Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RESGATE NO TEMPO / Michael Crichton
RESGATE NO TEMPO / Michael Crichton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

RESGATE NO TEMPO

Primeira Parte

 

Se disséssemos a um físico em 1899 que em 1999, cem anos mais tarde, imagens em movimento seriam transmitidas para os lares em todo o mundo a partir de satélites no céu; que bombas de uma potência inimaginável ameaçariam as espécies; que os antibióticos aboliriam a doença mas que esta iria contra-atacar; que as mulheres conseguiriam o voto e pílulas para o controlo da reprodução; que a todas as horas milhões de pessoas seriam transportadas pelos ares em aeronaves capazes de levantarem voo e de aterrarem sem o toque humano; que seria possível cruzar o Atlântico a duas mil milhas por hora; que a humanidade viajaria até à Lua para logo em seguida se desinteressar; que os microscópios seriam capazes de ver átomos individuais; que as pessoas transportariam telefones pesando pouco mais de cem gramas ou até menos e que falariam para qualquer parte do mundo sem necessidade de fios; ou que a maior parte destes milagres dependiam de dispositivos com o tamanho de um selo de correio, que utilizavam uma nova teoria designada por mecânica quântica - se o leitor dissesse tudo isto, o físico quase de certeza afirmaria que estava louco.

A maior parte destes desenvolvimentos nunca poderiam ter sido previstos em 1899 porque a teoria científica que prevalecia dizia que era impossível. E para os poucos desenvolvimentos que não eram impossíveis, como as aeronaves, a simples dimensão do seu uso eventual teria desafiado a compreensão. Seria possível imaginar um aeroplano - mas dez mil aeroplanos no ar ao mesmo tempo teria estado para lá da imaginação de qualquer um.

Torna-se portanto razoável afirmar que os cientistas mais informados, no limiar do século vinte, não faziam a menor ideia daquilo que estava para vir.

Agora que nos encontramos no limiar do século vinte e um, a situação é estranhamente familiar. Mais uma vez, os físicos acreditam que o mundo físico foi explicado e que já não existem revoluções à nossa frente. Recordando a história passada, deixaram de exprimir esta opinião publicamente, mas não deixam de pensar deste modo. Alguns observadores chegaram mesmo ao ponto de defender que a ciência como disciplina terminou o seu trabalho; afirmam ainda que não ficou nada de importante para a ciência descobrir.'

John Horgan, The End ofScience (Nova iorque: Addison-Wesley, 1996). Ver também Gunther Stent, Paradoxes ofProgress (Nova iorque: W H. Freeman, 1978).

 

Mas do mesmo modo que os finais do século dezanove deixaram supor aquilo que estava para vir, também o século vinte fornece algumas pistas para o futuro. Uma das mais importantes é o interesse na chamada tecnologia quântica. Trata-se de um esforço em diversas frentes para criar uma nova tecnologia que utiliza a natureza fundamental da realidade subatómica, e promete revolucionar as nossas ideias sobre aquilo que é possível.

A tecnologia quântica contradiz frontalmente as nossas ideias de senso comum sobre o modo como o mundo funciona. Defende um mundo em que os computadores funcionam sem serem ligados e em que os objectos são encontrados sem os procurarmos. Um computador de um poder inimaginável pode ser construído a partir de uma simples molécula. A informação move-se instantaneamente entre dois pontos sem cabos ou redes. Os objectos distantes são examinados sem qualquer contacto. Os computadores fazem os seus cálculos em outros universos. E a teleportação - «Beam me up, Scoty» é vulgar e usada das mais diferentes maneiras.

Em 1990, a investigação em tecnologia quântica começou a mostrar resultados. Em 1995 mensagens quânticas ultra-seguras foram enviadas a uma distância de 8 milhas, sugerindo que uma Internet quântica virá a ser construída no próximo século. Em Los Álamos físicos mediram a espessura de um cabelo humano usando um feixe de laser que, na realidade, nunca chegou a ser visto no cabelo, mas apenas pode lá ter estado. Este resultado bizarro «contrário aos factos» iniciou um novo campo de interacção - detecção livre: aquilo que foi designado por «descobrir qualquer coisa sem olhar».

E, em 1998, a teleportação quântica foi demonstrada em três laboratórios em diferentes pontos do mundo - em Imisbruck, em Roma e na Cal Tech.' O físico jeff Kinible, líder da equipa da Cal Tech, disse que a teleportação quântica podia ser aplicada a objectos sólidos: «0 estado quântico de uma entidade podia ser transportado para outra entidade... Julgamos que conhecemos o modo como é possível fazê-lo.» Kinible deteve-se exactamente na altura em que se preparava para sugerir que seria possível teleportar um ser humano, mas lembrou-se de que alguém o poderia tentar com uma bactéria.

 

' Dick Bouwmeester etal., «Experimental QuantumTeleportation», Nature390(11 Dez. 1997): 575-9.

2Maggie Fox, «SpookyTeleportation Sttídy Brings Futtire Closer», Reuters, 22 Out. 1998. Para Jeffrey R.

Mmble, ver A. Furusawa et al, «Unconditional Quantum Tè1eportatior1>, Science 282 (23 Out. 1998): 706-9.

 

Estas curiosidades quânticas, desafiando a lógica e o senso comum, receberam pouca atenção do público mas isso ainda virá a acontecer. De acordo com alguns cálculos, nas primeiras décadas do novo século, a maioria dos físicos em todo o mundo irão trabalhar num ou noutro dos aspectos da tecnologia quântica.'

Deste modo não se torna surpreendente que, por volta de meados da década de 90 várias corporações se tenham debruçado sobre a investigação quântica. A Fujitsu Quantum Devices foi estabelecida em 1991. A 113M formou uma equipa de investigação quântica em 1993, sob a orientação do pioneiro Charles Bennett.' Dentro em pouco foram seguidos pela ATT e por outras companhias, o que igualmente foi realizado por universidades como a Cal Tech e instalações governamentais como Los Álamos. E o mesmo foi feito por uma companhia de investigação do Novo México chamada ITC. Localizada a poucas horas de carro de Los Álamos, a iTC deu passos notáveis logo no início da década. Na realidade, está agora perfeitamente claro que a ITC foi a primeira companhia em 1998 a ter uma aplicação prática e funcional utilizando tecnologia quântica avançada.

Em retrospectiva, foi uma combinação de circunstâncias peculiares - e de considerável sorte - que deu à iTC a liderança de uma tecnologia dramaticamente nova. Embora a companhia tenha defendido que as suas descobertas eram completamente benignas, a sua chamada expedição de recuperação demonstrou os perigos de uma forma perfeitamente clara. Duas pessoas morreram, uma desapareceu e outra sofreu ferimentos graves. Não temos dúvidas de que para os jovens licenciados que tomaram parte na expedição, esta nova tecnologia quântica, anunciadora do século vinte e um, provou que era apenas benigna.

Colin P. Williams e Scott H. Clearwater, Fxplorations in Quantum Computing (Nova iorque: Springer-Verlag,

1998). Ver tamb6m Gerard J. Milburn, Schrddinger Machines (Nova iorque: W H. Freeman, 1997) e The Feynman Processor (Reading, Mass.: Perseus, 1998).

2C. H. Bennett et al., ,Teleportation an Unknown Quanturn State via Dual Classical and Einstein-Podolsky-Rosen Channels,), Physical Review Letters 70 (1993): 1895.

14


Ocorreu em 1357 um episódio típico de uma guerra privada. Sir Oliver de Vannes, um cavaleiro inglês de nobreza e carácter, havia conquistado as cidades de Castelgard e La Roque, situadas nas margens do Rio Dordogne. Em todos os relatos que chegaram até nós se afirma que «este lorde à força» governava com honesta dignidade e era amado pelo povo. Em Abril, as terras de Sir Oliver foram invadidas por uma tumultuosa companhia de dois mil brigandes, cavaleiros renegados sob o comando de Arnaut de Cervole, um ex-monge conhecido como o «Arcebispo». Depois de ter reduzido Castelgard a cinzas, Cervole arrasou o vizinho Mosteiro de Sainte-Mère, assassinando monges e destruindo o famoso moinho no Dordogne. Em seguida Cervole perseguiu Sir Oliver até à fortaleza de La Roque onde se desenrolou uma terrível batalha.

Oliver defendeu o seu castelo com perícia e ousadia. Relatos contemporâneos creditam os esforços de Oliver ao seu conselheiro militar, Edwardus de Johnes. Pouco se sabe a respeito deste homem, em torno do qual se desenvolveu uma mitologia do tipo Merlin: dizia-se que podia desaparecer num relâmpago. O cronista Audreim diz que Johnes veio de Oxford, mas outros relatos dizem que era de Milão. Uma vez que viajava com uma equipa de jovens assistentes era, segundo tudo indica, um especialista itinerante, trabalhando para quem lhe pagasse os seus serviços. Tinha grandes conhecimentos sobre a utilização da pólvora e da artilharia, uma tecnologia nova naquela altura...

Por último, Oliver perdeu o seu inexpugnável castelo quando um espião abriu uma passagem no interior, permitindo aos soldados do Arcebispo que entrassem. Traições deste tipo eram típicas das intrigas complexas da época.

 

De The Hundred Years War in France (A Guerra dos Cem Anos em França), por M. D. Backes, 1996.

CORAZON

« Quem não se sentir chocado com a teoria quântíca não a compreende. » Neils Bohr, 1927

«Ninguém compreende a teoria quântica.» Richard Feynman, 1967

 

Nunca devia ter seguido por aquele atalho.

Dan Baker estremeceu quando o seu novo sédan Mercedes S500 começou a descer aos solavancos a estrada poeirenta, embrenhando-se cada vez mais na reserva Navajo no norte do Arizona. Ã sua volta a paisagem era cada vez mais desolada: as distantes mesas vermelhas a leste, o deserto plano estendendo-se a perder de vista para ocidente. Tinham passado por uma aldeia hora e meia antes - casas poeirentas, uma igreja e uma pequena escola empoleíradas numa falésia - mas desde aí não haviam visto mais nada, nem sequer uma vedação. Apenas o árido deserto vermelho. Há mais de uma hora que não avistavam um único carro. Era meio-dia e o sol dardejava sobre eles na vertical. Baker, um construtor civil em Phoenix, com cerca de 40 anos, começava a sentir-se pouco à vontade. Especialmente tendo em consideração que a sua esposa, uma arquitecta, era uma daquelas pessoas dedicadas à arte com pouca experiência em coisas simples como gasolina e água. O tanque da gasolina estava meio. E o carro começava a aquecer.

«Liz», perguntou ele, «tens a certeza de que é este o carninho?»

Sentada ao seu lado, a esposa debruçava-se sobre o mapa, traçando o percurso com um dedo. «Tem que ser», respondeu ela. «0 gula diz quatro milhas depois do Canyon Corazón.»

«Mas já passámos o Canyon Corazón há mais de vinte minutos. De certeza que não demos por ele.»

«Como é que será possível não reparar numa loja na berma da estrada?» «Não faço a menor Ídeia.» Baker olhava fixamente para a estrada à sua frente. «Mas não há nada por estas redondezas. Tens mesmo a certeza de que queres continuar com isto? Não te esqueças de que podemos conseguir grandes tapetes Navajo em Sedona. Em Sedona vendem todos os tipos de tapetes.»

«Sedona» exclamou ela com um ar de desdém, «não são autênticos.» «Olha que são, querida. Aliás, um tapete é sempre um tapete.» «Temos que considerar a textura.»

«Okay», concordou ele com um suspiro, «é uma questão de textura.»

«E podes ter a certeza de que não é tudo igual» respondeu ela. «Essas lojas de Sedona só têm lixo para turistas - são em acrílico, não em lã. Quero o género de tapetes tecidos em tear manual que se vendem na reserva. E estou convencida de que o posto de venda terá uma velha peça do tipo Sandpainting (pintura de areia) tecída algures durante os anos vinte, por Hosteen Klah. E eu quero-a.»

Okay, Liz.» Pessoalmente Baker não via porque é que precisavam de outro tapete Navajo - fosse qual fosse a textura. já tinham qualquer coisa como duas dúzias. Espalhara tapetes por toda a casa. E também guardara alguns nos armários.

Continuaram em silêncio. A estrada à frente deles brilhava vagamente com o efeito do calor, dando a ideia de um lago de prata. E havia ainda as miragens, casas ou pessoas que se erguiam na estrada, mas que desapareciam quando se aproximavam, como é habitual.

Dan Baker suspirou de novo. «Já devemos ter passado.» «Vamos andar mais algumas milhas», respondeu a esposa. «Quantas mais?»

«Não faço ideia. Mais algumas.»

«Quantas, Liz? Vamos decidir de uma vez por todas até onde é que vamos com esta história.»

«Mais dez minutos», respondeu ela. Okay», concordou, «mais dez minutos.»

Estava a olhar para o indicador da gasolina quando Uz levou a mão à boca e disse, «Dan!» Baker voltou a olhar para a estrada mesmo a tempo de ver uma forma que lhes surgiu de repente - um homem de castanho na berma da estrada - e ouviu um som cavo de uma pancada.

«Valha-me Deus!» exclamou ela. «Baternos nele!»

«0 quê?»

«Batemos naquele tipo.»

«Não batemos nada, foi um buraco.»

No retrovisor Baker conseguia ver o homem ainda de pé na berma da estrada. uma figura de castanho desaparecendo rapidamente na nuvem de poeira que o carro deixava atrás de si.

«Não é possível termos batido nele» disse Baker. «Ainda está de pé.» «Dari, estou a dizer-te que lhe batemos. Eu vi.»

«Acho que não, querida.»

Baker olhou de novo para o espelho retrovisor. Mas agora só conseguia ver a nuvem de poeira que o carro deixava para tras.

«É melhor voltarmos para trás», disse ela. «Porquê?»

Baker tinha a certeza absoluta de que a esposa não tinha razão e de que não tinham batido no homem que estava na estrada. Mas se tivessem batido nele e se ele estivesse ferido, por muito levemente que fosse - nem que fosse um corte na testa, um arranhão - então isso iria representar uma grande demora na sua viagem. Seria impossível chegar a Phoenix ao cair da noite. Quem quer que andasse por ali tinha que ser forçosamente um Navajo; teriam que o levar para um hospital, ou pelo menos para a cidade mais próxima, que era Gallup, e que ficava fora do seu caminho.

«Julguei que querias voltar para trás», disse ela. «E quero.»

«Então vamos voltar para trás.»

«Só não quero arranjar problemas, Liz.» «Dan. Não acredito.»

Suspirou, e abrandou o carro. «OK, estou a dar a volta, tem calma.»

E deu a volta, tendo cuidado para não ficar enterrado na areia vermelha, regressando pelo caminho por onde tinham vindo.

«Valha-me Deus.»

Baker encostou e saltou para o exterior, sentindo-se envolvido pela nuvem de poeira que ainda pairava no ar. Respirou com dificuldade, sentindo o impacto do calor no rosto e no corpo. Devem estar cento e vinte graus no exterior, Pensou ele.

Quando a poeira começou a desvanecer-se viu o homem deitado na berma da estrada, tentando levantar-se apoiando-se nos cotovelos. O tipo estava trémulo, devia ter cerca de setenta anos, era careca e usava barba. A pele era pálida; não tinha ar de Navajo. Usava um vestuário castanho dando a ideia de uma sotaina. Talvez seja um padre, pensou Baker.

«Sente-se bem?», disse Baker, enquanto ajudava o homem a sentar-se na estrada poeirenta.

O velho tossiu. «Sinto. Estou bem.»

«Quer levantar-se?», perguntou-lhe. Sentiu-se aliviado porque não via sangue. «Só mais um minuto.»

Baker olhou à sua volta. «Onde é que está o seu carro?»

O homem voltou a tossir. Erguendo a cabeça com dificuldade, olhou para a estrada poeirenta.

«Dan, julgo que ele está ferido.»

«Talvez», respondeu Baker. Não havia dúvida de que o velho parecia confuso. Baker olhou à sua volta mais uma vez: nada, a não ser o deserto plano estendendo-se numa neblina tremeluzente, em todas as direcções.

Nem um único carro. Nada.

«Como é que ele chegou até aqui?», disse Baker.

«Deixa-te disso», respondeu Liz, «temos que levar o homem para o hospital.» Baker colocou as mãos debaixo dos braços do homem e ajudou o velho a pôr-se de pé. As roupas do homem eram pesadas, feitas de um material que parecia feltro, mas o calor não o fazia suar. De facto o corpo estava fresco, quase frio.

O velho apoiava-se pesadamente em Baker enquanto atravessavam a estrada. Liz abriu a porta de trás. O velho disse: «Eu posso andar. Eu posso andar.» «Okay. Ainda bem.» Baker ajudou-o a instalar-se no banco de trás.

O homem estendeu-se no assento, encolhendo-se numa posição fetal. Por baixo da sotaina usava roupas normais: jeans, uma camisa xadrez, sapatos de ténis. Fechou a porta e Liz voltou ao banco da frente. Baker hesitou, permanecendo no exterior exposto ao calor. Como é que era possível que aquele velho estivesse ali sozinho? Vestindo toda aquela roupa e sem estar a suar?

Era como se ele tivesse acabado de sair do carro.

É muito capaz de ter vindo a conduzir, pensou Baker. Talvez tenha adormecido. Talvez tenha saído da estrada e tenha tido um acidente. Talvez houvesse mais alguém preso dentro do carro.

Ouviu o velho a murmurar: À esquerda, sobe. Volta agora, apanha agora e vê como.»

Baker atravessou a estrada para dar uma vista de olhos. Passou por um enorme buraco, considerando que o devia mostrar à esposa, mas finalmente decidiu que não valia a pena.

Fora da estrada não conseguia avistar quaisquer rastos de pneus, mas via claramente as pegadas do velho na areia. Trinta metros à frente viu o leito de um arroio, um corte abrupto na paisagem. Parecia que as pegadas vinham daquela direcção.

Vendo isso, seguiu as pegadas na direcção do arroio, parou junto da margem e olhou para baixo. Não havia qualquer carro. Viu apenas uma cobra que deslizava por entre as rochas fugindo dele. Estremeceu.

Qualquer coisa branca chamou a sua atenção, brilhando à luz do sol a cerca de meio metro na encosta. Baker debruçou-se para ver melhor. Era uma peça de cerâmica branca com cerca de uma polegada quadrada. Parecia um isolador eléctrico. Baker pegou nele e ficou surpreendido ao notar que era frio ao toque. Talvez fosse um desses novos materiais que não absorviam o calor.

Olhando mais de perto para a cerâmica viu as letras iTC gravadas numa das extremidades. E havia uma espécie de botão numa reentrância de um dos lados. Tentou adivinhar o que é que aconteceria quando o botão fosse premido. Ali de pé ao calor, com enormes calhaus à sua volta, premiu o botão. Não aconteceu nada.

Premiu mais uma vez. Mais uma vez nada aconteceu.

Baker subiu novamente a ravina, regressando ao carro. O velho estava a dormir, ressonando ruidosamente. Liz consultava os mapas. «A próxima cidade grande é GaIlup.»

Baker ligou o motor. «Pois seja Gallup.»

De volta à estrada, fizeram uma média melhor enquanto rumavam a sul na direcção de Gallup. O velho continuava a dormir. Liz olhou para ele e disse, «Dan ... »

«0 que é?»

«Estás a ver as mãos dele?»

«0 que é que têm as mãos dele?» «As pontas dos dedos.»

Baker desviou os olhos da estrada, olhando de relance para o banco de trás. As pontas dos dedos do velho estavam vermelhas até à segunda articulação. «E o que é isso tem? São queimaduras do sol.»

«Só nas pontas dos dedos? E o resto da mão?» Baker encolheu os ombros.

«Os dedos dele não estavam assim antes», disse ela. «Não estavam vermelhos quando o encontrámos.»

«Querida, de certeza que não reparaste nisso.»

«Notei Porque tinha as unhas arranjadas. E pensei que não deixava de ser interessante que um velho no deserto tivesse as unhas arranjadas.»

«Uh- huh.» Baker olhou para o relógio. Pensava no tempo que iriam ter que esperar no hospital em Gallup. Provavelmente horas.

Suspirou. A estrada continuava em linha recta.

A meio caminho de Gallup, o velho acordou. Tossiu e disse: «já chegámos? Onde é que nós estamos?»

«Como é que se sente?», disse Liz.

«Como é que me sinto? Tenho a cabeça a andar à roda. Estou bem, estou mesmo bem.»

«Como é que se chama?», disse Liz. «0 velho telefone fez-me vaguear.»1 «Mas qual é o seu nome?»

O homem disse: «Nome é o mesmo, a culpa é do jogo.»' Baker disse: «Está a rimar tudo o que diz.»

Ela respondeu: «já tinha notado Dan.»

«já vi um programa de televisão a este respeito», disse Baker. «0 facto de rimar significa que ele é esquizofrénico.»

«Rimar é regular» disse o velho. E então começou a cantar em voz alta, quase gritando uma quadra da velha canção de john Denver:

«As recordações fazem-me vaguear de volta ao lar,

velhas montanhas, caminhos do campo, as recordações, continuam a vaguear.»

«Isto está bonito,» disse Baker.

«Senhor,» disse Liz mais uma vez, «pode dizer-me como é que se chama?» «0 nióbio pode causar opróbrio. Atitudes estranhas não permitem inanhas.»

 

So original: «Thequondamphone made me roam.» E, na frase seguinte: «Namesarne, biamegame.» (N. T)

 

Baker suspirou. «Querida, este tipo está marado de todo.»

«Marado ou qualquer outro nome que se queira, cheira a vagabundo sem eira nem beira.»

Mas a esposa não desistia. «Senhor? Sabe como é que se chama?»

«Norne é Gordon», disse o homem começando a gritar mais uma vez. «Nome é Gordon, nome é Stariley. Mas fica tudo em família.»

«Mas, senhor ... »

«Liz» disse Baker «deixa-o em paz. Deixa-o assentar, está bem? Ainda temos muito que andar?»

Rugindo, o velho cantou: «0 lugar a que pertenço, velha magia negra, é tão trágico, país de espuma faz-me gerner.»

E logo a seguir, começou a cantar o mesmo de novo. «Ainda falta muito?», perguntou Liz.

«Não faças perguntas desse género.»

Tendo telefonado antes, quando estacionou o Mercedes debaixo do pórtico em tons de vermelho e creme da Unidade Traumática do McKinley Hospital os auxiliares já estavam à espera com uma maca. O velho continuou sem reacção quando o transferiram para a maca, mas quando começaram a apertar as correias de segurança, ficou agitado, gritando: «Tirem as mãos de cima de mim, não me prendam!»

«É para a sua própria segurança, senhor», disse um dos auxiliares.

«Isso é o que você diz, saia da minha frente! A segurança é o último refúgio dos patifes!»

Baker ficou impressionado com o modo como os auxiliares manuseavam o tipo, gentilmente mas ao mesmo tempo com firmeza enquanto lhe apertavam as correias. Ficou igualmente impressionado com a mulher de pequena estatura e cabelos escuros, envergando uma bata branca, que se encontrava Junto deles. «Sou Beverly Tsosie», disse-lhe ela apertando-lhe a mão. «Sou a médica de serviço às urgências.» Continuava perfeitamente calma, embora o homem na maca continuasse a gritar enquanto o levavam para o centro traumático. «0 velho telefone fez-me vaguear ... »

Toda a gente na sala de espera estava a olhar para ele. Baker viu um miúdo de dez ou onze anos, o braço ao peito, sentado numa cadeira junto da mãe, que olhava o homem curiosamente. O miúdo murmurou qualquer coisa ao ouvido da mãe.

velho cantava: «Para o lugar a que pertenço ... »

doutora Tsosie perguntou: «Há quanto tempo é que ele está assim?>, «Desde o início. Desde o momento em que o encontrámos.» «Excepto quando estava a dormir», disse Liz.

«Alguma vez esteve inconsciente?» «Não.»

«Teve náuseas, vórnitos?» «Não.»

«E onde é que o encontrou? Para lá de Corazón Canyon?» «Cerca de cinco a dez milhas antes.»

«Não há grande coisa por aqueles lados», disse ela. «Conhece a zona?», perguntou Baker.

«Cresci para aqueles lados.» Sorriu levemente. «Chinle.»

Transportaram o homem, sempre a gritar, através de uma porta de vaivem. A doutora Tsosie disse: «Se quiser esperar aqui, volto o mais depressa possível, logo que saiba alguma coisa. Provavelmente ainda vai demorar um bocado. É capaz de preferir ir almoçar enquanto espera.»

Beverly pertencia ao quadro clínico do University Hospital em Albuquerque, mas ultimamente começara a vir dois dias por semana a GaIlup, para fazer companhia à avó de idade avançada, e nesses dias fazia um turno na Unidade Traumática do McKinley para conseguir mais algum dinheiro extra. Gostava do McKiriley com o seu moderno exterior pintado em riscas vermelho vivo e creme, O hospital era de facto dedicado à comunidade. E gostava de Gallup, uma cidade mais pequena do que Albuquerque, e um lugar onde se sentia mais confortável com um fundo tribal.

Na maior parte dos dias a unidade de Traumáticos estava perfeitamente calma. Por isso a chegada daquele velho, agitado e aos gritos, estava a causar uma enorme comoção. Abriu as cortinas do cubículo onde os auxiliares lhe haviam tirado a sotaina castanha e os sapatos de ténis. Mas o velho ainda continuava a debater-se, lutando contra eles, pelo que tiveram que o deixar amarrado. Estavam a cortar as jeans e a camisa xadrez para as tirarem.

Nancy Hood, a enfermeira chefe da unidade, disse que não fazia diferença Porque, de qualquer modo, a camisa tinha um enorme defeito; atravessando o bolso havia uma linha em que o padrão não condizia. «Deve ter rasgado a camisa e voltou a cosê-la. Temos de concordar que foi um trabalho muito mal feito. »

«Não», disse um dos auxiliares, segurando a camisa. «Nunca foi cosida, é uma única peça de tecido. Pode parecer estranho, mas não condiz porque um dos lados é maior do que o outro ... »

«Seja como for, não vai sentir a falta dela», disse Nancy e atirou a camisa para o chão. Virou-se para Tsosie. «Quer tentar fazer-lhe um exame?»

O homem ainda se comportava de uma forma muito violenta. «Ainda não. Vamos dar-lhe uma injecção intravenosa em cada braço. E vejam o que é que ele tem nos bolsos. E vejam também se traz qualquer identificação. Se não tiver, tire-lhe as impressões digitais e mande-as por fax para D.C.; talvez o consigam encontrar num banco de dados.»

Vinte minutos mais tarde, Beverly Tsosie estava a examinar um miúdo que partira um braço numa queda durante uma prova desportiva. Era um miúdo de óculos, com um aspecto gorducho, e parecia quase orgulhoso com o acidente que tivera no desporto.

Nancy Hood aproximou-se e disse: «Estivernos a revistar o John Doe.» «E?»

«Nada que nos possa ajudar. Não tem carteira, nem cartões de crédito ou chaves. A única coisa que tinha com ele era isto.» Deu a Beverly uma folha de papel dobrada em quatro. Parecia uma impressão de computador, e mostrava um estranho padrão de pontos dispostos numa espécie de grelha. E no fundo

estava escrito mon.ste.mere .

«"Monsternere"? Isto diz-lhe alguma coisa?»

Hood abanou a cabeça. «Sei lá, para mim ele está passado.»

Beverly Tsosie disse: «Bom, posso mantê-lo sob sedativos até sabermos o que é que lhe vai na cabeça. O melhor é tirar-lhe radiografias do crânio para verificar traumas e hematomas.»

A radiografia está a ser remodelada, já se esqueceu 13ev? Os raios X podem ser feitos em qualquer altura. Porque é que não lhe faz uma ressonância magnética? Faça o scan de todo o corpo e tem todos os dados de que necessita.» «Faça a requísição», disse Tsosie.

Nancy Hood voltou-se para sair. «Oh, olha que surpresa. Temos aqui o Jimmy da polícia.»

Dan Baker sentia-se inquieto. Exactamente como previra, haviam passado horas à espera na recepção do McKinley Hospital. Depois de terem almoçado

- burritos com chili picante - haviam regressado, encontrando um polícia no parque de estacionamento a olhar para o seu carro, passando a mão pelo painel da porta lateral. Só o facto de o ver fez com que Baker sentisse um arrepio. Pensou em ir ter com o polícia mas chegou à conclusão de que era melhor não o fazer. Em vez disso voltou à sala de espera. Telefonou à filha para lhe dizer que chegava mais tarde; para dizer a verdade, era muito possível que só chegassem a Phoenix no dia seguinte.

E esperaram. Finalmente, cerca das quatro da tarde, quando Baker se dirigiu ao balcão para pedir notícias sobre o velho, a mulher perguntou-lhe: «São parentes?»

«Não, mas ... »

«Então esperem ali se fazem favor. O médico vem já falar convosco.» Voltou ao seu lugar e sentou-se com um suspiro. Levantou-se de novo, caminhou até à janela e olhou para o carro. O polícia desaparecera mas agora via-se um papel preso no pára-brisas que esvoaçava ao vento. Baker tamborilou com os dedos no vidro da janela. Em cidades pequenas como aquela arranjam-se sempre problemas, qualquer coisa pode acontecer. E quanto mais esperava, mais cenários lhe acorriam à mente. O velhote estava em coma; não podiam sair da cidade até que ele acordasse. Se o velho morresse estavam implicados num caso de homicídio involuntário. Podiam não ser inculpados Mas teriam que comparecer no inquérito que se realizaria dentro de quatro dias.

Quando finalmente alguém veio falar com eles não era a pequena médica, era o polícia. Era um polícia jovem, com cerca de vinte anos, num uniforme impecavelmente passado a ferro. Usava o cabelo comprido e o crachá no peito indicava que se chamava JAMES WAUNEKA. Baker pensou para consigo próprio que nome seria aquele. Provavelmente Hopi ou Navajo.

«0 Senhor e a Senhora Baker?» Wauneka foi muito correcto, apresentando-se. «Acabei de falar com a médica. Terminou o seu exame e os resultados da ressonância já vieram. Não há a menor prova de ter sido atingido por um carro. E eu próprio estive a inspeccionar o vosso carro. Não há qualquer sinal de impacto. Estou convencido de que devem ter passado por um buraco e ficaram convencidos de que lhe tinham batido. Nesta zona a estrada é francamente má.»

Baker olhou de relance para a sua esposa que evitou o seu olhar. Liz perguntou: «Acha que vai ficar bem?»

«Parece que sim.»

«Então podemos ir embora?» perguntou Baker.

«Querido», disse Liz, «não lhe queres dar aquilo que encontrámos?»

«Oh, com certeza.» Baker tirou a pequena peça de cerâmica do bolso. «Encontrei isto junto do lugar onde ele estava.»

O polícia fez rodar a peça de cerâmica entre os dedos. «ITC» - disse ele, lendo a marca num dos lados. «Onde é que encontraram isto exactamente?» «A cerca de 30 jardas de distância da estrada. julguei que seguisse num carro

que tivesse saído da estrada e foi por isso que verifiquei. Mas não havia qualquer carro.»

«Mais alguma coisa?» «Não, é tudo.»

«Bom, muito obrigado», disse Wauneka, metendo a peça de cerâmica no bolso. Mas logo a seguir fez uma pausa. «Oh, já me esquecia.» Tirou uma folha de papel do bolso e desdobrou-a cuidadosamente. «Isto foi encontrado nas roupas dele. Queria saber se alguma vez viram isto.»

Baker olhou de relance para o papel: um conjunto de pontos dispostos em grelhas. «Não» respondeu, «nunca tinha visto isso.»

«Não foram vocês que lho deram?» «Não.»

«Algurna ideia sobre o que possa ser?»

«Não», disse Baker. «Não faço a menor ideia.» «Bom, acho que faço uma ideia», disse a esposa. «Acha que sim?», disse o polícia.

«Julgo que sim», respondeu ela. «Importa-se se eu ... » E tirou o papel das mãos do polícia.

Baker suspirou. Agora Liz estava a ser o arquitecto, analisando o papel meticulosamente, voltando-o de um lado e de outro, olhando para os pontos de cima para baixo e de lado. Baker sabia porquê. Estava a tentar desviar a atenção do facto de que ela se enganara, de que o carro passara de facto num buraco, e que afinal de contas tinham passado ali todo o santo dia para nada. Estava a tentar justificar uma perda de tempo, procurando atribuir uma certa importância ao caso.

«Sim», disse ela finalmente. «Sei o que é. É uma igreja.»

Baker olhou para os pontos no papel. Perguntou incrédulo: «É uma igreja?» «Bom, é a planta de uma», disse ela. «Estás a ver? Aqui é o eixo maior da cruz, a nave... Vês? Não há dúvida de que é uma igreja, Dan. E o resto do desenho, os quadrados dentro de quadrados, todos rectilíneos, tem o aspecto de... sabes que isto pode muito bem ser um mosteiro?»

O polícia perguntou: «Um mosteiro?»

«Julgo que sim», disse ela. «E o que é que me diz da legenda no fundo: mon.ste.mere". Mon não será uma abreviatura de mosteiro? Aposto que sim. Estou a dizer-lhe, para mim trata-se de um mosteiro.» E devolveu o desenho ao polícia.

De forma expressa Baker olhou para o relógio. «Acho que devíamos ir embora.»

«Evidentemente», disse Wauneka apanhando a deixa. Apertou-lhes a mão. «Obrigado, pela vossa ajuda. E desculpem o atraso. Façam uma boa viagem.» Baker colocou o braço firmemente sobre os ombros da esposa e conduziu-a

para o exterior, para a luz da tarde. Estava mais frio; a leste erguiam-se balões de ar quente. Calhip era um centro de balões de ar quente. Dirigiu-se para o carro. O papel preso no pára-brisas que esvoaçava ao vento anunciava a venda de joias com turquesas num dos armazéns locais. Arrancou-o do pára-brisas, amarrotou-o e sentou-se ao volante. A esposa estava sentada de braços cruzados olhando em frente. Pôs o motor a trabalhar.

Finalmente ela disse. «Está bem. Desculpa.» O tom era mal-humorado mas Baker sabia que era a única coisa que seria capaz de conseguir.

Inclinou-se para ela e deu-lhe um beijo no rosto. «Não», disse ele. «Fizeste aquilo que estava certo. Salvámos a vida do velhote.»

A esposa sorriu.

Saiu do parque de estacionamento, dirigindo-se para a auto-estrada.

No hospital o velho dormia, com o rosto parcialmente coberto por uma máscara de oxigénio. Agora estava calmo; ela dera-lhe um sedativo fraco e encontrava-se relaxado, respirando facilmente. Beverly Tsosie deixou-se ficar aos pés da cama, revendo o caso com Joe Nieto, um Apache Mescalero, um interno muito qualificado e excepcional em diagnósticos. «Indivíduo branco do sexo masculino com cerca de setenta anos de idade. Quando entrou estava confuso, com os sentidos embotados e muito desorientado. Pequena congestão com falha cardíaca, teor levemente elevado de enzimas no fígado, e julgo que é tudo.»

<E não lhe bateram com o carro?»

«Aparentemente não. Mas não deixa de ser engraçado. Dizem que o encontraram a vaguear a norte do Corazón Canyon. Naquele sítio não existe nada em redor numa distância de mais de dez milhas.»

«E?» «Este tipo não apresentava quaisquer sinais de exposição, Joe. Nenhuma desidratação, sem cetose. Nem sequer queimaduras do sol.»

«Achas que alguém se livrou dele? Alguém que estava cansado de ter a responsabilidade do avozinho?»

«Sim. já pensei numa coisa dessas.» «E o que é que me dizes dos dedos?»

«Francamente não sei», respondeu ela. «Tem um problema qualquer de circulação. As pontas dos dedos estão frias, a ficarem arroxeadas, correndo o risco de se iniciar um processo de gangrena. Seja o que for, tem piorado desde que chegou ao hospital.»

«É diabético?» «Não.»

«Raynaud?» «Não.» Nieto, que se encontrava ao lado da cama, debruçou-se sobre o velho,

observando os dedos. «0 problema é só com as pontas dos dedos. Todo o dano é distal.»

«Certo», disse ela. «Se não tivesse sido encontrado no deserto diria que se tratava de um caso de ulceração pelo frio.»

«Verificaste a hipótese de metais pesados, Sabes que se pode tratar de uma exposição tóxica a metais pesados. Cádinio ou arsénico. Isso poderia explicar o problema dos dedos e a sua leve demência.»

«Tirei amostras. Mas as análises de metais pesados vão para o UNH em Albuquerque. Só vou receber o relatório dentro de setenta e duas horas.» «Tens uma identificação, historial médico, qualquer coisa?»

«Nada. Notificámos as pessoas desaparecidas e enviámos as suas impressões digitais para Washington, para uma verificação no banco de dados, mas isso pode levar uma semana.»

Nieto concordou com um aceno de cabeça. «E quando estava agitado, a balbuciar? O que é que ele dizia?»

«Falava em rima, repetindo as mesmas coisas interminavelmente. Qualquer coisa a respeito de Gordon e Stariley. E em seguida dizia, "0 telefone quondam faz-me vaguear."»

« Quondam? Isso é Latim?»

Ela encolheu os ombros. «já lá vão muitos anos desde que ia à igreja,> «Julgo que quondam é uma palavra em Latim», disse Nieto.

E em seguida ouviu uma voz que dizia, «Dão-me licença?» Era o miúdo de óculos na cama do outro lado da sala, sentado junto da mãe.

«Ainda estamos à espera do cirurgião, Kevin,» disse-lhe Beveriy. «Logo que ele chegue podemos tratar do teu braço.»

«Ele não estava a dizer telefone quondam, estava a dizer "espuma quântica" «0 quê?»

«Espuma quântica. Estava a dizer espuma quântica.»

Aproximaram-se dele. Nieto parecia divertido. «E o que quer dizer exactamente espuma quântica?»

O miúdo olhou para eles com ar grave, os olhos a pestanejarem por detrás dos óculos. «Em dimensões subatómicas muito pequenas, a estrutura do espaço-tempo é irregular. Não é homogénea, é de certo modo cheia de bolhas e espumosa. E porque isto se verifica a um nível quântico, dá-se-lhe o nome de espuma quântica.»

«Quantos anos tens?» perguntou Nieto. «Onze.»

A mãe disse: «Ele lê muito. O pai trabalha em Los Alamos.»

Nieto acenou com a cabeça. «E para que é que serve essa espuma quântica, Kevin?»

«Não se trata de uma questão de servir para isto ou para aquilo», respondeu o miúdo. «É apenas o modo como o universo se apresenta a um nível subatómico.»

«Por que é que o velhote havia de estar a falar de uma coisa dessas?» «Porque é um físico muito conhecido», disse Wauneka, aproximando-se deles. Olhou para uma folha de papel que trazia na mão. «Acabou de chegar ao M.PD. Joseph A. Traub, setenta e um anos de idade, físico de materiais. Especialista em metais supercondutores. Considerado como desaparecido pelo seu patrão, a ITC Research em Black Rock, desde o meio-dia de hoje.»

«Black Rock? Fica a caminho de Sandia.» Ficava a várias horas de distância, no centro do Novo México. «Pelas alminhas de quem é que este tipo veio procurar a Coraz6n Canyon no Arizona?>>

«Não faço a menor ideia» disse Beverly. «Mas ele ... » Os alarmes começaram a soar.

Aconteceu com uma suavidade que deixou jlmmy Wauneka boquiaberto. O velho ergueu a cabeça da almofada, olhou fixamente para eles com um olhar desvairado e, em seguida, vomitou sangue. A máscara de oxigénio ficou de um vermelho vivo; o sangue espirrou da máscara, correndo em fios pelas bochechas e pelo queixo, salpicando a almofada e a parede. Produziu um som de gorgolejar: estava a afogar-se no seu próprio sangue.

Beverly atravessou a sala a correr. Wauneka correu atrás dela, «Volta-lhe a cabeça!» estava Niete, a dizer quando chegou junto da cama. «Volta!» Beverly arrancara-lhe a máscara de oxigénio e estava a tentar voltar a cabeça do velho, mas este debateu-se, ainda a gorgolejar, os olhos arregalados com o pânico. Wauncka afastou-a para o lado, agarrou a cabeça do velho com ambas as mãos e voltou-o firmemente de lado. O homem vomitou novamente; o sangue espirrou para os monítores e sobre Wauneka. «Sucção!», gritou Beverly, apontando para um tubo que se encontrava na parede.

Wauneka tentou segurar o homem e agarrar o tubo, mas o soalho estava escorregadio por causa do sangue. Escorregou, agarrando-se à cama para se apoiar.

Vá lá, gente!» gritou Tsosie. «Preciso de vocês! Sucção!» Estava de joelhos, metendo os dedos na boca do homem, puxando-lhe a língua. Wauneka levantou-se com dificuldade e viu Nieto que segurava uma linha de sucção. Agarrou-a com os dedos escorregadios por causa do sangue e viu Nieto a abrir a válvula de parede. Beverly pegou na sonda de neoprene e começou a limpar a boca e o nariz do tipo. Sangue de um vermelho vivo corria pelos tubos. O homem arquejou, tossiu, mas estava cada vez mais fraco.

«Não gosto disto», disse Beverly, «acho que era melhor ... » Os monitores mudaram de tom, agora mais agudo e firme. Paragem cardíaca.

«Porra», disse ela. A bata e a blusa estavam cheias de sangue. «Electrochoque! Tragam o equipamento!»

Nieto estava de pé junto da cama, segurando os terminais com os braços estendidos. Wauneka afastou-se atabalhoadamente de junto da cama quando Nancy Hood o empurrou para passar; naquele momento imensa gente se apinhava à volta do homem. Wauneka sentiu um odor acre e concluiu que os intestinos do homem se tinham aliviado. De repente compreendeu que o homem ia morrer.

«Pronto», disse Nieto, enquanto aplicava os terminais. O corpo estremeceu violentamente na maca. Os frascos na parede estremeceram. Os alarmes dos monitores continuavam.

Beverly disse: «Fecha a cortina, Jiminy.»

Olhou para trás e viu o miúdo de óculos do outro lado da sala, de olhos arregalados e a boca aberta. Wauneka fechou rapidamente as cortinas.

Uma hora mais tarde uma Beverly Tsosie completamente exausta deixou-se cair na cadeira da secretária a um canto da sala para redigir o relatório. Tinha que ser invulgarmente completo porque o paciente morrera. Enquanto folheava o Processo, Jimmy Wauneka aproximou-se dela trazendo-lhe um café. «Obrigada», disse ela. «A propósito, tens o número de telefone dessa companhia ITC? Tenho de lhes telefonar.»

«Posso fazer isso por ti», disse Wauneka, apoiando por instantes a mão no ombro dela. «Tiveste um dia estuporado.»

Antes dela ter conseguido responder, Wauneka dirigiu-se para a secretária mais próxima, abriu o bloco que folheou e começou a marcar o número. Sorriu para ela enquanto esperava ser atendido.

«ITC Research.»

Identificou-se e em seguida disse: «Telefono-lhes por causa do vosso empregado dado como desaparecido, Joseph Traub.»

«Só um momento por favor. Vou ligá-lo ao nosso director de recursos humanos.»

Em seguida esperou durante vários minutos. Ouvia-se um fundo musical. Colocou a mão sobre o bocal e do modo mais descontraído que foi capaz, disse a Beverly: «Estás livre para jantar ou vais ver a tua avó?»

Ela continuou a escrever, não levantando os olhos dos papéis. «Vou vê-la.

Ele encolheu os ombros levemente. «Lembrei-me de perguntar», disse. «Mas ela deita-se muito cedo. Por volta das oito horas.»

«Estás a falar a sério?»

Ela sorriu, continuando a olhar para os seus apontamentos. «Estou.» Wauneka sorriu. «Bom, então estamos combinados, certo?»

«Certo.» O telefone voltou de novo à vida e ouviu uma voz de mulher que dizia: «Só um momento por favor, vou ligá-lo com o nosso primeiro vice-presidente, o Dr. Gordon.»

«Muito obrigado.» E ficou a pensar no primeiro vice-presidente.

Mais um estalido do telefone e, em seguida, ouviu uma voz grave: «Fala John Gordon.»

«Dr. Gordon, fala James Wauneka do Departamento de Polícia de GaIlup. Telefono-lhe do Hospital Mcl(inley em Gallup», disse. «Receio ter más notícias para lhe dar.»

Vista através das janelas panorâmicas da sala de conferências da ITC, o sol amarelado daquela tarde dardejava nos cinco edifícios em vidro e aço dos laboratórios do complexo de investigação de Black Rock. à distância, nuvens de tempestade formavam-se sobre o deserto longínquo. Mas dentro da sala os doze membros da administração da iTC não se importavam com aquela visão. Estavam a tomar café numa mesa de apoio, conversando uns com os outros enquanto esperavam que a reunião começasse. Aquelas reuniões eram feitas sempre à noite porque o presidente da ITC, Robert Doniger, era conhecido por dormir muito pouco, o que fazia com que marcasse as reuniões para aquelas horas. Podia dizer-se que era um tributo ao brilhantismo de Doniger que todos os membros da administração, directores e os mais importantes investidores de capital comparecessem em tais condições.

Naquele instante Doniger ainda não aparecera. John Gordon, o atarracado vice-presidente de Doniger, estava convencido de que sabia porquê. Sempre a falar ao telemóvel, Gordon abriu caminho na direcção da porta. Em tempos Gordon fora project manager na Força Aérea, e ainda tinha um porte militar. O seu fato azul de homem de negócios tinha um aspecto impecável e os sapatos brilhavam. Aproximando o telemóvel da orelha, disse, «Compreendo Senhor Agente» e saiu da sala.

Exactamente como pensara, Doniger encontrava-se no átrio, andando de um lado para o outro como um miúdo irrequieto, enquanto Diane Kramer, chefe de advogados da iTC se encontrava próximo ouvindo o que ele dizia. Gordon viu que Doniger apontava o dedo irritadamente na sua direcção. Não havia dúvida de que lhe estava a passar uma descompostura.

Robert Doniger tinha trinta e oito anos, era um físico brilhante e além disso era bilíonário. Apesar de um ventre saliente e do cabelo grisalho, o seu aspecto permanecia jovem - ou juvenil, dependendo da pessoa com quem falava. Não havia dúvida de que os anos não o tinham envelhecido. A ITC era a terceira companhia que arrancara desde o início; ficara rico com as outras mas a sua gestão continuava a ser tão cáustica e desagradável como sempre. Na companhia quase toda a gente tinha medo dele.

Por deferência para com a mesa da direcção, Doniger vestira um fato azul, esquecendo os seus habituais caquis e camisolões. Mas dava a impressão de se sentir desconfortável dentro do fato, parecendo um miúdo a quem os pais haviam obrigado a vestir-se daquela maneira.

«Bom, muito obrigado Agente Wauneka», disse Gordon ao telemóvel. «Vamos tratar de tudo o que for necessário. Sim. Vamos fazê-lo imediatamente. Mais uma vez muito obrigado.» Gordon desligou o telemóvel e voltou-se para Doniger. «Traub está morto e identificaram o seu corpo.»

«Onde?» «Gallup. A chamada era de um polícia a telefonar das Urgências.» «De que é que pensam que ele morreu?»

«Não sabem. Falam de uma paragem cardíaca maciça. Mas houve um problema com os dedos. Um problema circulatório. Vão fazer uma autópsia. É obrigatório por lei.»

Doniger fez um gesto com a mão com um ar irritado. «Merda de chatice. A autópsia não vai dar nada. Traub tinha erros de transcrição. Nunca serão capazes de fazer uma ideia daquilo que se passou. Porque é que está a perder tempo com essa merda?»

«Um dos seus homens acabou de morrer, Bob», disse Gordon.

«É verdade», respondeu Doniger friamente. «E sabe uma coisa? Quero que toda essa merda se lixe. Lamento, é a única coisa que posso dizer. Raios partam tudo isto. Mande algumas flores. Ocupe-se de tudo está bem?»

Em momentos como este, Gordon costumava respirar fundo e lembrar-se de que Doniger não era diferente da maioria de tantos outros empresários igualmente agressivos. Não se podia esquecer de que, por detrás daquele sarcasmo, Doniger quase sempre tinha razão. E também não se podia esquecer de que, em qualquer caso, Doniger sempre se comportara daquela maneira durante toda a sua vida.

Robert Doniger demonstrara sinais claros de gênio, embrenhando-se em manuais de engenharia quando ainda frequentava a escola primária. Com a idade de nove anos era capaz de reparar qualquer aparelho electrónico - um rádio ou uma televisão - mexendo em válvulas e fios até que o aparelho voltasse a funcionar. Um dia em que a mãe lhe disse que receava que ele ficasse electrocutado, respondeu-lhe: «Não sejas idiota.» E quando a sua avó favorita morreu, um Doniger de olhos enxutos informou a mãe de que a velha senhora lhe ficara a dever vinte e sete dólares e que ele esperava que a mãe honrasse a dívida.

Depois de se ter diplomado summa cum laude em Física pela Universidade de Stanford, com dezoito anos, Doniger foi trabalhar para o Fermilab, próximo de Chicago. Despediu-se ao fim de seis meses, dizendo ao director do labratório que «a física de partículas era para atrasados mentais». Regressou a Stanford, onde trabalhou naquilo que ele considerava como uma área mais prometedora: magnetismo supercondutor.

Nessa época cientistas de todos os tipos estavam a sair das universidades para iniciarem firmas onde pudessem explorar as suas descobertas. Doniger saiu ao fim de um ano para fundar a TechGate, uma companhia que fabricava os componentes para a gravação de precisão do chip que entretanto Doniger inventara. Quando Stanford reclamou, dizendo que essas descobertas haviam sido feitas enquanto ele ainda trabalhava no laboratório, Doniger respondeu: «Se acham que têm problemas processem-me. Caso contrário calem-se de uma vez por todas.»

Foi na TechGate que o estilo severo de gestão de Doniger se tornou famoso. Durante as reuniões com os seus cientistas, sentava-se a um canto, inclinando a cadeira perigosamente para trás, enquanto ia disparando perguntas. «0 que é que se passa com isto?» «Porque é que não está a fazer aquilo?» «Qual a razão disto?». Se ficasse satisfeito com a resposta era capaz de responder: «Talvez...» Este era o maior elogio que qualquer um conseguia obter de Doniger. Mas se não gostasse da resposta - e normalmente era isso que acontecia - respondia num resmungo: «Será por acaso desmiolado?» «Tem aspirações a vir a ser um idiota?» «Quer morrer estúpido?» «Nem sequer pode ser considerado um atrasado mental.» Quando perdia mesmo a cabeça atirava com lápis e blocos, e gritava: «Imbecis! Corja de imbecis!»

Os empregados da TechGate procuravam desculpar os acessos de raiva da «Marcha Fúnebre de Doruger» porque era um físico brilhante, muito melhor do que eles; porque conhecia os problemas que as suas equipas enfrentavam; e porque as suas críticas eram invariavelmente justas. Por muito desagradável que fosse, este estilo azedo produzia resultados; em dois anos a TechGate fez progressos notáveis.

Em 1984 vendeu a sua companhia por cem milhões de dólares. Nesse mesmo ano, a revista Tíme considerou-o como uma das pessoas com menos de vinte e cinco anos «que iriam moldar o resto do século». Nesta lista também se encontravam incluídos Bill Gates e Steve Jobs.

«Raios partam tudo isto», exclamou Doniger voltando-se para Gordon. «Será que tenho que fazer tudo sozinho? Santo Deus. Onde é que eles encontraram Traub?»

«No deserto. Na reserva Navajo.» «Onde, exactamente?»

«Tudo o que sei é que foi encontrado num lugar a dez milhas a norte de Corazón. Segundo parece não há por ali grande coisa.»

«Muito bem», disse Doniger. «Sendo assim, manda chamar Baretto da segurança e diz-lhe que leve o carro de Traub até Corazón e que o deixe no deserto. Quando lá chegar, fura-lhe um pneu e vem-se embora.»

Diane Kramer pigarreou. Tinha cabelo escuro, cerca de trinta anos, e envergava um saia e casaco negro. «E capaz de não ser o mais indicado, Bob», disse ela no seu melhor tom legal. «Estás a adulterar as provas ... »

«É evidente que estou a adulterar as provas! A questão é essa precisamente! Vai haver quem pergunte o que é que Traub andava ali a fazer. É por isso que lhes vamos deixar o seu carro para que o encontrem.»

«Mas não sabemos exactamente onde ... »

«Não interessa o local exacto. Façam-no e acabou-se a história.»

«Isso quer dizer que Baretto e mais alguém vão ficar ao corrente da história... »

«E quem é que se preocupa com isso? Ninguém. Façam o que eu digo e mais nada, Diane.»

Seguiu-se um curto silêncio. Kramer olhava para o soalho, de sobrancelhas franzidas, notando-se claramente que não se sentia bem.

«Olha uma coisa», disse Doniger, voltando-se para Gordon. «Lembras-te quando Garman ia conseguir o contrato e a minha antiga companhia estava mais atrasada? Recordas-te da fuga para a imprensa?»

«Recordo», respondeu.

«Estavas tão Preocupado com a história», disse Doniger com um sorriso. Explicou a Kramer: «Garman era um autêntico suíno. Tempos depois perdeu peso porque a esposa o obrigou a fazer dieta. Deixámos escapar uma informação de que Garman sofria de um cancro que não podia ser operado e que a sua companhia ia falir. Negou a notícia mas ninguém acreditava nele por causa do aspecto que tinha. Conseguimos o contrato. Mandei um cesto de fruta à esposa dele.» Deu uma gargalhada. «Mas o importante é que ninguém foi capaz de relacionar connosco a fuga da informação. Vale tudo Diane. Negócio é negócio. Deixa a porra do carro no deserto.»

Ela acenou afirmativamente com a cabeça, embora continuasse a olhar para o chão.

«E em seguida», disse Doniger, «quero saber por alminhas de quem é que Traub teve acesso à sala de trânsito. Não se esqueçam de que já tinha feito demasiadas viagens, e acumulara muitos defeitos de transcrição. Já passara o seu limite. Não devia fazer mais nenhuma viagem. Não tinha luz verde para o trânsito. A segurança é muito apertada em volta dessa sala. O que me leva a perguntar, como é que ele conseguiu entrar?»

«Julgo que tinha uma autorização de manutenção, para poder trabalhar nas máquinas», respondeu Kramer. «Esperou até ser noite e na altura da mudança de turnos enfiou-se numa das máquinas. Mas estamos presentemente a verificar isso tudo.»

«Não quero que verífiques», respondeu Doniger em tom sarcástico. «Quero que faças o necessário para que não volte a acontecer, Diane.»

«Podes contar com isso, Bob.»

«É melhor que seja assim», disse Doniger. «Não nos esqueçamos de que neste momento a companhia enfrenta três problemas significativos. E o Traub é o de menor importância. Os outros são maiores. Muito, muito maiores.»

Doniger sempre fora dotado para uma visão à distância. Ainda em 1984 vendera a TechGate, porque previra que os chips para computador «Iam bater na parede». Nessa altura uma opinião deste género parecia insensata. Os chips para computador duplicavam de potência todos os dezoito meses enquanto o custo descia para metade. Mas Doniger reconhecera que esses avanços eram feitos à custa de uma acumulação de componentes dentro do chip cada vez mais apertada. Não podia continuar assim indeterminadamente. Chegaria uma altura em que os circuitos estariam tão atravancados dentro do chip que este derreteria com o calor. Isto implicava um limite superior em termos de potência do computador. Doniger sabia que a sociedade iria exigir cada vez mais poder bruto para o computador, mas não conseguia descortinar nenhum modo de o conseguir.

Frustrado, voltou-se para o seu interesse inicial, o magnetismo supercondutor. Arrancou com uma segunda companhia, Advanced Magnetics, que possuía diversas patentes essenciais para as novas máquinas de Imagiologia por Ressonância Magnética, que estavam a começar a revolucionar a medicina. A Advanced Magneties recebia um quarto de milhão de dólares em royalties por cada máquina IRM que era construída. Era «uma vaca parideira», disse Doniger uma vez: «e quase tão interessante como ordenhar uma vaca leiteira.» Aborrecido e procurando novos desafios, vendeu a firma em 1988. Tinha vinte e oito anos e valia um bilião de dólares. Mas segundo o seu ponto de vista, ainda tinha que se afirmar.

No ano seguinte, 1989, começou com a ITC.

Um dos heróis de Doniger era o físico Richard Feynman. No princípio da década de 80, Feyriman apresentara uma hipótese de que talvez fosse possível construir um computador usando as propriedades quânticas dos átomos. Teoricamente, um «computador quântico» deste género seria biliões e biliões de vezes mais potente do que qualquer computador até então construído. Mas a ideia de Feyriman implicava uma tecnologia genuinamente nova - uma tecnologia que era preciso construir desde o esboço, uma tecnologia que modificava todas as regras. Considerando que ninguém era capaz de descobrir um modo prático de construir um computador quântico, a ideia de Feyriman foi esquecida rapidamente.

Mas Doniger não a esqueceu.

Em 1989 Doniger preparou tudo para iniciar a construção do seu primeiro computador quântico. A ideia era tão radical - e tão arriscada - que nunca anunciou publicamente a sua intenção. Maliciosamente deu à sua nova companhia a designação de ITC, iniciais de International Technology Corporation.

Estabeleceu a sua sede em Geneva, seleccionando os seus colaboradores entre o grupo de físicos que trabalhavam para a CERN'.

Durante vários anos a partir daí ninguém ouviu falar de Doniger ou da sua companhia. As pessoas concluíram que se retirara, isto se alguma vez chegaram a pensar nele. Afinal de contas era vulgar, no caso de empresários para as altas tecnologias, desaparecerem de vista depois de terem conseguido as suas fortunas.

Em 1994, a revista Time apresentou uma lista de vinte e cinco pessoas com menos de quarenta anos que estavam a moldar o mundo. Robert Doniger não se encontrava incluído nesta lista. Ninguém se preocupou; ninguém se lembrou dele.

Nesse mesmo ano mudou as instalações da ITC para os Estados Unidos, instalando os laboratórios da firma em Black Rock, Novo México, uma hora a norte de Albuquerque. Um observador atento poderá ter notado que se mudou novamente para um lugar onde tinha uma equipa de físicos disponíveis. Mas de propósito ou não, não existiam observadores.

Foi assim que ninguém se apercebeu de que durante o ano de 1990 a ITC se desenvolveu de forma notável. Foram construídos mais laboratórios nas instalações do Novo México; foram contratados mais físicos. O conselho de directores de Doniger aumentou de seis para doze. Eram todos directores executivos de companhias que haviam investido na ITC, ou accionistas. Todos assinaram um acordo draconiano de não revelação, exigindo-lhes um compromisso significativo adicional, de se submeterem a um teste de polígrafo sempre que lhes fosse exigido, e de permitirem que a ITC colocasse os seus telefones em escuta sem aviso prévio. Para além disso, Doniger pediu um investimento mínimo de 300 milhões de dólares. Era, conforme explicou de forma arrogante, o custo de um lugar no conselho de direcção. «Querem saber aquilo que eu pretendo, querem fazer parte daquilo que estamos a fazer aqui, o que corresponde a um terço de um bilião de dólares. É pegar ou largar. Em qualquer dos casos, estou-me nas tintas.»

