Isso lembra o Pulga? E acha mesmo que ele ainda estaria aqui, onde você o imaginou, pairando anos depois de ter morrido,
só para apavorar você durante meio minuto?
Locke enfiou mais bolachas na boca e mastigou, agitado.
– Eu me recuso a acreditar – continuou Jean – que nós vivemos num mundo onde a Senhora do Longo Silêncio deixaria o espírito de um menino andar por aí inquieto durante
anos, só para amedrontar outra pessoa! Pulga se foi há muito tempo, Locke. Foi só um pesadelo.
– Espero tremendamente que sim.
– Preocupe-se com outra coisa. Sério, agora. Os magos cumpriram com a parte deles no trato. Eles esperam que nós sejamos úteis em seguida.
– Tremenda convalescença.
– Estou feliz demais em ver você de pé e se lastimando de novo. Preciso de você, irmão. Não deitado na cama, inútil feito um pedaço de bosta de cachorro em conserva.
– Vou me lembrar de toda essa simpatia e ternura na próxima vez que você estiver doente.
– Eu tive a simpatia e a ternura de não jogar você de um penhasco.
– É justo. – Locke se virou e observou o outro extremo do convés iluminado por lanternas. – Sabe, acho que minha consciência pode estar um pouquinho menos travada.
Acabei de notar que não há ninguém encarregado deste navio.
Jean olhou ao redor. Nenhum dos magos estava visível em nenhum ponto do convés. O timão estava imóvel, como se contido por uma pressão fantasma.
– Pelo amor dos deuses. Quem, diabos, está fazendo isso?
– Eu – respondeu Paciência, aparecendo junto deles. Segurava uma caneca de chá fumegante e contemplava as profundezas salpicadas de joias.
– Aagh! – Locke se afastou dela. – Meus nervos estão em carne viva. Você precisa fazer isso?
Paciência bebericou o chá com um ar de satisfação.
– Como quiser – disse Locke. – O que aconteceu com seus pequenos acólitos?
– Todo mundo está abalado pelo ritual. Mandei-os para baixo, para descansar um pouco.
– Você não está abalada?
– Quase em frangalhos.
– No entanto, está movendo este navio contra o vento. Sozinha. Enquanto fala conosco.
– Estou. Mesmo assim, eu apostaria que vocês ainda vão falar comigo com um tom de desrespeito inadequado.
– Moça, você sabia que eu era venenoso quando me pegou.
– E como está agora?
– Cansado. Extremamente cansado. Parece que alguém colocou areia nas minhas juntas. Mas não há nada devorando minhas entranhas... pelo menos não como antes. Estou
com uma fome infernal, mas não é... maligna. Não mais.
– E suas faculdades mentais?
– Vão dar para o gasto – respondeu Locke. – Além disso, Jean está aqui para me amparar quando eu cair.
– Mandei limpar a cabine grande para vocês. Há um armário com roupas. Elas vão manter vocês quentes até chegarmos a Kartane e os mandarmos para os alfaiates.
– Mal podemos esperar. Paciência, nós corremos o risco de encalhar ou algo assim se fizermos algumas perguntas a você?
– Não há nada em que encalhar nos próximos 150 quilômetros. Mas você tem certeza de que não quer descansar?
– Vou desmoronar daqui a pouco. Posso sentir. Não quero desperdiçar mais um momento de lucidez, se puder. Você se lembra do que nos prometeu em Lashane? Quero dizer,
respostas.
– Claro. Desde que você se lembre da limitação que eu estabeleci.
– Vou tentar não ser pessoal demais.
– Ótimo – falou Paciência. – Então vou tentar não desperdiçar energia demais pondo fogo em você se eu perder as estribeiras.
3
– Por que vocês servem? – perguntou Locke. – Por que os contratos? Por que Magos-Servidores?
– Por que trabalhar num barco de pesca? – Paciência inspirou o vapor de seu chá. – Por que pisar em uvas para fazer vinho? Por que roubar de nobres otários?
– Vocês precisam de dinheiro tanto assim?
– Como uma ferramenta, certamente. Sua aplicação é simples e de uma eficácia universal.
– Só isso?
– Não basta para a sua vida?
– É que parece...
– Parece que o que você quer mesmo perguntar é por que nós nos importamos com dinheiro quando poderíamos pegar o que quiséssemos.
– É – admitiu Locke.
– O que o faz pensar que iríamos nos comportar assim?
– Apesar de seu súbito interesse pelo meu bem-estar, vocês são uns filhos da mãe ardilosos que só servem para sacanear os outros, e têm consciências atrofiadas feito
bagos de velho. Comecemos por Terim Pel. Vocês queimaram uma cidade inteira, apagando-a do mapa.
– Algumas centenas de pessoas suficientemente motivadas poderiam ter destruído Terim Pel. A feitiçaria não era o único meio que serviria para isso.
– Para você é fácil falar. Suponho que vocês precisariam apenas de algumas ferramentas de jardinagem e um pouco de criatividade. Mas o que vocês fizeram de fato
foi lançar uma chuva de fogo da porra do céu. Se não pudessem governar o mundo com isso...
– Você é mais inteligente do que um porco, Locke?
– De vez em quando. Existem opiniões contrárias.
– Você é mais perigoso do que uma vaca? Uma galinha? Uma ovelha?
– Sejamos generosos e digamos que sim.
– Então por que você não vai até a fazenda mais próxima, coloca uma coroa na cabeça e se proclama imperador dos animais?
– Ahn... porque...
– O pensamento de fazer uma coisa ridícula assim jamais passou pela sua mente?
– Acho que não.
– Mas você não negaria que tem poder para fazer isso, quando quiser, sem chance de uma resistência significativa por parte de seus novos súditos?
– Aahh...
– Mesmo assim, não é uma proposta atraente, certo?
– Então é isso? – interveio Jean. – Qualquer bandoleiro com meio cérebro vivendo à base de bosta de passarinho no interior se tornaria imperador se pudesse, mas
vocês, que na verdade podem fazer isso, são os próprios modelos exemplares da razão...
– Por que sentar-se numa fazenda com uma coroa na cabeça quando você pode comprar todo o presunto que quiser no mercado?
– Vocês baniram completamente a ambição?
– Somos ambiciosos até os ossos, Jean. Nosso treinamento não dá espaço para os humildes respirarem. Mas a maioria de nós acha extremamente ridículo que o auge de
toda a ambição dos sem-dom seja colocar coroas e mantos em si mesmos.
– A maioria? – perguntou Locke.
– A maioria. Eu mencionei que tivemos um cisma no correr dos anos. Talvez não fiquem surpresos em saber que isso tem a ver com vocês. – Ela dobrou dois dedos da
mão esquerda, apontando-os para Locke e Jean. – Os sem-dom. O que fazer com vocês. Ficarmos isolados ou colocar o mundo de joelhos? A nobreza não seria mais questão
de patentes e linhagens. Seria uma questão evidente de habilidade de feitiçaria. Vocês seriam escravizados sem restrição, sob um poder que jamais poderiam possuir,
nem com todo o tempo, dinheiro ou estudos no mundo. Você gostaria de viver num império assim?
– Claro que não – respondeu Locke.
– Bom, nem eu tenho vontade de construí-lo. Nossas artes nos deram uma independência perfeita. Nossa riqueza tornou luxuosa essa liberdade. A maioria de nós reconhece
isso.
– Você continua falando “a maioria”.
– Existem excepcionalistas em nossas fileiras. Magos que veem a espécie de vocês como criaturas abjetas à disposição. Eles sempre foram minoria, contidos firmemente
por aqueles de nós que têm uma filosofia mais conservadora e prática, mas nunca foram tão poucos a ponto de ser desconsiderados. Essas são as duas facções de que
falei antes. Os excepcionalistas tendem a ser jovens, talentosos e agressivos. Meu filho era popular entre eles antes de você atravessar seu caminho em Camorr.
– Fantástico. Então aqueles escrotos que foram nos visitar em Tal Verrar, com a sua tolerância, nem precisam deixar os confortos do lar para cair de novo em cima
de nós! Brilhante.
– Eu dei a eles uma válvula de escape para a frustração. Se eu tivesse ordenado a segurança absoluta para vocês, eles teriam me desobedecido e assassinado os dois.
Depois disso, eu não teria resposta para a insubordinação deles a não ser com uma guerra civil. A paz da minha sociedade se equilibra, em todos os tempos, em pontos
assim. Vocês dois são apenas a farpa mais recente embaixo da unha de todo mundo.
– O que seus amigos insubordinados vão fazer quando chegarmos a Kartane? Vão nos abraçar, pagar uma cerveja, dar tapinhas na nossa cabeça? – perguntou Jean.
– Eles não vão incomodá-los. Agora vocês fazem parte do Jogo dos Cinco Anos, estão protegidos pelas regras. Se lhes fizerem mal, vão atrair uma reação dura. No entanto,
se os agentes escolhidos pelo outro lado superarem vocês, eles roubarão uma quantidade significativa de prestígio da minha facção. Eles precisam que vocês sejam
peças do tabuleiro, tanto quanto eu.
– E se nós ganharmos? – quis saber Jean. – O que eles farão depois?
– Se vocês ganharem, podem naturalmente esperar a minha boa vontade e a dos meus amigos e se abrigar sob ela.
– Então estamos trabalhando para o lado gentil e moral de sua pequena guilda, é isso que devemos entender? – indagou Locke.
– Gentil? Não seja ridículo – retrucou Paciência. – Mas você é um tolo se não consegue acreditar que passamos bastante tempo refletindo sobre as questões morais
de nossa posição única. O fato de estarem aqui, vivos e com saúde, testemunha essa reflexão.
– E, no entanto, vocês aceitam contratos para derrubar reinos e matar pessoas.
– Aceitamos. Os seres humanos são afligidos por memória curta. Precisam ser lembrados de que têm motivos válidos para sentir admiração por nós. É por isso que, depois
de uma consideração muito cuidadosa, ainda permitimos que os magos aceitem contratos negros.
– Defina “consideração muito cuidadosa” – pediu Locke.
– Qualquer pedido de contrato implicando morte ou sequestro é examinado. O trabalho negro precisa ser autorizado pela maioria dos meus pares. Mesmo depois disso,
precisa haver pelo menos um mago disposto a aceitar a tarefa.
Paciência pôs a mão esquerda em concha e uma luz prateada chamejou atrás de seus dedos.
– Homens curiosos, eu lhes ofereço a resposta para praticamente tudo, segredos pelos quais milhares de pessoas morreram na tentativa de descobrir, e vocês querem
saber como pagamos nossas contas.
– Não terminamos de pegar no seu pé – reagiu Locke. – O que você está fazendo?
– Lembrando. – A luz prateada sumiu e uma haste fina de aço de sonho apareceu, aninhada entre o indicador e o dedo médio. – Vocês são bastante ousados em suas perguntas.
São suficientemente ousados para uma resposta direta?
– Qual é a proposta? – perguntou Locke, mordiscando distraidamente uma bolacha.
– Andar nas minhas memórias. Ver através dos meus olhos. Vou mostrar uma coisa relevante se vocês tiverem força para lidar com ela.
Locke engoliu rapidamente.
– Isso vai ser tão divertido quanto o último ritual?
– A magia não é para os medrosos. Não vou oferecer de novo.
– O que eu faço?
– Incline-se para a frente.
Locke obedeceu e Paciência estendeu a agulha de prata na direção do rosto dele. Ela se estreitou, retorceu-se e se lançou pelo ar, direto no olho esquerdo de Locke.
Ele ofegou. As bolachas caíram de sua mão enquanto o aço de sonho se espalhava numa poça pelo seu olho, transformando-o num espelho ondulante. Um instante depois,
gotas de prata apareceram no olho direito, adensando-se e se espalhando.
– Que droga é essa? – Jean estava dividido entre a ânsia de empurrar Paciência e a seriedade do aviso anterior dela, para não interferir em sua feitiçaria.
– Jean... espere... – sussurrou Locke, e ficou imóvel, hipnotizado, preso à mão de Paciência por um fio de prata, os olhos brilhando.
O transe durou uns quinze segundos e, então, o aço de sonho se recolheu. Locke oscilou e se agarrou à amurada, piscando furiosamente.
– Pelos santos infernos. Que sensação!
– O que aconteceu? – perguntou Jean.
– Ela estava... Não sei exatamente. Mas acho que você vai querer ver isso.
Paciência virou-se para Jean, estendendo a mão com a agulha de prata. Jean se inclinou à frente e se controlou para não se encolher quando a fina ponta veio em sua
direção. Ela roçou seu olho aberto como um sopro de ar frio e o mundo ao redor mudou.
4
Passos ecoando em mármore. Leve murmúrio de conversa numa língua desconhecida. Não, não é um murmúrio. Não é um som. Um leve pinicar de pensamentos vindos de uma
dúzia de estranhos, roçando contra uma percepção que Jean não soubera antes que possuía. Um adejar como asas de mariposas contra a parte frontal de sua mente. A
sensação é assustadora. Ele tenta interromper tudo aquilo, fica espantado ao descobrir que a massa vaporosa de seu corpo recusa as ordens.
Ah, mas estas não são suas memórias. A voz de Paciência, dentro da cabeça dele. Você é um passageiro. Tente relaxar e logo vai ficar mais fácil.
– Não peso nada – diz Jean.
As palavras saem de seus lábios como a mais débil semiexalação de um homem que tem pedras mortas no lugar dos pulmões. Espremê-las para fora exige todo o seu esforço.
É o meu corpo que você está usando. Estou deixando algumas coisas nebulosas para sua paz de espírito. Você está aqui para estudar cultura, e não anatomia.
Luz quente em seu rosto, vinda de cima. Seus pensamentos estão boiando, sustentados por uma sensação de poder, uma nuvem de sussurros fantasmagóricos que ele não
consegue captar de modo significativo. Jean viaja em cima disso como um barco balouçando num oceano profundo.
Minha mente. Minhas memórias mais profundas, que são bastante irrelevantes, obrigada. Concentre-se. Vou deixar que você conheça meus pensamentos mais fortes e mais
deliberados dos momentos que estou revelando.
Jean tenta relaxar, tenta se abrir à experiência, e as impressões vêm de roldão, fragmento a fragmento, cada vez mais rápidas. Ele fica pasmo com um desorientador
amontoado de informações – nomes, lugares, descrições e, trançados em tudo isso, os pensamentos e chancelas de muitos outros magos:
Isas Escolástica
Ilha dos Eruditos
“Arquidama, não é do seu feitio nos manter esperando”
(cidadela privada dos magos de Kartane)
“é porque”
... sentimento de irritação resignada...
“Falcoeiro”
(maldita pergunta óbvia e inevitável)
... som de passos em mármore liso...
“pode muito bem entender”
A presença dele não tem nada a ver com a minha demora.
“sentiria a mesma coisa no seu lugar”
Como se eu fosse me abster dos meus deveres por causa dele...
(deuses do céu, será que eu ganhei cinco anéis por ser humilde?)
Há uma porta de madeira simples diante de Jean, a porta para a Câmara do Céu, a sede do que seria o governo entre os magos de Kartane. Ela não vai se abrir pelo
toque. Qualquer um que tente virar a maçaneta ficará perplexo com o fracasso, apesar de ela estar totalmente visível. Jean sente uma excitação de poder enquanto
ele/Paciência envia sua chancela contra a porta. Com essa carícia invisível, ela se abre.
“desculpe, não pretendia ofender”
... o ar quente da Câmara do Céu, já apinhada de...
Não vou colocar meu próprio filho contra a parede!
“não precisa se irritar, eu estava apenas”
... ali está ele sentado, esperando.
(observando, observando, como seu maldito pássaro)
A Câmara do Céu é uma abóbada de ilusão que deixaria os artífices de Tal Verrar mortos de inveja, o primeiro objeto de feitiçaria autêntica autossuficiente que Jean
já viu. A sala é circular, com 50 metros de diâmetro, e Jean sabe, com base na penumbra de conhecimento de Paciência, que o teto está, na verdade, 6 metros embaixo
do chão. Mesmo assim, na grande vastidão de vidro daquela cúpula, há uma imitação de céu, como uma pintura trazida à vida, perfeita em cada detalhe: um início de
tarde magnífico, o sol escondido atrás de nuvens, que ganham uma aura dourada.
Os magos aguardam Paciência em cadeiras de espaldar alto postas em uma espécie de arquibancada, como o Congresso dos Lordes no antigo império – um congresso que
foi banido muito tempo atrás pelos homens e mulheres que os imitam. Eles usam mantos idênticos, com capuzes, de um vermelho suavemente escuro, cor de rosas sombreadas.
Essas são suas vestes cerimoniais. Mantos cinzentos ou marrons poderiam ser mais neutros, mais repousantes, porém os precursores da ordem não queriam que seus herdeiros
ficassem muito relaxados em suas deliberações.
Um homem está sentado na primeira fileira, bem na frente de Jean/Paciência, que ainda se encontra diante da porta. Empoleirado num braço coberto pelo manto, imóvel
como uma estátua, está um falcão que Jean reconhece instantaneamente. Ele já olhou direto nos olhos frios e mortais da ave, assim como nos do dono.
(observando, observando, como seu maldito pássaro)
Um bombardeio de perguntas, cumprimentos e chancelas vem como uma onda estourando, então se esvai. A ordem é invocada e um silêncio relativo baixa, um alívio para
Jean. E depois:
Mãe.
O cumprimento vem um instante tarde demais para ser educado. É cortante e claro como só podem ser os pensamentos de um parente consanguíneo. Atrás dele, vem uma
entonação emocional, artisticamente discreta – o céu amplo e brilhante, uma sensação de elevação, de vento contra o rosto. A liberdade absoluta do voo alto.
A chancela do Falcoeiro.
Orador, responde ela/Jean.
Precisamos ser tão prisioneiros da formalidade, mãe?
Esta é uma ocasião formal.
Com certeza estamos sozinhos em nossos pensamentos.
Você e eu jamais estamos sozinhos.
No entanto, nunca estamos juntos. Como é que podemos dizer exatamente a mesma coisa com essas declarações?
Não banque o esperto comigo, Orador. Não é hora para os seus jogos... – Este jogo é tão seu quanto meu – EU NÃO SEREI INTERROMPIDA.
Há força por trás desse último pensamento, uma pulsação de músculo mental que o mago mais jovem não pode igualar. É um modo vulgar de pontuar uma conversa, mas o
Falcoeiro entende. Baixa a cabeça minimamente e Vestris, seu falcão-lacrau, faz o mesmo.
No centro da Câmara do Céu, há um poço de aço de sonho cuja superfície é um espelho perfeito, sem ondulações. Quatro cadeiras estão ao redor, três ocupadas. Os magos
têm pouco apreço pelo costume dos sem-dom de colocar os de maior posto olhando os inferiores de cima para baixo. Como tantas transações são feitas em pensamento,
as orientações físicas começam a perder até mesmo o significado simbólico.
Jean/Paciência ocupa o lugar vago e estende a mente para os outros três Arquimagos. É tão fácil quanto juntar mãos de carne e osso. Os Arquidons e as Arquidamas
reúnem energias, criando uma chancela unida, um ideograma que preenche o salão por um instante com a forma-pensamento de quatro nomes:
“Paciência-Prudência”
“Presciência-Temperança”
Os nomes não importam, são tradicionais, não tendo nada a ver com as qualidades pessoais de seus donos. A chancela fundida proclama o início dos negócios formais.
A luz na câmara diminui em resposta; o céu do início da tarde é substituído por uma tigela de um violeta pré-crepúsculo com uma linha quente de ouro bronzeado no
horizonte. O Arquidom Temperança, o decano dos quatro, envia:
“Retornamos à questão do contrato negro proposto por Luciano Anatolius, de Camorr.”
Há uma torção, um puxão nas percepções de Jean. Paciência ajusta as memórias, muda-as para um contexto que ele pode entender melhor. As vozes-pensamentos dos magos
assumem a qualidade da fala.
– Continuamos divididos com relação às consequências dessa proposta, se excedem ou não as permissões de nossas Injunções básicas: primeiro, a questão do dano a si
mesmo; segundo, a questão do detrimento comum.
Temperança é um homem magro, de 70 anos, a pele marrom com textura de casca de árvore golpeada pelo vento. O cabelo é grisalho e os olhos nublados são ágatas leitosas
em órbitas fundas e escuras. Mas sua mente permanece vigorosa; ele tem cinco anéis desde a metade de sua vida.
– Com todo o respeito, Arquidom, eu pediria que a assembleia também considerasse a questão da moralidade mais elevada – fala uma mulher pálida, na primeira fileira.
Ela não tem o braço direito e uma dobra do manto pende presa por um alfinete no ombro, como uma capa. A mulher se levanta e, com a mão esquerda, puxa o capuz para
trás, revelando cabelos louros e finos trançados embaixo de um gorro de renda prateada. Esse gesto é privilégio de um Orador, anunciando a intenção de tomar a palavra
e tentar influenciar a discussão atual.
Jean conhece essa mulher por meio dos sussurros sutis de Paciência: Navegadora, três anéis, nascida num navio mercante vadrã e trazida a Kartane na infância. Sua
obsessão pessoal é o estudo do mar e ela se identifica intimamente com os aliados de Paciência.
– Oradora – diz Jean/Paciência –, você sabe perfeitamente que nenhum contrato proposto precisa ser provado contra qualquer coisa mais ampla do que nossas Injunções.
Paciência emite isso depressa, para criar uma impressão de neutralidade que não é totalmente honesta e para enfatizar o óbvio antes que alguém com índole mais beligerante
aproveite a chance de fazer uma denúncia mais feroz.
– Claro – fala Navegadora. – Não tenho desejo de questionar a lei dada por nossos fundadores em toda a sua formidável sagacidade. Não estou sugerindo que testem
o contrato proposto segundo meus termos e, sim, que temos a obrigação de nos testar.
– Oradora, a diferenciação é sem sentido.
Presciência é a mais nova dos Arquimagos, com apenas 40 anos, associada do Falcoeiro. Além disso, é a mais agressiva dos magos de cinco anéis; ela é inflexível como
Vidrantigo.
– Estamos divididos em questões de lei clara e obrigatória. Por que você turva essa deliberação com filosofias nebulosas?
– O argumento não é nem um pouco nebuloso, Arquidama. Tem a ver diretamente com a primeira Injunção, a questão do dano a si mesmo. O simples escopo da matança que
esse tal de Anatolius propõe arrisca uma certa redução de nós mesmos, caso concordemos com ela. Estamos discutindo o maior banho de sangue na história dos nossos
contratos negros.
– Oradora, você exagera – replica Presciência. – Anatolius foi claro com relação aos seus planos para a nobreza de Camorr. Poucos nobres, se é que algum deles, seriam
mortos de fato.
– Honestamente, Arquidama, você me surpreende com sua dissimulação. Sem dúvida não somos crianças para nos iludirmos achando que alguém reduzido ao estado de um
enfeite de jardim através do envenenamento com Pedra-Fantasma não foi assassinado, segundo qualquer avaliação prática!
O céu artificial clareia à medida que o sol espia sobre o horizonte. Independentemente da justiça do argumento da Navegadora, a assembleia aprova o modo como ela
o apresenta. O teto responde à sondagem mental dos magos reunidos. O sol literalmente brilha sobre os que capturam a aprovação geral e se põe sobre os que tropeçam
nos argumentos.
– Irmã Oradora – diz o Falcoeiro, levantando-se com calma e empurrando o capuz para trás. Jean sente outro arrepio ao ver suas feições familiares: o princípio de
calvície, os olhos brilhantes e perigosos e o ar tranquilo de autoridade. – Você nunca escondeu que se opõe aos contratos negros por princípio geral, não é?
Jean absorve conhecimento a partir dos sussurros de Paciência. Existem cerca de meia dúzia de Oradores a qualquer momento, magos populares e expansivos, escolhidos
por voto secreto. Eles não têm poder para fazer ou desfazer leis, mas têm o direito de se intrometer nas discussões da Câmara do Céu e representar indiretamente
os interesses de quem os apoia.
– Irmão Orador, não tenho consciência de ter escondido coisa nenhuma.
– Bom, então, esse é todo o escopo de sua objeção? Tudo tem a ver com alta moralidade?
– Não seria suficiente? O fato de podemos ser considerados indignos no momento de pesar nossa alma não é uma base adequada para a contenção?
– Essa é a sua única base?
– Não. Também apresento a questão da nossa dignidade! Como podemos não considerar isso um dano quando nos reduzimos a ser assassinos pagos para os sem-dom?
– Esse não é exatamente o credo do nosso trabalho? Incipa veila armatos de: “nós nos tornamos ferramentas”. Para servir ao desígnio do cliente nós nos tornamos ferramentas.
Às vezes isso nos torna armas de assassinato.
– De fato, uma arma de assassinato é uma ferramenta. Mas nem todas as ferramentas são armas de assassinato.
– Quando nossos possíveis clientes querem que encontremos parentes perdidos ou invoquemos chuva, nós não aceitamos os contratos? Mas a condição do mundo é tal que
eles tendem a querer nossa ajuda em questões lamentavelmente mais sanguíneas.
– Nós não somos obrigados a aceitar todos os contratos propostos...
– Irmã Oradora, perdão. Interrompo porque temo que estejamos prolongando esta discussão desnecessariamente. Permita-me deixar seus argumentos um pouco de lado para
que possamos retornar ao corte do nosso nó anterior. Você diz que é o escopo desse contrato específico que provoca sua objeção enfática. Como sugere que nós o reduzamos
a uma operação de moral mais agradável?
– Reduzamos? Todo o empreendimento é tão sanguinário e imprudente que nem consigo imaginar mitigá-lo poupando umas poucas vítimas no meio da multidão.
– Quantas teríamos que poupar para uma mitigação que a agradasse?
– Você sabe tanto quanto eu, Irmão Orador, que isso não é uma questão de simples aritmética.
– Não? Você ouviu propostas de muitos contratos negros no correr dos anos, contratos implicando a remoção de indivíduos, gangues, até de famílias. Você poderia ter
questionado por princípios, mas nunca fez qualquer tentativa de desautorizá-los.
– Um contrato para um único assassinato, ainda que seja uma coisa indigna em si, pelo menos é mais definido do que a destruição por atacado de todos os governantes
de uma cidade-estado!
– Sei. Podemos concordar, então, com relação a um ponto em que o “definido” se transforma em “por atacado”? Quantas remoções pendem na balança? Quinze cadáveres
é uma coisa aceitável, mas dezesseis é demais? Ou dezessete? Ou 29? Com certeza devemos ser capazes de chegar a um meio-termo. Três dígitos baixos, talvez?
– Você está reduzindo meu argumento para além do absurdo!
– Errado, Irmã Oradora. Eu levo seus argumentos muito a sério. Eles foram tratados seriamente em nossas leis e nossos costumes durante séculos! E foram tratados
assim: Incipa veila armatos de! Nós nos tornamos ferramentas. Ferramentas não julgam!
O Falcoeiro abre os braços. Vestris bate as asas, pula para seu ombro direito e se acomoda de novo na imobilidade confortável.
– Esse foi o nosso modo de agir durante séculos, por causa de situações como esta. Exatamente porque não somos deuses e não somos sábios o bastante para separar
os dignos dos indignos antes de agirmos em nome de nossos clientes!
Jean admira o atrevimento do Falcoeiro: apelando à humildade em defesa do argumento de que os magos devem estar livres para matar sem remorso!
– É loucura tentar – continua o Falcoeiro. – Leva ao sofisma e ao moralismo. Nossos fundadores estavam corretos ao nos deixar muito poucas Injunções pelas quais
pesar as propostas que recebemos. Vamos fazer mal a nós mesmos? A isso podemos responder! Vamos fazer mal ao mundo mais amplo, a ponto de nossos interesses serem
prejudicados? A isso podemos responder! Mas os homens e mulheres que podemos remover são penitentes diante dos deuses? São bons pais? Têm temperamento doce? Dão
esmolas aos mendigos? Isso nos compele a não agir? Como podemos começar a responder a essas perguntas? Nós nos tornamos ferramentas! Qualquer um que matarmos como
ferramentas, entregamos a um julgamento infinitamente mais sábio do que o nosso. Se a remoção for um pecado, este pesa sobre o cliente que a ordenou, e não sobre
quem agiu sob a amarra da obediência!
– Bem argumentado, Orador. – A Arquidama Presciência não consegue suprimir um sorriso; o sol nasceu enquanto o Falcoeiro argumentava e a câmara está tomada por um
suave brilho dourado. – Convoco meus colegas Arquimagos à obrigação. Não temos tempo para digressões filosóficas. O tema de um contrato específico nos dividiu esta
manhã. Ele nos divide agora. De um modo ou de outro, devemos encerrar esta divisão trabalhando firmemente dentro do contexto da lei.
– Concordo – diz Temperança. – Obrigação.
– Concordo com relutância – fala Prudência. – Obrigação.
Jean/Paciência sente um calor de gratidão. Prudência violou uma questão de etiqueta, expondo seu julgamento antes de Paciência, que estava em posição mais elevada,
mas, ao fazer isso, confirmou o veredicto, três de quatro. Independentemente de suas ideias sobre o tema, Paciência está livre para ocultá-las e fazer uma pequena
gentileza com Navegadora.
– Abstenho-me – diz Jean/Paciência.
– Obrigação – diz Presciência.
– Está aceito, então – conclui Temperança. – Qualquer outra discussão fora das Injunções está posta de lado.
Navegadora coloca seu capuz, faz uma reverência e senta-se. A assembleia volta ao impasse anterior. Prudência se recusou a sancionar o contrato proposto, enquanto
Presciência o endossou. Temperança e Paciência ainda não expressaram suas opiniões.
– Tem algo mais para nós, Orador? – pergunta Temperança ao Falcoeiro, que permanece de pé.
– Tenho. Se é que não estou abusando da paciência de vocês ao continuar.
Jean fica pasmo com a ambiguidade do que ele diz. É possível fazer trocadilhos na fala-pensamento? Seria esse o objetivo do Falcoeiro? Ou seria Paciência, traduzindo,
enfatizando nuances que seu filho não pretendeu? Qualquer que seja a verdade, nenhum dos Arquimagos reage.
– Não sinto um apreço particular pelo povo de Camorr. Nem sinto qualquer aversão particular por eles – continua o Falcoeiro. – O contrato proposto é drástico, sim.
Exigirá habilidade e discrição, e a remoção de muitas pessoas. Terá consequências, mas eu argumentaria que nenhuma delas é relevante para nós. Vejamos a primeira
Injunção, a questão do dano contra nós mesmos. Temos alguma ligação particular com os atuais governantes camorris? Não. Temos alguma propriedade ou investimento
na cidade que não podemos proteger? Não! Atraímos problemas para Kartane ao causar uma revolta a 5 mil quilômetros daqui? Por favor... como se nossa presença aqui
não pudesse proteger os interesses kartanis, mesmo se Camorr estivesse a 5 quilômetros de distância!
– Você fala em investimentos – diz o Arquidom Prudência, um homem extremamente afável, mais ou menos da idade de Paciência, forte aliado dela. – Anatolius lança
uma rede ampla com essa trama. Qualquer festa em Pontacorvo atrairá a presença dos endinheirados da cidade, inclusive o próprio Meraggio. Nós temos contas na casa
dele, e em outras.
– Eu os pesquisei – garantiu o Falcoeiro. – Mas essas pessoas administram casas de contabilidade ou sindicatos comerciais pessoalmente? Qualquer uma delas terá parentes,
conselheiros, assessores. Herdeiros competentes e ambiciosos. O dinheiro nos cofres não irá a lugar algum. As cartas de crédito não vão sumir. As organizações continuarão
operando sob novas autoridades. Pelo menos esta é a minha conclusão. Acha que está errada, Arquidom?
– Não necessariamente.
– Nem eu – concorda Presciência. – Nossos poucos elos com Camorr estão seguros, nossas obrigações para com ela são inexistentes. Quem pode citar um único dano concreto
que faríamos a nós mesmos se aceitássemos o contrato de Anatolius?
A câmara ficou em silêncio.
– Creio que podemos considerar que a primeira Injunção foi abordada – prossegue o Falcoeiro. – Vamos arejar a segunda. O contrato que Anatolius propõe... pelo qual
oferece pagar um preço justo, o que significa exorbitante... é que engendremos uma oportunidade para ele exercer sua vingança contra a nobreza de Camorr e contra
sua principal família criminosa. Agora estou apenas sendo preciso. Não estou tentando disfarçar a magnitude das intenções dele.
Ele olha ao redor antes de continuar:
– Com nossa ajuda, Anatolius provavelmente terá sucesso, e centenas dos homens e mulheres mais poderosos de Camorr serão neutralizados. Nossa irmã Navegadora está
certa ao observar a tolice de evitar esse argumento. Esses homens e mulheres nunca mais terão um único pensamento significativo. Não poderão limpar a própria bunda.
Seu destino será equivalente ao assassinato. Sem dúvida eu não desejaria isso para ninguém que eu conhecesse ou de quem gostasse, mas estamos aqui para considerar,
como disse a Arquidama, os danos concretos causados por nossas ações, e não nossa simpatia por pessoas distantes. Devemos avaliar se a ruptura que isso infligiria
poderia ser disseminada a ponto de comprometer nossos interesses e nossa liberdade de ação.
– Desculpe minha suspeita – diz Jean/Paciência – de que o Orador veio a esta assembleia bem armado com conclusões para nos ajudar nessa avaliação.
– Arquidama, eu seria um pobre advogado se ousasse falar extemporaneamente sobre um assunto tão crucial. Eu pensei muito nesse contrato desde que ele foi proposto.
– Se ele fosse levado adiante – intervém a Arquidama Presciência –, o que aconteceria com Camorr?
– Acho impossível que todos os nobres camorris sejam apanhados nessa armadilha. Inevitavelmente, alguns estarão adoentados demais para comparecer; outros, desfavorecidos
na corte ou viajando. Alguns também sairão cedo demais ou chegarão tarde demais. Com certeza dezenas sobreviverão. Anatolius entende isso. Mesmo assim, seu objetivo
é cumprido. Camorr possui um exército com várias companhias, além de uma polícia bastante infame. No fim da noite, os sobreviventes ainda terão uma força disciplinada
para manter a paz.
– É para isso que eles seriam usados, então? – O Arquidom Prudência adota um tom de falsa surpresa. – Não seria para resolver antigas pendências, certo? Os camorris
são famosos por seu profundo sentimento de contenção quando se trata de ressentimentos antigos.
– Não estou tentando ser presunçoso, Arquidom, nem indevidamente otimista. Mas as nossas informações, melhores até do que as do Duque de Camorr, são de que as forças
do Duque são razoavelmente leais ao trono e à própria Camorr. Claro que haverá sangue nas paredes. Portas chutadas, brigas de beco, aquele toque camorri pessoal.
Mas acho provável que o exército e a polícia ficarão fora dessas questões até que os sobreviventes mais fortes restaurem uma cadeia de comando legítima.
– Você está argumentando seriamente – fala Prudência – que, passadas algumas brigas de faca no escuro, Camorr não sofreria mais instabilidades após a subtração súbita
e horrível de várias centenas de nobres?
– Claro que não. Arquidom, você me faz uma injustiça retórica. Camorr vai perder muito: suas ambições atuais, em particular as relações com outras cidades-estados,
sua alta cultura. Se Anatolius obtiver o que deseja, vai apagar a maior parte dos cachorros velhos que venceram a Guerra dos Mil Dias e esmagaram a Revolta do Conde
Louco. Camorr será seriamente testada. Devemos presumir que Tal Verrar irá cutucar cada ferimento visível. Mas será que Camorr desmoronará? Haverá tumultos nas ruas?
Seus soldados vão largar as lanças e correr para o ermo? Pela graça dos deuses, não. E a cidade reagirá com violência? Contra quem? Anatolius pretende que todos
saibam, caso seu plano tenha sucesso, que o acontecido foi um ato de vingança cometido por camorris, contra camorris. Não haverá fantasmas estrangeiros a serem caçados.
– Eles tentarão – diz Temperança, em tom pensativo. – E vão caçar Anatolius até os extremos da criação. Assassinos vão fazer fila nos portões da cidade para obter
trabalho.
– Concordo – retruca o Falcoeiro. – Mas isso seria problema de Anatolius, que está ansioso por arcar com isso. Ele sabe como contatar nossos agentes caso deseje
discutir o preço de evaporar.
Há um murmúrio bem-humorado na câmara. O sol subiu mais alto; o brilho dourado e quente é firme.
– Acredito que o caos provocado pelo plano de Anatolius será breve, local e facilmente contido – prossegue o Falcoeiro. – Claro, os Arquimagos é que devem determinar
se fui convincente ou não. Porém, eu diria mais uma coisa: uma decisão aqui é apenas a primeira exigência para que um contrato seja posto em prática. Também é necessário
um mago disposto a se tornar seu instrumento. Não sou hipócrita! Se os Arquimagos permitirem, eu seria o primeiro a requisitar a honra de assumir a tarefa.
Jean sente uma estranha emoção brotando em algum lugar sob a superfície das memórias que o transportam. Não é raiva, nem mesmo surpresa. Seria... satisfação? Expectativa?
O indício de sentimento desaparece rapidamente, empurrado para trás das cortinas do palco mental de Paciência.
– Há mais argumentos a abordar contra a proposta de Anatolius, baseados na segunda Injunção? – pergunta Temperança.
Silêncio na câmara.
– Levantamos a questão. – Temperança ergue a mão esquerda, fazendo com que a manga deslize apenas o suficiente para revelar seus cinco anéis. – Esses argumentos
mudaram a opinião já oferecida por meus pares?
– Ainda não posso considerar isso aceitável – afirma Prudência.
– Eu posso – fala Presciência.
– Então chegou a hora de Paciência e eu fazermos nossas declarações. – Temperança se mantém pensativo antes de continuar. – Concordo que esta é uma proposta sem
precedentes. Concordo que parece singular e sinistra, e não sou inimigo de contratos negros. Mas nosso costume exige um dever para com um fato, e não impressões
vagas. Não encontro motivo válido na lei para desqualificar a proposta.
Momento crítico. Temperança entregou a Paciência a decisão mais significativa de toda a assembleia. Se ela recusar, agentes dos Magos-Servidores informarão educadamente
a Luciano Anatolius que sua proposta não foi considerada conveniente. Se permitir, o Falcoeiro irá a Camorr realizar uma chacina.
– Compartilho as restrições da honrada Navegadora e de nosso estimado Arquidom Prudência – diz por fim Jean/Paciência. – Além disso, compartilho o respeito do Arquidom
Temperança pela rigidez de nossas Injunções. Também não tenho qualquer motivo válido para não permitir o contrato.
Jean sente um calafrio até o âmago de seu corpo vaporoso enquanto essa declaração sai dos seus lábios e dos lábios de Paciência. De todos os privilégios curiosos
que já recebeu na vida, certamente esse é um dos mais medonhos: a chance de enunciar as palavras que mandaram o Falcoeiro a Camorr para trucidar a família Barsavi,
provocar a morte de Calo, Galdo e Pulga e quase matar Jean e Locke.
– A proposta está aprovada – anuncia Temperança. – Acho que não é uma justiça pequena o fato de a tarefa ser sua, Falcoeiro. Sabemos que você tem estômago para contratos
negros. Agora veremos se sua sutileza está à altura do seu entusiasmo.
O Falcoeiro recebeu uma oportunidade de dois gumes: a chance de coroar seu sucesso relativamente precoce com um contrato diferente de qualquer outro ou a chance
de fracassar espetacularmente se não tiver a coragem de realizá-lo.
– Esta assembleia está suspensa – diz Temperança.
A percepção de Jean muda outra vez; no meio da frase, o som da voz do Arquidom mais velho se transmuta para a sensação de pensamentos. Paciência voltou à sua perspectiva
natural.
Como uma plateia de teatro sem aplausos, os magos se levantam e começam a sair da Câmara do Céu. Uma centena de discussões particulares continua, mas não há necessidade
de formar conexões e agrupamentos de conversas quando estão acontecendo no rápido silêncio do pensamento.
Os outros Arquimagos se levantam para sair, mas Jean/Paciência fica, olhando o poço de aço de sonho no meio da câmara. Ele/ela pode sentir o olhar do Falcoeiro do
outro lado da sala.
Devo admitir que não esperava que você permitisse, mãe.
Se você não é hipócrita, eu também não sou.
Jean/Paciência balança uma das mãos sobre a superfície do aço de sonho; correntes de calor pulsam, subindo e descendo pelos dedos fantasmagóricos. As ondulações
de metal prateado dão à luz formas esguias. A escultura demora alguns instantes a ficar pronta e não é nem um pouco perfeita, mas logo Jean/Paciência transforma
o aço de sonho numa caricatura do horizonte de Camorr, com as Cinco Torres erguendo-se sobre ilhas cravejadas de construções menores.
Não ter desculpa para proibir não é o mesmo que permitir.
Veja como quiser.
Adianta eu dar um conselho?
Se for mesmo um conselho, eu ficarei surpreso.
Não vá a Camorr. Além de complexo, esse contrato é perigoso.
Foi o que eu pensei. Perigoso? Não me lembro de meu nome estar na lista dos inimigos de Luciano Anatolius.
Não é perigoso só para os sem-dom. É perigoso para você.
Ah, mãe... Nem sei se seu jogo é profundo demais ou raso demais para mim. Essa é de novo sua lendária precognição? É curioso como você parece citá-la sempre que
tem um motivo óbvio para me diminuir.
O Falcoeiro estende uma das mãos e as Cinco Torres afundam. Em segundos, os prédios da escultura líquida se dissolvem de volta no líquido prateado primordial. O
aço de sonho estremece, depois fica de novo liso como um espelho. O Falcoeiro sorri.
Algum dia, Orador, você pode ter motivo para lamentar a intensidade de sua consideração por si mesmo.
É, bem, talvez possamos continuar a explorar seu catálogo meticuloso de meus defeitos quando eu voltar de Camorr. Até lá...
Duvido que jamais tenhamos a oportunidade. Adeus, Falcoeiro.
Adeus, mãe. Saiba que estou ansioso para rir por último quando chegar a hora.
O Falcoeiro se vira para a porta. Enquanto ele se afasta, Vestris inclina a cabeça ligeiramente, encara-a com frios olhos de caçadora e solta um breve guincho. Para
o pássaro, isso é o equivalente a uma gargalhada desdenhosa.
Dois dias depois, o Falcoeiro parte em sua missão para Camorr. Quando voltar, meses terão se passado e ele não estará em condições de rir de nada.
5
– Deuses do céu – sussurrou Jean enquanto o convés do Andarilho do Céu se tornava real sob os pés outra vez. Seus olhos parecem ter sido golpeados por um vento forte.
Era um alívio profundo encontrar-se de volta na forma e na massa familiares de seu corpo. – Isso foi insano.
– A primeira vez não é fácil. Você suportou bastante bem.
– Vocês fazem isso com frequência?
– Eu não chegaria ao ponto de dizer “com frequência”.
– Vocês podem passar as memórias de uns para os outros – disse Locke, balançando a cabeça. – Como um casaco velho.
– Não exatamente. A técnica exige preparação e orientação consciente. Eu não poderia lhes dar a totalidade das minha memórias. Nem ensiná-los a falar vadrã com um
toque.
– Ka spras Vadrani anhalt.
– É, eu sei que vocês falam.
– Falcoeiro... – murmurou Jean, esfregando os olhos. – Falcoeiro! Paciência, você poderia tê-lo impedido. Você estava inclinada a impedi-lo!
– Estava – admitiu Paciência.
Ela olhou para o Amatel, tendo se esquecido dos restos frios do chá.
– Mas o Falcoeiro era um dos tais excepcionalistas, não é? – perguntou Locke. – Junto com a tal de Presciência. E vocês tinham um contrato, uma missão, para ir e
foder com as coisas de verdade, estilo Terim Pel. Se ele tivesse conseguido... e ele de fato chegou muito, muito perto... esse não é exatamente o tipo de coisa que
daria mais prestígio à facção dele?
– Sem dúvida.
– E, mesmo assim, você deixou que ele fosse.
– Pensei em me abster, até que ele anunciou a disposição de pegar o contrato. Não: a intenção de pegar o contrato. Então, eu percebi que ele não voltaria de Camorr
em segurança.
– O que foi, você teve algum tipo de premonição?
– Mais ou menos. É um dos meus talentos.
– Paciência, eu gostaria de perguntar uma coisa profundamente pessoal. Não para antagonizar você. Pergunto porque seu filho ajudou a matar quatro amigos meus, e
eu quero saber... eu acho...
– Quer saber por que nós não nos damos.
– É.
– Ele me odiava. – Paciência torceu as mãos. – Ainda odeia, por trás da névoa da loucura. Ele me odeia tanto quanto no momento em que nos separamos naquele dia,
na Câmara do Céu.
– Por quê?
– É simples. No entanto... é difícil explicar. A primeira coisa que vocês devem entender é como escolhemos nossos nomes.
– Falcoeiro, Navegadora, Tutanofrio, etc. – falou Jean.
– É. Nós os chamamos de nomes cinzentos, porque eles são névoa. São insubstanciais. Cada mago opta por um nome cinzento quando seu primeiro anel é tatuado no pulso.
Tutanofrio, por exemplo, escolheu o dele em memória a seus ancestrais do norte.
– O que você era antes de ser Paciência? – perguntou Jean.
– Eu me chamava Costureira. – Ela deu um sorriso débil. – Nem todos os nomes cinzentos são grandiosos. Bom, há outro tipo de nome. Nós o chamamos de nome vermelho,
o nome que vive no sangue, o nome verdadeiro que nunca deve ser revelado.
– Como o meu – murmurou Jean.
– Exato. A segunda coisa que vocês precisam entender é que o talento mágico não tem relação com a hereditariedade. Não é transmitido de uma geração para outra. Muitas
décadas de interferência lamentável na vida privada dos magos tornou isso muitíssimo claro.
– O que vocês fazem quando têm, ahn, filhos sem dom?
– Nós os tratamos com carinho e os criamos, seu imbecil. A maioria deles acaba trabalhando para nós, em Kartane e em outros lugares. O que você achou que a gente
fazia, queimava numa pira?
– Esqueça que eu perguntei.
– E as crianças que têm o dom? – indagou Locke. – De onde elas vêm, se não tiverem nascido em casa?
– Um mago treinado pode sentir um talento que não teve aprendizado. Em geral, nós os pegamos bem novos. São trazidos a Kartane e criados em nossa comunidade especial.
Às vezes, suas memórias originais são suprimidas, para seu próprio bem.
– Mas não o Falcoeiro. Você disse que ele era sangue do seu sangue.
– É.
– E o fato de ele ter o poder... é muito raro?
– Ele foi o quinto em quinhentos anos.
– O pai dele era mago?
– Um mestre jardineiro – respondeu Paciência baixinho. – Afogou-se no Amatel seis meses depois do nascimento do nosso filho.
– Sinto muito.
– Claro que não sente. – Paciência moveu os dedos ligeiramente e sua caneca de chá desapareceu. – Acho que eu poderia ter enlouquecido, não fosse o Falcoeiro. Ele
era meu consolo. Nós ficamos ligados demais, aquele menininho e eu. Exploramos juntos os talentos dele. Mas, em última instância, os magos nascerem de magos é mais
maldição do que bênção.
– Por quê? – perguntou Jean.
– Você foi Jean Tannen durante toda a vida. É como sua mãe e seu pai o chamavam quando você estava aprendendo a falar. Isso está gravado na sua alma. Seu amigo aqui
também tem um nome vermelho, mas, para sua sorte enorme, tropeçou num nome cinzento para si mesmo ainda muito novo. Ele se chama de Locke Lamora, mas bem lá no fundo,
quando pensa em si mesmo, pensa outra coisa.
Locke deu um sorriso débil e mordiscou uma bolacha.
– A primeira identidade que aceitamos e reconhecemos como nós é o que se torna o nome vermelho. Quando superamos os instintos crus da infância e descobrimos que
existimos, conscientes e separados das coisas ao redor. A maioria de nós adquire nomes vermelhos a partir do que nossos pais sussurram para nós, repetidamente, até
aprendermos a repeti-lo em nossos pensamentos.
– Ahn – disse Locke. Um instante depois, ele cuspiu migalhas. – Puta que o pariu, você sabe o verdadeiro nome do Falcoeiro porque o deu a ele!
– Eu tentei evitar isso – retrucou Paciência. – Ah, eu tentei. Mas estava mentindo para mim mesma. Não é possível amar um bebê e não lhe dar um nome. Se meu marido
tivesse vivido, ele daria um nome secreto ao Falcoeiro. Esse era o procedimento... Outros magos poderiam ter intervindo, teriam feito isso se eu não os enganasse.
Eu não estava pensando direito. Precisava desesperadamente dessa ligação particular com meu filho... e acabei lhe dando um nome.
– Ele se ressentiu de você por causa disso – falou Jean.
– O segredo mais profundo de um mago. Jamais compartilhado, nem entre professores e alunos, amigos mais íntimos, nem mesmo entre maridos e esposas. Um mago que fica
sabendo do nome verdadeiro de outro mago tem poder absoluto sobre ele. Meu filho se ressentiu demais de mim desde o momento em que percebeu o poder que eu tinha
sobre ele, quer eu optasse por usá-lo ou não.
– Guardião Torto – disse Locke. – Acho que eu deveria encontrar alguma simpatia no coração pelo pobre coitado. Mas não consigo. Gostaria de verdade que você tivesse
tido um filho normal.
– Acho que já falei o bastante, pelo menos por enquanto. – Paciência se afastou da amurada e deu as costas para Locke e Jean. – Descansem, vocês dois. Podemos abordar
qualquer outra pergunta quando vocês acordarem.
– Eu poderia dormir por sete ou oito anos, acho – admitiu Locke. – Mande alguém arrombar a porta no fim do mês se eu ainda não tiver saído. E, Paciência... acho...
sinto muito por...
– Você é um homem curioso, mestre Lamora. Morde por reflexo, depois sua consciência morde você. Já se perguntou onde pode ter adquirido traços de caráter tão contraditórios?
– Não me arrependo de nada que eu disse, Paciência, mas ocasionalmente me lembro de tentar ser educado.
– Como você falou, não os estou levando a Kartane para serem amigos de ninguém. Muito menos meus. Vão descansar. Conversamos depois.
6
Jean não havia percebido como a longa noite o deixara exausto; após se acomodar em sua rede, ele desmoronou no tipo de sono que esmaga a consciência tão completamente
quanto algumas centenas de tijolos derrubados sobre a cabeça.
Acordou grogue e desorientado com o cheiro de carne cozida e do ar puro do lago. Locke estava sentado diante de uma versão menor da mesa improvisada onde fora sujeitado
ao ritual de limpeza, trabalhando duro em outra pequena montanha de comida do navio.
– Nnngh. – Jean rolou e ficou de pé, ouvindo as juntas rangerem e estalarem. Seus hematomas do encontro com Cortessa iriam doer por alguns dias, mas ele já tivera
muitos deles antes. – Que horas são?
– A quinta hora da tarde – respondeu Locke com a boca cheia. – Devemos chegar a Kartane logo antes do alvorecer, pelo que dizem.
Jean bocejou, esfregou os olhos e avaliou a cena. Locke estava usando roupas largas e limpas, evidentemente escolhidas de um baú aberto, encostado na antepara atrás
dele.
– Como se sente, Locke?
– Com uma fome do cão. – Ele limpou os lábios com as costas da mão e tomou um gole d’água. – Isso é pior do que Vel Virazzo. Aonde quer que a gente vá, parece que
eu fico cada vez mais magro.
– Imaginei que você ainda estaria dormindo.
– Eu tinha vontade de fazer isso, mas meu estômago não quis aceitar. Me desculpe, mas você está parecendo um sujeito desesperadamente em busca de um café.
– Não estou sentindo cheiro de café nenhum. Imagino que você tenha bebido tudo, não?
– Ora, nem eu sou tão patife assim. Não havia café a bordo. Parece que Paciência adora um chá.
– Maldição. O chá não serve para a pessoa acordar civilizada.
– O que está borbulhando nesse seu cérebro confuso?
– Acho que estou perplexo. – Jean ocupou uma das duas cadeiras vazias junto à mesa, pegou uma faca e usou-a para colocar um pouco de presunto numa fatia de pão.
– E tonto. A Dama dos Cinco Anéis levou nossa situação muito além de qualquer coisa que eu esperava.
– Foi mesmo. Você acha isso estranho pelo seu ponto de vista!
– E é.
Jean comeu e examinou Locke. Ele havia se lavado, se barbeado e prendido a juba crescida num rabo de cavalo curto. A remoção da barba deixava claras as marcas da
convalescença. Ele estava pálido, parecendo muito mais vadrã do que terim, e as linhas nos cantos da boca estavam um pouco mais fundas, as rugas embaixo dos olhos
mais pronunciadas. Algum escultor invisível estivera trabalhando nas últimas semanas, gravando as primeiras sugestões verdadeiras da idade no rosto que Jean conhecia
por quase vinte anos.
– Onde, nesta bela terra dos deuses, você está colocando toda essa comida, Locke?
– Se eu soubesse, seria galeno.
Jean deu outra olhada na cabine. Uma banheira de cobre tinha sido posta perto das janelas de popa e, ao lado dela, havia uma pilha de toalhas e frascos de óleos.
– Está se perguntando sobre a banheira? – indagou Locke. – A água está limpa: eles a trocaram depois que eu terminei. Eles não esperam que mergulhemos no lago para
ficarmos apresentáveis.
Houve uma batida à porta da cabine. Jean olhou de relance para Locke, que assentiu.
– Entre! – gritou Jean.
– Eu sabia que vocês estavam acordados – comentou Paciência. Ela desceu os degraus, fez um gesto casual e a porta se fechou. Em seguida, se acomodou na terceira
cadeira e cruzou as mãos no colo. – Estamos nos mostrando anfitriões adequados?
– Parece que estamos sendo bem atendidos – respondeu Jean com um bocejo –, a não ser por uma bárbara ausência de café.
– Suporte mais um dia, mestre Tannen, e você terá toda a água mal utilizada, preta e imunda que puder beber.
– O que aconteceu com a última pessoa que você contratou para fazer esse seu joguinho, Paciência? – perguntou Jean.
– Direto ao ponto, hein? – disse Locke.
– Não me importo – afirmou Paciência. – É por isso que estou aqui. Mas o que você quer dizer?
– Você faz isso a cada cinco anos – explicou Jean. – Opta por atuar através de agentes que não podem ser Magos-Servidores. Então, o que aconteceu com os últimos
que você contratou? Onde estão? Podemos falar com eles?
– Ah. Você está imaginando se amarramos pesos nos tornozelos deles e os jogamos no lago quando tudo terminou.
– Algo assim.
– Em alguns casos, nós trocamos serviços. Em outros, oferecemos pagamentos. Todos os nossos antigos exemplares, independentemente da compensação recebida, deixaram
o serviço por livre vontade e em boa saúde.
– Então vocês protegem implacavelmente cada aspecto de sua privacidade durante séculos, mas, a intervalos de alguns anos, escolhem um amigo especial, respondem a
qualquer pergunta que eles possam fazer, mostram a eles a porra das suas memórias, com o perdão do linguajar, e depois só os mandam embora ao término de tudo, com
um aceno entusiasmado?
– Nenhum dos nossos exemplares anteriores jamais aleijou um Mago-Servidor, Jean. Jamais mostraram a nenhum deles o que foi mostrado a vocês. Mas não precisa se sentir
lisonjeado porque ficou sabendo de algum segredo espantoso que só pode ser preservado através das medidas mais extremas. Quando tudo terminar, esperamos sigilo pelo
resto da vida de vocês. E, se essa cortesia não for dada, os dois sabem que nunca teremos qualquer dificuldade para rastrear pelo menos um de vocês.
– Acho que isso funciona – disse Jean com azedume. – Quem ganhou a medalha na última vez que vocês fizeram isso?
– Está sendo confiada a você uma tradição vitoriosa. Apesar de duas vitórias seguidas não significarem uma dinastia, é uma boa base para esperar uma terceira. Agora
vamos discutir o trabalho em Kartane, mas eu fiz uma promessa incomum para trazer vocês dois até aqui. Eu preferiria cumpri-la de uma vez por todas. Vocês têm mais
alguma pergunta sobre meu povo, sobre nossas artes?
– Perguntar agora ou se calar para sempre? – perguntou Locke.
– Eu ofereci uma breve oportunidade, e não um tratado erudito.
– Por acaso, quero uma resposta de verdade para uma última coisa. Jean perguntou sobre os contratos que vocês fazem. Perguntou por quê e você nos deu um por que
não. Mas acho que isso não chega ao cerne do assunto. Não consigo imaginar que vocês precisem de dinheiro depois de quatrocentos anos. Estou errado?
– Não. Em menos de uma hora, eu poderia ter acesso a quantias capazes de comprar uma cidade-estado.
– Então por que continuam sendo mercenários? Por que constroem seu mundo ao redor disso? Por que se chamam de Magos-Servidores sem pestanejar? Por que Incipa veila
armatos de?
– Ahhh – disse Paciência. – Esse é um gole maior do que você gostaria de tomar.
– Deixe que eu avalie.
– Como quiser. Quando foi que os vadrãs começaram a atacar os litorais do norte, onde fica agora o Reino dos Tutanos?
– Que diabo isso tem a ver?
– Seja indulgente comigo. Quando eles vieram pela primeira vez daquela vastidão miserável, qualquer que seja a palavra que usam para ela...
– Krystalvasen – lembrou Jean. – A Terra de Vidro.
– Há cerca de oitocentos anos – respondeu Locke. – Pelo que me ensinaram.
– E quanto tempo faz que o povo terim chegou a este continente, vindo do outro lado do Mar de Ferro?
– Dois mil anos, talvez.
– Oitocentos anos de história vadrã. Dois mil anos para os terins. Os syrestis e a Irmandade Dourada são mais antigos ainda. Vamos lhes dar, generosamente, três
mil anos. Agora... e se eu lhes dissesse que temos motivo para acreditar que algumas ruínas dos Ancestres neste continente foram construídas há mais de vinte mil
anos? Talvez até trinta mil?
– Isso é extremamente louco – reagiu Locke. – Como você pode...
– Nós temos meios – interrompeu Paciência, descartando a pergunta com um aceno. – Que não são relevantes. O importante é o seguinte: segundo os registros históricos,
ninguém jamais fez uma afirmação crível de que encontrou os Ancestres. O que quer que eles fossem, sumiram há tanto tempo que nossos precursores não nos deixaram
nenhuma história sobre algum encontro com eles em carne e osso. Quando nós ocupamos suas cidades vazias, só os deuses poderiam saber por quanto tempo estavam desertas.
Agora, um olhar para elas já nos diz que os Ancestres eram mestres de uma feitiçaria que faz a nossa parecer truques de cartas de um idiota. Construíram milagres
para durar centenas de séculos. Eles pretendiam cuidar de seu jardim aqui por muito, muito tempo.
– O que os fez irem embora?
– Quando eu era criança, costumava morrer de medo pensando nisso – revelou Jean.
– Você pode morrer de medo agora pensando nisso – replicou Paciência. – De fato, Locke, o que os fez ir embora? Há duas possibilidades. Ou algo os varreu da face
do mundo ou os amedrontou tanto que eles abandonaram todas as suas cidades e seus tesouros na pressa de partir.
– Deixar o mundo? – perguntou Locke. – Para onde eles iriam?
– Não fazemos a mínima ideia. Mas, independentemente de como suas cidades maravilhosas foram esvaziadas antes de nossa ocupação, isso ocorreu. Algo lá fora fez isso
acontecer. Supomos que essa alguma coisa pode retornar.
– Agh! – fez Locke, pondo a cabeça nas mãos. – Paciência, você é o otimismo em pessoa, sabia?
– Eu avisei que poderia não ser animador.
– Este mundo e todas as suas almas são o estado soberano dos Treze. Eles o governam, protegem, cuidam dos mecanismos da natureza. Diabos, talvez tenham sido eles
que chutaram os Ancestres.
– Estranho, então, que não mencionem isso a nós explicitamente – retrucou Paciência.
– Paciência, deixe-me revelar uma coisa, por experiência pessoal. Os deuses nos dizem o que precisamos saber, mas, quando começamos a perguntar sobre coisas que
só queremos saber, é melhor esperar longas pausas na conversa.
– É inconveniente. Claro que é possível que os deuses estejam ocultando o que aconteceu com os Ancestres. Ou eles não puderam agir para impedir... ou não quiseram.
Nós passamos séculos discutindo essas possibilidades. A única suposição sensata é que precisamos tomar cuidado, por nós mesmos.
– Como? – perguntou Locke.
– O uso da feitiçaria a longo prazo, de um modo grandioso e organizado, com muitos magos trabalhando juntos, deixa uma marca indelével no mundo. Pessoas e forças
sensíveis à magia podem detectar esse fenômeno, assim como você pode olhar um rio e dizer para que direção ele corre, colocar a mão na água e afirmar o quanto ele
é rápido e quente. As grandes obras são como faróis acesos numa noite limpa e escura. Devemos presumir que em algum lugar na escuridão existem coisas para as quais
seria do nosso interesse não sinalizar. É por isso que mantemos apenas um punhado de lugares como a Câmara do Céu e preferimos não passar o tempo construindo torres
de cinquenta andares feitas de vidro. Suspeitamos que os Ancestres pagaram por sua falta de sutileza. Eles se tornaram óbvios para algum poder com o qual não precisavam
necessariamente cruzar caminhos.
– O meu... O ritual que você usou para se livrar do veneno...
– Ah, nem um pouco. Foi uma obra significativa. Qualquer mago num raio de 50 quilômetros teria sentido, mas o que estou falando exige muito mais tempo e trabalho.
E é por isso que transformamos os contratos nesse foco para a nossa vida. Trabalhar em direção aos objetivos divergentes de milhares e milhares de outras pessoas
no correr dos anos dissipa as consequências mágicas da concentração do nosso poder. Pensem em nós como algumas centenas de chamas minúsculas, estalando na noite.
Ao se acender aleatoriamente, em momentos diversos, em diferentes direções, evitamos o perigo de chamejar juntos numa conflagração vasta e visível.
– Dou-lhe os parabéns – congratulou Locke. – Você deu um nó na minha cabeça. Mas acho que entendo um pouco. Sua pequena guilda... se o que você está dizendo é verdade,
não se juntou só para manter a paz ou alguma bobagem como essa. Esse negócio dos Ancestres assusta vocês de verdade.
– É. Os magos da corte nos últimos anos do Trono Terim estavam fora de controle. Eram círculos de ambição pura, trabalhando para solapar uns aos outros. Não ouviam
a voz da razão. Os fundadores da nossa ordem levaram suas preocupações ao imperador Talatri e foram dispensados com risos. Mas nós sabíamos da verdade. Se a feitiçaria
humana quiser existir, deve ser discreta e disciplinada, caso contrário nos arriscamos a ter um conhecimento em primeira mão do destino dos Ancestres.
– Desculpe meu entendimento limitado dos seus poderes – interveio Jean –, mas o que vocês fizeram em Terim Pel não foi nem um pouco discreto.
– Nem disciplinado – concordou Paciência. – É, foi exatamente o tipo de trabalho focalizado, em grande escala, que não podemos nos dar ao luxo de fazer. Mas, naquela
ocasião, era um risco necessário. A sede imperial, sua infraestrutura, seus arquivos... todos os adereços hereditários do poder tinham que ser obliterados. Sem Terim
Pel, o caminho fácil para a legitimidade de qualquer pretenso restaurador do império foi varrido. Precisávamos dessa segurança nos nossos primeiros anos.
– Enquanto caçavam qualquer mago que não quisesse se juntar a vocês – complementou Locke.
– Sem misericórdia – concordou Paciência. – De fato não somos altruístas. Certamente podemos ser duros. Mas talvez você admita agora que nossas motivações são, ainda
que não filantrópicas, pelo menos... complicadas.
Locke apenas grunhiu e tomou uma colherada de sopa.
– Satisfiz você nessa questão?
Locke assentiu e engoliu.
– Tenho medo de que, se você me contar mais alguma coisa, eu nunca mais consiga dormir num quarto escuro.
– Vamos falar dos nossos negócios em Kartane? – pediu Jean, sentindo que ele e Locke estavam no clima para um assunto menos inquietante.
– O Jogo dos Cinco Anos. Vocês dois estão prontos para os detalhes?
– Meu espírito de luta voltou para casa – respondeu Locke. – Fiquei na cama durante semanas. Pode me soltar com uma lista das leis que você quer que sejam violadas.
– Tem certeza de que não quer chá, Jean? – perguntou Paciência.
– Não. Não para o desjejum. Mas eu não recusaria um vinho tinto. Dos fortes, capazes de arrancar tinta da parede. Vinho barato com areia dentro. É um bom vinho para
fazer planos.
– Vou cuidar disso.
– Bom, nós trabalhamos para a sua facção – começou Locke. – Presumo que sejam você, Tutanofrio, Navegadora, todas as figuras de pensamento elevado que só chacinam
pessoas quando elas são criancinhas traquinas. E os seus colegas de cinco anéis? Em que pé eles estão?
– Prudência e Temperança vão torcer por você. Presciência espera que vocês escorreguem e quebrem o pescoço, o que não é nenhuma surpresa.
– O pessoal de Presciência e do Falcoeiro, esse é o outro time? São só dois lados, sem facções rachadas, sem surpresas espreitando?
– Creio que só temos desacordos grandes em número suficiente para duas facções.
A porta se abriu e Tutanofrio entrou com uma bandeja. Pousou uma garrafa de vinho tinto, vários copos e a caneca de Paciência, a mesma da noite anterior. Em seguida,
entregou a ela dois rolos de pergaminho e se retirou tão silenciosamente quanto havia entrado.
Paciência pegou sua caneca de chá. Houve um chiado e uma nuvem de vapor se elevou. Jean serviu dois copos de vinho e pôs um diante de Locke. Tomou um gole do seu.
O gosto parecia algo saído de um tonel de curtume.
– Ah, água demoníaca de lavar a bunda. Perfeito.
– Não sei se nós guardávamos isso aí para beber – observou Paciência. – Possivelmente era para repelir abordagens.
– O cheiro é adequado à tarefa – comentou Locke, acrescentando água a seu copo.
– Bom, estes serão vocês. – Paciência empurrou os rolos para Locke e Jean usando a mão livre.
Jean pegou o seu, partiu o lacre e descobriu que, na verdade, eram vários documentos bem apertados. Examinou-os e viu cartas de trânsito lashanis. Elas eram um meio
razoavelmente comum de os viajantes provarem ser algo mais do que completos vagabundos.
– Para... Tavrin Callas! – exclamou, fazendo cara feia.
– Uma peça de roupa velha e confortável, imagino – falou Paciência com um sorrisinho.
Por baixo das cartas de trânsito, havia uma carta de crédito de uma casa de contabilidade Tivoli, com a quantia de 3 mil ducados kartanis. Se ele quisesse reivindicar
esse dinheiro, claro, teria que aceitar sua velha identidade falsa mais uma vez.
– Anime-se, Jean – incentivou Locke. – Eu sou Sebastian Lazari, pelo que parece. Nunca ouvi falar desse sujeito.
– Desculpem se a escolha de suas identidades falsas faz parte do sabor para vocês – falou Paciência. – Precisávamos estabelecer essas contas e colocar outras coisas
em movimento antes de tirarmos vocês de Lashane.
– Isso é fantástico – comentou Locke. – Não pense que não podemos começar a trabalhar agora que meus nervos estão mais acomodados, mas espero que isto não seja a
totalidade de nossa mamada na teta de ouro.
– Essas são apenas suas verbas para se estabelecer, para passarem os primeiros dias. A Tivoli vai colocá-los no controle de seu tesouro funcional. Cem mil ducados,
o mesmo que a oposição. Uma boa quantia para subornos e outras necessidades, mas não tanto que vocês possam simplesmente inundar Kartane com dinheiro e vencer sem
serem espertos.
– E, ahn, se guardarmos um pouquinho para depois? – perguntou Locke.
– Nós os encorajamos a gastar essa verba com a eleição, até a última moeda de cobre, pois, quando os resultados forem confirmados, qualquer sobra vai desaparecer
como por magia. Está claro?
– Lamentavelmente claro.
– Como essa eleição funciona, no nível mais básico? – indagou Jean.
– Existem catorze distritos na cidade e cinco representando as propriedades rurais. Dezenove cadeiras no Konseil governante. Cada partido político apresenta um candidato
para cada cadeira e designa uma linha de substitutos para o caso de o candidato principal estar metido num escândalo ou ser afastado por outro motivo. Isso costuma
acontecer com uma curiosa frequência.
– Não brinca – ironizou Locke. – Quais são esses partidos?
– Dois interesses principais predominam em Kartane. Por um lado, há o partido Raízes Profundas, uma antiga aristocracia. Todos foram legalmente rebaixados de seus
títulos, mas o dinheiro e as conexões continuam lá. Do outro lado, há o partido Íris Negra: artesãos, mercadores mais jovens. Dinheiro antigo versus novo, digamos.
– De quem nós vamos cuidar? – perguntou Jean.
– Vocês ficam com o Raízes Profundas.
– Como? Quero dizer, o que nós somos para essas pessoas?
– Consultores lashanis, contratados para direcionar a campanha por trás dos panos. O poder de vocês será mais ou menos absoluto.
– Quem disse a essas pessoas para nos ouvirem?
– Eles foram ajustados, Jean. Vão ceder a vocês com entusiasmo, pelo menos para a eleição. Nós os preparamos para a sua chegada.
– Pelos deuses.
– Não é nada que vocês não tentam fazer com o puro charme e histórias inventadas. Nós só trabalhamos mais depressa.
– Temos seis semanas, não é? – indagou Locke.
– É. – Paciência tomou um gole de chá. – O início formal das hostilidades eleitorais é a noite depois de amanhã.
– E esse Raízes Profundas... Você falou que eles venceram as últimas duas eleições?
– Ah, não.
– Você falou – insistiu Jean. – Falou que uma tradição vencedora estava sendo confiada a nós!
– Ah. Perdão. Eu quis dizer que a minha facção de magos havia apoiado o partido vencedor dos sem-dom por duas vezes seguidas. Vejam bem, é uma questão de acaso o
partido que cada um dos lados pega. O Raízes Profundas tem tido muito pouco brilho nos últimos dez anos, mas durante esses anos a sorte nos deu o Íris Negra. Agora,
infelizmente...
– Pelo mijo imaculado dos deuses – murmurou Locke.
– Quais são os limites para o nosso comportamento? – perguntou Jean.
– Com relação aos sem-dom, não muitos. Vocês trabalharão com pessoas ansiosas para ajudá-los a violar cada lei eleitoral já escrita, desde que não façam nada sangrento
ou vulgar.
– Sem violência? – perguntou Locke.
– As brigas são uma consequência natural do entusiasmo. Todo mundo adora ouvir sobre uma boa luta de punhos. Mas não passe dos punhos. Sem armas, sem cadáveres.
Vocês podem derrubar alguns kartanis e fazer quaisquer ameaças que desejarem, mas não podem matar ninguém. Não podem sequestrar nenhum cidadão de Kartane nem removê-los
fisicamente da cidade. Essas regras são impostas por meu pessoal. Imagino que os motivos sejam óbvios.
– Certo. Vocês não estão pagando para assassinarmos todo o pessoal do Íris Negra e cavalgarmos em direção ao pôr do sol.
– Já a situação de vocês é mais ambígua. Vocês dois e sua contrapartida que controlará o Íris Negra devem esperar qualquer coisa, inclusive sequestro. Vigiem as
costas. Com relação a vocês, só o assassinato é proibido.
– Bom, isso é animador – comentou Locke. – Quanto a essa contrapartida, o que vamos saber?
– Vocês já sabem um bocado.
– Como assim?
– É uma notícia desconfortável, mas ficamos sabendo que pelo menos uma pessoa nas fileiras da minha facção está passando informações para a Arquidama Presciência.
– Bom, é um tremendo descuido da parte de vocês!
– Estamos trabalhando nisso. De qualquer modo, Presciência e seus colegas descobriram minha intenção de contratar vocês há várias semanas. Eles colocaram em prática
uma contramedida direta.
– Como assim?
– Você e Jean têm uma formação única em fraudes, disfarces e manipulação. São uma espécie rara. De fato, só resta outra pessoa no mundo com conhecimento íntimo de
seus métodos e treinamentos...
Locke saltou de pé como se sua cadeira fosse uma balestra e o gatilho tivesse sido puxado. Seu copo voou, espirrando vinho com água sobre a mesa.
– Não. Não. Você está brincando, porra. Não.
– Sim – retrucou Paciência. – Meus rivais contrataram sua velha amiga Sabeta Belacoros para ser o exemplar deles. Ela está em Kartane há vários dias, fazendo os
preparativos. Aposto que ela está preparando surpresas para vocês dois enquanto conversamos.
LIVRO II
OBJETIVOS CRUZADOS
Quando o lampejo da rosa ao pôr do sol
Oscilar para o tormento e o retorcimento,
E a rosa for um passado vermelho,
Quando o rosto que eu amo estiver partindo
E o portão para o fim se fechar com um estrondo,
E não adiantar mais chamar ou dizer “Adeus” –
Talvez então eu lhe conte
em outra ocasião.
Carl Sandburg, “The Great Hunt”
i n t e r l ú d i o
Soltando fagulhas
1
Estava fresco e escuro no refúgio de Vidrantigo dos Nobres Vigaristas, e muito mais silencioso do que o usual, quando Locke acordou com a certeza de que alguém o
encarava. Prendeu o fôlego por um instante, depois imitou a respiração profunda e lenta do sono. Estreitou os olhos e examinou a escuridão cinzenta do cômodo, imaginando
onde estaria todo mundo.
O corredor que vinha da cozinha levava a quatro quartos ou, mais apropriadamente, quatro celas. Tinham cortinas escuras no lugar de portas. Uma pertencia a Correntes;
outra, a Sabeta; a terceira, aos Sanzas; a quarta, a Jean e Locke. Jean deveria estar em sua cama encostada na parede oposta, logo depois da pequena estante de livros
e rolos de pergaminho, mas daquela direção não vinha nenhum ruído.
Locke prestou atenção, esforçando-se para ouvir a respiração dele. Houve um sussurro de pele nua contra o chão e um farfalhar de roupas. Ele sentou-se com a mão
esquerda estendida e encontrou outros dedos quentes entrelaçados nos seus e uma palma no meio de seu peito empurrando-o de volta para baixo.
– Shhh – fez Sabeta, deslizando para a cama.
– O qu... Cadê todo mundo?
– Saíram – sussurrou ela em seu ouvido. A respiração dela estava quente em seu rosto. – Não temos muito tempo, mas temos um pouco.
Sabeta segurou as mãos dele e guiou-as para os músculos lisos e retesados de sua barriga. Depois, deslizou-os para cima até que ele estivesse segurando seus seios
– ela viera para o quarto sem túnica.
Uma coisa que os corpos dos garotos de 16 anos (essa era mais ou menos a idade de Locke) não fazem é reagir debilmente à provocação. Num instante, ele estava com
uma dureza dolorida contra o tecido fino do calção e exalou numa mistura de choque e deleite. Sabeta empurrou o cobertor de lado e enfiou a mão entre as pernas dele.
Locke arqueou as costas e emitiu um ruído que não era nem um pouco digno. Por sorte, Sabeta deu uma risadinha, parecendo achar aquilo cativante.
– Mmmm – sussurrou ela. – Estou me sentindo apreciada.
Sabeta pressionou para baixo com firmeza mas suavemente e começou a apertá-lo no ritmo da respiração dos dois, que ficava cada vez mais alta. Ao mesmo tempo, deslizou
a outra mão dele para baixo, afastando-a do seio, descendo até a barriga, até as pernas. Ela estava usando uma tanga de linho, do tipo que podia ser tirada apenas
com um puxão no lugar certo. Pressionou a mão dele entre as coxas, contra o calor intrigante que ficava logo atrás do tecido. Ele a acariciou ali e, durante alguns
instantes incríveis, os dois foram apanhados completamente naquele meio compartilhamento, meio duelo, com as reações que tinham um com o outro ficando menos controladas
a cada respiração áspera, e era um suspense delicioso imaginar quem explodiria primeiro.
– Você está me deixando louco – sussurrou Locke.
O calor da pele dela era tão intenso que ele imaginou que podia vê-lo como uma aura no escuro. Sabeta se inclinou adiante e sua respiração pinicou as bochechas de
Locke outra vez; ele captou os perfumes do cabelo dela, de suor e de perfume, e riu de prazer.
– Por que ainda estamos usando roupas? – perguntou ela, e os dois se separaram para consertar a situação, mexendo-se desajeitadamente, lutando, rindo.
Só que agora o calor suave da pele dela estava se esvaindo e as sombras cinzentas do quarto assomavam mais profundamente ao redor dos dois e Locke chutava, o corpo
todo num reflexo espasmódico, enquanto Sabeta se soltava dele como um sopro de vento.
O mais cruel dos senhorios, a realidade fria da manhã, terminou de expulsar a fantasia quente que residira por breve tempo em seu crânio. Murmurando e xingando,
Locke lutou contra o cobertor embolado, sentiu a cama se inclinando para longe da parede e fracassou em todos os aspectos na tentativa de se preparar para o encontro
com o chão. Existem três pontos de impacto que nenhum adolescente excitado jamais espera chocar contra uma superfície dura. Locke conseguiu bater com os três.
Sua mão direita estendida não conseguiu fazer nada útil, mas arrancou a cobertura opaca de seu globo alquímico ao lado da cama, banhando a cela numa luz dourada
e suave na qual ele ofegava e se retorcia. Uma pilha de livros arrumada descuidadamente despencou no chão com um estardalhaço, depois levou junto várias pilhas semelhantes
numa cascata fratricida.
– Pelos deuses abaixo – murmurou Jean, rolando para longe da luz.
Ele definitivamente estava em seu lugar e a cela dos dois era de novo a confusão atulhada da vida cotidiana, e não o palco escuro particular do sonho de Locke.
– Arrrrrrrrrrrgh – fez Locke. Isso não ajudou muito, de modo que ele tentou de novo. – Arrrrrrrrrrr...
– Sabe – Jean bocejou, irritado –, você deveria queimar algumas oferendas agradecendo o fato de que não fala durante o sono.
– ... rrrrrrgh. Que diabo você quer dizer?
– Sabeta tem ouvidos aguçados.
– Nnngh.
– Quero dizer, é extremamente óbvio que você não está sonhando com caligrafia.
Houve uma batida forte na parede do lado de fora da cela e a cortina foi puxada de lado, revelando Calo Sanza, o cabelo comprido caindo sobre os olhos, vestindo
um calção.
– Bom dia, raios de sol! Que barulho foi esse?
– Alguém despencou – murmurou Jean.
– Por que tanta dificuldade em dormir numa cama como uma pessoa comum, seu cachorro espasmódico da porra?
– Vá chupar um prego, Sanza – xingou Locke, ofegando.
– Eeiiiii, PESSOAL! – Calo bateu na parede enquanto gritava. – Sei que ainda temos meia hora para dormir, mas o Locke acha que todos devemos acordar agora! Achem
suas caras de felicidade, Nobres Vigaristas da Porra, o dia está lindo e nós precisamos começá-lo CEDO!
– Calo, que raios deu em você?! – berrou Sabeta em algum lugar lá fora.
Locke encostou a testa no chão e gemeu. Era o auge do interminável verão calorento no Septuagésimo Oitavo Ano de Preva, Senhora da Loucura Vermelha, e tudo estava
absolutamente fodido.
2
Sabeta investiu, aparou a tentativa de Locke de preparar uma guarda e acertou a lateral de seu joelho esquerdo com o bastão de cerejeira.
– Ai – fez ele, pulando num pé só enquanto o ardor ia diminuindo.
Locke enxugou a testa, colocou-se de novo na postura de duelista e encostou a ponta do seu bastão no de Sabeta. Estavam usando o santuário do Templo de Perelandro
como sala de treino, sob o olhar atento de Jean.