Mas é evidente que não era esse o caso. A ITC tinha gastos terríveis: nos últimos nove anos haviam desaparecido mais de 3 biliões de dólares. E Doniger sabia que ia precisar de mais.

 

' Organização EUropeia para a Investigação Nuclear. (N. T)

 

«Problema número um», disse Doniger. «A nossa capitalização. iremos precisar de mais um bilião antes de vermos a luz do dia.» Acenou na direcção da sala do conselho. «Não estarão na disposição de uma coisa dessas. Tenho que conseguir que aprovem mais três membros da direcção.»

Gordon disse: «É um problema bicudo, naquela sala.»

«Eu sei que é», disse Doniger. «Vêem o que estamos a gastar e querem saber quando é que isto vai ter um fim. Querem ver resultados concretos. E é isso que lhes vou dar hoje.»

«Que resultados concretos?»

«Uma vitória», respondeu Doniger. «Esses merdas vão precisar de uma vitória. Algumas notícias excitantes sobre um dos projectos.»

Kramer inspirou profundamente. Gordon disse: «Bob, os Projectos são todos a longo prazo.»

«Um deles há-de estar quase pronto. Por exemplo, o Dordogne?» «Não está. Não aconselho essa abordagem.»

«E eu preciso de uma vitória», respondeu Doniger. «0 Professor Johnston passou três anos em França com essa malta de Yale, à nossa custa. Precisamos de ter qualquer coisa para mostrar.»

«Ainda não, Bob. De qualquer modo, não temos tudo.» «Temos o suficiente.»

«Bob ... »

«Diane vai ter com eles. Pode pressioná-los de uma forma delicada.» «0 Professor Johnston não vai gostar disso.»

«Tenho a certeza de que a Diane é capaz de manobrar o Professor Johnston. » Um dos assistentes abriu a porta da sala de conferências e olhou para o átrio. Doniger exclamOUI «Só um minuto!» Mas imediatamente começou a dirigir-se

para a porta.

Olhou para eles por cima do ombro e disse: «Mãos à obra!» E, em seguida, dirigiu-se para a sala e fechou a porta.

Gordon caminhou com Kramer ao longo do corredor. Os seus saltos altos martelavam o soalho. Gordon olhou para baixo e verificou que em complemento do saia e casaco negro Jil Sander muito correcto e corporatiVo, ela usava sapatos de salto alto de tira em preto. Era o aspecto clássico de Kramer: sedutora e ao mesmo tempo inatingível.

Gordon perguntou-lhe: «Já sabias disto antes?»

Ela acenou com a cabeça. «Mas não há muito tempo. Tinha-me dito há cerca de uma hora.»

Gordon não disse nada. Conteve a sua irritação. Há já doze anos que Gordon estava com Doniger, desde os dias da Advanced Magnetics. Na iTC dirigira uma operação de investigação industrial de primeiro plano em dois continentes, utilizando dúzias de físicos, químicos e cientistas de informática. Tivera que aprender sobre metais supercondutores, compressão fractal, qubits quânticos e troca lónica de alto fluxo. Ficara farto dos físicos teóricos - a pior espécie - e mesmo assim foram alcançadas metas; o desenvolvimento estava dentro do prazo; os excessos de custo eram aceitáveis. Mas apesar do seu sucesso, Doniger continuou a não confiar nele.

Por outro lado Kramer sempre tivera uma relação muito especial com Doniger. Começara como advogada numa firma de juristas exterior à empresa, executando trabalho para esta. Doniger chegou à conclusão de que ela era elegante e tinha classe, pelo que a contratou. Foi sua namorada durante o ano seguinte, e mesmo que isso já tivesse acabado há muito tempo, ainda a ouvia. Ao longo dos anos ela fora capaz de evitar vários desastres potenciais.

«Durante os últimos dez anos», disse Gordon, «fornos capazes de conservar esta tecnologia em sossego. Quando se pensa nisso temos que concordar que foi um milagre. Traub é o primeiro incidente que temos de enfrentar. Felizmente foi cair nas mãos de um chui imbecil e fica por aí. Mas se Doniger começa a fazer pressão em França, corremos o risco de as pessoas começarem a somar dois mais dois. já tivemos a história daquele repórter em Paris que não nos largava. Bob pode deixar isto escancarado.»

«Eu sei que ele considerou todos esses aspectos. É o segundo grande problema.»

«0 ser do conhecimento público?» «Exacto. Vir tudo à luz do dia.» «E ele não está preocupado?»

«É evidente que está preocupado. Mas parece que tem um plano para lidar

COM o assunto.»

«Espero bem que sim», disse Gordon. «Não podemos estar à espera de termos sempre um chui idiota a lidar com a nossa roupa suja.»

O agente James Wauneka chegou ao Hospital Mcl(inley na manhã seguinte, à procura de Beverly Tsosie. Pensava verificar os resultados da autópsia do velhote que morrera, Mas disseram-lhe que Beverly fora para a Unidade de Imagiologia no terceiro andar. Sabendo isto dirigiu-se ao seu encontro.

Foi encontrá-la numa pequena sala de paredes pintadas em bege, adjacente ao scanner branco. Estava a falar com Calvin Chee, o técnico da IRM. Estava sentado na mesa do computador, enquanto iam passando no monitor imagens a preto e branco, umas atrás das outras. As imagens mostravam cinco círculos dispostos numa fila. Enquanto Chee passava as imagens, os círculos tornavam-se cada vez mais pequenos.

«Calvin», estava ela a dizer. «É impossível. Tem de ser artificial.» «Pediste-me para rever os dados», disse ele, «e agora não acreditas em mim? Estou a dizer-te, Bev, não é artificial. É real. Aqui, olha para a outra mão.»

Chee serviu-se do teclado e apareceu então uma imagem oval no monitor, com cinco círculos pálidos dentro dela. Okay? Esta é a palma da mão esquerda, vista num corte a meia secção.» Voltou-se para Wauneka. «Muito semelhante àquilo que verias se colocasses a tua mão num cepo de talho e cortasses a direito.» «Muito bem Calvin.»

«Bem, o que eu quero é que fique tudo bem claro.»

Voltou-se novamente para o monitor. Okay, pontos essenciais. Os cinco círculos redondos são os cinco ossos palmares. Estas coisas são os tendões que vão para os dedos. Não te esqueças de que os músculos que fazem trabalhar a mão se encontram quase todos no antebraço. Okay. Este círculo mais pequeno é a artéria radial que transporta o sangue para a mão através do pulso. Okay.

Agora afastamo-nos do pulso em cortes seccionais.» As imagens alteraram-se. A figura oval ficou mais estreita, e um por um os ossos foram-se separando, fazendo lembrar uma arruba a dividir-se. Agora havia quatro círculos. «Okay. Agora já passámos a palma e vemos apenas os dedos. Pequenas artérias dentro de cada dedo, dividindo-se à medida que avançamos, ficando cada vez mais pequenas, embora ainda se possam ver. Estás a ver, aqui e aqui? Okay. Agora, caminhando para as pontas dos dedos, este é o dedo proximal, a articulação... e agora ... olha para as artérias, vê como se encontram dispostas... secção por secção ... e agora!»

Wauneka franziu as sobrancelhas. «Parece uma falha. Como se qualquer coisa tivesse saltado.»

«Houve qualquer coisa que saltou mesmo», disse Chee. «As arteríolas estão fora do lugar. Não se encontram alinhadas, Vou passar isto de novo.» Voltou à secção prévia e em seguida passou à seguinte. Era perfeitamente claro - os círculos das minúsculas artérias pareciam ter sido afastados para os lados. «É por isso que o tipo apresentava gangrena nos dedos. Não havia circulação porque as artérias não se encontravam alinhadas. Parece uma incompatibilidade ou qualquer coisa no género.»

Beverly abanou a cabeça, «Calvin.»

«Estou a dizer-te. E não é só aqui, também verificámos o mesmo em outros lugares do corpo. Como por exemplo no coração. O tipo morreu de um ataque coronário maciço? Não é surpresa nenhuma, porque as paredes ventriculares também não se encontram alinhadas.»

«É tecido com cicatrizes já antigas», disse ela, abanando a cabeça. «Vá lá, Calvin. O tipo tinha setenta e um anos. Mesmo que houvesse qualquer coisa de errado com o coração dele, este trabalhou mais de setenta anos. O mesmo se passa em relação às mãos. Se esse desalinhamento das arteríolas estivesse de facto presente, os dedos já lhe deviam ter caído há anos. Mas isso não aconteceu. De qualquer modo, tratava-se de um novo ferimento; piorou quando já estava no hospital.»

«Se é assim, o que é que estás a querer dizer-me, que a máquina não está a funcionar como deve ser?»

«Tem que ser. Não é verdade que se podem registar erros de hardware? E que por vezes se encontram vírus na limpeza do software?»

«Verifiquei a máquina, Bev. Está em perfeitas condições.»

Ela encolheu os ombros. «Desculpa, mas não acredito. Tens que ter um problema em qualquer sítio. Olha uma coisa, se tens tanta certeza de que está tudo bem, vai lá abaixo à patologia e verifica o tipo em pessoa.»

«Já tentei», disse Chee. «0 problema é que já tinham levantado o corpo.» <já?» Perguntou Wauneka. «Quando?»

«às cinco da manhã. Alguém da sua companhia.»

«Bom, deve ter sido feito pela Sandia», disse Wauneka. «Talvez ainda estejam a caminho ... »

«Não», Chee abanou a cabeça. «Foi cremado esta manhã.» «A sério? Onde?»

«Na morgue de Gallup.»

«Cremaram-no aqui?», perguntou Wauneka.

«Estou a dizer-te», afirmou Chec, «que há mesmo qualquer coisa de muito estranha a respeito deste tipo.»

Beverly Tsosie cruzou os braços sobre o peito. Olhou para os dois homens. «Não há nada de estranho,» disse ela. «A sua companhia procedeu assim porque foram capazes de organizar tudo à distância, pelo telefone. Telefonaram para a casa mortuária, eles vieram cá e cremaram-no. Está sempre a acontecer, em especial quando não há família. Agora acabem com isso», disse ela, «e chamem os técnicos para reparar a maquina. Vocês estão com um problema com a IRM - e é tudo.»

Jimmy Wauneka queria encerrar o caso Traub tão rápido quanto possível. Mas de volta às Urgências, viu um saco de plástico que continha as roupas e os artigos de uso pessoal do velho. A única coisa que podia fazer era voltar a telefonar para a ITC. Desta vez falou com outro vice-presidente, uma tal Ms. Kramer. O Dr. Gordon estava em reunião e não se encontrava disponível. «É a respeito do Dr. Traub,» disse ele.

«Oh, sim.» Um suspiro de tristeza. «Pobre Dr. Traub, era um homem tão simpático.»

«0 seu corpo foi cremado hoje, mas ainda tenho aqui alguns dos seus artigos pessoais. Não sei o que é que querem que faça com eles.»

«0 Dr. Traub não tem parentes vivos», respondeu Ms. Kramer. «Duvido de que alguém queira as suas roupas ou qualquer outra coisa. De que artigos é que está a falar?»

«Bom, tinha um diagrama no bolso. Parece uma igreja ou talvez um mosteiro.»

«Uh-huli.» «Faz alguma ideia da razão pela qual tinha um diagrama de um mosteiro?»

«Não, na verdade não sei. Para lhe dizer a verdade, o Dr. Traub andava um bocado estranho nestas últimas semanas. Ficou bastante deprimido desde que a esposa morreu. Tem a certeza de que é um mosteiro?»

«Não, certeza não tenho. Não sei ao certo o que é que possa ser. Quer que lhe mande este diagrama?»

«Se não lhe fizer muita diferença.» «E quanto a esta coisa em cerâmica?» «Coisa em cerâmica?»

«Tinha uma peça em cerâmica. Tem cerca de uma polegada quadrada e uma gravação que diz ITC.»

«Oh. Okay. Não há problemas.»

«Dei voltas à cabeça a pensar no que é que poderia ser.» «0 que é que poderia ser? É uma chapa de identificação.»

«Não se parece com qualquer chapa de identificação que alguma vez tenha visto.»

«Trata-se de um novo tipo. Usamo-la para passar por portas de segurança e coisas no género.»

«Também quer a chapa de volta?»

«Se não lhe causar muita maçada. Vamos combinar uma coisa. Vou dar-lhe o nosso número de correio expresso FedEx e basta-lhe meter isso num envelope e expedir para o nosso endereço.»

Jimmy Wauneka pousou o auscultador e pensou com os seus botões: Tretas.

Telefonou ao Padre Grogan, o pároco da Igreja Católica da sua zona, e falou-lhe sobre o diagrama e a abreviatura que se via no fundo: mon.ste.mere.

«Poderia ser o Mosteiro de Sainte-Mère», respondeu ele prontamente. «Com que então é um mosteiro?»

«Oh, absolutamente.» «Onde?

«Não faço a menor ideia. Não se trata de um nome espanhol. «Mère» é o termo em Francês para «Mãe». Santa Mãe quer dizer a Virgem Maria. Talvez na Louisiana.>>

«Como é que eu o poderia localizar?»

«Tenho algures uma lista de mosteiros. Dá-me uma hora ou duas para descobrir.»

«Lamento Jimmy. Não vejo que haja aqui qualquer mistério.»

Carlos Chavez era o adjunto do chefe da polícia de Gallup, quase que a atingir a reforma, e fora o conselheiro de jímmy Wauneka desde o início. Naquele momento estava sentado com as botas em cima da secretária, ouvindo aquilo que Wauneka lhe dizia com um ar céptico.

«Bom, aqui vai>, disse Wauneka. «Apanham este tipo no Corazón Canyon, demente e com um ataque de fúria, mas não se verificam nem queimaduras solares, nem desidratação, nem exposição.»

«Sendo assim, foi abandonado. A família atirou-o para fora do carro.» «Não. Não existem parentes vivos.»

«Okay, então foi ele que conduziu até lá.» «Ninguém viu um carro.»

«Quem é esse ninguém?»

«As pessoas que o encontraram.»

Chavez deu um suspiro. «Já foste tu mesmo ao Corazón Canyon e procuraste encontrar um carro?»

Wauncka hesitou. «Não.»

«Aceitaste a palavra de um estranho a esse respeito.» «Sim. Acho que foi isso.»

«Achas? Isso quer dizer que ainda se pode encontrar lá um carro.» «É possível.»

Okay. Então o que é que vamos fazer a seguir?

Telefonei para a companhia dele, a ITC.» «E o que é que eles te disseram?»

«Disseram-me que andava deprimido porque a esposa falecera.» «Compreendo.»

«Não estou lá muito certo», disse Wauneka. «Também telefonei para o apartamento onde Traub viveu. Falei com o administrador do condomínio. A esposa já morreu há um ano.»

«Sendo assim, tudo isto aconteceu perto do aniversário da morte dela, não é? É normalmente nessas alturas que as coisas acontecem, Jimmy.»

«Acho que devíamos ir lá e falar com alguns dos tipos do Centro de Investigações da ITC.»

«Pelas alminhas de quem? Estão a duzentas e cinquenta milhas do local onde este tipo foi encontrado.»

«Eu sei, mas ... »

«Mas o quê? Quantas vezes é que já encontrámos um turista espalmado nas reservas? Três, quatro vezes por ano? E em metade das vezes já estavam mortos, certo? Ou morreram pouco depois, não é verdade?»

«SIM ... »

«E é sempre por uma de duas razões. Ou se trata de gajos do gênero New Age que vêm sentir-se em comunhão com o deus das águias e que se lixam por causa de uma avaria do carro. Ou então estão deprimidos. Ou uma coisa ou outra. E este tipo estava deprimido.»

«Pelo menos é isso que dizem ... »

«Porque a esposa morreu. Se queres que te diga, acredito perfeitamente.» Carlos suspirou. «Alguns tipos sentem-se deprimidos, outros têm alegria de mais.»

«Mas continuamos a ter questões sem resposta,» disse Wauneka. «Há uma espécie de diagrama e um chip em cerâmica ... »

«Jimmy, há sempre questões sem resposta». Chavez piscou-lhe o olho. «Que é que se passa? Não estarás por acaso a tentar impressionar essa medicazinha?» «Que medicazinha?»

«Sabes muito bem aquilo que quero dizer.»

«Raios me partam se sei. Ela afirma que não tem nada a ver com isto.» «Ela tem razão. Esquece.»

«Mas ... »

«Jimmy.» Chavez abanou a cabeça. «Ouve aquilo que te estou a dizer. Esquece.»

Okay.» «Estou a falar a sério.»

«Okay», disse Wauneka. Okay, não se fala mais nisso.»

No dia seguinte a polícia apanhou em Shiprock um bando de miúdos, todos com cerca de treze anos, que conduziam um carro com placas do Novo México. O livrete encontrado no carro indicava que pertencia a Joseph Traub. Os miúdos disseram que tinham encontrado o carro na berma da estrada perto de Corazón Canyon, e que as chaves ainda se encontravam no tablier. Os miúdos tinham estado a beber e o interior do carro estava na maior das confusões, ainda pegajoso da cerveja entornada.

Wauneka não se preocupou em conduzir até lá para verificar o que acontecera.

Um dia depois, o Padre Grogan voltou a telefonar-lhe. «Estive a fazer a verificação que me pediste», disse ele, «e o Mosteiro de Sainte-Mère não existe em nenhuma parte do mundo.»

Okay», respondeu Wauneka. «Obrigado.» De qualquer modo era aquilo de que estava mais ou menos à espera. Mais um beco sem saída.

«Em tempos houve um Mosteiro com esse nome em França, mas ardeu completamente no século catorze. Presentemente não é mais do que uma ruína. Para dizer a verdade, têm estado a ser feitas escavações no local por arqueólogos de Yale e da Universidade de Toulouse. Mas estou convencido de que não vão encontrar grande coisa.»

«Uh-hui---i.» Mas de repente lembrou-se de algumas das coisas que o velhote dissera antes de morrer. Algumas das rimas sem sentido. «Yale na França não tem qualquer chance.» Qualquer coisa no gênero.

«Onde é que fica?»

«Algures no sudoeste da França, perto do Rio Dordogrie.» «Dordogne? Como é que se escreve?» perguntou Wauneka.

 

DORDOGNE

«A glória do passado é uma ilusão. Aliás a glória do presente também é.» Edwardjohnston

 

O helicóptero debatia-se no meio de um espesso nevoeiro cinzento. No banco de trás, Diane Kramer agitava-se inquieta. Quando a neblina se tornou menos espessa, viu os topos das árvores da floresta muito próximo, logo abaixo do aparelho. Perguntou: «Temos que voar tão baixo?»

Sentado à frente, ao lado do piloto, André Marek não conteve uma gargalhada. «Não te preocupes, é perfeitamente seguro.» Mas Marek não parecia o tipo de homem que se preocupasse com o que quer que fosse. Tinha vinte e nove anos, era alto e muito forte; os músculos sobressaíam debaixo da T-shirt. Ninguém diria que era um professor assistente de História na Universidade de Yale. Ou o segundo na linha de comando do projecto Dordogne, para onde agora se dirigiam.

«Não tarda muito a que esta neblina desapareça» disse Marek, falando com um leve sotaque da sua língua materna, o holandês. Kramer sabia tudo a respeito dele: licenciado por Utrecht, Marek fazia parte da nova raça de historiadores "experimentais" que começavam a recriar partes do passado, a experimentá-lo em primeira mão e a compreendê-lo melhor. Marek era um fanático deste tema; estudara os trajes medievais e a língua e os costumes em detalhe; supostamente teria até conhecimentos profundos sobre os torneios de cavalaria. Olhando para ele sentia que era capaz de compreender.

Comentou: «Estou admirada por o Professor Johnston não ter vindo connosco.» De facto Kramer esperara ir lidar com o próprio Johnston. Ela era afinal de contas uma executiva de primeiro plano na companhia que arrancara com esta investigação. O protocolo exigia que tivesse sido Johnston a orientar a viagem de inspecção. E ela tinha feito planos para começar a trabalhar nele durante a viagem de helicóptero.

«Infelizmente o Professor Johnston tinha uma entrevista prioritária.» «Oli?»

«Com François Bellin, o ministro das antiguidades. Deslocou-se propositadamente de Paris.»

«Não sabia.» Kramer sentia-se melhor. Era óbvio que Johnston se via obrigado a dar prioridade às autoridades. O projecto Dordogne dependia totalmente de boas relações com o governo Francês. Disse: «Há algum problema?» «Julgo que não. São velhos amigos. Olha, já chegámos.»

O helicóptero rompeu através do nevoeiro surgindo à luz do sol. As casas agrícolas em pedra espalhavam longas sombras pelo terreno.

Ao passarem por uma das quintas os gansos que se encontravam no terreiro bateram as asas assustados, e uma mulher de avental ameaçou-os de punho fechado.

«Não ficou lá muito contente connosco», disse Marek, apontando a mulher com o seu braço maciço de músculos salientes.

Sentada no banco atrás dele, Kramer colocou os óculos de sol e disse: «Bom, são seis da manhã. Posso saber porque é que viemos tão cedo?»

«Por causa da luz», respondeu Marek. «As sombras das primeiras horas da manhã revelam contornos, marcas de colheitas e mais uma série de coisas.» Apontou para baixo entre os pés. Três volumosos dispositivos amarelos estavam fixados nos suportes frontais do helicóptero. «Nesta viagem trazemos detectores estérec, do terreno, infravermelhos, ultravioletas e radar de scan lateral.»

Kramer apontou para a janela traseira, na direcção de um tubo prateado com cerca de dois metros de comprímento que pendia na parte traseira do helicóptero. «E aquilo o que é?»

«Um magnetómetro protónico.» «Ah! E serve para fazer o quê?»

«Procura anomalias magnéticas no terreno por debaixo de nós que possam indicar paredes enterradas, cerâmicas ou metais.»

«Há mais algum equipamento que gostaria de ter e que não trouxe consigo?» Marek sorriu. «Não, Ms. Kramer, temos tudo aquilo que pedimos, muito obrigado.»

já há algum tempo que o helicóptero deslizava sobre os contornos ondulados de uma densa floresta. Mas começava a ver agora afloramentos de rocha cinzenta, faces de rochas escarpadas que cortavam abruptamente a paisagem.

Admirava o modo como Marek se comportava como um guia experiente, falando quase que continuamente.

«Estas falésias calcárias são o remanescente de uma antiga praia», disse ele. «Há milhões de anos esta parte da França estava coberta pelo mar. Quando o mar recuou deixou para trás uma praia. Comprimida ao longo de milhares de anos, a praia transformou-se em pedra calcária. É uma pedra muito macia. As falésias estão juncadas de cavernas.»

Kramer podia ver de facto muitas cavernas, aberturas escuras talhadas na rocha. «Há imensas», disse.

Marek acenou com a cabeça. «Esta parte do sul da França é um dos lugares do planeta que permaneceu continuamente habitado durante mais tempo. O homem viveu aqui pelo menos durante quatrocentos mil anos. Existe um registo contínuo desde o homem de Neanderthal até à actualidade.»

Kramer acenou impacientemente, «E onde é o projecto?», perguntou ela. «Estamos a chegar.»

A floresta terminou numa zona de quintas dispersas e campos abertos. Dirígiam-se agora para uma aldeia no topo de uma colina; viu um aglomerado de casas de pedra, caminhos estreitos, e a torre de pedra de um castelo que se erguia para o céu.

«É Beyriac», disse Marek sem se voltar para ela. «E aqui temos o nosso sinal Doppier.» Kramer ouviu beeps electrónicos nos auscultadores, que se sucediam cada vez com mais rapidez.

«Preparem-se», disse o piloto.

Marek ligou o seu equipamento. Acenderam-se meia dúzia de lâmpadas de um verde brilhante,

«Ok», disse o piloto. «A começar a primeira passagem transversal. Três... dois... um. »

Depois das colinas onduladas cobertas de árvores surgiu uma falésia escarpada, e Diane Kramer viu o vale do Dordogne que se estendia à sua frente.

O rio Dordogne, parecendo uma cobra acastanhada, estendia-se em curvas e contracurvas ao longo do vale que havia cortado centenas de milhares de anos antes. Mesmo a uma hora tão matinal viam-se kayaks que se deslocavam nas suas águas.

«Nos tempos medievais o Dorelogne era a fronteira militar», disse Marek. «Esta margem do rio era francesa e a outra era inglesa. Os combates faziam deslocar periodicamente a linha de demarcação. Directamente por baixo de nós temos Beynac, uma praça forte francesa.»

Kramer olhou para baixo, vendo uma pitoresca cidade turística com curiosas construções em pedra e telhados em pedra mais escura. Nas estreitas ruas cheias de curvas não se via um único turista. A cidade de Beynac erguia-se na encosta da falésia, desde a margem do rio até aos muros de um velho castelo.

«E ali», disse Marek, apontando para a outra margem do rio, «pode ver a cidade adversária de CasteInaud. Uma praça forte inglesa.»

No topo de uma colina distante Kramer viu um segundo castelo, este construído totalmente em pedra amarela. O castelo era pequeno mas havia sido restaurado de uma forma admirável, com as suas três torres circulares erguendo-se graciosamente no ar, ligadas entre si por muros altos. Também no caso deste se via uma curiosa cidade turística construída em volta da sua base.

Ela disse: «Mas este não é o nosso projecto ... »

«Não», respondeu Marek. «Estou só a mostrar-lhe a disposição geral da região. Ao longo de todo o rio Dordogne pode encontrar estes pares de castelos opondo-se um ao outro. O nosso projecto também envolve um par de castelos que se opõem um ao outro, mas fica algumas milhas mais abaixo. Vamos agora para lá.»

O helicóptero mudou de rumo, dirigindo-se para oeste sobre as colinas onduladas. Deixaram para trás a área turística; Kramer verificou com agrado que o terreno por baixo deles era composto, na sua maioria, por floresta. Passaram por uma pequena cidade junto do rio chamada Envaux, para em seguida voltarem a subir na direcção das colinas. Quando atingiram o topo de uma das colinas viu de repente uma grande extensão de prado verde. No centro do prado viam-se os restos de casas de pedra arruinadas, as paredes erguidas umas em relação às outras em ângulos estranhos. Via-se claramente que outrora havia sido uma cidade, com as casas situadas dentro das paredes de um castelo. Mas as paredes haviam-se transformado numa linha de cascalho e, praticamente, já não existia nada do castelo; só conseguiu ver as bases de duas torres redondas e fragmentos de uma muralha semidestruída que as ligava entre si. Aqui e ali viam-se tendas erguidas entre as ruínas. Avistou várias dezenas de pessoas que trabalhavam ali.

«Até há três anos tudo isto pertencia a um criador de cabras», disse Marek. «Os Franceses quase haviam esquecido estas ruínas, que tinham sido invadidas pela floresta. Fizemos a limpeza do terreno e reconstruímos qualquer coisa. Aquilo que está a ver foi em tempos a famosa praça forte inglesa de Castelgard.»

«Isto é Castelgard?, observou Kramer. Tão Pouco ficara. Algumas paredes ainda de pé indicavam uma cidade. E do castelo, propriamente quase nada. «Estava à espera de que fosse maior», disse ela. "Nos seus dias Castelgard era uma grande cidade, com um castelo absolutamente imponente", disse Marek. «Mas serão necessários vários anos até que esteja tudo restaurado.»

Kramer tentava encontrar uma maneira de vir a explicar aquilo tudo a Doniger. O projecto Dordogne não estava tão adiantado como Doniger imaginara. Seria extremamente difícil começar uma reconstrução de vulto com o local ainda tão fragmentado. E ela tinha a certeza de que o Professor Johnston resistiria a qualquer sugestão para começar.

Marek estava a dizer: «Instalámos o nosso quartel-general naquela quinta que se vê ali.» Apontou para uma quinta com várias construções em pedra não muito distante das ruínas. Uma tenda verde erguia-se junto de uma das construções. «Quer dar mais uma volta para ver melhor Castelgard?»

«Não», disse Kramer, tentando disfarçar na voz o seu desapontamento. «Vamos continuar.»

«Okay, então vamos para o moinho.»

O helicóptero mudou mais uma vez de rumo, dirigindo-se na direcção do rio. O terreno descia numa encosta suave para, em seguida, se tornar plano ao longo das margens do rio. Atravessaram o rio, largo e de um castanho escuro, aproximando-se de uma ilha densamente arborizada próxima da margem mais distante. Entre a ilha e a margem norte havia um braço do rio com pouco mais de cinco metros de largura onde a corrente era mais forte. Viu então as ruínas de uma outra estrutura - de facto tão arruinada que se tornava difícil dizer o que é que havia sido noutros tempos. «E isto?», perguntou ela olhando para baixo. «0 que é isto?»

«E a azenha. Houve em tempos uma ponte sobre o rio, com rodas por baixo movimentadas pela água. Usavam a energia da água para moer o grão e para accionar grandes foles para o fabrico do aço.»

«Aqui nada foi reconstruído», disse Kramer. Suspirou.

«Não», respondeu Marek. «Mas temos estado a estudar o local. Chris Hughes, um dos nossos estudantes licenciados, investigou o local de uma forma exaustiva. É Chris que está lá em baixo juntamente com o Professor.»

Kramer viu um jovem de aspecto robusto e cabelos escuros que se encontrava junto da figura alta e imponente que reconheceu como sendo o Professor Johnston. Nenhum dos homens olhou para cima quando o helicóptero passou sobre eles; estavam concentrados no seu trabalho.

Agora o helicóptero deixava o rio para trás e dirigia-se para o terreno plano que se encontrava a leste. Passaram sobre um conjunto complexo de paredes rectangulares que se avistavam como linhas escuras à luz oblíqua da manhã. Kramer calculou que as paredes não deveriam ter mais do que algumas polegadas de altura. Mas davam uma ideia perfeita daquilo que deveria ter sido uma pequena cidade.

«E isto? Outra cidade?»

«Mais ou menos. É o Mosteiro de Sainte-Mère», disse Marek. «Um dos mosteiros mais ricos e poderosos de França. Foi completamente destruído no século catorze.»

«Grandes escavações que estão ali a ser feitas», disse Kramer. «É verdade, é o nosso local de obras mais importante.»

Enquanto sobrevoavam a área conseguiu avistar os grandes poços quadrados que haviam sido escavados até às catacumbas situadas por debaixo do mosteiro. Kramer sabia que a equipa dedicava uma grande atenção a este local porque esperavam encontrar mais esconderijos de documentos monásticos; ja haviam descoberto um número razoável.

O helicóptero passou a zona e aproximou-se das falésias calcárias no lado francês e de uma pequena cidade. O helicóptero elevou-se até ao topo da falésia.

«Chegamos ao quarto e último ponto,» disse Marek. «A fortaleza acima da cidade de Bezenac. Na Idade Média era chamada La Roque. Embora esteja situada no lado ftancês do rio foi, na realidade, construída pelos Ingleses que procuravam manter uma praça forte em território francês. Como pode ver, é bastante ampla.»

E era de facto: um enorme complexo militar no topo da colina, com dois conjuntos de muralhas concêntricas, uma dentro da outra, estendendo-se ao longo de cinquenta acres. Deu um pequeno suspiro de alívio. A fortaleza de La Roque estava em melhores condições do que o resto do projecto e tinha um maior número de muralhas que se mantinham de pé. Era fácil de ver como é que fora outrora.

Mas também estava cheia de turistas.

«Deixa entrar turistas?» perguntou ela espantada.

«Na realidade a decisão não foi nossa», disse Marek. «Como sabe, trata-se de um novo local e o governo francês manifestou vontade de que se mantivesse aberto ao público. Mas é evidente que será novamente encerrado quando começarmos a reconstrução.»

«E quando é que será isso?»

«Oh... entre dois a cinco anos a contar de agora.»

Ela não disse nada. O helicóptero circundou a área e voltou a subir.

«E agora», disse Marek, «chegamos ao fim. Daqui pode ver todo o projecto: a fortaleza de La Roque, o mosteiro na planície, a azenha, e do outro lado do rio a fortaleza de Castelgard. Quer dar mais uma vista de olhos?»

«Não», disse Diane Kramer. «Podemos voltar. já vi o suficiente.»

Edward Johnston, Professor Titular de História na Universidade de Yale, olhou de relance para o helicóptero que passava por cima dele. Dirigia-se para sul, na direcção de Dorrime, onde havia uma zona de aterragem. Johnston viu as horas e disse: «Vamos continuar, Chris.»

Okay», respondeu Chris Hughes. Voltou-se para o computador montado num tripé na frente deles, introduziu o cabo do GPS e ligou o equipamento. «Preciso de um ou dois minutos para o pôr a funcionar.»

Christopher Stewart Hughes era um dos estudantes que trabalhavam com Johnston já com a licenciatura concluída. O Professor - era invariavelmente conhecido por este nome - tinha cinco estudantes licenciados a trabalharem no projecto, bem como duas dúzias de estudantes sem o curso concluído que haviam ficado seduzidos pelo seu curso de introdução à CiVilização Ocidental.

Era fácil, pensou Chris, qualquer pessoa sentir-se seduzida por Edward Johnston. Embora já tivesse passado há muito dos sessenta anos, Johnston tinha ombros largos e demonstrava uma boa forma; movia-se rapidamente, dando a impressão de vigor e energia. Bronzeado, com olhos escuros e um ar sardônico, na maioria das vezes parecia-se mais com Mefistóféles do que com um professor de História.

E, no entanto, continuava a vestir-se como qualquer professor universitário: mesmo ali no campo usava camisa e gravata. A sua única concessão ao trabalho no campo eram as jeans e as botas altas.

Aquilo que fazia com que Johnston fosse tão querido pelos seus alunos era o modo como se envolvia nas suas vidas: uma vez por semana comiam na sua casa; cuidava deles; se algum deles tivesse problemas com os estudos, dinheiro ou com a família distante, estava sempre pronto a resolver a dificuldade, dando sempre a ideia de que não fazia absolutamente nada.

Chris desembrulhou cuidadosamente a caixa metálica que se encontrava junto dos seus pés, tirando primeiro um ecrã transparente de cristal líquido, que montou verticalmente com a ajuda de braçadeiras por cima do computador. Em seguida, arrancou novamente com o computador para que ele pudesse reconhecer o ecrã.

«Só mais alguns segundos», disse. «0 GPS está a calibrar.» Johnston limitou-se a acenar pacientemente com a cabeça e sorriu.

Chris era licenciado em História da Ciência - um tema amargamente controverso - mas afastou-se claramente das disputas concentrando-se não na ciência moderna mas, em vez disso, na ciência e técnica medievais. Deste modo estava a tornar-se um especialista em técnicas de metalurgia, fabrico de armaduras, rotação de colheitas, química de tingimento, e uma dúzia de outros temas desse período. Decidira fazer a sua tese de doutoramento sobre a tecnologia dos moinhos medievais - uma área fascinante embora muito negligenciada.

E o seu interesse mais particular ia, evidentemente, para o moinho de Sainte-Mère.

Johnston aguardou calmamente.

Chris era aluno do primeiro ano quando os pais morreram num acidente de automóvel. Chris, filho único, ficou completamente devastado; chegou a pensar em abandonar a universidade. Johnston transferiu o jovem estudante para sua casa durante três meses e serviu-lhe de pai substituto durante muitos anos a partir daí, aconselhando-o nos mais diversos assuntos, desde o governo das propriedades dos seus pais até problemas com as namoradas. E houve de facto montes de problemas com as namoradas.

No período que se seguiu à morte dos seus pais, Chris deixou-se envolver com muitas mulheres. A subsequente complexidade da sua vida - atitudes agressivas durante um seminário por parte de uma amante rejeitada; telefonemas em pânico a meio da noite para o seu quarto por causa de um período que não tinha vindo, quando estava na cama com outra; encontros clandestinos num quarto de hotel com uma professora associada de Filosofia que se encontrava a meio de um divórcio litigioso - tudo isto se transformou numa textura familiar na sua vida. Como era inevitável, os seus resultados começaram a ressentir-se deste conjunto de situações, e foi então que Johnston o chamou à parte, passando várias noites a discutir com ele diversos assuntos.

Mas Chris não estava na disposição de ouvir; pouco depois foi intimado para prestar declarações no processo de divórcio. Só a intervenção pessoal do Professor evitou que tivesse sido expulso de Yale. A reacção de Chris a esta súbita situação de perigo foi a de mergulhar nos estudos; os seus resultados começaram a melhorar sensivelmente até que, finalmente, conseguiu um quinto lugar quando se licenciou. Mas todo este processo fez com que se tornasse num conservador convicto. Presentemente, com vinte e quatro anos, apresentava sintomas de agitação nervosa e sofria de problemas de estômago. Continuava ousado apenas com as mulheres.

«Finalmente» disse Chris. «Está a aparecer.»

No ecrã de cristal líquido distinguia-se um contorno em verde brilhante. Na imagem transparente viam-se as ruínas do moinho, com o contorno verde que se sobrepunha. Este era o método mais recente para modelar estruturas arqueológicas. Inicialmente baseavam-se em modelos arquitectónicos vulgares, feitos de esferovite, cortados e montados à mão. Mas a técnica era lenta e tornava-se difícil fazer modificações.

Presentemente, todos os modelos eram feitos em computador. Os modelos podiam ser montados rapidamente e era fácil fazer uma revisão. Além disso, usava-se este método para observar modelos no campo. Eram fornecidas ao computador as coordenadas geográficas da ruína; utilizando a posição do GPS fixo num tripé, a imagem que se via no ecrã apresentava uma perspectiva exacta.

«Sei que é um risco ... » disse ele.

«Não, de modo nenhum», respondeu o Professor. «Acho que faz sentido.» Existiam referências na literatura sobre moinhos fortificados, e havia certamente muitos registos de inúmeras batalhas em torno de moinhos ou por causa de direitos sobre moinhos. Mas, actualmente, poucos moinhos fortificados eram conhecidos: um em Buerge e outro recentemente descoberto próximo de Montauban, no vale a seguir. A maioria dos historiadores medievais acreditava que estas construções de moinhos fortificados eram raras.

«As bases das colunas ao nível da água eram muito largas», disse Chris. «Como, em muitas outras situações que se verificavam por aqui, quando o moinho era abandonado, as pessoas locais usavam-no como uma pedreira. Levavam as pedras para construírem as suas próprias casas. Mas as rochas das bases das colunas eram deixadas para trás, simplesmente porque eram demasiado grandes para serem transportadas. Para mim isto deixa antever uma ponte maciça. Provavelmente fortificada.»

«Talvez tenhas razão», respondeu johnston. «E acho que ... »

o rádio que trazia preso no cinto crepitou. «Chris? O Professor está contigo? O ministro está no local.»

johnston olhou para o outro lado da escavação do mosteiro, na direcção da estrada poeirenta que corria ao longo da margem do rio. Um Land Rover verde com letras brancas pintadas nos painéis laterais dirigia-se a toda a velocidade na direcção deles, levantando uma nuvem de poeira. «Não há dúvida», exclamou. «Deve ser o François. Passa a vida a correr de um lado para o outro.»

«Edouard! Edouard!» François Bellin agarrou o Professor pelos ombros e beijou-o em ambas as faces. Bellin era um homem corpulento, careca, e exuberante. Falou num francês rápido. «Meu querido amigo, há tanto tempo que não te via! Como é que vais?»

«Estou óptimo, François», disse johnston, afastando-se um passo da sua efusividade. Sempre que Bellin se mostrava excessivamente amistoso         isso queria dizer que se aproximava um problema a passos largos. «E tu, François?», disse Johnston. «Como é que vai isso?»

«Sempre na mesma, sempre na mesma. Mas na minha idade isso já é mais do que suficiente.» Observou o local demoradamente e, em seguida, colocou a mão no ombro de Johnston, num ar conspiratório. «Edouard, tenho que te pedir um favor. Estou com um pequeno problema.»

«Oh?»

«Conheces aquela repórter do Express ... » «Não», disse johnston. «De modo nenhum.» «Mas Edouard ... »

«Já falei com ela ao telefone. É uma dessas pessoas intriguistas que nem sequer sabe aquilo que quer. O capitalismo é mau, todas as corporações são obra do diabo ... »

«Eu sei, eu sei, Edouard, tudo aquilo que dizes é verdade.» Aproximou-se mais. «Mas vai para a cama com o ministro da Cultura.»

«Isso não quer dizer que nos limite o campo de manobra» disse johnston.

«Edouard, por favor. As pessoas começam a ouvir aquilo que ela diz. Ela pode causar problemas. Para mim. Para ti. Para este projecto.»

Johnston suspirou desalentado.

«Sabes que existe um sentimento generalizado de que os americanos só servem para destruir as outras culturas, ao mesmo tempo que não têm cultura própria. Tem havido Problemas com o cinema e a música. E tem sido discutida a possibilidade de banir os americanos de todos os locais culturais franceses. Hmm?»

Johnston disse: <Isso já é velho».

«E o teu próprio patrocinador, a ITC, pediu-te que fales com ela.» isso é verdade?»

«Exactamente. Uma tal Ms. Kramer pediu-te que fales com ela.» Johnston suspirou mais uma vez.

«Só perdes alguns minutos, prometo-te», disse Bellin apontando para o Land Rover. «Ela está no carro.»

Johnston perguntou: «Trouxeste-a pessoalmente?»

«Edouard, estou a tentar explicar-te», disse Bellin. «Temos que levar esta mulher a sério. Chama-se Louise Delvert.»

Quando ela desceu da viatura, Chris viu uma mulher com pouco mais de quarenta anos, esguia e morena, um rosto agradável e de aspecto atraente. Tinha o estilo das mulheres europeias a entrar na idade madura, exalando de uma forma subentendida uma sexualidade sofisticada. Vestia-se como se estivesse preparada para uma expedição, camisa e calças de caqui, máquina fotográfica, vídeo e gravador pendurados ao pescoço. Trazia na mão um bloco de notas e dirigiu-se para eles com um ar profissional.

Mas ao aproximar-se abrandou o passo.

Delvert estendeu-lhe a mão. «Professor Johnston», disse ela num inglês sem sotaque. O seu sorriso era sincero e quente. «Nem sabe como lhe estou agradecida por perder o seu tempo para me receber.»

«Não tem de quê», respondeu Johnston, apertando-lhe a mão. «Fez uma grande viagem, Miss Delvert. Tenho o maior prazer em ajudá-la naquilo que me for possível.»

Johnston continuava a segurar-lhe a mão. Ela continuava a sorrir para ele. Esta situação prolongou-se por mais dez segundos, até que ela disse que era muito amável da parte dele e ele respondeu que, muito pelo contrário, era o mínimo que podia fazer por ela.

Caminharam ao longo das escavações do mosteiro num pequeno grupo compacto: o Professor e Miss Delvert à frente, Bellin e Chris seguindo atrás, não demasiado perto mas mesmo assim tentando ouvir a conversa. Bellin ostentava um sorriso calmo denotando satisfação; Chris pensou que havia mais do que uma maneira de lidar com um incómodo ministro da Cultura.

Quanto ao Professor, a esposa morrera há muitos anos, e embora circulassem rumores, Chris nunca o vira com outra mulher. Sentia-se fascinado ao vê-lo agora. Johnston não havia mudado o seu modo de proceder; simplesmente concedeu à repórter a sua total atenção. Conseguia transmitir a ideia de que não existia nada mais importante no mundo do que ela. E Chris tinha a impressão de que as perguntas dela eram muito menos agressivas do que havia planeado.

«Como sabe, Professor», disse ela, «desde há algum tempo que o meu jornal tem estado a preparar uma história sobre a companhia americana ITC.» «Sim, já ouvi falar nisso.»

«É verdade que a ITC patrocina este projecto?» «Sim, são eles de facto.»

Ela disse: «Disseram-nos que eles contribuem com um milhão de dólares por ano.»

«É mais ou menos isso.»

Continuaram a caminhar por mais alguns momentos. Parecia que ela preparava a pergunta seguinte cuidadosamente.

«No jornal há quem pense», disse ela, «que é muito dinheiro para gastar em arqueologia medieval.»

«Bom, pode dizer a essa gente do jornal», disse Johnston, «que não é. Para dizer a verdade, é o valor médio para um projecto deste tamanho. iTC dá-nos duzentos e cinquenta mil em custos directos, cento e vinte e cinco mil em custos indirectos pagos à universidade, mais oitenta mil em bolsas de estudo, salários e despesas de viagem e alimentação, e ainda cinquenta para custos de laboratório e arquivo.»

«Mas de certeza que deve haver muito mais do que isso», disse ela, brincando com o cabelo com uma esferográfica e pestanejando rapidamente. Chris pensou, a fulana está a fazer-lhe olhinhos. Nunca vira uma mulher fazer uma coisa daquelas. Só uma francesa era capaz daquilo.

O Professor pareceu não ter notado. «Sim, de facto há mais», respondeu, «Mas não tem nada a ver connosco. O resto tem a ver com custos de reconstrução do próprio local. É contabilizado à parte dado que, como é do seu conhecimento, os custos de reconstrução são partilhados com o seu governo.»

«Eu sei», disse ela. «Sendo assim, o meio milhão de dólares que a sua equipa gasta, na sua opinião é uma coisa perfeitamente normal?»

«Bom, acho que podemos perguntar ao François qual é a sua opinião», disse Johnston. «Mas não nos podemos esquecer de que se trabalha em vinte e sete locais arqueológicos neste canto da França. Vão desde as escavações do Paleolítico que a Universidade de Zurique está a fazer com a Carnegic-Mellon, ao castrum Romano, o forte, onde a Universidade de Bordéus está a trabalhar com Oxford. O custo médio anual destes projectos é de cerca de meio milhão de dólares por ano.»

«Não sabia disso.» Olhava-o directamente nos olhos, numa atitude de total admiração. Admiração a mais, pensou Chris. Lembrou-se de repente de que poderia ter interpretado mal o que se estava a passar. Podia tratar-se simplesmente de uma tentativa dela para conseguir uma história.

Johnston olhou de relance para Bellin, que caminhava logo atrás dele. «François? Qual é a tua opinião.»

«Acho que sabes aquilo que estás a fazer - isto é, a dizer», respondeu Bellin. «Os fundos variam entre quatrocentos e seiscentos mil dólares americanos. Os Escandinavos, Alemães e Americanos custam mais. O Paleolítico custa mais. Mas acho que sim, podemos considerar meio milhão como uma média razoável. »

Miss Delvert continuou sem tirar os olhos de Johnston: «E para os seus subsídios, Professor Johnston, quais são os contactos que necessita de manter com a ITC?»

«Praticamente nenhuns.» «Praticamente nenhuns? A sério?»

«0 seu presidente, Robert Doniger, visitou-nos há dois anos. É um apaixonado pela história e mostrou muito entusiasmo parecia quase uma criança. Além disso a ITC manda um vice-presidente uma vez por mês. Neste momento temos cá um. Mas de um modo geral deixam-nos em paz.»

«E o que é que sabe da ITC em si?»

Johnston encolheu os ombros. «Fazem investigação em física quântica. Fabricam componentes usados em IRM'S aparelhos médicos e coisas análogas. E estão a desenvolver diversas técnicas de base de dados de suporte quântico, precisamente para conseguir datar qualquer artefacto. Estamos a colaborar nesse aspecto.»

«Estou a ver. E essas técnicas, funcionam?»

«Temos protótipos de dispositivos no nosso escritório da quinta. Até agora têm-se mostrado demasiado delicados para trabalho de campo. Avariam-se com muita frequência.»

«Mas é por isso que a iTC o está a subsidiar - para testar o seu equipamento?»

«Não», respondeu johnston. «É exactamente o contrário. A iTC está a produzir equipamento de datar pela mesma razão que leva a iTC a subsidiar-nos

- porque Bob Doniger é um entusiasta a respeito da história. Somos o seu hobby.»

«É possível. Mas Mr. Doniger também é um homem de negócios agressivo e com visão.»

«É verdade.»

«Está mesmo convencido de que ele o está a subsidiar sem qualquer interesse pessoal?» Falava num tom ligeiro, quase provocante.

johnston olhou directamente para ela. «Nunca se sabe, Miss Delvert, Por vezes torna-se extremamente difícil conhecer a fundo as razões de uma pessoa.» Chris pensou: Ele também está desconfiado.

Delvert deu a impressão de que também o sentiu e imediatamente passou para um tom mais profissional. «É evidente que sim. Mas tenho um motivo para fazer esta pergunta. É ou não verdade que não detém a propriedade dos resultados da sua investigação? Qualquer coisa que encontre, qualquer coisa que descubra, é propriedade da ITC.»

«Sim, está correcto.»

«E isso não o incomoda?»

«Se eu trabalhasse para a Microsoft, Bill Gates seria o dono dos resultados da minha investigação. Bill Gates tomaria posse de qualquer coisa que eu encontrasse ou descobrisse.»

«Concordo. Mas dificilmente poderemos afirmar que se trata da mesma situação.»

«Porque não? A iTC é uma companhia técnica, e Doniger estabeleceu este subsídio dentro dos moldes que as companhias técnicas utilizam para tais situações. O acordo não me preocupa. Temos o direito de publicar as nossas descobertaS - vão ao ponto de pagarem essa mesma publicação.»

«Depois de as terem aprovado.»

«É verdade. Primeiro enviamos os nossos relatórios para eles. Mas nunca fizeram qualquer comentário.»

«Sendo assim, não vê qualquer plano especial que a iTC tenha na manga?» perguntou ela.

«Acha que sim?»

«Não faço ideia», respondeu ela. «É por causa disso que lhe estou a perguntar. É evidente que existem diversos aspectos mesmo muito estranhos no comportamento da ITC enquanto companhia.»

«Que aspectos?»

«Por exemplo», disse ela, «são um dos maiores consumidores de xénon em todo o mundo.»

«Xénon? Está a falar do gás?»

«Exactamente. É usado em lasers e em válvulas electrónicas.»

johnston encolheu os ombros. «Por mim podem ter todo o gás xérion que quiserem. Não consigo entender como é que isso possa estar relacionado comigo.» «E o que é que me diz do interesse deles a respeito de metais raros? Há

pouco tempo a iTC comprou uma companhia nigeriana para assegurar o seu fornecimento de nióbio.»

«Nióbio.» Johnston abanou a cabeça. «0 que é o nióbio?» «É um metal semelhante ao titânio.»

«E é usado em quê?»

«Em electroímans supercondutores, e em reactores nucleares.»

«E tem alguma ideia sobre aquilo em que a iTC o usa?» johnston abanou a cabeça mais uma vez. «Tem de lhes perguntar, Miss Delvert.»

«já o fiz. Disseram que era para uma investigação em magnetismo avançado. Está a ver? Tem alguma razão para não acreditar naquilo que lhe disseram?» «Não», respondeu ela. «Mas conforme me disse, a ITC é uma companhia

de investigação. Empregam duzentos físicos na sede das suas instalações, um lugar chamado Black Rock, no Novo México. É claramente e sem qualquer dúvida uma companhia de alta tecnologia.»

«SIM ... »

«É isso que me leva a pensar. Porque é que uma companhia de alta tecnologia havia de querer tantos terrenos?»

«Terrenos?» «A iTC comprou grandes parcelas de terreno em lugares remotos por todo o mundo: nas montanhas de Sumatra, no norte do Cambodja, no sudeste do Paquistão, nas selvas da Guatemala central, nas terras altas do Peru.»

johnston franziu as sobrancelhas. «Tem a certeza?»

«Tenho. Também fizeram aquisições na Europa. A oeste de Roma, 500 hectares. Na Alemanha, próximo de Heidelberg, setecentos hectares. Na França, 1000 hectares nas colinas calcáreas sobre o Rio Lot. E finalmente, aqui também.»

«Aqui?» «Exacto. Servindo-se de companhias de holding britânicas e suecas, nos mais

diversos locais em torno deste local. Presentemente é, na sua maioria, terra arável e florestas.»

«Companhias de holding?» perguntou.

«Tudo isto se torna muito difícil de detectar. O que quer que seja que a ITC está a fazer, é evidente que requer secretismo. Mas porque é que esta companhia há-de subsidiar a sua investigação e, ao mesmo tempo, comprar os terrenos em torno do local?»

«Não faço a menor ideia», disse Johnston. «Especialmente porque a iTC não é proprietária do local. Não se esqueça de que no último ano eles deram toda a área - Castelgard, Sainte-Mère e La Roque - ao governo francês.»

Evidentemente. Por uma questão de isenção de impostos.»

«Mas mesmo assim, a ITC continua a não possuir o local. Porque é que haviam de comprar os terrenos em torno dele?»

«Tenho o maior prazer em mostrar-lhe tudo aquilo que tenho.» «Talvez», disse Johnston, «fosse melhor.»

«Tenho os elementos da minha investigação no carro.»

Dirigiram-se os dois para o Land Rover. Olhando para eles enquanto se afastavam, Bellin deu um estalo com a língua. «Ah, valha-me Deus. Nos nossos dias torna-se tão difícil uma pessoa acreditar!»

Chris preparava-se para responder no seu francês péssimo quando o rádio crepitou. «Chris?» Era David Stern, o técnico do projecto. «Chris, o Professor está contigo? Pergunta-lhe se conhece alguém chamado James Wauneka.»

Chris premiu o botão do emissor. «Neste momento o Professor está ocupado. O que é que se passa?»

«É um tipo qualquer de Gallup. Já telefonou duas vezes. Quer mandar uma fotografia do nosso mosteiro que ele diz ter encontrado no deserto.» «0 quê? No deserto?»

«É possível que tenha um parafuso a menos. Diz que é polícia e continua a gaguejar qualquer coisa sobre um empregado da iTC que faleceu.» «Diz-lhe que a mande para o nosso endereço de e-mail.» disse Chris.

«E quando chegar dá-lhe uma vista de olhos.»

Voltou a desligar o rádio. Bellin estava a olhar para o relógio e em seguida voltou-se para o carro, junto do qual se encontravam johnston e Delvert, as cabeças tão juntas que quase se tocavam, enquanto consultavam diversos papéis.

«Tenho reuniões», disse ele em tom desalentado. «Quem sabe quanto tempo é que isto ainda vai durar?»

«Acho», disse Chris, «que já não deve demorar muito».

Vinte minutos mais tarde Bellin afastava-se no Land Rover com Miss Delvert sentada ao seu lado, e Chris encontrava-se de pé junto do Professor, acenando uma despedida. «Acho que correu tudo bastante bem», disse johnston. «0 que é que ela lhe mostrou?»

«Alguns registos de compra de terrenos da área situada em volta. Mas não é convincente. Quatro parcelas foram compradas por um grupo alemão de investimento sobre o qual se sabe muito pouco. Duas parcelas foram compradas por um advogado britânico que garante ir passar ali a sua reforma; outra por um banqueiro holandês para a sua filha de maior idade; e outras situações do mesmo gênero.»

«Há anos que os Britânicos e os Holandeses têm estado a comprar terrenos no Périgord»I disse Chris. «Não é novidade nenhuma.»

«Exactamente. Ela tem uma ideia qualquer de que todas as compras efectuadas podem conduzir à ITC. Mas é uma coisa muito vaga. É preciso ser de facto um crente.»

O carro tinha desaparecido. Voltaram-se e caminharam na direcção do rio. O sol erguera-se no céu e estava mais quente.

Cautelosamente Chris observou: «Não há dúvida de que é uma mulher encantadora.»

«Acho», respondeu johnston, «que se dedica exageradamente àquilo que faz. »

Entraram no barco a remos que se encontrava na margem do rio, e Chris remou na direcção de Castelgard.

Deixaram o barco a remos para trás e começaram a trepar em direcção ao topo da colina de Castelgard. Viram os primeiros sinais das muralhas do castelo. Deste lado, tudo aquilo que ainda existia das muralhas eram aterros cheios de ervas que terminavam em longas cicatrizes de pedras expostas e quase desfeitas. Depois de seiscentos anos quase que parecia uma característica normal da paisagem. Mas, na realidade, eram os restos de uma muralha.

«Você está a ver», disse o Professor, «aquilo que ela na realidade detesta é o aspecto do patrocínio feito por uma corporação. Mas a investigação arqueológica dependeu sempre de benfeitores externos. Há sete anos atrás, os benfeitores eram todos individuais: Carnegie, Peabody, Stanford. Mas actualmente a riqueza encontra-se nas corporações, e é por isso que a Nippon TV financia a Capela Sistina, a British Telecom financia York, a Philips Electronics financia o castrum de Toulouse, e a ITC nos financia a nós.»

«Falai no iria]», disse Chris. Ao chegarem ao topo da colina viram a silhueta morena de Diane Kramer que se encontrava junto de André Marek.

o Professor suspirou. «Este dia está completamente perdido. Quanto tempo é que ela vai estar aqui?»

«0 avião dela está em Bergerac. Está tudo programado para que ela saia daqui às três da tarde.»

«Peço desculpa por causa daquela mulher», disse Diane Kramer quando Johnston se aproximou dela. «Tem andado a chatear toda a gente mas temos sido incapazes de fazer o que quer que seja para remediar a situação.»

«Bellin disse-me que você queria que eu falasse com ela.»

«Queremos que toda a gente fale com ela», disse Kramer. «Estamos a fazer tudo o que se encontra ao nosso alcance para lhe demonstrar que não temos segredos.»

«Deu-me a ideia de que aquilo que a preocupa mais», disse Johnston, «é o facto da ITC estar a comprar terrenos nesta área.»

«Comprar terrenos? A ITC?» Kramer deu uma gargalhada. «É a primeira vez que ouço uma coisa dessas. Também lhe fez perguntas sobre móbio e reactores nucleares?»

«De facto perguntou. Disse que vocês compraram uma companhia na Nigéria para garantir o fornecimento.»

«Nigéria», repetiu Kramer abanando a cabeça. «Valha-me Deus. O nosso nióbio vem do Canadá. Como Sabe, o nióbio não é exactamente um metal raro. Vende-se a setenta e cinco dólares a libra.» Abanou a cabeça. «Convidámo-la a fazer uma visita às nossas instalações, a entrevistar o nosso presidente, a trazer um fotógrafo, os seus próprios especialistas, tudo aquilo que ela quisesse. Mas não. É o jornalismo moderno: não deixemos que os factos se atravessem no nosso caminho.»

Kramer voltou-se e apontou para as ruínas de Castelgard que se encontravam à volta deles. «De qualquer modo», disse ela, «fiz uma excelente visita com o Dr. Marek, de helicóptero e a pé. É evidente que vocês estão a fazer um trabalho absolutamente espectacular. O progresso é notávell o trabalho é de uma qualidade académica extremamente elevada, os registos são excepcionais, a sua gente sente-se feliz, o projecto está a ser muito bem dirigido. Não há dúvida de que é fabuloso. Não podia sentir-me mais feliz. Mas o Dr. Marek disse-me que ia chegar atrasado para a sua... o que era?»

«0 meu plano de ataque», disse Marek.

«0 seu plano de ataque. Acho que sim. Acho que não se podia esperar outra coisa dele. Não parece que seja qualquer coisa que se possa mudar, como uma lição de plano. Entretanto, vamos todos dar uma volta pelo local?»

«Por mim acho bem», disse Johnston.

O rádio de Chris crepitou. Ouviu-se uma voz que dizia, «Chris? É a Sophie para ti. »

<Diz-lhe que lhe telefono mais tarde.»

«Não, não», disse Kramer. «Telefone à vontade. Entretanto posso falar com o Professor a sós.»

Johnston disse rapidamente: «Normalmente tenho o Chris comigo para tomar apontamentos.»

«Estou convencida de que hoje não precisamos de apontamentos.»

«Está bem. Pois seja.» Voltou-se para Chris. «Mas dá-me o teu rádio, não vá acontecer alguma coisa.»

«Não há problemas», respondeu Chris. Tirou o rádio do cinto e entregou-o a Johnston. Quando Johnston pegou no rádio, activou propositadamente o comutador de activação da voz. Em seguida colocou-o no cinto.

«Obrigado», disse Johnston. «Agora é melhor telefonares à Sophie. Já sabes que ela não gosta de ficar à espera.»

«Está certo», respondeu Chris.

Enquanto Johnston e Kramer começaram a caminhar pelas ruínas, disparou a correr através do campo que o separava da casa agrícola onde haviam instalado os gabinetes do projecto.

Logo a seguir às paredes em ruínas da cidade de Castelgard, a equipa havia comprado um armazém em pedra bastante delapidado, e tinham reconstruído o telhado e reparado as paredes em pedra. Era ali que armazenavam todos os dispositivos electrónicos, equipamento de laboratório e os computadores de arquivo. Registos e artefactos ainda não processados encontravam-se espalhados no solo dentro de uma ampla tenda verde adjacente à casa agrícola.

Chris foi ao armazém, uma ampla dependência que eles haviam dividido em duas. Do lado esquerdo, Elsie Kastner, linguista da equipa e especialista em grafologia, sentava-se na sua própria sala, debruçada sobre documentos em pergaminho. Chris ignorou-a e dirigiu-se sem parar para a sala atafulhada com equipamento electrónico. Nessa sala David Stern, o técnico do projecto, um indivíduo magro e usando óculos, estava a falar ao telefone.

«Bom», estava Stern a dizer, «vai ter que fazer o scan do seu documento com uma resolução bastante alta para o mandar para nós. Vocês têm aí scanner?» Chris tocou no ombro de Stern. Com os lábios formou a palavra, Rádio. Stern acenou com a cabeça num gesto de compreensão e tirou o seu próprio rádio do cinto. «Bom, acho que sim, o scanner do hospital está perfeito. Talvez tenham alguém que o possa ajudar. Precisamos de mil duzentos e oitenta por mil e vinte e quatro, gravado como ficheiro JPEG. Em seguida transmite-o para nós ... »

Chris correu para o exterior, sem deixar de comutar os canais rádio um a UM.

Da porta do armazém conseguia avistar todo o estaleiro. Viu Johnston e Kramer caminhando na berma do planalto sobranceiro ao mosteiro. Ela tinha um bloco de notas aberto e mostrava-lhe qualquer coisa no papel.

E finalmente encontrou-os no canal oito.

« ... celeração significativa no ritmo da investigação», estava ela a dizer. E o Professor disse: «0 quê?»

O Professor Johnston olhou por cima dos seus óculos sem armação para a mulher que se encontrava de pé à sua frente. «É impossível», exclamou.

Ela inspirou profundamente. «Talvez não me tenha explicado bem. Neste Momento já está a fazer uma certa percentagem de reconstrução. Aquilo que Bob gostaria de fazer», disse ela, «era aumentar para um programa completo de reconstrução.»

«Pois sim. E isso é impossível.» «Posso saber porquê?»

«Porque ainda não sabemos o suficiente, é essa a razão», respondeu johnston irritadamente. «Veja uma coisa: a única reconstrução que até agora fizemos foi por uma questão de segurança. Reconstruímos paredes para que não caiam em cima dos nossos investigadores. Mas neste momento ainda não nos encontramos em condições para começarmos a reconstruir todo o estaleiro.»

«Mas de certeza que se pode fazer pelo menos em relação a uma parte», disse ela. «Quer dizer, olhe por exemplo para o mosteiro que temos ali. Tenho a certeza de que podia reconstruir a igreja, o claustro que se encontra ao lado, o refeitório e ... »

«0 quê?», exclamou Johnston. «0 refeitório?» O refeitório era a sala de jantar onde os monges tomavam as suas refeições. Johnston apontou para o local, onde paredes baixas e trincheiras que se entrecruzavam estabeleciam um padrão confuso. «Quem é que disse que o refeitório ficava a seguir ao claustro?» «Bom, eu ... »

«Está a ver? É esse exactamente o meu ponto de vista», disse Johnston. «Ainda não temos a certeza da localização do refeitório. Só muito recentemente é que começámos a pensar que poderá situar-se a seguir ao claustro, mas ainda não temos a certeza.»

Ela disse irritadamente: «Professor, os estudos académicos podem continuar indefinidamente, mas num mundo real de resultados ... »

«Sempre estive totalmente receptivo a resultados», disse Johnston. «Mas a finalidade básica de uma escavação como esta é a de não repetirmos os erros do passado. Há cerca de cem anos um arquitecto chamado Violletle-Duc reconstruiu monumentos por toda a França. Em alguns casos os trabalhos correram bem. Mas quando não tinha informação suficiente não deixava por isso de continuar. E nestes casos os edifícios não eram mais do que um produto da sua fantasia.»

«Compreendo que deseje trabalhar com precisão ... »

«Se me tivessem dito que a ITC queria a Disneyland, nunca teria concordado.»

«Nunca dissemos que queríamos a Disneyland.»

«Se começar agora a reconstruir, é isso que vai ter, Miss Kramer. Não terá mais do que uma fantasia. Terra Medieval.»

«Não», disse ela. «Posso garantir-lhe de uma forma absolutamente categórica. Não queremos uma fantasia. Queremos uma reconstrução do local que seja historicamente correcta.»

«Mas não pode ser feita.»

«Estamos convencidos de que é possível.» Com todo o respeito, Professor, está a exagerar nas suas precauções. Sabe mais do que aquilo que pensa. Por exemplo, a cidade de Castelgard por baixo do próprio castelo. É uma das coisas que de certeza podia ser reconstruída.» «Acho que sim... parte dela acho que sim.»

«E é apenas isso que estamos a pedir. Reconstruir apenas uma parte.»

David Stern saiu lentamente do armazém, para encontrar Chris a ouvir com o rádio colado ao ouvido. «Andas a escutar às portas, Chris?»

«Shhh!» respondeu Chris. «Isto é importante.»

Stern encolheu os ombros. Normalmente sentia-se pairar um pouco acima dos entusiasmos dos estudantes licenciados que encontrava à sua volta. Os outros eram historiadores, mas Stern treinara-se como físico e tinha a tendência para ver as coisas de um modo diferente. Simplesmente não conseguia sentir-se excitado quando se encontrava mais um cadinho medieval, ou meia dúzia de ossos de uma campa. De qualquer modo, Stern só tinha aceite este trabalho

- que o obrigava a trabalhar com o equipamento electrónico, fazer diversas análises químicas, datagem do carbono, etc. - para estar perto da sua namorada que frequentava um curso de verão na Universidade de Toulouse. Sentira-se intrigado com a datagem quântica, mas pelo menos até àquela altura o equipamento não funcionara em condições.

No rádio, Kramer estava a dizer: «E se reconstruir parte da cidade, então também. podia reconstruir parte da muralha exterior do castelo, na zona em que é adjacente à cidade. Aquela secção ali.» Apontava para uma parede exterior semidestruída que atravessava o local no sentido norte-sul.

O Professor disse: «Bom, suponho que podíamos ... »

«E», continuou Kramer, «podia estender-se a muralha para sul, na zona ali em baixo, na zona em que penetra nos bosques. Podia limpar os bosques e reconstruir a torre.»

Stern e Chris olharam um para o outro.

«De que raio é que ela está a falar», exclamou Stern. «Que torre?»

«Ainda não houve ninguémque tivesse inspeccionado os bosques», disse Chris. «Deve estar limpo no final do ano, após o que será mantida uma vigilância a partir do Outono.»

Através do rádio ouviram o Professor dizer: «A sua proposta é muito interessante, Miss Kramer. Deixe-me discutir isso com os outros e voltamos a falar à hora do almoço. »

E foi então que no campo mais abaixo Chris viu o Professor voltar-se, olhando directamente para eles e apontando um dedo acusador na direcção dos bosques.

Deixando o campo aberto das ruínas para trás, treparam um talude relvado e embrenharam-se no bosque. As árvores eram esguias mas cresciam muito próximas, e debaixo das suas copas estava escuro e fresco. Chris Hughes seguiu a velha muralha exterior do castelo que ia diminuindo de uma altura que lhe dava pelo peito até se reduzir a um simples amontoado de pedras e finalmente a nada, desaparecendo entre a vegetação rasteira.

A partir daí tinha que se curvar, afastando para os lados com as mãos os fetos e pequenas plantas para conseguir ver a vereda da muralha.

O bosque ia-se tornando mais denso à sua volta. Sentia que o invadia um ambiente de paz. Lembrou-se de que, quando vira pela primeira vez Castelgard, o local se encontrava quase que completamente rodeado por uma floresta como esta. As poucas paredes que ainda se encontravam de pé estavam cobertas de musgo e líquen, e pareciam surgir da terra como formas orgânicas. Na altura o local constituíra um mistério. Mas este desaparecera depois de terem feito a desmatação e terem começado as escavações.

Stern arrastava-se atrás dele. Stern não estava muito habituado a sair do laboratório e parecia estar a gostar do passeio. <Porque é que as árvores são tão pequenas?» perguntou.

«Porque é uma floresta nova», respondeu Chris. «Quase todas as florestas na região de Périgord têm menos de cem anos. Era costume toda esta terra ser desmatada para plantação de vinhas.»

«E?»

Chris encolheu os ombros. «Foi a doença. Essa praga, a filoxera, matou todas as vinhas por volta do virar do século. E a floresta voltou a crescer.» E acrescentou: «A indústria vinícola francesa quase que desapareceu. Foram salvos pela importação de vinhas da Califórma que eram resistentes à filoxera. Qualquer coisa que era preferível terem esquecido.»

Enquanto falava continuava a olhar para o solo, descobrindo um bocado de pedra aqui e ali, o suficiente para lhe permitir seguir a linha da antiga muralha. Mas, de repente, todos os vestígios tinham desaparecido. Perdera-a completamente. Agora tinha de voltar atrás para encontrar de novo a pista.

«Porra.»

«0 que é que foi?» perguntou Stern.

«Não consigo encontrar a muralha. Seguia por aqui» - apontou com a palma da mão - «e agora desapareceu.»

Encontravam-se numa zona de vegetação rasteira bastante densa, enormes fetos misturados com uma espécie de vinha brava cheia de espinhos que lhe arranhavam as pernas. Stern tinha calças e tomou a dianteira, enquanto dizia: «Não sei Chris, mas tem que estar algures por aqui ... »

Chris sabia que tinha que voltar atrás. Acabara de se voltar para fazer o mesmo caminho no sentido inverso quando ouviu Stern gritar.

Chris voltou-se para trás.

Stern desaparecera. Evaporara-se.

Chris encontrava-se sozinho no bosque.

«David?» Um grunhido. «Ah... porra.» «0 que é que aconteceu?»

«Bati com o joelho. Dói como o caraças.»

Chris não o conseguia ver em parte nenhuma. «Onde é que estás?» «Num buraco», disse Stern. «Caí. Tem cuidado se vieres nesta direcção. De facto ... » Um grunhido. Praguejar. «Não te preocupes. Consigo pôr-me de pé. Estou okay. De facto - hey.»

«0 que é que foi?> «Espera um minuto.» «0 que é?»

«Aguenta um minuto, okay?»

Chris viu a vegetação rasteira mover-se, os fetos agitarem-se para um lado e para o outro, enquanto Stern surgia do lado esquerdo. Foi então que Stern falou. A sua voz parecia estranha. «Uh, Chris?»

«0 que é?»

«É uma secção da muralha. Curva.» «0 que é que estás a dizer?»

«Julgo que estou em cima da parte inferior daquilo que foi em tempos uma torre redonda, Chris.»

«Não brinques», disse Chris. Pensou com os seus botões, como é que Kramer sabia de uma coisa daquelas?

«Verifique o computador», disse o Professor. «Veja se temos alguma inspecção feita por helicóptero - infravermelhos ou radar - que mostre uma torre. Talvez já esteja registado e nunca tenhamos prestado atenção a isso.»

«Uma inspecção por infravermelhos ao final da tarde será talvez a melhor hipótese», disse Stern. Estava sentado numa cadeira segurando um saco de gelo em cima do joelho.

«Porquê ao final da tarde?»

«Porque este calcário conserva o calor. É por isso que os homens das cavernas gostavam tanto desta zona. Mesmo no Inverno, uma caverna nos calcários de Périgord tinha uma temperatura de mais dez graus em relação ao exterior.» «Então no final da tarde ... »

«A muralha conserva o calor enquanto a floresta arrefece. E consegue distinguir-se em infravermelhos.»

«Mesmo que esteja enterrada?» Stern encolheu os ombros.

Chris sentou-se ao computador e começou a martelar as teclas. O computador produziu um bip suave. A imagem mudou abruptamente.

«Olá. Temos um e-mail.»

Chris seleccionou a caixa do correio. Havia apenas uma mensagem e levou imenso tempo a fazer a entrada. «0 que é?»

«Aposto que é aquele tipo, o Wauneka», disse Stern. «Disse-lhe para me enviar um gráfico bastante grande. Provavelmente não o comprimiu.»

Nesse instante a imagem surgiu no ecrã: uma série de pontos dispostos numa forma geométrica. Todos a reconheceram de imediato. Era sem a menor dúvida o Mosteiro de Sainte-Mère. O seu próprio local de trabalho.

Em maior detalhe do que aquele que tinham obtido até então.

Johnston olhou para a imagem. Tamborilou com os dedos no tampo da secretária. «É estranho», disse ele finalmente, «que Bellin e Kramer tenham aparecido aqui no mesmo dia.»

Os assistentes olharam um para o outro. «0 que é que isso tem de estranho?» disse Chris.

«Bellin não pediu para se encontrar com ela. E está sempre na disposição de se encontrar com fontes de subsídios.»

Chris encolheu os ombros. «Parecia que estava muito ocupado.»

«Exacto. Era isso que parecia.» Voltou-se para Stern. «De qualquer modo, imprime essa coisa», disse ele. «Vamos ver o que é que o nosso arquitecto tem a dizer a esse respeito.»

Katherime Erickson - cabelos de um louro acinzentado, olhos azuis e muito morena - encontrava-se suspensa no ar a cerca de cinquenta pés de altura, o rosto a centímetros do tecto gótico arruinado da capela de Castelgard. Estava de costas suspensa de um arnês e calmamente tomava notas sobre a construção que se encontrava acima dela.

Erikson era a assistente licenciada mais recente que se encontrava no local, tendo-se juntado ao projecto apenas alguns meses antes. Originalmente fora para Yale para estudar arquitectura, mas chegou à conclusão de que não gostava da área que escolhera e transferira-se para o departamento de história. Foi aí que Johnston a descobriu e a convenceu a Juntar-se a ele do mesmo modo que fizera com todos os outros: «Porque é que não põe de lado os velhos livros e vem trabalhar em história a sério? Qualquer coisa como história aplicada?»

E ali estava ela a trabalhar em história aplicada - pendurada naquele local. Não era que se importasse muito com isso: Kate crescera no Colorado e era uma alpinista inveterada. Passava todos os domingos a trepar as falésias que havia na região do Dordogne. Raras vezes havia mais gente, o que era formidável: em casa era preciso esperar na bicha para se conseguir uma boa escalada.

Usando a picareta, retirou algumas escamas de argamassa de diferentes zonas para levar para uma análise espectroscópica. Colocou cada uma delas em sacos de plástico, como os que se usam para filmes, que ela trazia pendurados dos ombros e em bandoleira sobre o peito.

Estava a rotular os sacos de plástico quando ouviu uma voz que dizia: «Como é que sais daí? Tenho uma coisa para te mostrar?»

Olhou por cima do ombro e viu Johnston que se encontrava em baixo. «É fácil», disse. Kate libertou a linha e desceu suavemente até ao solo, aterrando com elegância. Afastou os cabelos do rosto. Kate Erickson não era uma rapariga bonita - como a mãe, célebre na UC, tantas vezes lhe dissera - mas tinha aquele ar de frescura, uma qualidade típica Americana, que os homens achavam atraente.

«Estou convencido de que és capaz de trepar a qualquer coisa,» disse Johnston.

A rapariga desapertou o arnês. «É a única maneira de recolher estes dados.» «Se assim o dizes,»

«A sério», disse ela. «Se quisermos uma história arquitectónica desta capela, temos que trepar lá acima e recolher amostras da argamassa... Não nos podemos esquecer de que este tecto foi reconstruído por diversas vezes - ou porque fora mal construído e passava a vida a cair, ou por ter sido destruído em guerras devido aos engenhos de guerra.»

«0 mais certo é ter sido por causa dos engenhos de guerra», disse Johnston. «Bom, não tenho tanto a certeza», disse Kate. «A estrutura básica do castelo - o grande salão, os apartamentos interiores - são sólidos, mas algumas das paredes não foram bem construídas. Em alguns casos parece que foram acrescentadas paredes para fazer passagens secretas. Este castelo tem várias. Há mesmo uma que vai até à cozinha! Quem quer que tenha feito essas modificações devia ser perfeitamente paranóico. E talvez o tenham feito demasiado depressa.» Limpou as mãos aos calções. «Muito bem. O que é que tinha para me mostrar?»

Johnston estendeu-lhe uma folha de papel. Era uma impressão de computador, uma série de pontos dispostos de uma forma regular, num padrão geométrico. «0 que é isto?», perguntou ela.

«Estou à espera que me diga.» «Parece Sainte-Mère.»

«Acha que sim?»

«Eu diria que sim. Mas o problema é que ... »

Saiu da capela e olhou para as escavações do mosteiro, situadas a cerca de uma milha na planície que ficava mais abaixo. Estavam dispostas de uma forma quase tão clara como o desenho que tinha na mão.

«Hul---i.» «0 que é que foi?»

«Há pormenores neste desenho que ainda não foram descobertos», disse ela. «Uma capela apsidal a seguir à igreja, um segundo claustro no quadrante nordeste, e... isto parece um jardim, dentro dos muros... Afinal de contas, onde é que arranjou este desenho?»

O restaurante em Marqueyssac estava situado na berma do planalto, com vistas sobre todo o vale do Dordogne. Kramer ergueu o olhar da mesa e sentiu-se surpreendida ao ver o Professor que chegava na companhia de Marek e de Chris. Franziu as sobrancelhas. Estava à espera de almoçar sozinha. Encontrava-se sentada a uma mesa para dois.

Sentaram-se todos juntos, depois de Marek ter trazido duas cadeiras da mesa do lado. O Professor inclinou-se para a frente, olhando para ela intensamente. «Ms. Kramer», disse o Professor, «corno é que sabe onde é que fica a reitoria?»

«A reitoria?». Ela encolheu os ombros. «Se quer que lhe diga, não sei. Não estava mencionado no relatório de progresso semanal? Não? Então talvez tenha sido o Dr. Marek que me falou nisso.» Olhou para os rostos solenes que tinha diante de si. «Meus senhores, os mosteiros não são exactamente a minha especialidade. Devo ter ouvido isso em qualquer parte.».

«E a torre no bosque?»

«Deve ter sido num dos relatórios. Ou em velhas fotografias.» «já verificámos. Nem uma coisa nem outra.»

O Professor fez deslizar o desenho na mesa na sua direcção. «E porque é que um empregado da iTC de nome Joseph Traub tem um desenho do mosteiro que está mais completo do que o nosso?»

«Não sei... Onde é que arranjaram isto?»

«De um polícia em GaIlup, Novo México, que está a fazer algumas das perguntas em que também tenho pensado.»

Ela não disse nada. Limitou-se a olhar para ele.

«Ms. Kramer», disse ele finalmente. «Julgo que nos está a esconder alguma coisa. Estou convencido de que tem estado a fazer a sua própria análise nas nossas costas, sem nos contar o que descobriu. E estou convencido de que juntamente com Bellin tem estado a negociar a exploração do projecto para o caso de eu não me mostrar cooperativo. E o governo francês ficará extremamente feliz por conseguir expulsar os americanos de um local que faz parte da sua herança.»

«Professor, isso não tem o menor fundamento. Posso garantir-lhe ... » «Não, Ms. Kramer. Não pode.» Olhou para o relógio. «A que horas é que o seu avião regressa à ITC?»

«Às três.»

«Já estou pronto para ir.» Afastou a cadeira da mesa.

«Mas eu vou para Nova Iorque.»

«Então acho melhor mudar os seus planos     e seguir para o Novo México.» «Vai querer falar com Bob Doniger e eu não conheço a sua agenda ... » «Ms. Kramer.» Debruçou-se sobre a mesa. «Desenrasque-se.»

Quando o Professor saiu, Marek disse: «Peço a Deus que o ampare na sua jornada e que o traga de volta são e salvo.» Era aquilo que dizia sempre que amigos partiam. Fora uma frase favorita do Conde Geofrey de la Tour, seiscentos anos antes.

Marek sentia-se de certo modo fascinado com o passado, a ponto de constituir uma obsessão. Mas, de facto, era uma coisa natural nele: já em criança Marek se sentia fortemente atraído pelo período medieval e, em muitos aspectos, parecia agora que ainda vivia nele. Num restaurante disse uma vez a um amigo que não deixava crescer barba porque naquela altura não estava na moda. Espantado o amigo protestou: «Mas é evidente que está na moda, olha as barbas que encontras à tua volta.» A isto Marek respondeu: «Não, não é isso, quero dizer que não está na moda no meu tempo.» Referia-se deste modo aos séculos treze e catorze.

Muitos académicos do período medieval eram capazes de ler as velhas línguas, mas Marek era capaz de as falar: inglês medieval, francês arcaico, occitan, e latim. Era especialista nos detalhes do período em vestuário e modos de conduta. E com a sua altura e porte atlético, conseguiu dominar as artes marciais do período. Afinal de contas, dizia ele, era um período de guerra contínua. Conseguia cavalgar facilmente os enormes Percherons que haviam sido usados como corcéis ou cavalos de batalha. E era razoavelmente especializado em justas, tendo passado horas a praticar com o boneco rotativo de torneio a que chamavam quintana. Marek era tão bom com um arco longo que começara a ensinar a técnica a outros. E agora estava a aprender a combater com um montante.

Mas este conhecimento detalhado do passado afastava-o estranhamente do presente. A súbita partida do Professor deixara todos os elementos do projecto magoados e inquietos: corriam rumores estranhos, especialmente entre os não licenciados: a ITC ia anular os subsídios. A iTC ia mudar o projecto para 'território Medieval. A ITC matara alguém no deserto e estava com problemas. O trabalho parou; as pessoas limitavam-se a andar de um lado para o outro e a falar.

Marek decidiu finalmente que era melhor fazer uma reunião para acabar com os rumores e foi assim que, ao final da tarde, reuniu toda a gente na grande tenda verde ao lado do armazém. Marek explicou que surgira uma disputa entre o Professor e a ITC, e que o Professor se deslocara à sede da ITC para esclarecer as coisas. Marek explicou que se tratava apenas de um desentendimento que seria resolvido em meia dúzia de dias. Disse que iria estar em contacto permanente com o Professor, o qual organizara as coisas para lhes telefonar de doze em doze horas; e que esperava que o Professor regressasse rapidamente e que as coisas voltassem ao que eram antes.

Não ajudou. A sensação profunda de desconforto manteve-se. Alguns dos licenciados sugeriram que da parte da tarde estava demasiado calor para trabalhar, e que era melhor andar de kayak no rio; Marek, sentindo o que se estava a passar, concordou que afinal de contas talvez não fosse má ideia.

Um a um, os estudantes licenciados decidiram também fazer folga no resto do dia. Kate apareceu, com várias libras de metal em volta do peito que se entrechocavam, e anunciou que ia escalar a escarpa que ficava da parte de trás de Gageac. Perguntou a Chris se queria ir com ela (para segurar as cordas sabia que ele nunca se atreveria a fazer a escalada), mas ele respondeu que ia até aos estábulos com Merek. Stern declarou que ia de carro até Toulouse onde jantaria. Rick Chang dirigiu-se para Les Eyzies, para visitar um colega no local de trabalho do Paleolítico. Só Elsie Kastner, a grafologista, se deixou ficar na parte de trás do armazém, consultando pacientemente os documentos que tinha à sua frente. Marek perguntou-lhe se queria ir com ele. Mas ela disse-lhe: «Deixa-te de patetices, André», e continuou a trabalhar.

O Centro Equestre nos arredores de Souillac ficava a cerca de quatro milhas, e era aí que Marek se treinava duas vezes por semana. No canto mais distante de um campo pouco usado instalara uma estranha barra em forma de T numa plataforma rotativa. Num dos extremos da barra havia um quadrado almofadado; no outro extremo um saco de couro parecido com os que se usavam nos treinos de boxe.

Sophie era aluna no Cheltenham College; vinte anos, quatro anos mais nova do que ele. O pai, Hugh Hampton, era advogado em Londres; era dono da quinta que o projecto alugara para o Verão. Sophie viera com alguns amigos passar uns dias numa quinta próxima. Um dia viera buscar qualquer coisa ao escritório do pai. Chris olhara para ela e de imediato tropeçou num tronco de árvore.

Isto parecera estabelecer o tom das suas relações, pensou ele lugubremente. Olhando agora para ele, disse: «Sinto-me lisonjeada por ter este efeito em ti, Chris. Mas sinto-me preocupada com a tua segurança.» Deu uma gargalhadinha e beijou-o levemente no queixo. «Telefonei-te hoje.»

«Eu sei, estava ocupado. Tivemos uma crise.»

Uma crise? O que é que constitui uma crise arqueológica?» «Oh, tu sabes. Problemas com subsídios.»

«Ab, estou a ver. Essa malta da ITC. Do Novo México.» Emitiu um som como se quisesse representar o fim do mundo. «Sabias que pediram ao meu pai para lhes vender a quinta?»

«Ah, sim?»

«Disseram que precisavam de a alugar durante tantos anos que o melhor talvez fosse comprar. É evidente que ele disse que não.»

«É evidente.» Ele sorriu-lhe. «Jantar?»

«Oh, Chris, esta noite não posso. Mas amanhã podemos andar a cavalo. Combinado?»

«Está certo.»

«De manhã? Às dez horas?»

«Tudo bem», respondeu ele. «Vejo-te às dez.» «Não estou a interromper o teu trabalho?» «Sabes que sim,»

«Por mim pode ser num outro dia qualquer.» «Não, não», respondeu ele. Amanhã às dez horas.»

«Então está combinado», dísse ela com um sorriso deslumbrante.

Para dizer a verdade, Sophie Hampton era quase demasiado bonita, o seu corpo demasiado perfeito, as suas maneiras demasiado encantadoras para se poder dizer que era real. Marek era um dos que ela tinha repelido.

Mas Chris estava completamente deslumbrado.

Depois de ela se ter afastado, Marek carregou novamente. Desta vez Chris desviou-se do quintana em rotação. Quando Marek recuava mais uma vez, disse-lhe: «Estás a ser levado, meu amigo.»

«É possível», respondeu Chris. Mas a verdade era que se estava nas tintas.


No dia seguinte estava Marek no mosteiro, ajudando Rick Chang nas escavações das catacumbas. Há semanas que estavam com aquelas escavações, E as coisas avançavam muito lentamente, porque encontravam continuamente restos humanos. Sempre que encontravam ossos paravam de cavar com as pás e mudavam para trolhas e escovas de dentes.

Rick Chang era o antropólogo físico da equipa. Estava treinado para lidar com descobertas humanas; era capaz de olhar para um bocado de osso do tamanho de uma ervilha e dizer se era do pulso direito ou do pulso esquerdo, macho OU fêmea, criança ou adulto, antigo ou contemporâneo.

Mas os restos humanos que estavam a encontrar ali eram muito estranhos. Primeiro, porque eram todos de indivíduos do sexo masculino; e alguns dos ossos longos apresentavam evidência de ferimentos em combate. Alguns dos crânios apresentavam ferimentos de flechas. Fora assim que a maior parte dos soldados morrera no século catorze, com ferimentos de setas. Mas não havia registo de qualquer batalha que alguma vez tivesse sido travada no mosteiro. Pelo menos nenhuma de que eles tivessem conhecimento.

Acabavam de encontrar aquilo que parecia ser um pedaço de elmo enferrujado quando o telemóvel de Marek tocou. Era o Professor.

<COmo é que isso vai?» perguntou Marek. «óptimo, pelo menos para já.»

«Já estiveste com o Doniger?» «Já. Esta tarde.»

«E?» «Ainda não sei.»

«Ainda querem avançar com a reconstrução?»

«Bom, não tenho lá muito a certeza. As coisas aqui não são exactamente como eu estava à espera.» O Professor parecia vago e preocupado.

«Como é que isso é possível?»

«Não posso estar a discutir isto ao telefone», disse o Professor. «Mas quero dizer-te uma coisa: não te telefono nas próximas doze horas. Provavelmente até nem te consigo falar nas próximas vinte e quatro horas.»

«Uh-huh. Okay. Está tudo bem?» «Está tudo bem, André.»

Marek não tinha lá muito a certeza. «Queres uma aspirina?» Era uma das frases de código que haviam estabelecido, uma maneira de perguntar se havia qualquer coisa de errado, no caso da outra pessoa não poder falar livremente. «Não, não. De modo nenhum.»

«Pareces um pouco distante.»

«Talvez antes surpreendido. Mas está tudo bem. Pelo menos julgo que está bem.» Fez uma pausa para continuar em seguida: «E quanto ao projecto? O que é que se passa contigo?»

«Neste momento estou com Rick no mosteiro. Estamos a escavar nas catacumbas do quadrante quatro. Estou convencido de que acabamos hoje ao fim do dia, o mais tardar amanhã.»

«Excelente. Procura manter o ritmo, André. Falo contigo dentro de um ou dois dias.»

E desligou.

Marek voltou a colocar o telemóvel no cinto e franziu as sobrancelhas. Que raio é que tudo aquilo queria dizer?

O helicóptero zumbiu por cima dele, com as caixas dos sensores em suspensão. Stern mantivera-o por mais um dia, para fazer passagens de manhã e de tarde; queria inspeccionar os aspectos que Kramer referira, para ver o que conseguia descobrir numa passagem dos instrumentos.

Marek gostava de saber o que se estava a passar, mas para falar com ele precisava de um rádio. O aparelho mais próximo estava no armazém.

«Elsie», disse Marek enquanto se dirigia para o armazém. «Onde é que está o rádio para falar com o David?»

É evidente que Elsie Kastrier não lhe respondeu. Elsie era uma linda mulher de aspecto determinado que era capaz de uma grande concentração. Passava horas sentada no armazém, decifrando a escrita dos pergaminhos. O seu trabalho exigia-lhe que conhecesse não só as seis principais línguas da Europa medieval, como também os dialectos esquecidos há muito tempo, o calão e as abreviaturas. Marek sentia-se feliz por ter a colaboração dela, mesmo que se mantivesse separada do resto da equipa. E por vezes podia parecer bastante estranha. Voltou a repetir: «Elsie?»

Ergueu o olhar repentinamente: «0 quê? Oli, desculpa, André. Estava só, tih, quer dizer um pouco ... » Fez um gesto para o pergaminho que se encontrava na frente dela. «Isto é uma factura do mosteiro para um conde alemão. Por o ter recebido durante uma noite com a sua comitiva pessoal: vinte e nove pessoas e trinta e cinco cavalos. Era o que este conde trazia consigo na sua viagem pela região. Mas está escrito numa mistura de Latim e Occitan e a caligrafia é insuportável.»

Elsie pegou no pergaminho e levou-o para o equipamento de fotografia. Uma câmara estava montada num suporte de quatro pés acima da mesa, iluminada com holofotes por todos os lados. Ela pousou o pergaminho, endireitou-o, colocou o código de barras de identificação no fundo, dispôs uma escala de duas polegadas para padronização no fundo, e disparou a fotografia.

«Elsie? Onde é que está o rádio para falar com o David?»

«Oh, desculpa. Está na mesa ali ao fundo. É aquele com fita adesiva que diz DS.»

Marek foi buscá-lo e premiu o botão: «David? É André.»

«Olá, André.» Marek ouvia-o com díficuldade por causa do barulho do helicóptero.

«0 que é que descobriste?»

«Zip. Nada. Absolutamente nada», disse Stern. «Verificámos o mosteiro e verificámos a floresta. Não aparece nenhuma das marcas de Kramer: nem no SLS, radar, infravermelhos ou ultravioletas. Não faço a menor ideia de como fizeram essas descobertas.»

Galopavam a toda a brida por uma crista relvada sobranceira ao rio. Pelo menos Sophie galopava; Chris seguia aos solavancos, segurando-se desesperadanente para não cair. Ordinariamente ela nunca cavalgava para o exterior, por causa da falta de habilidade de Chris, mas hoje ria-se deliciada enquanto seguia pelos campos.

Chris tentava acompanhá-la, rezando a todos os santos para que parasse depressa, o que ela finalmente fez, puxando as rédeas do seu cavalo negro completamente suado, dando-lhe uma pancadinha no pescoço, esperando que ele recuperasse.

«Não foi excitante?» perguntou.

«De facto», disse ele, procurando recuperar o fôlego. «Não há dúvida de que foi.»

«Andaste muito bem, Chris, tenho que confessar. O teu estilo está a melhorar.»

Tudo aquilo que ele conseguia fazer era acenar com a cabeça. Tinha o fundo das costas dorido de tantos saltos e as coxas ardiam-lhe de apertar com tanta força.

«Aqui é muito bonito», disse ela apontando para o rio, com os castelos escuros nas encostas distantes. «Não achas glorioso?»

E em seguida olhou para o relógio, o que o aborreceu. Mas caminhar veio a mostrar-se surpreendentemente agradável. Ela seguia muito perto dele, os cavalos quase a tocarem-se, e ela inclinou-se para murmurar ao seu ouvido; a dada altura colocou o braço por cima do ombro dele e beijou-o na boca, antes de olhar para o outro lado, aparentemente embaraçada pelo seu momento de fraqueza.

Da posição em que se encontravam naquele momento, estavam sobranceiros a todo o recinto: as ruínas de Castelgard, o mosteiro, e na colina mais distante, La Roque. Nuvens passavam no alto, projectando sombras na paisagem. A atmosfera estava quente e suave, e tudo estava tranquilo, com excepção do ruído distante de um automóvel.

«Oh, Chris», exclamou ela, e beijou-o de novo. Quando se separaram, olhou para longe e de repente acenou com a mão.

Um descapotável amarelo subia a estrada sinuosa na direcção deles. Era um tipo qualquer de carro de desporto, de linhas baixas, destacando-se o rugido do motor. A pouca distância deles o carro parou, e o condutor saiu de trás do volante, sentando-se nas costas do assento.

«Nigel!» exclamou ela num tom encantado.

O homem do carro correspondeu ao aceno preguiçosamente, a mão traçando um arco lento.

«Oh, Chris, queres ser um querido?» Sophie estendeu a Chris as rédeas do seu cavalo, desmontou e correu colina abaixo na direcção do carro. Quando aí chegou abraçou o condutor. Os dois entraram no carro. E enquanto se afastavam ela olhou para trás na direcção de Chris e soprou-lhe um beijo.

A cidade medieval restaurada de Sarlat era particularmente encantadora à noite, quando os seus edifícios encavalitados uns nos outros e as ruas estreitas eram iluminadas suavemente pelas lâmpadas de gás. Na rua Tourny, Marek e os estudantes licenciados estavam sentados na esplanada de um restaurante, debaixo de guarda-sóis brancos, saboreando naquela noite o vinho de Caliors de um vermelho escuro.

Normalmente Chris gostava daquelas noites, mas desta vez nada parecia estar certo para ele. A noite estava demasiado quente; a sua cadeira de metal era desconfortável. Encomendara o seu prato favorito, pintade aux cèpes', mas a pintada estava demasiado seca e os cogumelos estavam moles. Até a conversa o irritava: normalmente os estudantes licenciados falavam do trabalho do dia que tinha terminado, mas naquela noite a jovem arquitecta, Kate Erickson, encontrara alguns amigos de Nova iorque, dois casais americanos com cerca de trinta anos - negociantes da bolsa com as suas namoradas. Antipatizou com eles quase de imediato.

Os homens passavam o tempo a levantar-se da mesa para falarem ao telemóvel. As mulheres trabalhavam as duas em publicidade na mesma firma de Relações Públicas; acabavam de sair de uma grande festa de apresentação do novo livro de Martha Stewart. O grupo, inchado com um sentimento da sua própria auto-importância rapidamente colidiu com os nervos de Chris; e, como muitos homens de negócios de sucesso, tinham a tendência de tratar os académicos como se estes fossem um tanto atrasados mentais, incapazes de funcionar no mundo real, de jogarem os jogos reais. Ou talvez, pensou ele, achassem

 

1 Em francês, no original: galinha do mato com molho de cogumelos. (N. T)

 

simplesmente que era inexplicável que alguém pudesse ter uma ocupação que não fizesse dele milionário aos vinte e quatro anos.

E, no entanto, tinha que admitir que eram perfeitamente agradáveis; bebiam muito vinho e faziam imensas perguntas sobre o projecto. Infelizmente as questões habituais, aquelas que normalmente eram colocadas pelos turistas: O que é que esse lugar tem de tão especial? Como é que sabem onde é que devem escavar? Como é que sabem aquilo que devem procurar? Até que profundidade escavam e como é que sabem quando é que devem parar?

«Porque é que estão a trabalhar ali? Afinal de contas, o que é que o lugar tem de tão especial?» perguntou uma das mulheres.

«A zona é perfeitamente típica do período», respondeu Kate, «com dois castelos opostos. Mas o que faz disto uma verdadeira descoberta é o facto de ter sido negligenciado, e de nunca ter sido anteriormente escavado.»

«E isso é bom? O facto de ter sido negligenciado?» A mulher franziu as sobrancelhas; vinha de um mundo onde a negligência era uma coisa má.

«É muito atraente», disse Marek. «No nosso trabalho, as verdadeiras oportunidades surgem quando o mundo passa ao lado. Por exemplo como no caso de Sarlat. Esta cidade.»

«Isto é muito agradável», disse uma das mulheres. Os homens afastaram-se para falar ao telemóvel.

«Mas a questão», disse Kate, «é a questão de poder ser considerado um acidente o facto desta velha cidade ainda existir. Originalmente Sarlat era uma cidade de peregrinos que se foi desenvolvendo em torno de um mosteiro com relíquias; a dada altura tornou-se tão grande que o mosteiro procurou um outro lugar, em busca de paz e de tranquilidade. Sarlat continuou a desenvolver-se como um próspero centro de comércio para a região do Dordogne. Mas a sua importância foi diminuindo acentuadamente ao longo dos anos, e)á no século vinte, o mundo passou ao lado de Sarlat. Era tão pouco importante e pobre que a cidade não tinha dinheiro para reconstruir as velhas secções. Os velhos edificios limitaram-se a ficar à espera, sem canalização moderna nem electricidade. Grande parte deles foi abandonado.»

Kate explicou que, em 1950, a cidade começou finalmente a demolir o velho quarteirão e a construir novos edifícios. «André Malraux parou os trabalhos. Convenceu o governo francês a disponibilizar fundos para a restauração. As pessoas pensaram que ele estava maluco. Presentemente, Sarlat é em toda a França a cidade medieval mais precisa e uma das maiores atracções turísticas do país.»

«É bonita», disse a mulher em tom vago. De repente os dois homens voltararn para a mesa, sentaram-se, e guardaram os telefones no bolso com um ar de quem tinha acabado.

«0 que é que aconteceu?»

«0 fecho da bolsa», explicou um deles. «Muito bem. Estavam a falar de Castelgard- O que é que ele tem de especial?»

Marek respondeu: «Estávamos a discutir o facto de nunca ter sido escavado antes. Mas também é importante porque Castelgard é uma cidade típica inter-muralhas do século catorze. A cidade é mais velha do que isso, mas a maior parte da suas estruturas foram construídas ou modificadas entre 1300 e 1400, para se conseguir uma maior defesa: muralhas mais espessas, muralhas concêntricas, fossos e portões mais sofisticados.»

Isso foi quando? Na Idade das Trevas?» perguntou um dos homens enquanto se servia de vinho.

«Não», respondeu Marek. «Tecnicamente trata-se da Idade Média Alta.» «Não tão alta como eu vou estar», disse o homem. «Sendo assim, o que é que vem antes disso, a Idade Média Baixa?»

«Exactamente», respondeu Marek.

«Hey!» disse o homem erguendo o copo de vinho. «Certo à primeira vez!»

Cerca do ano 40 a.C. a Europa começou a ser governada por Roma. A região da Europa onde agora se encontravam, a Aquitânia, foi originalmente a colónia romana da Aquitânia. Por toda a Europa os Romanos construíram estradas, supervisionaram o comércio e mantiveram a lei e a ordem. A Europa prosperou.

Mais tarde, por volta do ano 400 d.C., Roma começou a retirar os seus soldados e abandonou as suas guarnições. Depois do colapso do império, a Europa mergulhou na ausência de leis, que durou os quinhentos anos seguintes. A população baixou, o comércio morreu, as cidades ruíram. A região foi invadida por hordas bárbaras: Godos e Vândalos, Hunos e Vikings. Este período de trevas constituiu a Idade Média Baixa.

«Mas por alturas do último milénio - ou seja 1000 d.C. - as coisas começaram a ficar melhores,» disse Marek. «Surgiu uma nova organização a que damos o nome de sistema feudal - embora nessa altura ninguém tivesse usado o termo.»

Ao abrigo do feudalismo, senhores poderosos mantiveram a ordem local. O novo sistema funcionou. A agricultura desenvolveu-se. O comércio e as cidades floresceram. Por alturas de 1200 d.C. a Europa prosperava mais uma vez, com uma população superior àquela que tivera durante o Império Romano. «É assim que o ano de 1200 é considerado como o início da Idade Média Alta

- um tempo de crescimento quando a cultura floresceu.»

Os americanos mostravam-se cépticos. «Se foi assim tão grande, porque é que toda a gente construía cada vez mais defesas?»

«Por causa da Guerra dos Cem Anos», disse Marek, «que foi travada entre a Inglaterra e a França.»

«0 que é que foi, uma guerra religiosa?»

«Não,» disse Marek. «A Religião não teve nada a ver com isso. Nessa altura toda a gente era Católica.»

«A sério? E os Protestantes?» «Não havia Protestantes.» «Onde é que eles estavam?»

Marek respondeu: «Ainda não se haviam inventado a si próprios.» «Não me diga! Então porque é que foi a guerra?»

«Por causa de uma questão de soberania», respondeu Marek. «Foi por causa do facto de a Inglaterra possuir uma grande parte da França.»

Um dos homens franziu as sobrancelhas com um ar céptico. «0 que é que me está a dizer? A Inglaterra já foi proprietária da França?»

Marek suspirou.

Ele tinha uma designação para gente daquele gênero: provincianos temporais - pessoas que eram ignorantes sobre o passado e que se sentiam orgulhosas com isso.

Os provincianos temporais estavam convencidos de que o presente era o único tempo que interessava e de que qualquer coisa que tivesse acontecido anteriormente poderia ser ignorada sem problemas. O mundo moderno era competitivo e novo, e o passado não tinha nada a ver com isso. Aprender história era tão inútil como aprender o código Morse, ou como conduzir uma carroça puxada a cavalos. E o período medieval - todos aqueles cavaleiros nas suas armaduras de estrépitos metálicos e as damas em vestidos compridos e chapéus pontiagudos - era tão obviamente irrelevante como sem o menor interesse.

E, no entanto, a verdade residia no facto de que o mundo moderno fora inventado na Idade Média. Tudo desde o sistema legal, às nações-estado, à fiabilidade da tecnologia, ao conceito de amor romântico havia sido estabelecido em primeiro lugar nos tempos medievais. Esses investidores da bolsa estavam mesmo convencidos da noção da economia de mercado na Idade Média. E se não soubessem isso, então nem sequer conheciam os factos básicos daquilo que eram. Porque faziam aquilo que faziam. De onde é que tinham vindo.

o Professor johnston afirmara muitas vezes que, quando não conhecemos a História, não conhecemos nada. Seríamos uma folha que não fazia a menor ideia de que era parte de uma árvore.

o investidor da bolsa continuou, assumindo a atitude casmurra de algumas pessoas quando eram confrontadas com a sua própria ignorância: «A sério? A Inglaterra chegou a possuir parte da França? Isso não faz o menor sentido. Os Ingleses e os Franceses sempre se odiaram uns aos outros.»

«Nem sempre», disse Marek. «Isto foi há seiscentos anos. Era um mundo completamente diferente. Nessa altura os Ingleses e os Franceses estavam muito mais próximos. A partir do momento em que os soldados da Normandia conquistaram a Inglaterra em 1066, toda a nobreza inglesa passou a ser basicamente francesa. Falavam francês, comiam alimentos Franceses, seguiam as modas francesas. Não era surpreendente que possuíssem território francês. Aqui no sul, governaram a Aquitânia durante mais de um século.»

«E depois? Qual foi a causa da guerra? Os Franceses decidiram que queriam tudo para eles?»

«Foi isso mais ou menos.»

«Compreende-se», disse o homem, com um aceno de cabeça de quem compreende.

Marek continuou a explicação. Chris passou o tempo tentando captar o olhar de Kate. Ali à luz da vela os traços do rosto dela pareciam mais duros, embora à luz do sol os traços se suavizassem. Achou que ela era inesperadamente atraente.

Mas ela não devolveu o seu olhar. A sua atenção estava centrada nos seus amigos investidores da bolsa. Era típico, pensou Chris. Fizessem aquilo que fizessem, as mulheres só se sentiam atraídas por homens com poder e dinheiro. Até homens maníacos e delicadinhos como aqueles dois.

Surpreendeu-os a olharem para os relógios. Ambos os homens usavam grandes e pesados relógios Rolex, mas as pulseiras de metal eram bastante largas, de modo que os relógios oscilavam de um lado para o outro como pulseiras de mulher. Era um sinal de indiferença e de riqueza, um desleixo casual que sugeria que estavam permanentemente em férias. Era uma coisa que o aborrecia.

Quando um dos homens começou a brincar com o relógio, fazendo-o rodar no pulso, foi a gota de água que não permitiu a Chris conseguir aguentar mais. Levantou-se abruptamente da mesa. Murmurou uma desculpa qualquer sobre ter que voltar ao local de trabalho para verificar as suas análises, e começou a descer a rua Tourny na direcção do parque de estacionamento que ficava no início do velho quarteirão.

Enquanto ia seguindo ao longo da rua, parecia-lhe que só via apaixonados, pares que passeavam de braço dado, a mulher com a cabeça apoiada no ombro do homem. Estavam à vontade um com o outro, não sentindo necessidade de falar, limitando-se a gozar o ambiente. Cada um dos casais por quem passava fazia com que se sentisse mais irritado, obrigando-o a caminhar cada vez mais depressa.

Foi um alívio quando finalmente chegou junto do seu carro e se dirigiu para casa.

Nigel! Que espécie de idiota se poderia chamar Nigel?

Na manhã seguinte Kate vagueva de novo pela capela de Castelgard quando o rádio crepitou e ouviu o grito: «Hot tamales! Hot tamales! Grelha quatro. Venham servir-se! O almoço está na mesa.»

Este era o sinal da equipa, indicando que fora feita uma nova descoberta. Usavam palavras de código para todas as suas transmissões importantes porque sabiam que os funcionários locais por vezes se encontravam à escuta. Em outros projectos o governo enviara ocasionalmente agentes para confiscarem descobertas na altura em que haviam sido efectuadas, antes de os investigadores terem tido a oportunidade de as documentar e avaliar. Embora o governo francês tivesse uma posição esclarecida quanto às antiguidades - sob muitos aspectos melhor do que no caso dos Americanos - certos inspectores em campo eram notoriamente inconsistentes. E além disso era óbvio que se verificavam muitas vezes ressentimentos contra os estrangeiros que se apropriavam da nobre História de França.

Ela sabia que grelha quatro significava a zona por cima do mosteiro. Sentia-se indecisa entre permanecer na capela ou dirigir-se directamente para lá, mas finalmente decidiu que ia mesmo. A verdade era que grande parte do seu trabalho diário era monótona, não acontecendo nada de especial. Todos eles Precisavam do entusiasmo renovado que vinha com a excitação das descobertas.

Caminhou através das ruínas da cidade de Castelgard. Em contraste com muitos outros, Kate era capaz de reconstruir as ruínas mentalmente e conseguir ver toda a cidade. Gostava de Castelgard; era uma cidade que fazia sentido, concebida e construída em tempo de guerra. Apresentava toda a autenticidade frontal de que sentira a falta na escola de arquitectura.

Sentia o sol na nuca e nas pernas e pensou pela centésima vez em como se sentia feliz por estar em França e não instalada em New Haven, no seu pequeno e atafulhado local de trabalho no sexto andar do Edifício A & A, com grandes janelas panorâmicas dando para a Universidade de Daveriport em imitação de estilo colonial e para o Payne Whitney Gym em imitação de estilo gótico. Kate achara que a arquitectura da escola era deprimente, achara que o Edifício das Artes e Arquitectura era muito deprimente, e nunca lamentara a sua mudança para a História.

É certo que não se pode discutir com um Verão no sul da França. Integrara-se bastante bem na equipa ali em Dordogne. Pelo menos até ali tinha sido um Verão agradável.

Evidentemente tivera que afastar alguns homens. Marek atirara-se descaradamente logo no início, em seguida fora o Rick Chang, e pouco depois também tivera que aturar o Chris Hughes. Chris levara muito a mal a rejeição da rapariga inglesa - aparentemente fora o único em Périgord apanhado de surpresa - e agora comportava-se como um cachorrinho magoado. Na noite passada estivera todo o jantar a olhar para ela. Parecia que os homens não se convenciam de que o comportamento de rejeição era levemente insultuoso.

Perdida nos seus pensamentos, dirigiu-se para o rio, onde a equipa conservava o pequeno barco a remos que usava para as travessias.

E ali à espera, sorrindo para ela, estava Chris Hughes.

«Eu remo», ofereceu-se ele enquanto entravam no barco. Ela concordou. Chris começou a atravessar o rio em remadas fáceis. Ela não disse nada, limitando-se a fechar os olhos e voltar o rosto para o sol. O calor era agradável, relaxante.

«Está um lindo dia», ouviu-o dizer. «Sim, está um dia agradável.»

«Você sabe, Kate», começou ele. «Gostei de facto do jantar da noite passada. Estava a pensar que talvez ... »

«Sinto-me envaidecida, Chris», disse ela. «Mas tenho que ser honesta para consigo.»

«A sério? Sobre o quê?»

«Terminei recentemente com alguém.» Oh. Uh-huh ... »

«E quero parar durante algum tempo.»

«Oh», exclamou ele. «Está bem. Compreendo. Mas mesmo assim talvez pudéssemos ... »

Fez o seu sorriso mais amável. «Acho que não», respondeu.

Oh. Okay.» Viu que ele começava a amuar. Então ele disse: «Sabe uma coisa, acho que tem razão. De facto penso que o melhor é continuarmos como simples colegas.»

«Colegas», disse ela, apertando-lhe a mão. O barco chegou à outra margem.

No mosteiro, um grupo enorme de pessoas encontrava-se à volta do topo da grelha quatro, olhando para baixo, para o poço de escavação.

A escavação era um quadrado exacto, com vinte pés de lado e descendo a uma profundidade de dez pés. Nos lados norte e leste, os escavadores haviam descoberto superfícies planas de arcos em pedra, que indicavam que a escavação se encontrava agora ao nível da estrutura da catacumba, abaixo do mosteiro original. Os arcos estavam enterrados em terra sólida. Na semana passada haviam cavado uma trincheira através do arco norte, mas parecia que não levava a sítio nenhum. Escorada com vigas, encontrava-se agora ignorada.

Presentemente toda a excitação se encontrava focada no arco leste onde recentemente havia sido cavada uma nova trincheira. O trabalho havia sido lento porque se encontravam continuamente despojos humanos, que Rick Chang identificou como corpos de soldados.

Olhando para baixo, Kate viu que as paredes da trincheira se haviam desmoronado em ambos os lados, a terra caindo para dentro, cobrindo a própria trincheira. Havia agora um enorme monte de terra, como um desmoronamento, bloqueando progressos futuros, e ao mesmo tempo que a terra desmoronou, crânios acastanhados e longos ossos - montes deles - haviam surgido à superfície.

No grupo que se encontrava ali Kate viu Rick Chang, Marek, e Elsie que saíra da sua toca para dar uma vista de olhos. Elsie montara a câmara digital num tripé, disparando a torto e a direito. Mais tarde as fotografias seriam reunidas em computador para conseguir panoramas a 360 graus. Seriam tiradas com intervalos de uma hora, para registar cada fase da escavação.

Marek olhou para cima e viu Kate debruçada na balaustrada. «Viva», disse ele. «Tenho andado à tua procura. Chega cá abaixo.»

Desceu a escada até ao fundo em terra da escavação. Ao sol do meio da tarde cheirava a detritos e a um leve odor de decomposição de matéria orgânica. Um dos crânios soltou-se e rolou até aos seus pés. Mas ela não lhe tocou; sabia que os despojos deviam permanecer onde eram encontrados até que Chang os rernovesse.

«Talvez sejam aqui as catacumbas», disse Kate, «mas estes ossos não se encontravam armazenados. Terá havido aqui alguma batalha?»

Marek encolheu os ombros. «Houve batalhas por toda a parte. Estou mais interessado nisto.» Apontou para o arco que se encontrava em frente, sem qualquer decoração, arredondado e levemente espalmado.

Kate disse: «Cisterciano, é capaz de ser do século doze...»

«Okay, certo. Mas o que é que me dizes disto?» Directamente por debaixo da curva central do arco, o desmoronamento da trincheira deixara uma abertura negra com cerca de três pés de largo.

Ela disse: «Em que é que estás a pensar?»

«Acho que o melhor é entrarmos ali. Imediatamente.» «Porquê?» exclamou ela. «Qual é a pressa?»

Foi Chang que lhe respondeu, «Parece que existe espaço para lá da abertura. Uma sala, talvez diversas salas.»

«E depois?»

«Agora encontra-se exposto ao ar. Pela primeira vez em talvez seiscentos anos.» Marek acrescentou: «E o ar tem oxigénio.»

«Achas que há ali artefactos?»

«Não sei o que é que há ali», respondeu Marek. «Mas podemos ter danos consideráveis dentro de poucas horas.» Voltou-se para Chang. «Temos uma cobra?» «Não, está em Toulouse para ser reparado.» A cobra era um cabo de fibra

óptica que podia ser ligado a uma câmara. Utilizavam-no para observar espaços que de outro modo seriam inacessíveis.

Kate observou: «Por que é que não te limitas a encher a sala com azoto?» O azoto era um gás inerte, mais pesado do que o ar. Se o bombeassem através da abertura, encheria o espaço como se fosse água. E protegeria quaisquer artefactos dos efeitos corrosivos do oxigénio.

«Não me importava», disse Marek, «se eu tivesse gás que chegasse. O maior cilindro que temos aí é de cinquenta litros.»

Não era suficiente.

Ela apontou para os crânios. «Eu sei, mas se fizeres alguma coisa agora, vais perturbar ... »

«Eu não me preocupava com os esqueletos», disse Chang. «já mudaram de posição. E dá o aspecto de que se trata de um enterro em massa, depois de uma batalha. Mas não há muito que se possa aprender com eles.» Voltou-se e olhou para cima. «Chris, quem é que tem o reflector?»

No lado de cima, Chris disse: «Eu não. Julgo que a última vez foram usados aqui.»

Um dos estudantes disse: «Não, está do outro lado na grelha três.» «Vamos buscá-lo. Elsie, já acabaste com as fotografias?»

«Que chato!»

«Já acabaste ou não?» «Só mais um minuto.»

Chang estava a chamar os estudantes que se encontravam no lado de cima, dizendo-lhes para trazerem os reflectores. Quatro deles afastaram-se a correr. Marek estava a dizer aos outros: Okay, minha gente, quero flashes, quero equipamentos de escavação, garrafas portáteis de oxigénio, máscaras, linhas de guia, a tralha toda -já.»

No meio de toda aquela excitação, Kate continuava a olhar para a abertura por debaixo do arco. O arco parecia-lhe frágil, com as pedras relativamente soltas. Normalmente um arco mantinha a sua forma graças à pressão das paredes sobre a pedra central, a chave do arco. Mas neste caso, toda a curva superior sobre a abertura podia simplesmente desmoronar-se. A terra que caíra do desmoronamento estava solta. Via os seixos soltarem-se e deslizarem aqui e ali. Não lhe parecia lá muito bem.

«André, não acho que seja muito seguro trepar aquele... »

«Quem é que está a falar em trepar? Vamos descer-te pela parte de cima.» «Eti?»

«Exactamente. Penduras-te na parte de cima do arco e entras a partir daí.» Deve ter parecido desorientada, porque ele sorriu. «Não te preocupes, eu vou contigo.»

«Estás a ver, se não tivermos razão ... » Pensava para consigo: «Podíamos ser enterrados vivos.»

«0 que é isso?», perguntou Marek. «Estás a perder a coragem?» Era tudo aquilo que ele tinha para dizer.

Dez minutos mais tarde, estava pendurada no ar, na beira do arco exposto. Tinha a mochila de escavação, com uma garrafa de oxigénio presa no lado de trás, e duas lanternas penduradas nas alças, parecendo granadas. Tinha a máscara puxada para a testa. Cabos ligavam o rádio a uma bateria que transportava no bolso. Com tanto equipamento sentia-se esquisita, desconfortável. Marek permanecia acima dela, prendendo a sua linha de segurança. E, no fundo do poço, Rick e os seus estudantes olhavam para eles com um ar tenso.

Olhou para cima na direcção de Marek. «Dá-me cinco.» Libertou cinco pés de linha e ela deslizou até conseguir aflorar o monte de detritos. Pequenos deslizamentos de terra escapavam-se por entre os pés. Inclinou-se para a frente.

«Mais três.»