– Diamante alto, quadrado baixo – disse Jean. – Vão!
Era mais um exercício de velocidade e precisão do que técnica real de luta. Eles batiam os bastões um no outro nos padrões exigidos por Jean e, depois do contato
final, estavam livres para se golpearem mutuamente, marcando pontos com toques nos braços e nas pernas.
Clac! Clac! Clac! O som dos bastões ecoava na câmara com paredes de pedra.
Clac! Clac! Clac!
Clac! Clac! Paf!
– Aaai – gemeu Locke, sacudindo o pulso direito, onde um novo calombo vermelho crescia.
– Você é mais rápido do que isso, Locke. – Sabeta voltou à posição inicial. – Está distraído com alguma coisa hoje?
Sabeta usava uma túnica branca larga e calções de seda preta que iam até os joelhos, não deixando nada sobre suas pernas esguias e musculosas para a imaginação.
Suas bochechas estavam vermelhas, o cabelo preso firmemente com barbante de linho. Se havia escutado alguma coisa específica sobre a balbúrdia que ele provocara
para começar o dia, pelo menos não mencionara nada.
– Mais do que alguma coisa? – perguntou ela. – Alguma delas tem a ver comigo?
Isso é que era o conforto morno da incerteza.
– Você sabe que eu estou ligado em você – respondeu Locke, tentando parecer alegre enquanto os dois tocavam os bastões de novo.
– Ou gostaria de estar, hein?
– Quadrado médio, quadrado médio, diamante médio! – gritou Jean. – Vão!
Eles teceram seus padrões de golpes e contragolpes, batendo os bastões um no outro até o fim da sequência, quando Sabeta derrubou a arma de Locke e deu uma pancada
dolorosa em seu bíceps direito. O único comentário dela sobre essa vitória foi girar preguiçosamente o bastão enquanto Locke esfregava o braço.
– Esperem aí – falou Jean. – Vamos tentar um novo exercício. Locke, fique aí parado com as mãos dos lados do corpo. Sabeta, bata nele até cansar. Tenha certeza de
se concentrar na cabeça dele, de modo que ele não sinta nada.
– Muito engraçado. – Locke assumiu a postura de novo. – Estou pronto para outra.
Não estava nem um pouco. No fim da sequência seguinte, Sabeta o acertou de novo no bíceps direito. E de novo, depois do outro padrão, com uma precisão que era obviamente
deliberada.
– Sabe, na maior parte dos dias você consegue ao menos bater de volta – disse ela. – Quer desistir e admitir que foi um trabalho ruim?
– Claro que não – respondeu Locke, tentando enxugar com discrição as lágrimas que nasciam nos cantos dos olhos. – Mal comecei.
– Como quiser.
Ela se preparou de novo e Locke não pôde deixar de ver a frieza na postura. Ah, deuses. Quando Sabeta sentia que não a estavam levando a sério tinha um modo de irradiar
a mesma calma gélida que Locke imaginava que passaria do carrasco para a vítima condenada. Ele sabia muito bem o que era ser objeto dessa consideração.
– Diamante alto – anunciou Jean, cauteloso, captando a mudança no humor de Sabeta. – Quadrado médio, cruz baixa. Vão.
Eles fizeram os padrões com uma velocidade furiosa, Sabeta estabelecendo o ritmo e Locke se esforçando para acompanhá-la. No instante em que o último golpe do exercício
formal foi dado, Locke voou para uma posição de guarda que desviaria qualquer golpe destinado ao seu bíceps direito que sofrera abusos demais. Mas Sabeta estava
mirando um ponto logo acima do seu coração, e a pancada ardente quase o derrubou.
– Deuses do céu! – exclamou Jean, metendo-se entre os dois. – Você conhece as regras, Sabeta. Só valem pancadas nos braços e nas pernas.
– Existem regras numa briga de taverna ou de beco?
– Esta não é uma porcaria de briga de beco. É só um exercício para aumentar o vigor!
– Não parece estar funcionando para nenhum de nós dois.
– O que deu em você?
– O que deu em você, Jean? Vai ficar protegendo-o resto da vida?
– Ei, ei. – Locke contornou Jean e tentou ocultar uma quantidade considerável de dor por trás de um sorriso falso. – Tudo bem, Jean.
– Não está tudo bem – retrucou Jean. – Alguém está levando isso a sério demais.
– Fique de fora, Jean – disse Sabeta. – Se ele quer enfiar a mão no fogo, pode aprender a tirá-la sozinho.
– Ele está bem aqui, muito obrigado, e ele está bem – reagiu Locke. – Tudo bem, Jean. Vamos fazer outra sequência.
– Sabeta precisa se acalmar.
– Eu não estou calma? Locke pode ter uma folga quando pedir.
– Não quero ceder por enquanto – replicou Locke, com o que esperava ser uma espécie de sorriso charmoso, despreocupado. A expressão de Sabeta só ficou mais sombria.
– Mas, se você está preocupada comigo, pode recuar o quanto quiser.
– Ah, não. – Sabeta não estava nem um pouco calma. – Não, não, não. Não recuo. Recue você! Ou vamos continuar até que você não consiga mais ficar de pé.
– Isso pode demorar um bocado. Vejamos se você tem paciência...
– Maldição, quando você vai aprender que se recusar a admitir que perdeu não é o mesmo que ganhar?
– Depende um pouco de quanto tempo a gente continue recusando, não é?
Sabeta fez uma carranca, uma expressão que feriu Locke mais profundamente do que qualquer golpe de bastão. Encarando-o, segurou o bastão com as duas mãos, partiu-o
sobre o joelho e jogou os pedaços no chão.
– Desculpem, cavalheiros. Parece que não sou capaz de me ajustar ao espírito desse exercício.
Ela se virou e saiu. Quando havia sumido no corredor dos fundos do templo, Locke soltou um suspiro desanimado.
– Pelos deuses, que diabo está acontecendo entre nós? O que aconteceu agora?
– Ela tem um lado cruel – respondeu Jean.
– Não mais do que qualquer um de nós! – exclamou Locke, mais acaloradamente do que poderia pretender. – Bom, nós temos algumas... diferenças filosóficas, com certeza.
– Ela é perfeccionista. – Jean pegou as metades quebradas do bastão de Sabeta. – E de vez em quando você é um verdadeiro idiota.
– O que eu fiz, além de não conseguir ser um mestre duelista com bastões? – Locke massageou alguns dos doloridos lembretes que Sabeta havia deixado com sua técnica
superior. – Eu não treinei com Dom Maranzalla.
– Nem ela.
– Ora, em que sentido isso me torna um idiota?
– Você não é nenhum Sanza, mas sem dúvida pode ser um tremendo pé no saco. Olha, você teria ficado parado aqui, deixando que ela o transformasse em pasta, só para
estar no mesmo cômodo que ela. Eu sei. Você sabe. Ela sabe.
– Bom, ahn...
– Isso não é cativante, Locke. Você não corteja uma garota convidando-a a abusar de você do nascer ao pôr do sol.
– Sério? Isso se parece bastante com os cortejos de todas as histórias que já li...
– Estou falando de ser abusado literalmente, como ser transformado em cocô de passarinho com um porrete de madeira. Não é charmoso nem impressionante. Só faz você
parecer idiota.
– Bom, ela não gosta quando eu a venço em nada. Com certeza ela não vai me respeitar se eu desistir! Então que diabo eu posso fazer?
– Não tenho ideia. Talvez eu veja algumas coisas com mais clareza do que você porque não estou apaixonado, mas o que fazer com vocês dois, só os deuses sabem.
– Você é um profundo poço de tranquilização.
– Vendo pelo lado bom, tenho certeza de que, neste momento, você tem um posto mais alto na estima dela do que os Sanzas.
– Doces deuses, que elogio doentio! – Locke se encostou numa parede e se espreguiçou. – Por falar nos Sanzas, você viu a cara do Correntes quando nós o acordamos
hoje de manhã?
– Queria não ter visto. Ele vai quebrar aqueles dois em cima do joelho, igual ao bastão de Sabeta.
– Para onde você acha que ele foi?
– Não faço ideia. Nunca o vi sair com raiva antes mesmo de o sol nascer.
– O que está acontecendo com a gente, por todos os diabos? Esse verão inteiro foi um longo exercício de fazer tudo errado.
– Correntes murmurou comigo há algumas noites – respondeu Jean, mexendo com o bastão quebrado. – Algo sobre anos incômodos. Disse que talvez nos colocasse todos
trancados juntos.
– Espero que isso não signifique mais estágios de aprendizado. Realmente não estou com clima para aprender rituais de outro templo e depois fingir que me mato.
– Não faço ideia do que significa, mas...
– Ei, vocês dois! – Galdo apareceu no corredor dos fundos, imagem cuspida e escarrada de Calo, a não ser pelo fato de ter o crânio raspado sem deixar nem mesmo uma
sombra de cabelo. – Balofo e saco de pancadas! Correntes voltou, quer todo mundo na cozinha depressa. E o que você fez com Sabeta desta vez?
– Eu existo – respondeu Locke. – Em alguns dias isso basta.
– Você deveria fazer algumas amigas no Lis Dourado, meu chapa. Por que cair de cara tentando domar um cavalo quando você pode ter uma dúzia já selados?
– Então agora você gosta de trepar com cavalos – observou Jean. – Bravo, careca.
– Ria o quanto quiser, nós somos requisitados por lá. Convidados favoritos. Podemos exigir performances.
– Tenho certeza de que vocês são populares. – Jean bocejou. – Quem não gosta de ser pago por um trabalho rápido e fácil?
– Vou fazer uma oração por você na próxima vez que eu estiver com duas ao mesmo tempo. Talvez os deuses me ouçam e deixem seus bagos caírem. Mas, sério, o Correntes
chegou pela entrada do rio e acho que todos nós estamos para morrer.
– Urra – disse Locke. – Quando o tempo está assim, quem quer viver?
3
Esperando na cozinha do refúgio de vidro, Correntes não estava usando nenhum dos seus disfarces ou adereços usuais. Nem bengalas ou cajados para se apoiar, nem mantos,
nem ar de benevolência marota naquele rosto escarpado e barbudo. Estava vestido para andar na cidade, bastante suado pelo esforço, e todas as rugas na testa pareciam
se encontrar num vale agourento acima dos olhos escuros e ferozes. Locke ficou inquieto; raramente vira Correntes com uma carranca assim para um inimigo ou um estranho,
quanto mais para seus aprendizes.
Locke notou que todos os outros mantinham agora certa distância instintiva de Correntes. Sabeta estava sentada numa bancada, bem longe de todo mundo, de braços cruzados.
Os Sanzas estavam perto um do outro, mais pelo hábito antigo do que por uma afeição atual. Suas aparências divergiam: Calo com os cachos compridos, hidratados e
bem cuidados e Galdo com a cabeça raspada feito um lutador de rua. Os gêmeos não compartilhavam gracejos, nem gestos, nem conversa fiada.
– Acho que é justo começar pedindo desculpas por ter fracassado com todos vocês – disse Correntes.
– Hum... – murmurou Locke, adiantando-se. – Como você fracassou com a gente?
– Como mentor. Minha responsabilidade de não permitir que nosso lar feliz se transformasse num poço borbulhante de ressentimentos mútuos... uma coisa que aconteceu.
– Correntes tossiu, como se tivesse irritado a garganta só ao colocar essas palavras para fora. – Eu achei que poderia aliviar o regime dos verões anteriores. Menos
lições, menos tarefas, menos testes. Esperava que, sem restrições, vocês pudessem florescer. Em vez disso, vocês se enraizaram fundo, sem evoluir.
– Espere aí – falou Calo –, não foi uma pausa tão desagradável, foi? E nós treinamos. Jean cuidou para que continuássemos batendo uns nos outros.
– Essa não é sua principal forma de exercício hoje em dia – retrucou Correntes. – Ouvi coisas do Lis. Inválidos passam menos tempo na cama do que vocês dois. Certamente
vocês passam mais tempo lá do que planejando ou treinando nosso trabalho.
– Então nós não aplicamos um golpe em ninguém durante algumas semanas. Isso equivale a uma porra de fogo dos Ancestres caindo do céu? Quem liga a mínima se a gente
tira uma folga? O que deveríamos estar fazendo, senhor, estudando mais vadrã? Mais danças? Um décimo sétimo modo de segurar facas ou garfos?
– Seu ranhento grão-duque da insolência – vociferou Correntes, falando mais alto a cada palavra. – Seu cachorrinho ignorante de orelha suja, caçador de cobres, sua
barca de bosta! Você tem alguma ideia do que recebeu? De para que você trabalhou? O que você é?
– Um sujeito cansado de ouvir gritos...
– Dez anos sob meu teto – cortou Correntes, erguendo-se sobre Calo como uma montanha ambulante, cheio de indignação moral –, dez anos sob minha proteção, comendo
à minha mesa, alimentado pela minha mão e minhas moedas. Eu bati em você, comi o seu rabo, coloquei você na chuva?
– Não – respondeu Calo, encolhendo-se. – Não, claro que não...
– Então você pode suportar uma maldita bronca sem abrir a matraca.
– Claro – concordou Calo, agora muito humilde. – Desculpe.
– Vocês são ladrões educados. Não importa o quanto podem achar que lucram fingindo que não, vocês não são comuns. Podem se fazer de serviçais, fazendeiros, mercadores,
nobres; têm postura e modos para qualquer posto. Se eu não tivesse deixado que ficassem tão insensíveis, poderiam perceber a liberdade pessoal sem precedentes que
todos vocês possuem.
Locke abriu a boca, num reflexo, para dizer algo tranquilizador, porém um mero olhar de meio segundo de Correntes mais do que bastou para mantê-lo em silêncio.
– Para que vocês acham que é tudo isso? – perguntou Correntes. – A que vocês acham que tudo isso servia? Para que pudessem ficar à toa e fazer algum roubo mesquinho
ocasional? Beber, frequentar prostitutas e jogar dados com as outras Pessoas Certas até serem presos ou enforcados? Vocês viram o que acontece com gente como nós?
Quantos de seus coleguinhas de olhos brilhantes viverão até os 25 anos? Se chegarem aos 30, serão umas porcarias de anciãos. Acham que eles têm dinheiro guardado?
Propriedades no campo? Os ladrões podem prosperar noite a noite, mas não há nada para eles quando chegar o tempo das vacas magras, entenderam?
– Mas existem os garristas – interveio Galdo – e o Capa, e um monte de figurões mais velhos na Tumba Flutuante...
– De fato – interrompeu Correntes. – Capas e garristas não passam fome porque podem arrancar migalhas da boca dos irmãos e irmãs. E como você acha que vão ficar
velhos a serviço do Capa? Vocês vigiam as portas dele com uma arma de beco, como um policial a serviço. Veem seus amigos morrendo nas sarjetas e sendo enforcados
e chamados para lições de dentes porque disseram a coisa errada enquanto bebiam ou porque, na porra de uma vez, esconderam algumas moedas de prata. Vocês baixam
a cabeça e calam a boca para sempre. É isso que lhes garante um pouco de cabelos grisalhos.
Ele fez uma pausa e continuou com azedume:
– Sem justiça. Sem amizade verdadeira. Promessas no escuro, só isso, válidas até a primeira vez que alguém passe fome ou precise de algumas moedas. Por que você
acha que eu criei vocês duvidando da Paz Secreta? Nós, as Pessoas Certas, somos como um cachorro doente que morde as próprias entranhas. Mas vocês têm a chance de
viver na confiança e na amizade verdadeiras, ser ladrões como os deuses pretendiam, como um flagelo dos ricos e vivendo fiéis a si mesmos. Prefiro me danar a deixar
que vocês esqueçam o presente que cada um é para os outros.
Nenhuma observação espertinha jamais feita poderia se sustentar diante da tempestade daquele corretivo. Locke notou que não era o único com uma súbita compulsão
avassaladora de olhar para o chão.
– Assim, preciso pedir desculpas pelo meu fracasso. – Correntes pegou uma carta dobrada de dentro do casaco. – Por deixar que chegássemos a este belo estado de coisas,
brigando uns com os outros e nos esquecendo de nós mesmos. É um tempo ruim para todos vocês, confusos amontoados de nervos e paixão, trancados aqui embaixo, onde
podem se causar dano máximo. Certamente têm sido uma companhia desagradável para mim. Decidi que preciso de férias.
– Bom, então, para onde você vai? – perguntou Jean.
– Para onde vou? Beber, acho. Talvez vá ver o velho Maranzalla. E estou pensando em buscar um pouco de música de câmara. Mas desculpem se não fui claro. Eu quero
férias de todos vocês, mas não vou sair de Camorr. Vocês cinco farão uma viagem a Espara. Arranjei trabalho lá, para mantê-los ocupados durante vários meses.
– Espara? – indagou Locke.
– É. Não é empolgante? – O cômodo ficou em silêncio. – Achei que essa seria a reação. Olhem, enfiei um alfinete na minha casaca exatamente para esse momento.
Correntes tirou um alfinete de prata de uma lapela e jogou-o no ar. Ele bateu no chão com um pequeno tilintar.
– Uma das expressões que eu sempre quis testar. Mas, sério, vocês estão fora. Todos vocês. Expulsos. Há uma caravana de carroças que parte do Portão de Cenza no
Dia do Duque. Vocês têm dois dias para se juntar a ela. Depois disso, é uma semana e meia até chegar a Espara.
– Mas e se nós não quisermos ir para a maldita Espara? – questionou Calo.
– Então vão embora e não voltem a este templo. Abandonem tudo. Na verdade, saiam de Camorr. Não quero vê-los de novo, em lugar nenhum.
– O que há de tão importante em Espara? – perguntou Sabeta.
– A parceria de vocês. Já passou o tempo de ela ser testada de verdade, fora do meu alcance. Aproveitem todos os seus anos de treinamento e façam alguma coisa com
eles. Usar identidades falsas juntos, contar um com o outro e voltar vivos. Provem que não estivemos perdendo tempo aqui embaixo. Provem a mim... e provem a si mesmos.
Correntes levantou a carta dobrada.
– Vocês vão a Espara desfrutar de uma carreira no palco.
4
– Antes de terminar meu tempo como soldado – continuou Correntes – e antes de voltar a Camorr, eu cedi a vários vícios, e o pior deles não foi o de atuar. Entrei
para uma companhia em Espara, administrada pelo filho da puta mais azarado e obtuso que já se arrastou para fora de um útero. Jasmer Moncraine. Eu salvei a vida
dele de propósito e ele salvou a minha por acaso. Nós mantivemos contato no correr dos anos.
– Ah, pelos deuses, você está nos mandando como pagamento de uma dívida! – exclamou Sabeta.
– Não, não. Jasmer e eu estamos quites. O favor é mútuo. Eu preciso que vocês cinco estejam ocupados em outro lugar. Jasmer tem uma necessidade desesperada de atores
e uma necessidade igualmente desesperada de não ter que pagar por eles.
– Então são mesmo circunstâncias questionáveis.
– Ah, jamais duvide. Pelas cartas que recebi, tenho a impressão de que, com mais um erro, ele será acorrentado por dívidas. Eu gostaria que vocês evitassem isso.
Ele quer fazer a República de ladrões, de Lucarno. A história que vocês contarão é que são um bando de aspirantes a atores vindos de Camorr; mandei uma carta dizendo
a ele como usar a abordagem certa. O resto fica totalmente por conta de vocês.
– Você tem uma cópia da carta para nós? – indagou Locke.
– Não.
– Bom, então o que devemos fazer sobre...
Correntes jogou um saco tilintante na direção da cabeça de Locke, que mal conseguiu pegá-lo no ar antes de ser acertado no nariz.
– Ah, olhe, um saco de dinheiro. Essa é toda a ajuda que vocês vão receber de mim, meu garoto.
– Mas... identidades falsas, arranjos de viagem...
– Problema de vocês, não meu.
– Nós não sabemos nada sobre teatro!
– Sabem sobre figurinos, maquiagem, empostação e postura. Todo o resto vocês podem aprender ao chegarem lá.
– Mas...
– Olhem, não quero passar o resto do dia interrompendo as perguntas de vocês, por isso vou me esquecer temporariamente de como fazer as palavras saírem da minha
boca. Até segunda ordem, vou acalentar uma garrafa de vinho branco vadrã, geladinha, lá no Lar do Tombo. Lembrem-se da caravana. Dois dias. Vocês podem se juntar
a ela ou abandonar os Nobres Vigaristas. Daqui para a frente, o seu tempo é de vocês mesmos.
Correntes saiu da cozinha num estado de extrema satisfação. Alguns instantes depois, Locke ouviu o ranger e a pancada da porta escondida do refúgio, voltada para
o rio. Locke e seus colegas trocaram olhares perplexos.
– Bom, isso é que é levar um punho enfiado no rabo e tomar um banho de óleo em chamas – disse Calo.
– Há alguém aqui que prefere sair da quadrilha a ir para Espara? – indagou Locke em voz baixa.
– É melhor que não haja – retrucou Galdo.
– A cabeça de bola de bilhar está certa pela primeira vez – concordou Calo. – Não é que eu esteja entusiasmado, mas quem quiser sair pode pular do telhado do templo.
– Ótimo – comentou Locke. – Então precisamos conversar. Arranjar um pouco de tinta e pergaminho.
– Contar o dinheiro – acrescentou Sabeta.
– Vou pegar um pouco de vinho – avisou Jean. – Vinho forte.
5
Não estavam nem um pouco confortáveis juntos. Os Sanzas sentaram-se em lados opostos da mesa e Sabeta se recostou numa cadeira empurrada para longe dos outros. Mas
todos pareciam entender a urgência da situação; no decorrer de duas garrafas de vinho de limão verrari, apresentaram argumentos quase sempre educados e rabiscaram
uma lista de suprimentos e responsabilidades.
– Certo, então – disse Locke quando seu copo estava vazio e as páginas, cheias. – Sabeta vai tentar afanar quaisquer exemplares de República de ladrões das lojas
e dos escribas, para que possamos dar uma olhada na estrada.
– Eu tenho algumas outras peças do Lucarno que vou levar – comentou Jean. – E algumas porcarias de Mercallor Mentezzo de que não gosto tanto, mas deveríamos estudá-las
e decorar algumas falas.
– Jean e eu vamos encontrar uma carroça e fazer amizade com um mestre de caravana – afirmou Locke. Em seguida, entregou uma das suas listas a Galdo. – Os Sanzas
vão arrumar as mercadorias e suprimentos comuns.
– Precisamos de identidades falsas – observou Sabeta. – Podemos aprimorar nossas histórias no caminho, mas devemos ter os nomes de jogo prontos para usar.
– Quem você quer ser? – perguntou Jean.
– Hummm. Me chamem... de Verena. Verena Gallante.
– Lucaza – disse Locke. – Vou ser Lucaza... de Barra.
– É preciso? – questionou Sabeta.
– É preciso o quê?
– Você sempre escolhe um nome falso que começa com “L” e Jean sempre pega um “J”.
– Isso simplifica as coisas – alegou Jean. – Agora, só porque você disse isso, vou ser... Jovanno. Diabos, Locke e eu podemos ser primos. Eu vou ser Jovanno de Barra.
– Os nomes falsos são divertidos – falou Calo. – Me chamem de Tapadão Paupequeno.
– Nós precisamos de identidades falsas, não de resumos biográficos – replicou Galdo.
– Ótimo, então. Me ajudem. Existe uma forma masculina de Sabeta, não existe?
– Sabazzo – respondeu Galdo, estalando os dedos.
– É, Sabazzo. Eu vou ser Sabazzo.
– Não vai porcaria nenhuma – reagiu Sabeta.
– Ei, já sei – continuou Galdo. – Eu vou ser Jean. Você pode se chamar Locke.
– Vocês dois vão cagar lascas de madeira durante um mês quando eu fizer vocês comerem esta mesa – retrucou Jean.
– Bom, se você coloca dessa forma, por que não usamos nossos segundos nomes? – sugeriu Calo. – Eu vou ser Giacomo e você pode ser Castellano.
– Pode funcionar – concordou Galdo, relutante. – Precisamos de um sobrenome.
– Asino! – exclamou Calo. – É “jumento” em trono terim.
– Que os deuses me deem força – murmurou Sabeta.
6
– Mestre de Barra – disse Anatoly Vireska duas noites depois, olhando para cima com um sorriso que colocava à mostra cada falha nos dentes, como ameias numa muralha
meio desmoronada. O mestre de caravana vadrã, magro, alto e de meia-idade, deu um tapa amigável na carroça dos Nobres Vigaristas quando Jean fez seus quatro cavalos
pararem. – E companheiros. Escolheram uma boa hora para aparecer.
– Já vi este lugar nos períodos de maior movimento.
Locke olhou para trás, para a Rua das Sete Rodas, no bairro Quedas do Moinho, que estava sob a estranha névoa multicolorida da Falsaluz, já diminuindo de intensidade.
O tráfego na rua calçada de pedras era esparso, pois poucos viajantes entravam ou saíam pelo Portão de Cenza quando a escuridão ia caindo.
– Achei que poderíamos evitar o caos.
– Isso mesmo. Parem em qualquer lugar na área comum embaixo da muralha. Agora, se quiserem um abrigo um pouco melhor, há o estábulo da Andrazi na rua à direita e
o do Umbolo um pouco depois, o que tem um monte de mulas. O primeiro me passa uns cobres por semana para indicar pessoas, mas eu não aceitaria o dinheiro se não
achasse que o estabelecimento dela é a melhor opção, não é?
– Está devidamente anotado – respondeu Jean.
– Quer que eu envie um garoto para ajudar com seus cavalos? Eu também poderia mandar meu arrumador verificar suas bagagens.
– Tenho certeza de que estamos bem, obrigado – garantiu Locke.
– Bom saber. Mas, só para ficar claro, meus guardas não entram em serviço até colocarmos todos os nossos patinhos em fila amanhã de manhã. Já que estamos dentro
da muralha, sua segurança é problema de vocês. Como vão dormir a 20 metros de um alojamento da guarda, eu não me preocuparia muito com isso.
– Nós também não vamos nos preocupar.
Jean acenou despedindo-se e convenceu os cavalos a levá-los até a sombra da muralha de Camorr. Precários painéis cobriam cerca de 100 metros de espaço comum junto
à muralha, onde podiam estacionar os que não quisessem ou não pudessem pagar pelo serviço nos estábulos comerciais. Sabeta, Calo e Galdo saíram de cima da carroça
descoberta enquanto ela ia parando.
– Já fizemos 400 metros, só faltam meros 300 quilômetros – disse Locke.
O ar úmido estava carregado com os cheiros de feno velho, suor e bosta de animais. Outros viajantes acendiam lanternas, desenrolavam sacos de dormir e faziam fogueiras
para cozinhar; havia pelo menos uma dúzia de carroças paradas junto à muralha. Locke se perguntou quantas iriam para Espara, como parte da caravana de Vireska.
– Vamos preparar vocês para a noite, garotos.
Jean pulou da carroça e deu um tapinha tranquilizador no flanco do cavalo mais próximo. Ele havia passado vários meses no papel de aprendiz de cocheiro dois anos
antes e assumira a responsabilidade de guiar e cuidar dos animais sem reclamações. Os cavalos representavam uma parcela significativa do dinheiro dado por Correntes,
mas poderiam ser revendidos em Espara para melhorar as finanças temporariamente reduzidas.
– Dê uma varrida embaixo da carroça, está bem, Giacomo? – pediu Galdo. – Não quero bosta de cavalo servindo de travesseiro.
– Varra você mesmo, Castellano – rebateu Calo. – Ninguém pôs você no comando.
– Cuidado – sussurrou Sabeta, segurando Calo pelo braço. – Temos dez dias de estrada pela frente. Eles precisam ser um sofrimento insuportável sem motivo?
– Eu não sou a droga do criado dele.
– Isso mesmo. – Locke se meteu entre os dois Sanzas, pensando depressa. – Ninguém é. Vamos dividir os serviços de limpeza, todos nós. Calo começa esta noite...
– Eu sou Giacomo.
– Certo, desculpe. Giacomo começa esta noite. O outro irmão faz o serviço quando pararmos amanhã. Eu pego a noite seguinte, e assim por diante. Uma rotatividade
justa. Está bom assim?
– Dá para aguentar – murmurou Calo. – Não tenho medo de sujar as mãos. Só não quero que ele fique de nariz empinado.
Locke trincou os dentes. Os Sanzas tinham passado os últimos meses descartando seus antigos hábitos de sincronicidade nas ações e na aparência. Esforçavam-se para
se distinguir um do outro e as diferenças no modo de se vestir eram meras exterioridades desse fenômeno. Locke jamais se incomodaria com o fato de os gêmeos terem
uma fase individualista, mas o momento escolhido fora extremamente incômodo e as brigas constantes eram como lenha nova colocada numa fogueira já enorme.
– Olhem – disse Locke, percebendo que os mecanismos de companheirismo da gangue precisavam urgentemente de lubrificação –, com tantas tavernas por perto, não vejo
necessidade de nenhum de nós se torturar com ensopado e chá. Vou pegar alguma coisa mais agradável para nós.
– Temos dinheiro para esse luxo? – perguntou Sabeta.
– Talvez eu tenha cortado uma ou duas bolsas quando saí hoje cedo. Só em nome da... é... da flexibilidade financeira. – Locke arrastou os pés e pigarreou. – Quer
ir comigo?
– Você precisa de mim?
– Bom... eu gostaria.
– Hummm.
Sabeta o encarou por alguns segundos e Locke experimentou uma sensação curiosa, como se seu coração afundasse vários centímetros no peito. Então, ela deu de ombros.
– Tudo bem.
Deixaram Jean com os cavalos, Galdo vigiando os suprimentos e Calo limpando escrupulosamente o chão embaixo da carroça. Havia uma taverna bem iluminada no fim da
rua junto à muralha, logo depois do estábulo da Andrazi; em um consenso mútuo e silencioso, eles se dirigiram até ela, em meio à crescente escuridão. Locke lançou
um olhar para Sabeta enquanto andavam.
O cabelo preso dela estava enfiado sob um gorro de linho justo e todas as roupas eram compridas e largas, disfarçando as curvas. Era o tipo de vestimenta que uma
jovem prudente, tranquila e discreta escolheria para viajar, logo não combinava nem um pouco com Sabeta. Mesmo assim, aquilo lhe caía melhor do que na maioria das
pessoas, aos olhos de Locke.
– Eu estava... é... querendo falar com você – começou ele.
– Isso é fácil. Abra a boca e deixe as palavras saírem.
– Eu... Olhe, será que você pode... será que você pode, por favor, não ser tão superficial comigo?
– Estamos pedindo milagres agora, é? – Sabeta olhou para baixo e chutou uma pedra para fora do caminho. – Olhe, desculpe. Pensar em dez dias juntos na estrada...
E com os irmãos sendo... Você sabe. Essa coisa toda faz com que eu me sinta como um porco-espinho, enrolado e com os espinhos para fora. Não consigo evitar.
– Ah, um porco-espinho é a última coisa com a qual eu compararia você – replicou Locke, rindo.
– Interessante, eu menciono meus sentimentos e você parece achar que estou querendo um apoio com relação às suas percepções.
– Mas... – Locke sentiu outro nó no peito. As conversas com Sabeta sempre pareciam chamar sua atenção para mistérios internos defeituosos que anteriormente ele não
soubera que possuía. – Ah, qual é, você precisa dissecar tudo o que eu digo, espetar com um alfinete como um anatomista e perscrutar?
– Primeiro, eu sou superficial, agora estou sendo detalhista demais. Sem dúvida você deveria estar feliz por suas falas receberem uma atenção tão grande.
– Você sabe... – Locke sentiu as mãos trêmulas só de pensar no que iria colocar às claras – ... você sabe que, quando estou perto de você, acho muito fácil trocar
os pés pelas mãos. Às vezes os dois pés e as duas mãos. E você percebe isso.
– Mmmmm.
– Mais do que percebe. Você se aproveita.
– Eu me aproveito. – Ela o olhou estranhamente. – Você gosta de mim.
– Isso... – disse Locke, sentindo-se atordoado. – Não... na verdade... não é assim que eu diria...
– Não soa tão grandioso em voz alta como soa aqui dentro? – Ela bateu na própria testa.
– Sabeta, eu... eu valorizo sua opinião favorável mais do que tudo no mundo. Não tê-la me mata. Me mata não saber se eu tenho. Nós moramos juntos durante todos esses
anos e ainda há uma névoa entre nós. Não sei o que a colocou aí, mas eu me jogaria embaixo de uma carroça para dissipá-la, acredite.
– Por que você presume que é alguma coisa que você fez, uma coisa que você possa desfazer quando quiser? Eu não sou um problema de aritmética só esperando que você
mostre o seu trabalho, Locke. Você já parou para pensar que eu posso... pelos deuses, agora você está me fazendo tropeçar... que eu posso estar colaborando para
essa... para a nossa falta de jeito?
– Colaborando?
– É, como se eu tivesse motivos próprios, de sangue quente, já que não sou uma pintura a óleo nem outro objeto decorativo de desejo...
– Você gosta de mim? – perguntou Locke, chocado consigo mesmo por fazer a pergunta. Era um convite para ter seu coração exposto e esmagado numa bigorna, e havia
mil coisas que ela poderia dizer que fariam o serviço da marreta. – Um pouco? Alguma vez eu a agrado com minha companhia? Sou pelo menos preferível a uma sala vazia?
– Há ocasiões em que a sala vazia é uma tremenda tentação.
– Mas...
– Claro que eu gosto de você – respondeu ela, levantando as mãos como se fosse tocá-lo com um gesto tranquilizador, mas não chegou a completar o movimento. – Você
consegue ser inteligente, empreendedor, charmoso, se bem que raramente as três coisas ao mesmo tempo. E... às vezes eu admiro você, se é que ouvir isso ajuda.
– Ouvir isso significa tudo – assegurou ele, sentindo o aperto no peito se transformar num calor esperançoso. – Vale mil constrangimentos. Porque... porque eu sinto
a mesma coisa. Por você.
– Você não sente a mesma coisa por mim.
– Ah, sinto. Sem ressalvas, inclusive.
– Isso é...
– Ei, você aí!
Um porrete polido baixou sobre o ombro de Locke, uma pancada fraca, mas impossível de ignorar. Atrás dele, um homem atarracado com o arnês de couro e a casaca amarelo-mostarda
da guarda citadina estava acompanhado por um colega mais novo que carregava uma lanterna na ponta de uma vara.
– Você está no meio de uma rua – avisou o casaca-amarela grandalhão –, e não numa maldita sala. Saia daí.
– Ah, claro, senhor – disse Locke, numa das suas melhores vozes de cidadão respeitável (como o policial não estava agitado, não era necessário que Locke usasse a
melhor de todas).
Ele e Sabeta saíram do meio da rua para as sombras junto à muralha, onde vaga-lumes riscavam pálidos arcos verdes contra a escuridão.
– Ninguém pensa em ninguém sem ressalvas – disse Sabeta. – Eu adoro o Correntes e, mesmo assim, ele e eu já... desapontamos um ao outro. Sempre vou gostar dos Sanzas,
mas, neste momento, gostaria que eles ficassem longe durante um ano. E você...
– Eu frustrei você, sei disso.
– E eu retribuí o favor. – Ela o tocou no braço esquerdo com delicadeza e Locke precisou de todo o autocontrole para não dar um pulo. – Ninguém admira ninguém incondicionalmente.
Se for assim, está atrás de uma imagem, e não de uma pessoa.
– Bom, nesse caso eu tenho muitos ressentimentos, reservas e suspeitas com relação a você. Isso a agrada mais?
– Você está tentando ser charmoso de novo – replicou ela baixinho –, mas eu opto por não cair no charme, Locke Lamora. Pelo menos agora do jeito como as coisas estão.
– Eu posso consertar o que fiz para frustrar você?
– Isso é... complicado.
– Gosto de pensar que sou capaz de captar dicas, como qualquer pessoa. Por que não joga algumas na minha cabeça?
– Acho que vamos ter muito tempo para matar, daqui até Espara.
– Podemos... conversar de novo amanhã à noite? Quando pararmos?
– O cavalheiro requisita o favor de um encontro pessoal amanhã à noite?
– Se agradar à dama, antes da dança e do vinho gelado, imediatamente após a grande varredura embaixo da carroça para tirar bostas de cavalo.
– Posso consentir.
– Então vale a pena viver.
– Não seja estúpido – retrucou ela. – Nós deveríamos ir logo à taverna e voltar antes que os Sanzas tentem ir pela última vez até o Lis Dourado.
Saíram da taverna com frango cozido frio, azeitonas, pão preto e dois odres de vinho amarelo com um sabor entre terebintina e mijo de vespa. Apesar de simples, a
refeição foi uma indulgência ducal em comparação com a carne-seca e o biscoito duro que esperava nos caixotes dentro da carroça. Comeram em silêncio, distraídos
pela visão das Cinco Torres brilhando na noite que chegava e por insetos famintos.
Jean se ofereceu para fazer o primeiro turno de vigia – nenhum camorri, ainda mais algum que tivesse saído do Morro das Sombras, confiaria na Providência, nem mesmo
estando praticamente à sombra de um alojamento da guarda da cidade. Depois de reconhecer esse nobre sacrifício, os outros quatro se enrolaram para dormir embaixo
da carroça, suados e assolados por mosquitos.
Ocorreu a Locke que, tecnicamente, aquela era a primeira vez que ele e Sabeta dormiam juntos, ainda que estivessem separados por nada menos que os gêmeos Sanzas.
– Nós engatinhamos antes de andar – disse, suspirando consigo mesmo. – Andamos antes de correr.
– Ei – sussurrou Galdo, que estava enrolado às suas costas. – Você não peida quando dorme, peida?
– Como você conseguiria detectar um peido acima do seu odor natural, Sanza?
– Tenha vergonha na cara! – disse Galdo. – Não existe nenhum Sanza aqui, lembra? Eu sou um Asino.
– Ah, é – respondeu Locke com um bocejo. – Sem dúvida que é.
Capítulo Cinco
O Jogo dos Cinco Anos:
Posição inicial
1
– Sabeta está em Kartane – disse Locke.
– Ela não poderia fazer o serviço se estivesse em outro lugar – retrucou Paciência.
– Sabeta. A minha Sabeta...
– Fico pasma com uma declaração de posse tão confiante.
– A nossa Sabeta, então. A Sabeta. Como vocês sabem tanto sobre minha vida? Como a encontraram?
– Não fui eu. Nem sei como isso foi feito. Só sei que as instruções e os recursos dela serão equivalentes aos de vocês.
– Só que ela começou antes – falou Jean, ajudando Locke a sentar-se de novo em sua cadeira.
A expressão de Locke era a de um lutador que tinha acabado de receber um tremendo soco no queixo.
– E ela está trabalhando sozinha – argumentou Paciência. – Já vocês dois têm um ao outro. Assim, podemos esperar que a vantagem dela seja puramente temporária. Ou
ela é tão feroz a ponto de fazer vocês dois tremerem?
– Não estou tremendo – disse Locke baixinho. – É só... inesperado demais.
– Você sempre esperou um reencontro, não foi?
– Nos meus termos. Ela sabe que vai estar contra nós? Ela sabia antes de pegar o trabalho?
– Sabia.
– Seus opositores... não fizeram nada contra ela?
– Pelo que sei, ela não precisou de nenhuma chantagem.
– É difícil aceitar isso. Os Nobres Vigaristas... bem, nós treinamos uns contra os outros e discutimos, obviamente, mas nunca, ah, nunca nos opusemos um ao outro,
pelo menos de verdade.
– Já que ela se afastou da companhia de vocês há tanto tempo, como podem acreditar que ela ainda se considera parte da gangue?
– Obrigado, Paciência – resmungou Jean. – Você tem mais alguma coisa para nós? Se não tiver, acho que precisamos...
– É, tenho certeza de que precisam. A cabine é de vocês.
Ela saiu. Locke pôs a cabeça nas mãos e suspirou.
– Não espero que a vida faça sentido – disse depois de alguns instantes –, mas sem dúvida seria mais agradável se ela parasse de ficar chutando nosso saco.
– Você não quer vê-la de novo?