Deixou-se cair apoiada nas mãos e nos joelhos, apoiando no terreno todo o seu peso. Aguentava. Mas olhou para o arco que se encontrava acima dela. A pedra chave estava a desmoronar-se em ambos os lados.

«Está tudo bem?» perguntou Marek em voz alta. «Okay», respondeu ela. «Vou entrar agora.»

Rastejou de volta ao buraco que se encontrava debaixo do arco. Olhou para cima na direcção de Marek, e pegou numa das lanternas. «Não sei se conseguirás fazer isto, André. É possível que os detritos não suportem o teu peso.» «Que gracinha. Não vais fazer isto sozinha, Kate.»

«Bom, pelo menos deixa-me entrar primeiro.»

Acendeu a lanterna, ligou o rádio, puxou a máscara para baixo, para começar a respirar através dos filtros, e rastejou através do buraco, entrando na escuridão que a aguardava.

O ar estava surpreendentemente fresco. O feixe amarelo da lanterna avançava hesitante pelas paredes nuas em pedra, pelo pavimento em pedra. Chang tinha razão: era um espaço aberto por debaixo do mosteiro. E parecia continuar até a uma certa distância, até que os detritos e o cascalho desmoronado bloqueavam a passagem mais distante. Apontou o feixe de luz para o tecto, tentando ver em que condições se encontrava. Não conseguia ver muito bem. Mas não era lá grande coisa.

Continuou a rastejar apoiada nas mãos e nos joelhos, e em seguida começou a descer, deslizando um pouco pelos detritos na direcção do solo. Momentos mais tarde, punha-se de pé dentro das catacumbas.

«Já cá estou.»

Estava escuro à volta dela, e sentia a humidade do ar. Havia um odor frio e húmido que era desagradável mesmo através dos filtros. Os filtros eliminavam as bactérias e vírus. Nas escavações da maior parte dos locais de trabalho ninguém se preocupava com máscaras, mas aqui eram necessárias, porque no século catorze as pragas haviam surgido por diversas vezes, matando um terço da população. Embora uma das formas da epidemia tivesse sido originalmente transmitida por ratos infectados, outra forma foi transmitida pelo ar, através da tosse e de espirros, e assim toda a gente que entrasse num antigo espaço selado tinha que se preocupar...

Ouviu um ruído atrás dela. Viu Marek passando através do furo que se encontrava na parte superior. Começou a deslizar até que saltou para o solo. No silêncio que se seguiu, ouviram os sons suaves dos seixos e terra que deslizavam pelas terras do desmoronamento.

«já reparaste», disse ela, «que podíamos ficar aqui enterrados vivos.» «Deves olhar sempre para o lado bom,» respondeu Marek. Continuou em frente, segurando uma grande lâmpada fluorescente com reflectores. Iluminava uma secção completa da sala. Agora que podiam ver claramente, a sala parecia desalentadoramente vazia. Ã esquerda encontrava-se o sarcófago em pedra de um cavaleiro; a tampa, que havia sido removida, era esculpida em relevo. Quando inspeccionaram o interior do sarcófago, verificaram que se encontrava vazio. Encostada a uma das paredes encontrava-se uma mesa em madeira tosca. Estava vazia. Um corredor aberto para a esquerda, terminava numa escada de pedra, que subia até desaparecer num monte de detritos. Mais montes de terra nesta câmara, para o lado direito, bloqueando outra passagem, outro arco.

Marek suspirou. «Tanta excitação... para nada.»

Mas Kate continuava a estar preocupada com a terra que se soltava, caindo na sala. Fez com que olhasse atentamente para os montes de terra que se encontravam à direita.

E foi nesse instante que ela a viu. «André», disse ela. «Chega aqui.»

Era uma protuberância cor de terra, castanha contrastando com o castanho da terra, mas a superfície tinha um brilho muito leve. Limpou-a com a mão. Era oleado. Destapou um canto afiado. Oleado que embrulhava qualquer coisa.

Marek espreitou por cima do ombro dela, «õptimo, muito bem.» «Naquela altura já tinham oleado?»

«Oh, sim. O oleado é uma invenção Viking, talvez do século nono. Bastante vulgar na Europa no nosso período. Embora esteja convencido de que não se encontrou mais nada no mosteiro que esteja embrulhado em oleado.»

Ajudou-a a escavar. Fizeram-no cautelosamente, procurando evitar que as terras desabassem sobre eles, mas dentro em pouco tinham o objecto exposto. Era um rectângulo com cerca de sessenta centímetros quadrados, protegido com uma corda embebida em óleo.

«Julgo que são documentos», disse Marek. Os dedos iluminados pela luz fluorescente tremiam, com a ansiedade de o abrir, mas procurou controlarse. Levamo-lo connosco.»

Colocou-o debaixo do braço e dirigiu-se para a entrada. Ela olhou uma última vez para o monte de terra, pensando se não teria falhado qualquer coisa. Mas não tinha. Moveu o feixe de luz e...

Parou.

Pelo canto do olho teve uma visão fugaz de qualquer coisa brilhante. Voltou-se para olhar mais uma vez. Por momentos não conseguiu encontrá-la até que finalmente ali estava.

Era uma pequena peça de vidro, saindo da terra. «André?», disse ela. «Tenho a impressão de que há mais.»

O vidro era fino e perfeitamente transparente. A borda era curva e macia, quase moderna na sua qualidade. Limpou a sujidade com as pontas dos dedos expondo uma lente de uns óculos.

Era uma lente bifocal.

«0 que é?», perguntou André dirigindo-se para ela. «Isso gostava eu de saber.»

Semicerrou os olhos, aproximando o feixe da lanterna. O rosto estava tão próximo do vidro que quase lhe tocava com o nariz. «Onde é que encontraste isto?» O seu tom de voz denotava preocupação.

«Mesmo aqui.»

À mostra, como está agora?» A sua voz estava tensa, quase acusadora. «Não, só se via uma das bordas. Fui eu que a limpei.»

Como?» «Com o dedo.»

«Estás a querer dizer-me que estava parcialmente enterrada?» O seu tom de voz dava a entender que não acreditava nela.

«Hey, qual é a tua ideia?» Limita-te a responder, por favor.»

«Não, André. Estava quase toda enterrada. Estava toda enterrada menos este bordo esquerdo.»

«Gostava que não lhe tivesses tocado.» «Também eu, se soubesse que ias reagir ... »

«Isto tem que ter uma explicação», disse ele. «Volta-te.» «0 quê?»

«Volta-te.» Agarrou-a pelo ombro e voltou-a com brusquidão, de modo a ficar de costas para ele.

«Valha-me Deus.» Olhava por cima do ombro para ver o que é que ele estava a fazer. Segurava a lanterna muito perto da mochila dela e deslocava-a ao longo da superficie muito lentamente, examinando a mochila minuciosamente e em seguida os calções. «Olha lá, estás a querer dizer-me ... »

«Está calada por favor.»

Passou-se um minuto à vontade antes dele ter terminado. «0 zipe do fecho inferior da tua mochila está aberto. Foste tu que o abriste?»

«Não.» «Então tem estado sempre aberto. Desde a altura em que colocaste a mochila?»

«Julgo ... »

«Houve alguma altura em que te tivesses encostado à parede?»

«Acho que não.» Procurara ter o maior cuidado com esse aspecto porque não queria que a parede se desmoronasse.

«Tens a certeza?» perguntou ele.

«Pelo amor de Deus! Não, André, não tenho a certeza.»

«Está bem. Agora faz-me o mesmo.» Estendeu-lhe a lanterna e voltou-se de costas para ela.

«Verifico o quê?» perguntou ela.

«Esse vidro é uma contaminação», respondeu. «Temos que explicar como é que ele apareceu ali. Verifica se algum dos bolsos da minha mochila se encontra aberto.»

Ela fez aquilo que ele lhe pedia. Não havia nada aberto. «Viste cuidadosamente? »

Sim, vi cuidadosamente», disse ela num tom aborrecido. «Acho que o fizeste muito depressa.»

«André, já te disse que verifiquei cuidadosamente. »

Marek ficou a olhar para o monte de terra que se encontrava na frente deles. Enquanto olhava, pequenos seixos deslizavam pelo declive. «Podia ter caído de uma das nossas mochilas e depois ficar coberto ... »

Sim, acho que é possível.»

«Se conseguiste limpá-lo com a ponta do dedo é sinal de que não se encontrava profundamente enterrado ... »

«Não, não, estava perfeitamente solto.»

«Tudo bem. Então, de certo modo, temos aqui a explicação.» «Que é?»

«Não sei bem como, trouxemos esta lente connosco e enquanto estávamos a trabalhar nos documentos embrulhados no oleado, caiu da mochila e ficou coberto pelos detritos. Mais tarde viste-o, e limpaste-o. É a única explicação.» «Okay ... »

Mark tirou a máquina fotográfica, fotografou o vidro várias vezes de diferentes distâncias - de muito perto e em seguida progressivamente mais longe. Só depois tirou um pequeno envelope de plástico, pegou cuidadosamente no vidro com uma pinça e introduziu-o no envelope. Tirou um pequeno rolo de fita adesiva, fechou o envelope, selou-o com a fita e entregou-lhe o embrulho. «Leva-o contigo. Por favor tem cuidado.» Parecia mais descontraído. Estava a mostrar-se mais amável com ela.

«Está bem», disse ela. Voltaram a trepar o declive do aterro, dirigindo-se para o exterior.

Foram saudados com vivas pelos estudantes, e o embrulho com o oleado foi entregue a Elsie, que o transportou rapidamente para a casa agrícola. Toda a gente ria abertamente ou sorria, excepto Chang e Chris Hughes. Usavam auscultadores e tinham ouvido tudo aquilo que se passara na cave. Tinham um ar sombrio e preocupado.

A contaminação de um local de trabalho era um assunto extremamente sério e todos sabiam isso. Porque implicava uma técnica de escavação descuidada levando a questionar qualquer outra bem como descobertas legítimas que tivessem sido feitas pela equipa. No ano anterior, em Les Eyzies, um caso semelhante quase que ia redundando num pequeno escândalo.

Les Eyzies era um local Paleolítico, uma povoação de homens primitivos no rebordo de uma falésia. Os arqueólogos estavam a fazer escavações a um nível que datava de 320 000 a.C., quando um deles encontrou um preservatívo meio enterrado. Ainda se encontrava na sua embalagem metálica e ninmguém se atreveu a pensar nem por instantes que fizesse parte daquele nível. Mas o facto de ter sido encontrado ali - meio enterrado - sugeria que não estavam a ser cuidadosos com a sua técnica. A equipa quase que entrou em pânico, mas continuaram depois de um dos estudantes licenciados ter sido mandado de volta para Paris, desacreditado.

«Onde é que está a lente?» «É a Kate que a tem.»

Ela entregou a lente a Chris. Enquanto toda a gente festejava, ele afastou-se, desembrulhou o pacote e expôs o envelope à luz.

«Moderno sem a menor dúvida.» Abanou a cabeça com um ar infeliz. «Vou verificar isto. Não te esqueças de mencionar isto no relatório de trabalho.» Marek garantiu que não se esqueceria.

Nessa altura Wek Chang voltou-se e bateu as palmas. «Ok, meninos, a brincadeira acabou. Toca a trabalhar!»

Para essa tarde Marek havia planeado um treino de tiro com arco. Os alunos gostavam imenso do treino e nunca faltavam a uma sessão; recentemente Kate também se havia juntado ao grupo. Naquele dia o alvo era um espantalho cheio de palha, colocado a cerca de trinta metros. Os miúdos estavam todos alinhados, empunhando os seus arcos, e Marek passou lentamente por detrás deles.

«Para matar um homem», disse-lhes ele, «não se podem esquecer de uma coisa: é quase certo que usa placa de armadura no peito. É menos provável que tenha protecção de armadura na cabeça e no pescoço, ou nas pernas. Sendo assim, para o matar terão que o atingir na cabeça, ou nas partes laterais do tronco que não se encontram protegidas pela armadura.»

Kate ouvia a explicação de Marek divertida. André levava tudo muito a sério. Para matar um homem. Como se, na realidade, fosse isso que ele quisesse fazer. Ali de pé, gozando o sol da tarde do sul da França, ouvindo o buzinar distante dos carros que passavam na estrada, a ideia parecia levemente absurda.

«Mas se quiserem deter um homem», continuou Marek, «disparem para as pernas. Vai logo abaixo. Hoje vamos usar arcos de dois quilos.»

Dois quilos representava o esforço de abertura, aquilo que era necessário para esticar o arco. Os arcos eram pesados sem qualquer dúvida, e difíceis de disparar. As flechas tinham quase sessenta centímetros de comprimento. Muitos dos miúdos viam-se atrapalhados, especialmente quando treinavam pela primeira vez. Normalmente Marek terminava cada sessão de treino com levantamento de pesos, por uma questão de musculação.

Marek era capaz de atirar com um arco de quatro quilos e meio. Embora fosse difícil de acreditar, insistia em que era o tipo das verdadeiras armas do século catorze - muito além daquilo que qualquer deles era capaz de usar.

«Muito bem, disse Marek, «escolham as vossas flechas, apontem e podem disparar.» As flechas cruzavam o ar. «Não, não, não, David, não abras o arco até começares a tremer. Procura manter o controlo. Carl, olha para a tua posição. Bob, demasiado alto. Deanna, não te esqueças do dedo. Rick, essa foi muito melhor. Muito bem, mais uma vez, escolham as vossas flechas, apontem, e. .. disparem!»

A tarde já ia no fim quando Stern chamou Marek no rádio e pediu-lhe para ir à casa agrícola. Disse-lhe que tinha boas notícias. Marek foi encontrá-lo debruçado sobre o microscópio a examinar a lente.

«0 que é que se passa?»

«Chega aqui. Vê tu mesmo.» Chegou-se para o lado e Marek observou. Viu a lente e a linha nítida do corte bifocal. Aqui e ali a lente estava levemente manchada com círculos brancos, como se fosse devido a bactérias.

«0 que é que eu devo ver?», perguntou Marek. «Borda esquerda.»

Moveu a lamela, trazendo a borda esquerda para o campo de visão. Com a refracção da luz a borda parecia muito branca. Em seguida notou que a brancura partia da borda, espalhando-se para a superficie da lente.

«São bactérias a desenvolverem-se na lente», disse Stern. «É como verniz de rocha.»

Verniz de rocha era o termo para a pátina de bactérias e bolor que crescia na parte inferior das rochas. Uma vez que era orgânico, o verniz de rocha podia ser datado.

«Isto pode ser datado?» disse Marek.

«Podia», respondeu Stern, «se houvesse o suficiente para um teste C-14. Mas Posso dizer-te já que não temos. É impossível conseguir uma datagem decente com esta quantidade. Nem sequer vale a pena tentar.»

«E então?»

«A questão é que se trata da parte exposta da lente, não é verdade? A borda que a Kate disse que saía da terra?»

«Exacto ... »

«Então é antiga, André. Não tenho dados concretos mas posso garantir que não se trata de contaminação do local. O Rick está a analisar os ossos que ficaram expostos ho)e e está convencido de que alguns deles são posteriores ao nosso período, século dezoito ou até mesmo século dezanove. O que quer dizer que um deles poderia usar bifocais.»

«Olha que não sei. Esta lente apresenta uma técnica muito apurada...»

isso não quer dizer que seja nova», respondeu Stern. «Há duzentos anos já tinham boas técnicas de polimento. Vou tratar das coisas para que esta lente seja examinada por um técnico de óptica em New Haven. Pedi à Elsie para se adiantar e verificar os documentos que se encontravam no oleado, prevendo o caso de que exista alguma coisa fora do normal. Entretanto, acho que nos podemos descontrair um pouco.

«Não há dúvida de que são boas notícias», disse Marek com um sorriso. «Tinha a certeza de que querias saber. Encontramo-nos ao jantar.»

Tinham preparado as coisas para jantarem na velha praça de Dorrime, uma aldeia empoleirada no topo de uma falésia, a poucos quilómetros do local de trabalho. Ao cair da noite Chris, que estivera rabugento durante todo o dia, recuperara da sua má disposição e preparava-se para jantar. Pensava se Marek recebera instruções do Professor e, caso contrário, o que é que iam fazer a esse respeito. Sentia-se na expectativa.

A sua boa disposição desvaneceu-se ao chegar, quando viu que os casais de correctores da bolsa se encontravam de novo sentados à mesa deles. Aparentemente haviam sido convidados para uma segunda noite. Chris preparava-se para voltar as costas e ir-se embora, mas Kate levantou-se rapidamente, pôs-lhe um braço pelos ombros e conduziu-o para a mesa.

«É melhor ir-me embora», disse-lhe ele em voz baixa. «Não suporto essa gente.» Mas ela deu-lhe um beijo fugaz e obrigou-o a sentar-se numa cadeira. Verificou que deviam ser os correctores da bolsa que estavam a encomendar o vinho naquela noite - Château Lafite-Rothschild'95, nunca menos de dois mil francos a garrafa.

E pensou para consigo, «Que se lixe».

«Bom, não há dúvida de que é uma cidadezinha encantadora» estava uma das mulheres a dizer. «Fomos dar uma volta para ver as muralhas no exterior. Estendem-se por uma distância muito considerável. Também são altas. E aquela porta extraordinária de entrada na cidade, está a ver, aquela que tem duas torres redondas uma de cada lado.»

Kate acenou com a cabeça. «Não deixa de ser irónico», disse ela, «que um grande número de aldeias que achamos tão encantadoras fossem na realidade os centros comerciais do século catorze.»

«Centros comerciais? O que é que quer dizer?», perguntou a mulher. Nesse momento o rádio de Marek, que este trazia preso no cinto, crepitou com a estática.

«André? Estás a ouvír?»

Era a Elsie. Nunca vinha jantar com os outros, trabalhando até tarde na sua catalogação. Marek pegou no rádio. «Diz Elsie.»

«Encontrei aqui uma coisa que acho muito estranha.» «Sim ... »

«És capaz de dizer ao David para dar aqui um salto? Preciso da ajuda dele para os testes. Mas dígo-vos uma coisa, meninos - se isto é uma brincadeira, não acho piada nenhuma.»

Com um click o rádio ficou mudo. «Elsie?»

Não houve resposta.

Marek olhou em volta da mesa. «Alguém lhe pregou uma partida?» Abanaram todos a cabeça numa negativa.

Chris Hughes comentou: «Talvez ela comece a sentir-se esgotada. Não me surpreendia com tantas horas a olhar para os pergaminhos.»

«Vou ver o que é que ela quer», disse David Stern, levantando-se da mesa. Afastou-se desaparecendo na escuridão.

Chris pensou em ir com ele, mas Kate olhou para ele rapidamente e sorriu-lhe. Fez com que ele se sentasse mais confortavelmente, pegando no copo de vinho.

«Estava a dizer - que estas cidades eram como centros comerciais?» «Grande parte delas eram», respondeu Kate Erickson. «Estas cidades eram

organizações comerciais para fazerem dinheiro para os que queriam desenvolver as terras. Mais ou menos como os centros comerciais de hoje. E, como se verifica nos centros comerciais, eram construídas em padrões idênt'icos.»

Voltou-se na cadeira e apontou para a praça da cidade de Dorrime que ficava atrás deles. «Está a ver o mercado coberto a madeira que se encontra no centro da praça da cidade? Encontra mercados cobertos semelhantes a este em montes de cidades aqui à volta. Quer dizer que a cidade é uma bastilha, uma nova aldeia fortificada. Durante o século catorze foram construídas em França cerca de mil cidades bastilha. Algumas delas foram construídas para defender o território. Mas muitas delas foram construídas simplesmente para fazer dinheiro.»

Esta explicação chamou a atenção dos correctores da bolsa.

um dos homens olhou directamente para ela e disse: «Só um momento. como é que construir uma aldeia pode fazer com que alguém ganhe dinheiro?» Kate sorriu. «Economia do século catorze», respondeu. «Funcionava da seguinte maneira. Imaginemos que é um nobre, dono de um grande número de terras. A maior parte da França do século catorze é floresta, o que quer dizer que a maior parte das suas terras são florestas, habitadas por lobos. Poderá ter aqui e ali alguns agricultores que lhe pagam rendas miseráveis. Mas assim nunca conseguirá ficar rico. E porque é um nobre, tem continuamente uma necessidade desesperada de dinheiro, para fazer a guerra e para receber no estilo sumptuoso que se espera de si.

«Sendo assim, o que é que você pode fazer para aumentar o rendimento das suas terras? Constrói uma nova cidade. Atrai gente para viver na sua nova cidade, oferecendo-lhe reduções especiais de impostos, facilidades especiais designadas no foral da cidade. Basicamente, liberta a gente da cidade de obrigações feudais. »

«Qual é a razão de se darem todas essas facilidades?»

«Porque dentro em breve irá ter mercadores e mercados na cidade, e as taxas e impostos irão gerar muito mais dinheiro para si. Aplica impostos a tudo. Pela utilização da estrada para chegar à cidade. Pelo direito de entrar nas muralhas da cidade. Pelo direito de instalar uma tenda no mercado. Pela despesa dos soldados para manterem a ordem. Por fornecer agíotas ao mercado.

«Não está mal», disse um dos homens.

«Não está mesmo nada mal. E além disso ainda recebe uma percentagem de tudo aquilo que é vendido no mercado.»

«A sério? Que percentagem?»

«Depende do lugar, e em especial do tipo de mercadoria. De um modo geral, um a cinco por cento. Deste modo, o mercado é de facto a razão de ser da cidade. Pode ver-se claramente pelo modo como a cidade é construída. Olhe para a igreja que está ali», disse ela, apontando para o lado. «Nos primeiros séculos a igreja era o centro da cidade. As pessoas iam à Missa pelo menos uma vez por dia. Toda a vida girava em torno da igreja. Mas aqui no Dorrime, a igreja está afastada para um dos lados. O mercado é agora o centro da cidade.» «Sendo assim, todo o dinheiro vem do mercado?»

«Não totalmente, porque a cidade fortificada oferece protecção para a área, o que quer dizer que novos agricultores irão limpar as terras nas proximidades e começar novas culturas. Deste modo também vão aumentar as suas rendas agrícolas. De um modo geral, uma nova cidade é um investimento sólido e de confiança. Razão pela qual tantas destas cidades foram construídas.»

«É só por isso que as cidades foram construídas?»

«Não, muitas foram construídas por razões militares como ... » O rádio de Marek crepitou. Era Elsie mais uma vez. «André?» «Diz», respondeu Marek.

«É melhor vires já aqui porque não sei o que é que hei-de fazer.» «Porquê? O que é que se passa?»

«Vem já. Agora.»

O gerador trabalhava ruidosamente, e a casa parecia brilhantemente iluminada no meio do campo às escuras, sob um céu crivado de estrelas.

Estavam todos reunidos na casa agrícola. Elsie, sentada à secretária que se encontrava no centro, olhava para eles. O seu olhar parecia distante.

«Elsie?» «É impossível», disse ela.

«0 que é que é impossível? O que é que aconteceu aqui?»

Marek olhou para David Stern que ainda se encontrava a fazer uma análise qualquer num dos cantos da sala.

Elsie suspirou. «Não sei, francamente não sei ... »

«Bom», disse Marek, «o melhor é começares pelo princípio.»

«Okay», respondeu. «0 princípio.» Levantou-se e atravessou a sala, apontando para um monte de pergaminhos que se encontravam sobre um encerado estendido no soalho. «Este é o princípio. O grupo de documentos, referência M-031, retirado das escavações do mosteiro às primeiras horas de hoje. David pediu-me para fazer isto o mais rapidamente possível.»

Ninguém disse uma palavra. Limitavam-se a olhar para ela.

Muito bem, continuou. Comecei a analisar o grupo de documentos. Trabalho da seguinte maneira. Retiro cerca de dez pergaminhos de cada vez e trago-os para a minha secretária.» Trouxe dez. «Agora sento-me à secretária e começo a analisar um por um. Em seguida, depois de ter feito o sumário do conteúdo de cada folha, e registado o sumário no computador, trago a folha para ser fotografada aqui.» Dirigiu-se para a mesa seguinte e fez deslizar um Pergaminho sob a máquina fotográfica.

Marek disse: «Estamos ao corrente do processo ... »

«Não, não estão coisa nenhuma», respondeu ela em tom acerado. «Não estão de modo nenhum ao corrente.» Elsie voltou à sua mesa e retirou o pergaminho seguinte do monte. «Continuando, analiso portanto os documentos um a um. Este grupo é composto por toda a espécie de documentos: facturas, cópias de cartas, respostas a directivas do bispo, registos de colheitas, listas de equipamento do mosteiro. Tudo datado mais ou menos do ano de 1357.»

Tirou os pergaminhos do monte, um por um. «E então», - retirou o último - «vejo isto.» Ficaram a olhar.

Ninguém disse uma palavra.

O pergaminho era idêntico em tamanho aos outros que se encontravam no monte, mas em vez da escrita compacta em Latim ou Francês arcaico, este tinha apenas duas palavras escritas em inglês corrente:

AJUDEM-ME

4/7/1357

«No caso de terem dúvidas», disse ela, «é a caligrafia do Professor.»


A sala estava silenciosa. Ninguém se movia ou mudava de posição. Estavam ali todos a olhar em completo silêncio.

Marek pensava rapidamente, analisando todas as possibilidades. Atendendo ao seu conhecimento detalhado e enciclopédico sobre o período medieval, trabalhara durante muitos anos como consultor sobre artefactos medievais para o Museu Metropolitano de Arte em Nova iorque. Como resultado disso, Marek tinha uma considerável experiência sobre falsificações de todas as espécies. Era certo que raras vezes eram exibidas falsificações de documentos sobre o período medieval - normalmente as falsificações consistiam em pedras preciosas montadas num bracelete que não tinha mais de dez anos ou uma armadura que se vinha a verificar ter sido fabricada em Brooklin - mas a sua experiência dera-lhe uma visão clara sobre o modo como lidar com estas situações.

Marek disse: Okay, começando pelo princípio. Tens a certeza de que é a sua caligrafia?»

«Tenho», respondeu Elsie. «Sem qualquer dúvida.» «Como é que sabes?»

Ela fungou com desdém. «Sou uma grafologista, André. Mas tens aqui. Podes verificar. »

Trouxe uma nota que johnston rabiscara alguns dias antes, uma nota escrita em maiúsculas, presa a uma factura: «POR FAVOR, VERIFIQUEM ESTE DÉBITO.» Colocou a nota ao lado do texto do pergaminho. «Na realidade, as letras maiúsculas são mais fáceis de analisar. Este H, por exemplo, apresenta uma diagonal Muito leve entre as duas hastes. Traça uma linha vertical, levanta a caneta, em seguida desenha a segunda linha vertical, e em seguida volta com a caneta atrás para desenhar o travessão, fazendo a diagonal que estás a ver. Ou então repara no P. Desenha um risco de cima para baixo e em seguida volta à posição inicial para desenhar o semicírculo. Ou o E, que ele desenha como um L, para em seguida com um ziguezague acrescentar as duas linhas adicionais. Não há qualquer dúvida. É a sua caligrafia.»

«Não é possível que alguém tenha forjado isto?»

«Não. Numa falsificação nota-se o levantamento da caneta e outros sinais. Esta é a escrita dele.»

Kate comentou: «Achas que é possível que ele nos quisesse pregar uma partida?»

«Se o fez, não tem piada nenhuma.»

«0 que é que me dizes deste pergaminho onde ele escreveu?» perguntou Marek. «É tão antigo como as outras folhas do monte?»

«Exacto», disse David Stern vindo do outro lado da sala. «Ainda não acabei a datagem de carbono, mas diria que sim - tem a mesma idade dos outros.» Marek pensou: Como é que isso épossível? Perguntou: «Tens a certeza? Este

pergaminho parece-me diferente. A superfície parece ser mais grosseira.»

«É mais grosseira», respondeu Stern. «Porque não foi convenientemente raspado. Nos tempos medievais os pergaminhos constituíam um material muito valioso. Geralmente era usado, raspado até ficar limpo e voltava a ser usado. Mas se observarmos este pergaminho ao ultravioleta... Alguém pode trazer a luz?» Kate desligou as luzes e na escuridão Stern ligou uma lâmpada púrpura sobre a mesa.

Marek viu imediatamente mais escrita, ténue mas que se observava claramente na superfície do pergaminho.

«Originalmente isto era um recibo de aluguer», disse Elsie. «Foi raspado rapidamente e sem o menor cuidado, como se alguém estivesse cheio de pressa.» Chris perguntou: «Estás a dizer que foi o Professor que o raspou?»

«Não faço a menor ideia sobre quem é que o raspou. Mas posso garantir que não foi feito por um especialista.»

Muito bem, disse Marek. «Há uma maneira definitiva de decidir isto de uma vez por todas.» Voltou-se para Stern. «0 que é que me dizes da tinta, David? É genuína?»

Stern hesitou. «Não tenho a certeza.» «Não tens a certeza? E porque não?»

«Falando sob um ponto de vista químico», disse Stern, «é precisamente aquilo que se poderia esperar: ferro sob a forma de óxido ferroso, misturado com centáurea como agente de ligação orgânico. Havia quem acrescentasse carvão para ficar mais preta, e cinco por cento de sacarose. Nesses dias usava-se a sacarose para dar à tinta um aspecto brilhante. Temos portanto uma tinta vulgar ferro-centáurea, correcta em termos do período em causa. Mas isto em si não tem grande significado.»

«Certo.» Stern estava a dizer que podia ser falsificada.

«Foi assim que efectuei, testes de centáurea e de ferro», disse Stern, «o que faço normalmente quando tenho dúvidas. Conseguimos assim as quantidades exactas que se encontram presentes na tinta. Os ensaios indicam que esta tinta é similar mas não idêntica à dos outros documentos.»

«Similar mas não idêntica», disse Marek. «Até que ponto é similar?» «Como sabes, as tintas medievais eram misturadas à mão antes de serem usadas, porque não se aguentavam. A centáurea é orgânica, o que significa que as tintas eventualmente podiam deteriorar-se. Por vezes acrescentavam vinho à tinta como conservante. De qualquer modo, encontra-se uma variação bastante razoável nas percentagens de centáurea e de ferro de documento para documento. Chegamos a verificar uma diferença de vinte a trinta por cento entre documentos. É perfeitamente aceitável que consigamos aceitar essas percentagens para dizer se dois documentos foram escritos no mesmo dia, do mesmo fornecimento de tinta. Esta tinta em especial apresenta uma diferença de cerca de vinte e nove por cento em relação aos outros documentos.»

«Isso não tem qualquer significado», disse Marek. «Esses números são incapazes de confirmar que se trata de um documento autêntico ou de uma falsificação. Fizeste uma análise espectrográfica?»

«Fiz, acabei-a mesmo agora. Tens aqui o espectro para três documentos, com o do Professor no meio.» Três linhas, uma série de picos e depressões. «Mais uma vez similares mas não idênticos.»

«Não tão similar como isso», disse Marek, observando o padrão dos picos. «Porque, juntamente com a diferença de percentagem em conteúdo em ferro, encontramos um grande número de vestígios de elementos na tinta do Professor, incluindo... a que é que corresponde este pico, por exemplo?»

«Crómio.» Marek suspirou. «0 que quer dizer que é moderna.» «Não necessariamente, de modo nenhum.»

«Não existe crómio nas tintas antes e depois.»

«É verdade. Mas o crómio é encontrado em tintas para escrita manual. Bastante vulgar.»

«Existe crómio neste vale?»

«Não», respondeu Stern, «mas o crómio era importado de todos os cantos da Europa, porque era usado tanto no fabrico de corantes como de tintas.» «Mas o que é que me dizes dos outros contaminantes?», disse Marek,

apontando para os outros picos. Abanou a cabeça. «Desculpa lá mas não consigo engolir isto.»

Stern disse, «Estou de acordo, deve ser uma partida.»

«Mas não vamos ter uma certeza a cem por cento sem uma datagem carbono», disse Marek. O Carbono - 14 permite-nos fazer uma datagem tanto do pergaminho como da tinta, com uma margem de erro de cerca de cinquenta anos. Isso já será suficiente para decidir a respeito de uma possibilidade de falsificação.

«já que estamos com as mãos na massa, também gostava de fazer um teste de termoluminescência e uma activação a laser», disse Stern.

«Não o consegues fazer aqui.»

«Não, levo-o a Les Eyzies.» Les Eyzies, a cidade no vale seguinte que era o centro dos estudos pré-históricos no sul da França, tinha um laboratório muito bem equipado que fazia datagens carbono -14 e potássio-árgon, bem como activação neutrónica e outros testes dificeis. Os resultados de campo não eram tão exactos como os que se obtinham em Paris ou em Toulouse, mas os cientistas conseguiam uma resposta em poucas horas.

«Há hipóteses de o fazeres esta noite?» «Vou tentar.»

Chrís veio juntar-se ao grupo; estivera a tentar falar com o Professor num telefone móvel. «Nada», disse ele. «Vou ter sempre ao voicemaíl.»

«Está bem», disse Marek. «Para já, não há mais nada que se possa fazer. Presumo que esta mensagem seja uma brincadeira de mau gosto. Não faço a menor ideia de quem seja o engraçadinho, mas alguém o fez. Amanhã fazemos o teste de carbono para datar a mensagem. Não tenho a menor dúvida de que vamos provar que é recente. E com todo o meu respeito para com a Elsie, estou convencido de que o mais provável é ser uma falsificação.»

Elsie começou a protestar furiosamente.

«Mas de qualquer modo», continuou Marek, «o Professor deve estar aqui amanhã e vamos perguntar-lhe. Entretanto, sugiro que vá toda a gente para a cama e desejo-lhes uma boa noite de descanso.»

Na casa agrícola, Marek fechou a porta devagarinho antes de acender as luzes. Então olhou à sua volta.

A sala estava imaculada, como já o esperava. Apresentava a arrumação e a limpeza de uma cela de monge. Ao lado da cama encontravam-se cinco ou seis documentos para investigação. Numa secretária à direita, mais documentos de investigação ao lado de um computador laptop. A secretária tinha uma gaveta que abriu e inspeccionou rapidamente.

Mas não encontrou aquilo que procurava.

Em seguida dírigiu-se para o armário. As roupas do Professor encontravam-se penduradas ordenadamente, com um espaço entre cada uma das cruzetas. Marek inspeccionou-os um a um, apalpando os bolsos, mas continuou a não o encontrar. Pensou que talvez não estivesse ali. Talvez -o tivesse levado com ,ele para o Novo México.

Havia uma escrivaninha em frente da porta. Abriu a gaveta de cima: moedas num pequeno prato de bordas baixas, dólares americanos presos com um elástico, e alguns objectos pessoais, incluindo um canivete, uma caneta e um relógio sobressalente - tudo coisas absolutamente vulgares.

Em seguida viu uma caixa de plástico, encostada a um dos lados.

Tirou a caixa da gaveta e abriu-a. A caixa continha lentes de óculos. Colocou as lentes no tampo.

As lentes eram bifocais, de forma oval.

Procurou no bolso da camisa e tirou uma saqueta em plástico. Ouviu ranger atrás dele e voltou-se, deparando com Kate Erikson que entrava naquele momento.

«A inspeccionar a roupa interior dele?» disse ela, erguendo as sobrancelhas. «Vi luz debaixo da porta. Tinha que dar uma vista de olhos.»

«Sem bateres?», disse Marek.

«0 que é que estás a fazer aqui?» perguntou. Logo em seguida viu o plástico. «É aquilo em que estou a pensar?»

«Exactamente.»

Marek tirou a lente bifocal do saco de plástico, segurando-a com uma pinça e colocou-a igualmente no tampo, ao lado das lentes do Professor.

«Não são idênticas,» disse ela. «Mas diria que a lente lhe pertence.» «Também acho.»

«Mas não será isso que sempre pensaste? Quer dizer, é a única pessoa aqui no campo que usa bifocais. A contaminação tem que vir das suas lentes.» «Mas não existe qualquer contaminação», disse Marek. «Esta lente é antiga.» «0 quê?»

«David diz que o branco da borda da lente é um crescimento de bactérias. Esta lente não é moderna, Kate. É antiga.»

Ela observou mais de perto. «Não é possível», respondeu. «Repara no modo como as lentes estão cortadas. É o mesmo tipo de trabalho nas lentes do Professor e nesta lente. Tem que ser moderna.»

«Eu sei, mas David insiste em que é antiga.» «Até que ponto?»

«Não é capaz de o dizer.»

«Não consegue fazer a datagem?»

Marek abanou a cabeça. «Não tem material orgânico suficiente.»

«Sendo assim», disse ela, «vieste a este quarto porque ... » Fez uma pausa, olhando para as lentes e em seguida para ele. Franziu as sobrancelhas. «Julguei que tinhas dito que a letra era uma falsificação, André.»

«É verdade.»

«Mas também perguntaste ao David se podia fazer o teste de carbono esta noite, não foi?»

«Sim ... »

«E agora aqui estás tu com a lente, porque te sentes preocupado ... » Abanou a cabeça como se pretendesse esclarecer as ideias. «Sobre o quê? O que é que achas que se está a passar?»

Marek olhou para ela. «Não faço a menor ideia. Nada disto faz sentido.» «Mas estás preocupado.»

«Sim», respondeu Marek. «Estou preocupado.»

O dia seguinte amanheceu brilhante e quente, com um sol deslumbrante num céu sem nuvens. O Professor não telefonou durante toda a manhã. Marek telefonou-lhe duas vezes mas só conseguia apanhar o seu voicemail Deixe-me uma mensagem e telefono-lhe mais tarde.»

Também estava sem notícias de Stern. Quando telefonaram para o laboratório em Les Eyzies, disseram-lhes que ele estava ocupado. Um técnico frustrado informou-os: «Está a repetir os testes mais uma vez! Com esta já são três vezes!»

Porquê? Pensava Marek. Considerou a hipótese de se deslocar a Les Eyzies para verificar ele próprio - era uma viagem curta - mas decidiu ficar no armazém para o caso de o Professor telefonar.

Nunca telefonou.

A meio da manhã, Elsie exclamou: «Hul---i.» «0 que é que foi?»

Estava a olhar para outro pergaminho. «Este era o pergaminho que se encontrava imediatamente antes do documento do Professor», disse ela.

Marek aproximou-se. «E o que é que Isso tem?»

«Parece que tenho aqui manchas de tinta da caneta do Professor. Estás a ver, aqui e aqui?»

Marek encolheu os ombros. «Provavelmente estava a analisar este antes de escrever a sua nota.»

«Mas estão na margem», disse ela, «quase como se tratasse de uma anotação.» «Anotação sobre o quê?», perguntou «0 documento é sobre o quê?»

«É uma peça de história natural», disse ela. «Uma descrição de um rio subterrâneo escrita por um dos monges. Diz que é preciso ter cuidado em diversos pontos, marcados em passos, e por aí adiante.»

«Um rio subterrâneo.. . » Marek não se sentia interessado. Os monges eram os académicos da região e era frequente escreverem pequenos ensaios sobre geografia local, ou carpintaria, a altura apropriada para podar as árvores do pomar, a melhor maneira de armazenar os cereais durante o Inverno, e tantas outras coisas. Eram simples curiosidades e na maioria das vezes estavam erradas.

«Marcellus tem a chave», disse ela, lendo o texto. «Sempre gostava de saber o que é que isto quer dizer. É exactamente onde o Professor deixou as suas marcas. Em seguida... qualquer coisa sobre... pés gigantes... não... os pés do gigante? ... Os pés do gigante? ... E diz vivix, o que é o termo latino para... deixa-me ver... Esta é nova ... »

Consultou o dicionário.

Impaciente, Marek saiu para o exterior e andava de um lado para o outro. Estava irritado, nervoso.

«É estranho», disse ela. «Não existe qualquer palavra vivix. Pelo menos neste dicionário não a encontro.» Fez uma anotação que estava de acordo com a sua maneira metódica.

Marek suspirou.

As horas foram-se arrastando.

O Professor nunca chegou a telefonar.

Finalmente chegaram as três da tarde; os estudantes dirigiam-se calmamente para a tenda grande, para a sua pausa da tarde. Marek deixou-se ficar à porta a observá-los. Pareciam descuidados, rindo, dando palmadas uns aos outros, contando anedotas.

O telefone tocou. Voltou-se imediatamente. Elsie pegou no auscultador. Ouviu-a dizer, «Sim, está mesmo aqui ao meu lado ... »

Precipitou-se para a sala. «0 Professor?»

Abanou a cabeça. «Não. É alguém da ITC.» E estendeu-lhe o telefone. «Fala André Marek», disse.

«Oh, sim. Por favor aguarde um momento, Mr Marek. Sei que o Mr Doniger está ansioso para falar consigo.»

«Está?» «É verdade. Há várias horas que estamos a tentar telefonar-lhe. Por favor, aguarde um momento enquanto o vou chamar.»

Uma longa pausa. Entretanto ouvia-se um trecho de música clássica. Marek colocou a mão sobre o bocal e disse a Elsie: «É o Doniger.»

«Hey», comentou ela. «Estás a subir na vida. Nada mais do que o manda-chuva.»

«Porque é que o Doniger me está a telefonar?»

Cinco minutos mais tarde ainda aguardava a ligação quando Stern entrou na sala, abanando a cabeça. «Não vais acreditar nisto.»

«Sim? Em quê?» disse Marek continuando a segurar o telefone.

Stern limitou-se a estender-lhe uma folha de papel onde se encontrava escrito:

638 ± 47 BP

«0 que é que isto quer dizer?» perguntou Marek. «A data da tinta.»

«De que é que estás a falar?«

«A tinta do pergarninho», disse Stern. «Tem seiscentos e trinta e oito anos, com uma margem de mais ou menos quarenta e sete anos.»

«0 quê?»

«É isso mesmo. A tinta data de 1361 d.C.» «0 quê?»

«Eu sei, eu sei», disse Stern. «Mas fizemos os testes três vezes. Não há qualquer dúvida a esse respeito. Se o Professor escreveu isso de facto, fê-lo há seiscentos anos.» Marek voltou o papel. No outro lado estava escrito:

1361 d.C ± 47 anos

Ao telefone a música terminou com um click e uma voz tensa disse: «Fala Bob Doniger. Mr Marek?»

«Eu mesmo», disse Marek.

«Talvez não se recorde, mas encontrámo-nos há um par de anos quando eu visitei o campo de trabalho.»

«Lembro-me perfeitamente», disse Marek.

«Estou a telefonar-lhe por causa do Professor johnston. Estamos muito preocupados com a sua segurança.»

«Não sabem onde é que ele se encontra?»

«Não, não é isso. Sabemos exactamente onde é que ele se encontra.» Houve alguma coisa no seu tom de voz que fez com que Marek sentisse uma arrepio na espinha. Marek continuou: «Então Posso falar com ele?»

«Lamento, mas de momento não é possível.» «0 Professor está em perigo?»

«É difícil de dizer. Espero bem que não. Mas vamos precisar da sua audácia e do seu grupo. já enviei o avião para os trazer.»

Marek disse: «Mr. Doniger, parece que temos uma mensagem do Professor Johnston datada de há seiscentos anos ... »

«No telemóvel não», disse Doniger, interrompendo-o. Mas Marek verificou que não evidenciou qualquer surpresa. «Neste momento são três horas em França, não é verdade?»

«Sim, passam poucos minutos.»

«Muito bem», disse Doniger. «Escolha os três membros da sua equipa que conheçam melhor a região de Dordogne. Dirija-se para o aeroporto de Bergerac. Não se preocupe em fazer as malas. Terão tudo aquilo de que necessitarem quando chegarem aqui. O avião aterra às seis da tarde na vossa zona e irá trazê-los de volta ao Novo México. Compreendeu?»

«Sim, mas ... » «Então até já.»

E Doniger desligou.

David Stern olhava para Marek. «Que história era essa?», perguntou. Marek disse: «Vai buscar o teu passaporte.»

«0 quê?»

«Vai buscar o teu passaporte. E na volta traz o carro.» «Vamos a algum lado?»

«Sim, vamos», respondeu Marek. E pegou no rádio.

Do alto dos baluartes do Castelo de La Roque, Kate Erickson olhava para a paliçada interior, a ampla zona central do castelo, coberta de relva, que ficava situada vinte pés abaixo dela. A zona relvada estava cheia de turistas de uma dúzia de nacionalidades, todos eles envergando roupas coloridas e calções. As máquinas fotográficas disparavam em todas as direcções.

Mesmo por debaixo dela ouviu uma rapariguinha que dizia: «Mais outro castelo. Porque é que temos que visitar todos estes estúpidos castelos, Mamã?» A mãe respondeu: «Porque o Papá está interessado.»

«Mas são sempre a mesma coisa, Mamã.» «Eu sei querida ... »

O pai, a alguns metros de distância, estava no centro de um recinto de paredes baixas que desenhavam uma antiga sala. «E isto», anunciou ele à família, «era o grande átrio.»

olhando para baixo, Kate verificou de imediato que não era nada daquilo que ele estava a dizer. O homem estava no meio daquilo que restava de uma cozinha. Era óbvio por causa dos três fornos ainda visíveis na parede da esquerda. E a calha em pedra que transportava a água podia ser vista exactamente atrás do homem na altura em que falou.

«0 que é que aconteceu no grande átrio?» perguntou a filha.

«Era onde davam os banquetes, e onde os cavaleiros que visitavam o castelo prestavam homenagem ao rei.»

Kate suspirou desanimada. Não havia a menor prova de que alguma vez tivesse havido um rei em La Roque. Muito pelo contrário, havia documentos atestando que sempre fora um castelo privado, construído no século onze por um indivíduo de nome Armand de Cléry, e mais tarde quase que totalmente reconstruído nos princípios do século catorze, com mais uma linha de muralhas exteriores e pontes levadiças adicionais. Estes trabalhos adicionais foram executados por um cavaleiro de nome François le Gros, ou Francisco o Gordo, por volta do ano de 1302.

Apesar do seu nome, François era um cavaleiro inglês, e reconstruiu La Roque segundo o novo estilo dos castelos ingleses, estabelecido por Edward 1. Os castelos eduardinos eram amplos, com espaçosos pátios interiores e agradáveis instalações para o senhor. Este sistema adaptava-se a François que tinha ao mesmo tempo um temperamento artístico, uma inclinação para a preguiça e uma tendência para problemas de dinheiro. François viu-se forçado a hipotecar o castelo e, mais tarde, a vendê-lo definitivamente. Durante a Guerra dos Cem Anos, La Roque foi controlado por uma sucessão de cavaleiros. Mas as fortificações aguentaram: o castelo nunca foi conquistado em batalha, só em transacções comerciais.

Quanto ao grande átrio, viu que se encontrava situado mais para a esquerda, já em muito mau estado, mas indicando claramente os limites de uma sala Inuito maior, quase com trinta metros de comprimento. A monumental lareira - dois metros e meio de altura e três metros e meio de largura - ainda era visível. Kate sabia que qualquer grande salão com este tamanho teria paredes em pedra e cobertura em vigamento de madeira. E, de facto, ao olhar mais atentamente, descortinou os cachorros na parte superior das paredes em pedra, onde se teriam apoiado as grandes vigas horizontais. Em seguida viriam as contravigas, para suportar o telhado.

Um grupo de turistas britânicos passou por ela comprimiindo-se para seguirem pelas passagens estreitas dos baluartes. Ouviu o gula que dizia: «Estes baluartes foram construídos por Sir Francis, o Mau, em 1363. Francis não prestava mesmo, era má rês. Nos seus enormes calabouços gostava de torturar homens e mulheres, e até mesmo crianças. Agora, se olharem para a vossa esquerda, podem ver o Recanto dos Amantes, onde Madame de Renaud encontrou a morte em 1292, tendo caído em desgraça por se encontrar grávida do criado das cavalariças do marido. Mas ainda hoje se discute se ela terá caído ou se foi empurrada pelo marido ultrajado ... »

Kate suspirou desalentada. Onde é que eles iam arranjar aquelas histórias? Folheou o seu bloco de esboços onde registara os contornos das muralhas. Este castelo também tinha as suas passagens secretas. Mas Francisco, o Gordo era um arquitecto experiente. As suas passagens eram na sua grande maioria para defesa. Uma das passagens corria desde a base das muralhas até à parede mais distante do grande átrio, até à parte de trás da lareira. Outra passagem corria ao longo das muralhas que se erguiam a sul.

Mas a passagem mais importante ainda se lhe escapava. Segundo o escritor do século catorze Froissart, o castelo de La Roque nunca fora tomado por cerco, porque os atacantes nunca haviam sido capazes de descobrir a passagem secreta pela qual traziam alimentos e água para o castelo. Havia o rumor de que esta passagem secreta se encontrava ligada à rede de cavernas situadas nas rochas calcárias que se erguiam atrás do castelo; também corria durante uma certa distância até terminar numa abertura escondida na falésia.

Algures. A maneira mais fácil de a encontrar seria descobrir onde terminava dentro do castelo e em seguida percorrer o caminho no sentido contrário. Mas para encontrar essa abertura iria necessitar de ajuda técnica. Provavelmente a melhor coisa seria radar de solo. Mas para se fazer uma coisa dessas era preciso que o castelo estivesse vazio. Estava fechado às segundas-feiras. Talvez o pudessem fazer na segunda-feira seguinte, se...

O rádio crepitou. «Kate?» Era Marek.

Segurando o rádio contra o rosto premiu o botão. «Sim, é a Kate.» «Volta já para a casa agrícola. É uma emergência.»

E desligou.


A cerca de três metros debaixo de água, Chris ouvia o silvo do seu regulador enquanto ajustava a corda-guia que o mantinha no lugar, resistindo à corrente do Dordogne. A claridade da água hoje não estava muito mal, cerca de três metros e meio, e conseguia ver toda a base do pilar da ponte do moinho fortificado, na beira da água. O pilar terminava num monte de grandes rochas que corriam numa linha directa cruzando o rio. Essas rochas eram os restos do arco original da ponte.

ChriS seguiu ao longo da linha, examinando as rochas lentamente. Procurava entalhes ou cachorros que indicassem onde é que haviam sido usadas vigas. De vez em quando tentava voltar uma rocha, mas era muito difícil fazê-lo debaixo de água porque não conseguia um ponto de apoio.

Na superfície lá em cima deixara uma bóia com uma bandeira às riscas vermelhas indicando que havia mergulhador. Estava ali para o proteger dos kayaks dos turistas. Pelo menos era essa a ideia.

De repente sentiu um esticão que o arrancou do fundo. Dirigiu-se para a superfície, batendo com a cabeça no casco amarelo de um kayak. O remador segurava a bóia de plástico, gritando com ele em qualquer coisa que parecia alemão.

Chris tirou o respirador de boca e disse: «Quer fazer o favor de deixar isso em paz?»

Respondeu num Alemão rápido. O remador apontava irritadamente para a praia.

«Ouça uma coisa, pá, não sei quem você é ... »

O homem continuava a gritar, apontando para a praia com o dedo espetado.

Chris olhou para trás.

A maioria dos estudantes encontrava-se na margem, segurando um rádio na mão. Estava a gritar. Chris precisou de alguns momentos para compreender. «Marek quer que volte à casa agrícola. Agora.»

«Chiça, e se for daqui a meia hora, quando acabar ... » «Ele diz agora.»

Nuvens escuras erguiam-se sobre as distantes mesas, dando a ideia de que ia chover. No seu escritório, Doniger pousou o telefone e disse: «Concordaram

em vir.»

«Optimo», disse Diane Kramer. Encontrava-se de pé à frente dele, as costas voltadas para a montanha. «Precisamos da ajuda deles.»

« Infelizmente», disse Doniger, «precisamos.» Levantou-se da secretária e começou a andar de um lado para o outro. Mostrava-se sempre inquieto quando pensava profundamente.

«Em primeiro lugar, não consigo compreender como é que perdemos o Professor», disse Kramer. «Deve ter entrado no mundo. Disse-lhe para não o fazer. Disse-lhe que não fosse em primeiro lugar. E ele deve ter entrado no mundo.»

«Não sabemos o que é que aconteceu», disse Doniger. «Não fazemos a menor ideia.»

«Excepto que escreveu uma mensagem», disse Kramer.

«Está certo. De acordo com o que a Kastrier disse. Quando é que falaste com ela?»

«Ontem ao fim do dia», respondeu Kramer. «Telefonou-me logo que soube. Tem sido um elo de ligação muito útil para nós, e ela ... »

«Deixa lá», disse Doniger, agitando a mão num tom irritado. Não é nuclear. » Era a expressão que ele usava sempre quando estava convencido de que qualquer coisa era irrelevante. «0 que é nuclear?»

«Trazê-lo de volta», respondeu Doniger. «É fundamental trazermos aquele homem de volta. Isso é nuclear.»

«Não há dúvida», respondeu Kramer. «Essencial.»

«Pessoalmente estou convencido de que o velhadas é um imbecil» comentou Doniger. «Mas se não o trazemos de volta estamos enterrados até aos cabelos num pesadelo de publicidade.»

«Sim, um pesadelo.»

«Mas sou capaz de tomar conta disso», afirmou Doniger. «Tenho a certeza de que é capaz de resolver o problema.»

Ao longo dos anos, Kramer adquirira o hábito de repetir tudo aquilo que Doniger dizia, quando este se encontrava numa das suas crises de meditação. Para um estranho dava a ideia de que se tratava de sicofalitismo, mas Doniger achava que era útil. Frequentemente, quando Doniger ouvia aquilo que ela repetia, não se sentia lá muito satisfeito. Kramer sentia que em todo este processo não passava de uma espectadora. Podia parecer uma conversa entre duas pessoas, mas não era. Doniger estava a falar apenas consigo próprio.

«0 problema», disse Doniger, «é que há um número cada vez maior de estranhos que têm conhecimentos de tecnologia, mas não estamos a conseguir um retorno quantificável. Tanto quanto sabemos, esses estudantes também não serão capazes de trazê-lo de volta.»

«Têm mais hipóteses.»

«.É uma suposição.» Continuava a andar de um lado para o outro. «Sem grandes possibilidades. »

«Concordo, Bob. Sem grandes possibilidades. »

«E a equipa de busca que mandou para trás? Quem é que mandou?» «Gomez e Baretto. Não viram o Professor em lado nenhum.» «Quanto tempo é que eles lá estiveram?»

«Julgo que foi cerca de uma hora.» «Não entraram no mundo?»

Kramer abanou a cabeça. «Para quê correr riscos? Não há razão para isso. São um par de ex-marines, Bob. Não eram capazes de saber onde é que tinham de procurar, mesmo que estivesse diante do nariz. Nem sequer eram capazes de saber o que é que deviam recear. Do lado de lá as coisas são completamente diferentes.»

«Mas esses estudantes licenciados são capazes de saber onde é que devem procurar.»

«A ideia é essa», disse Kramer.

Ao longe ouvia-se o som cavo do trovão. As primeiras gotas de chuva fustigaram os vidros das janelas. Doniger olhou para a chuva que caía. «E se eu também perdesse os estudantes licenciados?»

«Mais um pesadelo de publicidade.»

«É possível», disse Doniger. «Mas temos que estar preparados para essa possibilidade.»

Os motores do avião gemiam, enquanto o Gulfstream V rolava na direcção deles, com "ITC" em grandes letras prateadas pintadas na cauda. As escadas desceram e um comissário de bordo devidamente uniformizado desenrolou uma carpete vermelha no fundo das escadas.

Os estudantes licenciados ficaram a olhar espantados.

«Macacos me mordam», disse Chris Hughes. «Afinal sempre há tapete vermelho.»

«Vamos», disse Marek. Colocou a mochila no ombro e dirigiu-se para bordo. Marek recusara responder às suas perguntas, alegando ignorância. Falou-lhes dos resultados da datagem do carbono. Disse-lhes que não era capaz de o explicar. Disse-lhes que a iTC os chamara para ajudar o Professor e que isso era urgente. Não disse mais nada. E notou que também Stern se mantinha silencioso.

O interior do aparelho era todo em cinzentos e prateados. O comissário de bordo perguntou-lhes o que é que queriam beber. Todo este luxo contrastava com o aspecto duro do homem de cabelo grisalho cortado muito curto que se aproximou para os cumprimentar. Embora o homem envergasse facto completo, Marek notou maneiras militares no modo como apertou a mão a cada um deles.

«Chamo-me Gordon», disse. «Vice-presidente da ITC. Benvindos a bordo. O tempo de voo até ao Novo México é de nove horas e quarenta minutos. melhor apertarem os cintos.»

Deixaram-se cair nos assentos sentindo de imediato que o aparelho comeÇava a deslocar da pista. Momentos mais tarde os motores rugiram, e Marek olhou pela janela, vendo a paisagem campestre francesa desaparecer atrás deles.

Podia ser pior, pensou Gordon, sentado ao fundo do aparelho e olhando para o grupo. É certo que eram académicos. Estavam um pouco confusos. E não havia qualquer coordenação, não se sentia qualquer espírito de equipa entre eles.

Mas por outro lado, todos pareciam estar em boas condições físicas, em especial o tipo estrangeiro, Marek. Parecia robusto. E a mulher também não parecia mal. Braços com bom tónus muscular, calos nas mãos. Modos competentes. Pensou que tudo indicava que ela era capaz de aguentar sob pressão.

Mas o rapaz com bom aspecto parecia não ter qualquer utilidade. Gordon suspirou quando Chris Hughes olhou pela janela, viu o seu reflexo no vidro e penteou o cabelo para trás com a mão.

E Gordon ainda não formara uma opinião sobre o quarto rapaz com um aspecto absolutamente descuidado. Era óbvio que passara muito tempo ao ar livre; as roupas estavam desbotadas e os óculos riscados. Mas Gordon reconheceu nele um técnico. Sabia tudo sobre equipamento e circuitos e nada sobre o mundo. Era difícil dizer como é que ele iria reagir se as coisas ficassem feias.

O manda-chuva, Marek, disse: «E agora vai dizer-nos o que é que se passa?» «Acho que já sabe, Mr. Marek», disse Gordon. «Ou será que não?» «Tenho um pergaminho de há seiscentos anos atrás escrito pelo Professor. Com tinta de há seiscentos anos atrás.»

«Sim. Eu já sabia.»

Marek abanou a cabeça. «Mas ainda me custa a acreditar.»

«Sob esse aspecto», disse Gordon, «trata-se apenas de uma realidade tecnológica. É real. Pode ser feito.» Levantou-se do assento onde se encontrava e veio juntar-se ao grupo.

«Está a falar de viagem no tempo», disse Marek.

«Não», disse Gordon. «Não é nada de viagem no tempo. A viagem no tempo é impossível. Qualquer pessoa sabe isso.»

«0 próprio conceito de viagem no tempo não faz qualquer sentido, uma vez que o tempo não tem movimento. O facto de pensarmos que o tempo passa é apenas um acidente dos nossos sistemas nervosos - do modo como as coisas nos parecem. Na realidade o tempo não passa; nós é que passamos. O tempo em si é invariante. É apenas. Além disso, o passado e o futuro não são locais separados como poderíamos dizer em relação a Paris e Nova iorque. E uma vez que o passado não é um local, não podemos viajar para ele.»