– Claro que quero! Eu sempre quis encontrá-la. Queria fazer isso em Camorr; queria fazer isso depois que aplicamos um grande golpe em Tal Verrar. Só... Você sabe
que tudo acabou. Ela não vai ficar impressionada.
– Talvez ela queira ver você. Talvez ela tenha adorado a chance quando os Magos-Servidores a procuraram. Talvez ela já tivesse tentado nos achar.
– Deuses, e se ela tentou? Imagino o que ela pensou da confusão que deixamos para trás em Camorr. Simplesmente não consigo acreditar... Trabalhar contra ela! Que
escrotos!
– Ei, nós só devemos fraudar uma eleição. Ninguém vai machucá-la, muito menos nós.
– Espero que sim. – Locke se animou. – Espero... Maldição, não faço ideia do que esperar.
Ele passou alguns minutos mordiscando a comida num atordoamento nervoso, enquanto Jean bebericava seu vinho ruim e quente.
– De uma coisa eu sei – disse Locke por fim. – No lado dos negócios, nós já estamos na merda.
– Enfiados até os cotovelos – concordou Jean.
– Se tivesse opção, eu não gostaria de dar dez minutos de vantagem a ela, quanto mais alguns dias.
– Isso me faz pensar na época em que o Correntes jogava vocês dois um contra o outro. Todas aquelas discussões... aqueles impasses. E depois mais discussões.
– Não pense que não me lembro. – Locke bateu distraidamente com um pedaço de bolacha na mesa. – Bom, diabos. Já faz cinco anos. Talvez ela tenha aprendido a perder
com graça. Talvez esteja destreinada.
– Talvez uns macacos adestrados saiam do meu cu e me sirvam um copo de conhaque de Austershalin.
2
Amanhecer no Amatel, no dia seguinte. Uma faixa laranja-dourada e nevoenta subia do horizonte leste e as águas calmas e escuras espelhavam o céu cobalto. Uma dúzia
de barcos pesqueiros passava em grupo pelo Andarilho do Céu; as esteiras brancas e triangulares davam às pequenas embarcações uma aparência de pontas de flecha deslizando
numa lentidão onírica. A Kartane propriamente dita se aproximava a bombordo, a menos de 800 metros.
Do tombadilho superior, Jean podia ver os terraços limpos e brancos da cidade, protegidos por densas filas de oliveiras, ciprestes e pés de madeira-bruxa, levemente
encobertos por uma névoa que lhe deu uma saudade inesperada de Camorr. Um atarracado farol de pedra dominava o litoral da cidade, mas, no momento, suas grandes lanternas
douradas estavam amortecidas, logo o brilho não passava de uma aura quente coroando a torre.
Locke se encostou no corrimão de popa, contemplando a cidade que se aproximava, comendo carne fria e queijo branco e duro que havia empilhado desajeitadamente na
mão direita. Tinha andado de um lado para outro na cabine durante a maior parte da noite, incapaz ou sem vontade de dormir, só se acomodando na rede para descansar
as pernas instáveis.
– Como está se sentindo?
Enrolada numa capa comprida e num xale, Paciência optou por não aparecer do nada e se aproximou a pé.
– Maltratado – respondeu Locke.
– Pelo menos está vivo para se sentir assim.
– Não precisa dar deixas. Você vai ver nosso desempenho memorável, não se preocupe.
– Eu não estou preocupada – disse ela em voz doce. – Lá vem o nosso pessoal das docas.
– Pessoal das docas? – Jean olhou para além de Paciência e viu um barco comprido e baixo de dois bancos, com vinte pessoas remando, aproximar-se por trás do último
pesqueiro.
– Para levar o Andarilho do Céu e cuidar dos cabos, das velas e de outras coisas tediosas.
– Não está com clima para balançar os dedos e ajeitar tudo? – perguntou Locke.
– Uma das poucas coisas em que concordamos, tanto os excepcionalistas quanto os conservadores, é que nossas artes não existem para lavar conveses.
O pessoal das docas subiu a bordo na área central do navio, um grupo de marinheiros de aparência bastante comum. Paciência sinalizou para Locke e Jean a acompanharem
enquanto dois recém-chegados assumiam o timão.
– Presumo que você esteja com suas machadinhas, não é, Jean? E todos os documentos que eu lhe dei.
– Claro.
– Então vocês não vão se incomodar se forem para a terra imediatamente.
Ela levou-os até o lado de bombordo no centro do Andarilho, onde Jean viu quatro marinheiros ainda esperando no bote. Foi uma descida fácil pela rede de abordagem,
de menos de 3 metros. Até Locke conseguiu seguir sem problemas e, então, Paciência, que evidentemente só exigia ser içada quando a gravidade não era a favor.
– Parte do pessoal de vocês está esperando no píer – avisou ela, acomodando-se num banco de remador. – Todos sabem da urgência da situação.
– Nosso pessoal? – perguntou Locke.
– Neste momento, eles são totalmente de vocês. O arranjo das questões deles está nas suas mãos.
– E eles vão fazer o que mandarmos? Até que ponto?
– Até um ponto razoável, Locke. Ninguém vai se jogar no lago porque você quer, mas vocês dois são os cabeças do aparato de eleição do partido Raízes Profundas. Funcionários
cumprirão suas ordens. Candidatos beijarão suas botas.
Os marinheiros remaram, afastando-os do Andarilho, e foram para o litoral iluminado por lanternas.
– Esta é a Ponta Corbessa – informou Paciência, gesticulando à frente. – O cais da cidade. Imagino que nenhum dos dois saiba muito sobre este lugar, não é?
– Nosso plano anterior era evitar Kartane... ahn... para sempre – respondeu Jean.
– Seus novos colegas vão colocá-los a par de tudo. Daqui a alguns dias, vocês estarão muito confortáveis, tenho certeza.
– Hrm – fez Locke.
– Por falar em conforto, há uma última coisa que eu deveria mencionar.
– O quê? – perguntou Locke.
– É claro que vocês estarão livres para se comunicar com Sabeta de qualquer modo que ela permita, mas conluios não serão aceitáveis. Vocês são oponentes. Vão se
opor e receber oposição, sem folga. Estamos pagando para ver uma disputa. Se nos desapontarem nesse sentido, garanto que não receber o pagamento será a menor das
suas preocupações.
– Dê um tempo nas ameaças. Você vai ter sua porcaria de disputa.
O escaler parou junto a um cais de pedra. Jean saiu, puxou Locke e depois, de má vontade, ofereceu o braço a Paciência. Ela o segurou, assentindo.
Agora estavam à sombra do farol, num trecho de rua calçada de pedras onde havia armazéns e lojas fechadas. Uma esparsa floresta de mastros erguia-se por trás dos
prédios – provavelmente numa espécie de laguna, pensou Jean, onde os navios podiam ficar em segurança. A área estava estranhamente deserta, sem levar em conta um
pequeno grupo de pessoas paradas junto a uma carruagem.
– Paciência – chamou Jean –, o que nós deveríamos... Ah, diabos!
Paciência havia desaparecido. Os marinheiros no escaler afastaram o barco sem dizer uma palavra, voltando em direção ao Andarilho.
– A vaca sabe fazer uma saída – resmungou Locke. Em seguida, enfiou o resto da carne e do queijo na boca e limpou as mãos na túnica.
– Com licença! – Um rapaz atarracado, com uma casaca de brocado cinza, afastou-se do grupo da carruagem. – Os senhores devem ser mestre Callas e mestre Lazari!
– Devemos ser – respondeu Jean, abrindo um sorriso amistoso. – Por favor, dê-nos um momento.
– Ah – fez o homem, que tinha o verdadeiro sotaque kartani: algo como a fala de um lashani depois de alguns goles de uma bebida forte. – Claro.
– Agora – disse Jean baixinho, virando-se para Locke –, quem nós somos?
– Um par de ratos em vias de enfiar os focinhos na porra de uma armadilha enorme.
– Personagens, seu idiota. Lazari e Callas. Deveríamos combinar os detalhes antes de começarmos a falar com as pessoas.
– Ah, certo. – Locke coçou o queixo. – Não temos tempo de treinar o sotaque kartani, então que se dane esconder que somos de fora da cidade.
– Quanto menos trabalho, melhor.
– Bom, precisamos decidir quem é o punho de ferro e quem é a luva de veludo.
– Parece que você vai contratar duas putas para ajudar.
– Eu bateria em você se achasse que adiantaria, Jean. Você sabe o que eu quero dizer.
– Certo. Sejamos óbvios. Eu sou o brutamontes; você, o fuinha.
– Concordo. Você é o brutamontes; eu, o gênio charmoso. Mas não faz sentido esticar demais as coisas antes mesmo de sabermos com quem estamos lidando. Seja um brutamontes
que banca o gentil até ser provocado.
– Então não estamos representando papéis, não é?
– Bom, diabos. – Locke estalou os nós dos dedos e deu de ombros. – É um detalhe a menos para atrapalhar. De qualquer modo, Paciência disse que essas pessoas comeriam
na nossa mão. Vamos testar isso.
– Bom, comece a falar de novo – ordenou Jean, virando-se de novo para o jovem atarracado.
– É um deleite vê-los vivos e em boa saúde, senhores!
O estranho se aproximou e Jean notou suas feições redondas e avermelhadas, a expressão de um homem ansioso para agradar e ser agradado. No entanto, os olhos, por
trás de ópticos finos, eram astutos e avaliadores. O cabelo havia fracassado em se agarrar a qualquer área à frente das orelhas, mas ele tinha uma trança grossa
e bem cuidada que pendia, preta como as asas de um corvo, até o meio das costas.
– Quando ouvimos falar do naufrágio, ficamos consternados. Ultimamente, o Amatel está muito calmo, é difícil acreditar...
– Naufrágio – repetiu Locke. – Ah, sim, o naufrágio! O terrível e conveniente naufrágio. O que mais poderia nos trazer aqui sem roupas ou bolsas decentes? Bom, por
infelicidade, tudo aconteceu depressa demais, mas disseram-me que nós sobrevivemos.
– Rá! Esplêndido. Não temam nada, senhores, estou aqui para resolver a situação de vocês em todos os aspectos. Meu nome é Nikoros.
– Sebastian Lazari.
Locke estendeu a mão. Nikoros apertou-a com expressão de surpresa.
– Tavrin Callas – apresentou-se Jean.
O aperto de Nikoros era seco e firme.
– Bom, obrigado, senhores, obrigado! Que demonstração inesperada de confiança. Recebo-a com muito prazer.
– Demonstração de confiança? – perguntou Locke. – Desculpe, Nikoros, somos novos em Kartane. Não sei se entendemos bem o que fizemos.
– Ah, estupidez minha. Peço desculpas. É só que... bom, os senhores vão pensar em nós como um bando de palermas crédulos, mas, garanto... é tradição. Aqui em Kartane
nós somos discretos, extremamente discretos, com relação aos nossos nomes. Por causa, os senhores sabem, da Presença.
Foi bastante fácil para Jean ouvir o “P” maiúsculo quando Nikoros pronunciou a palavra.
– Quer dizer, os Magos-S...
– Sim, os magos da Isas Escolástica. Quando falamos da “Presença”, bom, só estamos sendo educados. Na verdade, estamos muito acostumados com eles. Não são objetos
de... ahn... curiosidade, como podem ser em outros lugares. De fato, posso garantir que eles quase parecem pessoas comuns. Os senhores ficariam pasmos!
– Não duvido – falou Locke. – Bom, isso é útil. Imagino que não devamos dizer nossos nomes quando formos apresentados em Kartane?
– Bom, sim. É a superstição mais antiga que existe, mas é nosso costume desde a queda do antigo Trono. A maioria de nós usa títulos de ordens de nascimento ou apelidos.
Eu sou chamado de Nikoros Via Lupa, já que meu escritório fica na Avenida dos Lobos. Mas o simples Nikoros serve bem.
– Muito obrigado – agradeceu Jean. – Mas o que você faz exatamente?
– Sou segurador comercial. Navios e caravanas. Porém, ahn, o mais relevante é que sou do comitê atual do Raízes Profundas. Sou uma espécie de guia para os negócios
do partido.
– Você tem autoridade real nas questões do partido?
– Ah, bastante. Verbas e operações, com alguma latitude. Mas, ah, na verdade, senhores, minha tarefa mais importante é cumprir com suas instruções. Assim que tiver
ajudado os senhores a se estabelecer, claro.
– E você sabe qual é a natureza de nosso serviço? – perguntou Locke. – Isto é, a verdadeira natureza.
– Ah, ah, sim. – Nikoros bateu várias vezes na lateral do nariz com um dedo e sorriu. – Nós, que estamos no topo, sabemos que metade da luta é... bem... não convencional.
Somos todos a favor! Afinal de contas, o Íris Negra está aí para fazer o mesmo conosco. Achamos que eles podem até trazer especialistas como os senhores.
– Tenha certeza de que sim. Há quanto tempo você está envolvido com tudo isso?
– Quer dizer, com os negócios do partido? Ah, há cerca de dez anos. É a coisa mais importante, em termos sociais. Mais divertido do que o bilhar. Eu trabalhei com
nosso... é... especialista na eleição passada. Conseguimos nove cadeiras e quase ganhamos! Temos muita esperança desta vez.
– Bom, quanto antes estivermos acomodados, mais cedo poderemos alimentar essa esperança – comentou Jean.
– Certo! Para a carruagem. Vamos embrulhar vocês dois em algo mais adequado. – Ele fez um sinal e uma loura magra usando casaca de veludo preto encontrou-os na metade
do caminho. – Permitam-me apresentar Segundafilha Morenna.
– Sua serviçal. – Ela fez uma reverência e uma fita métrica, com peso de latão, apareceu em suas mãos, tão rapidamente quanto uma faca de assassino. – Parece que
os senhores estão com uma emergência de indumentária.
– É – confirmou Locke. – A circunstância nos jogou para baixo e dançou em cima de nós.
– Roupas primeiro – disse Nikoros, apressando Locke e Jean para dentro da carruagem fechada. – Depois cuidaremos das suas verbas.
Morenna entrou por último. Nikoros fechou a porta e bateu no teto da carruagem. Enquanto o veículo partia chacoalhando, a mulher agarrou a gola do velho casaco de
Locke e puxou-o com firmeza para uma posição de pé e meio encurvada.
– Peço os mais profundos perdões – murmurou ela, passando a fita métrica em volta do pescoço e dos ombros dele. – Em geral, mantemos um sujeito à disposição na oficina
para tomar as medidas dos nossos clientes importantes, mas ele adoeceu. Garanto que eu faço essas intromissões de modo tão impessoal quanto um galeno.
– Jamais me ocorreria ficar ofendido – garantiu Locke com voz atordoada.
– Maravilhoso. Se me der licença, senhor, teremos que tirar seu casaco. – De algum modo, ela conseguiu dobrar, torcer e girar Locke naquele espaço confinado, por
fim tirando seu casaco e provocando uma pequena chuva de farelos de bolacha de bordo no interior da carruagem. – Ah, ora, eu não fazia ideia...
– Não é sua culpa – assegurou Locke com uma tosse embaraçada. – Eu, ah, gosto de alimentar os pássaros.
Por baixo dos braços, em volta do peito, pelo lado externo das pernas – Morenna tirou as medidas de Locke com a velocidade de um esgrimista marcando pontos. Logo
era a vez de Jean.
– A mesma coisa, senhor – murmurou ela, segurando o casaco dele.
– Não precisa... Se você me der um momento... – disse Jean, mas era tarde demais.
– Céus! – exclamou Morenna, tirando as machadinhas do esconderijo improvisado às costas dele. – Essas já foram bastante usadas.
– Já precisei resolver alguns desentendimentos ocasionais.
– O senhor prefere carregá-las assim, enfiadas embaixo de um casaco ou uma jaqueta?
– Não há lugar melhor.
– Então vou lhe mostrar vários aparatos que podem ser costurados em seus casacos. Temos arneses de couro, tiras de pano, elos de metal, tudo confiável e discreto.
O senhor pode enfiar todo um arsenal em seus calções e coletes se quiser.
– Você é minha nova costureira predileta – comentou Jean, submetendo-se, contente, ao movimento rápido da fita métrica enquanto a carruagem continuava andando.
3
A viagem demorou cerca de dez minutos; o sol subia e tingia as paredes e os becos ao redor deles com uma luz quente. Jean aproveitou o lugar perto da janela para
formar várias impressões de Kartane ao longo do caminho.
A primeira era a de uma cidade escalonada. À medida que se moviam do cais para o interior, passando pela laguna cheia de navios, viu que os trechos mais ao norte
subiam, em morros e terraços, até uma espécie de platô que devia ficar várias dezenas de metros acima da Ponta Corbessa. Nada tão extremo quanto os penhascos escarpados
de Tal Verrar, mas parecia que os deuses ou os Ancestres haviam inclinado Kartane em cerca de 45 graus na direção da água.
Além disso, a cidade dava a impressão de ser um lugar extremamente bem-cuidado. Talvez Nikoros tivesse optado por um caminho que favorecesse a cidade, não? Qualquer
que fosse o caso, Jean não conseguia deixar de notar as ruas varridas, a pedra branca e limpa das casas mais novas, as árvores bem podadas, o borbulhar suave de
cada fonte e cachoeira ou os mosaicos decorativos esmaltados nos bondes que deslizavam por cabos entre os prédios mais altos.
O mais impressionante era o caráter do Vidrantigo. As pontes por cima do amplo Karvanu – que se derramava em cinco cachoeiras, cheias de espuma branca, antes de
chegar ao coração da cidade – não eram arcos sólidos e, sim, estruturas suspensas feitas de milhares de painéis de Vidrantigo preto e leitoso, conectados por incontáveis
cabos de vidro da grossura de dedos a torres de sustentação que pareciam finas caricaturas de pináculos de templos humanos.
A primeira ponte que atravessaram movia-se de modo desconcertante. Só alguns centímetros, sem dúvida, mas qualquer oscilação era de interesse imediato para alguém
que estivesse muito acima da água, numa carruagem.
– Não temam – disse Nikoros, percebendo as mesmas expressões no rosto de Locke e no de Jean. – Vocês vão se acostumar num instante. É Vidrantigo! Nada que pudéssemos
fazer sequer arranharia um cabo.
Jean olhou para as outras pontes enormes atravessando o Karvanu. Pareciam obra de aranhas gigantes e loucas ou harpas projetadas para mãos do tamanho de palácios.
Também notou, pela primeira vez, um zumbido e estalos estranhamente afinados, que presumiu que fosse a música dos cabos.
– Bem-vindos a Isas Salvierro – falou Nikoros quando a carruagem parou alguns minutos mais tarde, felizmente de volta à pedra firme. – É um distrito comercial, um
dos corações da cidade. Meu escritório fica logo ao norte daqui.
O pequeno grupo saiu da carruagem e entrou na Alfaiataria Morenna, uma loja ampla cercada por uma galeria no segundo andar. Segundafilha trancou a porta depois de
entrarem.
– Estas não são nossas horas de trabalho usuais – explicou ela. – Os senhores são uma emergência.
Um cheiro forte de café tomava a loja e Jean salivou. Nas paredes do salão térreo, havia camadas de peças de tecido em uma centena de cores e texturas diferentes,
e vários cabideiros de madeira, com casacas e jaquetas, tinham sido trazidos para o meio do cômodo.
– Permitam-me apresentar Primeirafilha Morenna – disse Segundafilha, apontando para uma loura mais alta e mais pesada que estava no andar de cima, puxando um fio
metálico brilhante do eixo de um mecanismo que chacoalhava. – E, claro, nossa querida Terceirafilha.
A mais jovem das irmãs da alfaiataria era miúda como a segunda, porém tinha o cabelo um pouquinho mais escuro, e era a única das três que usava ópticos. Estava absorvida
em cortar uma trouxa de veludo com uma tesoura de ferro enegrecido e cumprimentou-os com um curtíssimo meneio de cabeça.
– Ponham os dedais, garotas, é hora da batalha – comandou Segundafilha.
– Ora, ora – falou Primeirafilha, que se afastou de sua máquina e desceu ao primeiro andar. – Naufrágio, foi? Os senhores parecem ter estado na guerra. Lashane está
passando por algum tipo de dificuldade?
– Lashane mantém o velho charme, madame – respondeu Locke. – Nosso infortúnio foi pessoal.
– Vieram ao lugar certo. Nós adoramos um desafio. E adornamos os que foram desafiados! Segunda, você tirou as medidas deles?
– Tudo o que pude fazer com decência. – Com um pedaço de giz guinchando, Segundafilha escreveu duas colunas de números em uma lousa e jogou-a para Primeirafilha.
– A não ser pelo gancho dos calções. Poderia fazer a gentileza?
Primeirafilha conjurou uma fita métrica na mão livre e avançou para Locke e Jean sem hesitar.
– Bom, senhores, nosso aprendiz está doente, portanto terão que suportar meu exame por um momento. Animem-se: há muitas esposas que não dariam esse tipo de atenção
ao marido nem por amor nem por dinheiro.
Dando risadinhas, ela tirou as medidas com rapidez e profissionalismo desde a virilha até os tornozelos dos dois homens, em seguida acrescentou alguns rabiscos à
lousa.
– Presumo que tenhamos de substituir todo um guarda-roupa, não é? – perguntou Terceirafilha, pousando seu veludo.
– Sim – respondeu Locke. – Esses finos panos de pratos representam a totalidade de nosso guarda-roupa atual.
– O senhor fala como um homem do leste – comentou Terceirafilha. – Gostaria do estilo ao qual está acostumado ou de algo mais...
– Local – completou Jean. – Absolutamente local. Vistam-nos como se fôssemos nativos.
– Vai demorar vários dias para entregar todo o trabalho encomendado, os senhores entendem – explicou Segundafilha, segurando um grande tecido marrom junto ao pescoço
de Jean e franzindo a testa –, isso se trabalharmos como motores d’água. Mas, nesse meio-tempo, podemos lhes dar algo respeitável o suficiente.
– Mas não fazemos botas – acrescentou Primeirafilha, tirando o casaco de Jean e deixando suas machadinhas caírem no chão com estardalhaço. – Ah, nossa. O senhor
vai querer algum lugar para enfiar isso?
– Sem dúvida.
– Nós temos mil modos. – Ela pegou as Irmãs Malvadas e colocou-as respeitosamente numa mesa. – Mas, como eu estava dizendo, Nikoros, nós não viramos sapateiras nas
últimas horas. Você pensou nisso?
– Claro – respondeu ele. – Esta é apenas a primeira parada. Farei com que eles estejam arrumados como a realeza antes do almoço.
A meia hora seguinte foi uma furiosa tempestade de provas, remoções, testes, medidas, remedidas, sugestões, contra-argumentos e discussões entre as irmãs, enquanto
Locke e Jean eram gradualmente despidos de seus trapos e ganhavam pele nova como boas imitações de cavalheiros. As macias camisas de seda eram um pouco grandes demais,
os coletes e os calções tinham sobras ou faltas. O casaco comprido de Locke ficou largo e o de Jean estava apertado no peito. Mesmo assim, era uma melhora drástica,
pelo menos dos tornozelos para cima. Agora podiam pôr os pés numa casa de contabilidade sem fazer com que os guardas levantassem as armas.
Assim que a transmutação mais imediata se completou, as três mulheres tomaram medidas para um guarda-roupa mais extenso – casacas para a noite, jaquetas para a manhã,
coletes formais e informais, calções em uma dúzia de estilos, gibões de veludo, camisas de seda justas e todos os acabamentos.
– Bom, o senhor disse que estaria mais envolvido em... ahn... entretenimento, por assim dizer – disse Terceirafilha a Locke. – Então, imagino que precise de uma
variedade de casacas maior do que mestre Callas.
– Exatamente – respondeu Jean por Locke, girando os braços e desfrutando do retorno a um estado de elegância, apesar do casaco apertado. – Além disso, eu sou o cauteloso.
Posso me virar com menos. Dê um pouco mais da sua atenção ao meu amigo.
– Como quiserem – concordou Terceirafilha, agarrando Jean gentilmente, mas com firmeza, pelo punho esquerdo. Um fio comprido pendurado tinha atraído a sua atenção;
ela pegou a tesoura com um giro gracioso e cortou-o num piscar de olhos. – Pronto. Resolvido. Acredito, então, que vamos começar com sete casacas para mestre Lazari
e quatro para o senhor.
– Vamos mandá-las à sua estalagem quando tivermos terminado – informou Primeirafilha, anotando números que não tinham nada a ver com as medidas de Locke e Jean.
Ela entregou a lousa a Nikoros e ficou radiante com sua concordância.
– Ótimo – comentou Locke. – Só que ainda não sabemos onde vamos ficar.
– O partido Raízes Profundas sabe – garantiu Nikoros com uma pequena reverência. – Neste momento, os senhores estão no nosso seio. Não terão carência de nada. Agora,
será que posso pedir que me acompanhem só alguns passos rua acima? Esses pés descalços não ficarão bem para o almoço ou o jantar.
4
As duas horas seguintes foram gastas, como Nikoros havia profetizado, andando pelas ruas da Isas Salvierro em busca de botas, sapatos, joias e cada detalhe que ajudasse
Locke e Jean a passar por homens de alta conta. Várias lojas envolvidas ainda não tinham aberto para os negócios regulares, mas a força das conexões e a carteira
de Nikoros destrancavam todas as portas.
À medida que a lista de necessidades imediatas encurtava, Jean notou que Locke passava cada vez mais tempo olhando os becos, as janelas e os telhados ao redor.
Comportamento óbvio demais, sinalizou.
Ameaças extremamente sérias, foi a resposta.
E, mesmo contra a vontade – apesar de saber por experiência própria que era uma das coisas menos inteligentes a fazer quando se acredita estar sendo espionado –,
Jean inclinou a cabeça em todas as direções e demonstrou sua suspeita. Enquanto a carruagem chacoalhava em direção à casa de contabilidade Tivoli, ele lançava olhares
impacientes pela janela.
Sabeta. Pelos deuses abaixo, não conseguia imaginar um antagonista mais problemático. Não só ele e Locke haviam posto os pés numa cidade onde sua presença era esperada,
como ela sabia exatamente como os dois operavam. Isso era verdade no sentido contrário, até certo ponto, mas, ainda assim, parecia que tinham acabado de sair do
ponto de largada numa corrida que tinha começado sem eles.
– Acha que ela vai nos atacar cedo? – perguntou Jean.
– Ela está nos caçando enquanto falamos – murmurou Locke. – Só não sabemos onde ainda.
– Senhores, o que os está incomodando? – perguntou Nikoros, que se esforçava para impedir que a pilha de embrulhos no banco ao seu lado despencasse no piso da carruagem
a cada curva.
– Nossa oposição – respondeu Locke. – O pessoal do Íris Negra. Você está sabendo de uma mulher nova, que chegou recentemente?
– A ruiva, você quer dizer? Ela é importante?
– Ela... – Locke pareceu pensar no que iria dizer. – Ela é problema nosso. Não diga a ninguém que nós perguntamos, mas fique com os ouvidos aguçados.
– Ainda não a identificamos. Ela não é kartani.
– Não. Não é. Você tem alguma ideia de onde ela está?
– Eu poderia lhes mostrar alguns cafés e tavernas que pertencem aos membros do Íris Negra. Para não mencionar o próprio Marco da Íris Negra. Eles receberam o nome
por causa desse estabelecimento. Se eu tivesse que apostar, é lá que procuraria por ela.
– Quero uma lista de todos esses lugares – pediu Locke. – Dê-me o nome de cada negócio, cada estalagem, cada buraco na parede que tenha a ver com o pessoal do Íris.
Anote tudo. Vou pedir que lhe mandem papéis enquanto estivermos na Tivoli.
– Acho que posso lhes fazer uma lista útil só de cabeça. O senhor vai querer algo mais completo depois? Tenho listas de membros, listas de propriedades...
– Vou querer tudo. Faça cópias. Você tem um escriba em quem confia de verdade?
– Tenho um escrivão servidor que uso desde sempre. Ele vota no Raízes Profundas.
– Mande o pobre coitado cancelar a vida durante um ou dois dias. Pague o que ele pedir. Presumo que você possa abrir a bolsa do partido quando quiser, não é?
– Bem, é...
– Ótimo, porque essa teta vai ser ordenhada. Mande seu escriba copiar tudo o que seja importante. Tudo. Qualquer coisa relacionada com a eleição vai para nós. Qualquer
coisa pessoal vai para o nosso cofre na casa de contabilidade.
– Mas por que...
– Durante o próximo mês e meio, espero que você se comporte como se seu escritório estivesse correndo perigo de pegar fogo a qualquer momento.
– Mas certamente eles não iriam...
– Nada está fora de cogitação. Nada! Entendeu?
– Se o senhor insiste...
– Talvez tenhamos um encontro com a oposição, cedo ou tarde. Para estabelecer algumas regras. Até lá, um acidente ruim é quase certo. Sei que, se eu pudesse descobrir
alguém como você no Íris Negra e transformar os papéis dele em cinzas, ficaria extremamente tentado.
– Posso lhe dar nomes...
– Anote-os. Escreva todos. Receio que você vá sentir gosto de tinta no almoço.
5
A Tivoli era um clássico, um cruzamento perfeito entre a extravagância convidativa e uma intimidação explícita.
Locke admirou o prédio de três andares isolado num pátio de terra batida. As janelas estreitas, como seteiras de fortaleza, tinham barras de ferro, e os ressaltos
sob as janelas eram blocos de cimento cravejados de vidro quebrado. As quatro paredes externas eram pintadas com bem executados afrescos de Gandolo, gordo e infinitamente
contente, abençoando livros de contabilidade, balanças e pilhas de moedas. A resina alquímica usada para proteger essas imagens do desgaste do tempo dava às paredes
um brilho fraco e Locke sabia, por experiência pessoal, que seria muito difícil escalá-las.
O interior cheirava a incenso adocicado. Lanternas douradas pendiam em nichos, lançando uma luz quente e convidativa, exceto onde colunas e cortinas criavam poças
igualmente convidativas de sombras. Dos dois lados atrás da porta principal, guardas sentavam-se em banquetas em alcovas com portões e um olhar rápido para cima
confirmou que havia grades levadiças disfarçadas com bom gosto, prontas para serem baixadas por vigias escondidos atrás das paredes.
Não havia chance de roubar um lugar assim por veneta, nem com menos de uma dúzia de sujeitos armados e preparados, e mesmo assim era mais provável que a tentativa
rendesse um banho de sangue, e não uma fortuna. A inviolabilidade de casas daquele tipo, que lembrava a de templos, era de fato tão necessária para os criminosos
quanto para qualquer cidadão honesto. Não havia sentido em roubar bem ou sabiamente se o saque não pudesse ser guardado em local seguro.
– Estou vendo Nikoros na carruagem lá fora – disse uma mulher que emergiu de trás de uma divisória pintada. Tinha cerca de 40 anos e pele morena e o cabelo castanho
estava preso sob um gorro de seda preta. Ela usava um par de ópticos sem a lente da direita, do lado do seu olho turvo, cego. – Os senhores devem ser os cavalheiros
da política.
– Callas e Lazari – apresentou-se Jean.
– Sou Singular Tivoli, senhores. Sua serviçal.
– Singular? – perguntou Locke.
– É mais elegante do que “Só Tivoli”, acho, e muito mais sociável do que “Solitária Tivoli”. Os senhores têm algum documento?
Locke entregou os papéis que recebera de Paciência. Tivoli mal olhou-os antes de assentir.
– Crédito privado de 3 mil para cada. Eu mesma anotei há alguns dias. Querem sacar algo?
– Sim – respondeu Jean. – Pode dar 50 para cada um?
Era um dinheiro adequado para gastos comuns, pensou Locke: 220 gramas de ducados kartanis para cada. Ele converteu a quantia para coroas de Camorri e pensou no que
isso poderia lhe render: uma pequena companhia de mercenários durante vários meses, meia dúzia de cavalos notáveis, uma dúzia de cavalos adequados, comida e hospedagem
comum durante anos... Não que ele tivesse motivo para comprar esse tipo de coisa. Mas certamente garantiria um jantar excelente. Seu estômago ribombou com o pensamento.
– Posso oferecer algo aos cavalheiros enquanto isso é resolvido? – Tivoli olhou para Locke. Será que os ouvidos dela eram tão aguçados assim? – Cerveja escura? Vinho?
Algo para comer?
– Sim – aceitou Locke, ressentindo-se da própria fraqueza, mas incapaz de dominá-la. – Sim, alguma coisa sólida, isso seria... ótimo. – Deuses do céu, ele quase
dissera “necessário”.
– Além disso – acrescentou Jean –, será que podemos incomodá-la pedindo para mandar papel, tinta e penas à nossa carruagem? Nikoros precisa fazer algumas anotações.
Tivoli acomodou Locke e Jean em uma alcova, em cadeiras que combinariam com os móveis falsos que eles haviam dado a Requin. Um empregado trouxe uma bandeja com pastéis
marrons e crocantes ao estilo ocidental, cheios de queijo e cogumelos picados. Era a melhor coisa que Locke comia em semanas. Jean e Tivoli tomaram pequenos goles
de cerveja escura e, perplexos, observaram Locke tirar a vida dos salgados, fileira após fileira.
– Desculpe – disse ele com a boca cheia. – Andei doente. Parece que meu estômago foi trancado em outro continente.
Sabia que estava sendo pouco educado, mas a alternativa era devorar mais bolachas de bordo, que ele havia transferido para um bolso interno do casaco novo.
– Não se preocupe – falou Tivoli. – Uma etiqueta que o mantenha passando fome não é digna de respeito. Devo pedir mais?
Locke assentiu e, em alguns instantes, os pastéis sobreviventes receberam reforços, sendo seguidos por um empregado que carregava uma tábua de madeira de superfície
gradeada com pequenas pilhas de moedas de ouro e prata. Jean dividiu esse dinheiro em duas bolsas de couro novas enquanto Locke continuava a comer.
– Bom, creio que resta pouca coisa a dizer sobre suas verbas pessoais – observou Tivoli. – A outra questão que precisamos abordar é uma determinada quantia deixada
aos meus cuidados, com instruções rígidas para que permaneça sem registros. Antes de discutirmos como ela será manuseada, devo pedir que não façam absolutamente
nenhuma referência ao meu nome com relação a essa quantia, em qualquer momento, a não ser na privacidade mais absoluta, entre nós mesmos. Jamais por escrito.
– Garanto, senhora, que, em todas as questões de discrição que não tenham a ver com comida, nós fazemos os professores de etiqueta parecerem bárbaros babões – assegurou
Jean.
– Excelente. – Ela se levantou. – Então deixe-me apresentar-lhes os 100 mil ducados que estou guardando para os senhores.
6
A quantia não registrada estava numa cela sem janelas num corredor subterrâneo guardado por portas mecânicas que deviam pesar meia tonelada cada uma. Uma pilha de
baús com cintas de ferro estava encostada numa parede interna e Tivoli abriu um, revelando o conteúdo reluzente.
– Cerca de 340 quilos de ouro. Posso transformar uma boa porcentagem em prata num prazo curto, quando os senhores pedirem.
– Eu... Sim, isso pode ser mesmo necessário antes de terminarmos – concordou Locke.
Ele sentiu uma pressão estranha no coração. Durante bastante tempo, considerara garantida a enorme fortuna dos Nobres Vigaristas e ali estava outra, à sua disposição,
como se a primeira jamais tivesse sido perdida.
– Há mais alguém além de nós que os senhores gostariam que tivesse acesso a essa verba? – perguntou Tivoli.
– Absolutamente não – respondeu Jean.
– E jamais haverá uma contraordem – acrescentou Locke. – Jamais. Ninguém mais virá em nosso nome. Qualquer um que diga isso estará mentindo. Qualquer prova que eles
apresentem deverá ser rasgada e enfiada pelos calções deles.
– Devido à longa prática, desenvolvemos muitos meios eficientes de lidar com patifes – afirmou Tivoli.
– Será que meu colega e eu podemos conversar em particular? – indagou Locke.
– Claro. – Tivoli saiu da cela e começou a fechar a porta. – Esta porta vai se abrir pelo seu lado com apenas um toque na alavanca de prata. Demorem o quanto quiserem.
Quando a porta foi trancada ruidosamente, Jean fechou o baú e sentou-se em cima.
– Suas tripas estão dando cambalhotas como as minhas?
– Eu jamais acreditaria – disse Locke, passando os dedos sobre a madeira fria de outro baú. – Todos esses anos em que roubamos quantias cada vez maiores. O dinheiro
era como uma paisagem pintada para mim. Mas agora que tivemos algumas fortunas arrancadas debaixo de nós...
– É. Parece mais agradável, de algum modo. Essa tal de Tivoli, até que ponto você acha que podemos confiar nela?
– Acho que podemos nos dar ao luxo de presumir o melhor no caso dela. Paciência nos mandou aqui. Isso provavelmente quer dizer que Sabeta não pode pôr a mão em nossos
fundos na fonte, e que os dela estão igualmente fora do nosso alcance. É munição para o jogo. Se fosse um dos magos, você iria querer mantê-la em segurança para
o uso apropriado, certo?
– Você me poupou explicações – disse alguém atrás de Locke com uma voz profunda e culta e um lânguido sotaque kartani. Ele girou.
Encostado na porta, estava um homem com mais ou menos a idade e a altura de Locke, usando um casaco comprido da cor de pétalas de rosas secas. O cabelo e a barba
curta eram de um louro platinado. As luvas, os calções, as botas e a echarpe eram pretos, sem ornamentos.
– Pelos deuses! – exclamou Locke, recuperando o autocontrole. – Eu abriria a porta se você batesse.
– Eu não quis esperar.
– Bom, não preciso pedir para ver os anéis no seu pulso. Quem é você, então? Está com Paciência ou contra ela?
– Com ela. Vim para trocar uma palavra em particular em nome de todos nós que vocês vão desapontar.
– Nós estamos trabalhando a favor de vocês há cerca de quatro horas. Sem dúvida você poderia esperar um ou dois dias antes de bancar o escroto. O que acha, Jean?
– Jean está ocupado – disse o estranho.
Locke se virou e viu que Jean estava com os olhos desfocados e a boca ligeiramente aberta. A não ser pela leve subida e descida do peito, era como se fosse uma estátua
bem-vestida.
– Pela verdade dos deuses! – exclamou Locke, virando-se para o estranho. – Não me importa quem você é, estou cansado de falar com vocês, suas porras, em circunstâncias
como...
Antes de terminar a frase, ele deu um soco. Sem demonstrar surpresa ou preocupação, o mago agarrou o punho de Locke numa das mãos enluvadas e golpeou de volta, direto
contra a cintura dele. A força se esvaiu das pernas de Locke, que caiu ofegando. O mago continuou segurando sua mão e usou-a para torcê-lo, até ele estar de joelhos,
de costas para o antagonista.
– Apenas respire – falou o mago em tom casual. – Mesmo para os seus padrões, essa atitude foi arrogante. No seu estado, você não é ameaça para ninguém.
– T-T-Tivoli – chamou Locke, ofegando. – Tivoli!
– Cresça.
O mago se ajoelhou atrás dele, pôs a mão esquerda em seu queixo e usou a outra para sufocá-lo. Locke chutou e se debateu, mas o homem manteve o controle de sua cabeça
e apertou mais.
– Ela não pode ouvi-lo também.
– Paciência – sibilou Locke. – Paciência... vai... ngggghk...
– Essa conversa não vai ser da conta dela. Paciência não está pairando sobre vocês como uma nuvenzinha. Ela tem pessoas como eu para fazer isso.
– Ngggh... ssseu... ssskn... dgg prrrra!
– É – disse o mago, enfim soltando seu pescoço. Locke tossiu e sugou o ar para os pulmões que ardiam. – É, eu não tenho bons modos, certo? E você é um santinho.
Está preparado para ouvir?
Aliviado por estar respirando de novo e profundamente envergonhado por sua condição enfraquecida, Locke ficou calado.
– A mensagem é a seguinte – continuou o mago, considerando que o silêncio significava concordância. – Queremos que a disputa seja genuína. Queremos ver vocês trabalharem
durante seis semanas. Se fizerem as pazes com aquela mulher e aprontarem algum tipo de show idiota...
– Paciência já me alertou. – Locke tossiu. – Deuses do céu, você deve saber disso, seu pedaço de merda tedioso!
– Uma coisa é saber, outra é entender. Você tem um envolvimento real com a mulher do outro lado. Seríamos idiotas se não admitíssemos que você pode ficar tentado.
– Eu já prometi...
– Suas promessas não valem o cuspe de um defunto, camorri. Portanto, aqui está algo tangível. Se fizer algum acordo com sua amiga ruiva para combinar o resultado
dessa disputa, nós vamos matá-la.
– Seu filho da... Vocês não podem...
– Claro que podemos. Assim que a eleição terminar. Vamos fazer isso devagar enquanto você assiste.
– Os outros magos...
– Você acha que eles ligam a mínima para ela? Os amigos do Falcoeiro? Eles a contrataram para atrapalhar você. Assim que o Jogo dos Cinco Anos terminar, eles não
a protegerão.
Locke tentou se levantar cambaleando e, depois de um momento, o mago puxou-o para cima pelas costas do casaco. Locke se virou, fuzilou-o com os olhos e se espanou
de maneira exagerada.
– Não adianta me olhar desse jeito, Lamora. Aceite o aviso. Você deveria se sentir lisonjeado porque sabemos como as meias medidas são inúteis com você.
– Lisonjeado. Ah, é, lisonjeado. É exatamente a palavra que estava na ponta da minha língua. Obrigado.
– A mulher é refém do seu bom comportamento. Você não receberá mais nenhum lembrete. E não se incomode em contar isso a Paciência. Você sofreria.
– É só?
– É só essa a conversa que eu tenho para você, amigo.
– Então acorde o Jean.
– O devaneio vai ser interrompido assim que eu for embora.
– Você é covarde demais para falar essas coisas na frente dele?
– Não lhe ocorreu que a última coisa de que seu parceiro precisa é de outro da minha espécie provando como ele fica impotente enquanto permanece acordado para testemunhar
a desgraça?
– Eu...
– Eu não sou isento de simpatias, Lamora. Elas simplesmente não são por você. Agora, cuide do trabalho para o qual o contratamos.
Com um movimento de mão, ele sumiu. Locke balançou os braços no ar vazio onde o mago estivera, depois bateu na parede mais próxima, em seguida verificou se a porta
ainda estava bem fechada. Deu um grunhido de resignação desgostosa e massageou o pescoço.
– Locke? Você disse alguma coisa?
Jean tinha voltado ao normal, parecendo em ótima forma.
– Ahn, não, Jean, desculpe. Eu só... é, tossi.
– Você está bem? – Jean espiou-o por cima dos ópticos. – Está suando feito um louco. Aconteceu alguma coisa?
– É só que... Nada.
Deuses do céu, o desgraçado de casaco vermelho estava certo. Jean não precisava ser relembrado da facilidade com que os magos podiam transformá-lo em marionete.
Locke mal iniciava o caminho para a recuperação e precisava de toda a confiança e da energia de Jean, sem distrações.
– Tenho certeza de que é esse negócio de ficar andando de um lado para outro. Vou me acostumar logo com isso.
– Bom, então vamos pedir que o Nikoros nos leve para a hospedaria. Temos roupas; temos verbas. Vamos cuidar do seu conforto antes de iniciarmos o bom combate em
nome de Paciência e seus correligionários.
– Certo – concordou Locke, estendendo a mão para a alavanca que abriria a porta da cela. – Ela é a última pessoa do mundo que eu desejaria desapontar.
7
– Nikoros, quem diabos vota neste lugar, afinal de contas? – perguntou Locke enquanto a carruagem chacoalhava e oscilava numa das pontes suspensas feitas de Vidrantigo,
indo para o nordeste, rumo a um lugar que Nikoros havia chamado de Distrito de Palanta.
– Bom, há... é... há três modos de ganhar o direito. Você pode mostrar um título de propriedade que valha pelo menos 60 ducados. Pode servir na polícia durante 25
anos. Ou pagar uma soma de 150, a qualquer momento, menos no dia da eleição.
– Humm. Parece um processo eminentemente corruptível. Isso pode ser útil. Qual é a população de Kartane e quantos podem votar?
– Cerca de setenta mil na cidade – respondeu Nikoros, que estava sentado de modo muito desajeitado, protegendo a pilha de embrulhos com uma das mãos e, com a outra,
balançando suavemente uma folha de pergaminho ainda secando. – Cinco mil com direito a voto, mais ou menos. Terei números mais exatos à medida que o processo eleitoral
for acontecendo.
– Com isso são o quê, cerca de 250 eleitores para cada cadeira no Konseil? – perguntou Jean. – Ou estou errado?
– Por aí. A pessoa tem permissão de escolher um dos dois candidatos finais no distrito em que mora. As cédulas são escritas e você também pode assinar o próprio
nome.
– Então, em termos de votos, não estamos mesmo diante de uma luta grande e, sim, de dezenove lutas menores.
– De fato. Eu, ahn, se é que posso...
Jean pegou a lista. Examinou as colunas de letras mal rabiscadas (não era de espantar que Nikoros tivesse um relacionamento antigo com um escriba de confiança):
uma pequena lista de negócios e outra mais longa de nomes.
– Essas pessoas é que movimentam o partido Íris Negra?
– São a nossa contrapartida, sim. Eles se chamam de Consórcio. Nós sempre nos referimos a nós mesmos como o Comitê.
– Quando podemos conhecer esse tal Comitê? – perguntou Jean.
– Bom, na verdade, eu esperava que os senhores não recusassem um encontro esta noite. Só o Comitê e alguns selecionados apoiadores do Raízes Profundas...
– Quantos?
– Não mais de 150.
– Pelos deuses abaixo! – exclamou Locke. – Mas acho que teremos de fazer isso cedo ou tarde. Onde você quer fazer essa bagunça?
– Onde os senhores estarão hospedados. No Acomodações Amplas do Josten. Estou ansioso para que os senhores o vejam. É o melhor lugar da cidade, nosso templo para
os assuntos do Raízes Profundas.
Poderia ser mesmo um templo, pelo tamanho. Eles pararam diante do Josten assim que o sol estava chegando ao zênite, num céu que ficava gradualmente cinzento com
nuvens. Carregadores saíram às pressas da entrada sombreada do prédio e pegaram os pacotes, sob orientação de Nikoros. Jean saltou da carruagem antes de Locke e
examinou a estrutura.
Era uma construção vasta de três andares, com empenas, várias dezenas de janelas e pelo menos nove chaminés visíveis. Uma dúzia de carruagens poderia ter se enfileirado
na frente com espaço de sobra.
– Tremenda estalagem – disse Locke quando seus sapatos bateram no calçamento.
– Não é só uma estalagem – explicou Nikoros. – É um ótimo estabelecimento para jantar, um bar completo, um café. O paraíso na terra para mercadores e comerciantes
com simpatias partidárias. Um quarto do comércio da cidade é resolvido aqui.
O interior estava à altura do entusiasmo de Nikoros. Pelo menos cinco dezenas de homens e mulheres bebiam e conversavam em mesas compridas em meio a colunas de madeira
sólidas, pintadas com verniz escuro. Chapéus e casacos em número suficiente para encher uma loja pendiam praticamente de cada superfície e garçons com calções e
casacas pretas andavam de um lado para outro com a pressa de organizadores de cerco preparando um ataque. Aos olhos de Jean, o lugar parecia a Meraggio virado pelo
avesso: as comidas e bebidas eram a peça central dos negócios, e não um luxo oculto.
– Ali em cima – Nikoros apontou para galerias elevadas com corrimões de latão polido –, os senhores encontrarão as seções reservadas. Uma para os maiores sindicatos,
para os quais eu trabalho. Outra para os escribas e advogados; eles pagam o preço de um resgate à casa, para permanecerem perto da ação. E há uma galeria para os
negócios do Raízes Profundas.
Nikoros atraía acenos e cumprimentos das pessoas e era óbvio que os Nobres Vigaristas tinham se tornado objeto de curiosidade só de entrarem com ele. Jean suspirou
por dentro, pensando que uma entrada pelos fundos seria mais sensata, porém já era tarde. Se Sabeta não sabia que eles estavam à solta nas ruas de Kartane, era inconcebível
que pelo menos uma pessoa ali não trabalhasse para ela, observando a chegada deles.
Atrás do bar bem provido na extremidade mais distante, havia um homem alto e negro, magro como um cabideiro de chapéus, usando uma versão mais cara dos uniformes
dos garçons sob uma ampla gravata preta e um avental de couro. No instante em que viu Nikoros, pousou o livro-caixa que estava lendo e atravessou o salão, desviando-se
dos garçons.
– Bem-vindos, senhores, bem-vindos ao Acomodações Amplas do Josten, o Alojamento Inclusivo! – O homem fez uma reverência diante de Locke e Jean. – Zelo Josten, senhores,
o dono da casa. Os senhores são esperados. Como posso tornar sua vida mais fácil?
– Eu cometeria um assassinato público por uma xícara de café – confessou Jean.
– O senhor veio à única casa em Kartane que tem café pelo qual vale a pena assassinar. Temos sete misturas diferentes, desde o seco syresti aromático até o denso...
– Vou querer do tipo em que eu não precise pensar.
– O melhor de todos. – Josten estalou os dedos e um garçom ali perto veio correndo. – Agora, os aposentos dos senhores. Eles ficam na ala leste, segundo andar, duas
suítes contíguas, e mandarei que suas coisas...
– Sim, sim – interrompeu Locke. – Desculpe, preciso de um momento.
Ele segurou Jean e Nikoros pelas lapelas e arrastou-os para uma conversa privada.
– Esse estalajadeiro... – sussurrou Locke. – Até que ponto podemos confiar nele, Nikoros?
– Ele é do Raízes Profundas desde que este lugar era apenas três tijolos e alguns buracos na lama para colunas. Deuses do céu, Lazari, ele tem tanta probabilidade
de virar a casaca quanto eu.
– O que o faz pensar que confiamos em você?
– Eu... eu...
– Pode respirar, estou brincando. – Locke deu um tapinha nas costas de Nikoros e sorriu. – Se você estiver errado, claro, estamos completamente fornicados. Josten!
Meu caro amigo. Sim, mande nosso lixo para os quartos, tenho certeza de que eles são perfeitos, com o número certo de paredes e tetos. Vou contá-los mais tarde.
Você sabe por que estamos aqui?
– Ora, para nos ajudar a quebrar os dentes do Íris Negra, para variar. E para desfrutar do seu café.
Um garçom apareceu ao lado de Jean, oferecendo uma caneca fumegante numa bandeja de latão. Jean pegou-o e engoliu metade de uma vez, estremecendo de prazer quando
o calor cascateou por sua goela endurecida pela batalha.
– Ah, sim. É isso mesmo. Doce morte líquida. Com apenas uma pitada de gengibre.
– Sementes de Okanti – explicou Josten. – Minha família plantava nas ilhas natais, antes de virmos para o norte.
– Está se sentindo humano de novo? – perguntou Locke.
– Esta bebida poderia fazer um eunuco morto mijar relâmpago – respondeu Jean. Em seguida, engoliu a outra metade da caneca. – Quer subir e descansar?
– Pelos deuses, não. O tempo é precioso, a segurança é inexistente e nossa bunda coletiva está pendurada ao vento implorando que um certo alguém crave uma flecha
bem entre os glúteos. Josten, preciso usá-lo de modo cruel, infelizmente.
– Peça o que quiser. Eu entrego.
– Muito bem, mas logo você vai aprender a não me dizer esse tipo de coisa até que eu termine de falar. E depois, provavelmente, vai aprender a não dizer coisas gentis.
Seus garçons, carregadores, coisa e tal. Você contratou algum na última semana?
– Cinco ou seis.
– Ponha os nomes deles num papel e o entregue a mestre Callas. – Locke apontou o polegar para Jean. – Instrua seus empregados de maior confiança a vigiar os recém-contratados
o tempo todo. Não faça nada, mas tenha um relatório completo das atividades deles. No papel.
– E devo entregar esse papel a mestre Callas?
– Exato. Em seguida, pense em cada porta, em toda a estrutura, que você costuma manter fechada. A não ser os quartos dos hóspedes, claro. Mude todas as fechaduras,
absolutamente todas. Faça isso amanhã, no horário comercial. Nikoros vai reembolsá-lo com as verbas do partido.
– Eu... – começou Nikoros.
– Nikoros, seu trabalho esta tarde é dizer sim a tudo que sair da minha boca. Quanto mais você ensaiar, mais cedo isso vai se tornar um processo mecânico e fácil,
sem lhe dar tempo para reflexões dolorosas. Pode treinar para mim?
– Sim.
– Você tem um talento natural. De qualquer modo, Josten, traga os chaveiros para cá amanhã, nem que tenha de lhes prometer pagamento de um mês. Certifique-se de
que os empregados recém-contratados não recebam chaves novas. Faça parecer que os chaveiros não têm chaves suficientes. Diga que vão receber suas cópias em alguns
dias. Veremos se um deles fará algo interessante. Está claro até agora?
Josten assentiu e bateu na têmpora direita com o dedo.
– Em seguida, mande um artesão fazer alguns cordões de pescoço simples para todos os seus empregados. Dignos mas baratos. Ferro dourado, nada que alguém queira afanar.
Isso é importante. Não queremos nenhum espião empreendedor usando uma roupa que imite um dos seus garçons para poder espiar por aqui. Qualquer um que estiver de
serviço vai usar essa corrente. Qualquer um que trabalhar sem ela vai ser arrastado para os fundos, para uma conversa mal-educada. Ninguém levará o cordão quando
for embora, caso contrário será demitido. Entendeu? Os cordões serão entregues por você e por seus associados de maior confiança, e devolvidos no início de cada
turno. Assim que tiver cuidado disso, anuncie a todos os empregados que você vai dobrar os salários até o dia depois da eleição. Nikoros vai reembolsá-lo com as
verbas do partido.
– Ah... sim – disse Nikoros.
– Mencione também que é importante preservar a casa em segurança durante o período eleitoral e que o relato de qualquer coisa genuinamente incomum ou fora do lugar
será recompensado. Se uma aranha peidar na adega, quero que você fique sabendo.
Os olhos de Josten haviam se arregalado, mas ele assentiu como antes.
– O que mais...? Segurança física! Precisamos de brutamontes. Digamos que meia dúzia. Figuras confiáveis, pacientes, prontas para a briga mas não babando para começar
uma. Nada de idiotas. E algumas mulheres que possamos misturar à multidão. Gente hábil, garotas bonitas com facas embaixo da saia. Onde podemos conseguir algumas?
– No Pátio da Poeira – respondeu Nikoros. – Nas paradas e recepções de caravanas. Sempre há guardas para contratar. Não são exatamente Eruditos do Colégio, veja
bem.
– Desde que não fiquem chupando o polegar no meio de pessoas bem-educadas – disse Locke. – Cuide disso amanhã, Nikoros, e leve mestre Callas. Ele sabe separar o
joio do trigo. Limpe os novos recrutas, arranje roupas decentes para eles e coloque-os aqui o tempo todo. Pague os quartos com a verba do partido. Além disso, deixe
claro que qualquer um que seja trazido como segurança obedece diretamente a mim ou a Callas. Eles não recebem ordem de mais ninguém sem a nossa permissão.
– Ahn, claro – aceitou Nikoros.
– Agora, Nikoros, você tem um escritório cheio de papéis para preservar. Vá correndo e ponha o seu escriba para trabalhar. Dê os passos que nós discutimos antes.
A que horas você vai nos exibir?
– À nona hora da noite.
– Ótimo, ótimo, merda. Espere. Todo mundo que comparecer saberá que Callas e eu estamos comandando o espetáculo?
– Não, não, só os membros do Comitê. Nós os contratamos, lembre-se.
– Ah. Tudo bem. Continue dando o fora daqui e nós vemos você esta noite.
Nikoros assentiu, apertou a mão de Josten e saiu pela porta da frente.
– O que mais...? – Locke se virou de novo para Josten. – Quartos. Sim. Os quartos adjacentes à nossa suíte e à frente dela não devem ser alugados. Mantenha-os vazios.
Faça com que Nikoros pague o aluguel das seis semanas com as verbas do partido. Mas entregue a mim as chaves dos quartos vazios, certo?
– Isso é fácil.
Jean estudou Locke atentamente. Essa rápida transição para um estado de planejamento enérgico, de olhos arregalados, era algo que ele vira muitas vezes. Mas havia
uma qualidade nervosa, febril, no humor de Locke, que fez Jean morder o lábio, preocupado.
– O que mais...?
– Um lanche, talvez? – interrompeu Jean o mais gentilmente que pôde. – Comida, vinho, café? Alguns minutos para sentar-se e recuperar o fôlego em particular?
– Quanto à comida, senhor... – começou Josten.
– Ponha qualquer coisa no meu prato, a não ser um escorpião vivo, e eu como. E... e... – Locke estalou os dedos. – Sei o que esqueci! Josten, você teve algum cliente
novo nos últimos dias? Clientes particularmente novos, jamais vistos antes, que passaram muito tempo sentados por aqui?
– Bom, agora que o senhor mencionou... Não olhe, mas, à sua direita, na extremidade do salão, na terceira mesa a partir da parede dos fundos, embaixo da pintura
da dama com os peit... o colar excepcional.
– Sei – disse Locke. – É, aquele é um lugar extraordinário para pendurar um colar. Três homens?
– Começaram a vir há três dias. Comem e bebem, mais do que o suficiente para manter o lugar à mesa. Mas eles ficam horas de cada vez, e às vezes vêm e vão em turnos.
Há um quarto sujeito que não está ali agora.
– Eles têm quartos?
– Não. E não fazem negócios com os fregueses regulares. Às vezes jogam baralho, mas na maior parte do tempo... bom, não sei o que fazem. Nada ofensivo.
– Você diria que eles são cavalheiros? Pela maneira de se vestir, pela postura?
– Bom, eles não são desprovidos de dinheiro. Mas eu não diria que são cavalheiros.
– Contratados – afirmou Locke, tirando algumas joias mais óbvias que Nikoros havia comprado para ele e enfiando-as num bolso do casaco. – Serviçais. Profissionais
de conveniência, a não ser que eu esteja errado. Estou um pouco vestido demais para isso, mas acho que posso compensar reduzindo meus bons modos.
– Vestido demais para quê? – perguntou Jean.
– Insultar pessoas totalmente estranhas – respondeu Locke, afrouxando o lenço do pescoço. – É preciso cuidar das delicadas nuances sociais quando você informa a
algum pobre coitado que ele é um filho da puta imbecil.
8
– Espere aí – falou Jean. – Se você quer começar uma briga, eu...
– Já pensei nisso – retrucou Locke. – Você provavelmente iria amedrontá-los. Preciso que eles se sintam insultados, e não ameaçados. Logo, o serviço é meu.
– Bom, você gostaria que eu interviesse antes que seus dentes sejam arrancados a socos ou isso faz parte do seu plano?
– Se eu estiver certo, você não vai precisar. Se eu estiver errado, concedo-lhe licença plena para um “eu avisei” quando eu estiver consciente outra vez, com um
acréscimo de “seu escroto idiota”, se você quiser.
– Vou reivindicar esse privilégio.
O garçom rápido apareceu com uma segunda xícara de café para Jean, que a pegou e colocou um par de moedas de cobre no lugar. O homem fez uma reverência.
– Josten – disse Locke –, se por acaso eu fizer alguma patifaria com clientes honestos, vamos recompensá-lo.
– Serão seis semanas extremamente interessantes – murmurou Josten.
Locke respirou fundo, estalou os nós dos dedos e foi até a mesa onde os três estranhos estavam sentados. Jean permaneceu a certa distância, cuidando de sua xícara
de café. Sua presença ali era um conforto, familiar como uma sombra.
– Boa tarde – cumprimentou Locke. – Meu nome é Lazari. Creio que estou me intrometendo.
– Desculpe – respondeu o homem mais perto dele –, mas nós estávamos...
– Infelizmente, não ligo a mínima.
Locke sentou-se numa cadeira vazia e avaliou os estranhos: jovens, limpos, bem cuidados, vestidos com roupas não muito caras. Estavam compartilhando uma garrafa
de vinho e uma jarra d’água.
– Estávamos tendo uma conversa particular! – exclamou o homem à direita de Locke.
– Ah, mas eu estou aqui para prestar um serviço a vocês dois. – Locke fez um gesto para os dois homens sentados à sua frente. – Com relação ao sujeito ao lado de
quem estou sentado, o boato que corre no bar é que ele só consegue ficar com o negócio duro quando está em cima de outro sujeito que ele pegou à força ou por subterfúgio.
– Que diabo é isso? – sibilou o homem à direita.
– Verbalizando de modo menos delicado, se vocês continuarem ligados a esse conhecido enganador, ele vai amarrar vocês dois, fazer uma coisa num lugar muito sujo
até vocês sangrarem, e não vai se incomodar em desamarrá-los depois.
– Isso é impróprio – comentou um dos homens do outro lado da mesa. – Impróprio, e se você não se retirar agora mesmo...
– Eu ficaria mais preocupado se o seu amigo não se retirasse agora mesmo. Ele é conhecido por ser rápido.
– Qual é o objetivo dessa interrupção infantil? – O homem à direita de Locke deu um soco na mesa, só com força suficiente para sacudir a garrafa e os copos.
– Pelos bons deuses – disse Locke, fingindo notar o vinho pela primeira vez –, vocês, seus babacas incapazes, não beberam nada disso?
Ele tirou o chapéu e usou-o para derrubar a garrafa de vinho no colo dos dois homens à sua frente.
– Seu desgraçado! – exclamou um.
– Ora, eu... eu... – gaguejou o outro.
– Mas, afinal de contas, talvez o vinho não tenha narcóticos. – Locke agarrou a garrafa e tomou um longo gole. – Não precisaria ter, para kartanis. Os mijões mamadores
de leite poderiam ficar bêbados com o cheiro de uma garrafa vazia!
– Eu vou... chamar o proprietário! – gritou o homem diante dele, à esquerda, pegando seu copo vazio no colo.
– Que medo! – exclamou Locke. – Selvagem feito um gatinho numa teta. Diga, você já ouviu aquela piada do kartani rico e do kartani que sabia quem era a própria mãe?
Merda, espere, eu disse kartani, não foi? Contei essa porcaria errado.
– Saia – ordenou o homem à sua direita. – Saia! Agora!
– Ei, como é que um kartani descobre que a esposa está tendo o fluxo mensal? Ele se arrasta para a cama do filho e o pau do garoto já está molhado. Rá! Ah, você
ouviu aquela do kartani que alegou ser capaz de contar até cinco...
O homem à direita de Locke empurrou a cadeira para longe da mesa e se levantou. Locke o agarrou pela lapela. O homem se imobilizou, olhando-o, furioso. Locke não
tinha forças para arrastá-lo para baixo se decidisse lutar, mas o insulto crucial do toque sem permissão já fora dado.
– Aonde você vai? – perguntou Locke. – Ainda não terminei minha sensível troca cultural.
– Tire a mão do meu casaco, seu abominável...
– Ou então o quê?
– Nós vamos reclamar com o proprietário.
– Eu é que mando aqui. E você já sabe. Você foi enviado aqui para vigiar minha chegada. Está vendo o cavalheiro grandão 10 metros atrás de mim? Ele é o outro que
vocês estão procurando. Deem uma olhada bem longa e cuidadosa, crianças. Não duvido que sua patroa espere um relatório detalhado.
O homem se afastou com um repelão.
– Ora bolas – disse Locke em tom razoável, tomando outro gole da garrafa de vinho. – Nenhum homem com um pingo de amor-próprio teria suportado essa minha agressão.
Se vocês fossem cavalheiros, teriam me chamado para fora e, se fossem patifes, teriam me dado um soco nos dentes. O fato é que vocês receberam uma bela quantia para
se sentar aqui e me espionar e ficaram extremamente confusos quanto ao que fazer quando eu mijei na sua dignidade.
Os dois homens do outro lado da mesa começaram a se levantar e Locke fez um gesto enfático para permanecerem sentados.
– Não façam nada estúpido agora, senhores. Não há como recuperar sua situação. Levantem um dedo num ato de pouca gentileza e eu garanto que seus ossos vão demorar
seis meses para emendar de novo. Além disso, tenho cinquenta testemunhas jurando que vocês mereceram.
– O que o senhor quer conosco? – perguntou o homem da direita.
– Levem suas carcaças patéticas porta afora. Sejam rápidos e educados. Se eu pegá-los nas proximidades do Josten de novo, vocês vão acordar num beco com todos os
dentes enfiados no cu. Isso serve para seu amigo ausente também.
Locke recolocou o chapéu e se afastou despreocupadamente. Lançou um sorriso para Jean, que levantou a xícara de café em saudação – o raspar de cadeiras no chão atrás
dele indicou que os homens se apressavam para partir. Ele e Jean os observaram sair.
– Você é mesmo um sujeitinho vulgar quando está motivado – comentou Jean.
– Tenho coisa pior – replicou Locke. – Armazenada em alguma prateleira alta na mente, como venenos de alquimista. Peguei a maior parte com Calo e Galdo.
– Bom, você foi bastante venenoso com nossos amigos óbvios.
– É. Óbvios. É ótimo descobrir os espiões evidentes. Agora só precisamos nos preocupar com os capazes.
9
Locke destruiu um excelente lanche para seis pessoas – Jean se contentou com uma pequena parte do festim e saiu grato por não perder nenhum membro –, depois teve
um sono intermitente na suíte, alternando cochilos numa espreguiçadeira com episódios de caminhadas furiosas de um lado para outro.
À medida que o sol se punha e os minúsculos fragmentos de céu visíveis ao redor das cortinas da janela escureciam, homens da Alfaiataria Morenna entregaram os primeiros
itens do guarda-roupa prometido. Locke e Jean examinaram os novos casacos, coletes e calções em busca de agulhas escondidas ou pós alquímicos antes de pendurá-los
nos enormes armários de pau-rosa que havia nos quartos.
Na oitava hora da noite, apareceram criadas e carregadores com banheiras de água fumegante. Locke testou cada uma mergulhando um dedo e, como sua carne não foi arrancada
dos ossos, admitiu que elas poderiam ser seguras para o objetivo desejado.
Quando Nikoros bateu à porta, quarenta minutos depois, os Nobres Vigaristas estavam limpos e confortavelmente enfiados em roupas perfeitas.
– Senhores, trouxe algumas coisas que espero serem úteis – informou Nikoros, que também havia melhorado substancialmente suas roupas.
Ele entregou uma pasta de couro a Locke, que a abriu e encontrou pelo menos cem páginas dentro. Algumas estavam cobertas com a escrita densa de Nikoros; outras,
com uma letra impecável que sem dúvida não era dele.
– Relatórios financeiros do Raízes Profundas – explicou Nikoros. – Listas de membros importantes, planos e minutas da última eleição, listas de propriedades e agentes,
listas equivalentes do que sabemos sobre o Íris Negra, cópias das leis eleitorais da cidade...
– Esplêndido – interrompeu Locke. – E você seguiu todos os passos que nós discutimos antes?
– Meu escriba ainda está trabalhando, mas todo o resto foi abordado. Se a terra se abrir e engolir meu escritório, juro que não perderei nada que seja impossível
de substituir.
– Ótimo. Quer beber alguma coisa? Temos um armário de bebi... Não, espere, ainda não examinei as garrafas, desculpe.
– Tenho certeza de que qualquer coisa fornecida por Josten será perfeitamente segura – garantiu Nikoros, levantando as sobrancelhas.
– Não é com a fidelidade do Josten que eu me preocupo.
– Bom, deixe-me garantir que nós não damos festas em Kartane com o objetivo de ficarmos secos. – Ele enfiou a mão no casaco e pegou dois ornamentados distintivos
prateados de lapela, presos em fitas verdes, idênticos ao dourado que estava sobre o lado direito de seu peito. – Por sinal, não posso me esquecer das suas insígnias.
– A plumagem oficial do Raízes Profundas? – perguntou Jean, estendendo a mão para o seu broche.
– Sim. Para a festa desta noite, os membros do Comitê usarão broches de ouro; os do Konseil, de jade; os outros privilegiados, de prata. Esses aí vão identificar
os senhores como homens a serem respeitados, mas não que devam ser seguidos e comentados, se os senhores não quiserem.
– Ótimo – disse Locke, enfeitando sua lapela. – Agora que fomos adequadamente engalanados, vamos nos servir à família.
10
Toda a aparência do salão principal da estalagem do Josten havia sido modificada para a noite. O número de funcionários junto à porta da rua tinha dobrado e seus
uniformes eram muito mais impressionantes. Estandartes verde-escuros pendiam dos caibros e das colunas envernizadas. Carruagens podiam ser ouvidas chegando e partindo
constantemente e Locke vislumbrou vários funcionários barrando a passagem de um grupo de homens bem-vestidos sem fitas verdes. Sem dúvida a festa era fechada...
Será que os homens na calçada eram fregueses legitimamente desinformados ou participavam de algum tipo de tramoia da oposição? Não havia tempo para investigar.
Um quinteto de cordas tocava uma música agradável nas galerias superiores e todas as lareiras visíveis tinham enormes chaleiras borbulhando para chá e café. Havia
mesas carregadas com milhares de garrafas de vidro e um número suficiente de jarras, taças e copos para cegar cada olho na cidade com o reflexo das luzes. Locke
piscou várias vezes e voltou a atenção para os homens e mulheres que entravam.
– Já são bem mais de 150.
– Acontece – replicou Nikoros, rindo energicamente como se aquilo fosse uma piada particular. – Nós planejamos com m-muita restrição, mas há várias pessoas que não
podemos nos dar ao luxo de ofender.
Locke encarou-o. Nikoros havia mudado de algum modo nos poucos minutos entre o quarto deles e a festa. Suava profusamente, as bochechas vermelhas, os olhos saltando
de um lado para outro como pequenas criaturas presas atrás de painéis de vidro. Mas não estava nervoso: parecia beatífico. Pelos deuses!
O homem de moral reta que zelava por eles, seu elemento de ligação com a nata do Raízes Profundas, era viciado em pó de Akkadris. Locke sentiu o odor pungente, parecido
com pinho. Maldição! Akkadris, Musa-de-Fogo, matadora de poetas. O álcool aplacava e soltava o espírito, mas o pó fazia o oposto, acendendo fogos na mente até que
o viciado tremia de empolgação sem motivo discernível. Era um vício caro e acumulativamente suicida.
– Nikoros – disse Locke, agarrando uma das lapelas do sujeito –, você e eu precisamos ter uma discussão muito franca sobre...
– Via Lupa! Via Lupa, meu caro garoto!
Um velho gordo, com um rosto que parecia um pudim rosado cheio de costuras, partiu para cima deles, batendo, empolgado, a bengala de madeira-bruxa no chão. As sobrancelhas
brancas do sujeito adejavam como fiapos de fumaça, e seu distintivo de lapela era de jade polido.
– Nikoros dos lobos, assim chamado por causa de suas margens de lucro! Rá!
– B-boa noite, Sua Excelência! – Nikoros aproveitou a interrupção para se soltar de Locke. – Ah! Senhores, gostaria de lhes apresentar Primeirofilho Epitalus, membro
do Konseil pela Isas Tedra há 45 anos. Alguns o consideram, ahn, uma f-figura de proa de nosso navio político.
– Então eu sou uma figura de proa, é? Uma mulher desamparada espirrando água sem o bom senso de cobrir os peitos? Será que preciso mandar um amigo para exigir uma
explicação sobre essa fala, meu jovem?
– Deixe o pobre garoto em paz, Primeiro. Está bem claro que você tem, sim, o bom senso de cobrir os peitos.
Uma mulher magra e idosa segurou Epitalus pelo braço com um gesto amigável. Para Locke, ela parecia uma bem vivida sessentona, mas tinha olhos vívidos e sorriso
maroto. Também usava um distintivo de jade e, enquanto ela e Epitalus explodiam numa gargalhada, Nikoros os acompanhou, nervoso, com uma risada mais alta do que
as dos outros.
– E permitam que eu também apresente... ahn...
Foi apenas um lapso momentâneo, mas a mulher o aproveitou, ansiosa.
– Ah, diga o nome, Nikoros, não vai queimar sua língua.
Ele pigarreou.
– É, ahem: Maldita Superstição Dexa, membro do Konseil pela Isas Mellia e chefe, ahn, chefe do Comitê do Raízes Profundas.
– Maldita Superstição? – indagou Locke, sorrindo mesmo contra a vontade.
– Exatamente – respondeu Dexa –, mas você notará que eu sigo as regras às riscas. A hipocrisia e a cautela são primos afetuosos.
– Excelências – interveio Nikoros –, por favor, por favor permitam-me o p-prazer de apresentar mestres Lazari e Callas.
Reverências, apertos de mão e amenidades foram trocadas com a velocidade de uma escaramuça e, assim que todos os golpes apropriados foram dados, as excelências voltaram
imediatamente à informalidade.
– Então os senhores são os cavalheiros de quem temos falado tanto recentemente – observou Dexa. – Soube que expulsaram algumas víboras para fora do nosso meio esta
tarde mesmo.
– Não eram víboras de verdade, excelência – replicou Locke. – Apenas alguns cagalhões que nossa oposição jogou na rua para ver se estávamos vendo onde pisávamos.
– Bom, continuem assim – incentivou Epitalus. – Temos muita confiança em vocês, rapazes, muita confiança.
Locke assentiu e suas entranhas estremeceram. Aquelas pessoas com certeza não haviam lido uma única anotação sobre os feitos fictícios de Lazari e Callas. Seu calor
e seu entusiasmo tinham sido instalados pelos feitiços dos Magos-Servidores. Será que isso duraria para sempre ou se dissolveria como alguma moda passageira assim
que a eleição terminasse? Será que poderia se dissolver antes, por acidente? Era um pensamento inquietante.
Nikoros conseguiu arrebanhar o pequeno grupo até as luzidias montanhas de bebidas. Apesar de sua conversa sincera com Nikoros ter sido adiada pelas circunstâncias,
Locke sentiu-se mais confortável assim que garantiu um drinque. Um copo na mão parecia uma exigência tão comum quanto uma fita verde no peito.
Logo Epitalus e Dexa foram cultivar seu prestígio. Nikoros circulou com Locke e Jean pelo salão várias vezes, fazendo apresentações, mostrando prodígios e curiosidades,
membros do Comitê, amigos, primos, primos de amigos e amigos de primos.
No passado, Locke se acostumara a se misturar com a aristocracia de Camorr e, ainda que a nata de Kartane não carecesse de nada em termos de espirituosidade e pompa,
parecia haver uma nítida diferença de caráter, que era mais profunda do que meras variações de hábitos entre leste e oeste. Ele demorou meia hora de conversas para
enfim captar a natureza do contraste: a alta burguesia kartani não tinha uma qualidade marcial, onipresente nos ricos da maioria das outras cidades-estado.
As pessoas não possuíam cicatrizes de batalha óbvias, nem braços mutilados em mangas de casacos presas com alfinetes, nem o passo comedido de antigos soldados de
infantaria ou o andar oscilante dos equestres. Locke lembrou que o exército de Kartane fora debandado quando os magos se instalaram. Durante quatro séculos, a agourenta
Presença fora a única proteção (suficiente) da cidade contra a interferência externa.
As apresentações e as amenidades continuaram.
– Ora, quem é aquele sujeito ali? – perguntou Locke, bebendo seu segundo conhaque de Austershalin com água. – Aquele com o chapeuzinho estranho.
– O cavalheiro de chapéu garboso? Droga... o nome dele me escapa no momento. – Nikoros tomou um gole generoso de vinho como se isso pudesse ajudar; se funcionou,
não foi instantaneamente. – Desculpe, mas conheço o amigo dele, que está ao lado. É um dos organizadores do nosso distrito. Primeirofilho Cholmond. Sempre diz que
está escrevendo um livro.
– De que tipo? – perguntou Jean.
– História. Um grande estudo histórico da cidade de Kartane.
– Que os deuses lhe concedam um acidente de carruagem paralisante.
– Simpatizo com você. A maioria dos historiadores sempre me pareceram perpetradores do tédio. Ele jura que seu livro é diferente. Mesmo assim...
O que quer que Nikoros fosse falar em seguida perdeu-se num alvoroço geral. Primeirofilho Epitalus havia subido a uma das galerias superiores e estava acenando,
pedindo algum tipo de ordem à multidão, que nesse momento já tinha absorvido boa parte do próprio peso em álcool.
– Boa noite, boa noite, boa noite! – gritou Epitalus. – Boa noite! – E então, como se alguém pudesse não saber ainda qual era o período do dia: – Boa noite!
O quinteto de cordas interrompeu os zumbidos e as vibrações agudas, e a aclamação geral baixou para um murmúrio de embriaguez.
– Bem-vindos, damas e cavalheiros, dedicados amigos, à septuagésima nona temporada de eleições na nossa República de Kartane! Peço que parem um momento para refletir
com piedade sobre como restam poucos dos que ainda conseguem se lembrar da primeira.
Risos bem-humorados perpassaram a multidão.
– Até os que ainda usam fraldas devem ser capazes de recordar os nossos heroicos esforços há cinco anos. Apesar da oposição furiosa, conseguimos preservar nossa
forte minoria de nove cadeiras no Konseil!
Gritos roucos e aplausos ecoaram no salão durante algum tempo. Locke se encolheu. Forte minoria? Será que ele estava deixando de captar algum tipo de piada kartani
ou eles eram mesmo incapazes de admitir que haviam perdido?
– E assim, sem dúvida, o fardo de defender os antigos ganhos repousa pesadamente nos nossos inimigos e isso deve torná-los eminentemente vulneráveis ao que virá
desta vez!
Houve gritos a plenos pulmões, tilintar de copos, aplausos e o som de pelo menos um participante mais fraco sucumbindo à influência da bebida grátis. Por sorte,
sua queda de uma galeria foi interrompida por uma multidão de pessoas de corpo macio, que estavam mergulhadas em seus copos o suficiente para não se ofenderem com
a súbita chegada. Com discrição, garçons removeram o pobre coitado enquanto Epitalus prosseguia:
– Será que posso lhes pedir, portanto, para erguer uma taça brindando a nossa querida oposição, os rapazes e as moças com excesso de confiança do outro lado da cidade?
O que devemos desejar a eles, hein? Confusão? Frustração?
– Eles já estão confusos! – gritou Dexa em algum lugar na frente da turba. – Então, que seja frustração!
– Frustração para o Íris Negra! – trovejou Epitalus, levantando sua taça.
O grito ecoou em todos os cantos da multidão e, após um longo gole, várias centenas de pessoas ficaram com uma necessidade premente de encher os copos outra vez.
Garçons com garrafas nas duas mãos vagavam no meio da refrega. Depois que Epitalus recebeu um novo suprimento de vinho, voltou a erguer a taça.
– Kartane! Que os deuses abençoem nossa grande joia do Oriente!
Esse brinde também ecoou com entusiasmo, mas então Locke testemunhou uma coisa curiosa. Um bom número de pessoas ao seu redor levou a mão esquerda aos olhos, baixou
a cabeça e sussurrou “Abençoada seja a Presença”.
– Que os deuses nos concedam toda a bênção de uma vitória há muito esperada – continuou Epitalus –, assim como me concederam a honra da atenção muito gentil de vocês.
Não vou retê-los nem mais um instante! Temos trabalho suficiente nas próximas seis semanas, mas esta noite é para o prazer e devo insistir que todos o busquem vigorosamente!
Epitalus desceu da galeria elevada sob uma salva de palmas que sacudiu os caibros. Os músicos recomeçaram a tocar.
– O que acha do velhinho? – perguntou Jean.
– Ele tem uma visão estranhamente luminosa de dez anos de derrota – respondeu Locke. – Mas, se eu for morto nas próximas seis semanas, quero que ele fale no meu
funeral.
– Não quero mijar no bom humor – disse Jean em voz muito mais baixa –, mas você notou que nosso amigo Nikoros...
– É. – Locke suspirou. – Vamos dar um jeito nele mais tarde.