Estavam todos em silêncio. Limitavam-se a olhar atentamente para ele. «É importante sermos perfeitamente claros a respeito disto», disse Gordon. «A tecnologia da iTC não tem nada a ver com as viagens no tempo, pelo nienos de uma forma directa. Para ser mais exacto, usamos a tecnologia quântica para manipular uma mudança de coordenadas ortogonais multiversais.» Olharam para ele com ar de que não tinham percebido.

«Quer dizer», continuou Gordon, «que viajamos para outro lugar no multiverso.»

«E o que é o multiVerso?», perguntou Kate.

«0 multiverso é o mundo definido pela mecânica quântica. Significa que ... » «Mecânica quântica?» disse Chris. «0 que é a mecânica quântica?» Gordon fez uma pausa. «É um bocado difícil de explicar. Mas uma vez que vocês são historiadores», disse ele, «vou tentar explicá-lo historicamente. »

«Há cem anos», continuou Gordon, «os físicos consideravam que a energia - como a luz, o magnetismo ou a electricidade - tomava a forma de ondas fluindo continuamente. Ainda hoje falamos de ondas de rádio "ou de ondas de luz". De facto, o reconhecimento de que todas as formas de energia compartilhavam esta natureza ondulatória foi uma das grandes conquistas da física do século dezanove.

«Mas havia um pequeno problema», continuou. «Chegou-se à conclusão de que fazendo incidir um feixe de luz sobre uma placa metálica se obtinha uma corrente eléctrica. O físico Max Planck estudou a relação entre a quantidade de luz incidindo na placa e a quantidade de electricidade produzida, e chegou à conclusão de que a energia não era uma onda contínua. Muito pelo contrário, a energia parecia ser composta por unidades individuais, a que deu o nome de quanta. A descoberta de que a energia se apresentava sob aforma de quanta deu inicio à Física Quântíca> disse Gordon.

«Alguns anos mais tarde, Eínstein demonstrou que podíamos explicar o efeito fotoeléctrico, partindo do princípio de que a luz era composta por partículas a que deu o nome de fotões. Estes fotões de luz chocavam com a placa metálica e libertavam electrões, produzindo electricidade. Matematicamente as equações funcionavam. justificavam a teoria de que a luz era composta por Partículas. Até aqui tudo bem?»

«E dentro em pouco os físicos começaram a verificar que não só a luz, mas toda a energia era composta por partículas. De facto, toda a matéria do universo se apresentava sob uma forma de partículas. Os átomos eram compostos por partículas pesadas no núcleo e electrões mais leves orbitando no exterior. Deste modo, e de acordo com a nova corrente, é tudo constituído por partículas. Okay?»

«As partículas eram unidades descontínuas, ou quanta. E a teoria que descreve como essas partículas se comportam é a teoria quântica. Uma descoberta fundamental da Física do século vinte.»

Acenavam todos com a cabeça.

«Os físicos continuam a estudar estas partículas, e começam a chegar à conclusão de que são entidades muito estranhas. É impossível saber exactamente onde é que se encontram, não se Podem medir com precisão, e não se pode prever aquilo que irão fazer. Ás vezes comportam-se como partículas, outras vezes como ondas. Por vezes duas partículas reagirão entre si, mesmo que se encontrem separadas por um milhão de quilómetros, sem qualquer ligação entre elas. E por aí adiante. A teoria começa a parecer absolutamente estranha.

«Presentenente duas coisas acontecem à teoria quântica. A primeira é a de que tem sido cada vez mais confirmada. É a teoria mais provada na história da ciência. Os scanners dos supermercados, os lasers e os chips para computador, baseiam-se todos em mecânica quântica. Deste modo não existe a menor dúvida de que a teoria quântica é a descrição matematicamente correcta do universo.

«Mas o problema reside em que se trata apenas de uma descrição matemática. É apenas um conjunto de equações. E os físicos não conseguem visualizar o mundo implicado por estas equações - era demasiado estranho, demasiado contraditório. Pessoalmente Einstein não gostava da situação. Dava-lhe a sensação de que a teoria tinha falhado. Mas a teoria continuou a ser confirmada e a situação ficou cada vez pior. Por fim, até mesmo os cientistas que ganharam o Prémio Nobel por contribuições para a teoria quântica tiveram que admitir que se sentiam incapazes de compreender.

«E deste modo criou-se uma situação absolutamente estranha. Durante a maior parte do século vinte, verifica-se uma teoria sobre o universo que toda a gente aceita e que todos concordam estar correcta - mas ninguem é capaz de dizer como é que define o mundo.»

«0 que é que isso tudo tem a ver com os universos múltiplos?» perguntou Marek

«já lá vamos», respondeu Gordon.

Muitos físicos tentaram explicar as equações, disse Gordon. Cada uma das explicações falhou por uma ou outra razão. Até que em 1957 um físico de nome Hugh Everett propôs uma nova explicação absolutamente espantosa. Everett afirmava que o nosso universo - o universo que vemos, o universo de rochas e árvores e pessoas e galáxias no espaço exterior - era apenas um entre um número infinito de universos que existiam lado a lado.

Cada um destes universos estava constantemente a dividir-se, pelo que havia um universo em que Hitler perdeu a guerra, e outro em que ganhou; um universo em que Kermedy morreu, e outro em que viveu. E também um mundo em que escovávamos os dentes todas as manhãs, e outro em que não o fazíamos. E por aí adiante, interminavelmente. Uma infinidade de mundos.

Everett designou esta interpretação de "muitos mundos"como mecânica quântica. A sua explicação era consistente com as equações quanticas, mas os físicos acharam que era muito difícil de aceitar. Não lhes agradava a ideia de todos aqueles mundos a dividirem-se constantemente. Acharam inacreditável que a realidade pudesse assumir aquela forma.

«A maior parte dos físicos ainda recusa aceitar isto», disse Gordon. «Mesmo que ainda ninguém tenha demonstrado que está errado.»

O próprio Everett não tinha paciência com as objecções dos seus colegas. Insistia em que a teoria era verdadeira, quer se gostasse quer não. Quem não gostasse da sua teoria estava simplesmente a ser exagerado e antiquado, exactamente como aconteceu com os cientistas que não acreditaram na teoria de Copérnico que colocava o sol no centro do sistema solar - e que também parecia inacreditável nessa altura. «Porque Everett afirmava que o conceito de muitos mundos era realmente verdade. Existiam na realidade múltiplos universos. E situavam-se precisamente lado a lado com o nosso. Todos esses universos eram eventualmente referidos no seu conjunto como multiverso"

«Só um momento», disse Chris. «Está a dizer-nos que é verdade?» «Sim», disse Gordon. «É verdade.»

«Como é que sabe?», perguntou Marek.

«Eu vou mostrar-lhes», disse Gordon. E pegou numa pasta de cartolina onde se lia no rótulo, ITUTecnologia CTC.

Pegou numa folha de papel em branco, e começou a desenhar. «Uma experiência muito simples foi realizada durante duzentos anos. Coloquemos duas paredes uma em frente da outra. A primeira parede tem uma ranhura vertical.» Mostrou-lhes o desenho.

«Em seguida acendemos uma luz da parte de fora da ranhura. Na parede que se encontra em frente, vemos ... »

«Uma linha branca», respondeu Marek. «Da luz que passa através da ranhura.»

«Correcto. Teria um aspecto mais ou menos como este.» Gordon mostrou-lhes uma fotografia montada num cartão.

Gordon continuou a esboçar. «Agora, em vez de uma ranhura, temos uma parede com duas ranhuras verticais. Acendendo uma luz na parte exterior, na parede que se encontra em frente, vemos ... »

«Duas linhas verticais», disse Marek.

«Não. Uma sucessão de linhas brilhantes e de barras escuras.» Mostrou-lhes.

«E,» continuou Gordon, «se acendermos uma luz na parte exterior de uma parede com quatro ranhuras, conseguimos metade das barras que tínhamos antes. Porque as restantes barras ficaram negras.»

Marek franziu as sobrancelhas. «Mais ranhuras igual a menos barras? Porquê?» «A explicação normal pode ser compreendida com o meu desenho - a luz

ao passar pelas ranhuras actua como duas ondas que se sobrepõem. Em alguns pontos adicionam-se uma à outra, e noutros pontos cancelam-se uma à outra. E isso estabelece na parede uma sucessão alternada de luz e escuridão. Dizemos que as ondas interferem uma com a outra, e temos assim um padrão de interferência.»

Chris Hughes disse: «E depois, que mal há nisso?»

«0 que está mal é que lhe dei apenas uma explicação do século dezanove. Era perfeitamente aceitável quando toda a gente acreditava que a luz era uma onda. Mas desde Einstein sabemos que a luz é composta por partículas a que se deu o nome de fotões. Como é que se explica que um punhado de fotões possa estabelecer este padrão?»

Ficaram todos em silêncio. Abanavam as cabeças.

David Stern falou pela primeira vez. «As partículas não são tão simples como as descreveu. As partículas têm algumas propriedades ondulatórias, dependendo da situação. As partículas podem interferir umas com as outras. Neste caso, os fotões do feixe de luz estão a interferir uns com os outros para produzirem o mesmo padrão.»

«Isso parece lógico», disse Gordon. «Afinal de contas, um feixe de luz é um agrupamento de biliões e biliões de pequenos fotões. Não se torna difícil imaginar que possam interagir uns com os outros da mesma maneira, e produzirem o Padrão de interferência.»

Acenavam todos com a cabeça em sinal de concordância. Sim, não é difícil de imaginar.

«Mas isso é realmente verdade?», disse Gordon. «É isso o que se passa? Uma maneira de o descobrir é eliminar qualquer interacção entre fotões. Consideremos um fotão de cada vez. Isto já foi feito experimentalmente. Prepara-se um feixe de luz tão fraco que só é projectado um fotão de cada vez. E é possível colocar detectores muito sensíveis por detrás das ranhuras - tão sensíveis que são capazes de registar um simples fotão que choque com eles. Okay?»

Acenaram com a cabeça em sinal de concordância, mas desta vez mais lentamente.

«Agora deixa de haver qualquer interferência de outros fotões, porque estamos a lidar com um único fotão. Temos portanto que os fotões passam um de cada vez, Os detectores registam os pontos de impacto dos fotões. E ao fim de algumas horas conseguimos um resultado, qualquer coisa como isto.»

«Aquilo que vemos», disse Gordon, «é que os fotões individuais chocam sempre em determinados pontos, e nunca noutros. Comportam-se exactamente da mesma maneira que se verificaria se fizessem parte de um feixe de luz regular. Mas passam um de cada vez, Não existem outros fotões que interfiram com eles. No entanto há qualquer coisa que interfere com eles porque continuam a estabelecer o padrão normal de interferência. Sendo assim, o que é que está a interferir com um fotão isolado?»

Silêncio. «Mr. Stern?»

Stern abanou a cabeça. «Se calcularmos as probabilidades ... »

«Não vamos fugir para as matemáticas. Vamos continuar com a realidade. Não nos esqueçamos de que esta experiência foi realizada - com fotões reais, atingindo detectores reais. E há qualquer coisa real que interfere com eles. A questão é: O que é que produz a interferência?»

«Têm que ser outros fotões,» disse Stern.

«Certo», disse Gordon, «mas onde é que eles estão? Temos detectores e não detectamos quaisquer outros fotões. Sendo assim, onde é que estão os fotões de interferência?»

Stern suspirou. «Okay», disse ele, levantando as mãos.

Chris reagiu: «0 que é que queres dizer com esse Okay? Okay o quê?» Gordon acenou na direcção de Stern. «Diga-lhes.»

«Aquilo que ele está a dizer é que a interferência num fotão isolado prova que a realidade é muito maior do que aquilo que vemos no nosso universo. A interferência está a acontecer, mas não conseguimos vislumbrar qualquer causa no nosso universo. Por esse motivo, os fotões de interferência devem estar noutros universos. E isso prova que existem outros universos.»

«Correcto», disse Gordon. «E por vezes interagem com o nosso próprio universo.»

«Desculpe», exclamou Marek. «É capaz de repetir? Porque é que outro universo há-de estar a interferir com o nosso universo?»

«É da própria natureza do multiverso», respondeu Gordon. «Não se esqueça de que dentro do multiverso os universos estão constantemente a dividir-se, o que quer dizer que muitos outros universos são semelhantes ao nosso. E são os mais semelhantes que interactuam. Cada vez que produzimos um feixe de luz no nosso universo, outros feixes de luz são simultaneamente produzidos em muitos outros universos, e os fotões desses outros universos interferem com os fotões do nosso universo e produzem o padrão que vemos.»

«E está a querer dizer-nos que tudo isso é verdade?»

Absolutamente verdade. A experiência foi realizada inúmeras vezes.» Marek franziu as sobrancelhas. Kate olhava para a mesa. Chris coçava a cabeça.

Finalmente David Stern perguntou: «Nem todos os universos são similares ao nosso?»

«Não.» «São todos símultâneos com o nosso?» «Nem todos, não.»

«Sendo assim, alguns universos existem desde tempos iniciais?»

«Sim. Na realidade, e uma vez que existe um número infinito, todos os universos existem desde os primeiros tempos.»

Stern pensou durante alguns momentos. «E está a dizer-nos que a iTC tem a tecnologia que permite viajar para esses outros universos.»

Sim, respondeu Gordon. «É isso exactamente que estou a tentar dizer-lhes,» Como?»

«Fazemos ligações por meio de túneis na espuma quântica.»

«Está a falar da espuma Wheeler? Flutuações subatómicas do espaço-tempo?» «Sim.»

«Mas isso é impossível.»

Gordon sorriu. «Dentro em breve irão verificar por vós mesmos.» «Vamos? O que quer dizer com isso?», perguntou Marek.

«Estava convencido de que tinha compreendido», disse Gordon. «0 Professor Johnston está no século catorze. Queremos que voltem lá para o trazer. >

Ninguém disse uma palavra. O comissário de bordo premiu um botão e todas as janelas da cabina se fecharam ao mesmo tempo, bloqueando a luz do sol que penetrava do exterior. Deslocou-se ao longo da cabina, distribuindo lençóis e mantas por cada um dos lugares, transformando-os em camas. Distribuiu igualmente grandes auscultadores acolchoados.

«Voltamos lá?» disse Chris Hughes. «Como?»

«Será mais fácil mostrar-lhes como», disse Gordon. Entregou a cada um deles um pequeno envelope de celofane com três pílulas. «Agora quero que tomem essas pílulas.»

«0 que é isto?», perguntou Chris.

«Três espécies de sedativos», respondeu. «Em seguida quero que se encostem, coloquem os auscultadores e ouçam. Se quiserem podem dormir. De qualquer modo não vão assimilar muito porque o voo é apenas de dez horas. Mas pelo menos vão habituar-se à linguagem e à promúncia.»

«Que linguagem?», perguntou Chris, tomando as pílulas. «Inglês arcaico e Francês Médio.»

Marek comentou: «Já conheço essas línguas.»

«Tenho dúvidas de que saiba a pronúncia correcta. Coloque os auscultadores.»

«Mas ninguém conhece a pronúncia correcta», disse Marek. Logo que disse isto arrependeu-se.

«Tenho a certeza de que vai descobrir», disse Gordon, «que conhecemos.» Chris encostou-se para trás no sofá. Puxou o cobertor e colocou os auscultadores nos ouvidos. Pelo menos abafavam o som dos jactos.

Estas pílulas devem ser fortes, pensou, porque de repente sentiu-se muito descontraído. Começou a ouvir a gravação da fita. Uma voz disse: «Respire profundamente. Imagine que está num belo jardim com uma temperatura amena. Tudo o que vê à sua volta é familiar e reconfortante. Directamente à sua frente, vê uma porta que dá acesso ao piso inferior. Conhece perfeitamente o piso inferior, porque é seu. Começa a descer os degraus de pedra na direcção do piso inferior quente e reconfortante. Enquanto vai descendo ouve vozes. Acha que são agradáveis de ouvir e ao mesmo tempo fáceis de ouvir.» Em seguida começam a alternar-se vozes masculinas e femininas.

«Dá-me o meu chapéu. Yiff may mean haht. «Aqui está o seu chapéu. àír baye thynhatt.» «Obrigado. Grah mersy.»

«Não tem de quê. Ayepray thee.»

As frases tornaram-se mais longas. Chris começou a sentir dificuldade em seguí-las.

«Tenho frio. Gostava de um casaco. Ayeam chillingcold, ee wolld leifer haa CO0t.»

Chris mergulhava no sono suavemente, imperceptivelmente, com a sensação de que ainda continuava a descer um lanço de escadas, cada vez mais para baixo na direcção de um lugar confortável, cavernoso e cheio de ecos. Sentia-se em paz, embora as duas últimas frases que recordava o fizessem sentir-se levemente preocupado :

«Prepare-se para lutar. Dicht theeseIv toficht.»

«Onde é que está a minha espada? Whar beest mee swearde?» Mas nesse momento adormeceu.

 

BLACK ROCK

«Arrisca tudo ou não ganhes nada.» Geoffrey de Charny, 1358

 

Quando saíram do avião para a pista molhada, a noite estava fria e o céu cheio de estrelas. Para leste Marek observou os contornos escuros das mesas sobre as quais pairavam nuvens baixas. Ao lado da pista aguardava um Land Cruiser.

Dentro em breve seguiam pela auto-estrada, com floresta densa de ambos os lados da estrada. «Onde é que estamos exactamente?» perguntou Marek. «A cerca de uma hora de caminho de Albuquerque», disse Gordon. «A cidade mais próxima é Black Rock. É onde temos as nossas instalações de investigação. »

«Parece que estamos no meio de nada», disse Marek.

«Só à noite. Para dizer a verdade existem quinze companhias de investigação de alta tecnologia em Black Rock. E como é evidente, Sandia fica pouco depois. Los Álamos está a uma hora de distância. Um pouco mais adiante White Sands.»

Continuaram estrada fora durante mais algumas milhas. Chegaram a um sinal na auto-estrada em verde e branco que chamava a atenção e onde se lia: ITC LABORATóRIO DE BLACK ROCK. O Land Cruiser voltou à direita, seguindo por uma estrada sinuosa que atravessava as colinas arborizadas.

Do banco traseiro Stern disse: <Referíu há bocado que pode estabelecer a ligação com outros universos.»

«É verdade.»

«Através da espuma quântica.»


«Exactamente.» «Mas isso não faz qualquer sentido», disse Stern.

«Porquê? O que é a espuma quântica?», perguntou Kate disfarçando um bocejo.

«É um remanescente do nascimento do universo», disse Stern. Explicou que o universo tinha começado como um único, como um ponto muito denso de matéria. Então, há cerca de dezoito biliões de anos, esse ponto explodiu para o exterior - naquilo que é conhecido como o bíg bang.

«Depois da explosão o universo expandiu-se como uma esfera. Excepto que não se tratava de uma esfera absolutamente perfeita. Dentro da esfera o universo não era absolutamente homogéneo - razão pela qual temos agora galáxias dispostas de modo irregular no universo, em vez de se encontrarem distribuídas de modo uniforme. De qualquer modo, o mais importante é que a esfera em expansão apresentava imperfeições muito, muito pequenas. E essas imperfeições nunca desapareceram. Ainda hoje fazem parte do universo.» «Fazem? Onde?»

«A dimensões subatómicas. A espuma quântica é apenas um modo de dizer que em dimensões muito pequenas o espaço-tempo apresenta pregas e bolhas. Mas a espuma é mais pequena do que uma partícula atómica individual. Poderão existir ou não buracos na espuma.»

«Mas eles estão lá», disse Gordon.

«Mas como é que os pode utilizar para viajar? Não é possível fazer passar uma pessoa por um buraco tão pequeno. Não é possível fazer passar o que quer que seja por ele.»

«Correcto», disse Gordon. «Também não é possível enviar uma folha de papel através de uma linha telefónica. Mas é possível mandar um fax.»

Stern franziu as sobrancelhas. «Isso é totalmente diferente.»

«Porquê?», disse Gordon. «É possível transmitir qualquer coisa, desde que exista a possibilidade de comprimir e codificar a informação Para todo um ser humano.»

«Estamos de acordo.» «Isso não Pode ser feito.»

Gordon estava a sorrir, sentindo-se divertido. «E por que não?»

«Porque a descrição completa de um ser humano - todos os biliões de células, como elas se encontram interligadas, todas as substâncias químicas e moléculas que contêm, o seu estado bioquímico - representam muito mais informação do que aquela que qualquer computador possa conter.»

«É apenas informação», disse Gordon encolhendo os ombros. «Sim, demasiada informação.»

«Fazemos a compressão usando um algoritmo fractal sem perdas.» «Mesmo assim, continua a ser um enorme... »

«Desculpe», disse Chris, «Está a dizer que comprime uma pessoa?» «Não. Comprimimos a informação equivalente a uma pessoa.»

«E como é que isso se faz?», perguntou Chris.

«Com algoritmos de compressão - métodos usados num computador para comprimir dados, de modo a que ocupem menos espaço. Como se verifica com o JPEG e o MPEG para o material visual. Está familiarizado com esses métodos?»

«Tenho software que o usa, mas é tudo.»

Okay», disse Gordon. «Todos os programas de compressão funcionam da mesma maneira. Procuram semelhanças nos dados. Suponha que tem uma fotografia de uma rosa feita de milhões de pixels. Cada pixel tem uma localização e uma cor. É um conjunto de três milhões de peças de informação uma quantidade enorme de dados. Mas a maior parte desses pixels vão passar a vermelho, rodeados por outros pixels vermelhos. Deste modo o programa faz o scan da fotografia linha por linha e ve onde é que os ptxels adjacentes têm a mesma cor. Se eles existem, escreve uma instrução para o computador que diz que estepixeIs é vermelho e igualmente os cinquentapixels seguintes em linha. Em seguida muda para cinzento e passa os dez pixeIs seguintes para cinzento. E por aí adiante. Não armazena informação para cada ponto individual. Armazena instruções sobre o modo de recriar a fotografia. E os dados são reduzidos para um décimo daquilo que era.»

«Mesmo assim», disse Stern, «não estamos a falar de uma fotografia a duas dimensões; estamos a falar de um objecto vivo a três dimensões, e a sua descriÇão requer tantos dados ... »

«Que será necessário um processamento paralelo maciço», disse Gordon, acenando afirmativamente. «É verdade.»

Chris franziu as sobrancelhas. «Processamento paralelo é o quê?»

«Liga vários computadores entre si e divide o trabalho entre eles para que Possa ser feito mais depressa. Um grande computador de processamento paralelo poderá ter dezasseis mil processadores ligados entre si. Para um realmente grande, trinta e dois mil processadores. Nós temos trinta e dois biliões de processadores ligados entre si.»

«Biliões?», perguntou Chris.

Stern inclinou-se para a frente. «É impossível. Mesmo que se tentasse construir um ... » Olhou para o tecto do carro, calculando. «Digamos, se considerarmos uma polegada entre as motherboards... isso dá um volume... uhm.,, dois mil e seiscentos... isso faz um volume com meia milha de altura. Mesmo depois de ter sido reconfigurado num cubo, seria necessário um enorme edifício. Qualquer coisa impossível de construir. O arrefecimento seria praticamente impossível. E de qualquer modo nunca funcionaria, porque os processadores estariam muito distantes.»

Gordon sentou-se e sorriu. Estava a olhar para Stern, na expectativa.

«A única maneira possível de fazer um processamento deste gênero», disse Stern, «seria usando as características quânticas dos electrões individuais. Mas nesse caso estaríamos a falar de um computador quântico. E nunca houve ninguém que tivesse feito um.»

Gordon limitou-se a sorrir.

«Já o fizeram?», perguntou Stern.

«Deixem-me explicar aquilo de que David está a falar»l disse Gordon aos outros. «Os computadores vulgares fazem cálculos usando dois estados dos electrões, que são chamados um e zero. É assim que todos os computadores trabalham, servindo-se apenas de uns e de zeros. Mas há vinte anos, Richard Feyriman sugeriu que talvez fosse possível construir um computador extremamente potente usando todos os trinta e dois estados quânticos de um electrão. Muitos laboratórios estão presentemente a tentar construir esses computadores quânticos. A sua vantagem reside numa potência inimaginavelmente grande - tão grande que de facto se torna possível descrever e comprimir um objecto vivo em três dimensões em termos de uma corrente de electrões. Exactamente como um fax. Pode então transmitir a corrente de electrões através dos orifícios da espuma quântica e reconstruí-Ia noutro universo. E é isso que vamos fazer. Não se trata de teleportação quântica. Não se trata de um emaranhamento de partículas. É uma questão de transmissão directa para outro universo.»

O grupo estava silencioso, não conseguindo desviar os olhos dele. O Land Cruiser chegou a uma clareira. Viram diversos edifícios de dois andares, em que se destacava o tijolo e o vidro. Tinham um aspecto surpreendentemente vulgar. O aspecto era o de qualquer um desses pequenos parques industriais que se podem ver nos arredores de muitas cidades americanas. Marek perguntou: «É isto a ITC?»

«Gostamos de passar despercebidos», disse Gordon. «Para dizer a verdade, escolhemos este ponto porque existe aqui uma velha mina. Nos tempos que correm as boas minas tornam-se difíceís de encontrar. E há tantos projectos de Física que necessitam delas.»

A uma certa distância de um dos lados, trabalhando sob o brilho de holofotes, vários homens estavam a preparar-se para lançar um balão meteorológico. o balão, com cerca de seis pés de diâmetro, tinha um tom esbranquiçado. Enquanto permaneciam ali a observá-lo, elevou-se suavemente nos ares, com um pequeno instrumento pendurado na parte inferior. Marek perguntou: «Para que é tudo aquilo?»

«Verificamos a cobertura de nuvens de hora a hora, especialmente quando há tempestade. Trata-se de um projecto de investigação contínuo, para tentarmos verificar se o tempo é a causa de qualquer tipo de interferência.

«Interferência com o quê?»

O carro estacionou diante do edifício principal. Um segurança abriu a porta. «Benvindos ao IM, disse ele com um grande sorriso. «Mr. Doniger está à vossa espera.»

Doniger atravessou rapidamente o átrio de entrada na companhia de Gordon. Kramer seguia logo atrás. Enquanto caminhavam, Doniger deu uma vista de olhos a uma folha de papel onde se encontravam registados os nomes de todos bem como os seus CVs. «Que é que te parecem, John?»

«Melhor do que aquilo de que estava à espera. Estão em excelente forma física. Conhecem a área. Sabem qual é o período de tempo.»

«E até que ponto irão necessitar de serem persuadidos?»

«Acho que já estão prontos. Tem apenas que ser cuidadoso a respeito dos riscos.»

«Estás a sugerir que eu deveria estar muito abaixo de uma total honestidade?» perguntou Doniger.

«Limita-te apenas a ser cuidadoso a respeito do modo como colocas a questão», disse Gordon. «São absolutamente brilhantes.»

«Achas que sim? Bom, vamos dar uma vista de olhos.» E abriu a porta de par em par.

Kate e os outros haviam sido deixados sozinhos numa sala de conferências praticamente vazia - mesas de fórmica com o tampo riscado, e cadeiras de dobrar espalhadas por toda a parte. Num dos lados havia um enorme quadro preto com fórmulas que mais pareciam gatafunhos. As fórmulas eram tão longas que ocupavam toda a largura do quadro. Para ela era um perfeito mistério. Estava quase a decidir-se a perguntar a Stern para que é que as fórmulas serviam, quando Robert Doniger deu entrada na sala.

Kate ficou surpreendida ao verificar como ainda era novo. Não parecia muito mais novo do que eles, de sapatos de ténis, jeans e uma T-shirt Quicksilver. Mesmo àquela hora adiantada da noite parecia cheio de energia, dando a volta à mesa rapidamente, apertando a mão a cada um deles, dirigindo-se a cada um deles pelo seu nome. «Kate», disse, sorrindo para ela. «Muito prazer em a conhecer. Li o seu estudo preliminar sobre a capela. É impressionante.»

Apanhada de surpresa conseguiu dizer «Obrigada», mas Donigerjá tinha seguido em frente.

«E Chris. É bom estar consigo mais uma vez. Gosto daquela simulação em computador à abordagem da ponte do moinho; estou convencido de que vai dar resultado.»

Chris mal teve tempo de acenar com a cabeça e já Doniger estava a dizer: «E David Stern. Ainda não nos tínhamos encontrado. Mas tanto quanto sei é um físico como eu.»

«É verdade ... »

«Benvindo a bordo. E André. Cada vez melhor! Não há dúvida de que o seu estudo sobre os torneios de Edward 1 dá um realce especial a Monsietir Contamine. Bom trabalho. Por favor, sentem-se.»

Sentaram-se e Doniger dirigiu-se para a cabeceira da mesa.

«Vou directo ao assunto», disse Doniger. «Preciso da vossa ajuda. E vou dizer porquê. Nestes últimos dez anos a minha companhia tem estado a desenvolver uma nova tecnologia absolutamente revolucionária. Não se trata de uma tecnologia de guerra e muito menos de uma tecnologia comercial para ser vendida dando lucros. Muito pelo contrário, é uma tecnologia totalmente benigna e pacífica que irá dar grandes vantagens à humanidade. Grandes vantagens. Mas preciso da vossa ajuda.»

«Considerem por momentos», continuou Doniger, «como uma tecnologia inesperada teve impacto sobre os vários campos do conhecimento do século vinte. A Física emprega a tecnologia mais avançada - incluindo anéis de aceleração com várias milhas de diâmetro. O mesmo se passa com a Química e Biologia. Há cem anos, Faraday e Maxwell tinham pequenos laboratórios particulares. Darwin trabalhou com um bloco de notas e um microscópio. Mas actualmente, nenhuma descoberta científica importante poderia ser feita com instrumentos tão simples. As ciências estão totalmente dependentes da tecnologia avançada. Mas o que é que poderemos dizer em relação às Humanidades? Durante este mesmo período, o que é que lhes aconteceu?»

Doniger fez uma pausa, numa atitude retórica. «A resposta é, nada. Não se verificou qualquer tecnologia significativa. O académico de Literatura ou de História trabalha exactamente como os seus antecessores o faziam cem anos antes. Oli, ouve algumas alterações insignificantes em termos de autenticação de documentos, além do uso dos Cd-ROM's e por aí adiante. Mas o trabalho básico do dia-a-dia do académico é exactamente o mesmo.»

Olhou para eles um a um. «Temos portanto uma desigualdade. Os campos do conhecimento humano encontram-se desequilibrados. Os académicos da época medieval sentem-se orgulhosos pelo facto de, no século vinte, os seus pontos de vista terem desencadeado uma revolução. Mas durante o mesmo século a Física sofreu três revoluções. Há cem anos os físicos discutiam sobre a idade do universo e a fonte da energia do Sol. Não existia ninguém na terra que soubesse as respostas. Nos nossos dias qualquer aluno da escola sabe essas respostas. Hoje já vimos a extensão e a amplitude do universo, com uma compreensão que vai desde o nível das galáxias ao nível das partículas subatómicas. Aprendemos tanto que somos capazes de falar em detalhe sobre o que aconteceu nos primeiros minutos do nascimento do universo em explosão. Os académicos do medieval podem competir em termos deste avanço no seu próprio campo? Numa palavra só, não. Porque não? Porque não existe tecnología que os assista. Nunca ninguém desenvolveu qualquer tipo de nova tecnologia para benef´´icio dos historiadores - até agora.»

Um desempenho de mestre, pensou Gordon. Um dos melhores de Doniger

- encantador, cheio de energia, até excessivo em alguns momentos. E, no entanto, tudo fora feito; Doniger dera-lhes apenas uma excitante explicação para o projecto - sem sequer revelar o seu verdadeiro propósito. Sem sequer lhes dizer o que é que se estava a passar.

«Mas disse-lhes que precisava da vossa ajuda. E preciso.»

A atitude de Doniger havia mudado. Falava agora lentamente, em tom sombrio, preocupado. «Sabem que o Professor Johnston veio aqui ter connosco porque se convenceu de que estávamos a ocultar informação. E de certo modo era verdade. Havia uma certa informação que não tínhamos partilhado porque não éramos capazes de explicar como é que a tínhamos obtido.»

E, pensou Gordon, porque Kramer lixou tudo.

«0 Professor Johnston pressionou-nos», continuou Doniger. «Sei que conhecem o seu modo de ser. Chegou mesmo a ameaçar-nos de ir para a imprensa. Finalmente mostrámos-lhe a tecnologia que vocês irão ver dentro de instantes. E ficou excitado - como vocês também irão ficar. Mas ele insistiu em regressar, para verificar por si próprio.»

Doniger fez uma pausa. «Não queríamos que ele fosse. Mais uma vez fez ameaças. Finalmente só nos restou a oportunidade de o deixar ir. Isto aconteceu há três dias. Ainda lá está. Pediu a vossa ajuda numa mensagem que sabia que vocês iriam encontrar. Conhecem aquele local e o tempo melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Têm que voltar lá para o trazer. Vocês são a sua única oportunidade.»

«0 que é que lhe aconteceu exactamente quando lá voltou?», perguntou Marek.

«Não sabemos», disse Doniger. «Mas não respeitou as regras.» «Regras?»

«Têm que compreender que esta tecnologia é ainda muito recente. Temos tido a maior cautela no modo de a usar. Há dois anos que temos estado a mandar observadores - usando ex-marines, gente com treino militar. Mas é evidente que não são historiadores e nós mantivemos a rédea curta.»

«0 que é que isso quer dizer?»

«Nunca autorizámos os nossos observadores a entrarem naquele mundo. Nunca permitimos a ninguém permanecer mais do que uma hora. E nunca autorizamos que alguém se afastasse mais de vinte metros da máquina. Nunca houve ninguém que se atrevesse a deixar a máquina e a entrar naquele mundo.» «Mas o Professor entrou?», perguntou Marek.

«É O mais certo.»

«E nós vamos ter que fazer a mesma coisa se o quisermos encontrar. Temos que entrar naquele mundo.»

«Sim», disse Doniger.

«E está a dizer-nos que somos os primeiros a fazer isto. Os primeiros a entrar naquele mundo?»

«Sim. Vocês e o Professor antes de vocês.» Silêncio.

De repente, Marek sorriu abertamente. «Estupendo», disse ele. «Estou ansioso!»

Mas os outros não disseram nada. Sentiam-se pouco à vontade, inquietos. Stern disse: «Quanto a esse tipo que encontraram no deserto ... »

«Joe Traub», respondeu Doniger. «Era um dos nossos melhores cientistas.» «0 que é que ele estava a fazer no deserto?»

« Aparentemente deslocava-se de carro. Encontraram o seu automóvel. Mas não fazemos a menor ideia da razão que o levou lá.»

Stern disse: «Parece que estava em muito más condições, havia qualquer coisa a respeito dos dedos ... »

«Isso não estava mencionado no relatório da autópsia», disse Doniger. «Morreu com um ataque de coração.»

«Sendo assim, a sua morte não tem nada a ver com a sua tecnologia?» «Absolutamente nada», respondeu Doniger.

Seguiu-se outro silêncio. Chris agitou-se na cadeira. «Em linguagem terra a terra - até que ponto é segura essa tecnologia?»

«Mais segura do que a de conduzir o seu automóvel», respondeu Doniger sem qualquer hesitação. «Vai receber instruções detalhadas e será acompanhado por observadores já com experiência. A viagem terá uma duração máxima de duas horas. Vão lá apenas para o trazer.»

Chris tamborilava com os dedos na mesa. Kate mordeu o lábio. Ninguém disse uma palavra.

«Não se esqueçam de uma coisa,» disse Doniger. «São vocês que decidem se vão ou não. Mas o Professor pediu a vossa ajuda. E não creio que vocês o queiram desiludir.»

«Porque é que não manda apenas os observadores?», perguntou Stern. «Porque não têm conhecimentos suficientes, David. Como sabe, trata-se de um mundo completamente diferente. Vocês têm a vantagem do vosso conhecimento. Conhecem o local e conhecem a época em detalhe. Conhecem as línguas e os costumes.»

«Mas o nosso conhecimento é académico», disse Chris. «Já não é», respondeu Doniger.

O grupo saiu em fila da sala, com Gordon à frente, para inspeccionarem as máquinas. Doniger ficou a vê-los sair e em seguida voltou-se quando Kramer entrou na sala. Estivera a assistir a tudo no circuito fechado de televisão.

«0 que é que achas, Diane?» perguntou Doniger. «Achas que vão?» «Sim. Podes ter a certeza de que vão.»

«Achas que conseguem?»

Kramer fez uma pausa. «Digamos que temos cinquenta por cento de probabílidades.»

Seguiram por uma larga rampa em betão, suficientemente ampla para que um camião se pudesse deslocar. No final da rampa viam-se duas pesadas portas em aço. Marek viu meia dúzia de câmaras de segurança montadas em diversos locais ao longo da rampa. As câmaras seguiram-os enquanto se dirigiam para as portas. No final da rampa Gordon olhou para cima, para as câmaras de segurança e aguardou.

As portas abriram-se.

Gordon conduziu-os para uma pequena sala que se encontrava para lá das portas. Estas fecharam-se atrás deles com um som cavo. Gordon continuou em frente até a um conjunto interior de portas e voltou a aguardar.

Marek perguntou: «Não as consegue abrir?» «Não.»

«Porquê? Não confiam em si?»

«Não confiam em ninguém», respondeu Gordon. «Acredite-me, ninguém entra aqui se não quisermos que o faça.»

As portas abriram-se.

Dirigiram-se para uma gaiola metálica de aspecto industrial. O ar estava frio, com um leve odor a bafio. As portas fecharam-se atrás deles. Com um zumbido a gaiola começou a descer.

Marek verificou que se encontravam num elevador.

«Vamos descer cerca de trezentos metros», disse Gordon. «Tenham paciência.»

O elevador parou e as portas abriram-se. Seguiram ao longo de um corredor em betão, ouvindo-se o eco dos passos. «Estamos no nível de controlo e inanutenção. As verdadeiras máquinas encontram-se a mais cento e cinquenta metros abaixo de nós.»

Chegaram junto de um par de pesadas portas de um azul escuro e que eram transparentes. Inicialmente Marek julgou que as portas eram de um vidro extraordinariamente espesso. Mas quando as portas começaram a abrir deslizando numa calha motorizada, avistou um leve movimento abaixo da superfície. «Água», disse Gordon. «Usamos aqui uma grande quantidade de água como escudo. A tecnologia quântica é muito sensível a influências exteriores aleatórias - raios cósmicos, campos eléctricos ocasionais, e outras coisas. É uma das principais razões pela qual nos encontramos aqui.»

Logo em frente viram as portas daquilo que parecia ser a entrada de um laboratório vulgar. Passando por mais um par de portas de vidro entraram numa recepção de um branco anti-séptico, com portas abrindo para o exterior de ambos os lados. A primeira porta à esquerda dizia PREPACK. A segunda, FIELIPREP, e no ponto mais distante da recepção, viram uma tabuleta que dizia simplesmente TRÂNSITO.

Gordon esfregou as mãos. Disse: «Vamos entrar directamente para a embalagem.»

A sala era pequena e fazia lembrar a Marek um laboratório de hospital; fazia com que se sentisse pouco à vontade. No centro da sala encontrava-se um tubo vertical com cerca de sete pés de altura e cinco pés de diâmetro. Estava aberto. Dentro viam-se correias num tom escuro. Marek perguntou: «Uma máquina de bronzear?»

«Na realidade trata-se de um sofisticado IMager de ressonância. Basicamente trata-se de uma IRM extremamente potente. Mas irá descobrir que se trata de uma boa prática para a própria máquina. Talvez seja melhor ir em primeiro lugar, Dr. Marek.»

«Entrar para ali?» Marek apontou para o tubo. Visto de perto parecia-se mais com um caixão branco.

«Dispa-se e entre para ali. É exactamente como uma IRM - não irá sentir absolutamente nada. O processo leva no total cerca de um minuto. Estaremos na porta a seguir. »

Passaram por uma porta lateral com um pequeno visor para outra sala. Marek não conseguia ver o que é que se encontrava ali. A porta fechou-se com um estrondo.

Viu uma cadeira no canto. Dirigiu-se para ela, tirou as roupas e em seguida caminhou para o scanner. Ouviu-se o click de um intercomunicador e a voz de Gordon que dizia: «Dr. Marek, quer fazer o favor de olhar para os seus pés?» Marek olhou para os pés.

«Está a ver o círculo no soalho? Por favor, certifique-se de que os seus pés ficam perfeitamente dentro do círculo.» Marek corrigiu a sua posição. «Obrigado, assim está bem. Agora a porta vai fechar-se.»

Com um zumbido mecânico a porta articulada foi-se fechando. Marek ouviu um silvo quando se fechou. Perguntou: «Fecho hermético?»

«Sim, tinha que ser. Agora irá sentir uma corrente de ar frio. Vamos dar-lhe oxigénio adicional enquanto está a calibrar. Não tem claustrofobia, pois não?» «Até agora não tinha.» Marek observou o interior à sua volta. Viu agora que as correias de tom escuro eram aberturas cobertas a plástico. Por detrás do plástico viu luzes, pequenas máquinas que zumbiam. O ar tornou-se notavelmente mais frio.

«Estamos a calibrar agora», disse Gordon. «Tente não se mexer.»

De repente as correias individuais à sua volta começaram a rodar, com as máquinas a produzirem estalidos. As correias rodavam cada vez mais depressa até que de repente pararam bruscamente.

«Está óptimo. Sente-se bem?»

«Parece que estou dentro de um moinho de pimenta», disse Marek. Gordon deu uma gargalhada. «A calibração está completa. O resto está dependente de um temporizador exacto, pelo que a sequência é automática. Limite-se a seguir as instruções à medida que as for ouvindo. Okay?»

«Okay.» Um click. Marek estava sozinho.

Ouviu-se uma gravação. «A sequência de scanning começou neste momento. Estamos a ligar os lasers. Olhe sempre em frente. E não olhe para cima.» Instantaneamente o interior do tubo tornou-se de um azul vivo brilhante. Até o ar parecia brilhante.

«Os lasers estão a polarizar o gás xérion que neste momento está a ser bombeado para o compartimento. Cinco segundos.»

Marek pensou: Gás xénon?

A cor de um azul brilhante em toda a sua volta aumentou de intensidade. olhou para baixo na direcção da sua mão e mal a conseguia ver por causa do brilho do ar.

«Alcançámos a concentração de xérion. Agora vamos pedir-lhe que inspire profundamente.»

Marek pensou: Inspirar profundamente? Xérion?

«Mantenha a sua posição sem se mover durante trinta segundos. Pronto? Não se mexa... olhos abertos... respire fundo... não se mexa... Agora!»

As correias começaram a rodar loucamente e em seguida, uma por uma, cada uma delas começou a balançar para trás e para a frente, quase como se estivessem a observar e, por vezes, tivessem que voltar atrás para uma segunda observação. Cada uma das correias parecia mover-se individualmente. Marek tinha a sensação estranha de estar a ser observado por centenas de olhos.

A gravação disse: «Por favor, continue imóvel. Ainda faltam vinte segundos.»

A toda a sua volta as correias ronronavam e zumbiam. E, de repente, pararam todas. Alguns segundos de silêncio. A máquina produziu um click. Em seguida as correias começaram a mover-se para a frente e para trás, bem como lateralmente.

«Não se mexa, por favor. Dez segundos.»

Nesse momento as correias começaram a rodar em círculos, sincronizando-se lentamente, até que finalmente estavam todas a rodar como uma única unidade. E por fim pararam.

«0 scan está completo. Obrigado pela sua cooperação.»

A luz azul apagou-se e a porta articulada silvou enquanto se abria. Marek saiu.

Na sala adjacente Gordon sentou-se em frente de um computador. Os outros tinham ido buscar cadeiras e estavam sentados à sua volta.

«A maior parte das pessoas», disse Gordon, «não sabe que as IRM que encontramos nos hospitais funcionam modificando o estado quântico dos átomos no nosso corpo - normalmente o momento angular das partículas nucleares. A experiência com as IRMs diz-nos que modificar o nosso estado quântico não traz qualquer efeito prejudicial. De facto, nem sequer se nota que está a acontecer.

«Mas a vulgar IRM consegue isto graças a um campo magnético muito potente - digamos, 1,5 tesla, qualquer coisa como vinte e cinco mil vezes o campo magnético da terra. Não precisamos de tanto. Utilizamos dispositivos supercondutores de interferência quântica, ou SQUIDS, tão sensíveis que são capazes de medir até a ressonância do campo magnético da terra. Não existem ali quaisquer magnetos.»

Marek entrou na sala. «Que tal estou?», perguntou.

A imagem no ecrã mostrava uma imagem translucente dos membros de Marek matizados a vermelho. «Está a observar a parte interna dos ossos longos, da espinal medula e do crânio.» disse Gordon. «A partir daí temos um crescimento para o exterior, por sistemas de órgãos. Aqui estão os ossos» - viram um esqueleto completo - «e agora estamos a acrescentar os músculos ... »

Vendo os sistemas de órgãos a aparecer, Stern disse: «0 seu computador é incrivelmente rápido.»

«Oh, tivemos que tornar este processo mais lento», respondeu Gordon. «Caso contrário não seria capaz de ver o que é que está a acontecer. O tempo real de processamento é praticamente igual a zero.»

Stern olhou para ele boquiaberto. «Zero?»

«Um mundo diferente», respondeu Gordon, acenando com a cabeça. «Os antigos conceitos já não se aplicam.» Voltou-se para os outros. «Quem é que se segue?»

Caminharam até ao fim do corredor, na direcção de uma sala onde uma placa dizia TRÂNSITO. Kate perguntou, «Porque é que tivemos que fazer tudo aquilo?»

«Chamamos àquilo pré-embalagem, disse Gordon. «Permite-nos efectuar uma transmissão mais rápida, porque a maior parte da informação a vosso respeito já se encontra carregada na máquina. Só precisamos de fazer um scan final para possíveis diferenças, e em seguida transmitimos.»

Entraram noutro elevador, e passaram por um outro conjunto de portas cheias com água. «Okay», disse Gordon. «Já chegámos.»

Saíram num enorme espaço cavernoso, brilhantemente iluminado. Os sons ecoavam. O ar estava frio. Seguiam por uma passagem metálica suspensa a trinta metros acima do solo. Olhando para baixo, Chris viu três paredes semi-circulares cheias de água, dispostas de modo a formarem um círculo, com intervalos suficientemente largos entre elas para que uma pessoa conseguisse passar. Dentro desta parede exterior viam-se três arcos de círculo mais pequenos, formando uma segunda parede. E no interior da segunda parede estava uma terceira. Cada um dos círculos havia sofrido uma rotação de modo a que os intervalos nunca estivessem alinhados, dando ao conjunto total um aspecto de labirinto.

No centro dos círculos concêntricos havia um espaço com um diâmetro de cerca de vinte pés. Neste espaço viam-se meia dúzia de dispositivos com o aspecto de gaiolas, com as dimensões aproximadas de uma cabina telefónica. A sua disposição não obedecia a qualquer padrão especial. Os topos estavam pintados em cores escuras. Uma neblina branca elevava-se do conjunto. No solo encontravam-se dispostos tanques e grossos cabos negros serpenteavam por toda a parte. Dava o aspecto de uma oficina. E de facto havia alguns homens a trabalhar nas gaiolas.

«Esta é a nossa área de transmissão» disse Gordon. «Com pesados escudos, como podem ver. Estamos ali a construir uma segunda área, mas só estará pronta daqui a alguns meses.» Apontou para o outro extremo do espaço cavernoso onde uma segunda série de paredes concêntricas estava a ser construída. Estas paredes ainda estavam vazias; ainda não haviam sido enchidas com água.

Da passagem metálica, um elevador de cabo desceu para o espaço no centro das paredes de vidro.

Marek perguntou: «Podemos ir lá abaixo?» «Não, ainda não.»

Um dos técnicos olhou para cima e fez um aceno com a mão. Gordon disse: Quanto, tempo falta para a verificação do arranque, Norm?»

«Poucos minutos. Gomez está quase a acabar.»

«Okay.» Gordon voltou-se para os outros. «Vamos para o gabinete de controlo para observar.»

Banhadas numa profunda luz azul, as máquinas estavam instaladas numa plataforma elevada. Estavam pintadas num cinzento baço e zumbiam suavemente. Vapor branco escapava-se ao nível do solo, obscurecendo as suas bases. Dois trabalhadores envergando parcas azuis, apoiados nas mãos e nos joelhos, trabalhavam na base aberta de uma delas.

As máquinas eram essencialmente cilindros abertos, com metal no topo e no fundo. Cada máquina encontrava-se assente numa espessa base metálica. Três varas metálicas colocadas no perímetro suportavam a cobertura metálica.

Técnicos faziam descer um molho de cabos negros de uma grelha situada a um nível superior, para em seguida os ligarem à cobertura de uma das máquinas, parecendo empregados de uma estação de combustível a encherem o tanque de um carro.

O espaço entre a base e a cobertura estava completamente vazio. Na realidade, toda a máquina parecia desapontadoramente simples. As varetas eram fora do vulgar, de secção triangular e rebitadas ao longo de todo o seu comprimento. Um pálido fumo azul parecia libertar-se da parte inferior da cobertura da máquina.

As máquinas não se pareciam com o que quer que fosse que Kate alguma vez tivesse visto. Ficou a olhar para os enormes ecrãs dentro da acanhada sala de controlo. Atrás dela, dois técnicos em mangas de camisa sentavam-se diante de duas consolas. Os ecrãs que se encontravam à sua frente pareciam a janelas, embora, na realidade, a sala de controlo não tivesse janelas.

«Estão a olhar para a versão mais recente da nossa tecnologia CFAT,» disse Gordon. «São as iniciais para Curva Fechada deAproximação Temporal- a topologia de espaço-tempo que utilizamos para regressar. Tivemos que desenvolver completamente novas tecnologias para construir estas máquinas. Aquilo que estão aqui a ver é, na verdade, a sexta versão desde o primeiro protótipo construído e que funcionou há três anos atrás.»

Chris olhou para as máquinas não dizendo nada. Kate observava toda a sala. Stern estava ansioso, esfregando o lábio superior. Marek não tirava os olhos de Stern.

«Toda a tecnologia significativa», continuou Gordon, «está localizada na base, incluindo as memórias quânticas de índio-gálio-arsenito, os lasers de computador e as baterias. Os vaporizadores de laser encontram-se evidentemente nas prateleiras metálicas. O metal de tom escuro é o nióbio; os tanques de pressão são em alumínio; os módulos de armazenagem são de polímero.»

Uma mulher jovem de cabelo ruivo cortado curto e maneira determinada entrou na sala. Envergava uma camisa de caqui, calções e botas; parecia que estava preparada para um safari. «Gomez será uma das vossas assistentes quando fizerem a viagem. Vai voltar agora para fazer aquilo a que chamamos uma verificação de terra queimada. já regulou o seu marcador de navegação, fixando a data alvo e agora vai certificar-se de que não existe qualquer erro.»

premiu o botão do intercomunicador. «Sue? Podes fazer o favor de nos mostrares o teu marcador de navegação?»

A mulher estendeu um pequeno rectângulo branco, pouco maior do que uma selo de correio. Conseguia escondê-lo perfeitamente na mão.

«Vai servir-se dele para regressar. E para chamar a máquina para o regresso - podes mostrar-nos o botão, Sue?»

«É um bocado difícil de distinguir», disse ela voltando o rectângulo de modo a exibir a aresta. «Há aqui um botão minúsculo que temos que premir com a unha do polegar. É assim que chamamos a máquina quando estamos prontos para regressar.»

«Muito obrigado, Sue.»

Um dos técnicos exclamou: «Sinal de campo.»

Voltaram-se todos para observar. Na consola dele, um ecrã mostrava uma superfície ondulante a três dimensões com um pico ao centro, fazendo lembrar o cume de uma montanha. «Esse é bonito» disse Gordon. «Clássico.» Explicou aos outros: «Dado que o nosso equipamento de sensores de campo tem uma base SQUID, estamos em posição de detectar descontinuidades extremamente subtis no campo magnético local - damo-lhes o nome de sinais de campo. Começamos a registá-los duas horas antes de um acontecimento. E para dizer a verdade, estes começaram há cerca de duas horas. Isto quer dizer que uma máquina está de volta a este local.»

«Que máquina?» disse Kate. «A máquina de Sue.»

«Mas ela ainda não partiu.»

«Eu sei», disse ele. «Parece não fazer sentido. Os acontecimentos quânticos são todos contra-intuitivos.»

«Está a dizer que recebe uma indicação de que ela está de regresso antes de ter partido?»

«Exactamente.» «Porquê?» Gordon deu um suspiro. «É complicado. Na realidade, aquilo que estamos

a ver no campo é uma função de probabilidade - a possibilidade de que uma Máquina vai regressar. Normalmente não é assim que pensamos. Limitamo-nos a dizer que está de regresso. Mas para ser mais preciso, um sinal de campo diz-nos de facto que é altamente provável que uma máquina esteja de volta.»

Kate estava a abanar a cabeça. «Não compreendo.»

Gordon disse: «Digamos apenas que no mundo vulgar, temos convicções sobre causa e efeito. As causas surgem primeiro, e os efeitos em segundo lugar. Mas esta ordem de acontecimentos nem sempre é a mesma no mundo quântico. Os efeitos podem ser simultâneos com as causas, e os efeitos podem preceder as causas. Este é um exemplo insignificante daquilo que acabo de dizer.»

A mulher, Gomez, dirigiu-se para uma das máquinas. Introduziu a placa branca numa fenda na base da frente da máquina. «Ela acabou de instalar o seu marcador de navegação, que guia a máquina em ambos os sentidos.»

«E como é que sabe que vai ser capaz de voltar?» disse Stern.

«Uma transferência multiversa», disse Gordon, «cria uma espécie de energia potencial, como uma mola esticada que quer voltar à posição inicial. É assim que a máquina é capaz de voltar a casa de uma maneira relativamente fácil. A navegação é a parte mais complicada. É isso que se encontra codificado na cerâmica.»

Inclinou-se para a frente, para premir o botão do intercomunicador. «Sue? Dentro de quanto tempo é que sais?»

«Dentro de um minuto, no máximo dois.» «Okay. Sincronização iniciada.»

Nesse instante os técnicos começaram a falar, accionando comutadores na consola, verificando leituras de vídeo que se encontravam perante eles. «Verificação do hélio.»

«Leitura no máximo», disse o técnico, enquanto olhava para a consola. «Verificação EMR.»

«Em ordem.»

«Preparação para alinhamento laser.»

Um dos técnicos accionou um comutador, e dos suportes de metal, um feixe denso de lasers verdes disparou no centro da máquina, colocando dúzias de pontos verdes no rosto e no corpo de Gomez, enquanto esta permanecia imóvel, com os olhos fechados.

As barras começaram a rodar lentamente. A mulher que se encontrava no centro permaneceu imóvel. Os lasers projectavam riscos horizontais de um tom verde sobre o corpo dela. Até que as barras pararam.

«Lasers alinhados.»

Gordon disse: «Até já, Sue.» Voltou-se para os outros: «Okay. Cá vamos nós.»

os escudos de água de formato curvo que se encontravam dispostos em volta da gaiola começaram a luzir com um leve tom azulado. Mais uma vez a máquina começou a rodar lentamente. A mulher no centro permanecia imóvel; a máquina rodava em torno dela.

o zumbido foi aumentando de intensidade. A velocidade da rotação aumentou. A mulher continuava calma e descontraída.

«Nesta viagem», disse Gordon, «ela vai gastar apenas um ou dois minutos. Mas na verdade as baterias dão-lhe para um limite máximo de trinta e sete horas. É o tempo máximo que essas máquinas conseguem permanecer num determinado local sem regressarem.»

As barras rodavam suavemente. Nesse instante ouviram um crepitar rápido que fazia lembrar uma metralhadora.

«É a verificação das condições de saída; sensores de infravermelhos verificam o espaço em torno da máquina. O processo não continua sem que haja pelo menos um espaço de dois metros a toda a volta. Verificam em ambos os sentidos. Trata-se de uma medida de segurança. Não queríamos que a máquina emergisse no centro de uma parede de pedra. Muito bem. Estão a libertar o xénon. Lá vai ela.»

O zumbido era agora muito alto. O invólucro rodava com tanta velocidade que as barras de metal não se viam com precisão. Conseguiam distinguir perfeitamente a mulher que se encontrava no interior.

Ouviram uma gravação que dizia: «Não se mexa - olhos abertos - respire fundo - aguente... Agora!»

Do topo da máquina desceu um simples anel, fazendo rapidamente o scanningaté aos pés dela.

«Agora observem com atenção. É rápido», disse Gordon.

Kate viu feixes laser de um violeta escuro dispararem de todas as barras na direcção do centro. Por alguns instantes a mulher que se encontrava no interior pareceu brilhar com um rubro branco e em seguida viu-se no interior da máquina uma explosão de luz branca que cegava. Kate fechou os olhos voltando a cabeça. Quando olhou de novo, sentia nos olhos uma série de pontos brancos e, por momentos, não se conseguiu aperceber daquilo que acontecera. Foi nessa altura que verificou que a máquina era mais pequena. Soltara-se dos cabos do topo que agora oscilavam em liberdade.

Mais um flash laser.

A máquina era ainda mais pequena. A mulher que se encontrava no interior era mais pequena. Naquele instante devia ter cerca de três pés de altura e encolhia a olhos vistos numa série de brilhantes Vashes laser.

«Santo Deus», exclamou Stern, sem tirar os olhos daquilo que se estava a passar. «0 que é que uma pessoa sentirá com uma história daquelas?»

«Nada», respondeu Gordon. «Não se sente absolutamente nada. O tempo de condução nervosa da pele ao cérebro é da ordem de cem milissegundos. O tempo de vaporização laser é de cinco nanossegundos. já há muito tempo que se partiu.»

«Mas ela ainda ali está.»

«Não, não está. Partiu na altura do primeiro disparo laser. O computador ainda está neste momento a fazer o processamento de dados. Aquilo que está a ver é um artefacto do processo de compressão. A compressão é de cerca de três a menos dois ... »

Viram outro disparo brilhante. Naquele instante a gaiola encolhia rapidamente. Uma altura de três pés, em seguida de dois. Agora estava quase ao nivel do solo - menos de um pé de altura. A mulher que se encontrava no interior parecia uma boneca minúscula vestida de caqui.

«Menos quatro», disse Gordon. Viu-se outro disparo brilhante, quase que ao nível do solo. Naquele momento Kate ja não conseguia distinguir a gaiola. «0 que é que lhe aconteceu?»

«Ainda ali está. Embora quase tenha desaparecido.»

Outro disparo, desta vez um flash do tamanho da cabeça de um alfinete, ao nível do solo.

«Menos cinco.»

A sucessão dos flashes aumentoul cintilando como um pirilampo, diminuindo em intensidade. Gordon continuou a contagem.