A massa de bem-vestidos Primeirofilhos, Segundofilhos, Terceirafilhas e coisas do tipo retornou aos seus grupinhos anteriores e encurralou as bandejas de prata cheias
de comida que agora estavam sendo descobertas nos fundos do salão. Alquimistas performáticos com fantasias de seda brilhantes emergiram da cozinha, alguns para preparar
bebidas, outros já fazendo malabarismo com fogo sem calor ou conjurando vapor reluzente multicolorido.
– Parabéns, Nikoros – congratulou Locke. – Sua festa parece um tremendo sucesso. Mas algo me diz que não vamos começar nenhum maldito trabalho antes do meio-dia
de amanhã.
– Ah, Josten é a pessoa perfeita para isso. Ele, ah, ele prepara um remédio para ressaca que vai apagar os v-vapores do seu cérebro! Sem alquimia. Por isso, acho
que podemos nos servir de mais um copo ou dois com a tranquilidade...
Foi então que Locke notou um novo murmúrio na multidão perto da porta principal: não era o ronronar baixo do contentamento bêbado e, sim, um sinal de inquietação
se espalhando. Homens e mulheres com fitas verdes se separaram como nuvens diante de um sol nascente e, da abertura, saiu um homem atarracado com cabelos encaracolados
usando casaco azul-claro e chapéu de quatro bicos da mesma cor. Carregava um cajado de madeira polida com cerca de um metro de altura encimado por uma estatueta
de prata na forma de um leão empinado. Era obviamente um cajado de oficial de justiça.
– Arauto Vidalos – disse Nikoros calorosamente. – C-caro amigo, você chegou em ótima hora! Você precisa, precisa tomar alguma coisa para afastar o frio! Sirva-se.
– Lamento profundamente, Nikoros. – O homem tinha uma voz de uma suavidade curiosa e era óbvio que sentia algum desconforto. – Infelizmente, vim a serviço da Corte
dos Magistrados.
– É verdade? – Nikoros se enrijeceu. – Bom, ahn, talvez eu possa, eu possa ajudá-lo a manter isso em discrição. Quem você precisa ver?
– Zelo Josten.
Nesse ponto, um amplo círculo havia se aberto no salão ao redor de Vidalos. Josten passou pela multidão e adentrou no espaço vazio.
– O que há de novo, Vidalos?
– Nada que me dê algum prazer. – Vidalos tocou seu cajado com suavidade no ombro esquerdo de Josten. – Zelo Josten, eu lhe entrego, diante de testemunhas, uma intimação
da Corte dos Magistrados de Kartane.
Ele afastou o cajado e entregou ao estalajadeiro um tubo. Enquanto Josten retirava um rolo de pergaminho, rompia o lacre e o desenrolava, Locke moveu-se casualmente
para ficar ao lado dele.
– Qual é o problema? – sussurrou.
– Caralho, pelos Dez Nomes Santos – praguejou Josten, passando o olhar pelos numerosos parágrafos bem arrumados no pergaminho. – Isto não pode estar certo. Todas
as minhas taxas estão pagas...
– Sua licença para servir bebidas fortes está em atraso – interrompeu Vidalos. – Não há registro na Corte dos Magistrados de que o pagamento deste ano tenha sido
recebido.
– Mas... mas eu paguei. Com certeza paguei!
– Josten, senhor, desejo acreditar com toda a alma, mas é meu dever executar esse mandado, e devo executá-lo, ou é a minha pele que eles vão arrancar no Dia da Penitência.
– Bom, podemos resolver esse negócio dos registros mais tarde. Só diga quanto eu devo e eu pago imediatamente.
– Eu sou proibido de receber pagamentos ou penalidades em mãos. Como o senhor sabe muito bem. O senhor terá que ir à próxima sessão de Ações Públicas na Corte dos
Magistrados.
– Mas... isso é daqui a três dias. Até lá...
– Receio ter que dispersar esta festa – disse Vidalos baixinho. – Depois disso, é sua escolha se lacramos suas portas ou se retiramos sua bebida. São apenas alguns
dias, senhor.
– Apenas alguns dias? – sussurrou Josten, incrédulo.
– Ah, Sabeta – murmurou Locke consigo mesmo. – Sua maldita artista. Olá para você também.
i n t e r l ú d i o
Vigaristas no estrangeiro
1
Estavam mais de 60 quilômetros além da fronteira da grande Camorr, na terceira manhã de viagem, quando passaram pelo primeiro cadáver balançando sob o galho arqueado
de uma árvore à beira da estrada.
– Ah, olhem – disse Calo, sentado junto de Jean na frente da carroça. – Todos os confortos do lar.
– É o que fazemos com bandoleiros quando há uma corda de forca disponível – avisou Anatoly Vireska, que estava andando ao lado deles, mastigando um desjejum tardio
composto de figos secos. A carroça deles ia à frente da caravana. – Há uma a cada 2 ou 3 quilômetros. Se a corda estiver ocupada, ou se não for conveniente, nós
simplesmente abrimos a garganta deles e os jogamos fora da estrada.
– Há mesmo tantos bandoleiros assim? – perguntou Sabeta. Estava sentada no topo da carroça com os pés apoiados em Galdo, que roncava, tendo cumprido o turno de vigia
antes do alvorecer. – Desculpe. É que não parece haver ninguém espreitando. – Ela soava entediada.
– Bom, há tempos bons e tempos ruins – respondeu o chefe da caravana. – Num verão como este, podemos ver um mensalmente. Nós penduramos o nosso amigo ali há mais
ou menos um mês. Desde então, tudo está calmo. Mas, quando a colheita é ruim, que os deuses nos ajudem, eles aparecem nas florestas, amontoados feito bosta de pássaro.
E, depois de uma guerra, são os mercenários e desertores causando um inferno. Eu dobro a guarda. E dobro os ganhos, rá.
Locke não sabia se concordava que não havia ninguém espreitando. O campo tinha o caráter mal-assombrado que ele recordava dos meses que passara aprendendo os rudimentos
da vida agrícola. Todas aquelas noites em que ficara acordado ouvindo o estranho farfalhar das folhas, ansiando pelo clamor familiar das rodas de carruagens, dos
passos nas pedras, dos barcos na água.
A velha estrada imperial fora bem construída, mas agora começava a desmoronar nos locais remotos entre os grandes poderes. Os fortes de guarnições vazios, silenciosos
como mausoléus, estavam sumindo por trás de nevoentos bosques de cipreste e madeira-bruxa, e as pequenas cidades que haviam brotado ao redor tinham se reduzido a
ruínas cobertas de musgo e riscos na poeira.
Locke andava ao lado da carroça, do lado oposto a Vireska, tentando olhar a paisagem, e não Sabeta. Ela descartara seu capuz de matrona e o cabelo balançava à brisa
morna.
Ela não cumprira com o “compromisso” na segunda noite. De fato, mal falara com ele, permanecendo concentrada nas peças que tinha trazido e desviando todas as tentativas
de conversa com tanta habilidade quanto havia aparado seus golpes de bastão.
A caravana, seis carroças no total, sacolejava no calor da manhã. Ao meio-dia, passaram por um bosque parecido com um túnel escuro. Um nó de forca temporariamente
vazio pendia de um dos galhos altos e escuros, como um pêndulo abandonado.
– Sabe, a princípio foi uma novidade – disse Calo –, mas estou começando a achar que este lugar poderia ter um marco de distância mais alegre.
– Os bandidos derrubariam as placas decentes – replicou Vireska. – Mas todos têm medo de tocar nos nós de forca. Dizem que, quando você não enforca alguém em cima
de água corrente, a corda segura a alma inquieta. Quem encosta nela fica com um tremendo azar, a não ser que esteja lhe dando uma vítima nova.
– Humm. Se eu ficasse aqui atacando carroças no meio de porra nenhuma, acho que meu azar já seria o maior possível.
2
Pararam para pernoitar na aldeia de Tresanconne, um povoado com cerca de duzentas almas construído em três morros cercados por pântanos, protegido por paliçadas
feitas de troncos pontudos. Era o único tipo de comunidade que poderia florescer ali, segundo Vireska: grande demais para os bandoleiros dominarem, porém remota
demais para que grupos de soldados camorris achassem compensador visitá-la para cobrar “impostos de manutenção da estrada”.
Não se tratava de um idílio rural. Os aldeões eram carrancudos e desconfiados, apreciando mais as mercadorias de fora do que os estranhos que as traziam. Mesmo assim,
o terreno íngreme e áspero que eles forneciam para as caravanas era preferível a qualquer cama que os esperasse na umidade escura do ermo.
Era a vez de Locke varrer embaixo da carroça, enquanto Jean cuidava dos cavalos. Os Sanzas, aceitando de má vontade a proximidade mútua, foram examinar a aldeia.
Sabeta permaneceu em cima da carroça, vigiando as posses. Locke só precisou de alguns minutos para garantir que o espaço onde eles abririam os cobertores não representava
um embaraço à civilização, e então lhe ocorreu que os dois estavam mais ou menos a sós.
– Eu, ahn, lamento não ter tido a chance de falar com você ontem à noite – disse ele.
– Ahn? Foi uma perda verdadeira para algum de nós?
– Você pro... Bom, não creio que você tenha prometido. Você falou que pelo menos pensaria a respeito.
– Isso mesmo, eu não prometi.
– Bom... droga. Você está obviamente de mau humor.
– Estou? – Sua voz denotava perigo. – Estou mesmo? Por que isso seria excepcional? Um garoto pode ser desagradável quanto quiser, mas, quando uma garota se recusa
a cagar luz do sol a qualquer minuto, o mundo murmura, sombrio, sobre o mau humor dela.
– Só falei isso por causa de, é... bem... de nada, mesmo. Foi só para começar uma conversa. Olha, é bastante... esquisito... ter que procurar algum ardil para falar
com você, como se nós fôssemos totalmente estranhos!
– Se eu estou de mau humor – retrucou Sabeta depois de um momento de silêncio reflexivo –, é porque essa viagem está se desenrolando mais ou menos como eu tinha
previsto. Tédio, estradas esburacadas e insetos picando.
– Ah. Eu sou parte do tédio ou um dos insetos que picam?
– Eu juraria que o varredor de bosta de cavalo está tentando ser charmoso – disse ela baixinho.
– Pode muito bem presumir – Locke não tinha certeza se estava se sentindo ousado ou apenas querendo sentir-se ousado – que eu sempre tento ser charmoso com relação
a você.
– Ora, isso é arriscado. – Sabeta rolou de lado e pulou para perto dele. – Esse tipo de fala direta exige uma resposta, mas qual será? Devo encorajar essa conversa
ou fazer com que você pare de vez?
Ela deu um passo à frente, as mãos nos quadris, e mesmo contra a vontade Locke se inclinou para trás, firmando-se contra a carroça no último segundo, para evitar
uma queda que seria, talvez, a coisa mais desprovida de graça já realizada na história da civilização terim.
– Eu posso votar? – perguntou, humilde.
– Se não vai ser um encorajamento, você pode aceitar que eu o pare de vez? – Sabeta ergueu um dedo e tocou o queixo dele. Não era um convite nem uma bronca. – Os
Sanzas podem estar deixando todos nós malucos neste momento, mas vou dizer uma coisa a favor deles... quando as tentativas foram feitas e recusadas, eles nunca mais
puxaram o assunto.
– Calo e Galdo cantaram você?
– Certamente não ao mesmo tempo. Por que está tão surpreso? Sem dúvida você já notou que não é o único idiota de sangue quente com as peças funcionando na nossa
pequena gangue.
– É, mas eles...
– Sabem que meu sentimento por eles está em algum lugar entre o afeto fraternal e a tolerância santa. E, ainda que às vezes eu imagine que eles trepariam com árvores
se achassem que ninguém está vendo, os dois respeitaram totalmente meus desejos. Você seria capaz de aceitar o desapontamento tão bem quanto eles?
– Se eu vou ser desapontado – falou Locke com o coração martelando –, gostaria que você cortasse o prelúdio e apenas me desapontasse logo.
– Aaahh, algum fogo, enfim. – Sabeta cruzou os braços e chegou mais perto. – Diga: como você sabe, com certeza, que eu não gosto de garotas?
– Eu... – Locke teve sorte de cuspir a sílaba única antes que a capacidade de fala coerente levantasse uma bandeira branca e o abandonasse. Deuses do céu...
– Você nem pensou nisso, pensou? – indagou ela, com a voz que era um sussurro maroto.
– Bom, diabos... é isso... quero dizer, você...
– Será que eu gosto de ostras ou de lesmas? Que baita incômodo alguém na sua situação não ter certeza. Ah... pelo amor de Perelandro, você parece em vias de ser
executado. – Sabeta se inclinou e sussurrou no ouvido direito dele. – Por acaso eu gosto muito de lesmas, obrigada.
– Ahhh – fez ele, sentindo a terra se solidificar outra vez embaixo dos pés. – Eu nunca... nunca fiquei tão feliz com esse tipo de comparação.
– É a campeã das metáforas – concordou ela com um minúsculo sorriso. – Extremamente adequada.
– E agora que você já praticou seu esporte comigo, devo me juntar a Calo e a Galdo no clubezinho exclusivo deles?
– Eles ainda são meus amigos. – Sabeta pareceu genuinamente magoada. – Meus irmãos de juramento. Não há nada a desprezar, em especial para um... futuro sacerdote
da sua ordem.
– Sabeta, eu gosto de você. Fico completamente apavorado em admitir isso, mas digo com clareza, como você fez na outra noite. Só que não falo isso em tom casual.
Eu... eu admiro você desde o instante em que nos conhecemos, sabe, desde aquele dia em que saímos do Morro das Sombras para assistir aos enforcamentos. Você lembra?
– Claro – sussurrou ela. – O garotinho estranho que não queria deixar o Ruas. Que coisinha lamentável você era. Mas o que havia para admirar, Locke? Nós eramos umas
criaturinhas sujas, famintas. Você não devia ter nem 6 anos. Que sentimentos poderia ter?
– Só sei que eles estavam ali. Quando ouvi dizer que você se afogou, foi como se tivessem pisado no meu coração.
– Lamento por isso. Foi necessário. – Ela afastou o olhar por um longo instante antes de prosseguir: – Acho que você olha para o nosso passado baseado nos seus sentimentos
atuais e imagina algum brilho que é... mais reflexo do que substância.
– Sabeta, eu não me lembro do meu pai. E, fora uma única lembrança de... agulhas de costura, minha mãe também é um mistério. Não recordo o lugar do meu nascimento,
nem a peste do Pegafogo, nem o modo como sobrevivi a ela, nem nada que fiz antes que o Aliciador me comprou da guarda citadina!
– Locke...
– Escute! Tudo se foi! Mas os momentos que passei com você, quer você soubesse que eu estava lá ou não, esses ainda estão comigo, queimando como carvões em brasa.
Eu posso tocar neles e sentir o calor.
– Você andou lendo muitos romances do Jean. Que base para comparação você já teve, Locke? Você e eu estamos juntos durante todos esses anos... Por que você não desenvolveria
algum tipo de fixação? É... perfeitamente natural... uma familiaridade esperada...
– Quem você está tentando convencer? – Agora no ataque, Locke entrou no jogo dela, deu um passo adiante. – Isso não parece estar sendo dito por minha causa. Você
está tentando se convencer a não abrir o jogo comigo! Por que...
Sua voz tinha ficado mais alta a cada palavra, e Sabeta o assustou tapando sua boca com uma das mãos.
– Você está transformando uma coisa muito pessoal num discurso para todo o acampamento – ralhou ela em seu vadrã impecável.
– Desculpe – sussurrou ele na mesma língua. – Olhe, isso não é uma porcaria de fixação, Sabeta. Se eu pudesse... de algum modo fazer com que você se visse através
dos meus olhos! Garanto que seus pés nunca mais tocariam o chão.
– É uma magia que poderia ter alguma aplicação útil – disse ela, pensativa –, se você quisesse fazer isso. E se eu... se eu optasse por cair no seu charme agora.
– Bom, se não agora, então...
– Eu disse que meus sentimentos por você são complicados. Tudo o que tem a ver com você é complicado, e com isso não quero dizer que estou confusa, com a mente embaralhada
ou... com medo. Quero dizer que existem circunstâncias reais, genuínas, sobre nós e ao redor de nós que tornam isso difícil. Existem obstáculos, droga.
– Fale sobre eles. Diga qualquer coisa que eu possa fazer...
– Estamos falando vadrã agora? – perguntou Calo, de seu poleiro anteriormente silencioso no lugar vago por Sabeta em cima da carroça.
– Ah, Sanza, seu desgraçado – sibilou Sabeta. – Você me mata de susto.
– Ah, que elogio! – falou Galdo, que rolou de debaixo da carroça. – Não é fácil pegar você desprevenida. Devia estar mesmo com a cabeça...
– ... enfiada no rabo – completou Calo.
– Então vocês dois voltaram ao ritmo usual? – perguntou Locke, irritado.
– Não – respondeu Galdo. – Só estamos curiosos.
– Seu vadrã é fluente? – indagou Locke.
– Minha vadrã está fluente muito – disse Calo nessa língua, embolando exageradamente cada palavra. – Perfeito como sem falhas, eu o Sanza esperto está sendo.
– Mas acho que nós dois estamos meio enferrujados – observou Galdo. – Logo, se vocês pudessem repetir as partes que perdemos...
– Acostumem-se com as falhas na sua compreensão – rebateu Sabeta. – O resto de nós certamente se acostumou.
– A aldeia não foi digna da atenção de vocês? – questionou Locke, suspirando.
– Pelo contrário – respondeu Galdo. – Nós pensamos em ganhar umas moedas de prata. Alguns desses montanheses fedorentos estão jogando cartas na imitação de taverna
que eles têm.
– Não deve ser necessário usar muito do velho estilo camorri para ofuscá-los – opinou Calo, fazendo uma pedrinha aparecer e desaparecer da palma da mão. – Podemos
partir de manhã como donos de metade deste maldito lugar.
– Não acho sensato – acautelou Sabeta.
– O que eles vão fazer? – perguntou Galdo. – Declarar guerra? Olhe, se nós voltarmos daqui a alguns meses e descobrirmos que cem caipiras do pântano derrubaram as
Cinco Torres, vamos escrever um pedido de desculpas sincero.
– E só precisamos de algumas moedas, de qualquer modo – completou Calo, jogando a lona de volta sobre os suprimentos. – Para entrar no jogo. Depois disso, vamos
receber doações, e não fazer.
– Esperem aí – interveio Locke. – Desde quando vocês dois são criminosos?
– Desde... – Calo estreitou os olhos e fingiu calcular. – Desde algum ponto entre sairmos de mamãe e batermos no chão entre as pernas dela, imagino.
– De cabeça – acrescentou Galdo.
– Eu sei que os Sanzas são tortos feito uma cobra numa máquina de dobrar cobras, mas os Asinos são atores, e não trapaceiros com cartas – retrucou Locke.
– Você sabe como os atores ganham a vida entre dois trabalhos? – perguntou Calo. – Acredite, alguns deles são trapaceiros com cartas de baralho. Aprendi parte das
minhas melhores coisas com...
– O que eu quis dizer – interrompeu Locke – é que nós deveríamos ser somente atores, e só atores. Estive pensando nisso. Nada de jogos oportunistas no caminho. Nada
de afanar bolsas. Nós deveríamos traçar um limite entre quem somos em Camorr e quem somos em Espara. Quando formos para casa, qualquer um que pense em nos seguir
de volta à nossa vida real não deve encontrar nada. Nenhuma sugestão, nenhuma pista.
– Parece... sensato – concordou Galdo.
– E começa aqui – enfatizou Locke. – Isso quer dizer que não faremos nada para nos tornarmos memoráveis. Você acha mesmo que seus amigos caipiras vão deixar vocês
limpá-los e se despedir alegremente de nós amanhã de manhã? Alguém vai ser cortado, Sanzas. Todo mundo nesta aldeia vai estar atrás da pele de vocês e os guardas
não vão salvá-los. Eles precisam trabalhar nesta rota semana sim, semana não. Eles precisam dessas pessoas.
– Ele está certo – comentou Calo. – Eu sabia que era a porra de um plano idiota, seu careca degenerado.
– A ideia foi sua, seu ganancioso polidor de cagalhão!
– Bom, de qualquer modo, não vamos fazer isso – garantiu Calo a Locke.
– Então por que não começam a cozinhar o jantar? Ou, melhor ainda, se vocês querem mesmo gastar uma moeda na aldeia, vejam se conseguem um pouco de carne que não
venha em forma de tijolo.
Os Sanzas receberam essa sugestão com entusiasmo e desapareceram outra vez pela trilha sinuosa até a que poderia ser considerada a rua principal de Tresanconne.
A sós, Locke e Sabeta se encararam e ele detectou uma súbita frieza na postura dela.
– Isso seria um dos obstáculos que eu mencionei.
– O quê?
– Você não notou mesmo?
– Notei o quê? O que eu deveria perceber?
– Pense bem. – Ela cruzou os braços de novo, desta vez com os ombros encolhidos para a frente. Um gesto protetor, não receptivo. – Sério. Vou lhe dar um momento.
Pense bem.
– Pensar em quê?
– Há anos eu era a criança mais velha numa gangue pequena. Fui mandada para longe, pelo meu mestre, para treinar dança e boas maneiras. Quando voltei, descobri que
uma criança mais nova havia tomado o meu lugar.
– Mas... eu não...
– Calo e Galdo, que antes me tratavam como uma deusa na terra, tinham transferido a aliança para o pequeno recém-chegado. Com o tempo, ele conseguiu um terceiro
aliado, outro garoto.
– Isso é a mais pura... Ora, Jean é devotado a você, como amigo.
– Mas não como meu amigo particular. Não como ele é com você.
– Esse é o seu obstáculo? – Locke sentiu como se um objeto pesado tivesse saído subitamente da escuridão e acertado sua cabeça. – Minha amizade com Jean. Ela deixa
você com ciúme?
– Você ouve mais ou menos tão bem quanto observa. Nunca notou que as minhas sugestões são tratadas como sugestões, ao passo que as suas são tomadas como uma ordem
sagrada? Mesmo se elas forem idênticas?
– Acho que você está sendo muito injusta – disse Locke debilmente.
– Você viu isso agora mesmo! Eu não conseguiria dissuadir os Sanzas de beber arsênico usando o mero bom senso, mas eles tropeçam nos próprios pés na ânsia de seguir
suas orientações. Essa é a sua gangue, Locke, tem sido desde que você chegou, e com a bênção do Correntes. Você foi moldado e preparado como garrista para quando
ele se for. E como... bem, como sacerdote. É o substituto dele.
– Mas eu... eu não tinha ideia, nem intenção...
– Claro que não. Na verdade, você não questionou nada desde que chegou. Assumiu uma posição de primazia, coisa que é fácil de aceitar como certa... até que a gente
é discretamente varrido para fora dela. Depois, acho que isso nunca sai dos nossos pensamentos.
– Mas... eu tenho trabalhado e sido testado tanto quanto você – falou Locke, lutando para manter a voz baixa. – Tanto quanto qualquer outro! Você lembra quanto tempo
eu demorei para pagar por isto? – Ele enfiou a mão pela frente da túnica e pegou seu dente de tubarão aninhado na bolsinha de couro. – Deuses do céu, eu poderia
ter uma casa na cidade e uma carruagem com o dinheiro que investi nesta porcaria. E passei por tantos aprendizados quanto...
– Não estou falando do seu treinamento, Locke, sei o que o Correntes fez com todos nós. Estou falando que você aceitou tudo como aceita a própria pele. Como uma
coisa natural e que nem merecia reflexão. Bom, deixe-me garantir que a única mulher numa casa de homens costuma ter motivos frequentes para refletir.
– Isso é uma completa surpresa para mim.
– Eu sei – falou ela baixinho. – Esse é o problema.
Sabeta olhou para o céu, onde uma das luas estava emergindo de trás de uma névoa baixa de nuvens, e Locke não tinha ideia de como começar a responder.
– Falta uma semana – continuou ela por fim. – Uma semana longa, lenta, com todos os prazeres que citei antes. Vamos estar cansados, doloridos, fedorentos e picados
até quase morrer quando chegarmos a Espara. Eu... teria vontade de conversar com você de novo, Locke, mas, nestas circunstâncias, não posso me obrigar a fazer disso
um motivo de ansiedade esperançosa noite após noite. Nenhum de nós vai estar nas melhores condições.
– E isso merece nossas melhores condições – observou ele, de má vontade.
– Acho que sim. Então, será que podemos manter as coisas na normalidade enquanto estamos viajando? Olhos no chão, bundas nos assentos e todas essas... questões adiadas
para mais tarde?
– Você acha que é justo jogar isso tudo no meu colo e depois pedir uma trégua de conversas?
– Não acho nem um pouco justo. Só necessário.
– Tudo bem, então. No mínimo, parece que terei muito tempo para ruminar uma explicação para você...
– Uma explicação? Você acha que o que eu quero é algum tipo de defesa? Certamente você consegue ver que eu já expliquei. O que vem em seguida é...
– O quê?
– Não vou dizer. Acho que preciso que você me diga.
– Você só tem que...
– Não – cortou ela rispidamente. – Eu disse tudo que você precisa saber para deduzir o que vem em seguida. Se minhas palavras são mesmo como carvões em brasa, deixe
que elas fiquem queimando. Fique remexendo nelas e me traga uma resposta depois de chegarmos a Espara. Traga uma boa resposta.
3
Espara, que já fora um local de prestígio apenas um degrau abaixo da própria Terim Pel, havia decaído de seus anos imperiais do mesmo modo como alguns homens e mulheres
decaem para a letargia da meia-idade, descartando o vigor e a ambição da juventude como se fossem roupas que não cabem mais.
Locke teve o primeiro vislumbre do lugar logo depois do meio-dia do décimo dia, quando a caravana virou a curva entre dois morros cravejados de ruínas e entrou nos
redemoinhos familiares, irregulares, verdes e marrons de uma paisagem agrícola. No horizonte sul, ficavam os vultos débeis de torres sob manchas de fumaça cinzenta
e sinuosa.
– Espara – anunciou Anatoly Vireska. – Exatamente onde a deixei. Sem mais paradas para descansar, meus jovens amigos. Antes que o sol se ponha, vocês estarão na
cidade procurando seus amigos atores.
– Muito bem, chefe da caravana – parabenizou Locke, que segurava as rédeas enquanto Jean roncava suavemente embaixo da lona da carroça. – Não é o que eu chamaria
de uma viagem pitoresca, mas você nos trouxe sem um arranhão.
– Quando a colheita de bandoleiros é parca, trata-se de um passeiozinho tranquilo. Agora vocês voltam a se desviar de carruagens, respirar fumaça e pagar aluguel
pelas camas em que dormem, não é?
– Que os deuses sejam louvados.
– As criaturas das cidades são as mais estranhas de todas.
Vireska balançou a cabeça amistosamente. Em seguida, foi visitar as outras carroças.
Todos os Nobres Vigaristas, mais ou menos com os pés e as bundas doloridas, sujos e exangues como Sabeta havia previsto, tinham desistido de andar naquela manhã.
Calo e Galdo se apoiavam um no outro, olhando a paisagem passar em seu ritmo lento, enquanto Sabeta permanecia absorta no exemplar de República de ladrões que pegara
antes de saírem de Camorr.
– A peça presta? – perguntou Galdo.
– Acho que sim – respondeu Sabeta –, só que o último ato foi arrancado deste volume e metade das páginas tem manchas cobrindo algumas falas. Fico imaginando que
toda cena termina com os personagens jogando copos de café uns nos outros.
– Parece o meu tipo de peça – comentou Calo.
– Existe algum papel decente? – indagou Galdo.
– Todos são decentes – replicou Sabeta. – Mais do que decentes. Acho que são muito românticos. Nós deveríamos ter nomes assim, como todos os heróis dessas peças,
todos os bandidos, feiticeiros e imperadores famosos.
– A maioria das pessoas seria capaz de dar meia bosta seca para ter um nome de imperador – observou Galdo. – O que elas querem é a riqueza e o poder.
– O que eu quero dizer é que deveríamos ter nomes falsos como os das histórias antigas. Títulos grandiosos e imponentes como os Dez Vira-Casacas Honestos, sabe?
Jessa Vermelho, o Duque dos Velhacos. Amadine, a Rainha das Sombras.
– Acho Verena Gallante um belo nome – comentou Locke.
– Não, eu quero dizer nomes grandes, importantes e incomuns. Não algo que podem gritar na sua cara. O tipo de nome que as pessoas sussurram quando acontece alguma
coisa inacreditável. “Ah, deuses, isso só pode ser obra do Duque dos Velhacos!”
– Pelos céus – disse Galdo em voz profunda e dramática –, só um homem vivo poderia ter posto para fora tamanha joia marrom e reluzente: isso é obra de Calo Agachado,
o Cagão da Meia-Noite!
– Vocês dois não têm imaginação – retrucou Sabeta.
– Pelo contrário: quanto mais baixo o empreendimento, mais quente arde o fogo da nossa invenção.
– Está ficando com vontade de se agitar, Sabeta? – perguntou Locke, secretamente feliz em ouvir a energia na voz dela depois de tantos dias de tédio pensativo.
– Talvez esteja. Fiquei presa nesta carroça contando peidos dos Sanzas durante uma semana; talvez eu mereça dar asas à imaginação um pouco. Quero dizer, não seria
fantástico ter uma lenda que crescesse enquanto você estivesse vivo para desfrutar dela? Sentar-se numa taverna e escutar as pessoas em volta falando do que você
fez, sem ideia de que você estava no meio delas, em carne e osso?
– Eu posso ficar sentado numa taverna e ser ignorado quando quiser – murmurou Calo.
– Eu quero ver o Reino dos Tutanos algum dia – revelou Sabeta. – Dando golpes de cidade em cidade... nos braços de nobres, esvaziando os bolsos deles, deixando-os
tontos com meu charme. Eu seria uma força da natureza. Eles inventariam algum título elegante para sua aflição compartilhada. “Foi ela... foi... foi a Rosa.” – Sabeta
pronunciou devagar a última palavra, obviamente saboreando-a. – A Rosa dos Tutanos, é o que eles dirão. “A Rosa dos Tutanos foi minha ruína!” E vão arrancar os cabelos
explicando tudo às esposas e aos banqueiros, enquanto eu parto para a próxima cidade.
– Então todos nós vamos precisar de apelidos idiotas? – perguntou Calo. – Nós poderíamos ser... os Arbustos do Norte.
– As Ervas de Vintila – acrescentou Galdo.
– E se você é uma rosa – continuou Calo –, Locke também vai precisar de alguma coisa.
– Ele pode ser uma tulipa – sugeriu Galdo. – Tulipinha delicada.
– Não, se ela é a rosa, ele pode ser o espinho. – Calo estalou os dedos. – O Espinho de Camorr! Isso tem um tremendo brilho!
– É a coisa mais imbecil que já ouvi – retrucou Locke.
– Podemos fazer isso assim que chegarmos em casa: nos disfarçar – disse Calo. – Deixar pistas nos bares. Contar histórias aqui e ali. Vamos dar um mês e todo mundo
vai estar falando do Espinho de Camorr. Até quem não sabe merda nenhuma vai contar mais mentiras para parecer que está por dentro das últimas novidades.
– Se algum dia vocês fizerem alguma coisa assim – reagiu Locke –, juro por todos os deuses que mato os dois.
4
Logo depois da quarta hora da tarde, com uma levíssima garoa quente suando do céu cinza, a carroça passou pela lama sob o arco de pedra do Portão do Rio Jalaan,
no lado leste de Espara. Jean estava de novo com as rédeas e fez os cavalos pararem diante de um esquadrão de homens armados e com capas.
– O que há, Vireska? – perguntou o que era evidentemente o líder, um daqueles tipos volumosos e graciosos, que davam a impressão de ser capazes de dançar um minueto
apesar da barriga perfeita para virar presunto. – Poderíamos acertar um relógio d’água observando você. Viagem monótona, hein?
– Exatamente como deveria ser – respondeu o chefe de caravana, apertando a mão do guarda. A gorjeta que sumiu no bolso do sujeito pesadão foi generosa; Vireska havia
falado dela em Camorr e recolhido uma porção igual de cada dono de carroça. – Agora, quando estiver cutucando tudo, sargento da guarda, seja delicado com as drogas
e as armas escondidas, hein?
– Prometo não segurar você por mais de dez horas desta vez. – O grande esparano riu. Seus homens fizeram um exame extremamente superficial das carroças, mais por
causa de alguém que estivesse olhando do que para cumprir as leis da alfândega da cidade.
– Bem-vinda – falou um dos guardas a Sabeta, que de novo tinha posto suas roupas mais modestas. – É sua primeira vez em Espara?
– Na verdade, sim.
– Será que podemos ajudá-la a encontrar alguma coisa? – perguntou o grande sargento da guarda, chegando ao lado do subalterno.
– Ah, seria muito gentil da parte de vocês – comentou ela, exalando encanto feminino. Locke mordeu a língua para conter um risinho. – Estamos procurando um homem
chamado Jasmer Moncraine. Da Companhia Moncraine, de atores.
– Por quê? – indagou o sargento. – Vocês são credores?
Todos os homens atrás dele explodiram em gargalhadas.
– Ah, não. Somos atores, vindos de Camorr; vamos entrar para a trupe.
– Existem teatros em Camorr, moça? – perguntou um dos guardas. – Achei que vocês gostavam mais de... digamos... tubarões cortando mulheres ao meio.
– Eu gostaria de ver isso – murmurou outro guarda.
– Existe muito disso no lugar de onde viemos – admitiu Sabeta. – Na verdade, nós passamos mais tempo viajando do que em casa. Moncraine vai nos contratar pelo resto
do verão.
– Bom, nesse caso, boa sorte – falou o sargento. – Vocês podem encontrar alguns membros da Companhia Moncraine no... ahn, como é o nome daquele lugar que tem a oliveira
arrancada do pátio?
– Quartos do Gloriano – respondeu um guarda.
– Isso mesmo. Gloriano. Olhe, sigam essa rua direto até o templo de Venaporta e logo depois virem à esquerda, entenderam? Peguem a rua que atravessa o rio e vocês
vão chegar a um lugar chamado Morro do Consolo. A hospedaria Quartos do Gloriano fica à direita. Se encontrarem lápides em três lados, foram longe demais.
– Muito obrigado, é um prazer, senhor – disse Locke, alimentando uma leve premonição de que, no grande esquema das coisas, isso talvez não fosse totalmente verdadeiro.
Separaram-se da caravana de Vireska e entraram em Espara, seguindo as orientações do sargento da guarda. Pareceu a Locke que todos haviam se animado consideravelmente
ao se verem de novo no mundo familiar das altas muralhas de pedra, da fumaça úmida de chuva, dos becos atulhados de lixo e de pessoas apinhadas nas partes secas
dos bulevares.
– Três vivas a uma cerveja de verdade – falou Galdo, desejoso. – Numa taverna de verdade, que não tenha a porra de uma paliçada construída para manter do lado de
fora o maldito monstro do pântano.
– Acho que isso aqui é o Morro do Consolo – observou Jean quando entraram num bairro que parecia regredir cada vez mais para longe da prosperidade a cada giro das
rodas da carroça. As construções ficaram mais baixas; as janelas, mais sujas; as luzes, em menor número. – Olhem, aquilo é um cemitério: o tal do Gloriano deve estar
perto.
Encontraram a hospedaria a menos de um quarteirão, a estrutura mais bem-iluminada por alguma distância em todas as direções, se bem que a iluminação talvez não fosse
uma boa coisa, já que revelava o estado das paredes e da cobertura. Dois guardas da cidade, parecendo encharcados atrás do brilho nevoento de suas lanternas, estavam
parados na entrada para o pátio da estalagem, impedindo a passagem da carroça dos Nobres Vigaristas.
– Algum problema, guardas? – gritou Jean.
– Vocês não pretendem mesmo entrar aqui, não é? – indagou um dos homens em tom cauteloso, como se suspeitasse de que viraria motivo de piada.
– Acho que sim.
– Mas aqui é o caminho para o pátio da estalagem do Gloriano – continuou o guarda, mais cauteloso ainda.
– Fico feliz em saber.
– Vão entregar alguma coisa?
– Só nós mesmos.
– Deuses do céu, vocês pretendem mesmo! – exclamou o guarda. – Dava para ver que não eram daqui, mesmo eu nem tendo ouvido sua voz.
Ele e o companheiro saíram do caminho com cortesia exagerada e foram andando, balançando a cabeça.
Locke ouviu os gritos assim que Jean os levou até embaixo de um toldo de lona frouxa que tinha mais buracos do que pano, perto de um estábulo escuro com apenas um
cavalo. O animal olhou-os como se esperasse ser resgatado.
– Que droga de barulho é esse? – perguntou Sabeta.
Não era uma balbúrdia que Locke reconhecesse. Brigas de socos, roubos, assassinatos, disputas domésticas – todas essas coisas tinham ritmos e notas familiares, sons
que ele identificaria num segundo. Aquilo era mais estranho e parecia vir de trás do canto direito do prédio.
– Jean, Sabeta, venham comigo em silêncio. Sanzas, vigiem os cavalos. Se eles tiverem algum cérebro, podem querer dar o fora.
Não lhe ocorreu, até que suas botas batessem na lama, que tinha feito outra vez exatamente a coisa contra a qual Sabeta havia se revoltado. Maldição, não era hora
de colocar sua vida sob uma lente de aumento, mas de garantir que não fossem mortos.
– Quebrar-te-ei junta por junta – urrou um homem com voz profunda, exigindo atenção – e beberei teus gritos como um vinho fino, e arderei em êxtase cada vez mais
luminoso a cada... desvanecente... gemido de tua garganta de covarde!
– Puta que pariu – praguejou Locke. – Não, esperem. Isso... é de uma peça.
– Catalinus, o último príncipe de Amor Peth – sussurrou Jean.
Lado a lado, Locke, Jean e Sabeta viraram cuidadosamente a esquina da construção. Viram-se diante de um pátio no interior de três alas de dois andares da estalagem,
com um buraco feio e enorme no meio, onde algo fora arrancado do chão.
Um homem e uma mulher estavam sentados lado a lado, fora da luz. Olhavam um terceiro homem na beira do buraco lamacento, com uma garrafa em cada mão – um espécime
físico prodigioso, ultrapassando o Padre Correntes em gordura e tamanho, com uma coroa de cabelos brancos molhados de chuva e grudados em volta do rosto enrugado.
Usava um manto cinza frouxo e nada mais.
– Moerei teus ossos até se tornarem pó! – vociferou ele, perfurando os três Nobres Vigaristas com seu olhar brilhante. – E com esse pó farei cimento para pedras
do pavimento, e durante os próximos cem anos não terás descanso sob o esmagar de rodas estranhas e o pisotear de botas estranhas! Os bêbados derramarão sua água
imunda sobre ti e eu gargalharei ao pensar nisso, Catalinus! Gargalharei até morrer, e eu morrerei com o corpo inteiro, inteiramente vingado de ti!
Ele jogou os braços à frente, talvez de propósito, talvez de forma aleatória, e quando pareceu perceber que ainda segurava as garrafas, bebeu delas.
– Com licença – disse Locke. Um trovão ribombou acima. A chuva ficou mais forte. – Nós estamos... ahn... procurando a Companhia Moncraine.
– Moncraine! – berrou o homem de cabelos brancos, largando uma garrafa e balançando os braços para se equilibrar na beira do buraco. – Moncraine!
– O senhor é Jasmer Moncraine? – perguntou Jean.
– Eu, Jasmer Moncraine?
O homem pulou no buraco, fazendo espirrar água. Depois, andou de forma atabalhoada até o outro lado e foi na direção deles, agora totalmente enlameado da cintura
para baixo.
– Sou Sylvanus Olivios Andrassus, o melhor ator num raio de mil quilômetros, em mil anos! Jasmer Moncraine deseja... nos seus melhores dias... valer ao menos uma
gota... DO MEU MIJO!
Sylvanus cambaleou adiante e pôs a mão vazia no ombro de Jean.
– Garoto estúpido, preciso que você me empreste... 5 régios... só até o Dia da Penitência. Ah, deuses...
Ele se abaixou sobre um dos joelhos e vomitou. Os reflexos de Jean foram suficientemente rápidos para salvar tudo, menos um dos seus sapatos.
– Quer me foder?! – exclamou Jean.
– Ah, não, garanto que isso está fora de questão.
Sylvanus tentou várias vezes se levantar outra vez; de novo, notou a garrafa que restava em sua mão e começou a mamar no gargalo, contente.
– Olhem, desculpem por isso – lamentou-se a mulher que estivera assistindo, enquanto saía das sombras. Era alta, morena e usava um xale sobre o cabelo. Seu colega
espectador era um jovem rapaz terim, apenas alguns anos mais velho do que os Nobres Vigaristas. – Sylvanus tem o que vocês poderiam chamar de ambição rara no campo
da autodegradação.
– Vocês são da Companhia Moncraine? – perguntou Locke.
– Quem quer saber? – questionou a mulher, hesitante.
– Sou Lucaza de Barra. Este é o meu primo, Jovanno de Barra, e esta é nossa amiga Verena Gallante. – Como não houve resposta, Locke pigarreou. – Somos os novos atores
de Moncraine. De Camorr.
– Ah, doces deuses do céu. Vocês são de verdade.
– É. E, ahn, estamos molhados e confusos.
– Nós achamos... bom, olha, nós achamos que vocês não existiam. Achamos que Moncraine estava inventando vocês!
– Levamos dez dias numa carroça lenta para chegar aqui – interveio Jean. – Deixe-me garantir que ninguém nos inventou.
– Sou Jenora – apresentou-se a mulher. – E este é Alondo...
– Alondo Razi – completou o rapaz. – Não deveria haver mais de vocês?
– Os irmãos Asinos estão cuidando da carroça, ali do outro lado – explicou Locke. – Portanto, somos de carne e osso. Acho que a pergunta seguinte é: Jasmer Moncraine
existe?
– Moncraine... – murmurou Sylvanus. – Eu não cagaria na cabeça dele para... protegê-lo do sol.
– Moncraine é o motivo pelo qual Sylvanus está... é... dando uma folga na sobriedade neste momento – disse Jenora.
– Moncraine está na Torre do Lamento – informou Alondo.
– O que é isso? – perguntou Jean.
– A prisão mais segura de Espara. Na porta, ficam os Dragões da Condessa, e não a guarda citadina.
– Ah, pelos bagos purulentos do inferno – praguejou Locke. – Ele já foi preso por causa da dívida?
– Dívida? – indagou Jenora. – Não, ele nem teve chance de ser apanhado por causa daquela confusão. Ele esmurrou a cara de um fidalgote insignificante. Foi preso
por agredir uma pessoa de sangue nobre.
Capítulo Seis
O Jogo dos Cinco Anos:
Mudança de jurisdição
1
– Quartofilho Vidalos – disse Josten. – Gostaria que seus pais tivessem parado no terceiro! Quantas noites você passou encostado no meu balcão, hein? Quantas vezes
eu o tirei da chuva para tomar um copo? Seu traidor, seu filho da...
– Pelo amor dos deuses – reagiu Vidalos. – Você acha que eu queria fazer isso? É o meu dever!
– Na frente de metade do Konseil e de todo o Raízes Profundas...
– Josten – interveio Locke, colocando-se entre o estalajadeiro e Vidalos –, vamos conversar. Arauto, como vai? Sou Lazari, consultor.
– Consultor de quem?
– De todo mundo. Sou advogado em Lashane, contratado em âmbito amplo. Peço um momento em particular com mestre Josten, para discutir as opções dele.
– Não creio que ele tenha alguma opção.
– O senhor tem ordens para nos recusar alguns minutos de reflexão?
– Claro que não.
– Então agradeço ao senhor por não cumprir as ordens que não recebeu. – Locke passou o braço com firmeza em volta dos ombros de Josten, virou o atarantado estalajadeiro
para longe do arauto e sussurrou: – Josten, uma coisa: você tem certeza absoluta de que sua licença foi paga?
– Tenho um recibo assinado, nos meus papéis. Eu poderia pegá-lo agora e enfiar no cu azul desse cafetão! Até esta noite eu chamava o sacana de amigo, juro. Jamais
pensaria...
– Não pense – interrompeu Locke. – Eu sou pago para fazer isso por você. O arauto Vidalos não é seu inimigo, mas, sim, quem o chamou para trabalhar e lhe deu a intimação
que de algum modo precisava ser entregue com urgência à décima hora da noite, entendeu?
– Ah. Aaaahhh.
– Nós não deveríamos agredir o pobre coitado cujas botas estão no pavimento. Nossos problemas vêm de cargos mais elevados. Nikoros, venha cá! Olhe este lacre e esta
assinatura.
– Capacidade Peralis. – O suor escorria pela testa de Nikoros em fios brilhantes. – Segunda escrivã, Corte dos Magistrados. Já ouvi falar dela.
– Ela não precisaria de um magistrado de verdade para assinar isso? – perguntou Locke.
– Não. Os magistrados só assinam... é... prisões.
– E isto é só uma espetada na bunda. Ela é do Íris Negra? Ou algum dos superiores dela?
– Segundo minhas listas, não. A maioria das pessoas do tribunal faz questão de não... é... não se declarar a favor de nenhum partido.
– Bom, alguém conseguiu que ela fizesse um favor. – De repente, Locke percebeu que a maior parte da festa, fileiras e mais fileiras de bêbados, estava observando
atentamente para ver se a montanha de bebidas seria mesmo separada deles devido à palavra de um único funcionário nervoso. – Não creio que os membros do Konseil
possam mandar o Vidalos embora, não é?
– Os magistrados são... ahn... equivalentes ao Konseil. Os arautos deles não p-precisam receber ordens de mais ninguém.
– Bom, nossos amigos bêbados vão pendurar esse pobre coitado nos caibros se eu deixar isso seguir em frente. – Locke se virou para Vidalos com um sorriso largo.
– Tudo parece perfeitamente em ordem!
– Isso me dá pouca satisfação – replicou o arauto.
– Imaginei que o senhor ficaria feliz, já que não há nenhuma necessidade de encerrar a festa.
– Tendo entregado a intimação, dói-me informar que devo prosseguir com minhas ordens; devo garantir que mestre Josten tenha encerrado esta função e lacrado suas
portas para novos clientes.
– Peço perdão, mas o senhor não tem permissão de fazer nada disso – insistiu Locke. – Isso é restrição prematura de comércio, que é proibida sob os Artigos de Kartane.
Quem assinou este mandado deveria saber que Josten possui o direito, por lei, à verificação dessas acusações diante de um magistrado...
– Mas...
– Antes da interrupção do comércio! Olhe, isto é uma questão razoavelmente básica, decorrente daquela emenda comercial de mais ou menos... vinte anos atrás.
– Eu... Verdade? – O rosto de Vidalos perdeu parte da cor de ameixa. – O senhor tem certeza? Não sou totalmente familiarizado com isso. E já entreguei várias intimações
semelhantes...
– Eu tenho autorização plena para exercer a profissão em Kartane. A imposição de pena sem verificação adequada dessas acusações iria expor o senhor a censura por
negligência, cuja penalidade seria... bem, claro que o senhor sabe qual seria. Não precisamos falar sobre ela.
– Ah... Ah, claro.
– Então o senhor entregou seu mandado diante do grupo de testemunhas mais digno de crédito que esta cidade poderia ter esperança de produzir. Aceito a intimação
em nome de Josten e requeiro formalmente a verificação das acusações por parte de um magistrado. Como talvez não possamos ter isso até pelo menos amanhã de manhã,
a festa deve continuar.
– Rá! Bem feito! – berrou alguém na multidão. – Dê o fora, meirinho!
– Nada disso! – gritou Locke. – Que vergonha! Este homem é amigo da casa e recebeu a tarefa medonha de entregar a intimação contra a vontade. E ele se recusou? Não!
Obediente ao dever, ele entrou na toca do leão!
– Isso mesmo! – berrou Epitalus. Quer tenha percebido a idiotice de tornar Vidalos desnecessariamente um inimigo ou se apenas desejava que sua voz ressoasse mais
alta em qualquer aclamação, Locke agradeceu. – Kartane deve se orgulhar de ter um sujeito honesto e intrépido a seu serviço!
As pessoas logo imitaram Epitalus. Vaias que mal haviam começado foram substituídas por uma onda crescente de aplausos.
– Lamento minhas palavras ásperas – disse Zelo Josten, impelido para Vidalos por uma cotovelada sutil de Locke. – Perdoe-me e beba um copo conosco.
– Ah, mas... – Vidalos pareceu satisfeito, aliviado e sem graça ao mesmo tempo. – Estou de serviço...
– Certamente não – reagiu Josten. – A intimação foi entregue, portanto seus deveres estão encerrados.
– Bom, se você coloca desse modo...
Josten e vários cúmplices levaram o arauto para o meio da multidão e para o suprimento de bebidas.
– Ah, graças aos deuses – murmurou Nikoros. – Eu não fazia ideia de que você tinha tanto conhecimento das leis kartanis, Lazari.
– Não tenho. Quando o céu está caindo, eu me abrigo embaixo do papo furado. Alguém vai deduzir isso amanhã bem cedo.
– Então esse estatuto não existe?
– É tão falso quanto um homem com três paus.
– Verdade? Maldição! Pareceu tão r-razoável. Mentir a um oficial de justiça é uma ofensa que eles poderiam...
– Não vale a pena se preocupar com isso. Se eu for pressionado, usarei o infalível pedido universal de desculpas.
– Qual é o i-infalível pedido universal de desculpas?
– “Fui muito mal-informado, lamento profundamente o erro, vá se foder com esse saco de dinheiro.” Mas não devemos chegar a esse ponto. A primeira coisa a ser feita
amanhã cedo é falar com essa tal de Capacidade Peralis. Se descobrirem, por mágica, que os papéis de Josten foram “arquivados fora do lugar”, tudo morre antes que
possa atrair mais atenção.
– E se ela não ceder? – perguntou Jean, que estivera rondando os dois.
– Arranjamos outra pessoa. O primeiro escrivão, talvez, ou um magistrado. Amanhã vamos comprar um cantinho da Corte dos Magistrados, haja o inferno ou o fogo dos
Ancestres. Quando os tribunais abrem?
– À nona hora da manhã.
– Esteja diante da nossa porta às oito.
– Ah, é...
– Às oito – enfatizou Locke, reduzindo a voz a um sussurro frio. – Portanto, não enfie mais dessa merda pela garganta esta noite.
– Ah, eu... é... não tenho ideia do que o senhor...
– Tem. Tem, sim. Não me importo que você esteja totalmente doido de Akkadris, mas eu vou colocar uma coleira no seu pescoço e arrastá-lo com ela. Vamos todos juntos
apagar esse fogo antes que ele se espalhe.
2
– Nikoros – murmurou Locke, de olhos remelentos e com o cérebro enevoado enquanto abria a porta do apartamento em resposta às batidas frenéticas. – Que diabo você
quer, homem? Ainda não podem ser oito horas.
– Cinco e pouco. – Nikoros parecia ter sido pisoteado por uma gangue de espíritos da ressaca. Seu cabelo estava desgrenhado, as roupas estavam amarrotadas e as bolsas
sob os olhos podiam ser usadas para guardar moedas. – Eles invadiram meu escritório, Lazari. Como você previu.
– O quê? – Locke piscou para desgrudar bem os olhos e puxou Nikoros para dentro. – Alguém incendiou seu escritório?
– Não, não foi um incêndio criminoso. – Nikoros assentiu para Jean, que passara pela porta que dava à outra suíte; estava com uma camisola de seda preta e carregava
as machadinhas casualmente na mão direita. – O departamento do Mestre Busca-Rato isolou todo o meu maldito prédio para cuidar de uma infestação de aranhas-chupadoras.
Por sorte, eu não estava lá quando eles apareceram, caso contrário receberia um banho alquímico e ficaria de quarentena.
– E seu escriba?
– Ele também conseguiu escapar. Quase tudo foi copiado ou removido a tempo, mas agora vão fumigar tudo com enxofre durante três dias. Não posso usar o lugar até
que eles terminem.
– E você nunca viu nem um pelo de rabo de aranha-chupadora, não é?
– O prédio tem dois anos! É puro como a alma de um bebê.
– Outro cumprimento dos nossos amigos do outro lado da cidade. Quantas pessoas trabalham para esse tal Busca-Rato?
– Cerca de uma dúzia. Alquimistas, andarilhos de esgotos, caçadores de cadáveres. Eles cuidam de todas as coisas pestilentas e sanitárias.
– Como eles são considerados?
– Mestre Bilezzo é um herói! Diabos, até eu acho isso. Ele mantém a cidade extremamente limpa, se for comparar com um monte de outros lugares. Há quarenta anos não
há peste em Kartane, nem mesmo cólera. As pessoas notam esse tipo de coisa.
– Então é uma questão sensível – interveio Jean. – Não poderemos pegar pesado, senão vai estourar na nossa cara. Sab... Alguém da oposição está escolhendo instrumentos
delicados para nos cutucar.
– Precisamos de alguns instrumentos delicados também – observou Locke. – Não teremos tempo de lidar com a eleição se precisarmos correr de um lado para outro mijando
em cima dessas distrações.
– Você acha que eu posso ter meu escritório de volta?
– Hummm. – Locke coçou a barba crescida. – Não. Olhe, Nikoros, sem ofensa, mas, se nós temos você e seus documentos, não precisamos do seu escritório. Deixe que
eles o fumiguem. Nosso serviço, com relação a esse tal de mestre Bilezzo, é garantir que o Josten não seja fechado para um tratamento semelhante.
– Muito bem. Mas eu... ah... meus aposentos... Acho que terei de me hospedar aqui durante alguns dias.
– Pode não ser ruim. Este lugar é o nosso castelo e o cerco foi estabelecido. Por falar nisso, depois de cuidarmos da Corte dos Magistrados, consiga-me alguns advogados
de verdade. De confiança. Presumo que o partido tenha alguns, não?
– Claro.
– Faça com que eles se juntem ao safári aqui, nas melhores suítes que o Josten ainda tiver. Na próxima vez que alguém entrar com mandados, intimações ou os deuses
sabem o quê, quero especialistas em papelada à mão para tecer absurdos autênticos.
– Parece que estamos começando mal.
– Estamos.
– E devo pedir desculpas pelo meu... ah... o senhor sabe. É só uma coisa ocasional, entende? Me ajuda a trabalhar nas noites longas. Eu posso... parar se o senhor...
– Pare. Jogue essa merda fora. Precisamos de você firme e confiável. Cabeças de pó não são firmes nem confiáveis.
– Não sou cabeça de pó.
– Ah, me poupe. Já vi mais cabeças de pó, Mirantes, mijadores, queimadores e lambedores de pedra do que você pode imaginar. Até já me arrastei para dentro de uma
garrafa uma ou duas vezes. Não tente aliviar comigo; só faça um favor a todos nós e fique longe disso. Encharque-se de birita como um membro comum do Raízes Profundas.
– Posso... Como o senhor quiser. Posso fazer isso.
– E não se preocupe com nossa situação. Esta noite vamos estar fortificados com brutamontes e advogados, a maior parte das fechaduras estará trocada, Josten vai
cuidar do pessoal dele... Você vai se sentir melhor assim que nossas defesas básicas estiverem postas. Agora pegue um quarto e durma o quanto puder. Mestre Callas
e eu vamos pegá-lo às oito. E diga a quem estiver de serviço que queremos café suficiente para matar um cavalo.
A empregada que trouxe o café alguns minutos depois usava uma reluzente corrente de latão no pescoço.
– Josten trabalhou rápido – observou Jean, servindo duas xícaras fumegantes. – Quero dizer, com os cordões. Mas você não acredita que isso vai nos livrar de encrencas
verdadeiras, não é? Isso não impediria nós dois, acho.
– O objetivo não é esse. É um obstáculo simples para os burros e azarados. Quanto menos tempo precisarmos perder com idiotas, mais podemos dedicar a todo o resto
que Sabeta fizer.
3
A manhã estava fresca, assombrada por névoa. A água escorria em todas as janelas e os pavimentos estavam escorregadios. Alguns minutos antes das oito, Locke e Jean
puseram Nikoros, que parecia ter dormido pouco, numa carruagem. Locke devorava indelicadamente meio pão cheio de carne fria da festa e já dera cabo dele quando chegaram
à primeira parada da manhã, na Tivoli, para reforçar as moedas das bolsas com algumas centenas de colegas.
Em seguida, chacoalharam em direção ao norte até a Casta Gravina, a antiga cidadela de Kartane, cujas muralhas interiores e cujos portões tinham sido derrubados
anos antes a fim de abrir mais espaço para um governo que não precisava temer algo tão mundano como um exército hostil diante das portas. As praças e os jardins
eram tão belos que a névoa parecia apenas mais uma decoração, artisticamente conjurada e moldada por equipes de jardineiros ambiciosos ao extremo.
– A Corte dos Magistrados – anunciou Nikoros, saindo da carruagem. – Conheço o lugar. Se você quiser ganhar dinheiro na minha área de atuação, vai acabar como parte
ou testemunha em um bom número de processos judiciais.
Locke e Jean o acompanharam atravessando uma praça circular, adentrando a névoa úmida e prateada que se abria alguns passos à frente deles e, atrás, engolia a carruagem
a uma distância igual. A neblina repercutia debilmente os sons de uma cidade acordando: portas se abrindo, cavalos e rodas fazendo barulho, pessoas gritando umas
com as outras.
– O departamento dos escrivães fica logo ali – informou Nikoros.
– UUF!
Uma mulher saiu da névoa à esquerda de Locke e, antes que pudesse reagir, colidiu com ele, firmou-se e foi arrancada ignominiosamente por Jean.
– Deuses do céu! – gritou ela. A voz era rachada, de meia-idade, com sotaque kartani.
– Tudo bem, mestre Callas, tudo bem – disse Locke.
Em seguida, tateou a bolsa e os papéis, confirmando que estavam intocados. A colisão podia não ser inocente, mas a mulher não parecia uma ladra.
– Mil desculpas. A senhora nos deu um susto – falou Jean, soltando-a.
Ela era alguns centímetros mais baixa do que Locke, ampla e pesada, vestida de modo sem graça mas caro. Seu cabelo castanho com fios grisalhos estava preso sob um
elegante gorro de quatro bicos e o rosto estava riscado por todas as preocupações que a haviam perseguido pela vida. Locke rezou em silêncio para que não tivessem
acabado de incomodar uma funcionária que eles poderiam querer subornar.
– Foram os senhores que me assustaram, umas montanhas saindo da névoa como um bando de salteadores!
– Eu não nos chamaria de montanhas, senhora. Alguns de nós simplesmente não têm tamanho para isso – replicou Locke.
– O senhor, talvez, não, mas eu poderia plantar seu amigo grandalhão na rua para sombrear o telhado da minha casa. – Ela ajeitou o casaco com um puxão forte e foi
andando, de cara fechada. – Bom dia, palermas.
– Nikoros, ela é importante? – perguntou Jean.
– Nunca a vi antes.
– Bom, vamos entrar antes que tropecemos em alguém que não possamos nos dar ao luxo de ofender – sugeriu Locke.
O departamento dos escrivães não era particularmente grande, mas era confortável. O purgatório de corredores silenciosos e cadeiras vazias do lado de fora das salas
de escrituração parecia um local decente onde cair no sono. Capacidade Peralis, uma mulher rotunda e atraente com pouco mais de 40 anos, estava rabiscando papéis
atrás de sua mesa quando Locke, Jean e Nikoros entraram na sala.
– Sinto muito – disse ela, afastando, irritada, cachos escuros de cima dos olhos enquanto levantava a cabeça. – Não recebo ninguém antes das dez e meia. Onde está
a secretária do corredor?
– A secretária aproveitou meus excessivos encantos naturais e financeiros – respondeu Locke, que fora encantador no nível de um salário mensal. – Tenho certeza de
que a senhora pode entender.
Locke deslizou para uma das cadeiras diante da mesa de Peralis, e Jean fechou a porta num movimento casual. Nikoros ficou de pé, de lado, e fingiu admirar as paredes.
– Não faço ideia de quem o senhor acha que é...
– Ontem à noite, uma intimação foi assinada e mandada desta sala, uma intimação para o Acomodações Amplas do Josten.
– Se o senhor é advogado de Josten, sabe muito bem quando são realizadas as Audiências Públicas!
– O que eu sei é que algum milagre fez sumirem os registros de pagamento da licença de Josten para vender bebidas fortes, que está perfeitamente em dia. Eu gostaria
que esse milagre fosse revertido. Sei que milagres são coisas caras.
Suspirando por dentro diante da falta de arte dessa abordagem (não havia tempo a perder com sutilezas), Locke passou a mão sobre a mesa, deixando uma cauda de cometa
composta de moedas de ouro.
– Isso se destina a me impressionar? – perguntou Peralis baixinho, ferozmente. Ah, sua versão de Funcionária Pública Honesta Ofendida merecia aplausos! – Tentativa
de suborno de um funcionário público. Você vai abandonar a ousadia quando estiver acorrentado numa parede de cela de interrogatório.
– Santos deuses, que lindo! – exclamou Locke. – Lamento de fato, mas não tenho tempo para esse jogo com a senhora. O que está aqui na mesa é o seu salário anual.
Proponho lhe dar mais seis pagamentos como este, um por semana, até o fim desta eleição. Só peço que mais nenhuma complicação para os negócios do partido Raízes
Profundas seja especialmente conjurada por seu pessoal. Nada mais.
– Bom – reagiu ela, abandonando a fachada de ultraje –, e se um benfeitor da oposição estiver disposto a proporcionar verbas adicionais?
– Notifique-nos. Vamos igualar qualquer coisa que seja oferecida. Nem quero que a senhora aja contra esse outro benfeitor; apenas não tome atitudes contra nós. Invente
desculpas. Sugira que está sendo vigiada, que outros acordos são temporariamente impossíveis. Sem dúvida a senhora pode ver que é um trato muito bom.
– Não é isento de tentações – disse ela, pensativa.
– Pare de bancar a recatada. Só diga sim e ganhe uma fortuna.
– Bom, então... sim.
– Tenho sua palavra de que essa intimação para o Josten é um mal-entendido e que o registro em questão será encontrado, por um acaso felicíssimo, assim que eu sair
desta sala?
– O senhor pode considerar o assunto resolvido.
– Ótimo. Se continuar resolvido na semana que vem, eu venho de novo com mais enfeites para sua mesa. Agora, se nos dá licença, temos uma programação apertada: precisamos
empurrar umas pedras morro acima.
– Sabe – falou Nikoros baixinho enquanto saíam da sala da segunda escrivã –, não quero criticar, mas, se não for necessário qualquer tato específico nessas questões,
eu tenho uma centena de homens e mulheres do Raízes Profundas que podem fazer essas visitas oficialmente...
– Não – interrompeu Locke. – Quando se trata de distribuir dinheiro, deixe nossos amigos oficiais de fora. Guarde-os para áreas em que a autoridade deles for necessária.
Não há sentido em cegar nossas ferramentas usando-as em aplicações erradas.
– Bom, é impossível argumentar com o senhor, mestre Lazari.
– Não é impossível – retrucou Jean placidamente. – Mas ele é quase tão intratável quanto um cágado com fogo no rabo.
– Se quisermos alcançar a oposição – explicou Locke –, temos que ser ousados a cada...
– Ali está ele! É o homem que roubou minha bolsa! – gritou uma voz familiar enquanto Locke emergia de novo na praça coberta de névoa.
A mulher de meia-idade estava ali, flanqueada por dois homens com casacos azul-claros que lembravam o de Vidalos, mas que usavam coletes de couro com rebites de
ferro e tinham porretes pendurados na cintura.
Pelos deuses. Então não havia sido uma colisão inocente, afinal de contas.
– Perdão, senhor – disse um dos guardas, adiantando-se –, mas preciso pedir para ver seus bolsos.
– Uma bolsa de seda preta, com as iniciais “N.V.” em vermelho num dos cantos – completou a mulher. – Há 7 ducados nela. Ou pelo menos havia!
Locke se apalpou apressadamente. Sim, havia um peso novo e fino no bolso esquerdo interno de seu excelente casaco novo. Ele não tinha notado o acréscimo; estivera
satisfeito demais em verificar que nada fora removido. Estúpido, desajeitado, amador...
– Ora, essa é uma acusação intolerável! – cuspiu ele. – Como ousa, senhora, como ousa? E como ousa, senhor, sugerir que um cavalheiro possa ser virado de cabeça
para baixo e sacudido como um reles corta-bolsas!
– Seja razoável, senhor – falou o guarda. – A dama tem uma descrição exata do que foi tirado, e certamente provar que o senhor não está com a bolsa vale um momento
do seu tempo...
– É uma liberdade que ultrapassa a compreensão! Isto aqui é Kartane, e não os ermos sem lei! – Em suas gesticulações furiosas, Locke incluiu uma variedade de rápidos
sinais para Jean. – Eu me sinto muito... eu me sinto bastante... eu me sinto sinto sinto... arrrrrggggggggh!
Locke teve um espasmo e engasgou. Seus olhos se reviraram e ele tombou para a frente gemendo, agarrando o guarda que se aproximava. Alarmado, o homem estendeu a
mão para o porrete. Enquanto Nikoros olhava numa perplexidade muda, Jean saltou entre Locke e o guarda.
– Tenha piedade! – sussurrou Jean. – Não pegue esse porrete, ele está tendo um ataque!
– Nnnnnggggggggghhhhh – fez Locke, espalhando cuspe e balançando a cabeça furiosamente.
– Ele é amaldiçoado! – exclamou o outro guarda, fazendo um gesto contra o mal com as duas mãos. – Ele tem a influência de um espírito!
– Ele não é amaldiçoado, seu maldito simplório. É uma doença – rebateu Jean. – Sempre que fica com as emoções exaltadas, há uma chance de ele ter um ataque e devo
dizer que a senhora o levou a esse estado!
De um modo que parecia perfeitamente acidental e natural (a interferência de Jean era nada menos do que especializada), Locke se afastou dele e do guarda. Sacudindo-se
como uma marionete cujo manipulador estivesse morrendo devido a algum veneno convulsivo, ele tropeçou soluçando na mulher, que berrou e o empurrou para longe. Locke
terminou deitado de costas, com Jean agachado protetoramente acima enquanto ele babava, retorcia-se e chutava o ar.
– Para trás – disse Jean. – Deem um pouco de ar a ele. O ataque vai passar. Num instante ele vai ficar calmo.
Pegando a deixa, Locke reduziu aos poucos a severidade dos sintomas até que só estava tremendo e murmurando baixinho.
– Se for mesmo necessário dar esse tratamento a um cavalheiro – continuou Jean –, sugiro que examine os bolsos dele agora, enquanto ele não voltou completamente
a si.
O guarda contra quem Locke havia tropeçado no início se ajoelhou junto dele e, com cuidado, como se Locke pudesse saltar sobre ele a qualquer momento, revistou seu
casaco.
– Papéis particulares e uma bolsa que não combina com a sua descrição – constatou ele, levantando-se. – Senhora, infelizmente ela não está aqui.
– Ele deve ter largado a bolsa lá dentro! – gritou a mulher. – Reviste o prédio!
– Ora, isso vai além de tudo que é justo – retrucou Jean. – Meu amigo é um cavalheiro e advogado, e a senhora o insulta com essas acusações ridículas!
– Ele é um batedor de bolsas. Ele esbarrou em mim para roubar minha bolsa!
– Esse homem é convulsivo! – berrou Jean. – Ele tem ataques meia dúzia de vezes por dia! Que diabo de batedor de carteira a senhora acha que ele seria? Sacudindo-se,
tremendo e caindo? Deuses!
– Senhora – disse o guarda parado perto de Locke –, ele não está com a sua bolsa e a senhora deve admitir que um cavalheiro com... é... febre de tremedeira não parece
um provável corta-bolsas.
– Verifique o amigo dele. Verifique o grandão.
– Entrego meu casaco com prazer – concordou Jean, lenta e friamente, fingindo ter uma ideia. – Mas devo insistir que a senhora faça o mesmo.
– Eu?
– Sim. Agora sei o que está acontecendo. Fico maravilhado por não ter percebido antes. Há um ladrão trabalhando, senhores, mas é um ladrão usando vestido de mulher,
e não calças de homem honesto.
– Seu verme estrangeiro! – gritou a mulher.
– Guardas, sem dúvida os senhores estão na companhia desta mulher desde que ela os procurou reclamando. Eu verificaria, se fosse os senhores, para garantir que suas
próprias bolsas estão no lugar.
Os guardas se apalparam, e o que estava junto a Locke ofegou.
– Minha bolsa de moedas! Estava aqui, no meu cinto!
– O senhor pode me revistar o quanto quiser – falou Jean, estendendo os braços com as palmas das mãos viradas para cima. – Mas devo insistir que o caminho mais frutífero
seria examinar quem me acusa.
O guarda mais próximo da mulher pôs a mão em seu ombro, murmurou um pedido de desculpas e cautelosamente revirou os bolsos do seu casaco enquanto ela guinchava e
lutava. Depois de um instante, levantou uma pequena sacola de couro com moedas e uma bolsa de seda preta.
– Bordada com as iniciais “N.V.”! – exclamou ele.
– Mas ela estava sumida! – berrou a mulher. – Não achei em lugar nenhum!
– E minha bolsa de moedas, hein? – O primeiro guarda pegou a bolsa de couro com o colega e sacudiu-a para ela. – O que isso estava fazendo no seu bolso?
– Estou totalmente confuso – murmurou o outro guarda.
– É para estar mesmo – afirmou Jean. – Desculpe-me por dizer. Já vi esse número antes. Nossa amiga inofensiva aqui andou roubando bolsas. Sem dúvida ela pretendia
acusar meu amigo por seus feitos, ao mesmo tempo que exercia o ofício com os senhores. Assim, quando o senhor e alguma outra vítima descobrissem os bolsos leves,
já teriam um culpado à mão, pronto para ser acusado. Só posso imaginar que ela tentou colocar a bolsa no meu amigo e não conseguiu. Talvez a idade a esteja alcançando,
não é, senhora?
– Desgraçado mentiroso! – gritou ela, tentando se soltar da mão firme do guarda, mas em vão. – Mentiroso, ladrão, estrangeiro batedor de bolsas!
– Certo, você – disse o primeiro guarda, segurando o outro braço dela. – Não tolero que se aproveitem de mim. Senhores, gostariam de entrar conosco e registrar queixa
também?
– Na verdade – respondeu Jean –, eu gostaria de levar meu amigo para casa, ou talvez para um galeno. Suponho que essa mulher já esteja suficientemente encrencada
por roubar sua bolsa. Posso me contentar com isso.
– E, se precisar de mais alguma coisa de nós – complementou Nikoros, entregando um cartão pequeno branco a um dos guardas –, sou Nikoros Via Lupa, da Isas Salvierro.
Esses homens são meus convidados.
– Muito bem, senhor – respondeu o primeiro guarda, pondo no bolso o cartão de Nikoros. – Desculpem o estorvo. Espero que o cavalheiro se recupere.
– Tempo e ar puro – disse Jean, levantando Locke e sustentando-o sob o braço direito.
– Tempo é a única coisa que ele não tem! – gritou a mulher enquanto os guardas a arrastavam para os escritórios do tribunal. – E vocês dois sabem! Vocês sabem! Vejo
vocês em breve, senhores!
Assim que os três estavam abrigados em segurança na carruagem que se afastava sacolejando pela rua, Locke voltou à vida e explodiu numa gargalhada.
– Obrigado, Nikoros – agradeceu, limpando cuspe do queixo. – Essa última nota de respeitabilidade no fim foi bem o que a cena necessitava para trazer tudo de volta
à terra.
– Fico num tremendo regozijo ao saber. Mas o que diabo aconteceu?
– A mulher enfiou uma bolsa no meu casaco quando tropeçou em mim. Obviamente pretendia fazer com que eu fosse preso como ladrão. Eu verifiquei se faltava alguma
coisa, mas, feito um idiota, não pensei em procurar algum presente inesperado. Ela quase me pegou.
– Quem era ela?
– Não faço ideia – respondeu Locke. – Trabalha para a nossa contrapartida, obviamente. E é uma joia... Qualquer um que possa chegar àquela idade enfeitiçando casacos
para viver conhece a profissão. Vamos vê-la de novo.
– Ela vai estar numa cela escura e fria.
– Ah, ela vai escapar daqueles dois idiotas em cinco minutos – garantiu Jean. – Haverá acordos. Acredite em nós.
– Sinto vergonha em admitir que eu pensei mesmo, por um momento, que você... ah... estava genuinamente doente, Lazari.
– Não tivemos tempo para avisar. Fingir um ataque é um teatro grosseiro, mas é surpreendente como funciona.
– Como vocês adivinharam que ela havia roubado a bolsa do guarda?
– Não adivinhamos – respondeu Locke com um risinho indulgente. – Eu peguei emprestada quando tropecei nele.
– Em seguida, passou-a para a nossa amiga, junto com a bolsa dela, quando tropeçou nela – completou Jean.
– Deuses do céu! – exclamou Nikoros.
– E não pense que ela não percebeu – acrescentou Jean. – Mas só há uns poucos modos de esbarrar os peitos em estranhos antes que isso comece a parecer esquisito.
– Não somos espertos? – perguntou Locke, examinando preguiçosamente seus bolsos de novo. – E tenho certeza de que ainda tenho... tudo. Pelos santos infernos!
Havia um pedaço de pergaminho dobrado, lacrado com cera, em seu bolso esquerdo interno. Ele pegou-o e olhou.
– Isso não estava no meu bolso quando saí pela porta! Ela... ela colocou em mim no momento em que eu lhe passava as duas bolsas!
Jean deu um assobio baixo enquanto Locke rompia o lacre e abria o pergaminho apressadamente. Leu o conteúdo em voz alta:
Mestres Lazari e Callas
Creio que desculparão o modo pouco ortodoxo pelo qual esta carta chega às suas mãos. Os chefes do correio de Kartane, por mais empreendedores que sejam, raramente
fazem a entrega direto no bolso interno de um cavalheiro. Apresento meus cumprimentos e desejo que se apresentem a mim à sétima hora desta tarde, no Marco da Íris
Negra, no Vel Vespala.
Sua mais afetuosa servidora...
– Verena Gallante – disse Locke com um sussurro áspero. Seu coração pareceu se expandir e preencher todo o peito com as batidas. – Ela quer... Ah, pelos deuses...
Ele olhou pela janela, esticando o pescoço furiosamente para enxergar atrás, na névoa prateada e cheia de redemoinhos, onde, claro, não havia nada significativo
a encontrar.
– O que é? – perguntou Nikoros.
– Não havia nenhuma estranha de meia-idade. Era ela.
– Quem?
– A oposição – respondeu Locke, acomodando-se no banco, atordoado. – Nossa contrapartida. A mulher de quem falamos.
– Verena Gallante?
– Parece que é a alcunha atual dela.
– Nossa, as iniciais na bolsa de seda... Isso foi mesmo descarado.
– Se ao menos não fôssemos burros demais para notar imediatamente!
– Não vejo como “Verena Gallante” possa ter as iniciais “N.V.” – replicou Nikoros.
– É um assunto particular – explicou Locke. – Eu tenho... Nós temos uma história com essa mulher.
– O que devemos fazer agora?
– Agora você pode mandar nosso cocheiro para onde quer que fique o escritório desse tal Chefe Busca-Rato e, depois de convencê-lo a parar de ser um chato, o senhor
e mestre Callas podem arranjar os brutamontes dos quais falamos ontem.
– E você?
– Eu, bem... – falou Locke, passando a mão na barba crescida. – Preciso achar um barbeiro.
4
A entrevista não anunciada com o Chefe Busca-Rato demorou menos tempo do que a conversa alongada nas salas do tribunal. Após a troca de cumprimentos inicial e da
súbita aparição de uma pilha de ducados na mesa de Bilezzo, logo ficou claro para Locke e Jean que ele era um sujeito presunçoso, do contra, satisfeito consigo mesmo,
que estava se divertindo com a chance de ser inofensivamente malicioso com seus poderes cívicos de longo alcance.
Os Nobres Vigaristas decidiram corrigir sua atitude no modo camorri tradicional. Locke dobrou o suborno proposto enquanto Jean agarrava Bilezzo pelas lapelas, raspava
o teto com sua cabeça e se oferecia animadamente para pregar sua língua na traseira de uma carruagem e chicotear os cavalos pela cidade.
Nenhum funcionário público de meia-idade numa posição confortável poderia recusar essas gentilezas e eles se separaram com um arranjo mutuamente satisfatório. Os
homens de Bilezzo continuariam (em nome das aparências) a fazer a fumigação inútil no prédio de Nikoros, Locke conjuraria pilhas de ouro para garantir que isso não
acontecesse de novo ali nem em qualquer outro lugar de valor para o partido Raízes Profundas e Jean pouparia Bilezzo do passeio de carruagem indesejado.
Nikoros saiu da reunião conhecendo várias palavras novas, além de novos usos para outras familiares, e uma fascinante reviravolta na arte da negociação, que sua
formação anterior havia deixado de fora.
5
Locke retornou sozinho à estalagem de Josten antes da segunda hora da tarde, com o ar do outono fresco no rosto recém-barbeado, mastigando o último da meia dúzia
de bolos que tinha pegado para o almoço.
O lugar estava num ótimo estado de quase pandemônio, com ferreiros realizando cirurgias em pelo menos três portas visíveis, enquanto a multidão costumeira de empresários
se agitava comendo, gritando, negociando ou simplesmente tentando manter o ar de importância. Ao mesmo tempo, dava-se continuidade ao negócio comum e legítimo do
Raízes Profundas. Locke e Jean haviam concordado que não era necessário os dois supervisionarem todos os detalhes do Comitê, para não enlouquecerem ao mesmo tempo
que enlouqueciam todo mundo ao redor.
Porém, acontecimentos incomuns e retrocessos faziam parte do seu trabalho, e Locke não tinha dado cinco passos depois de passar pela porta da frente quando um pequeno
bando de mensageiros e ajudantes de Nikoros baixou sobre ele balançando pedaços de papel. Locke folheou-os enquanto andava entre a multidão e subia para a galeria
particular do partido.
Guardas haviam detido vários apoiadores importantes do partido por bebedeira em público. Um organizador distrital tinha jogado as economias de toda a vida numa bolsa
e fugido da cidade logo antes do amanhecer, por motivos desconhecidos. Um candidato à cadeira da Isas Vadrasta iria travar um duelo no dia seguinte e não havia um
substituto de qualidade caso ele terminasse cheio de buracos. Locke suspirou. Relatos de baixas, por todos os deuses, como se ele fosse um capitão num campo de batalha!
A mão de Sabeta podia estar em qualquer uma daquelas coisas, ou em nenhuma delas. Sem dúvida a lista de complicações só ficaria maior à medida que as semanas passassem.
– Aqui está mestre Lazari – disse Jean enquanto Locke subia o último degrau até a galeria particular.
Jean e Nikoros estavam parados diante de um grupo de oito homens. A maioria parecia capaz, aos olhos de Locke: valentões, óbvios ex-policiais e alguns com o bronzeado
intenso e os rostos desgastados de guardas de caravanas. Todos assentiram ou murmuraram cumprimentando.
– Temos dicas para algumas mulheres também – sussurrou Jean no ouvido de Locke. – Guarda-costas. Nikoros as encontrou; vai trazê-las amanhã.
– Ótimo. – Locke balançou os pedaços de papel para Jean. – Já viu isso?
– Se são as notas sobre os pés no saco de hoje, sim. Tem alguma coisa para dizer aos nossos novos amigos?
– Queremos vocês contentes – afirmou Locke aos homens. – Queremos que sintam que estão sendo bem tratados. Se isso não acontecer, avisem-nos. Se alguém ameaçar vocês
ou se fizerem uma oferta... vocês sabem do que estou falando... tragam a nós. Discretamente. Garanto que faremos um acordo melhor.
Não havia sentindo em mencionar consequências ou fazer ameaças – pelos deuses, não. Fazer isso em público era sinal certo de insegurança. As ameaças, quando necessárias,
seriam algo particular. Se aqueles homens fossem bons de verdade, apreciariam não ser tratados como idiotas.
– Vão procurar o Josten – falou Jean. – Comam alguma coisa. Vou organizar os turnos assim que vocês tiverem comido.
Enquanto os homens saíam da galeria, Jean se virou para Locke.
– Aonde você foi se barbear, em Lashane?
– Eu não pretendia ficar fora tanto tempo. Só... ahn, pensei em mandar o cocheiro passar comigo em alguns dos lugares do Íris Negra que o Nikoros listou para nós.
Para ver se havia alguma coisa interessante acontecendo.
– Estava procurando por ela, não é?
– Ahn... é. Mas não a vi em nenhuma rua. – Locke passou a mão pelo queixo pela vigésima vez. – Como está?
– O quê?
– A barba feita.
– Como uma barba feita. Ótima.
– Tem certeza?
– Pelo amor de Perelandro. Você teve o pelo de pêssego raspado com uma navalha; não encomendou um busto em mármore.
Locke amarrotou os bilhetes que estivera segurando e colocou-os num bolso do casaco.
– Bom, olhe, se você está com os novos capangas à mão e se já ouviu as novidades, eu... é... vou para o quarto... me preparar.
– Você tem pelo menos quatro horas antes de precisarmos sair.
– É, mas, se eu não começar a andar nervoso de um lado para outro agora, nunca terminarei a tempo.
6
– Como está?
Quase exatamente quatro horas depois, Locke estava parado diante de um espelho de corpo inteiro na suíte, mostrando uma ligeira variação no modo de amarrar o lenço
preto no pescoço.
– Parecem roupas – respondeu Jean, que se vestira quase uma hora antes e agora estava largado numa cadeira de encosto alto, fazendo malabarismos agourentos com uma
machadinha numa das mãos.
– Afetado demais? Oriental demais?
– Você percebe que já enrolou essa porcaria no pescoço pelo menos uma dúzia de vezes?
– É que não parece certo.
– Você percebe que nem tinha nenhuma dessas roupas até ontem? Por que está preocupado com o significado profundo de roupas que são mais novas do que parte da bosta
que está sendo digerida nessa sua pança magra?
– Porque não consigo evitar, e sei que não consigo evitar, e isso não ajuda, entendeu?
– Entendi – respondeu Jean baixinho. – Tudo bem. Mas não adianta eu dar tapinhas nas suas costas por causa do nervosismo. Você precisa empinar o queixo e achar que
está pronto em algum momento.
– Nervoso. Eu gostaria de estar nervoso! Nervoso eu fico quando pessoas armadas tentam me matar. Isso aqui é outra coisa. Deuses, já faz cinco anos. Ela poderia...
Eu só... Eu nem... – Ele fechou os olhos e se encostou na moldura do espelho.
– Seria bom você treinar para terminar as frases. Ouvi dizer que as mulheres acham isso irresistível.
– Cinco anos. – Locke ergueu os olhos e a expressão assombrada no espelho parecia uma autoacusação. – Terei que contar a ela sobre Calo e Galdo.
– Talvez ela já saiba.
– Duvido. Ela estava brincando com a gente hoje de manhã. Só não acho... que ela teria feito isso. Eu não teria feito, no lugar dela.
– Cinco anos separados e você imagina que tem um humor tão parecido com o dela? Vocês tinham quando estavam juntos?
– Bom...
– Você e eu temos sorte de estar vivos para ao menos vê-la. Lembre-se disso. Quanto ao que aconteceu enquanto ela estava longe, a decisão de ir embora foi dela,
assim como a de ficar foi nossa.
– Eu sei. Na minha cabeça. A mensagem ainda não chegou às entranhas. Parece haver um homenzinho minúsculo lá dentro me atacando com penas. Agora... joias. Eu deveria...
– Deuses do céu. – Jean se levantou da cadeira. – Você acha que ela vai se jogar por uma janela se seus sapatos tiverem fivelas demais?
– O senso de moda dela pode ter ficado mais extremado desde que nos vimos pela última vez.
– Pare de se fazer de idiota babão. Encontre o caminho para a porta.
Saíram do quarto, foram para o corredor principal, passaram pelo bar e pelas mesas ocupadas pelo pessoal de Nikoros com suas listas, planos e tarefas chatas. Deuses,
ele estava mesmo indo! Seus joelhos pareciam feitos de algodão molhado; a pulsação, o som do oceano nos ouvidos.
Novos advogados olhavam da galeria do Raízes Profundas; novos capangas o examinaram na porta da frente; novas correntes reluziam no pescoço de todos os garçons.
Tantos cordões de segurança bem armados contra todas as possibilidades e ali estavam ele e Jean, planejando uma visita social ao coração do poder de Sabeta.
Em voz alta, ele teria o cuidado de dizer “a oposição” ou “sua contrapartida”, mas na privacidade dos próprios pensamentos não havia como se esconder dela.
Nikoros encontrou-os e os levou à porta.
– Você estava certo com relação aos guardas e advogados – sussurrou ele. – Estou me sentindo melhor!
– Ah... ótimo, ótimo – respondeu Locke, com vergonha da própria distração.
– Agora que temos alguma segurança – interveio Jean, assumindo imediatamente o peso de confiança e autoridade que Locke deixara escapar –, é hora de começarmos a
entregar aos nossos amigos algumas dificuldades também. Pense nisso para nós, está certo? Pontos fracos que possamos explorar, rápidos e fáceis.
– O prazer será meu. Sabe, em apenas dois dias isto já ficou mais interessante do que qualquer coisa que aconteceu da vez anterior. Vou esperar por vocês, está bem?
Adoraria descobrir que tipo de mulher nossa... ahn... oposição é.
– Nós também – disse Jean.
7
A ida de carruagem através das úmidas cortinas de névoa do anoitecer não contribuiu para os nervos de Locke, mas, à medida que os minutos passavam, ele se dominou
bastante bem, pensou, a ponto de ser capaz de falar frases simples e de andar.
O Vel Vespala, o Terraço Vespertino, era um dos bairros mais elegantes de Kartane, com praças salpicadas de tavernas, casas de tavolagem, cafés e bordéis. Todos
esses lugares não passavam de luzes turvas, cor de âmbar e água-marinha em meio à névoa, enquanto a carruagem de Locke e Jean parava diante do Marco da Íris Negra,
o lugar que Nikoros e seus amigos chamavam de Taverna do Inimigo.
– Tudo bem, então – disse Locke. – Aqui nós...
– Não vou demorar quinze minutos para sair da carruagem – cortou Jean. – Saia pela porta com os próprios pés ou de cabeça pela janela. Pense rápido.
Locke conseguiu realizar a primeira opção.
O Marco da Íris Negra era um lugar confortável, não tão grande quanto o Acomodações do Josten, porém talvez mais luxuoso, com o lambris de madeira ligeiramente mais
ricos, o mármore dos acabamentos exteriores um pouquinho mais brilhante. Sem dúvida a rivalidade entre as duas estalagens mantinha os bolsos de muitos artesãos kartanis
admiravelmente recheados.
A distração nervosa de Locke foi diminuindo à medida que seus antigos instintos de rua voltavam à vida. O porteiro não era nada de especial, mas os dois homens no
fundo do saguão na penumbra eram interessantes. Não estavam à vontade em suas roupas finas, e que coincidência dois sujeitos com aquelas cicatrizes e os narizes
tortos passarem tempo juntos! Eram capangas com certeza. Sabeta também havia posto cães de beco para guardar seu covil.
– Ahh, senhores. – Um tipo de criatura bastante diferente entrou no saguão para recebê-los. Tinha cabelos prateados, era magro feito uma bainha de espada, com uma
flor preta murcha presa na lapela direita do casaco. – Primeirofilho Vordrata. Sou secretário confidencial da Sra. Gallante. Os cavalheiros realmente se movem a
passo tranquilo. Ela já está esperando os dois há algum tempo, sim, algum tempo mesmo.
– Eu observaria – replicou Jean, indicando um relógio mecânico na parede do saguão – que ainda não são nem cinco para as sete.
– Claro. Eu não fiz qualquer reflexão quanto à precisão do relógio, humm? – As rugas nos cantos da boca de Vordrata subiram uma fração de centímetro.
Então ele era desse tipo de sujeito, metido a besta e irritante, incapaz de resistir a se divertir com pilhérias sem graça. A concentração de Locke assumiu um foco
mais nítido ainda à medida que aumentava a ânsia de bater a cabeça de Vordrata contra a porta.
– Venham, ela deseja vê-los. Em particular.
Locke e Jean o acompanharam até um corredor no andar de cima. Passaram por tantos homens e mulheres que não poderiam estar percorrendo o caminho mais rápido para
uma audiência particular... Ah, mas claro, todos examinavam Locke e Jean com indiferença fingida. Captando vislumbres de rostos, corpos e maneiras, para o caso de
os dois tentarem outra visita sem convite. Era lisonjeiro, de fato.
No fim do corredor, Vordrata segurou uma porta aberta. O espaço do outro lado estava na penumbra, iluminado pelo brilho dourado de pequenas lâmpadas em várias mesas.
Um espaço de jantar privativo, com janelas altas dando para a névoa do fim de tarde.
Havia uma mulher de pé, sozinha, na outra extremidade da sala, com o cabelo comprido solto, uma cascata de cobre escuro caindo até o meio das costas. Ela se virou
lentamente e, antes que Locke soubesse o que estava acontecendo, ele e Jean haviam passado pela porta, que se fechou com um estalo, e Sabeta vinha na direção deles
pela passagem sombreada entre as fileiras de lâmpadas.
8
Ela usava uma jaqueta de veludo cor de sangue, um pouquinho mais escura do que o cabelo. A roupa tinha o ar de uma vestimenta de montaria, estreitando-se para enfatizar
a cintura fina, e por baixo da saia comprida e escura ela calçava botas de couro bastante usadas. Uma echarpe, branca como penas de pombo, estava apertada em volta
do pescoço. Com exceção de uma única íris de lapela, igual à de Vordrata, ela não usava qualquer ornamento a não ser o contraste: a combinação harmônica de pele,
echarpe, cabelo e casaco. Havia feito de si mesma uma paleta de artista, enfatizando uma beleza que tinha florescido nos cinco anos de separação.
Locke se adiantou a Jean e tirou as luvas de couro com as mãos trêmulas. Cinco anos de sonhos e planejamentos para aquele momento o abandonaram instantaneamente,
deixando-o sem nada além de um olhar hipnotizado e meio imbecil e do ar na garganta.
– O-olá.
– Oi, Locke.
– É. Sabeta. Olá. Ahn.
– Queria dizer alguma coisa mais grandiosa e inteligente, não é?
– Bom... – A voz normal dela, sem afetação, sem disfarces, sem sotaque, era como um copo de conhaque engolido por um estômago vazio. – O que quer que eu fosse dizer
parece que tinha um compromisso longe daqui.
– Você vai lembrar quando menos estiver esperando. – Ela sorriu. – Então escreva e mande para mim. Vou ler de modo favorável.
Pouco mais de um metro os separava agora e, no rosto de Sabeta, ele podia ver a alquimia peculiar do tempo: cada linha estava onde devia estar, mas toda a suavidade
e magreza de menina haviam sumido. O corpo e as feições estavam mais cheios. Os olhos tinham mudado, passando de um castanho animado para outro mais verdadeiro,
mais escuro, um tom que se refletia um pouco no cabelo.
– Tome minhas mãos – pediu ela, e gentilmente redirecionou os dedos dele quando Locke tentou entrelaçá-los com os seus.
Ficaram parados palma contra palma enquanto Sabeta retribuía seu olhar; o toque dela era macio e seco. Por um momento de pura ansiedade, Locke achou que ela poderia
puxá-lo num abraço, mas Sabeta manteve uma distância respeitável entre os dois.
– Você está magro demais – afirmou ela, perdendo parte da postura dominadora.
– Andei doente.
– Disseram que você foi envenenado.
– Quem disse?
– Você sabe. E você não tem pegado sol. Sua cor de vadrã está aparecendo.
– Parece que voltamos às nossas raízes.
– Ah, está falando do cabelo?
– Não, da parte de trás dos seus joelhos. Claro que estou falando do cabelo.
– É estranho. Já usei cada tom de preto, castanho e louro nos últimos anos, por isso consigo me disfarçar melhor voltando ao natural. Isso agrada a você?
– Você sabe que isso me distrai de modo infernal. – Locke sentiu-se ruborizar. – Me deixa numa tremenda desvantagem.
– Eu sei – disse ela, de novo permitindo-se um leve sorriso. – Talvez eu quisesse que nós estivéssemos em terreno familiar esta noite.
Sabeta soltou suas mãos, fez uma meia reverência brincalhona e passou por ele.
– Olá, Jean. Você perdeu toda a barriga e ganhou todos os ombros, acho.
– Olá, Sabeta. – Ele estendeu a mão esquerda. – Você ganhou muito e não perdeu nada, que eu possa ver.
– Querido. – Sabeta segurou a mão dele, e suas sobrancelhas se arquearam quando ele a segurou pelo antebraço e o apertou num cumprimento educado. – O que é isso?
Cinco anos separados e de repente eu não passo de uma relação comercial?
Locke mordeu o lado interno do lábio enquanto ela envolvia Jean e encostava a cabeça nas lapelas do casaco dele. Após uma brevíssima hesitação, Jean retribuiu o
gesto, enlaçando-a com facilidade; seus braços até se sobrepuseram no meio das costas.
– Só preciso de um momento para garantir que tudo ainda está no meu bolso – disse ele enquanto se separavam. Ela gargalhou. – O quê, você não acha que estou falando
sério?
Jean examinou o casaco cuidadosamente. Não se incomodou em rir para amenizar o momento.
– Ahh – disse Sabeta, afastando-se dos dois e entrelaçando as mãos diante do corpo. – Quanto tempo vocês demoraram para deduzir?
– Cerca de um minuto – respondeu Locke.
– Nada mau.
– Foi um minuto a mais do que deveria. As iniciais naquela bolsa extremamente descaradas. Mas o disfarce era excelente.
– Você gostou? Ótimo. Não foi fácil tirar alguns centímetros da minha altura.
– É uma das coisas mais difíceis num disfarce – concordou Locke, assentindo. – Você estava se exibindo.
– Não mais do que você antes de terminarmos. Continua fingindo doença em público.
– Funcionou – retrucou Locke. – De certa forma. Mas você já tinha visto isso, então não foi apanhada desprevenida demais.
– Sim, e vocês dois devem lembrar que ainda entendo a maioria dos seus sinais de mão.
Locke e Jean se entreolharam; o fato de compartilharem essa negligência pouco servia de consolo.
– Essa lembrança eu lhes dei de graça – comentou ela.
– Então por que você fez aquilo? – perguntou Locke.
– Eu queria ver vocês dois – respondeu ela, desviando o olhar. – Descobri que estava impaciente. Mas não estava pronta para... isto aqui, ainda.
– Nós poderíamos chegar um pouco tarde para esse encontro se eles tivessem nos jogado numa cela – observou Jean.
– Você está insultando todos nós. Como se não pudessem ter se livrado daqueles imbecis antes do almoço. Afinal de contas, seu amigo Josten ainda está com a licença
para bebidas fortes. Sem dúvida vocês dois não se esqueceram de como se manter em alerta.
– Aquilo foi uma gracinha – comentou Locke.
– Assim como a reação de vocês. Para mim é um espanto ver quantas pessoas são tão dispostas a acreditar nas leis sob as quais vivem.
– Elas não tiveram as nossas vantagens. De qualquer modo, você não deveria ter mandado um sujeito gordo e afável para aquele tipo de trabalho. Deveria ter posto
a intimação nas mãos de algum pau de barraca enrugado como o seu Vordrata.
– Ele não é um tesouro? Uma tremenda vaca seca e metida a besta. Ele não deve ter passado mais de um minuto com os dois e aposto que vocês seriam capazes de se arrastar
por cima de vidro quebrado só para dar um chute nas partes preciosas dele.
– Mostre onde está o vidro – murmurou Jean.
– Talvez... assim que ele tiver me dedicado umas boas seis semanas de trabalho. – Sabeta jogou o cabelo para trás e encarou Jean. – Será que posso pedir para...
você deixar Locke e eu sozinhos um instante? Eu orientei Vordrata a colocar uma cadeira do lado de fora da porta.
– Não sei se me sinto confortável com isso.
– Então não se sente nela.
A única resposta de Jean foi pigarrear.
– Será que posso observar – insistiu Sabeta – que a última chance razoável que vocês tiveram de ser cautelosos foi quando saíram da carruagem? Eu poderia ter vinte
pessoas armadas agachadas na sala ao lado. Se tivesse, por que me incomodaria em pedir privacidade?
– Bom... – Jean suspirou. – Acho que posso fingir educação.
Ele saiu num instante. A porta se fechou com um estalo, deixando Locke e Sabeta sozinhos com 1,20 metro de piso escuro entre os dois.
– Será que eu ofendi o Jean? – perguntou Sabeta.
– Não.
– Ele pareceu satisfeito ao me ver por um momento e agora está azedo.
– Jean... Jean conheceu alguém. E a perdeu do pior modo possível. Por isso não pense... É só que ele não consegue ficar muito à vontade com as questões que existem
entre mim e você.
– A que questões você poderia estar se referindo?
– Por favor, não faça isso.
– O quê?
– Me pedir para dar nome aos meus problemas como se eles fossem desconhecidos.
– O instrumento com o qual você está me confundindo se chama espelho, Locke. Eu não reflito seus sentimentos tão bem quanto você parece imaginar, por isso acho que
você precisará dar o nome deles, para o bem de todo mundo.
– Cinco anos, Sabeta. Cinco anos!
– Eu sei contar! E daí? Não estou pulando nos seus braços, não estou rasgando suas roupas embaixo dessas mesas. Você pode ter notado que eu passei esses cinco anos
sem me arrastar de volta para Camorr à sua procura. Nem encontrei você exatamente agarrado aos meus calcanhares!
– Eu queria... Eu queria...
– Você queria. Esta é uma moeda sem valor, Locke. O passado não é uma coisa que nós podemos negociar. Eu posso não ter voltado para você, mas sem dúvida você não
correu atrás de mim.
– Houve dificuldades.
– Ah, então você é o homem cuja vida desenvolve complicações! Eu ansiei muito para encontrar você; o resto de nós aqui neste mundo teve a vida fácil demais, infelizmente.
– Calo e Galdo morreram.
Sabeta se encostou na mesa mais próxima, cruzou os braços e olhou pela janela durante um tempo.
– Eu suspeitei – disse por fim.
– Porque Jean e eu viemos sozinhos para Kartane?
– Passei por Camorr há cerca de um ano. Achei melhor não me anunciar. O lugar está como nos velhos tempos, antes do Barsavi. Trinta Capas e nenhuma Paz Secreta.
Ouvi dizer umas coisas confusas... Que vocês tinham sido expulsos pelo usurpador de Barsavi e ninguém viu vocês desde a confusão.
– O martelo baixou sobre todo mundo. O Capa Raza nos usou, depois nos traiu. Era para todos nós morrermos, mas eles só conseguiram pegar os Sanzas. E um amigo mais
novo... Nós tínhamos um novo aprendiz. Você teria gostado dele.
– Bom, você certamente foi um garrista fantástico para ele, não foi?
– Eu teria morrido, Sabeta, teria morrido se isso os salvasse! Não tive uma chance, porra. E você foi de uma tremenda ajuda, aonde quer que tenha ido...
– Como eu poderia ficar? Como poderia ajudar você a fingir que mantinha a casa? Você queria tudo igual: o mesmo refúgio de vidro, o mesmo templo, as mesmas tramas,
e agora fico sabendo que você até começou a pegar aprendizes. Garotos, claro.
– Essa é a coisa mais injusta...
– As raízes servem para os vegetais, Locke, e não para os criminosos. Correntes já tinha pontos cegos suficientes, muito obrigada. A última coisa que eu poderia
fazer era saracotear de mãos dadas com sua imitação pálida. Eu poderia viver tendo você como parceiro. Como sacerdote, garrista, figura paterna, não. Nem por um
instante! Deuses, a porra daquela pilha de dinheiro que o Correntes deixou para nós foi a pior maldição que ele poderia ter sonhado, nem se passasse a vida inteira
planejando isso. Eu gostaria que ele tivesse jogado tudo no mar. Gostaria que nós mesmos tivéssemos queimado aquele templo.
– Nós o queimamos. E eu joguei o dinheiro no mar.
– Como assim?
– Eu fiz todo ele afundar no Porto Velho de Camorr. Como oferenda de morte para Calo e Galdo.
– Tudo se foi mesmo?
– Para os tubarões e os deuses, até a última moeda de cobre.
– Obrigada por isso – sussurrou ela, e esticou o braço, encostando o dorso da mão direita no rosto dele.
Locke inspirou, trêmulo, estendeu a mão e sentiu o sangue esquentar quando Sabeta não afastou a pressão de sua mão sobre a dela.
– Por ter perdido tudo? – perguntou.
– Pelos Sanzas.
– Ah.
– Você ganhou algumas rugas desde que eu o vi pela última vez.
– Foi um envenenamento ruim. E não foi o primeiro.
– Não imagino como alguém tão charmoso e fácil de lidar como você poderia incitar alguém a envenená-lo. Eu sinto muito pelo Calo e pelo Galdo. Sinto muito por não
estar lá para ajudar. Se é que isso vale alguma coisa.
– Acho que eu sinto muito por ter sido um garrista de merda.
– Talvez, numa vida melhor, eu pudesse ter ficado para ver essas rugas surgirem em você. Talvez eu mesma poderia colocá-las – falou ela com um sorriso minúsculo.
– Mas eu expressei meus sentimentos da forma mais clara possível antes de optar por ir embora.
– Francamente, às vezes eu ficava surpreso por você ter permanecido tanto tempo com a gente.
– Eu não consegui reunir coragem para partir de uma hora para outra. – Ela baixou a mão e a fez escorregar para longe da dele. – Quando o Correntes morreu, você
achou que precisava preservar tudo como era. Congelar nossa vida em âmbar. Talvez esse fosse o seu jeito de cumprir com o luto. Não podia ser o meu.
– Bem, eu, ahn... rastreei você até Ashmira. Nunca disse isso a ninguém, a não ser ao Jean. Eu tinha alguém lá que me devia um favor. Depois disso...
– Venha cá. – Ela puxou a cadeira mais próxima. – Sente-se. Nós estamos sendo muito reservados.
– Essa é a cadeira que tem o alçapão embaixo?
– Ah, não seja idiota. Escolha a que quiser.
Locke puxou uma cadeira da mesa no seu lado do corredor e colocou-a perto da que Sabeta havia oferecido. Sinalizou para ela sentar-se primeiro e depois se acomodou,
virado para a porta. Não estavam exatamente de frente um para o outro, mas voltados para dentro, em ângulo, com os joelhos quase se tocando.
– Eu fiz o que tinha planejado – continuou Sabeta. – Circulei no Reino dos Tutanos. Comecei em Emberlane e fui para o oeste, dando golpes em solteiros ricos e em
lordes casados querendo pular a cerca.
– Eles inventaram um nome lendário para você?
– Tenho certeza de que inventaram um monte de nomes para mim. – Ela deu um sorrisinho. – Mas, quando eu estava no meio daquilo, decidi que era melhor ficar anônima
do que criar um mito.
– Você sabe que não fui eu que comecei com aquela besteira do Espinho de Camorr...
– Paz, Locke, isso não foi uma censura.
– Então por que saiu dos Tutanos? Ficou entediada?
– Os Tutanos estão ficando perigosos. Emberlane pretende se separar do resto. Todos os cantões estão afivelando os cintos das espadas. Pareceu um bom momento para
sair.
– Eu ouço isso há anos. Emberlane está sempre a ponto de uma secessão. O rei sempre está para despencar. Até usei esse absurdo como base para um golpe. Diabos, acho
que a paz nos Tutanos vai durar mais do que eu.
– Então deve estar planejando morrer no mês que vem, ou daqui a dois meses. Confie em alguém que esteve lá, Locke. O antigo rei não tem herdeiros e está caduco.
Não é segredo para ninguém que ele ordenou que o conselho privado escolha o sucessor quando ele enfim morrer.
– E isso implica que haverá uma guerra?
– Há cerca de dez famílias nobres que têm direito ao voto, e cem que não têm. Você acha que elas não vão preferir simplesmente sacar espadas e partir para o trabalho?
Elas vão estar afundadas em cadáveres até os quadris assim que começarem a trocar opiniões.
– Sei. Então você estava se livrando daquilo e recebeu uma oferta de trabalho para uma temporada aqui em Kartane?
– Eu estava saindo de Vintila. Num momento, sozinha na minha carruagem; no outro, conversando com um Mago-Servidor.
– Sei como é. – Locke respirou fundo antes de fazer a pergunta seguinte: – E... ele contou sobre Jean e eu antes de você aceitar o serviço? Quero dizer, contou que
você seria posta contra nós?
– Contou.
– Antes...
– É, antes. E eu concordei mesmo assim. Você quer um momento para pensar muito, muito a sério antes de continuar com este assunto?
– Eu... Você está certa, não tenho motivos para dizer nada.
– Nós não somos inimigos, Locke; somos rivais. Certamente nós dois estamos acostumados com esta situação. E, diga, como você teria reagido se as posições fossem
invertidas?
– Se eu não aceitasse, estaria morto.
– Bom, se eu não tivesse dito sim, ainda estaria em algum lugar dos Tutanos com os agentes de Graf kul Daros um passo atrás de mim. Devo confessar que não consegui
sair com tanto dinheiro ou anonimato quanto esperava. Na verdade, eu... amenizei a descrição da bagunça que deixei para trás. Desculpe.
– Jean e eu... também não estávamos saindo de um dos nossos golpes mais lucrativos.
– Então nenhum de nós tinha um motivo sensato para recusar este serviço. – Sabeta se inclinou à frente. – Os magos se ofereceram para me tirar de lá. Para apagar
os rastros, me ajudar a desaparecer em completa segurança. Esse foi o lado deles no negócio. E, de minha parte, a chance de reencontrar você e Jean era agradável.
– Agradável?
– Sem dúvida você acha essa palavra amena. Mas esta conversa é curta demais para voltarmos aos nossos passos, por enquanto. Eu lhe dei meus fatos; agora me dê os
seus. Diga o que aconteceu em Camorr.
– Ah. Bom... – Locke se pegou tentando coçar a barba que não estava mais presente no queixo. – Nós estávamos dando um golpe. Era bom e teria acrescentado uma bela
quantia àquela pilha de tesouro que você detestava.
– Foi quando o Rei Cinza estava na cidade?
– Rei Cinza, Capa Raza, o mesmo homem. É, nós fomos escolhidos para a honra dúbia de ajudar o sacana em sua guerra contra os Barsavis. Ele tinha contratado um Mago-Servidor.
– Meus... contratantes me contaram sobre ele.
– A mancha assassina de merda não serviu como crédito para os seus contratantes, independentemente do que eles pensem. De qualquer modo, ele deve ter nos espionado,
junto com o dinheiro no nosso cofre. Já tive muito tempo para pensar na situação, e essa é a única explicação que faz sentido. Nós fizemos o serviço e, por acaso,
o Rei Cinza cobiçava nossa fortuna. Ele tinha muitas contas a pagar. Por isso fomos para o cepo. Foi... – Cada fibra do seu ser, já desconjuntado pela doença mais
recente, se revoltou com a lembrança daqueles momentos em que se afogava num barril de imundície quente e grossa. – ... foi por pouco.
– Algum Barsavi sobreviveu?
– Nenhum. Nazca foi assassinada para colocar os nervos do pai à flor da pele. Com nossa ajuda, o Rei Cinza enganou Barsavi, fazendo-o acreditar que a vingara. O
Capa deu uma festa na Tumba Flutuante, onde ele e os filhos foram despedaçados. Tremendo espetáculo. Lembra-se das irmãs Berangias?
– Como iria me esquecer?
– Elas estavam lá. Por acaso eram irmãs do Rei Cinza. Serviram a Barsavi durante todos aqueles anos esperando o momento de atacar.
– Pelos deuses, o que aconteceu com elas?
– Jean.
– E esse tal Rei Cinza?
– Ah. – Locke pigarreou. – Ele foi coisa minha. Nós cruzamos espadas.
– Ora, devo admitir que essa é uma surpresa agradável – comentou Sabeta, e Locke sentiu um novo calor em volta do coração ao ver uma fagulha de interesse nos olhos
dela. – Você enfim começou a prestar atenção ao trabalho com espadas?
– Ah, não se engane. Infelizmente, ele me abriu como um galeno. Eu tive que enganá-lo para conseguir enfiar uma adaga nas suas costas.
– Humm. Fico feliz porque você o matou. Mesmo assim, é uma pena você nunca ter resolvido sua falta de jeito com o aço longo.
– Bom, Sabeta, diferentemente de algumas pessoas, acho que nunca tive condições de possuir, de forma instantânea, uma especialidade impecável em absolutamente todas
as esferas do conhecimento humano.
– Não havia nada de instantâneo. Você poderia ter se lançado no treinamento com o mesmo vigor que eu se não tivesse vivido com a expectativa de que Jean Tannen sempre
estaria às suas costas pelo resto da vida.
– Não. Pelos deuses, eu ouviria de boa vontade você me censurar até o nascer do sol, mas não nesse assunto. Jean não é um cachorro que eu enganei para manter numa
coleira. Ele é meu amigo íntimo, verdadeiro. Ainda é seu amigo íntimo, verdadeiro, mesmo que talvez vocês dois precisem de algum tempo para se lembrar disso.
– Desculpe. Eu estava pensando no seu bem.
– Para alguém cuja principal ambição na vida sempre foi a de ser considerada íntegra e sem falhas, sem se dobrar às vontades dos que estão ao redor, você tem um
interesse curioso na correção da minha condição!
– Ai – disse ela baixinho.
– Porra. – Locke bateu com os punhos nas pernas. – Desculpe. Sei que você tinha boa intenção...
– Não, você está certo. Sou uma perfeita hipócrita. Retiro qualquer coisa que tenha desagradado você. Por favor, continue com a história.
– Ahhh... certo. Bom, não há muito mais a dizer sobre Camorr. Nós pegamos um navio para Vel Virazzo na noite em que o Rei Cinza morreu. Ah! Eu conheci o Aranha.
– O quê? Como isso aconteceu?
– Quando os negócios do Rei Cinza chegaram ao fim, o pessoal do Duque não teve opção além de se envolver. Depois de um desentendimento inicial, o Aranha e eu trabalhamos
juntos. Muito brevemente.
– Doces deuses, você foi perdoado por seus crimes?
– Ah, diabos, não. Assim que o Rei Cinza morreu, Jean e eu demos o fora em disparada, como coelhos.
– E ficaram sabendo da identidade verdadeira do Aranha?
– É, ela e eu trocamos palavras em várias ocasiões.
– Então era mesmo uma mulher! Como eu sempre achei.
– Como você sabia?
– Todos aqueles anos de boatos e o único detalhe que emergia com clareza absoluta da névoa era que o Aranha era um homem. Todo mundo tinha certeza. Agora, se essa
pessoa podia manter total controle sobre os outros detalhes da identidade, por que essa verdade fundamental pôde vazar? Só podia ser uma pista falsa.
– É. Era mesmo.
– E quem era ela, afinal?
– Ahhh. Vejo que tenho uma coisa que intriga você genuinamente. Acho que vou guardar isso durante um tempo.
– É? Vou me lembrar disso, mestre Lamora. Você tem minha palavra. Então vocês pegaram um navio. E depois?
Animado com o assunto, Locke passou uns dez minutos resumindo os dois anos em Tal Verrar e nos arredores: a natureza do golpe na Agulha do Pecado de Requin, a interferência
de Maxilan Stragos, o tempo passado nos Ventos Fantasmas, as batalhas no mar, a perda de Ezri, a perda de quase tudo.
– Incrível – comentou Sabeta ao término da história. – Eu tinha ouvido sobre a encrenca em Tal Verrar. Vocês provocaram tudo aquilo. Derrubaram a droga do Arconte!
Seus sacanas tolos, estúpidos e sortudos.
– E, como resultado de nossa genialidade, deixamos Tal Verrar sem o amor de Jean, sem uma fortuna e sem um antídoto.
– Lamento tudo isso. Especialmente pelo Jean.
– Eu diria algo reconfortante, do tipo: ele vai superar com o tempo, mas sei que não vai. – Locke fez uma pausa e baixou a voz: – Eu sei que não superei.
– Ah – disse Sabeta em um tom totalmente neutro. – E cá estamos, então.
– Cá estamos. Histórias contadas.
– Eu tenho... instruções dos meus contratantes. Não somos proibidos de conversar uns com os outros, mas, na questão da eleição... Olhe, nós temos que lutar até o
fim. Sinceramente. Com todos os nossos truques, todas as nossas habilidades. As consequências de não ir até o fundo seriam severas. Tão severas que eu jamais...
– Entendo. Tenho orientações semelhantes dos meus... é, contratantes.
– Deuses, eu gostaria que pudéssemos conversar a noite toda.
– E por que não conversamos?
– Porque eu não esperava receber tanta honestidade da sua parte. – Sabeta se levantou. – E, se eu não fizer o que trouxe você aqui para fazer, posso perder a coragem.
– Espere, o que você quer dizer...
Sabeta respondeu puxando-o da cadeira para os braços. Num reflexo, ele resistiu por um momento, mas a intensidade do abraço o dominou.
– Fico feliz por você estar vivo – sussurrou ela. – Por favor, acredite, independentemente do que acontecer, estou feliz em ver você.
– Não acredito que tenho dois motivos para sentir gratidão aos Magos-Servidores.
Pelos deuses, ela era quente e forte, e seu cheiro era instantaneamente familiar sob o levíssimo perfume adocicado de maçã. Ele passou a mão pelos cachos suaves
do cabelo de Sabeta e suspirou.
– Babacas. Eu trabalharia de graça por qualquer chance de ficar perto de você. Eles estão me oferecendo uma fortuna e eu a jogaria no Amatel em troca disto. Eu...
– Locke – sussurrou ela. – Faça minha vontade.
– Hein?
– Me beije.
– Com toda...
– Não, assim, não. Do meu modo preferido. Você sabe o que eu quero dizer. De quando nós éramos...
– Ahhh – fez ele, rindo. – Seu serviçal, madame.
Sabeta sempre tivera uma fraqueza peculiar, algo que ele descobrira por acaso quando se tornaram amantes, tantos anos atrás. Locke pôs gentilmente a mão esquerda
embaixo do queixo dela e inclinou sua cabeça para trás, depois grudou os lábios na lateral do pescoço, embaixo da orelha.
O modo como ela se moveu nos braços de Locke dobrou sua sensatez e a escondeu num lugar profundo, escuro.
– Então foi mesmo para isso que você me trouxe?
– Continue – disse ela, ofegante – e vamos descobrir.
Locke beijou-a várias vezes mais e, quando sentiu que a havia provocado o suficiente, passou a língua para cima e para baixo nos mesmos centímetros de pele quente.
Sabeta ofegou e o agarrou com mais força ainda.
– Nossa – disse ele, rindo e estalando os lábios. Engoliu várias vezes para tirar um curioso gosto seco na língua. – Seu perfume. Acho que tirei um pouco. Espero
que não tenha sido caro.
– Uma formulação especial, só para você – sussurrou ela.
E continuou agarrada a Locke, cravando as mãos nos seus ombros, e por mais um instante ele ficou em paz com o mundo inteiro.
O entorpecimento começou na borda da língua e, em alguns segundos, espalhou-se, pinicando, em volta da boca e subindo à ponta do nariz.
– Não – sussurrou ele, golpeado tanto pelo choque quanto pelo que tinha acabado de engolir. Tentou se afastar, mas Sabeta era forte demais; seus membros já assumiam
uma desassociação nebulosa. – Não, não... Jnnnn... Jnnnn!
– Ssshhhh – fez Sabeta, não mais estremecendo, não mais ofegante com antecipação compartilhada. – É uma formulação especial. A garganta e a voz são atacadas primeiro.
Apenas relaxe. Jean não pode ouvi-lo.
– Pqqqq... Pqqqq?
– Desculpe. – Sabeta o aninhou enquanto as pernas dele viravam geleia. Ajoelhou-se lentamente, trazendo-o para baixo, deitando-o sobre seus joelhos. – Eu não sabia
se ia mesmo fazer isso ou não. Se serve de consolo, sua história sobre Tal Verrar foi o que me convenceu. Você não é tão bom quanto eu, Locke, mas é bom demais para
eu deixá-lo por aí, lutando de modo justo. Preciso vencer você, por nós dois.
– Nnngh...
– Não fale, só escute: você não tem muito tempo de sobra. Há um segundo motivo. Agora vejo como você esteve doente e como terá que se pressionar para me acompanhar.
Não posso deixar que você faça isso, Locke. Não posso ver você fazer isso. Você vai se matar tentando me vencer e não pode pedir que eu permita isso. Não quando
posso impedir. Eu já gostei muito de você. Gosto agora. Lembre-se disso.
Sabeta beijou-o suavemente na testa e ele mal sentiu.
– Lembre-se disso e me perdoe.
9
– Nnnnngh – fez Locke, emergindo de camadas de negrume que pareciam postas sobre ele como mortalhas. – Nnnngh... Sab... Não, por favor!
Ofegou, com a gratidão incrédula de alguém que enfim tivesse voltado a despertar depois de um interminável pesadelo de sufocamento. Sentiu o cheiro do próprio suor
e os odores familiares de madeira molhada e ar fresco do lago.
Seus olhos se abriram com relutância. Estava deitado de costas na grande cabine de outro navio, mais luxuoso do que qualquer um que ele já conhecera, até mesmo que
o de Zamira Drakasha. Suaves globos alquímicos cor de laranja lançavam uma luz convidativa nos adereços e peças finas. Gaivotas gritavam em algum lugar próximo e
o mundo estalava suavemente ao redor.
– Idiota, idiota, idiota – murmurou, adorando a recuperação total de sua capacidade de fala. Sentou-se e logo notou sua fome insuportável. – Ah, idiota, idiota,
idiota...
– Você não pode se culpar – disse Jean.
Locke se virou e o viu sentado junto à parede oposta, numa cama suspensa com lençóis bordados. Jean tinha hematomas novos nos antebraços nus e em volta dos olhos.
– Pelos deuses. O que aconteceu com você?
– Lembra como ela brincou sobre vinte pessoas armadas na sala ao lado? – respondeu Jean com um suspiro. Em seguida, pousou o livro que estivera lendo. – Havia vinte
pessoas armadas na sala ao lado.
– Foda-me de lado com pimenta e uma pitada de sal. Quanto tempo fiquei sem sentidos?
– Metade de um dia.
– Onde estamos?
– No Amatel, indo para o oeste. Para o mar.
– Está brincando?
Jean apontou para alguma coisa atrás de Locke, que se virou. As janelas de trás da cabine, que estavam abertas, dando vista para uma manhã cinzenta sobre água azul,
tinham uma trama de grossas barras de ferro na superfície exterior. Os espaços eram pequenos demais até mesmo para Locke pensar em se espremer através delas.
– Ela colocou a gente num navio-prisão extremamente luxuoso – disse Jean. – Somos os únicos passageiros. E vamos fazer uma viagem ótima e lenta pelo mar, dando a
volta no continente.
– Está brincando, porra?
– Se tudo acontecer como ela planejou, vamos voltar a Kartane uma ou duas semanas depois da contagem dos votos.
I n t e r s e ç ã o ( I I )
Pavio
Devo dizer que não estamos terrivelmente impressionados com seus rapazes até agora.
Nós achamos que eles se saíram muito bem até o encontro com o seu exemplar.
É esse encontro com o nosso exemplar que inspira certa falta de premonição da nossa parte.
Eles logo voltarão para nós.
Eles estão indo para o mar, a ferros.
Você sabe quem mais os desconsiderou? O Falcoeiro.
Muito engraçado.
Coisas interessantes vão acontecer ao redor do Lamora, amigo. Mantenha a atenção concentrada nele o tempo todo.