«E menos catorze... Foi-se.» Não se viram mais flashes. Nada.

A gaiola desaparecera. O soalho de borracha escura estava vazio. Kate perguntou: «Estão à espera que façamos uma coisa destas?»

«Não é uma experiência desagradável», disse Gordon. «Uma pessoa está perfeitamente consciente durante toda a viagem, o que é uma coisa que não sou capaz de explicar. Quando se atingem os dados finais de compressão, atingem-se domínios muito pequenos - regiões subatómicas - e a consciência não deveria ser possível. E, no entanto, é assim que as coisas se passam. julgamos que se poderá tratar de um artefacto, uma alucinação que estabelece a ponte da transição. Se assim é, trata-se de um fenómeno análogo à perna fantasma, sensação característica dos amputados, embora a perna não se encontre lá. Poderemos talvez dizer que se trata de um caso de cérebro fantasma. É evidente que estamos a falar de períodos muito curtos, de nanossegundos. Mas de qualquer modo não nos podemos esquecer de que ninguém é capaz de compreender a consciência.»

Kate franzia as sobrancelhas. Desde há algum tempo que ela observava aquilo que via como arquitectura, uma espécie de abordagem do tipo forma segue a Junção" não era extraordinário como aquelas imensas estruturas subterrâneas apresentavam uma simetria concêntrica - uma leve reminiscência dos castelos medievais - mesmo que essas estruturas modernas tivessem sido construídas sem a menor preocupação de plano estético? Haviam sido construídas simplesmente para resolverem um problema científico. Achou que a aparencia resultante era fascinante.

Mas agora que se encontrava confrontada com aquilo para o que essas máquinas eram de facto usadas, procurava encontrar um sentido para aquilo que os seus olhos tinham acabado de ver. E o seu treino em arquitectura não lhe servia da menor ajuda. «Mas este, digamos, método de encolher uma pessoa, obriga a que ela seja decomposta ... »

«Não. Nós destruímos essa pessoa», respondeu Gordon frontalmente. «Temos que destruir o original para que possa ser reconstruído no outro extremo. Não é possível ter uma coisa sem a outra.»

«Isso quer dizer que ela morreu mesmo?» «Eu não diria tanto. Está a ver ... »

«Mas se uma pessoa é destruída numa das extrernidades», disse Kate, «não acha que morreu?»

Gordon suspirou. «Torna-se difícil pensar nisto em termos tradicionais», respondeu. «Uma vez que essa pessoa é instantaneamente reconstruída no próprio momento em que foi destruída, como é que podemos dizer que morreu? Não é verdade. Essa pessoa deslocou-se apenas para um outro lugar.»

Stern tinha a certeza - era uma sensação visceral - de que Gordon não estava a ser totalmente honesto a respeito daquela tecnologia. Bastava olhar Para os escudos de água de forma curva, para todas as máquinas que se encontravam no solo, o que lhe dava a sensação de que havia bastante mais que fora deixado por explicar. Tentou descobrir o que se passava.

«Sendo assim, ela está agora no outro universo?», perguntou. «Exactamente.»

«Você transmitiu-a, e ela chegou ao outro universo? Tal como um fax?» «Exactamente.»

«Mas para a reconstruir, precisa de uma máquina de fax na outra extremidade.»

Gordon abanou a cabeça. «Não, não é verdade», respondeu. «E porque não?»

«Porque ela já lá está.»

Stern franziu as sobrancelhas. «Ela já lá está? Como é que isso pode ser?» «No momento da transmissão, a pessoa já se encontra no outro universo. E, desse modo, a pessoa não necessita de ser reconstruída por nós.» «Porquê?» perguntou Stern.

«Para já, considerem que se trata de uma característica do multiverso. Podemos discutir isso mais tarde se estiverem interessados. Não tenho a certeza de que toda a gente esteja interessada em embrenhar-se nesses detalhes», respondeu, acenando com a cabeça na direcção dos outros.

Stern pensou: «Deve haver qualquer coisa mais. Qualquer coisa que ele não nos quer dizer.» Stern voltou a olhar na direcção da zona de transmissão, tentando encontrar qualquer coisa de estranho, qualquer coisa que estivesse fora do seu lugar. Porque tinha a certeza de que havia de facto qualquer coisa que estava fora do lugar.

«Não nos tinha dito que enviou apenas algumas pessoas?» «Exacto, foi isso.»

«Mais do que uma de cada vez?» "Praticamente nunca. Muito raramente duas.»

«Sendo assim, porque é que tem tantas máquinas?» perguntou Stern. «Daqui estou a ver oito. Duas não seriam mais do que suficientes?»

«Está a ver apenas os resultados do nosso programa de investigação», disse Gordon. «Trabalhamos continuamente para melhorar o nosso design.» Gordon respondera de um modo bastante calmo, mas Stern tinha a certeza

de que conseguira descortinar qualquer coisa - um lampejo breve de desconforto - nos olhos de Gordon.

Não há dúvida de que tem que haver mais qualquer coisa.

«Estava convencido», disse Stern, «de que teria feito melhorias em algumas das máquinas.»

Gordon encolheu os ombros mais uma vez, mas não respondeu.

Sem a menor dúvida.

«0 que é que aqueles homens das reparações estão ali a fazer?» perguntou Stern em mais uma tentativa. Apontou para os homens que se encontravam de gatas junto da base de uma das máquinas. «Estou a referir-me à máquina do canto. O que é que eles estão exactamente a fazer?»

«David», começou Gordon. «Na verdade, acho que ... » «Esta tecnologia é na verdade segura?» perguntou Stern. Gordon suspirou. «Veja por si próprio.»

No grande ecrã uma sequência de flashes rápidos apareceu no solo da sala de trânsito,

«Aí vem ela», disse Gordon.

os flashes tornavam-se cada vez mais brilhantes. Ouviram novamente o crepitar, primeiro muito baixo e depois mais alto. E, logo em seguida, aparecia a gaiola no seu tamanho normal; o zumbido extinguiu-se; o nevoeiro ao nível do solo desapareceu em volutas e a mulher saiu, acenando para os espectadores.

Stern ficou a olhar para ela. Parecia estar absolutamente bem. A aparência era igual à que tivera antes.

Gordon olhou para ele. «Acredite em mim», disse. «É perfeitamente seguro.» Voltou-se para o ecrã. «Como é que as coisas estavam por lá, Sue?» «Excelentes», respondeu ela. «A placa de trânsito fica no lado norte do rio.

Um lugar recatado, nos bosques. E o tempo está muito bom para o mês de Abril.» Olhou para o relógio. «Reúna a sua equipa, Dr. Gordon. Vou regular o marcador de navegação sobressalente. Em seguida damos lá um salto e trazemos o velhote antes que ele se magoe.»

«Deite-se sobre o lado esquerdo, por favor.» Kate rolou sobre a marquesa e ficou a olhar com um certo desconforto enquanto um homem mais velho envergando uma bata branca de laboratório empunhou o que se parecia com uma pistola de cola que apoiou sobre a sua orelha esquerda. «Vaí sentir um pouco de calor.»

Calor? Sentiu uma sensação de queimadura na orelha esquerda. «0 que é ISSO?»

«É um polímero orgânico», respondeu o homem. «Não é tóxico nem provoca alergias. Espere oito segundos. Muito bem, agora faça de conta que está a mascar. Queremos uma fixação flexível. Muito bem, continue a mascar.»

Ela ouviu-o seguir ao longo da linha. Chris estava na marquesa ao lado da dela, em seguida Stern e, por último, Marek. Ouviu o homem de idade dizer: «Deite-se sobre o lado esquerdo, por favor. Vai sentir um pouco de calor ... »

Pouco depois estava de volta. Fez com que se voltasse para o outro lado e injectou o polímero quente na outra orelha. Gordon encontrava-se no canto da sala a observar. Disse: «Isto ainda é um tanto experimental, mas parece que funciona bastante bem. Trata-se de um polímero que começa a biodegradar-se ao fim de uma semana.»

Mais tarde o homem disse-lhes para se porem de pé. Habilmente tirou-lhes os implantes de plástico das orelhas deslocando-se ao longo da linha.

Kate disse a Gordon: «A minha audição é perfeita, não preciso de um auxiliar de audição.»

«Não se trata de um auxiliar de audição», respondeu Gordon.

No outro lado da sala o homem estava a perfurar o centro dos auriculares de plástico, inserindo-lhes dispositivos electrónicos. Trabalhava com uma rapidez surpreendente. Quando os dispositivos electrónicos se encontravam instalados, tapou o orifício com mais plástico.

«É uma máquina tradutora de línguas e um microfone de rádio. Para o caso de necessitarem de compreender aquilo que as pessoas lhes estão a dizer.» «Mas mesmo que a gente compreenda aquilo que eles estão a dizer», respondeu ela, «cmo é que vamos poder responder?».

Marek acenou na sua direcção. «Não te preocupes. Falo Occitan. E Francês Medieval.»

«Oh, isso é óptimo», respondeu ela em tom sarcástico. «Vais ensinar-me isso tudo nos próximos quinze minutos?» Estava tensa, estava em vias de ser destruída ou vaporizada, ou que raio é que eles fossem fazer com a máquina, e as palavras saíram-lhe involuntariamente da boca.

Marek parecia surpreendido. «Não», respondeu ele com um ar sério. «Mas se não saíres de junto de mim, tomo conta de ti.»

Houve qualquer coisa na sua sinceridade que a tranquilizou. Era como uma seta directa, Pensou para consigo, O mais certo é ele tomar conta de mim. Sentiu-se mais descontraída.

Pouco depois estavam todos equipados com aurículares cor da carne. «Neste momento encontram-se desligados», disse Gordon. «Para os ligarem basta darem uma pancadinha na orelha com o dedo. Agora, façam o favor de virem aqui...»

Gordon estendeu a cada um deles uma pequena bolsa de couro. «Temos estado a trabalhar num estojo de primeiros socorros; estes são os protótipos. Vocês são os primeiros a entrar no mundo e poderão ter necessidade deles. Podem mantê-los escondidos, sob as roupas.»

Abriu uma das bolsas e tirou uma pequena lata de alumínio com cerca de quatro polegadas de altura e uma polegada de diâmetro. Parecía-se com uma lata de creme de barbear. «Esta é a única defesa que lhes podemos fornecer. Contém doze doses de dihidreto de etileno com um substracto de proteína. Podemos fazer-lhes uma demonstração com o gato, o H.G. Onde é que estás tu, H.G.?»

Um gato negro saltou para a mesa. Gordon, depois de lhe fazer uma festa, Pulverizou-lhe o nariz com o gás. O gato pestanejou, produziu um som como se estivesse a fungar, e caiu para o lado.

«Inconsciência ao fim de seis segundos», disse Gordon, «e deixa uma amnésia retroactiva. Mas não se esqueçam de que actua durante pouco tempo. E devem pulverizar directamente no rosto da pessoa para terem a certeza de que produz algum efeito.»

O gato já estava a começar a estremecer e a voltar a si quando Gordon se voltou para a bolsa e tirou três cubos de papel vermelho, mais ou menos do tamanho de cubos de açúcar, cada um deles coberto com uma camada de cera pálida. Parecia fogo de artifício.

«Se quiserem começar um fogo», disse, «isto será o suficiente. Se puxarem o pequeno cordel, incendeiam-se. Têm marcado quinze, trinta, sessenta - o número de segundos antes que o fogo comece. A camada de cera faz com que sejam à prova de água. Uma palavra de aviso: às vezes não funcionam.»

Chris Hughes perguntou: «0 que é há de errado com uma caneta Bic?» «Não é correcto para o período. Não é possível levar plástico para lá.» Gordon pegou novamente na bolsa. «Temos então os primeiros socorros básicos, nada de especial. Anti-inflamatórios, antidiarreicos, antiespasmódicos, analgésicos, Não vão querer vomitar num castelo», disse. «E não podemos dar-lhes comprimidos para a água.»

Stern olhava para aquilo tudo com um sentimento de irrealidade. Vomitar num castelo? pensou. «Ouçam, uh ... »

«E, finalmente, uma bolsa de instrumentos multiúsos, incluindo uma faca e uma gazua.» Era parecido com um canivete suíço do exército. Gordon voltou apôr tudo de novo na bolsa. «0 mais provável é que não venham a usar nada disto mas, de qualquer modo, fica convosco. Agora vamos ver a questão do vosso vestuário.»

Stern não conseguia libertar-se da sua sensação permanente de desconforto. Uma mulher amável com aspecto de avó levantara-se de uma máquina de costura e estendia-lhes todas as roupas: primeiro roupa interior de linho uma espécie de boxers, mas sem elástico - em seguida um cinto de couro e depois perneiras em lã negra.

«0 que é isto?» perguntou Stern. «Chamam-lhes meias, meu caro.»

Também não havia elástico. «Como é que se seguram?»

«É enfiado no cinto, debaixo do gibão. Ou então prende-se em pontos do gibão.»

«Pontos?» «Exacto, meu caro. Do gibão»

Stern olhou para os outros. Estavam calmamente a colocar as peças de roupa numa pilha, à medida que lhes davam cada um dos artigos. Pareciam saber para que era cada uma das coisas; estavam calmos como se se encontrassem numa loja. Mas Stern sentia-se perdido e começou a entrar em pânico. Naquele momento davam-lhe uma camisa de linho que descia até ao cimo das coxas, e uma farta sobrecamisa a que se dava o nome de gibão, feito em feltro acolchoado. E, finalmente, uma adaga numa corrente de aço. Olhou para tudo aquilo com um ar desconfiado.

«Toda a gente tem uma. Vão necessitar dela ainda que mais não seja para comer.»

Colocou-a com ar ausente no topo da pilha, e continuou a inspeccionar a roupa, ainda à procura dos pontos".

Gordon disse: «Estas roupas pretendem representar um estatuto neutro, nem caras nem pobres. Queremos que simbolizem aproximadamente o vestuário de um mercador médio, de um pajem da corte, ou de um pequeno fidalgo.» Stern tinha sapatos feitos à mão, que se pareciam com chinelos de couro Pontiagudos, com a diferença de terem fivelas. Como um bobo da corte, pensou ele com um ar infeliz.

A mulher com aspecto de avó sorriu: «Não se preocupe, têm solas com câmaras de ar, como os seus sapatos de ténis Nike.»

«Porque é que está tudo sujo?» perguntou Stern, olhando para a sobrecamisa com as sobrancelhas franzidas.

«Bom, tem que se adaptar ao ambiente, não tem?»

Mudaram-se num vestiário. Stern olhou para os outros homens. «Como é exactamente que nós vamos, bem ... »

«Queres saber como é que te vestes no século catorze?» respondeu Marek. «É simples.» Marek despira-se completamente e andava de um lado para o outro nu, descontraído. O homem tinha músculos perfeitamente desenvolvidos. Stern sentiu-se intimidado quando lentamente tirou as calças.

«Primeiro», disse Marek, «vistam a roupa interior. É um linho de boa qualidade. Naquele tempo tinham bom linho. Para segurarem os calções coloquem o cinto e enrolem a parte de cima dos calções no cinto uma série de vezes, para que se aguente. Certo?»

«0 cinto fica debaixo da roupa?»

«Exacto. Para segurar os calções. Em seguida vistam as meias.» Marek começou a vestir as meias de lã negra. As meias tinham pés no fundo, como um pijama de criança. «Têm cordão no topo, estão a ver?»

«As minhas meias estão muito grandes», disse Stern puxando-as o mais que podia e esticando-as nos joelhos.

«Não há problema. Não são meias de cerimónia pelo que não têm que ficar justas à pele. A seguir vistam a camisa de linho. Basta que a enfiem pela cabeça e deixem-na cair. Não, não, David, a abertura no pescoço fica para a frente.» Stern esticou os braços e torceu a camisa atabalhoadamente.

«E finalmente», disse Marek, pegando numa sobrecamisa em feltro, «vestem o gibão. Uma combinação de agasalho e protecção contra o vento. Usa-se dentro e fora de casa, só é tirado quando está muito calor. Estão a ver os pontos? Têm as fitas do lado de dentro. Agora atem as meias aos pontos do gibão através das aberturas na sobrecamisa.»

Marek conseguiu fazer tudo aquilo em alguns momentos; era como se o tivesse feito durante toda a sua vida. Chris levou muito mais tempo, notou Stern com satisfação. Por sua vez Stern procurava torcer o tronco, atando os nós nas costas.

«Achas que isto é simples?», perguntou ele resmungando.

«Ultimamente não tens reparado nas tuas próprias roupas», disse Marek. «No século vinte o ocidental médio veste diariamente entre nove a doze peças. Aqui temos apenas seis.»

Stern puxou o gibão, alisando-o no peito, para que descesse até às coxas. Ao fazer isto amarrotou a camisa e Marek teve de ajudar a endireitar tudo, bem como a apertar melhor as meias.

Finalmente Marek colocou a adaga e a corrente bastante folgada na cinta de Stern, e afastou-se um pouco para o observar.

«Aí está», disse Marek acenando com a cabeça. «Como é que te sentes?» Stern encolheu os ombros com um ar desconfortável. «Sinto-me como uma galinha atada.»

Marek deu uma gargalhada. «Vais ver como te habituas.»

Kate estava a acabar de se vestir quando Susan Gomez, a mulher que acabara de regressar da viagem, entrou. Gomez usava roupas da época e uma peruca. Atirou outra peruca a Kate.

Kate fez uma careta.

«Tens que a usar», disse Gomez. «Cabelo curto numa mulher é sinal de desgraça ou de heresia. Quando lá chegares, nunca deixes que ninguém veja o verdadeiro comprimento do teu cabelo.»

Kate colocou a peruca, que lhe fez cair cabelos de um louro escuro sobre os ombros. Olhou para o espelho e viu o rosto de uma estranha. Parecia mais nova, mais suave. Mais frágil.

«ou assim», disse Gomez, «ou então corta o cabelo mesmo curto, como um homem. A escolha é tua.»

«Vou usar a peruca», respondeu Kate.

Diane Kramer olhou para Victor Baretto e disse: «Mas isso sempre foi uma regra, Victor. Sabes isso perfeitamente.»

«Sim, mas o problema», disse Baretto, «é de que nos está a dar uma nova missão.» Baretto era um homem esguio de aspecto duro, com cerca de trinta anos, um ex-ranger que trabalhava na companhia há cerca de dois anos. Durante todo esse tempo adquirira uma reputação de segurança competente, mas um tanto prima-dona. «Agora está a pedir-nos para entrarmos nesse mundo, mas não nos deixa levar armas.»

«Exactamente, Victor. Nada de anacronismos. Nada de artefactos modernos a regressarem a essa época. Tem sido a nossa regra desde o início.» Kramer tentou disfarçar a sua frustração. Aqueles tipos militares eram dificeis, em especial os homens. As mulheres, como Gomez, eram aceitáveis. Mas os homens continuavam, como eles diziam, a tentar tipificar o seu treino"nas viagens de regresso da ITC e, para dizer a verdade, nunca funcionava convenientemente. Pessoalmente, pensava Kramer, não era mais do que uma maneira de os homens esconderem a sua ansiedade, mas era evidente que nunca poderia afirmar uma coisa dessas. À partida, já era suficientemente difícil para eles aceitarem as ordens de uma mulher.

Os homens também tinham problemas em ocultarem os seus segredos. Era mais fácil para as mulheres, mas todos os homens queriam gabar-se de terem regressado ao passado. Era evidente que estavam proibidos por todo o gênero de disposições contratuais, mas os contratos podiam ser esquecidos depois de alguns copos num bar. Era por isso que Kramer os informara da existência de algumas placas de navegação especialmente reguladas. Essas placas haviam entrado na mitologia da companhia, incluindo os próprios nornes: Tunguska, Véstivius, Tokyo. A placa Véstivius colocava uma pessoa na Baía de Nápoles às sete da manhã de 24 de Agosto do ano 79 a.C., exactaniente antes de as cinzas ardentes terem morto toda a gente. A placa Tunguska deixava uma pessoa na Sibéria em 1908, exactamente antes da queda do meteoro gigantesco, provocando uma onda de choque que matara todos os seres vivos num raio de centenas de milhas. A placa Tokyo colocava uma pessoa nessa cidade em 1923, exactamente antes de ter sido arrasada pelo tremor de terra. A ideia era a de que se o projecto se tornasse público, era possível terminar com a placa errada na viagem seguinte. Nenhum dos tipos militares tinham muito a certeza de tudo isso ser verdade, ou apenas uma questão de mitologia da companhia.

O que era o modo como Kramer pretendia que as coisas continuassem. «Esta é uma nova missão. » Repetiu Baretto mais uma vez, como se ela ainda não o tivesse ouvido antes. «Está a pedir-nos para irmos a esse mundo - para irmos atrás das linhas do inimigo - se assim se pode dizer - sem armas.»

«Mas todos vocês estão treinados em combate corpo-a-corpo. Você, Gomez, todos.»

«Não acho que isso seja suficiente.» «Vietor ... »

«Com todo o respeito, Ms. Kramer, não está a encarar a situação neste caso», disse Baretto teimosamente. «Já perdeu duas pessoas. Três, se contarmos com Traub.»

«Não, Victor. Nunca perdemos ninguém.» «Pelo menos perdemos Traub.»

«Não perdemos Traub», respondeu ela. «Traub ofereceu-se como voluntário e Traub estava deprimído.»

«Você supõe que ele estava deprimido.»

«Sabe que isso é verdade, Victor. Depois da esposa ter morrido, ficou profundamente deprimido e com uma tendência para o suicídio. Mesmo depois de ter ultrapassado o seu limite de viagens, queria voltar de novo para verificar se conseguia melhorar a tecnologia. Tinha a ideia de que seria capaz de modificar as máquinas, para que tivessem menos erros de transcrição. Mas aparentemente esta ideia estava errada. Por isso foi acabar no deserto do Arizona. Pessoalmente, não acho que tivesse a menor ideia de regressar. Julgo que foi uma questão de suicídio.»

«E perdeu Rob», disse Baretto. «Não foi nenhuma porra de suicídio.»

Kramer suspirou. Rob Deckard fora um dos primeiros observadores que fizera a viagem de regresso, quase dois anos antes. E fora um dos primeiros que apresentara erros de transcrição. «Isso foi logo no início do projecto, Victor. A tecnologia não estava tão afinada. E sabe aquilo que aconteceu. Depois de ter feito algumas viagens, Rob começou a apresentar alguns efeitos menores. Insistiu em continuar. Mas nós não o perdernos.»

«Partiu e nunca regressou», disse Baretto. «É a conclusão final.» «Rob sabia exactamente aquilo que estava a fazer.»

«E agora o Professor.»

«Nós não perdemos o Professor», disse ela. «Ainda está vivo.»

«Espera que sim. E à partida não sabe porque é que ele não regressou.» «Victor ... »

«Só estou a dizer», explicou Baretto, «que neste caso a logística não se adapta ao perfil da missão. Está a pedir-nos para assumirmos um risco desnecessário,> «Ninguém o obriga a ir», respondeu Kramer suavemente.

«Porra, não é isso. Nunca disse uma coisa dessas.» «Não tem que ir.»

«Não. Eu vou.»

«Muito bem, então as regras são essas. Nenhuma tecnologia moderna entra no mundo. Compreendido?»

«Compreendido.» «E nada disto será mencionado aos académicos.»

«Não, não. Chiça, nada disso. Eu sou um profissional.» «Okay.» Disse Kramer.

Ficou a vê-lo sair. Estava sombrio, mas na disposição de continuar. No final acontecia o mesmo com todos. E a regra era importante, pensou para consigo. Mesmo que Doniger gostasse de dizer algumas palavras sobre o facto de não se poder modificar a história, a questão era a de que ninguém sabia na verdade

- e ninguém estava na disposição de arriscar. Não queriam armas modernas, ou artefactos, ou plásticos que pudessem voltar.

E isso nunca aconteceu.

Stern sentou-se com os outros em cadeiras de costas duras numa sala com mapas. Susan Gomez, a mulher que acabara de regressar na máquina, falou num tom rápido e azedo que Stern achou deslocado.

«Vamos», disse ela, «ao Mosteiro de Sainte-Mère, no Rio Dordogne, no sudoeste da França. Chegaremos às 8.04 na manhã de quinta-feira, a 7 de Abril de 1357 - é o dia da mensagem do Professor. É bom para nós, porque há um torneio nesse dia em Castelgard, e o espectáculo irá atrair grandes multidões dos arredores, pelo que teremos maiores possibilidades de não repararem em nós.»

Bateu no mapa. «Apenas por uma questão de orientação, o mosteiro fica aqui. Castelgard está ali, do outro lado do rio. E a fortaleza de La Roque fica aqui nas escarpas sobranceiras ao mosteiro. Há perguntas?»

Abanaram as cabeças negativamente.

«Muito bem. A situação na zona está um pouco confusa. Como sabem, Abril de 1357 coloca-nos aproximadamente ao fim de vinte anos da Guerra dos Cem Anos. Estamos sete meses depois da vitória inglesa de Poitiers, onde o rei da França foi feito prisioneiro. O rei francês ainda se encontra em cativeiro, à espera de resgate. E a França, sem um rei, está numa completa desorganização.»

«Precisamente neste momento Castelgard encontra-se nas mãos de Sir Oliver de Vannes, um cavaleiro britânico nascido em França. Oliver também tomou La Roque, onde tem estado a fortalecer as defesas do castelo. Sir Oliver é um indivíduo desagradável, com um mau gemo que se tornou famoso. Chamam-lhe o Carniceiro de Crécy pelos seus excessos em combate.»

«Sendo assim Oliver tem o controlo de ambas as cidades?» perguntou Marek.

«Neste momento, sim. No entanto, uma companhia de cavaleiros renegados, comandados por um padre excomungado chamado Arnaut de Cervole ... » «0 Arcebispo», disse Marek.

«Sim, exactamente, o Arcebispo - está a deslocar-se para a área, e irá sem a menor dúvida tomar os castelos a Oliver. Estamos convencidos de que o Arcebispo ainda se encontra a alguns dias de distância. Mas o combate poderá surgir a qualquer instante, pelo que temos que andar o mais depressa possível.»

Deslocou-se para outro mapa, numa escala maior. Mostrava os edifícios do mosteiro.

«Chegamos aproximadamente aqui, na orla da floresta de Sainte-Mère. A partir do ponto de chegada seremos capazes de olhar directamente para o mosteiro que fica mais abaixo. Uma vez que a mensagem do Professor veio do mosteiro, iremos aí em primeiro lugar. Como sabem, no mosteiro toma-se a refeição principal do dia às dez da manhã, e é muito provável que o Professor esteja aí presente a essa hora do dia. Se tivermos sorte, vamos encontrá-lo aí e trazemo-lo de volta.»

Marek perguntou: «Como é que sabe tudo isso? Julgava que ainda ninguém tinha ido a esse mundo.»

«É verdade. Ninguém foi. Mas os observadores que se encontram junto das máquinas trouxeram o suficiente para conhecermos o ambiente geral dessa época. Mais perguntas?»

Abanaram as cabeças negativamente.

«Muito bem. É muito importante recuperarmos o Professor enquanto ele ainda se encontrar no mosteiro. Se ele se deslocar para Castelgard ou para La Roque, será muito mais difícil. Temos um perfil de missão muito apertado. Espero estar no terreno dentro de duas ou três horas. Permaneceremos sempre juntos. Se um de nós se separar dos outros, usamos os auriculares para nos reunirmos de novo. Descobriremos o Professor e regressaremos de imediato. Okay?»

«Compreendido.» «Terão dois seguranças, eu e Victor Baretto que se encontra ali ao canto. Digam olá ao Victor.»

O segundo segurança era um homem soturno que tinha ar de ex-marine

- um homem duro e capaz. As roupas da época que Baretto envergava eram mais do tipo camponês, largas, feitas de um tecido do tipo linhagem. Fez uma aceno com a cabeça e esboçou um leve cumprimento. Parecia estar maldisposto.

«Okay?» perguntou Gomez. «Mais perguntas.»

Chris perguntou: «0 Professor está lá já há três dias?» «Exactamente.»

«Quem é que os, locais pensam que ele é?»

«Não sabemos», disse Comez. «Em primeiro lugar, não sabemos porque é que ele saiu de junto da máquina. Deve ter tido uma boa razão. Mas uma vez que ele está no mundo, a solução mais fácil para ele será a de se fazer passar por um amanuense ou por um académico de Londres, ou ainda por um peregrino a caminho de Santiago de Compostela em Espanha. Sainte-Mère encontra-se na rota de peregrinação e é vulgar os peregrinos interromperem a sua jornada, permanecendo um dia ou uma semana, especialmente se conseguem fazer amizade com o Abade, que é um tipo extraordinário. O Professor poderá ter feito isso. Ou talvez não. Simplesmente não sabemos.»

«Mas espere um momento», disse Chris Hughes. «A sua presença não irá alterar a história local? Não irá influenciar a evolução dos acontecimentos?» «Não. Não vai.»

«Como é que tem a certeza disso?» «Porque não pode.»

«E o que é que me diz dos paradoxos do tempo?» «Paradoxos do tempo?»

«Precisamente.» Respondeu Stern. «Está a ver, é como se regressasse no tempo e matasse o seu avô, o que faria que não pudesse nascer e não pudesse regressar para matar o seu avô ... »

tOh, isso. » Ela abanou a cabeça com um ar impaciente. «Não existem paradoxos do tempo.»

«0 que é que isso quer dizer? Está claro que existem.»

«Não, não existem», disse uma voz firme atrás deles. Voltaram-se. Doniger estava ali. «Os paradoxos do tempo não acontecem.»

«0 que é que quer dizer?» exclamou Stern. Tinha a sensação de que a sua questão fora tratada de uma forma muito agressiva.

«Os chamados paradoxos do tempo», disse Doniger, «na realidade não implicam, o tempo. Envolvem ideias sobre a história que são sedutoras mas estão erradas. Sedutoras porque nos levam a pensar de que tivemos influência no curso dos acontecimentos. E erradas porque é evidente que isso não aconteceu.» «Não podemos ter impacto nos acontecimentos? »

«Não.» «É evidente que sim.»

«Não. Não é possível. É mais fácil de compreender se considerarmos um exemplo contemporâneo. Digamos que vai a um desafio de basebol. Os Yankees e os Mets - os Yankees vão ganhar obviamente. Quer mudar o curso dos acontecimentos de modo a que os Mets ganhem. O que é que pode fazer? Você não é mais do que uma pessoa na multidão. Se tentar ir ao túnel, será impedido. Se tentar entrar no campo, será afastado. As acções mais vulgares que possa julgar estarem à sua disposição terminarão em falhanço e não irão alterar o resultado do jogo.

«Digamos que escolhe uma acção mais extrema: matar a tiro o lançador. Mas no instante em que sacar uma arma, provavelmente será dominado pelos adeptos que se encontrem próximo. Mesmo que consiga disparar, o mais certo é que falhe. E mesmo que consiga atingir o lançador, qual será o resultado disso? O lançador será substituído por outro.

«Digamos que escolhe uma acção ainda mais extrema. Libertar gás dos nervos e matar toda a gente que se encontra no estádio. Mais uma vez, o mais provável é que não consiga ter sucesso, do mesmo modo como não era provável ter sucesso com uma arma de fogo. Mas mesmo que consiga matar toda a gente, mesmo assim não terá conseguido alterar o resultado do jogo. Poderá argumentar que conseguiu desviar a história numa outra direcção - e talvez assim seja - mas não criou as condições para que os Mets ganhassem o jogo. Na realidade não há nada que possa fazer para que os Mets ganhem. Continua a ser aquilo que sempre foi: um espectador.

«E este mesmo princípio aplica-se à grande maioria das circunstâncias históricas. Uma única pessoa pouco pode fazer para alterar os acontecimentos de um modo significativo. É evidente que grandes massas de povo podem alterar o curso da história. Mas uma pessoa? Não.»

«Talvez assim seja», disse Stern, «mas eu posso matar o meu avô. E se ele estiver morto eu já não posso nascer, o que quer dizer que não existo e assim já não é possível tê-lo morto. E isto é um paradoxo.»

«Sim, é um paradoxo - partindo do princípio de que de facto mata o seu avô. Mas na prática isso pode mostrar-se difícil. Há tantas coisas na vida que podem correr mal. Pode não encontrar-se com ele na altura certa. No caminho pode ser atropelado por um autocarro. Ou pode apaixonar-se. Pode ser preso pela polícia. Pode matá-lo demasiado tarde, depois do seu pai já ter sido concebido. Ou pode encontrar-se face a face com ele e chegar à conclusão de que não é capaz de premir o gatilho.»

«Mas em teoria ... »

«Quando estamos a lidar com a história, as teorias não têm o menor valor», disse Doniger fazendo um gesto desdenhoso. «Uma teoria só é válida quando tem a capacidade de prever resultados futuros. Mas a história é o registo da acção humana - e não há nenhuma teoria que seja capaz de prever a acção humana.» Esfregou as mãos.

«Muito bem. Não será melhor acabarmos com esta especulação e seguirmos o nosso caminho?»

Ouviram-se murmúrios dos outros.

Stern pigarreou. «Para ser sincero», disse ele, «acho que eu não vou.»

Marek estivera à espera de uma coisa daquelas. Observara Stern durante a reunião, notando o modo como se agitava na cadeira, como se não se sentisse confortável. A ansiedade de Stern fora aumentando progressivamente desde que a volta começara.

O próprio Marek não tinha dúvidas sobre a sua partida. Desde a sua juventude vivera e respirara o mundo medieval, imaginando-se em Warburg e Carcassone, Avignon e Milão. Alistara-se nas guerras de Gales com Edward 1. Vira os burgueses de Calais entregarem a sua cidade e estivera presente nas Feiras da Champagne. Vivera nas cortes esplêndidas de Eleanor da Aquitânia e do Duque de Beiry. Marek ia fazer esta viagem, acontecesse o que acontecesse. Quanto a Stern...

«Peço desculpa», estava Stern a dizer, «mas esse problema não é meu. Só me alistei na equipa do Professor porque a minha namorada ia para um curso de Verão em Toulouse. Não sou historiador. Não sou cientista. E, de qualquer modo, não acho que seja seguro.»

Doniger perguntou: «Não acha que as máquinas sejam seguras?»

«Não, o lugar. O ano de 1357. Depois de Poitiers espalhou-se a guerra civil em França. Companhias livres de soldados fizeram pilhagens por toda a parte. Bandidos, assassinos e homens sem lei- em todos os cantos.»

Marek acenou com a cabeça. Pelo menos Stern estava a compreender a situação. O século catorze fora um mundo que desaparecera, e ao mesmo tempo perigoso. Era um mundo religioso; a maioria das pessoas iam à igreja pelo menos uma vez por dia. Mas era um mundo incrivelmente violento, onde os exércitos invasores matavam toda a gente, onde mulheres e crianças eram chacinados de uma forma rotineira, onde as mulheres grávidas eram esventradas por uma questão de desporto. Era um mundo que abria as portas aos ideais da cavalaria em simultâneo com pilhagens e assassínios indiscriminados, onde se imaginava que as mulheres eram frágeis e delicadas, mesmo que controlassem fortunas, comandassem castelos, tomassem amantes à vontade e conspirassem para cometer assassínios e rebeliões. Era um mundo com fronteiras sempre em modificação e alianças a alterarem-se constantemente, muitas vezes mudando-se de um dia para o outro. Era um mundo de morte, de pragas devastadoras, de doença, de guerras constantes.

Gordon disse a Stern: «Certamente não desejaria de modo nenhum estar a forçá-lo.»

«Mas não se esqueça», disse Doniger, «de que não estará sozinho. Vamos mandar seguranças consigo.»

«Peço desculpa.» Continuava Stern a dizer. «Peço desculpa.»

Finalmente Marek disse: «Deixe-o ficar. Ele tem razão. Não é o seu período e não é o seu problema.»

«Agora que fala nisso», disse Chris, «estive a pensar: Também não é o meu período. Sinto-me muito mais à vontade nos finais do século treze do que no verdadeiro século catorze. Talvez também deva ficar com o David ... »

«Esquece isso.» Disse Marek colocando um braço pelos ombros de Chris. «Vais ver que não há problemas.» Marek tratava o assunto como se fosse uma brincadeira embora soubesse que Chris não estava exactamente a brincar. Não exactamente.

A sala estava fria. Um nevoeiro gelado cobria-lhes os pés e os tornozelos. Enquanto se dirigiam para as máquinas deixavam um rasto no nevoeiro.

Quatro máquinas haviam sido ligadas pelas bases e uma quinta gaiola encontrava-se isolada. Baretto explicou: «Esta é a minha», e entrou na gaiola isolada. Permaneceu erecto, olhando em frente, esperando.

Susan Gomez entrou numa das gaiolas ligadas entre si, e disse: «0 resto do grupo vem comigo.» Marek, Kate e Chris subiram para as gaiolas que se encontravam ao lado da sua. As máquinas pareciam estar assentes sobre molas; oscilavam levemente à medida que cada um deles entrava.

«Todos prontos?»

Responderam todos num murmúrio, acenando com a cabeça. Baretto disse: «As senhoras primeiro.»

«Tens toda a razão», respondeu Gomez. Parecia não existir a menor amizade entre os dois. «Okay», disse ela para os outros. «Partida.»

O coração de Chris começou a bater desordenadamente. Sentia tonturas e tinha a sensação de começar a entrar em pânico. Cerrou as mãos com firmeza.

Gomez disse: «Descontraiam-se. Estou convencida de que vão achar a viagem agradável.» Introduziu a placa de cerâmica numa fenda que se encontrava aos seus pés e voltou a erguer-se.

«Cá vamos nós. Não se esqueçam: toda a gente perfeitamente imóvel quando chegar a altura.»

As máquinas começaram a zumbir. Chris sentiu uma leve vibração na base, Por debaixo dos pés. O zumbido das máquinas foi aumentando de intensidade.

O nevoeiro elevava-se em volutas da base das máquinas. As máquinas começaram a gemer e a guinchar, como se o metal estivesse a ser torcido. O som foi aumentando rapidamente até se tornar constante e atingir um volume que fazia lembrar um grito.

«É por causa do hélio líquido», disse Gomez. «Está a arrefecer o metal até atingir temperaturas de supercondução.»

Abruptamente terminou o guinchar e começou o som de crepitar. «Luz verde para os infravermelhos», disse ela. «Chegou a altura.»

Chris sentiu que todo o corpo começava a tremer involuntariamente. Tentou controlar a reacção mas as pernas continuavam a tremer. Teve um momento de pânico - talvez fosse melhor desistir - mas nesse instante ouviu uma gravação que dizia: «Permaneçam IMóveis - olhos abertos... »

Demasiado tarde, pensou. Demasiado tarde. « ... respirem fundo - aguentem... Agora!»

O anel que se encontrava acima da sua cabeça desceu, deslizando suavemente até aos seus pés. Produziu um pequeno ruído metálico quando tocou na base. E um momento depois houve um flash de luz deslumbrante - mais brilhante do que o sol - que vinha de todos os lados à sua volta - mas não sentiu absolutamente nada. Para dizer a verdade, teve uma súbita e estranha sensação de fria descontracção, como se estivesse a observar uma cena distante.

O mundo à sua volta estava completamente, estranhamente silencioso. Viu a máquina próxima de Baretto que se tornava cada vez maior, começando a debruçar-se sobre ele. Baretto, um gigante, o rosto enorme com poros monstruosos, inclinava-se, olhando para eles de cima para baixo.

Mais flashes.

à medida que a máquina de Baretto se tornava cada vez maior também parecia que se distanciava deles, revelando um aumento progressivo do soalho: uma vasta planície de soalho em borracha escura que desaparecia à distância. Mais flashes.

O pavimento em borracha tinha um padrão de círculos em relevo. Os círculos começaram a erguer-se à volta deles fazendo lembrar escarpas negras. Rapidamente as escarpas cresceram tanto que se pareciam com arranha-céus negros unindo-se por cima das suas cabeças, obstruindo a luz que vinha de cima. Finalmente os arranha-céus uniram-se uns aos outros e o mundo escureceu. Mais flashes.

Mergulharam numa escuridão de tinta da china por alguns momentos e logo em seguida começaram a distinguir pontos de luz cintilante, dispostos
num padrão que fazia lembrar uma grelha, afastando-se em todas as direcções. Era como se estivessem dentro de uma espécie de enorme estrutura cristalina brilhante. Enquanto Chris observava, os pontos de luz foram-se tornando mais brilhantes e maiores, de orla imprecisa, até que cada um deles se transformou numa bola brilhante de contornos imprecisos. Pensou se aquilo não seriam os átomos.

já não conseguia distinguir a grelha, apenas as bolas que se encontravam mais próximo. A sua gaiola moveu-se directamente na direcção de uma das bolas brilhantes que parecia pulsar, mudando a sua forma em padrões trémulos.

E foi então que se encontraram dentro da bola, imersos num nevoeiro de um brilho intenso que parecia pulsar com energia.

Foi então que o brilho começou a desvanecer-se, e desapareceu completamente.

Permaneciam numa escuridão informe. Nada. Apenas escuridão.

Mas foi então que viu que continuavam a mergulhar, dirigindo-se para a superfície agitada de um oceano negro numa noite negra. O oceano agitava-se e fervia, produzindo uma espuma de um tom azulado. À medida que desciam para a superfície a espuma ia crescendo. Chris viu que especialmente uma das bolhas tinha um brilho azul particularmente intenso.

A sua máquina moveu-se na direcção desse brilho a uma velocidade crescente, voando cada vez mais depressa, e teve a estranha sensação de que se iam esmagar na espuma, até que entraram na bolha e ouviu um guinchar metálico num tom alto e penetrante.

Em seguida silêncio. Escuridão. Nada.

Na sala de controlo, David Stern observava os flashes no soalho coberto de borracha ficarem cada vez mais pequenos e mais fracos e finalmente desaparecerem por completo. As máquinas tinham desaparecido. Os técnicos voltaram-se imediatamente para Baretto e começaram a sua contagem regressiva.

Mas Stern continuava a olhar para o ponto do soalho em borracha onde Chris e os outros haviam estado.

«E onde é que eles estão agora?» perguntou a Gordon. «Oh, agora já chegaram», disse Gordon. «Já lá estão.» «Foram reconstruídos?»

«Exacto.» «Sem uma máquina de fax do outro lado.» « Precisamente.»

«Diga-me porquê», pediu Stern. «Diga-me os detalhes que não interessam

aos outros.»

«Muito bem», disse Gordon. «Não tem nada de mal. Pensei apenas que os outros pudessem achar tudo isto um tanto, bem, perturbador.»

«Uhin.» «Voltemos atrás,» continuou Gordon, «aos padrões de interferência que, conforme se recorda, mostravam que outros universos podem afectar o nosso próprio universo. Não temos que fazer nada para que o padrão de interferência ocorra. Acontece simplesmente por si próprio.»

«Sim.» «E esta interacção é muito fiável; acontece sempre que exista um par de ranhuras.»

Stern acenou com a cabeça. Estava a tentar adivinhar onde é que aquilo ia parar, mas não era capaz de antever a direcção que Gordon estava a tomar.

«Deste modo sabemos que, em certas situações, podemos contar com que outros universos façam com que aconteçam coisas. Montamos as ranhuras e os outros universos estabelecem sempre o padrão que nós vemos.»

«Okay ... »

«E se transmitirmos através de um dos orificios, a pessoa é sempre reconstituída na outra extremidade. Também podemos esperar que isso aconteça.» Houve uma pausa.

Stern franziu as sobrancelhas.

«Espere um minuto, exclamou. «Está a dizer-me que ao transmitir a pessoa é reconstituída por outro universo?»

«De facto é isso mesmo. Isto é, tem que ser. Não podemos reconstituí-los muito bem porque não estamos lá. Estamos neste universo.»

«Sendo assim, não está a reconstituir ... » «Não.»

«Porque não sabe como fazê-lo», disse Stern.

«Porque não achamos que seja necessário», respondeu Gordon. «Do mesmo modo como não achamos que seja necessário colar os pratos numa mesa para que eles não se mexam. Permanecem imóveis por eles próprios. Utilizamos uma das características do universo, a gravidade. E neste caso estamos a usar uma das características do multiverso.»

Stern franziu as sobrancelhas. Discordou de imediato da analogia; era demasiado enganosa, demasiado fácil.

Véja», disse Gordon, «a base da tecnologia quântica é o facto da sobreposição de universos. Quando um computador quântico calcula - quando a totalidade dos trinta e dois estados do electrão estão a ser usados - tecnicamente o computador está a transportar esses cálculos para outros universos, certo?»

«Sim, sob um ponto de vista técnico está certo, mas ... » «Não, não é sob um ponto de vista técnico. É na realidade.» Houve uma pausa.

«Poderá ser mais fácil de compreender», disse Gordon, «se observarmos esta situação sob o ponto de vista do outro universo. Esse universo vê uma pessoa chegar de repente. Uma pessoa de outro universo.»

«Sim ... »

«E foi isso exactamente o que aconteceu. A pessoa vem de outro universo. E não foi exactamente o nosso.»

«Repita isso?»

«A pessoa não chegou do nosso universo», respondeu Gordon. Stern pestanejou. «Então de onde?»

«Chegaram de um universo que é quase idêntico ao nosso - idêntico sob todos os aspectos - excepto que nós sabemos como reconstituir na outra extremidade.>

«Está a brincar.» «Não.»

«A Kate que vai aterrar lá não é a mesma que saiu daqui? É uma Kate de outro universo?»

«Exacto.» «Então é quase a Kate? Uma espécie de Kate? Uma meia Kate?»

«Não. É a Kate. Tanto quanto sabemos, com base nos nossos testes, é absolutamente idêntica à nossa Kate. Porque o nosso universo e o seu universo são praticamente idênticos.»

«Mas mesmo assim, continua a não ser a Kate que saiu daqui.» «Como é que poderia ser? Foi destruída e reconstruída.» «Sente alguma diferença quando isso acontece?» disse Stern. «Só durante um ou dois segundos», respondeu Gordon.

Escuridão. Silêncio, e em seguida, à distância, uma luz branca deslumbrante. Aproximando-se. Rapidamente.

Chris estremeceu como se um forte choque eléctrico tivesse atravessado o seu corpo, fazendo-lhe contrair os dedos das mãos, Por instantes sentiu o seu corpo, como sentimos roupas novas quando as vestimos pela primeira vez; sentiu a carne que o envolvia, sentiu o peso dela, o impulso para baixo da gravidade, a pressão do corpo nas solas dos pés. Em seguida uma dor de cabeça que o cegava, um pulsar simples, para logo em seguida desaparecer, sentindo-se rodeado por uma intensa luz púrpura. Teve um arrepio e pestanejou.

Estava de pé, banhado pela luz do sol. O ar era frio e húmido. Os pássaros chilreavam nas enormes árvores que se erguiam acima dele. Feixes de luz atravessavam a luz do sol, sarapintando o solo. Estava a ser banhado por um desses feixes de luz. A máquina encontrava-se ao lado de uma estreita vereda lamacenta que serpenteava através da floresta. Directamente à sua frente, através de um intervalo entre as árvores, avistou uma aldeia medieval.

Primeiro um grupo de leiras e cabanas, penachos de fumo cinzento erguendo-se dos tectos de colmo. Em seguida uma parede de pedra e os telhados de pedra escura da própria cidade e finalmente, à distância, o castelo com os seus torreões circulares.

Reconheceu-o imediatamente: a cidade e a fortaleza de Castelgard. E já não era uma ruína. As paredes estavam completas.

Tinha chegado.

7:00:00

Gomez saltou agilmente da máquina. Marek e Kate saíram lentamente das suas gaiolas, parecendo ofuscados enquanto olhavam à sua volta. Os pés pousaram na relva cheia de musgo. O terreno parecia esponjoso.

Marek disse: «Fantástico!» e imediatamente se afastou da máquina, atravessando a vereda lamacenta para observar melhor a cidade. Kate seguiu atrás dele. Dava a ideia de ainda se encontrar em estado de choque.

Mas Chris queria permanecer junto da máquina. Virou-se lentamente olhando para a floresta. Deixou-o chocado, parecendo-lhe escura, densa, primitiva. Notou que as árvores eram enormes. Algumas tinham troncos tão espessos que se podiam esconder tres ou quatro pessoas atrás deles. Elevavam-se para o céu, espalhando um enorme dossel de folhas sobre eles que escurecia a maior parte do solo.

«Lindo, não é?> disse Gomez. Parecia sentir que ele se encontrava pouco à vontade.

«Sim, é lindo», respondeu. Mas não se sentia assim de modo nenhum; havia qualquer coisa naquela floresta que lhe parecia ter um aspecto sinistro. foi rodando lentamente, tentando compreender porque é que tinha a sensaÇão nítida de que havia qualquer coisa de errado em relação àquilo que estava a ver - havia qualquer coisa que faltava, ou que se encontrava fora de lugar. finalmente disse: «0 que é que está errado?»

Ela riu, «Oh, é isso», respondeu ela. «Ouça.»

Chris ficou alguns momentos em silêncio, ouvindo. Havia o chilreio dos Pássaros, o leve restolhar da folhagem ao passar uma brisa suave. Mas além disso...

«Não ouço nada.»

«Exacto», disse Gomez. «Deixa algumas pessoas chocadas quando chegam aqui pela primeira vez. Aqui não existe qualquer ruído ambiente: não há rádio ou televisão, não há aviões, não temos máquinas, não há carros que passem. No século vinte estamos tão habituados a ouvirmos som continuamente que o silêncio faz arrepiar.»

«Acho que tem razão.» Pelo menos era exactamente como ele se sentia. Afastou-se das árvores e olhou para a vereda lamacenta, um raio de luz através da floresta. Em alguns lugares, a lama tinha dois pés de profundidade, pisada por muitos cascos.

Pensou que este era um mundo de cavalos.

Não havia sons de máquinas. Um grande número de impressões de cascos. Inspirou profundamente e deixou escapar o ar lentamente. Até o ar parecia diferente. Um ar que subia à cabeça, que o deixava estonteado, como se tivesse uma maior percentagem de oxigénio.

Voltou-se e viu que a máquina desaparecera. Comez não, parecia preocupada. «Onde é que está a máquina?» perguntou, tentando não parecer preocupado. «Afastou-se. »

«Afastou-se?» «Quando as máquinas estão completamente carregadas tornam-se um pouco instáveis. Tendem a deslizar para fora do momento presente. Por causa disso é que não as podemos ver.»

«Onde é que elas estão?», perguntou Chris.

Ela encolheu os ombros. «Não sabemos exactamente. Devem estar noutro universo. Onde quer que estejam, estão bem. Voltam sempre.»

Para o demonstrar, pegou no seu marcador cerâmico e premiu o botão com a unha do polegar. Acompanhada de flashes de luz cada vez mais brilhantes, a máquina regressou: as quatro gaiolas, posicionadas exactamente onde haviam estado alguns minutos antes.

«Agora vão ficar aqui durante um minuto, talvez dois», disse Gomez. «Mas eventualmente irão afastar-se mais uma vez. Não me importo que isso aconteça. Pelo menos saem do caminho.»

Chris acenou com a cabeça; ela parecia saber aquilo de que estava a falar. Mas o pensamento de que as máquinas se afastavam deixou Chris com uma sensação vaga de desconforto; aquelas máquinas representavam o seu bilhete de regresso a casa, e não lhe agradava pensar que elas se comportavam de acordo com as suas próprias regras e que podiam desaparecer de uma forma aleatória. Pensou para consigo próprio: «Haveria alguém que fosse capaz de viajar num avião se o piloto dissesse que este era "instável"?» Sentiu um arrepio gelado na testa e teve consciência de que, dentro de poucos momentos, começaria a ter suores frios.

Para se distrair Chris abriu caminho, atravessando a vereda, para seguir os outros, procurando não se afundar na lama. Novamente em solo firme caminhou através de uma espessa vegetação rasteira, uma espécie qualquer de plantas que lhe davam pelo peito, parecidas com o rododendro, Olhou para trás na direcção de Gomez: «Há alguma coisa nestes bosques com a qual tenhamos de nos preocupar?»

«Apenas as víboras», respondeu ela. «Normalmente encontram-se nos ramos mais baixos das árvores. Deixam-se cair sobre os seus ombros para o morder.» «Estupendo», disse ele. «São venenosas?»

«Muito.» «É uma mordedura fatal?»

«Não se preocupe, são muito raras», disse ela.

Chris decidiu não fazer mais perguntas. De qualquer modo, naquele momento já tinham atingido uma abertura na folhagem que projectava a luz do sol. Olhou para baixo e viu o Rio Dordogne duzentos metros abaixo dele, serpenteando por entre os campos lavrados e parecendo, na sua opinião, não muito diferente do modo como estava habituado a ele.

Mas se o rio era o mesmo, tudo o resto era diferente. Castelgard estava completamente intacto, e o mesmo se passava com a sua cidade. Para além das paredes viam-se leiras dos agricultores; alguns dos campos estavam a ser lavrados naquele momento.

Nesse instante a sua atenção foi atraída para a direita, onde olhou para baixo, na direcção do grande complexo rectangular do mosteiro - e a ponte fortificada do moinho. A sua ponte fortificada, pensou. A ponte que estivera a estudar durante a maior parte do Verão...

E, infelizmente, muito diferente daquela que conseguira reconstruir em computador.

Chris viu quatro rodas de azenha e não três, trabalhando na corrente que corria por debaixo da ponte. E a ponte que se erguia acima não era uma estrutura simples unificada. Parecia haver pelo menos duas estruturas independentes, dando a impressão de casinhas. A maior era feita de pedra e a outra de madeira, sugerindo que as estruturas haviam sido reconstruídas em diferentes alturas. Da construção em pedra o fumo elevava-se num contínuo penacho cinzento. Aparentemente talvez fabricassem ali o aço. Se havia energia hidráulica era provável que tivessem fornos accionados a foles. Aliás isso também explicaria as estruturas separadas que se viam. Os moinhos que trabalhavam na moagem de cereais ou de milho nunca permitiriam fogos abertos ou chamas no seu interior - nem sequer uma vela. Era por Isso que os moinhos para cereais funcionavam só durante as horas do dia.

Absorvido nos detalhes, sentiu que se começava a descontrair.

No ponto mais distante da vereda lamacenta Marek olhava para a aldeia de Castelgard com uma leve sensação de assombro.

Ele estava ali.

Sentia a cabeça leve, quase estonteado com a excitação quando começou a analisar os detalhes. Nos campos situados mais abaixo os camponeses usavam polainas feitas de bocados de pano e túnicas em vermelho e azul, laranja e rosa. As cores vivas contrastavam com o tom escuro da terra. A maior parte dos campos já se encontrava plantada, sobressaindo os sulcos do arado. Era o início de Abril e portanto as plantações de Primavera de cevada, ervilha, aveia e feijão - as chamadas colheitas Lenten - terminariam dentro em pouco.

Observou um novo campo que estava a ser arado e a lâmina negra de ferro a ser puxada por uma parelha de bois. O arado fazia depositar a terra do sulco com precisão para ambos os lados. Viu com agrado uma protecção em madeira montada directamente sobre a lâmina. Tratava-se de uma aiveca e era característica daquela época.

Caminhando atrás do homem do arado, um camponês espalhava semente com movimentos rítmicos do braço. O saco de semente estava pendurado do ombro. Seguindo de perto o semeador, aves esvoaçavam ao longo do sulco comendo as sementes. Mas sem ser por muito tempo. Num campo próximo Marek viu o gradador: um homem a cavalo que puxava uma armação de madeira em T com uma grande pedra em cima. O gradador fechou os sulcos, protegendo a semente.

Parecia que tudo se passava dentro do mesmo ritmo suave mas firme: a mão espalhando a semente, o arado abrindo o sulco, a grade raspando a terra. E praticamente não se ouvia um único som na quietude da manhã, apenas o zumbido dos insectos e o chilrear dos pássaros.

Para além dos campos Marek viu a muralha de pedra com cerca de seis metros de altura circundando a cidade de Castelgard. A pedra era escura, desgastada pelo tempo. Numa das secções a muralha estava a ser reparada; a pedra nova que aplicavam era de uma cor mais clara, um amarelo acinzentado. os pedreiros encontravam-se empoleirados na muralha, trabalhando rapidamente. No topo da muralha guardas envergando cotas de malha faziam a ronda para a frente e para trás, fazendo por vezes uma pausa para olharem à distância.

E erguendo-se acima de tudo o resto, o próprio castelo com as suas torres circulares e telhados em pedra negra. No topo dos torreões ondeavam batideiras. Todas as bandeiras tinham o mesmo brasão: um escudo em tons de castanho avermelhado e cinzento com uma rosa prateada.

Davam ao castelo uma aparência festiva e naquela altura, num campo da parte de fora, logo a seguir às muralhas da cidade, estava a ser construído um grande estrado em madeira coberto com toldo, que se destinava a um torneio. já começara a reunir-se uma multidão. Alguns cavaleiros já ali se encontravam, os cavalos amarrados ao lado de tendas de riscas em cores alegres, que se espalhavam indiscriminadamente por toda a zona do torneio. Pajens e cavalariços circulavam por entre as tendas transportando armaduras e água para os cavalos.

Marek observou toda a cena e deu um suspiro de satisfação,

Tudo aquilo que ele viu era de uma grande precisão, até ao menor detalhe. Tudo aquilo era real.

Ele estava ali.

Kate olhava para Castelgard com uma sensação de assombro. Perto dela Marek suspirava como um apaixonado mas ela não tinha a certeza da razão para tal. Evidentemente Castelgard era agora uma povoação com vida, tendo recuperado a sua antiga glória, com as suas casas e castelo inteiros. Mas, de um modo geral, a cena que tinha à sua frente não parecia muito diferente de qualquer paisagem campestre da França do seu tempo. Talvez um pouco mais antiga do que a maioria das paisagens que conhecia, com cavalos e bois em vez de tractores. Mas quanto ao resto... bom, não era assim tão diferente quanto isso.

Arquitecturalmente, a maior diferença que conseguiu detectar entre aquela cena e o presente era o facto de todas as casas terem telhados de lousa, feitos com placas sobrepostas de pedra negra. Estes telhados de pedra eram incrivelmente pesados e necessitavam de uma construção interna de suporte muito resistente, razão pela qual as casas no Périgord haviam deixado de os utilizar, salvo nas áreas turísticas. Estava habituada a ver as casas Francesas com telhados de tom ocre em telha romana, ou com a telha plana do estilo francês.

No entanto aqui havia telhados em lousa por toda a parte. Não se avistava nem uma única cobertura em telha.

Continuando a observar a cena, apercebeu-se lentamente de outros detalhes. Por exemplo, havia um número muito grande de cavalos: de facto um número muito grande, se fossem considerados os cavalos que se encontravam nos campos, os cavalos no torneio, os cavalos circulando como montadas nas estradas poeirentas e os cavalos que se encontravam no pasto. Pensou que na cena à sua frente devia ter qualquer coisa como cem cavalos. Não se recordava de alguma vez ter visto tantos cavalos ao mesmo tempo, mesmo no Colorado onde nascera. Todos os tipos de cavalos, desde os belos e lustrosos cavalos de guerra que se encontravam no torneio até aos pequenos cavalos para a agricultura que se viam nos campos.

E enquanto a maior parte das pessoas que se viam a trabalhar nos campos usavam roupas em tons monótonos, outras usavam cores tão vivas e alegres que quase a faziam lembrar das Caraffias. Aquelas roupas eram remendadas vezes sem conta, mas sempre numa cor de contraste, de tal modo que o remendo era visível mesmo à distância. Tornava-se numa espécie de design.

Foi igualmente nessa altura que se apercebeu da clara demarcação entre as áreas relativamente pequenas da habitação humana - cidades e campos - e a floresta circundante, um denso e vasto tapete verde espalhando-se em todas as direcções. Nesta paisagem predominava a floresta. Tinha a sensação de uma vastidão selvagem circundante, na qual os seres humanos eram intrusos. E, naquele caso, intrusos insignificantes.

E quando voltou a olhar para a cidade de Castelgard teve a sensação de que havia qualquer coisa de estranho que não conseguia detectar. Até que finalmente se apercebeu de que não havia chaminés!

Nem uma única chaminé.

Nas casas dos camponeses havia apenas orifícios nos telhados de colmo por onde saía o fumo. Dentro da cidade as casas eram similares, mesmo que os seus telhados fossem de pedra: o fumo saía por um orifício ou por um respiradouro na parede. No castelo também não se viam chaminés.

Estava a olhar para uma época anterior ao aparecimento das chaminés nesta parte da França. Por uma razão qualquer este pormenor de arquitectura sem importância fez com que estremecesse com uma espécie de horror. Um mundo antes das chaminés. Afinal de contas, quando é que as chaminés haviam sido inventadas? Não conseguia lembrar-se exactamente. Não havia dúvida de que, por volta de 1600 já eram perfeitamente vulgares. Mas esta época era muito anterior.

«Esta época», fez com que se apercebesse da situação em que se encontrava. Atrás dela ouviu Gomez que dizia: «Que raio é que pensa que está a fazer?»

Kate olhou para trás e viu que o tipo carrancudo, Baretto, acabara de chegar. A sua gaiola individual era visível no outro lado da vereda, a uma distância de poucos metros na floresta.

«Faço aquilo que me der na bolha e ninguém tem nada com isso», disse ele a Gomez.

Tirara a sua túnica de tela, revelando um pesado cinto em couro com uma pistola em coldre e duas granadas negras. Estava a verificar a pistola.

«Se temos que entrar no mundo», disse Baretto, «tenho que estar preparado.» «Não vai levar essa tralha consigo», disse Gomez.

«Quer fazer uma aposta, mana?»

«Não vai. Sabe que não é permitido. Gordon nunca permitiria que armas modernas entrassem neste mundo.»

«Mas Gordon não está aqui, pois não?»

«Veja o que vai fazer, raios o partam», disse Comez, e pegou no seu marcador em cerâmica branca, apontando-o na direcção de Baretto.

Dava a impressão de que ameaçava mandá-lo de volta.

36:50:22

Na sala de controlo, um dos técnicos que se encontrava em frente dos monítores disse, «Estamos a receber retorno de campo.»

A sério? Isso é uma boa notícia>, disse Gordon. «Porquê?» perguntou Stern.

«Significa», respondeu Gordon, «que alguém está programado para regressar dentro das próximas duas horas. Sem qualquer dúvida os seus amigos.» «Isso quer dizer que vão trazer o Professor e estar de volta dentro de duas horas?»

«Sim, é isso exactamente ... » Gordon interrompeu o que estava a dizer para olhar para a onda que se observava no monitor. Uma pequena superfície ondulante com um pico que sobressaía. «É isso?»

«Exacto», respondeu o técnico.

«Mas a amplitude está demasiado larga», observou Gordon.

«Estou de acordo. E o intervalo está a ficar cada vez mais curto. Rapidamente.»

«Quer dizer que alguém está a regressar agora?» «Sim. Rapidamente segundo parece.»

Stern olhou para o relógio. A equipa partira há poucos minutos. Era impossível terem recuperado o Professor tão rapidamente.

«0 que é que isso quer dizer?»

«Não faço ideia», disse Gordon. A verdade é que não lhe estava a agradar de modo nenhum aquele desenvolvimento. «Devem ter tido qualquer problema.,> «Que tipo de problema?»

«Para ser assim tão rápido deve ter sido um problema mecânico. Talvez um erro de transcrição.»

Stern perguntou: «0 que é um erro de transcrição?»

o técnico disse: «0 meu cálculo dá-me uma chegada dentro de vinte minutos e cinquenta e sete segundos.» Estava a medir as intensidades de campo e os intervalos de pulsação.

«Quantos é que estão de volta?» perguntou Gordon. «Todos?» «Não», respondeu o técnico. «Apenas um.»

36:49:19

Chris Hughes não conseguia evitar; estava mais uma vez dominado pela ansiedade. Apesar do ar frio da manhã estava a suar, a pele estava gelada e o coração batia desordenadamente. Ouvir a discussão entre Baretto e Gomez não melhorava de modo nenhum a sua confiança.

Regressou à vereda, contornando as poças de lama espessa. Marek e Kate também estavam a regressar. Todos eles se mantinham o mais possivel à parte da discussão.

«Está bem, está bem, porra para esta história», estava Baretto a dizer. Tirou as armas e colocou-as cuidadosamente no chão da sua gaiola. «Está bem. Mais satisfeita?»

Gomez continuava a falar, calmamente, quase num murmúrio. Chris não a conseguia ouvir.

«Está certo», disse Baretto, quase rosnando.

Mais uma vez Gomez falou suavemente. Baretto rangia os dentes. Tornava-se muito desconfortável estar a li de pé. Chris afastou-se alguns passos, voltando as costas à discussão, esperando que tudo aquilo terminasse.

Ficou surpreendido ao verificar que a vereda descia em declive, quase que abruptamente, e conseguia avistar o terreno plano um pouco mais abaixo, por um intervalo entre as árvores. O mosteiro lá estava - um arranjo geométrico de pátios, passagens cobertas e claustros, tudo construído em pedra de um tom bege, rodeado por uma alta parede de pedra. Parecia-se com uma pequena cidade densa e compacta. Ficava surpreendentemente perto, talvez a menos de quinhentos metros. Não seria mais do que isso.

«Que se lixe, vou andar um bocado», disse Kate, e começou a descer a vereda. Marek e Chris olharam um para o outro e em seguida foram atrás dela.

«Ei malta, permaneçam sempre à vista, porra», disse-lhes Baretto em voz alta. Gomez disse: «Acho que é melhor irmos também.»

Baretto colocou-lhe uma mão no braço para a deter. «Só depois de termos esclarecido uma coisa»l disse. «0 modo como as coisas se passam nesta expedição.»

«Acho que já está mais do que esclarecido», respondeu Gomez.

Baretto aproximou-se mais dela e disse: «Porque não gostei do modo -Como ... » E o resto foi dito demasiado baixo para que pudesse ser entendido, percebendo-se apenas o sibilar furioso da sua voz.

Chris passou com agrado a curva da vereda deixando-os para trás.

Kate começou a andar com passadas enérgicas, sentindo que a tensão se ia desvanecendo à medida que caminhava. A discussão deixara-a constrangida e irritada. Ouviu Chris e Marek alguns passos atrás a conversarem. Chris mostrava-se ansioso e Marek tentava acalmá-lo. Não queria ouvi-los. Acelerou um pouco o passo. Afinal de contas, estar ali naquele bosque fantástico, rodeada por aquelas árvores enormes...

Poucos minutos depois deixara Marek e Chris para trás, mas sabia que estavam suficientemente perto e sentia-se bem por estar sozinha. Era agradável aquela sensação de sentir o bosque à sua volta. Ouvia o chilrear dos pássaros e o som dos seus próprios passos a caminhar pela vereda. A certa altura teve a impressão de que ouviu mais qualquer coisa. Abrandou o passo para escutar.

Sim, havia um outro som: pés que corriam. Parecia que vinham da parte distante da vereda que se encontrava mais abaixo. Ouviu alguém que ofegava, com dificuldade em respirar.

E ainda um som muito leve, como o rumor longínquo de uma trovoada. Estava a tentar situar este rumor quando um rapaz surgiu da curva, correndo na direcção dela.

O rapaz vestia calções negros, uma casaca acolchoada de um verde brilhante e uma capa negra. Estava corado com o cansaço; via-se claramente que já vinha a correr há algum tempo. Pareceu espantado por a ver caminhar pela vereda. Quando se aproximou dela gritou: «Aydethee amsel! Grassa due! AYdethee!»

Um instante depois ouviu a sua voz traduzida nos auscultadores: «Esconde-te mulher! Pelo amor de Deus! Esconde-te!»

Esconder-se de quê? pensou Kate. O bosque estava deserto. O que é que ele poderia querer dizer? Talvez não o tivesse compreendido convenientemente. Talvez o tradutor não estivesse a funcionar convenientemente. Quando o rapaz passou por ela voltou a gritar-lhe, «Esconde-te!», e afastou Kate violentamente, empurrando-a da vereda na direcção do bosque. Tropeçou numa raiz cheia de nós, caindo no meio da vegetação rasteira. Bateu com a cabeça, sentiu uma dor aguda e uma tontura que quase a fez perder os sentidos. Estava a tentar pôr-se de pé quando se apercebeu do significado do rumor longínquo que ouvira.

Cavalos. Galopando a toda a velocidade na direcção dela.

Chris viu o rapaz a subir a vereda a correr e quase de imediato ouviu o som dos cavalos que o perseguiam. O rapaz, já sem fôlego, parou por momentos ao lado deles, ultrapassou-os, e finalmente conseguiu dizer em tom arquejante, «Escondam-se! Escondam-se!» antes de disparar na direcção do bosque.

Marek ignorou o rapaz. Estava a olhar para o outro extremo da vereda. Chris franziu as sobrancelhas. «Mas que raio é que se está a ... »

«Agora», disse Marek, e colocando um braço em torno dos ombros de Chris, empurrou-o violentamente para fora da vereda, na direcção da folhagem. «Valha-me Deus», disse Chris, «és capaz de fazeres o favor de ... »

«Shhh!» Marek colocou uma mão na boca de Chris. « Queres que nos matem?» Não, pensou Chris,_ não tinha a menor dúvida a esse respeito: não queria que ninguém morresse. Subindo a colina à carga na direcção deles viam-se seis cavaleiros com armadura completa: elmos de aço, cota de malha e mantos de tecido em cores de castanho avermelhado e cinzento. Os cavalos estavam adornados com tecido negro bordado a prata. O efeito era sinistro. O cavaleiro que chefiava o grupo, ostentando um elmo adornado com uma pluma negra, apontou em frente e gritou: «Godin!»

Baretto e Gomez, ainda se encontravam ao lado da vereda, simplesmente ali de pé, aparentemente em estado de choque quando viram o que galopava na direcção deles. O cavaleiro negro curvou-se na sela e vibrou um golpe em arco com a enorme espada na direcção de Gomez, quando passou a galope por ela.

Chris viu o tronco decepado de Gomez, espirrando sangue, quando caiu no solo, Baretto, salpicado de sangue, praguejou em voz alta enquanto corria para o bosque. Mais cavaleiros subiam a colina a galope. Agora gritavam todos em altos brados «Godin! Godin!» Um dos cavaleiros deteve-se, virou o cavalo e empunhou o arco, disparando na direcção de Baretto.

A flecha atingiu Baretto no ombro esquerdo enquanto este corria, a ponta de aço atravessou o ombro de lado a lado, fazendo com que caísse de joelhos. Praguejando, Baretto voltou a pôr-se de pé cambaleante e finalmente conseguiu alcançar a sua máquina.

Pegou no cinto, tirou uma das granadas freneticamente e voltou-se para a atirar. Uma flecha atingiu-o em cheio no peito. Baretto pareceu surpreendido, tossiu e caiu para trás, ficando sentado com as costas apoiadas nas grades. Fez uma fraca tentativa para arrancar a flecha do peito. A flecha seguinte atravessou-lhe a garganta. A granada caiu-lhe da mão.

De volta à vereda, os cavalos erguiam-se nas patas traseiras e relinchavam, os cavaleiros rodando em círculos, gritando e apontando.

Viu-se um clarão brilhante de luz.

Chris olhou para trás a tempo de ver Baretto, ainda sentado e imóvel, enquanto a máquina cintilava repetidamente ao mesmo tempo que ia diminuindo de tamanho.

Momentos depois a máquina tinha desaparecido. Nos rostos dos cavaleiros notava-se agora um sentimento de medo. O cavaleiro da pluma negra gritou qualquer coisa para os outros e, como um grupo, esporearam os cavalos e subiram a colina a cavalo desaparecendo de vista.

' Quando o cavaleiro negro se voltou para partir, o seu cavalo tropeçou no corpo de Gomez. Praguejando, o cavaleiro fez o animal erguer-se nas patas de trás para em seguida pisotear o corpo vezes sem conta. O sangue espirrava no ar; as extremidades das patas do cavalo ficaram de um vermelho escuro. Finalmente o cavaleiro negro voltou-se, e com uma praga final subiu a colina a galope para se juntar aos outros.

«Santo Deus!» O modo, como tudo acontecera repentino, a inutilidade daquela violência...

Chris levantou-se cambaleante e correu para a vereda.

O corpo de Gomez jazia numa poça de lama, esmagado a ponto de praticamente não ser reconhecível. Mas uma das mãos escapara intacta e permanecia aberta no solo. E próximo da mão via-se o marcador de cerâmica branca.

Estava partido, vendo-se os seus componentes electrónicos que pendiarri inúteis.

Chris pegou nele. A cerâmica caiu-lhe das mãos, pedaços brancos e prateados flutuando até ao solo, caindo numa poça de lama. E, naquele momento, a situação deles ficou perfeitamente clara.

Os seus guias estavam ambos mortos. Uma máquina tinha desaparecido.

O seu marcador de regresso estava em pedaços.

O que queria dizer que estavam imobilizados naquele lugar. Presos numa armadilha, sem guias ou assistência. E sem qualquer perspectiva de poderem regressar.

Para sempre.

36:30:42

«Atenção,» exclamou um dos técnicos. «A chegar neste momento».

No soalho forrado de borracha, no centro dos escudos curvos de água, apareceram pequenos flashes de luz.

Gordon olhou de soslaio para Stern. «Dentro de momentos já vamos saber o que é que aconteceu.»

Os fiashes tornaram-se mais brilhantes e uma maquina começou a surgir sobre a borracha do soalho. já tinha quase dois pés de altura quando Gordon exclamou: «Chí, este tipo só me arranja problemas!»

Stern disse qualquer coisa, mas Gordon não prestou atenção. Viu Baretto ali sentado, apoiado a uma das barras, nitidamente morto. A máquina atingiu o tamanho normal. Viu a pistola que ele tinha na mão. Era evidente que sabia aquilo que se passara. Embora Kramer tivesse avisado especificamente Baretto, o filho da mãe levara armas modernas com ele. Fora por isso que Comez o mandara de volta, e...

Um pequeno objecto escuro rolou para o soalho. «0 que é aquilo?» perguntou Stern.

«Não sei,» respondeu Gordon olhando para os ecrãs. «Quase que parece Uma gra ... »

A explosão na sala de trânsito fez com que os ecrãs ficassem em branco, limpando tudo. Dentro da sala de controlo o som fora estranhamente distorcido, mais parecido com uma explosão de estática. A sala de trânsito ficou imediatamente cheia de um fumo pálido.

«Merda», exclamou Gordon. Deu um murro na consola.

Os técnicos que se encontravam na sala de trânsito gritavam. O rosto de um dos homens estava coberto de sangue. No momento seguinte o homem foi derrubado pela torrente de água dos escudos estilhaçados pelos fragmentos da granada. A água com três pés de altura movia-se de um lado para o outro como rebentação. Mas, quase de imediato, começou a escoar-se, deixando o soalho novamente vazio a sibilar e libertar vapor.

«São as células», exclamou Gordon. «Há uma fuga de ácido hidrofluorídrico.»

Obscurecidas pelo fumo, vultos equipados com máscaras de gás corriam para a sala, ajudando os técnicos feridos. As vigas superiores começaram a cair estilhaçando os escudos de água que ainda se encontravam intactos. Outras vigas esmagaram-se no centro da zona.

Na sala de controlo alguém deu uma máscara de gás a Gordon e outra a Stern. Gordon colocou a sua máscara.

«Temos que sair agora», disse. «0 ar está contaminado.»

Stern estava a olhar para os ecrãs. Através do fumo via as outras máquinas estilhaçadas, tombadas no solo, libertando vapor e um gás de um verde pálido. Havia apenas uma de pé, a um dos lados, e na altura em que estava a observar, uma das vigas de ligação caiu, fazendo-a em pedaços.

«Não há mais máquinas», disse Stern. «Isso quer dizer ... »

«Sim ... », respondeu Gordon. «De momento receio que os seus amigos estejam por sua conta.»

36:30:00

«Tem calma, Chris», disse Marek.

«Tenho calma? Tenho calma?» Chris quase que gritava. «Pelo amor de Deus, olha para isto, André - o marcador dela está em fanicos. Estamos sem marcador. O que quer dizer que não temos meios de regressar a casa. O que quer dizer que estamos completamente lixados, André. E ainda queres que tenha calma?»

«Exactamente, Chris», respondeu Marek com uma voz muito calma, muito firme. «É isso que eu quero. Quero que tenhas calma, por favor. Quero que te recomponhas.»

«E por que raio é que eu o devia fazer?» respondeu Chris. «Em nome de quê? Encara os factos, André. Sabes isso perfeitamente, não sabes? Vamos ser todos liquidados aqui. E não há maneira de nos pirarmos daqui para fora.»

«Errado há sim senhor.»

«Vejamos, não temos qualquer alimento, não temos a porra do que quer que seja, estamos enfiados neste - neste poço de merda, sem sequer temos a porra de uma pá e... » Deteve-se, voltando-se para Marek. «0 que é que disseste?» «Disse que há uma maneira de nos safarmos.»

«Como?» «Estás a pensar com os pés. A outra máquina regressou. Ao Novo México.» «E depois?»

«Vão ver em que condições está ... » «Morto, André, vão ver que está morto.»

«A questão é que irão concluir que há qualquer coisa de errado. E virão à nossa procura. Irão mandar outra máquina para nos fazer sair daqui», disse Marek.

«Como é que sabes?»

«Porque é a única conclusão lógica.» Marek voltou-se e começou a descer a colina.

«Onde é que vais?»

«Ver onde é que está Kate. Temos que nos manter juntos.» «Eu não me mexo daqui.»

«Como queiras. Desde que não saias mesmo daí.» «Não te preocupes, não saio mesmo daqui.»

Chris apontou para o solo que se encontrava à sua frente. «Foi exactamente a este ponto que a máquina chegou. E é onde eu vou ficar.»

Marek afastou-se em passo acelerado, desaparecendo na curva da vereda. Chris estava sozinho. Quase de imediato pensou se não seria melhor correr e apanhar Marek. Talvez fosse melhor não ficar sozinho. Ficarem juntos como Marek dissera.

Deu alguns passos pela vereda na direcção de Marek e em seguida parou. Não, pensou. Dissera que ficava ali e era ali mesmo que ia ficar. Parou na vereda, tentando abrandar a sua respiração.

Olhando para o solo, notou que estava a pisar a mão de Gomez. Afastou-se rapidamente. Subiu a vereda alguns metros, tentando encontrar um ponto onde não avistasse o corpo. A sua respiração tornou-se ainda mais calma. Voltava a ser capaz de pensar em tudo o que estava a acontecer. Chegou à conclusão de que Marek tinha razão. Iriam enviar outra máquina e provavelmente muito depressa. Iria aterrar mesmo ali. Seria um ponto conhecido para aterragens? Ou seria em qualquer outro ponto na área que os rodeava?

De qualquer modo, Chris tinha a certeza de que era ali mesmo que ia ficar. Olhou para o outro extremo da vereda, na direcção em que Marek desaparecera. Onde é que Kate estaria? Provavelmente a alguma distância vereda fora. Uns cinquenta metros, talvez mais.

Santo Deus, ele queria regressar a casa.

Nesse momento, na zona do bosque à sua direita, ouviu um som de ramos a estalar.

Alguém que se aproximava.

Ficou tenso, consciente de que não tinha qualquer arma. Lembrou-se então da bolsa que trazia presa no cinto, por debaixo das roupas. Tinha aquela botija de gás. Procurou febrilmente, levantando a camisa que trazia com a fralda de fora, procurando a... »

Voltou-se. Era o rapaz, saindo do bosque. O rosto era suave, sem qualquer sinal de

barba; não podia ter mais do que doze anos, concluiu Chris. O rapaz disse num murmúrio, «Arktth. Thou. Earwashmann.»

Chris franziu as sobrancelhas, não compreendendo o que ele lhe dizia, mas instantes depois ouviu uma voz débil nos auriculares. «Hey. Tu. Irlandês.» Chegou à conclusão de que estava a ouvir a tradução nos auriculares.

«0 quê?»

«Coumen hastealy.» Nos auriculares ouviu: «Vem depressa.»

O rapaz acenava na sua direcção, tenso, procurando apressá-lo. «Mas ... »

«Vem. Não tarda muito para que Sir Guy chegue à conclusão de que perdeu o rasto. Nessa altura vai voltar para o descobrir de novo.»

«Mas ... »

«Não podes ficar aqui. Se te encontrar mata-te. Vem!»

«Mas ... » Chris fez um gesto de desalento na direcção da vereda onde Marek desaparecera.

«Os teus criados hão-de encontrar-te. Verri!»

Agora ouvia o troar distante dos cascos dos cavalos, tornando-se rapidamente mais alto.

«Estás surdo?» o rapaz olhava assombrado para ele. «Vem!» O ruído dos cascos estava mais próximo.

Chris ficou gelado no lugar onde se encontrava, sem ter a certeza daquilo que havia de fazer.

O rapaz perdeu a paciência. Abanando a cabeça com um ar de desdém, voltou-se e correu para a floresta. Desapareceu rapidamente na densa vegetação rasteira.

Mais uma vez Chris ficou sozinho na pista. Olhou para a parte inferior da vereda. Não conseguia avistar Marek. Olhou para a parte superior da vereda, na direcção dos cavalos que se aproximavam. O seu coração batia mais uma vez desordenadamente.

Tinha que decidir. já.

«Já vou!», gritou na direcção do rapaz.

Voltou-se então e correu na direcção dos bosques.

Kate estava sentada numa árvore caída, apalpando a cabeça cuidadosamente, a peruca posta à banda. Tinha sangue nas pontas dos dedos.

«Estás ferida?» perguntou-lhe Marek quando chegou junto dela. «Acho que não.»

«Deixa-me ver.»

Tirando-lhe a peruca, Marek viu uma crosta de sangue e um corte no escalpe com cerca de três polegadas. A feridajá não estava a sangrar; o sangue começara a coagular colado à rede da peruca. A ferida aconselhava uma sutura, mas era capaz de se aguentar sem os pontos.

«Ainda não é desta que vais morrer.» Voltou a colocar-lhe a peruca. Ela perguntou-lhe: «0 que é que aconteceu?»

«Aqueles dois estão mortos. Só podemos contar connosco. Chris está mais ou menos em pânico.»

Ela acenou com a cabeça como se estivesse à espera de uma coisa dessas. «Então o melhor é irmos ter com ele.» Começaram a subir a vereda. Enquanto caminhavam, Kate disse: «0 que é que se passa com os marcadores?»

«0 rapaz que foi de volta levou aquele que tinha com ele. O corpo de Gomez foi espezinhado e o seu marcador foi destruído.»

«E o outro?», perguntou Kate. «Que outro?»

«Ela tinha um sobressalente.» Como é que sabes?»

«Foi ela que o disse. Não te lembras? Quando voltou daquela viagem de reconhecimento ou lá que raio era, disse que estava tudo bem e que se ia apressar para ter tudo pronto. E também disse: "Não me posso esquecer do sobressalente" ou qualquer coisa no género.»

Marek franziu as sobrancelhas.

«Acho que faz sentido a existência de um sobressalente», disse Kate. não há dúvida de que Chris se vai sentir muito melhor quando ouvir uma coisa dessas.» Nesse momento detiveram-se, totalmente assombrados. Chris desaparecera.

Avançando precipitadamente por entre a vegetação rasteira, ignorando os espinhos que lhe arranhavam as pernas e lhe prendiam os calções, Chris conseguiu avistar finalmente o rapaz que corria cerca de quarenta metros à sua frente. Mas o rapaz não lhe prestou atenção, não se deteve, continuando a correr sempre em frente. Seguia na direcção da aldeia. Chris procurou manter o ritmo. Continuou a correr.

Mais atrás na pista, ouviu o ruído dos cascos e os relinchos dos cavalos, e os berros dos homens. Ouviu alguém que gritava: «No bosque!» e outra voz que respondia com uma praga. Mas fora da pista o terreno tinha uma vegetação muito densa. Chris tinha que se debater com árvores caídas troncos apodrecidos, ramos partidos tão grossos como a sua coxa e densas moitas de espinheiro. Este terreno seria muito difícil para cavalos? Iriam desmontar? Iriam desistir? Ou continuariam a perseguição?

Porra, a caça iria continuar.

Continuou a correr. Agora estava numa área pantanosa. Continuou a correr por entre plantas que lhe davam pelo peito com um cheiro insuportável a doninha, escorregou em lama que se ia tornando mais profunda à medida que avançava. Ouvia o seu arquejar e o chapinhar dos seus pés na lama.

Mas não ouvia ninguém atrás dele.

Pouco mais adiante o solo voltava a estar seco e conseguia correr mais depressa. Agora o rapaz estava apenas uns dez passos à sua frente, continuando a deslocar-se a toda a velocidade. Chris arquejava, procurando não abrandar, mas teve que manter o seu próprio ritmo.

Continuou a correr. Ouviu um crepitar no seu auricular esquerdo. «Chri's.» Era Marek.

«Chris, onde é que estás?»

Como é que ele havia de responder? Onde é que estava o microfone? Foi então que se recordou de ter ouvido qualquer coisa sobre condução óssea. Exclamou em voz alta, «Estou... estou a correr ... »

«Já consegui perceber isso. Onde é que estás a correr?» «0 rapaz... a aldeia ... »

«Estás a ir para a aldeia?»

«Não faço ideia. julgo que sim.»

«Julgas que sim? Chris, onde é que tu estás?»

Foi nessa altura que Chris ouviu um estalar de ramos atrás dele, os berros dos homens e o relinchar dos cavalos.

Os cavaleiros vinham atrás dele. E deixara uma pista de ramos partidos e de pegadas na lama. Era fácil segui-lo.

Merda. Chris correu mais depressa, esforçando-se até ao limite das suas forças. E de repente verificou que o rapaz já não estava visível à sua frente.

Parou, arquejante, e olhou à sua volta. Procurando. Desaparecido.

O rapaz desaparecera.

Chris estava sozinho na floresta. E os cavaleiros aproximavam-se.

Na vereda enlameada sobranceira ao mosteiro, Marek e Kate detiveram-se escutando através dos auscultadores. Agora havia apenas silêncio; Kate deu uma palmada no auricular, numa tentativa de ouvir melhor. «Não consigo ouvir nada.»

«Pode estar fora de alcance»I disse Marek

«Porque é que ele vai para a aldeia? Parece que está a seguir o rapaz», respondeu ela. «Porque é que ele havia de fazer uma coisa daquelas?»

Marek olhou na direcção do mosteiro. Do ponto onde se encontravam não ficava a mais de dez minutos de caminhada. «Provavelmente o Professor está exactamente ali. Podíamos limítarmo-nos a pegar nele e a regressar a casa. Deu um pontapé num cepo irritadamente. «Teria sido tão fácil!»

«Mas agora já não é», disse Kate.

Um crepitar agudo de estática nos auriculares fez com que estremecessem. Ouviram novamente Chris que arquejava.

Marek perguntou: «Chris, estás a ouvir?» «Não posso... agora não posso falar.» Falava num sussurro. E parecia aterrorizado.

«Não, não, não!» sussurrou o rapaz, surgindo do meio de um conjunto de ramos de uma enorme árvore. Surgira de repente, tendo finalmente piedade de Chris enquanto este no solo rodava em círculos, dominado pelo pânico. E fizera-lhe um sinal para que trepasse para a árvore.

Chris tentava agora trepar para a árvore, procurando empoleirar-se nos ramos mais baixos, com a ajuda das pernas apoiadas no tronco. Mas o modo como o estava a fazer deixou o rapaz preocupado.

«Não, não! Mãos! Use apenas as mãos! «murmurou o rapaz, exasperado. «És burro - olha para as marcas que fizeste no tronco com os pés.» Pendurado de um ramo, Chris olhou para baixo. O rapaz tinha razão.

Havia vestígios de lama muito nítidos na casca da árvore.

«Pela Santa Cruz, estamos perdidos», gritou o rapaz, balançando sobre a cabeça de Chris e deixando-se cair agilmente no solo.

«Que é que estás a fazer?» perguntou Chris.

Mas o rapaz já estava a correr, através dos espinheiros, movendo-se de árvore para árvore. Chris deixou-se cair no solo e foi atrás dele.

O rapaz resmungava irritadamente para consigo próprio enquanto inspeccionava os ramos de cada árvore. Aparentemente procurava uma árvore de grande porte com ramos relativamente baixos; não lhe agradava nenhuma. O som dos cavaleiros ouvia-se cada vez mais alto.

Dentro em breve haviam percorrido cerca de cem metros ou talvez mais, atingindo uma área de pinheiros nodosos e de baixo porte. Era uma zona mais exposta e com mais sol porque havia menos árvores à sua direita e foi então que Chris se apercebeu de que estavam a correr ao longo da beira de uma falésia sobranceira à cidade e ao rio. O rapaz afastou-se rapidamente da zona iluminada pelo sol, voltando à floresta mais escura. De repente encontrou uma árvore que lhe agradou e fez um sinal a Chris para se aproximar. «Sobe tu primeiro. E nada de pés!»

O rapaz flectiu os joelhos, entrecruzou os dedos das mãos e contraiu os músculos do corpo, procurando apoiar-se. Chris tinha a sensação de que o rapaz era demasiado frágil para suportar o seu peso, mas o rapaz abanou a cabeça impacientemente. Chris colocou o pé nas mãos do rapaz e fazendo um esforço agarrou o ramo mais baixo. Com a ajuda do rapaz continuou a elevarse até que, com um resmungo final conseguiu empoleirar-se definitivamente, apoiado no estômago, dobrado sobre o ramo. Olhou para baixo na direcção do rapaz, que lhe disse entre dentes: «Mexe-te!» Com um esforço Chris colocou-se primeiro de joelhos para em seguida se levantar, ficando em pé sobre o ramo. Mais acima o ramo seguinte estava perfeitamente ao seu alcance, pelo que continuou a trepar.

Mais abaixo o rapaz deu um salto no ar, agarrou o ramo, e elevou-se rapidamente. Embora delgado, era surpreendentemente forte, movendo-se de ramo para ramo com segurança. Chris encontrava-se agora a cerca de seis metros acima do solo. Os braços ardiam-lhe, arquejava enquanto subia, mas continuava a trepar de ramo em ramo.

O rapaz agarrou-lhe no calcanhar, o que o fez imobilizar-se. Lentamente, con, todo o cuidado, olhou para baixo por cima do ombro, e viu o rapaz rígido no ramo logo abaixo. Em seguida Chris ouviu um curto relincho de um cavalo e verificou que o som estava muito próximo.

Mesmo muito próximo.

No terreno que ficava em baixo, seis cavaleiros moviam-se lentamente e avançavam em silêncio. Ainda se encontravam a uma certa distância, visíveis intermitentemente através de aberturas na folhagem. Quando um cavalo relinchou, o seu cavaleiro inclinou-se para a frente para lhe dar uma palmada no pescoço, tentando acalmá-lo.

Os cavaleiros sabiam que estavam muito próximo da sua presa. Inclinavam-se sobre as selas, inspeccionando o solo, olhando de ambos os lados, Felizmente encontravam-se agora na zona dos pinheiros nodosos de baixo porte; não havia nenhuma pista visível.

Comunicando com gestos das mãos, foram-se afastando uns dos outros enquanto avançavam. Agora formavam uma linha, passando debaixo da árvore em ambos os lados. Chris susteve a respiração. Se olhassem para cima...

Mas não o fizeram.

Continuaram em frente, embrenhando-se na floresta, e finalmente um deles falou em voz alta. Era o cavaleiro com a pluma negra no elmo. A sua viseira estava erguida.

«já chega. Escaparam-se de nós.» «Como? Saltando a falésia?»

O cavaleiro abanou a cabeça. «A criança não é tão tolo como se possa julgar.» Chris viu que o seu rosto era moreno: pele escura e olhos escuros. «Nem se pode dizer que ainda continue a ser uma criança, meu Senhor.» «Se se deixou avistar foi por engano. Não podia ser de outra maneira. Mas

não há dúvida de que falhámos. Voltemos por onde viemos.» «Sim, meu Senhor.»

Os cavaleiros voltaram as montadas e começaram a percorrer o caminho inverso. Passaram mais uma vez debaixo da árvore continuando a afastar-se, ainda bem espaçados, na direcção da luz do sol.

«Talvez com melhor luz se consiga encontrar a sua pista.» Chris deixou escapar um longo suspiro de alívio.

O rapaz que se encontrava mais abaixo deu-lhe uma sapatada na perna e acenou com a cabeça como se quisesse dizer, Bom trabalho. Esperaram até que os cavaleiros se encontrassem a mais de cem metros, quase fora de vista. Então o rapaz deslizou calmamente para o solo, seguido a custo por Chris.

já no solo, Chris viu os cavaleiros que se afastavam. Estavam a chegar à árvore com os vestígios de lama. O cavaleiro negro passou sem notar nada. Então o seguinte...

O rapaz agarrou-lhe no braço, puxando-o para se afastarem, desaparecendo entre a vegetação rasteira.

Foi então que: «Sir Guy! Vede aqui! A árvore! Estão na árvore!» Um dos cavaleiros notara.

Merda. Os cavaleiros andavam em círculo, olhando para o topo da árvore. O cavaleiro negro voltou atrás, céptico. «Ab sim? Mostrai lá.»

«Não os estou a ver lá em cima, meu Senhor.»

Os cavaleiros iam rodando, olhando para trás, olhando em todas as direcções, olhando para o sítio de onde tinham vindo...

E viram-nos «Estão alí!»

Os cavaleiros carregaram.

O rapaz corria o mais que podia. «Santo Deus, agora é que estamos perdidos», disse ele, olhando por cima do ombro enquanto seguiam em frente. «Sabes nadar?»

«Sei nadar?» exclamou Chris.

Era evidente que sabia nadar. Mas não era nisso em que agora estava a pensar. Porque agora corriam o mais que podiam, em terreno plano - na direcção da clareira, na direcção da abertura entre as árvores.

Na direcção da falésia.

O terreno descia em declive, primeiro suavemente, em seguida mais abruptamente. A cobertura no terreno tornava-se cada vez menos densa com manchas expostas de pedra calcárea de um amarelo branco. A luz do sol ofuscava.

O cavaleiro negro rugiu qualquer coisa. Chris não conseguiu compreender. Finalmente chegaram à berma da clareira. Sem hesitação o rapaz saltou no espaço.

Chris hesitou, não sentindo vontade de o seguir. Olhando para trás, viu os cavaleiros a carregarem sobre ele, brandindo as espadas desembainhadas. Não tínha escolha.

Chris voltou-se e correu na direcção da berma da falésia.

Marek estremeceu quando ouviu o grito de Chris nos auriculares. O grito inicialmente foi alto para em seguida terminar com um resmungo e um barulho de queda.

Um impacto.

Permaneceu no carreiro, junto de Kate, escutando. Esperando. Não ouviram mais nada. Nem mesmo o crepitar da estática. Absolutamente nada.

«Achas que está morto?» perguntou Kate.

Marek não lhe respondeu. Caminhou rapidamente na direcção do corpo de Gomez, debruçou-se sobre ele e começou a procurar na lama. Anda cá», disse ele. «Ajuda-me a procurar esse marcador sobressalente.»

Procuraram durante alguns minutos, e em seguida Marek agarrou a mão de Gomez, que já adquirira uma cor cinzento pálido, com os músculos a endurecerem. Levantou-lhe o braço, sentindo a frialdade da pele, e voltou-lhe o tronco. O corpo chapinhou de novo na lama.

Foi então que notou que Gomez tinha no pulso uma pulseira de cordão entrelaçado. Marek não a notara antes; parecia fazer parte do seu traje daquela época. Era evidente que estava completamente errado para aquele período. Até mesmo uma modesta camponesa usaria uma pulseira de metal, de pedra gravada ou de madeira, se chegasse a usar qualquer coisa. Tratava-se de uma patetice híppy dos tempos modernos.

Marek tocou-lhe com curiosidade e sentiu-se surpreendido ao verificar que estava rígida, fazendo lembrar cartão. Voltou-a no pulso, procurando a abertura, e no cordão entrelaçado abriu-se uma espécie de fecho, verificando que a pulseira ocultava uma espécie de temporizador electrónico, semelhante a um relógio de pulso.

O tempo indicava 36:10:37. E a contagem era regressiva.

Soube de imediato do que é que se tratava. Era um contador de tempo decorrido para a máquina, mostrando quando tempo ainda tinham. Inicialmente tinham trinta e sete horas, e naquele momento já tinham perdido cerca de cinquenta minutos.

Devemos ficar com isto, pensou. Desamarrou-lhe a pulseira do braço e em seguida prendeu-a no seu próprio pulso. Voltou a fechar a pequena tampa. «Temos um temporizador», disse Kate. «Mas ainda não há marcador.» Procuraram ainda durante cerca de cinco minutos. E, finalmente, relutantemente, Marek teve que admitir a dura verdade.

Não havia marcador. E sem marcador as máquinas não voltariam. Chris estava certo: tinham caído numa armadilha.

36:28:04

Na sala de controlo um alarme tocava insistentemente. Ambos os técnicos se levantaram das suas consolas e saíram da sala. Stern sentiu que Gordon o agarrava firmemente pelo braço.

«Temos que ir», disse Gordon. «0 ar está contaminado com ácido hidrofluorídrico. A estação de trânsito está tóxica. E dentro em pouco os fumos começarão a subir até aqui.» Começou a conduzir Stern para fora da sala de controlo.

Stern olhou para trás para o ecrã, vendo a confusão das vigas libertando fumo do lado da zona de trânsito. «Mas o que é que acontece se eles tentarem regressar quando toda a gente desapareceu daqui?»

«Não se preocupe», disse Cordon. «Isso não pode acontecer. Os destroços fazem disparar os infravermelhos. Os sensores necessitam de um espaço de seis pés em todas as direcções, recorda-se? Dois metros. Não o têm. Desse modo os sensores não permitirão que as máquinas regressem. Só será possível quando toda a área estiver desimpedida.»

«Quanto tempo é que vai demorar a desimpedir a área?» «Primeiro temos que mudar o ar na cave.»

Gordon levou Stern de volta pelo longo corredor que conduzia ao elevador principal. Havia imensa gente no corredor, abandonando todos a área. As suas vozes ecoavam no túnel.

«Mudar o ar na cave?» perguntou Stern. «É um volume enorme. Quanto tempo é que isso vai durar?»

Gordon respondeu: «Em teoria, leva cerca de nove horas.» «Em teoria?»

«Nunca o fizemos antes», disse Gordon. «Mas é evidente que temos capacidade para o fazer. As grandes ventoinhas devem entrar em acção a qualquer instante.»

Alguns segundos mais tarde um som atroador encheu o túnel. Stern sentiu uma rajada de vento que lhe comprimia as roupas contra o corpo.

«E depois de terem mudado o ar? O que é que vem a seguir?» «Reconstruímos o cais de trânsito e esperamos que eles regressem, respondeu Gordon. «Exactamente como tínhamos planeado que eles fizessem.»

«E se eles tentarem regressar antes de estarmos prontos para os receber?» «Não há problema, David. A máquina limita-se a recusar. Faz com que regressem ao ponto onde se encontravam. Pelo menos para já.»

«Sendo assim estão encalhados,» disse Stern.

«Para Já», disse Gordon. «Sim. Estão encalhados. E não há nada que a gente consiga fazer.»

36:13:17

Chris Hughes correu para a berma da falésia e lançou-se no espaço, gritando, braços e pernas agitando-se descontroladamente à luz do sol. Viu o Dordogne, sessenta metros abaixo, serpenteando na paisagem verde. Era demasiado longe para um salto. Sabia que o rio era pouco profundo. Não havia a menor dúvida de que ia morrer.

Mas foi então que viu que a face da rocha não era cortada a direito. Havia uma plataforma de terreno cerca de seis metros abaixo, saindo da parte superior da falésia. Era rocha nua em declive com uma cobertura pouco densa de árvores raquíticas e arbustos.

Aterrou na plataforma, caindo de lado, com o impacto a tirar-lhe o ar dos pulmões. Imediatamente começou a rolar na direcção da berma sem conseguir parar. Tentou travar o movimento agarrando-se desesperadamente aos pequenos arbustos, mas eram todos muito fracos e ficavam-lhe nas mãos. Enquanto rolava na direcção da berma teve consciência de que o rapaz procurava agarrá-lo, mas Chris não conseguiu segurar-se aos seus braços estendidos. Continuou a rolar com o seu mundo completamente fora de controlo. Agora o rapaz estava atrás dele com um ar horrorizado na face. Chris sabia que ia rolar até à berma; ia cair...

Com um resmungo agarrou-se desesperadamente a uma árvore. Sentiu uma dor aguda no estômago que em seguida se espalhou por todo o corpo. Por momentos não soube onde é que se encontrava; sentia apenas dor. O mundo era de um branco esverdeado. Começou a recuperar lentamente.

A árvore travara a sua descida, mas ainda continuava a não ser capaz de respirar. A dor era intensa. Via milhões de estrelas diante dos olhos, em seguida desmaiou e, finalmente, viu que as pernas pendiam da berma da falésia.

E a moverem-se.

A moverem-se no sentido descendente.

A árvore era um pequeno pinheiro flexível e o seu peso estava a vergá-lo lentamente, muito lentamente. Sentiu que escorregava ao longo do tronco. Era incapaz de travar. Agarrou-se com todas as forças, apertando-o firmemente. E funcionou: já não deslizava. Trepou ao longo do tronco, no seu caminho de regresso à rocha.

Então, horrorizado, viu que as raízes da árvore se começavam a libertar das fendas da rocha, uma por uma na sua cor pálida que exibiam à luz do sol. Era apenas uma questão de tempo até que todo o tronco ficasse solto.

Então sentiu um puxão no colarinho e viu o rapaz que se debruçava sobre ele, puxando-o, para que se pusesse de pé, O rapaz parecia exasperado. «Vamos, mexe-te.»

«Santo Deus», disse Chris. Trepou para uma rocha plana, arquejando violentamente. «Dá-me só um minuto ... »

Uma seta zumbiu-lhe junto de uma orelha como uma bala. Sentiu o vento da sua passagem. Ficou espantado com o poder dela. Espicaçado pelo medo, arrastou-se ao longo da plataforma, inclinado para a frente, saltando de árvore em árvore. Outra flecha zumbiu por entre as árvores.

Na falésia, lá em cima, os cavaleiros olhavam na direcção deles. O cavaleiro negro gritou, «Parvo! ldiota!» e esbofeteou o arqueiro irritadamente, tirando-lhe violentamente o arco das mãos. já não havia mais flechas.

O rapaz puxou Chris pelo braço. Chris não fazia a menor ideia de onde conduzia a vereda ao longo da falésia, mas o rapaz parecia ter um plano. Acima deles os cavaleiros deram a volta, dirigindo-se de regresso aos bosques.

Agora a plataforma transformara-se num estreito rebordo com pouco mais de trinta centímetros de largura que contornava uma curva da falésia. Abaixo do rebordo a falésia caía a pique para o rio. Chris começou a olhar para o rio, mas o rapaz agarrou-o pelo queixo, obrigando-o a levantar a cabeça. «Não olhes para baixo. Anda.» O rapaz comprimiu-se contra a superfície da falésia, abraçando a rocha e continuou a caminhar cautelosamente ao longo do rebordo. Chris seguiu o seu exemplo, ainda arquejante. Sabia que se hesitasse mesmo por um instante o pânico o iria dominar. O vento empurrava-lhe O vestuário, tentando afastá-lo da falésia. Comprimiu o queixo contra a rocha morna, agarrando-a com as pontas dos dedos, combatendo o pânico que sentia.

Viu o rapaz desaparecer para lá da curva. Chris seguiu em frente. O canto fazia um ângulo agudo e o rebordo havia caído, deixando uma falha. Tinha que atravessar cuidadosamente, mas ao passar a curva suspirou com alívio. Viu que a falésia terminava ali numa longa encosta verde arborizada descendo até ao rio. O rapaz acenava na sua direcção. Chris continuou em frente, juntando-se ao rapaz.

«A partir daqui já é mais fácil.» O rapaz começou a descer, com Chris atrás dele. Nesse mesmo instante verificou que a descida não era tão suave como parecera à primeira vista. Estava escuro debaixo das árvores e o terreno era íngreme e lamacento. O rapaz escorregou, deslizou ao longo da pista lamacenta e desapareceu na floresta mais abaixo. Chris continuou a escolher cuidadosamente o seu caminho de descida, agarrando ramos para se apoiar. Em seguida também ele perdeu o pé, estatelou-se na lama caindo de lado e começou a deslizar. Por uma razão qualquer veio-lhe à mente: Sou um estudante graduado por Yale. Sou um historiador especializado na história da tecnologia. Era como se estivesse a tentar segurar uma identidade que desaparecia rapidamente no inconsciente, como um sonho que o fizera acordar e que agora estava a começar a esquecer.

Deslizando agora de cabeça para baixo, Chris chocou com as árvores, sentiu ramos que lhe arranhavam a cara, mas não conseguiu fazer nada para travar a sua descida. Foi descendo a colina, cada vez mais depressa.

Com um suspiro Marek pôs-se de pé. Não havia qualquer marcador no corpo de Gomez. Tinha a certeza disso. Kate estava ao seu lado mordendo o lábio. «Sei que ela disse que havia um sobressalente. Tenho a certeza disso.» «Não sei onde é que possa estar», disse Marek.

Inconscientemente Kate começou a coçar a cabeça, mas sentiu de imediato a peruca e a dor da pancada na cabeça. «Esta porra desta peruca ... » Deteve-se e ficou a olhar para Marek.

E então afastou-se pelo bosque, caminhando ao longo da vereda. «Para onde é que foi?» perguntou.

«0 quê?»

«A cabeça dela.»

Encontrou-a momentos depois, surpreendida por lhe parecer tão pequena. uma cabeça sem um corpo não parecia tão grande como isso. Tentou não olhar para o pescoço cortado.

Lutando contra os vómitos baixou-se e voltou a cabeça, ficando a olhar para o rosto cinzento para os olhos sem vida. A língua saía um pouco da boca aberta. As moscas zumbiam enchendo-lhe a boca.

Retirou-lhe a peruca e viu de imediato o marcador de cerâmica. Estava colado com fita gomada à rede interna da peruca. Soltou-o da peruca.

«já o tenho», disse ela.

Kate segurava-o na mão, voltando-o de um lado para o outro. Viu o botão na parte lateral do marcador, onde se via uma pequena luz. O botão era tão pequeno e estreito que só podia ser pressionado com uma unha.

E pronto. Não havia dúvidas de que o tinham encontrado. Marek aproximou-se e ficou a olhar para o marcador de cerâmica. «Parece que é ele», disse.

«Sendo assim podemos regressar», disse Kate. «Quando quisermos.» «Queres regressar?» perguntou-lhe Marek.

Ela pensou durante alguns instantes. «Viernos aqui buscar o Professor», respondeu. «E acho que é isso que devemos fazer.»

Marek sorriu.

E nesse instante ouviram o troar de cascos de cavalos, mergulhando nos arbustos momentos antes de seis cavaleiros de tom escuro passarem galopando na vereda lamacenta, dirigindo-se para o rio mais abaixo.

Chris avançava a custo, enterrado até aos joelhos nos terrenos pantanosos da margem do rio. A lama colava-se-lhe ao rosto, ao cabelo, às roupas. E estava coberto com tanta lama que sentia o seu peso. Viu mais à frente o rapaz ja a chapinhar na água, lavando-se.

Depois de ter ultrapassado o último maciço de arbustos da margem do rio, Chris deslizou para o rio. A água estava fria como gelo, mas não se importou. Meteu a cabeça debaixo de água, passou a mão pelos cabelos, esfregou o rosto, tentando tirar toda a lama que o cobria.

Entretanto o rapaz já havia trepado para a margem oposta, e sentara-se ao sol num afloramento rochoso. O rapaz disse qualquer coisa que Chris não conseguiu ouvir, mas os seus auriculares traduziram: «Não tiras as roupas para tomares banho?»

«Porquê? Tu não o fizeste.»

ouvindo isto o rapaz encolheu os ombros: «Mas tu podes, se quiseres.» Chris nadou para o outro lado e trepou para a margem. As roupas ainda

estavam cheias de lama e sentiu que estava a tiritar agora que saíra da água. Tirou as roupas conservando apenas o cinto e os calções de linho, lavou a roupa exterior no rio e estendeu-as nas rochas para secar. O corpo estava coberto de arranhões, equimoses e vergões. Mas a pele )à estava a secar e o sol fazia-o aquecer. Voltou o rosto para o céu e fechou os olhos. Ouviu o canto suave das mulheres que trabalhavam nos campos. Ouviu os pássaros. O suave marulhar do rio nas margens. E por momentos sentiu uma paz que descia sobre ele que era mais profunda, e mais completa do que qualquer coisa que alguma vez tivesse sentido na sua vida.

Deitou-se nas rochas e deve ter adormecido durante alguns minutos, porque ao acordar ouviu :

«Howbite thou speakstfiolsimple ohcopan, eek invích array thouart. Essay thousooth Earisher?»

O rapaz estava a falar. Um instante depois ouviu a pequena voz no auricular traduzindo. «0 modo como falas claramente com o teu amigo e o modo como te vestes. Diz a verdade. És Irlandês, não és?»

Chris acenou lentamente com a cabeça, pensando naquilo que ele lhe dissera. Aparentemente o rapaz ouvira-o falar com Marek quando estavam na vereda e concluíra que eram Irlandeses. Não havia qualquer mal em que ele pensasse daquela maneira.

«Aye,» respondeu.

«Aie?», repetiu o rapaz. Formou a sílaba lentamente, puxando os lábios ,para trás e mostrando os dentes. «Aie?» A palavra parecia estranha para ele. Chris pensou: «Será que não compreende «aye?». Tinha que tentar qualquer outra coisa. Disse, «Oui?»

«Ouz... ou/... » O rapaz também parecia confuso com esta palavra. De repente o rosto ilumínou-se. «Ouríe ? Seyngthou ourie» e a tradução veio «Esfarrapado? Estás a dizer esfarrapado?»

Chris abanou a cabeça numa negativa. «Estou a dizer sím» Estava a ficar tudo muito confuso.

«Yezz?» disse o rapaz falando em tom sibilado. «Yes», respondeu Chris, acenando com a cabeça. «Ah. Earisher.» A tradução veio: «Ab. Irlandês.» « Yes. »

« Wee sayen yeaso. Oriwis, tho usay trem »

Chris respondeu: « Thousay trew. » O seu auricular traduziu as suas próprias palavras: «Tu falas a verdade.»

O rapaz acenou com a cabeça, satisfeito com a resposta. Sentaram-se em silêncio por momentos. Olhou para Chris, mirando-o de alto a baixo. «Não há dúvida de que és pacífico.»

Pacífico. Chris encolheu os ombros. Evidentemente que era pacífico. De certeza que não era um combatente. «Thousay trew.»

O rapaz acenou com a cabeça judiciosamente. «Também penso o mesmo, O teu comportamento diz isso precisamente embora só arranjes problemas,> Chris não respondeu. Não tinha a certeza daquilo que queria dizer. Como é que te chamas?», perguntou-lhe o rapaz.

Christopher Flughes.»

«Ah. Christopher de Flewes», disse o rapaz falando lentamente. Parecia estar a interpretar o nome de uma maneira que Chris não conseguia compreender. «Onde é que está Hewes? Na terra da Irlanda?»

« Thousay trew. »

Outro breve silêncio caiu sobre eles enquanto continuavam sentados ao sol. «És um cavaleiro?» perguntou o rapaz finalmente.

«Não.» «Então és um escudeiro», disse o rapaz acenando com a cabeça. «Deve ser isso.» Voltou-se para Chris. «E de que idade? Vinte e um anos?»

«Bastante próximo disso. Vinte e quatro anos.»

Aquilo que ele lhe disse fez com que o rapaz pestanejasse surpreendido. Chris pensou para consigo «0 que é que haverá de errado em ter vinte e quatro anos?»

«Então, meu bom escudeiro, sinto-me muito contente pelo teu auxílio, por me teres salvo de Sir Guy e do seu bando.» Apontou para o outro lado do rio onde seis cavaleiros de tons escuros se encontravam junto da margem a observá-los. Estavam a dar de beber aos cavalos mas não tiravam os olhos de Chris e do rapaz.

«Mas eu não te salvei», disse Chris. «Tu é que me salvaste.» «Não?» Outro olhar espantado.

Chris suspirou. Aparentemente esta gente não usava um certo tipo de linguagem. Era difícil exprimir até o mais simples pensamento; achou que o esforço era esgotante. Mas tentou mais uma vez: «E no entanto eu não te salvei, tu é que salvaste.»

«Bom escudeiro, és muito humilde», respondeu o rapaz. «Devo-te a minha vida e terei muito prazer em cuidar das tuas necessidades quando chegarmos ao castelo.»

Chris disse: «0 castelo?».

Cautelosamente, Kate e Marek saíram do bosque, dirigindo-se para o mosteiro. Não avistaram qualquer sinal dos cavaleiros que haviam descido a pista a galope. A cena era pacífica; directamente à frente deles viam-se as culturas do mosteiro, demarcadas por pequenos muros de pedra. Num canto de uma das leiras havia um alto monumento hexagonal, com ornatos esculpidos fazendo lembrar uma igreja Gótica.

«Isto é uma monoie?», perguntou ela.

«Muito bem, disse Marek. «Sim, é um marco miliário, ou um marco geodésico. Podes vê-los por todos os lados.»

Foram caminhando por entre as leiras, dirigindo-se para a muralha com cerca de três metros de altura que cercava todo o mosteiro. Os camponeses que se encontravam nos campos não lhes prestaram qualquer atenção. No rio uma barca ia descendo lentamente a corrente, a carga coberta com tecido. Um barqueiro de pé à proa cantava alegremente.

Junto da muralha do mosteiro erguiam-se as cabanas dos camponeses que trabalhavam nos campos. Para lá das cabanas via-se uma pequena porta na muralha. O mosteiro abrangia uma área tão grande que tinha portas nas quatro faces da muralha. Aquela não era a entrada principal, mas Marek pensou que era melhor tentarem ali primeiro.

Moviam-se por entre as cabanas quando ouviu o resfolegar de um cavalo e a voz tranquilizadora de um moço de estrebaria. Marek estendeu a mão, fazendo sinal a Kate para se deter.

«0 que é que foi?» murmurou ela.

Apontou. A cerca de vinte metros mais à frente, meio ocultos atrás de uma das cabanas, encontravam-se cinco cavalos seguros por um moço de estrebaria. Os cavalos encontravam-se ricamente ajaezados, com selas forradas de veludo vermelho lavrado a prata. Flâmulas de tecido vermelho caíam dos flancos.

«Não são cavalos de lavoura», disse Marek. Mas não viu os cavaleiros em parte nenhuma.

«0 que é que fazemos?», perguntou Kate.

Chris Hughes seguia o rapaz a caminho da aldeia de Castelgard quando de súbito os seus auriculares crepitaram. Ouviu Kate que dizia: «0 que é que fazemos?» e Marek respondendo: «Não tenho a certeza.»

Chris perguntou: «Encontrou o Professor?»

O rapaz voltou-se, olhando para ele. «Está a falar comigo, escudeiro?» «Não rapaz», respondeu Chris. «Estou a falar comigo.»

«Comigo?», repetiu o rapaz abanando a cabeça. «Fala de um modo difícil de compreender.»

Nos auriculares Marek disse: «Chris. Onde é que raio é que estás?»

«A caminho do castelo», disse Chris em voz alta. «Neste belo dia.» Olhou para o céu enquanto falava, tentando dar a ideia de que estava a falar consigo. Ouviu Marek que dizia: «Porque é que vais para aí? Ainda estás com o rapaz?»

«Sim, encantador.»

O rapaz voltou a olhar para trás, com um ar preocupado no rosto. «Estás a falar para o ar? Tens a certeza de que te sentes bem?»

«Sim», disse Chris, «sinto-me bem. Só quero que os meus companheiros se juntem a mim no castelo.»

«Porquê?» perguntou Marek nos auriculares.

«Tenho a certeza de que não demora nada a juntarem-se a ti», disse o rapaz. «Fala-me dos teus companheiros. Também são Irlandeses? São de boa família como tu, ou são servos?»

Nos auriculares Marek perguntou: «Porque é que lhe disseste que és de boas famílias.»

«Porque é um modo de me descrever.»

«Chris, de boa família significa que és nobre», disse Marek. «Significa que és de nascimento nobre. Vais atrair as atenções e vão fazer-te perguntas embaraçosas sobre a tua família às quais não sabes responder.»

«Oh», disse Chris.

«Tenho a certeza de que te descreve», concordou o rapaz. «E os teus camaradas também? Também são de boas famílias?»

«É verdade aquilo que dizes», respondeu Chris. «Os meus companheiros também são de boas famílias.»

«Chris, porra», disse Marek nos auriculares. «Não te iludas com o que não compreendes, Estás a pedir problemas. E se continuas por esse caminho, é isso mesmo que vais arranjar.»

junto das cabanas dos camponeses, Marek ouviu Chris a dizer, «Limita-te a ir buscar o Professor, está bem?» e em seguida o rapaz ouviu Chris fazer outra pergunta, mas foi obscurecida por um crepitar de estática.

Marek voltou-se e olhou para o outro lado do rio na direcção de Castelgard. Conseguia avistar o rapaz caminhando um pouco à frente de Chris.

«Chris», disse Marek. «Estou a ver-te. Dá meia volta e vem-te embora. Vem ter aqui connosco. Temos que permanecer juntos.»

«Aí é que está o problema.»

«Porquê», disse Marek num tom frustrado.

Chris não lhe respondeu directamente. «E quem, meu bom senhor, poderão ser os cavaleiros na outra margem?» Aparentemente estava a falar com o rapaz. Marek desviou o olhar, viu cavaleiros montados na margem do rio, deixando que os cavalos bebessem, ao mesmo tempo que os viam afastarem-se. «É Sir GLiy de Malegant, a quem chamam Guy Cabeça Negra, Tem-se conservado ao serviço do meu Senhor Oliver. Sir Guy é um cavaleiro de renome

- pelos seus inúmeros actos de assassínio e de vilania.»

Enquanto o ouvia Kate disse: «Não pode regressar aqui por causa daqueles cavaleiros montados.»

«Estás a falar verdade», disse Chris.

Marek abanou a cabeça. «Afinal de contas, nunca se devia ter separado de nós.»

O ranger de uma porta atrás deles fez com que Marek se voltasse. Viu o vulto familiar do Professor que saía pela porta lateral da muralha do mosteiro surgindo à luz do sol. Estava sozinho.

35:31:11

Edward Johnston envergava um gibão em azul escuro e calções negros; as roupas eram lisas, praticamente sem qualquer decoração ou bordado, dando-lhe um ar conservador de académico. Não havia dúvida de que passava perfeitamente por um eclesiástico de Londres numa peregrinação, pensou Marek, Provavelmente teria sido dessa maneira que Geoffrey Chaucer, outro eclesiástico da época, se teria vestido na sua própria peregrinação.

O Professor colocou-se descuidadamente ao sol da manhã, mas cambaleava um pouco. Correram para ele e viram que estava a arquejar. As suas primeiras palavras foram: «Vocês têm um marcador?»

«Temos», respondeu Marek. «São só vocês os dois?»

«Não, Chris também veio. Mas não está aqui.»

Johnston abanou a cabeça num pequeno acesso de irritação. «Muito bem, o que se está a passar é o seguinte. Oliver está em Castelgard» - fez um aceno com a cabeça para o outro lado do rio - «mas quer mudar-se para La Roque antes que Arnaut chegue. O seu grande receio é a existência dessa passagem secreta que dá acesso a La Roque. Oliver quer saber onde é que fica a passagem. Anda toda a gente louca a tentar descobrir onde é que ela fica porque tanto OliVer como Arnaut a querem descobrir rapidamente. É a chave de tudo. As pessoas aqui pensam que eu sou sábio. O Abade pediu-me para investigar documentos antigos, e eu achei ... »

A porta atrás deles abriu-se e soldados envergando túnicas em castanho avermelhado e cinzento precipitaram-se para eles. Os soldados algemaram Marek e Kate, derrubando-os violentamente, e Kate quase que perdeu a peruca.

`MaS eram cuidadosos com o Professor, nunca lhe tocando, marchando de anbos os lados dele. Os soldados pareciam respeitosos, como se constituíssem üma escolta de protecção. Colocando-se de pé e sacudindo o pó, Marek teve a sensação de que os soldados haviam recebido ínstruções para não o ferirem.

Marek observou-os em silêncio enquanto Johnston e os soldados montavam a cavalo e iniciavam a marcha.

«0 que é que fazemos?»

o Professor deu uma pancadinha no lado da cabeça. Ouviram-no dizer numa cantilena, como se estivesse a rezar: «Sigam-me. Tentarei que nos conservem juntos. Vão recuperar Chris.»

35:25:18

Continuando a seguir o rapaz, Chris chegou à entrada de Castelgard: portas duplas de madeira, fortemente reforçadas com chapas de ferro. As portas mantinham-se agora abertas de par em par, guardadas por um soldado de túnica em tons de bordô escuro e cinzento. O guarda cumprimentou-os dizendo: «Ides montar uma tenda? Fazer uma venda de tecidos? São cinco soldos para vender no mercado num dia de torneio.»

«Non sumus mercatores», disse o rapaz. «Não somos mercadores.»

Chris ouviu o guarda responder, «Anthoubeest, ye schulepayen. Quinquesols maÍntenant, aut decem postea. » Mas a tradução não surgiu imediatamente nos auriculares; chegou à conclusão de que o guarda estava a falar uma estranha mistura de Inglês, Francês e Latim.

Em seguida ouviu: «Se ides entrar, tendes de pagar. Cinco soldos agora ou dez quando saírdes.»

O rapaz abanou a cabeça. «Estás a ver artigos de mercador?» «Herkle, non.» Nos auriculares: «Por Hércules, não vejo.» «Então já tens a tua resposta.»

Apesar da sua idade o rapaz falava com firmeza, como se estivesse acostUmado a dar ordens. O guarda limitou-se simplesmente a encolher os ombros e a afastar-se. O rapaz e Chris passaram através da porta e entraram na aldeia.

Logo a seguir às muralhas viam-se diversas casas agrícolas e campos vedados. A área cheirava fortemente a suínos. Seguiram o seu caminho passando por casas cobertas de colmo e cercados COM porcos, subiram os degraus de pedra de uma escada íngreme em espiral, vendo-se edifícios de pedra de ambos os lados. Agora estavam na própria cidade.

A rua era estreita e estava cheia de gente, e os edifícios com dois andares, o último saliente, de tal modo que a luz do sol não conseguia chegar ao solo. os edifícios tinham todos lojas abertas no rés-do-chão: um ferreiro, um carpinteiro que também fazia barris, um alfaiate e um carniceiro. O carniceiro, envergando um avental de oleado salpicado de sangue, estava a esquartejar nas pedras da rua, em frente da sua loja, um porco que ainda guinchava; circundaram o sangue que escorria e anéis de um intestino de cor pálida.

A rua estava barulhenta e cheia de gente, o odor quase dominando Chris, enquanto o rapaz o conduzia sempre em frente. Chegaram a uma praça com o pavimento em seixos, com um mercado coberto no centro. De volta às suas escavações, isto era apenas um campo. Fez uma pausa, olhando em volta, tentando comparar aquilo que sabia com aquilo que agora estava a ver.

Do outro lado da praça uma rapariga bem vestida, transportando um cesto com vegetais, precipitou-se na direcção do rapaz e disse preocupada: «Meu querido senhor, a vossa longa ausência humilhou profundamente Sir Damel.»

O rapaz parecia aborrecido por a ter visto. Respondeu com irritação: «Então diz ao meu tio que irei ter com ele brevernente.»

«Ficará muito contente com isso», disse a rapariga, e afastou-se rapidamente através de uma passagem estreita.

O rapaz conduziu Chris noutra direcção. Não fez qualquer referência a esta conversa, limitou-se a seguir em frente, resmungando consigo próprio. Chegavam agora a terreno aberto, directamente em frente do castelo. Era

um lugar cheio de brilho e de cor, com cavaleiros desfilando em parada montados nos seus cavalos, empunhando estandartes ondulantes. «Hoje há muitos visitantes», comentou o rapaz, «por causa do torneio.»

Directamente à frente deles via-se a ponte levadiça conduzindo ao castelo. Chris ergueu o olhar para as muralhas imponentes, para os altos torreões. Soldados patrulhavam as muralhas, observando as multidões que se encontravam em baixo. O rapaz conduziu-o em frente sem hesitação. Chris ouviu o som cavo do ecoar dos seus passos na madeira da ponte levadiça. Havia dois guardas à entrada. Sentiu o seu corpo ficar tenso quando se aproximou.

Mas os guardas não prestaram a menor atenção. Um deles acenou com a cabeça com um ar ausente; o outro encontrava-se de costas a raspar lama de uma das botas.

Chris estava surpreendido com a sua indiferença. «Não estão de guarda à entrada?»

«Porque é que haviam de estar!», exclamou o rapaz. «Ainda é de dia e não estamos debaixo de ataque.»

Três mulheres com as cabeças envoltas em pano branco, de modo a que só os rostos se destacassem, saíram da castelo carregando cestos. Mais uma vez os guardas praticamente nem sequer notaram. As mulheres saíram falando e rindo entre si - sem que ninguém se preocupasse.

Chris chegou à conclusão de que se encontrava confrontado com um desses anacronismos históricos, de tal modo incutidos que nunca ninguém chegara a pensar nisso. Os castelos eram praças fortes e tinham sempre Uma entrada que se podia defender - um fosso, ponte levadiça, etc. E toda a gente estava convencida de que a entrada se encontrava permanentemente defendida com o maior dos cuidados.

Mas, conforme o rapaz dizia, porque é que havia de ser assim? Em tempos de paz, o castelo era um atarefado centro social, com gente a entrar e a sair para ver o senhor, para entregar mercadorias. Não havia a menor razão para o guardar. Especialmente, conforme o rapaz dissera, durante o dia.

Chris deu por si a pensar em modernos edifícios de escritórios, que só tinham guardas à noite; durante o dia os guardas estavam presentes mas apenas para prestarem informações. E provavelmente era também isto que estes guardas estavam a fazer.

Por outro lado...

Ao entrar olhou de relance para os espigões do gradeamento de ferro da ponte levadiça. Ele sabia que aquele gradeamento podia ser baixado a qualquer momento. E quando isso acontecesse não havia qualquer entrada no castelo, Nem qualquer possibilidade de escapar.

Entrara no castelo com bastante facilidade. Mas não tinha muito a certeza de ser igualmente fácil sair.

Entraram num enorme pátio com as paredes todas em pedra. Havia ali muitos cavalos; soldados envergando túnicas em castanho avermelhado e cinzento, formando pequenos grupos, comiam a sua refeição do meio-dia. Viu passagens em madeira a grande altura acima dele, correndo ao longo das muralhas. Directamente à sua frente viu outro edifício com paredes de pedra de uma altura de cerca de três andares e torreões no topo. Era um castelo dentro do castelo. O rapaz conduziu-o para ele.

De um dos lados, uma porta abriu-se de repente. Um único guarda mascando uma peça de frango. O rapaz disse: «Vamos ver Lady Claire. Ela quer tomar este Irlandês ao seu serviço.»

«Pois que assim seja», resmungou o guarda, desinteressado; entraram. Chris viu uma arcada mesmo à sua frente, conduzindo ao grande átrio, onde se encontrava uma multidão de homens e mulheres que conversavam. Todos eles pareciam ricamente vestidos; as suas vozes ecoavam pelas paredes de pedra.

Mas o rapaz não lhe deu muitas oportunidades de olhar. Levou Chris por uma estreita escada em caracol que conduzia ao segundo andar, em seguida ao longo de um corredor em pedra e finalmente até a um conjunto de quartos.

Três criadas, todas vestidas de branco, precipitaram-se para o rapaz e beljaram-no. Pareciam muito aliviadas. «Pela graça de Deus, Minha Senhora, haveis retornado!»

Chris exclamou com assombro: «Minha Senhora?»

No próprio instante em que o disse o chapéu negro foi lançado para longe e os cabelos dourados caíram-lhe em cascata pelos ombros. Fez um pequeno gesto com a cabeça que se transformou numa vénia. «Lamento profundamente e peço o vosso perdão por este engano.»

«Quem sois vós?» disse Chris espantado.

«Chamam-me Claire.»

Ergueu-se da sua vénia e olhou-o directamente nos olhos. Viu que era mais velha do que aquilo que havia pensado, talvez com vinte e dois ou vinte e três anos. E muito bela.

Abriu a boca e não disse nada. Não fazia a menor ideia daquilo que havia de dizer ou de fazer. Sentia-se ridículo e embaraçado.

No silêncio que se seguiu uma das aias aproximou-se, fez uma vénia e disse: «Sabei que esta é a Lady Claire de Ehham, recentemente viúva de Sir Geoffrey de Etham, dona de grandes propriedades em Guyerme e Middlesex. Sir Geoffrey morreu de ferimentos recebidos em Poitiers e agora Sir Oliver - governador deste castelo - é o guardião da minha Senhora. Sir Oliver acha que ela se deve casar de novo, e escolheu Sir Guy de Malegant, um nobre bem conhecido nestas regiões. Mas a minha Senhora recusa este par.»

Claire voltou-se e lançou à rapariga um olhar de aviso. Mas a rapariga, sem o ter notado, continuou a palrar. «A minha Senhora diz a toda a gente que Sir Guy não tem os meios para defender as suas propriedades em França e em Inglaterra. Além disso Sir Oliver iria ter a sua comissão com este noivado, e Guy ... » «Ela i n e. »

«Minha Senhora», disse a rapariga afastando-se precipitadamente. Foi juntar-se às outras raparigas que murmuravam a um canto, aparentemente a censurá-la.

«Chega de conversa», disse Claire. «Aqui está o meu salvador deste dia, o Fidalgo Christopher de Hughes. Livrou-me dos ataques de Sir Guy, que pensou tomar pela força aquilo que não era capaz de conseguir livremente na corte.»

Chris interrompeu: «Não, não, não foi de modo nenhum isso que aconteceu ... »

Calou-se quando verificou que toda a gente olhava espantada para ele, de boca aberta e olhos arregalados.

«Acalmai-vos, ele fala de modo estranho», disse Claire, «porque vem de uma zona remota das terras do Eire. E é modesto, como compete a alguém de boas famílias. Foi ele que hoje me salvou, pelo que o irei apresentar ao meu guardião, depois de Christopher ter trajes convemientes.» Voltou-se para uma das aias. «0 nosso escudeiro-mor, o Senhor Brandon, não tem a mesma altura? Ide pedir-lhe o seu gibão anil, o cinto de prata e os seus melhores calções brancos.» Entregou uma bolsa à rapariga. «Pagai aquilo que ele pedir mas ide depressa.»

A rapariga afastou-se apressada. Quando saiu passou por um homem mais velho de aspecto sombrio que se mantinha nas sombras a observar. Envergava uma rica túnica de veludo castanho avermelhado com bordados de flores de lis em prata, e um colar de arminho. «E se fosse agora, minha Senhora?» disse ele aproximando-se.

Ela fez-lhe uma vénia. «Muito bem, Sir Daniel.» «Haveis regressado a salvo.»

«Dou graças a Deus.»

O homem sombrio resmungou. «Também acho que o deveis fazer. Esgotais até a Sua paciência. E a vossa viagem conseguiu um sucesso pelo menos igual aos perigos?»

Claire mordeu o lábio. «Receio que não.» «Haveis estado com o Abade?»

Uma leve hesitação. «Não.» «Dizei-me a verdade, Claire.»

A rapariga abanou a cabeça. «Senhor, não estive com ele. Estava ausente, numa caçada. »

«É uma pena», respondeu Sir Damiel. «Porque é que não haveis esperado por ele?»

«Não me atrevi, porque os homens de Sir Oliver invadiram o santuário para levarem o Magister à força. Tive medo de ser descoberta e foi por isso que fugi. » «Sim, sim, esse incómodo Magister», comentou Sir Daniel sombriamente.

«É falado por toda a gente. Sabeis o que dizem? Que pode aparecer num raio de luz.» Sir Daniel abanou a cabeça. Era impossível dizer se acreditava ou não. «Deve ser um Magister especializado na pólvora.» Pronunciou gonne-poulder e disse a palavra lentamente, como se fosse estranha e pouco familiar. «Haveis posto a vista neste Magister?»

«Com efeito. Falei com ele.» «Oh?»

«Com o Abade ausente, pensei que ele também não estivesse. Porque dizem que o Magister fez amizade com o Abade nestes últimos dias.»

Chris Hughes procurava desesperadamente seguir esta conversação e só muito tardiamente é que chegou à conclusão de que estavam a falar do Professor. Disse: «Magister?»

Claire perguntou: «Conheceis o Magister? Edward de Johnes?» Ele recuou imediatamente. <Uh... não... não, não conheço, e ... »

Ao ouvir esta resposta, Sir Daniel olhou para Chris com um ar de assombro. Voltou-se para Claire. «0 que é que ele está a dizer?»

«Diz que não conhece o Magister.»

O homem de idade mantinha um ar assombrado. «Em que língua?»

«Uma espécie de Inglês, Sir Daniel, segundo creio com um pouco de Caelic à mistura.»

«Não é Gaelic que alguma vez tenha ouvido: » Voltou-se para Chris. «Falais a Langue-doc? Não? Loquerisquide Latine?»

Estava a perguntar se ele falava Latim. Chris tinha um conhecimento académico do Latim, sendo capaz de o ler. Nunca o tentara falar. Hesitante, disse: «Non, Senior Damielis, solum perpaululum. Perdóleo. » Só um pouco. Desculpe.

«Per, per... dicendo ille Ciceroni'persl'Milis est.» Ele fala como Cícero. «Perdóleo. » Desculpe.

«Então talvez seja melhor estardes calado.» O homem de idade voltou-se de novo para Claire. «0 que é que o Magister vos disse?»

«Não foi capaz de me ajudar.» «Conhecia o segredo que procuramos?» «Disse que não.»

«Mas o Abade sabe», exclamou Sir Daniel. «0 Abade tem que saber. Foi o seu predecessor, o Bispo de Laon, que trabalhou como arquitecto nas últimas reparações de La Roque.»

Claire respondeu: «0 Magister disse que Lacon não foi o arquitecto.» «Não?» Sir Daniel franziu as sobrancelhas. «E como é que o Magister sabe ísso?»

«Julgo que foi o Abade que lhe disse. Ou talvez tenha encontrado informações no meio dos antigos documentos. O Magister tomou a seu cargo separar e organizar os pergaminhos de Sainte-Mère, em benefício dos monges.»

«Ah, sim», exclamou Sir Daniel pensativamente. «Sempre gostava de saber porquê.»

«Não tive tempo para lhe perguntar porque nessa altura os homens de Sir Oliver invadiram o santuário.»

«Bom, dentro em pouco o Magister estará aqui», disse Sir Daniel, «e o próprio Lord Oliver lhe irá colocar estas questões ... » Franziu as sobrancelhas, claramente pouco à vontade com este pensamento.

O homem de idade voltou-se de repente para um rapaz de nove ou dez anos que se mantinha atrás dele. «Levai o Senhor Christopher para os meus aposentos, onde ele poderá banhar-se e limpar-se.»

Ouvindo isto, Claire lançou ao homem de idade um olhar duro. «Tio, não se intrometa nos meus planos.»

«Alguma vez o fiz?»

«Sabeis perfeitamente que pelo menos baveis tentado.»

«Querida filha», exclamou ele, «a minha única preocupação é a vossa segurança - e a vossa honra.»

«E a minha honra, tio, ainda não foi posta em causa.» Dizendo isto, Claire caminhou firmemente na direcção de Chris, colocou-lhe uma mão no pescoço e olhou-o nos olhos. «Contarei todos os minutos quando tiverdes partido, e sentirei a vossa falta no mais íntimo do meu coração», disse ela suavemente, com os olhos marejados de lágrimas. «Voltai rapidamente para mim.»

Roçou-lhe os lábios levemente pela boca e recuou, libertando-o com relutância, os dedos afastando-se com dificuldade do pescoço. Ele sentia a cabeça a andar à roda, não tirando os olhos dela, vendo como era belo. ..

Sir Daniel tossiu e voltando-se para o rapaz, disse: «Acompanhai Sir Christopher, e assisti-o no seu banho.»

O rapaz fez uma vénia a Chris. Toda a gente na sala estava silenciosa. Tudo indicava que era a sua deixa para sair. Acenou com a cabeça e respondeu: «Agradeço-vos.» Esperava ver de novo olhares espantados, mas pelo menos desta vez não houve nenhum; parecia terem compreendido aquilo que ele dissera. Sir Daniel dignou-se fazer-lhe um aceno formal e Chris deixou a sala.

34:25:54

Os cavalos atravessaram com estrépito a ponte levadiça. O Professor olhava em frente muito direito, ignorando os soldados que o escoltavam. Os guardas à entrada do portão mal olharam para os cavaleiros quando estes entraram. Foi então que o Professor desapareceu de vista.

De pé junto da ponte levadiça, Kate disse: «E agora, o que é que fazemos? Vamos atrás dele?»

Marek não lhe respondeu. Olhando para trás viu que não tirava os olhos de dois cavaleiros nas suas montadas, que combatiam com enormes espadas no campo situado na parte exterior do castelo. Parecia ser uma espécie de demonstração ou de treino; os cavaleiros estavam rodeados por um círculo de jovens de libré - em alguns deles de um verde garrido, noutros de amarelo e dourado, aparentemente as cores dos dois cavaleiros. E também se reunira uma enorme multidão de espectadores, rindo e gritando insultos e palavras de coragem para um ou o outro cavaleiro. Os cavalos rodavam em círculos apertados, quase tocando um no outro, mantendo os cavaleiros de armadura face a face. O som metálico do entrechocar das espadas ressoava interminavelmente no ar da manhã.

Marek ficou ali, sem se mexer.

Ela deu-lhe uma sapatada no ombro. «Ouve, André, o Professor ... » «É só um minuto.»

«Mas...» «É só um minuto. »

Pela primeira vez, Marek sentiu uma pontada de incerteza. Até agora, nada daquilo que vira neste mundo parecera fora de lugar ou inesperado. O mosteiro era exactamente como ele esperara. Os camponeses nos campos eram como ele esperara. O torneio que estava a ser organizado era como ele o imaginara. E quando entrou na cidade de Castelgard, achou tudo mais uma -vez exactamente como havia pensado que deveria ter sido. Kate ficara chocada com o espectáculo do carniceiro a trabalhar no meio da rua e com o odor nauseabundo das cubas de curtir peles, mas Marek ficara indiferente. Era tudo como imaginara já há muitos anos.

Mas isto não, pensou enquanto observava os cavaleiros a combaterem. Havia sido tudo tão rápido! O combate de espadas era tão rápido e contínuo, com tentativas de golpes de lado e de gume, que parecia mais um assalto de esgrima do que um combate com espadas. Os ecos metálicos dos impactos ouviam-se com intervalos de um ou dois segundos. E o combate continuou sem hesitação ou pausa.

Marek sempre imaginara estes combates a terem lugar em câmara lenta: homens desajeitados com armaduras, empunhando espadas tão pesadas que cada golpe constituía um enorme esforço, provocando um perigoso desequilíbrio e necessitando de tempo para recuperarem e se restabelecerem antes do golpe seguinte. Lera relatos sobre o modo como os homens se sentiam exaustos depois da batalha, e partiu do princípio de que era o resultado de um prolongado esforço de lutas muito lentas, à base do aço.

Estes guerreiros eram grandes e poderosos sob todos os aspectos. Os seus cavalos eram enormes, e eles próprios pareciam ter seis pés ou mais, e ser extremamente robustos.

Marek nunca se sentira iludido pelas pequenas dimensões das armaduras que se podem ver nas vitrinas dos museus - sabia que qualquer armadura que fosse levada para um museu era cerimonial e nunca fora usada em qualquer coisa mais séria do que uma parada medieval. Marek também suspeitava, embora não o pudesse provar, de que a maior parte das armaduras que chegaram até aos nossos dias - profundamente decoradas, cinzeladas e gravadas - se destinava apenas a exposição, e fora feita numa escala de 3/4, a melhor maneira de mostrar a delicadeza dos desenhos dos artistas.

As genuínas armaduras de batalha nunca sobreviveram. E lera descrições suficientes para saber que a maior parte dos mais celebrados guerreiros dos tempos medievais eram invariavelmente grandes homens - altos, musculosos e invulgarmente fortes. Pertenciam à nobreza; eram melhor alimentados; e eram grandes. Lera sobre o modo como se treinavam e sobre o prazer que sentiam em realizar proezas de força para divertimento das damas.

E, no entanto, de certo modo, nunca conseguira imaginar nem de longe uma coisa como esta. Estes homens combatiam furiosamente, rapidamente e de uma forma ininterrupta - e davam a impressão de que seriam capazes de continuar durante todo o dia. Nenhum deles dava a menor indicação de fadiga; se alguma coisa se podia dizer, era que sentiam prazer com os seus esforços.

Enquanto observava a sua agressiVidade e velocidade, Marek chegou à conclusão de que deixado com os seus próprios dispositivos, era este exactamente o modo que ele escolheria para combater - rapidamente, com o condicionamento e reservas de energia suficientes e necessários para vencerem o oponente. Imaginara apenas um estilo de combate mais lento, partindo de um princípio subjectivo de que os homens no passado eram mais fracos ou mais lentos, ou menos imaginativos do que ele era, como homem moderno.

Marek sabia que este princípio de superioridade era uma dificuldade enfrentada por cada historiador. Simplesmente não pensara que fosse culpado disso. Mas não havia dúvida de que era.

Levou-lhe algum tempo para se aperceber, por entre os gritos da multidão, de que os combatentes se encontravam numa tal superioridade de condição física que eram capazes de acompanhar todo o combate com berros e exclamações; entre os golpes lançavam um ao outro uma torrente de chufas e insultos.

E nessa altura viu que as suas espadas não eram embotadas, que se serviam de reais espadas de batalha, com gumes afiados como lâminas. E, no entanto, não desejavam qualquer mal um ao outro; tratava-se apenas de um divertido aquecimento para o torneio que se aproximava. A sua abordagem alegre e casual de um risco mortal era quase tão enervante como a velocidade e a intensidade com que combatiam.

O combate continuou por outros dez minutos, até que um poderoso golpe desmontou um dos cavaleiros. Caiu no solo mas imediatamente se levantou de um salto, rindo, como se não envergasse qualquer armadura. Houve dinheiro que mudou de mãos. Ouviram-se gritos de «Outra vez! Outra vez!» Um combate com os punhos desencadeou-se entre os rapazes de libré. Os dois cavaleiros afastaram-se de braço dado, na direcção da estalagem.

Marek ouviu Kate dizer: «André ... » Voltou-se lentamente para ela.

«André, está tudo bem?»

«Está tudo óptimo», disse ele. «Mas tenho muito que aprender.»

Dirigiram-se para a ponte levadiça do castelo, aproximando-se dos guardas. Sentiu que Kate, caminhando ao seu lado, ficava tensa. «0 que é que fazemos? O que é que dizemos?»

«Não te preocupes. Eu sei falar Occitan.»

Mas enquanto se aproximavam começou outra luta no terreno aberto para além do fosso e os guardas ficaram a observá-lo. Estavam completamente absorvidos quando Marek e Kate passaram pelo arco de pedra e entraram no pátio do castelo.

«Conseguimos entrar», disse Kate em tom surpreendido. Olhou em volta do pátio. «E agora?»

Estava um frio do caraças, pensou Chris. Sentava-se quase nu, envergando apenas os seus calções da roupa interior, num banco na pequena câmara de Sir Daniel. Ao lado dele encontrava-se uma tina de água fumegante e uma luva para se esfregar. O rapaz trouxera a tina da água da cozinha, transportando-a como se fosse ouro; o seu comportamento indicava que era um sinal de favor que deveria ser considerado no caso da água quente.

Chris esfregara-se cuidadosamente, recusando a oferta do rapaz para o ajudar. A tina era pequena e dentro em breve a água ficou negra. Mas mesmo assim conseguira limpar a lama debaixo das unhas, e tirar a lama do corpo e do rosto, com a ajuda de um pequeno espelho que o rapaz lhe emprestara.

Finalmente considerou-se satisfeito. Mas o rapaz, com um ar de ansiedade, exclamou, «Master Christopher, ainda não estaIS limpo.» E insistiu em se ocupar do resto.

Foi assim que Chris se sentou a tremer no banco de madeira enquanto o rapaz o esfregou durante um espaço de tempo que não lhe pareceu inferior a uma hora. Chris estava perplexo; sempre pensara que a gente da Idade Média era porca e cheirava mal, mergulhada na sujidade da época. E, no entanto, aquelas pessoas pareciam ter, como uma das preocupações primordiais a limPeza. Toda a gente que viu no castelo estava limpa, e não notou qualquer odor desagradável.

Mesmo o próprio sanitário, que o rapaz insistiu em que usasse antes de tomar banho, não era tão terrível como Chris julgara. Situado no quarto atrás de uma porta de madeira, era um sanitário estreito, com um assento em pedra sobranceiro a uma bacia que era escoada por um tubo. Aparentemente os esgotos fluíam até ao andar térreo do castelo, de onde eram removidos diariamente. O rapaz explicou que todos os dias um criado lavava o sanitário e o tubo com água perfumada, colocando em seguida um novo ramo de ervas de cheiro num prego na parede. Deste modo o odor não era tão terrível como isso. De facto, pensou, desoladamente, já encontrara cheiros muito mais insuportáveis em casas de banho de aviões.

E, para cúmulo, esta gente limpava-se com tiras de linho branco! Não, pensou ele, as coisas não eram de modo nenhum como ele pensara.

Uma das vantagens de estar ali sentado era a de ser capaz de tentar falar com o rapaz. O rapaz era tolerante, e respondia lentamente a Chris, como se estivesse a falar com um idiota. Mas isso permitia a Chris ouvi-lo antes da tradução nos auriculares, e rapidamente descobriu que a imitação ajudava; se conseguisse vencer o seu embaraço e se utilizasse as frases arcaicas que lera nos textos - muitas das quais o próprio rapaz usava - então este iria compreendê-lo muito mais facilmente. Foi assim que Chris começou gradualmente a usar "Methinks" em vez de "I think", e "an" em vez de "if ", e "for sooth" em vez de "in truth". E com cada uma destas pequenas mudanças o rapaz parecia compreendê-lo cada vez melhor.

Chris ainda estava sentado no banco de madeira quando Sir Daniel entrou no quarto. Trouxe roupas cuidadosamente dobradas, com um aspecto rico e dispendioso. Colocou-as na cama.

< Com que então, Christopher de Hewcs. Estais envolvido com a nossa beleza inteligente.»

«Ela salvou a minha vida.» Pronunciou say-ved. E Sir Daniel pareceu compreender.

«Espero que isto não vos traga problemas.» «Problemas?»

Sir Daniel suspirou. «Ela diz-me, amigo Chris, que sois de boas famílias, mas que não sois cavaleiro. Sois um escudeiro?»

«Na verdade, sou.»

«Um escudeiro já muito idoso.» disse Sir Daniel. «Qual é a vossa experiência

«A minha experiência com armas ... » Chris franziu as sobrancelhas. «Bom, eu tenho, uh ... »

«Tendes alguma experiência? Falai claramente: Qual é a vossa experiência?» Chris decidiu que o melhor era dizer a verdade. «Para dizer a verdade, eu sou - quero dizer, tenho treino - nos meus estudos como académico.»

«Um académico?» O homem de idade abanou a cabeça, dando a entender que não compreendia. «Escolie? Esne discipulus? Studesne sub magístro?» Estudais sob a orientação de um mestre?

«Ita est.» Exactamente. «Ubi?» Onde?

«Uh... em, ... Oxford.»

«Oxford?» Sir Daniel resmungou com um ar de desprezo. «Então nada tendes a fazer aqui com pessoas como a minha Senhora. Acreditai-me quando afirmo que aqui não há lugar para um académico. Deixai-me contar-vos quais são as circunstâncias actuais.»

«Lord Oliver precisa de dinheiro para pagar aos seus soldados e saqueou tudo aquilo que pôde nas cidades mais próximas. É por isso que agora quer forçar Claire a casar, para conseguir a sua percentagem. Guy de Malegant apresentou uma oferta bastante tentadora, muito agradável para Lord Oliver. Mas Guy não é rico e não pode pagar a percentagem devida sem hipotecar parte das propriedades da minha Senhora. Ela nunca concordará com uma coisa destas. Há muita gente que pensa que Lord Oliver e Guy já há muito que fizeram um acordo privado - um de vender Lady Claire, o outro de vender as suas terras.»

Chris não disse nada.

«Existe ainda um outro impedimento em toda esta situação. Claire despreza Malegant, de quem suspeita que teve algo a ver com a morte do marido. Guy servia Geoffrey na altura da sua morte. Toda a gente ficou surpreendida com o modo repentino como partiu deste mundo. Geoffrey era um cavaleiro jovem e vigoroso. Embora os seus ferimentos fossem graves, teve uma firme recuperação. Ninguém sabe a verdade sobre o que na realidade se passou nesse dia mas, no entanto, correm rumores - muitos rumores - a respeito de veneno.» «Estou a ver», disse Chris.

«Achais que sim? Tenho dúvidas. Senão vejamos: a minha Senhora pode perfeitamente ser uma prisioneira no castelo de Lord Oliver. Pode escapar-se, mas não pode levar em segredo toda a sua comitiva. Se ela partir secretamente e regressar a Inglaterra - o que é o seu desejo - Lord Oliver irá vingar-se contra mim e todos os outros membros da sua casa. Ela sabe disto e é por esse motivo que tem de ficar.»

«Lord Oliver deseja que ela case, e a minha Senhora procura todos os estratagemas possíveis para adiar a situação. É verdade que ela é inteligente. Mas Lord Oliver não é um homem paciente e brevemente irá forçar a situação. Agora a única esperança dela está ali.» Sir Daniel aproximou-se da janela e apontou para fora.

Chris chegou junto da janela e olhou.

Da janela elevada teve uma vista geral do pátio e das construções para lá da muralha do castelo. Mais além viam-se os telhados da cidade, em seguida a muralha da cidade com os guardas que patrulhavam nos parapeitos. Em seguida os campos e a paisagem campestre que se estendia a perder de vista.

Chris olhou para Sir Daniel interrogadoramente Sir Daniel disse, «Ali, meu senhor. Os fogos.»

Apontava para um ponto distante. Estremecendo, Chris conseguia apenas avistar ténues colunas de fumo que se desvaneciam num céu azul. Era o limite daquilo que conseguia avistar.

«É a companhia de Arnaut de Cervole», disse Sir Daniel. «Não estão acampados a mais de quinze milhas de distância. Devem chegar aqui dentro de um dia - dois no máximo. Toda a gente sabe disso.»

«E Sir Oliver?»

«Sabe que a sua batalha com Arnaut irá ser feroz.» «E no entanto continua a organizar um torneio ... »

«É uma questão da sua honra», disse Sir Daniel. «Mais uma questão de teimosia do que de honra. Não tenho a menor dúvida de que se escaparia se pudesse. Mas não se atreve. E é aqui que vós entrais.»

«Que eu entro?»

Sir Daniel suspirou. Começou a andar de um lado para o outro. «Vistais-vos agora para vos apresentar a Lord Oliver de modo conveniente. Tentarei evitar o desastre que se aproxima.»

O homem de idade voltou-se e saiu do quarto. Chris olhou para o rapaz. Parara de esfregar.

«Que desastre?» perguntou.

33:12:51

Uma das características peculiares dos estudos medievais no século vinte era o facto de não existir uma única imagem que mostrasse como era o interior de um castelo do século catorze. Nem um quadro, iluminura de um manuscrito ou esquema num bloco de notas. As primeiras imagens da vida do século catorze vieram de facto a surgir no século quinze e os interiores - e alimentos, e trajes evidenciados nas imagens estavam correctos para o século quinze, não para o século catorze.

Como resultado disso, nenhum académico dos tempos modernos sabia qual a mobília que era usada, como é que as paredes eram decoradas, ou como é que as pessoas se vestiam e comportavam. A ausência de informação era tão completa que, na altura em que se fizeram as escavações dos aposentos do Rei Edward 1 na Torre de Londres, as paredes reconstruídas foram deixadas em reboco nu porque ninguém era capaz de dizer quais as decorações que poderiam ter estado ali.

Também era por esse motivo que as reconstruções dos artistas do século catorze apresentavam uma tendencia para mostrarem interiores desolados, quartos com paredes nuas e pouca mobília - talvez uma cadeira ou uma arca mas pouco mais do que isso. A própria ausência de imagens da época servia de base para uma conclusão de escassez a respeito da vida daquela altura.

Tudo isto passou como um relâmpago pela mente de Kate Erickson quando esta entrou no grande salão de Castelgard. Aquilo que ela ia ver nunca nenhum historiador o vira antes. Entrou, deslizando por entre a multidão, seguindo Marek. E ficou boquiaberta, assombrada com a riqueza e o caos que se desenrolavam perante ela.

O grande salão cintilava como uma enorme jóia. Os raios de sol atravessavam as altas janelas, reflectindo-se nas paredes fronteiras que brilhavam com tapeçarias bordadas a ouro, com reflexos a dançarem nos tectos pintados em vermelho e ouro. Numa das paredes da sala encontrava-se pendurado um enorme tecido com motivos decorativos: flores de lis prateadas sobre um fundo em azul escuro. Na parede oposta, uma tapeçaria representando uma batalha: cavaleiros combatendo com equipamento completo, as armaduras prateadas e as túnicas em azul e branco, vermelho e ouro; os seus estandartes esvoaçantes bordados a dourado.

No final da sala via-se uma enorme lareira, suficientemente larga para uma pessoa entrar dentro dela sem ter que se baixar, com a sua armadura de topo esculpida com motivos em dourado que brilhavam tenuamente. Na frente da lareira via-se um enorme biombo em verga, também enfeitado com dourados. E acima da lareira pendia uma enorme tapeçaria decorativa com cisnes voando num campo de flores em tons de vermelho e dourado.

A sala era inerentemente elegante, rica e belamente executada - e com um toque bastante feminino para os olhos modernos. A sua beleza e requinte contrastavam profundamente com o comportamento da gente que se encontrava na sala que eram ruidosos, violentos, rudes.

Na frente do fogo encontrava-se uma mesa alta, com uma toalha de linho branco e pratos em ouro, todos cheios com montanhas de comida. Pequenos cães deslocavam-se pela mesa, servindo-se dos alimentos sem o menor constrangimento - até que o homem no centro da mesa os enxotou com uma praga.

Lord Oliver de Vannes teria cerca de trinta anos, com olhos pequenos numa cara balofa de aspecto dissoluto. A boca estava sempre distorcida num sorriso escarninho; tinha uma tendência para manter os lábios apertados porque lhe faltavam vários dentes. As suas roupas eram tão ornamentadas como a sala: uma túnica em azul e dourado, com uma gota alta em ouro e um chapéu de pele. O seu colar era composto por pedras azuis, cada uma delas do tamanho de um ovo de pisco. Usava anéis em vários dedos, enormes pedras ovais em pesadas montagens de ouro. Cravou a faca na comida e comeu ruidosamente, resmungando para os seus companheiros.

Mas apesar dos seus trajes elegantes, a impressão que dava era de uma perigosa petulância - os olhos injectados de sangue dardejavam em volta da sala enquanto comia, alerta a qualquer insulto, sempre pronto para uma luta.

Irritava-se com facilidade e era rápido no ataque; quando um dos pequenos cães se aproximou para comer de novo, Oliver, sem a menor hesitação, cravou-lhe a ponta da faca nos quartos traseiros; o animal deu um salto e escapou-se sala fora a ganir e a sangrar.

Lord Oliver deu uma gargalhada, limpou o sangue do cão da ponta da faca e continuou a comer.

os homens que se encontravam sentados à sua mesa partilharam a piada. pelo aspecto deles eram todos soldados, contemporâneos de CiliVer, estando todos elegantemente vestidos - embora nenhum deles se pudesse comparar com o requinte do seu líder. E três ou quatro mulheres, Jovens, lindas e impudicas, usando vestidos apertados e longos cabelos soltos, dando risadinhas enquanto as mãos se moviam descaradamente debaixo da mesa, completavam a cena.

Kate observava toda a cena e de repente surgiu-lhe uma palavra imprevista: senhor da guerra. Era um senhor da guerra medieval, descansando junto dos seus soldados e prostitutas no castelo que acabara de capturar.

Um bastão de madeira ecoou no solo, e um arauto gritou: «Meu Senhor! Magister Edward de Johnes!» Voltando-se, viu Johnston abrindo caminho através da multidão, na direcção da mesa que se encontrava em frente.

Lord OliVer ergueu o olhar, limpando molho das bochechas com as costas da mão. «Sede benvindo, Magister Edwardus. Embora não saiba lá muito bem se sois Magister ou magicien.»

«Lord. Ciliver,» disse o Professor, falando em Occitan. Fez um pequeno aceno com a cabeça.

«Magister, porque é que haveis de ser tão frio», disse Oliver fingindo que suava. «Podeis crer que me feris. Que é que eu fiz para merecer tal reserva? Estais aborrecido por vos ter trazido do mosteiro? Estai tranquilo porque aqui ides comer tão bem ou melhor do que lá. De qualquer modo, o Abade não precisa de vós - e eu preciso.»

Johnston manteve-se erecto e não falou.

«Não tendes nada para dizer?» disse OliVer, olhando intensamente para Johnston com um ar irritado. O seu rosto ensombrou-se. «Isso vai mudar», exclamou com um resmungo.

Johnston continuou sem mover um único músculo, silencioso.

O momento passou. Lord Oliver pareceu recompor-se. Sorriu maliciosamente. «Mas porque é que havemos de estar assim, não temos nada que discutir. Com toda a cortesia e respeito, procuro o vosso conselho», disse Oliver.

«Sois um sábio e eu tenho grande necessidade de sabedoria - pelo menos é o que estes senhores me dizem.» Gargalhadas entre os convivas. «E dizem-me que sois capaz de ver o futuro.»

«Nenhum homem é capaz de tal coisa», disse johnston.

«Ah, sim? Penso que vós sois capaz, Magister. E rogo-vos, vede o vosso próprio futuro. Não gostaria de ver um homem tão distinto como vós sofrer muito. Sabeis como é que o vosso homónimo, o nosso falecido rei Edward, o Louco encontrou o seu fim? Vejo pelo vosso rosto que estais a par dos acontecimentos. E, no entanto, não fazíeis parte dos que se encontravam no castelo. E eu estava.» Sorriu sinistramente, recostando-se na cadeira. «Nunca houve a menor marca no seu corpo.»

johnston acenou lentamente com a cabeça. «Os seus gritos podiam ser ouvidos a milhas de distância.»

Kate olhou interrogadoramente para Marek que lhe disse num murmúrio: «Estão a falar de Edward. 11 de Inglaterra. Foi preso e assassinado. Os seus captores não queriam qualquer sinal de acção ilegal, pelo que lhe introduziram um tubo no recto através do qual enfiaram um ferro em brasa nas suas entranhas até que morreu.»

Kate estremeceu.

«Também era gay», continuou Marek num murmúrio, «pelo que se julgou que o modo da sua execução demonstrou uma grande perspicácia.»

«De facto, os seus gritos ouviam-se a milhas de distância», estava Oliver a dizer. «Acho que deveis pensar nisso. Sabeis muitas coisas e eu também as devo saber. Ou sois meu conselheiro ou a vossa permanencia neste mundo não será de grande duração.»

Lord Oliver foi interrompido por um cavaleiro que avançou até junto da mesa e lhe murmurou qualquer coisa ao ouvido. Este cavaleiro estava ricamente vestido com trajes de tons castanho avermelhado e cinzento, mas o rosto tinha o aspecto duro de um camponês fustigado pelas intempéries. Uma cicatriz profunda, quase um vergão, corria-lhe na face desde a testa até ao queixo, desaparecendo-lhe na gola alta. Oliver ouviu, para lhe dizer em seguida: «Oh, Achais que sim, Robert?»

Foi então que o cavaleiro da cicatriz murmurou de novo, nunca tirando os olhos do Professor. Lord Oliver, enquanto ouvia, também não tirava os olhos do Professor. «Bom, veremos», disse Lord Oliver.

O cavaleiro atarracado continuava a murmurar e Oliver acenava com a cabeça.

De pé no meio da multidão, Marek voltou-se para o cortesão que se encontrava a seu lado e, falando em Occitan, disse: «Por obséquio, qual é a personagem ilustre que se encontra a falar ao ouvido de Sir Oliver?»

«Na verdade, amigo, trata-se de Sir Robert de Kere.» «De Kere?» disse Marek. «Nunca ouvi falar dele.»

«É novo no séquito, está ao serviço há menos de um ano, mas encontrou grande favor aos olhos de Sir Oliver.»

«Ah, sim? E porquê?»

O homem encolheu os ombros com um ar ausente como se dissesse «Quem sabe porque é que as coisas acontecem na mesa grande?» Mas respondeu: «Sir Robert tem qualidades marciais e foi para Sir Oliver um conselheiro de confiança em assuntos de guerra.» O homem baixou o tom de voz. «Mas é evidente que não pode ter prazer em ver outro conselheiro, e um tão eminente, como o que se encontra agora perante ele.»

«Ah», respondeu Marek acenando com a cabeça. «Compreendo.»

Não havia dúvida de que Sir Robert parecia estar a fazer pressão na sua exposição, murmurando urgentemente, até que finalmente Oliver fez um pequeno gesto de estalar de dedos com uma das mãos, como se quisesse afastar um mosquito. Instantaneamente o cavaleiro fez uma vénia e recuou, colocando-se atrás de Sir Oliver.

Oliver disse: «Magister.» «Meu Senhor.»

«Fui informado de que conheceis o método do Fogo Grego.»

No meio da multidão Marek resmungou. Murmurou para Kate: «Ninguém conhece isso.» E ninguém conhecia. O Fogo Grego era um enigma historicamente famoso, uma arma incendiária de poderes devastadores do século sexto, cuja natureza exacta continuava a ser discutida nos nossos dias. Ninguém sabia ao certo o que era realmente o Fogo Grego, ou como era feito.

«Sim», disse Johnston. «Eu conheço esse método.»

Marek ficou boquiaberto. Que raio era aquilo? Não havia a menor dúvida de que o Professor reconhecera um rival mas era um jogo muito perigoso para ser jogado. Sem dúvida que lhe iriam pedir para o provar.

«Podeis fazer o Fogo Grego?» perguntou Oliver. «Meu Senhor, posso.»

«Ah», Oliver voltou-se para trás e lançou um olhar de relance a Sir Robert. Segundo parecia, o conselheiro de confiança tinha dado um conselho errado. OliVer voltou-se de novo para o Professor.

«Não será dificil», disse o Professor, «se tiver os meus assistentes.»

Com que então era isso, Pensou Marek. O Professor estava a fazer promessas numa tentativa de os juntar todos.

«Eh? Assistentes? Tendes assistentes?»

«Com efeito meu Senhor, e... »

«Bom, é evidente que vos podem assistir, Magister. E se não o fizerem, forneceremos tudo de que possais necessitar. Não vos preocupeis. E sobre o Fogo do Orvalho - o fogo de Nathos? Também o conheceis?»

«Também meu Senhor.»

«E sereis capaz de o demonstrar na minha presença?» «Quando quiserdes, meu Senhor.»

«Muito bem, Magister. Muito bem.» Lord OliVer fez uma pausa, olhando intensamente para o Professor. «E também conheceis o segredo que desejo acima de qualquer outra coisa?»

«Sir Oliver, esse segredo eu não conheço.»

«Conheceis! E ides responder-me!» gritou, batendo violentamente com uma taça na mesa. O seu rosto estava de um vermelho intenso, com as veias a latejar na testa; a sua voz ecoou no salão, que de repente ficou num silêncio absoluto. « Terei essa resposta hoje!» Um dos cães que se encontrava na mesa aninhou-se receoso; bateu-lhe com as costas da mão, enviando-o a ganir para o chão. Quando a rapariga que se encontrava a seu lado começou a protestar, praguejou e esbofeteou-a violentamente no rosto, fazendo com que ela caísse de costas juntamente com a cadeira. A rapariga não produziu qualquer som nem se mexeu. Permaneceu imóvel com os pés no ar.

« Oh, estou indignado! Estou terrivelmente indignado», rugiu Lord Oliver ao mesmo tempo que se levantava. Olhou irritadamente à sua volta, a mão no punho da espada, os olhos varrendo o grande salão como se procurasse um culpado.

Toda a gente que se encontrava no salão ficou silenciosa, sem se mexer, olhando para os pés. Era como se toda a vida no salão tivesse parado e só Sir OliVer se pudesse mover. Bufou enfurecido e finalmente desembainhou a espada, batendo com ela violentamente na mesa. Pratos e taças saltaram e entrechocaram-se, ao mesmo tempo que a espada se cravava na madeira.

Oliver olhou intensamente para o Professor, mas estava a conseguir adquirir controlo ao mesmo tempo que a sua fúria se ia desvanecendo. «Magister, íreis cumprir as minhas ordens!» gritou. Em seguida acenou para os guardas. «Levem-no, e dai-lhe razões para meditar.»

Violentamente os guardas agarram o Professor e arrastaram-no através da multidão silenciosa. Kate e Marek afastaram-se para o lado quando ele passou, mas o Professor não os viu.

Lord OliVer olhou para o salão em silêncio. «Sentai-vos e diverti-vos», rugiu irado, «antes que eu perca a cabeça!»

Imediatamente os musicos começaram a tocar e o ruído da multidão encheu o salão.

Pouco tempo depois Robert de Kere saiu apressadamente do salão, seguindo o Professor. Marek pensou que a sua partida súbita não representava nada de bom. Fez um sinal a Kate, indicando que deviam seguir de Kere. Dirigiam-se em direcção à porta quando o arauto bateu mais uma vez com o bastão no soalho.

«Meu Senhor! Lady Claire de Ehham e o Senhor Christopher de Hewes.» Detiveram-se. «Porra», exclamou Marek

Uma bela e jovem mulher entrou no salão, com Chris Hughes caminhando a seu lado. Chris envergava agora ricos trajes de fidalgo. Parecia muito dístinto - e muito confuso.

Mantendo-se ao lado de Kate, Marek bateu com o dedo no auricular e ,,murmurou: «Chris, enquanto permaneceres neste salão, não fales nem actues. Compreendes?»

Chris acenou levemente com a cabeça.

«Comporta-te como se não estivesses a compreender nada. É capaz de não ser muito difícil.»

Chris e a mulher atravessaram a multidão e caminharam directamente para a mesa grande, onde Lord Oliver observava a sua aproximação com um ar nitidamente aborrecido. A mulher viu isso, prostrou-se permanecendo nessa atitude, rente ao solo, a cabeça dobrada em submissão.

«Vá lá, vá lá», disse Lord Oliver irritadamente gesticulando com uma baqueta. «Essa atitude não vos fica bem.»

«Meu Senhor.» Pôs-se de pé.

Oliver resfolgou. «E o que é que me trazeis hoje? Mais alguma conquista deslumbrante?»

«Se for do agrado do meu Senhor, apresento-lhe Christopher de Hughes, um fidalgo do Eire, que me salvou de vilões que hoje me teriam raptado ou feito ainda pior.»

«Eh? Vilões? Raptada?» Divertido, Lord Oliver olhou para os cavaleiros que se encontravam sentados à sua mesa. «Sir Guy? O que é que me dizeis?»

Um homem de compleição escura levantou-se irritadamente. Sir Guy de Malegant vestia completamente de negro - cota de armas em negro e uma túnica negra, com uma águia negra bordada no peito. «Meu Senhor, receio que esta dama se esteja a divertir à nossa custa. Ela sabe perfeitamente que enviei os meus homens para a salvar, ao ver que se encontrava só e em aflição.» Sir Guy caminhou na direcção de Chris, olhando para ele intensamente. «E este homem, meu Senhor, que a colocou em risco de vida. Não compreendo como é que ela agora o possa defender, a não ser que isso prove a sua inteligência fora de comum.»

«Eli?» exclamou Oliver. «Inteligência? Lady Claire, que inteligência está aqui?»

A mulher encolheu os ombros. «Só os sem inteligência, meu Senhor, são capazes de ver inteligência onde ela não existe.»

O cavaleiro negro resmungou. «Palavras rápidas para esconder rapidamente aquilo que se esconde por detrás.» Malegant caminhou na direcção de Chris até ficarem frente a frente, a poucos centímetros de distância. Olhou-o intensamente enquanto lentamente, de modo deliberado, começou a tirar a luva de malha de aço. «Senhor Christopher, é assim que sois chamado?»

Chris não disse nada, apenas acenou com a cabeça.

Chris sentia-se aterrorizado. Encurralado numa situação que não compreendia, permanecendo num salão cheio de soldados sedentos de sangue, que não eram melhores do que qualquer gang de rua, e enfrentando este escuro e irritado homem cujo hálito fedia a dentes podres, alho e vinho - era tudo aquilo que ele podia fazer para impedir que os seus joelhos batessem um no outro.

Pelos auriculares, ouviu Marek que lhe dizia: «Não fales - aconteça o que acontecer.»

Sir Guy olhou malevolamente para ele. «Fiz-lhe uma pergunta, senhor. Será que posso ter uma resposta?» Ainda estava a tirar a luva e Chris teve a certeza de que estava quase a atingi-lo com o seu punho nu.

Marek disse: «Não fales.»

Chris sentia-se encantado por seguir esse conselho, Inspirou profundamente, tentando controlar-se. Sentia as pernas trémulas, como se fossem de borracha. Teve a sensação de que poderia desmaiar na frente daquele homem. Fez o melhor que soube para se manter firme. Outra inspiração profunda.

Sir Guy voltou-se para a mulher. «Senhora, será que ele fala, o vosso fidalgo salvador? Ou só é capaz de suspirar?»

«Sabei, Sir Guy, que ele vem de terras longínquas, e muitas vezes não compreende a nossa língua.»

«Dic mihí nomen tuum, scutarí.» Diz-me o teu nome. «Receio que também não fale Latim, Sir Guy.»

Malegant tinha um ar indignado. «Cômmodissime. Muito conveniente, este fidalgo mudo porque assim não lhe podemos perguntar como é que chegou até aqui e com que finalidade. Este fidalgo irlandês encontra-se muito longe de casa. E no entanto não é um peregrino. Não está em serviço. O que é que ele é? Porque é que está aqui? Vede como ele treme. O que é que ele pode recear? Nada da nossa parte, meu Senhor - a não ser que seja um dos homens de Arnaut, enviado para ver como é que as coisas estão. Isso faria com que se tornasse mudo. Um cobarde não se atreveria a falar.»

Marek sussurrou: «Não respond ... »

Malegant empurrou Chris violentamente no peito. «Então, cobarde fidalgo, afirmo que sois um espião e um miserável, e que não sois homem suficiente para admitir a vossa causa. Sentiria desprezo por vós se não estivésseis tão abaixo disso. »

O cavaleiro concluiu tirando a luva e, abanando a cabeça com irritação, deixou-a cair no solo. A luva em malha de aço aterrou com um som cavo nos dedos dos pés de Chris. Sir Guy voltou-lhe as costas com um modo insolente e começou a dirigir-se para a mesa.

Toda a gente que se encontrava no salão tinha os olhos postos em Chris. Ao lado dele Claire murmurou: «A luva ... »

Olhou para o lado dela, «A lu va!»

O que é que se passava com a luva? Pensou para consigo ao mesmo tempo que se baixava e pegava nela. Estendeu a luva a Claire mas esta já se voltara, dizendo: «Cavaleiro, o fidalgo aceitou o vosso desafio.»

Chris pensou «Que desafio?»

Sir Guy disse imediatamente: «Três lanças sem ponta, à outrance.» Marek disse: «Desgraçado, tens ideia daquilo que acabaste de fazer?»

Sir Guy voltou-se para Lord Oliver na mesa grande. «Meu Senhor, peço-vos que o dia de torneio comece com o nosso combate de desafio.»

«Assim será feito», disse Oliver.

Sir Daniel avançou por entre a multidão e fez uma vénia. «Meu Senhor Oliver, a minha sobrinha está a levar esta brincadeira demasiado longe, sem resultados válidos. É possível que se divirta a ver Sir Guy, um cavaleiro de renome, desafiado em combate por um mero fidalgo, o que só o irá desonrar. Sir Guy só irá ser prejudicado se se deixar arrastar pela sua artimanha.»

«Ah sim?» disse Lord Oliver, olhando para o cavaleiro negro.

Sir Guy Malegant cuspiu no chão. «Um fidalgo? Olhai aquilo que vos digo, não é fidalgo nenhum. É um cavaleiro disfarçado, um tratante e um espião. A sua astúcia terá a sua recompensa. Vou desafiá-lo hoje mesmo.»

Sir Daniel disse: «Com todo o respeito, meu Senhor, acho que tudo isto deverá ser evitado. Não passa de um fidalgo sem importância, com pouco treino nas armas, e de modo nenhum um rival para o vosso valente cavaleiro.»

Chris ainda estava a tentar compreender o que é que se estava a passar, quando Marek se adiantou, falando uma língua estrangeira que soava um pouco como o Francês, embora com certas diferenças. Calculou que fosse Occitan. Chris ouviu a tradução nos auriculares.

«Meu Senhor», disse Marek, curvando-se suavemente, «este nobre senhor diz a verdade. O fidalgo Christopher é meu companheiro, mas não é um guerreiro. Por uma questão de justiça, peço-vos que concedais permissão a Christopher para nomear um campeão que o represente neste desafio.»

«Eh? Campeão? Que campeão? Não vos conheço.»

Chris viu que Lady Claire observava Marek com um interesse evidente. Teve uma leve troca de olhares antes de responder a Oliver.

«Sabei meu Senhor que sou Sir André de Marek, ultimamente de Hainaut. Ofereço-me como seu cmpeão e, se Deus o permitir, darei boa conta com este nobre cavaleiro.»

Lord OliVer esfregou o queixo, pensativo.

Vendo a sua indecisão, Sir Daniel adiantou-se mais uma vez. «Meu Senhor, começar o vosso torneio com um combate desigual não melhora o dia nem o tornará inesquecível na memória dos homens. julgo que de Marek será um melhor competidor.»

Lord Oliver voltou-se para Marek, para ver o que é que ele diria a este respeito.

«Meu Senhor,» disse Marek, «se o meu amigo Christopher é um espião, então eu também o sou. Ao difamá-lo, Sir Guy também me difamou, e peço-vos permissão para defender o meu bom nome.»

Lord Oliver parecia divertido com esta nova complicação. «Que é que me dizeis, Guy?»

«Por minha fé», disse o cavaleiro negro, «concedo que este De Marek poderá ser um valoroso subordinado, se o seu braço tiver tanta perícia como a sua língua. Mas como subordinado deverá combater com o meu subordinado, Sir Charles de Gaune.

Um homem de elevada estatura que se encontrava na extremidade da mesa levantou-se. Tinha o rosto pálido, nariz achatado e olhos rosados; parecia-se com um pit bull'. O seu tom era agressivo ao dizer: «Terei o maior prazer em representar-vos.»

Marek fez uma última tentativa. «Pelos vistos», disse, «parece que Sir Guy receia combater comigo em primeiro lugar.»

Ao ouvir isto, Lady Claire sorriu abertamente para Marek. Mostrava-se claramente interessada nele. E isto parecia aborrecer Sir Guy.

«Não receio qualquer homem», disse Guy, <e ainda menos um qualquer Hainauter. Se conseguirdes sobreviver ao meu subordinado - o que me traz muitas dúvidas - então terei muito prazer em combater convosco logo a seguir, e terminar de vez com a vossa insolência.»

«Pois que assim se faça», disse Lord Oliver, e voltou-lhes as costas. O seu tom de voz indicava que a discussão chegara ao fim.

 

' Raça de cães. (N. T)

 

32:16:01

Os cavalos revoluteavam e carregavam, passando velozmente um pelo outro no campo relvado. O terreno estremecia quando os grandes animais trovejavam ao passarem por Marek e Chris, que se encontravam de pé junto da pequena vedação, observando os treinos de carga. Para Chris, o campo de torneios era enorme - o tamanho de um campo de futebol - e de ambos os lados os pavilhões haviam sido...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor