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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RESSURREIÇÃO / Leon Tolstoi
RESSURREIÇÃO / Leon Tolstoi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Apesar de algumas centenas de milhares de seres humanos, amontoados num pequeno espaço, se esforçarem por mutilar a terra sobre a qual viviam; apesar de esmagarem o solo com pedras, afim que nada nele pudesse germinar; apesar de até destruírem o mais pequeno sinal de vegetação, arrancando a erva e derrubando as árvores; apesar de expulsarem as aves e os animais; apesar de encherem a atmosfera com o fumo do petróleo e do carvão: a primavera, mesmo na cidade, era ainda e sempre a primavera.
O sol começava a brilhar ardentemente; a erva reanimada principiava a crescer não só donde não tinha sido arrancada mas ainda por entre o empedrado das ruas e nos canteiros dos jardins. Os vidoeiros, álamos e cerejeiras desenrolavam as húmidas e fragrantes folhas; as tílias apresentavam já os inchados gomos, prontos a rebentarem; as gralhas, os pardais e os pombos trabalhavam alegremente para os seus ninhos; as abelhas e as moscas zumbiam sobre os muros, encantadas de encontrarem o bom calor do sol. Tudo estava alegre, as plantas e as aves, os insetos e as crianças. Só os homens continuavam a enganar-se e atormentar-se uns aos outros. Só os homens reputavam importante e sagrado, não essa divina beleza do universo, criada para alegria de todos os seres vivos, dispondo-os para a paz, para a união e para a ternura; mas que era importante e sagrado aquilo que eles próprios tinham inventado para mutuamente se enganarem e atormentarem.
Assim, na secretaria da prisão principal da cidade, o que era considerado importante e sagrado não era o facto de que homens e animais tivessem recebido o favor e a delícia da primavera; era que na véspera, os empregados da secretaria tinham recebido uma folha de papel selado e numerado prevenindo-os que naquela própria manhã de 28 de abril, às 9 horas, três detidos, um homem e duas mulheres, deveriam ser conduzidos, cada um separadamente, ao tribunal, a fim de serem julgados. De conformidade com este aviso, no dia 28 de abril, às 8 horas da manhã, na sombria e fétida galeria da divisão das mulheres, penetrou um velho carcereiro de uniforme bordado a ouro. Imediatamente avançou ao seu encontro, da outra extremidade da galeria, a encarregada da vigilância desta divisão, criatura de aspeto doentio, vestida com uma camisola pardacenta e saia escura.
— Vem buscar a Maslova? — perguntou.

 


 


E aproximou-se, acompanhada do carcereiro, de uma das numerosas portas que comunicavam com a galeria.

O carcereiro, fazendo tinir as chaves, introduziu uma das maiores na fechadura de uma das portas que, entreabrindo-se, deixou escapar um cheiro mil vezes pior que o da galeria, e chamou para dentro:

— Maslova! Ao tribunal!

E, cerrando a porta, conservou-se imóvel, esperando aquela por quem tinha chamado.

A pequena distância, no pátio da prisão, podia respirar-se um puro e vivificante ar que a brisa primaveril trazia dos campos, mas na galeria, este era pesado e doentio, infetado de umidade, putrefação e miasmas, atmosfera que ninguém podia respirar sem ser invadido por sombria tristeza. E isto mesmo sentia-o a própria empregada da vigilância, que, vindo do pátio e por muito habituada que estivesse à atmosfera das galerias interiores, não podia deixar de experimentar um doloroso misto de náusea e sonolência.

Por detrás da porta, na sala das detidas, a agitação era grande; ouviam-se vozes, risos e pés nus andando.

— Vamos depressa — gritou de novo o carcereiro, entreabrindo a porta.

Momentos depois uma mulher ainda nova, baixa e roliça, saiu apressadamente da sala.

Lançado aos ombros e por sobre a blusa e saia branca, trazia um amplo capote de cor escura. Calçava meia branca de linho com os sapatos da prisão, e envolvia a cabeça num lenço também branco, que deixava ver alguns anéis de um cabelo negro, cuidadosamente frisado. Por todo o seu rosto de mulher, espalhava-se uma palidez de um género peculiar e que só se encontra no rosto de pessoas encerradas durante muito tempo num recinto fechado, que faz lembrar a cor própria dos rebentos das batatas em celeiro. Em contraste com esta palidez mate, sobressaía o brilho de dois grandes olhos negros, um dos quais era um pouco estrábico.

O conjunto trazia uma notável expressão de graça acariciadora.

Conservava-se muito direita expandindo o farto seio.

Ao chegar à galeria inclinou levemente a cabeça olhando em seguida o carcereiro interrogativamente, pronta a cumprir o que lhe fosse ordenado. O carcereiro, entretanto, fechava a porta quando esta novamente se entreabriu e o sombrio rosto de uma velha de cabelos brancos surgiu. Começou a falar com a Maslova em voz baixa, mas o carcereiro empurrou-a para o interior da sala e fechou de vez a porta.

A Maslova aproximou-se então de uma abertura que existia na porta e do outro lado apareceu o rosto da velha, colado com as grades.

Ouviu-se então uma grosseira voz:

— Tem cuidado e não tenhas medo! Nega tudo e diz sempre o mesmo!

— Que importa! — respondeu a Maslova, abanando a cabeça. — Uma ou outra coisa é-me indiferente. Não me pode acontecer nada pior do que já aconteceu.

— Já se sabe que há de ser uma coisa e não duas — disse o carcereiro, muito contente do seu dito espirituoso. — Vamos, segue-me.

A cabeça da velha desapareceu da abertura e a Maslova começou a atravessar a galeria com ligeiro passo, seguida pelo carcereiro.

Depois de descerem a escadaria de pedra, passaram pelas fétidas e ruidosas salas da divisão dos homens, espiados à passagem por olhos curiosos colocados nas aberturas das portas e chegaram, enfim, à secretaria. Já ali se encontravam dois soldados, com a espingarda ao lado, prontos a conduzir a detida ao tribunal.

O empregado acabou de escrever qualquer coisa e entregou a um dos soldados uma folha de papel que cheirava fortemente a tabaco. Este guardou-a cuidadosamente na dobra da manga do capote e, depois de ter piscado maliciosamente os olhos ao seu camarada, indicando-lhe a Maslova, colocou-se-lhe à direita enquanto o outro soldado se colocava à esquerda. E nesta ordem saíram da secretaria, atravessaram o pátio interior, passaram o gradeamento e acharam-se numa das ruas da cidade.

Os cocheiros, lojistas, cozinheiras e empregados detinham-se à passagem do cortejo olhando a prisioneira com curiosidade. Muitos pensavam, acenando com a cabeça: «Aí está ao que leva uma má conduta, ao contrário de nós outros que vamos tão bem!» As crianças paravam, mostrando uma curiosidade mista de terror, desvanecido ao verem a criminosa agora guardada por soldados, que a impediam de futuro fazer mais mal. Um mujique que acabava de vender o seu carvão aproximou-se, persignou-se, e deu um kopeck à Maslova; esta corou e murmurou qualquer coisa: agradava-lhe atrair a atenção geral, esforçando-se ao mesmo tempo por caminhar tão depressa quanto lho permitiam os pés desabituados de andar e calçados nos grosseiros sapatos da prisão.

A transição da atmosfera viciada para o ar fresco alegrava-a, e, ao passar por diante de um armazém de cereais em frente ao qual saltitavam alguns pombos, tocou, ao de leve, com o pé na cauda de um deles.

A ave ergueu voo roçando com as asas pelo rosto da Maslova, que sentiu na face o vento produzido pelo adejar. Sorriu; mas em seguida suspirou profundamente, como se houvesse relembrado a sua atual situação.


Capítulo 2

 

A história de Maslova era das mais comuns.

Era filha natural de uma camponesa, cuja mãe, tratava de gado numa quinta que pertencia a duas velhas senhoras solteiras. A camponesa todos os anos tinha uma criança, que, logo depois de batizada, era abandonada e deixada até morrer de fome, visto vir a este mundo sem ser desejada. A sexta não teve a mesma sorte dos cinco irmãos antecedentes, não porque o pai, um boémio vagabundo, se interessasse mais por ela do que o haviam feito pelos seus respetivos filhos os pais dos anteriores, mas sim porque o acaso fez com que uma das duas velhas senhoras proprietárias da quinta, entrasse subitamente no estábulo das vacas com o fim de ralhar às criadas sobre o mau cheiro que ultimamente o leite exalava, e encontrasse a mulher ainda prostrada, com a criança ao lado, cheia de vida e saúde.

Comovida ao ver a recém-nascida, mas não deixando de ralhar às criadas, quer por permitirem que para ali entrasse aquela mulher, quer pelo fim que ali a havia levado, a velha senhora ofereceu-se para madrinha e ordenou que cuidassem da mãe e da filha dando-lhes alimento e algum dinheiro; assim foi poupada à morte aquela a quem as velhas senhoras ficaram chamando a enjeitada.

A criança ia no terceiro ano quando a mãe adoeceu e morreu. E, como a vaqueira sua avó, não sabia que destino lhe dar, as duas senhoras resolveram tomar conta dela.

Dotada de uns grandes olhos negros, muito esperta e gentil, entretinha extraordinariamente as duas senhoras: a mais nova e também a mais indulgente, que se chamava Sofia Ivanovna e era a madrinha, e a mais velha e também a mais severa, chamada Maria Ivanovna. Sofia vestia-a, ensinava-lhe a ler e queria fazer dela uma governanta. Maria, ao contrário, dizia que seria mais proveitoso fazer dela uma criada, mostrando-se-lhe muito exigente, dando-lhe ordens, chegando às punições corporais, em momentos de má disposição.

Sob esta dupla influência, a pequenita, crescendo, tornou-se meia criada, meia senhora. O próprio nome que lhe deram correspondia a este estado intermediário; chamavam-lhe Katucha, que não é tão requintado como Katinka, nem tão comum como Katia. Cosia, arrumava os quartos, limpava os metais dos santuários, tratava das barreias pequenas e doutros ligeiros trabalhos, fazendo companhia e leitura às duas senhoras.

Por várias vezes foi pedida em casamento, mas havia sempre recusado, pressentindo que a vida a que estava habituada lhe seria impossível como mulher de um operário ou de um criado.

E desta maneira viveu até aos dezoito anos. Ia nos seus dezanove anos quando chegou à propriedade o sobrinho das duas senhoras, um estudante universitário, que uns anos antes passara um verão inteiro na companhia de suas tias, e por quem Katucha, sem saber como, se tinha loucamente apaixonado; o estudante era agora um brilhante oficial que partia para a guerra contra os turcos. Ao terceiro dia na véspera de partir, seduziu-a, deixando-lhe como recompensa uma nota de 100 rublos. Alguns meses depois, ela reconheceu, sem engano possível, que estava grávida.

Desde então tudo lhe pareceu repugnante e não pensou senão na maneira de escapar à vergonha que a esperava; servia as amas com um modo contrariado e desleixava-se no serviço.

As duas senhoras depressa o notaram. Maria Ivanovna, ralhou-lhe uma ou duas vezes, mas afinal viram-se obrigadas a «separar-se dela» como diziam entre si, o que significava que a despediram.

Então entrou como criada em casa de um comissário de polícia onde apenas estacionou três meses, porque o homem, apesar dos seus cinquenta anos, começou a apoquentá-la com demonstrações de amor. Um dia em que a incomodou excessivamente, ela insultou-o chamando-lhe bruto e velho diabo, castigando-o pelo atrevimento com um murro no peito que o tombou. Isto motivou ser expulsa. Aproximando-se o termo da gravidez arranjou com que uma sua tia, uma taberneira que ao mesmo tempo desempenhava as funções de parteira, lhe cedesse um quarto, onde sem muito sofrimento teve lugar o bom sucesso. Acometida por uma febre puerperal em seguida ao parto, teve que separar-se do filho, débil de nascença, para o fazer entrar na Casa Hospício, onde morreu nos braços da mulher que o conduzia.

Ao entrar para a casa de sua tia, Katucha possuía cento e vinte e sete rublos: vinte e sete dos salários enquanto servira as duas velhas senhoras, e cem que lhe tinham sido dados pelo seu sedutor.

Quando saiu apenas trazia seis rublos.

A sua tia e parteira havia dado quarenta por aluguer do quarto durante dois meses e alimentos; vinte e cinco pagara-os para a entrada da criança na Casa do Hospício, outros quarenta emprestara-os ainda à tia para esta comprar uma vaca, e com os vinte restantes comprara roupas, presentes e ninharias de maneira que, ao fim da convalescença, achou-se sem dinheiro, e, por isso, obrigada a procurar uma colocação.

Esta apareceu-lhe em casa de um guarda-florestal, homem casado mas que, como o comissário, desde o primeiro dia principiou a cortejá-la. Katucha, que desejava conservar o lugar, tentou escapar-lhe às perseguições; mas ele, astucioso, experiente e além disso amo, podendo mandá-la como e onde muito bem quisesse, preparou a ocasião e lançou-se a ela.

Surpreendidos um dia pela mulher do guarda, foi depois de batida, novamente expulsa, desta vez sem ao menos lhe pagarem a soldada.

Katucha foi então viver com uma prima, cujo marido, encadernador de profissão, outrora, bem afreguesado, tinha dado em alcoólico, gastando na taberna todo o dinheiro que lhe caía nas algibeiras. A mulher sustentava os filhos e o marido com os tristes lucros que auferia do ofício de engomadeira; propôs a Katucha ensinar-lho. Mas esta, vendo a penosa existência das operárias que trabalhavam com sua prima, hesitou, preferindo dirigir-se a uma agência para lhe arranjarem uma colocação como criada. E de novo entrou para casa de uma senhora viúva, que vivia acompanhada apenas de dois filhos, o mais velho dos quais ao fim de uma semana abandonava os estudos para perseguir a linda criadinha. A mãe, atribuindo toda a culpa a esta, despediu-a.

Nenhum novo lugar aparecia: um dia, tendo ido à agência, Katucha encontrou-se com uma dama cheia de pulseiras no nu e branco pulso e anéis na maioria dos dedos. Sabendo que Katucha estava desempregada indicou-lhe a sua morada, convidando-a a ir visitá-la. E a Maslova foi. A dama acolheu-a da maneira mais amável, mimoseou-a com pastéis e vinho doce, demorando-a até à noite. Apareceu então um homem de alta estatura, cabelo e barba grisalhos que se lhe sentou ao lado examinando-a e gracejando, tudo acompanhado de um sorriso nos lábios e estranho fulgor nos olhos. A dama chamou o a um quarto próximo e Katucha pôde ouvir distintamente estas palavras: «Fresquinha e chegada agora da aldeia».

Momentos passados a respeitável dama dizia-lhe que aquele cavalheiro era um escritor muito rico que lhe daria o que ela quisesse se ela lhe soubesse agradar. E efetivamente ela soube agradar-lhe porquanto este presenteou-a com vinte e cinco rublos, prometendo além disso vir vê-la frequentemente.

Os vinte e cinco rublos depressa se gastaram: algumas fitas, um chapéu, o alojamento pago à engomadeira e outras bagatelas.

Passados alguns dias o escritor mandou-a procurar, deu-lhe de novo vinte e cinco rublos e ofereceu-lhe montar casa.

Travou então conhecimento, por ser seu vizinho, com um alegre e jovem caixeiro de quem cedo se apaixonou; confessando-o sem rebuço ao escritor, este imediatamente abandonou-a.

O caixeiro, que prometera casar com ela, não tardou também a passar-lhe o pé e a Maslova, a quem não desagradava continuar vivendo só, numa casa mobilada, soube que isto lhe era proibido, salvo se quisesse tirar livro e sujeitar-se à inspeção médica.

Então voltou novamente a casa de sua prima. Esta, vendo-a vestida à moda, de chapéu e peles, recebeu-a respeitosamente e não se atreveu a repetir-lhe o oferecimento que já lhe havia feito.

Na sua forma de ver as coisas, julgava-a entrada numa classe superior da sociedade.

Também a Maslova nunca se resignaria a ser engomadeira.

Quando muito permaneceria ali transitoriamente; examinava com um sentimento misto de piedade e desprezo a vida de forçados a que se sujeitavam as operárias, extenuando-se a lavar e a brunir a um calor de trinta graus e com correntes de ar, quer de inverno quer de verão, e dizia a si própria que nunca se sujeitaria a semelhante vida.

Foi nesta época, quando se achava numa extrema penúria, não aparecendo, além disso, nenhum protetor, que foi arrebanhada por unia alcoviteira para fazer parte de uma casa de toleradas.

Maslova habituara-se, havia algum tempo, a fumar, e, após a sua ligação com o caixeiro entregava-se cada vez com mais vício, à bebida. O vinho seduzia-a não só porque lhe era agradável ao paladar mas também porque a distraia e abafava a voz da consciência: no estado normal aborrecia-se e envergonhava-se. A alcoviteira teve o cuidado de, convidando-a a jantar, embriagá-la; fez-lhe então a proposta mostrando-lhe ser aquela a melhor casa da cidade, cheia de comodidades e confortos, e protegida por um sem número de privilégios. A Maslova tinha a escolher entre a probabilidade de arranjar um humilhante lugar de criada, sofrendo as perseguições dos homens e entregando-se a uma prostituição secreta e precária, ou uma posição segura e tranquila, uma prostituição declarada, protegida pela lei e bem retribuída. Escolheu naturalmente o segundo partido. Parecia-lhe que deste modo se vingaria de quem a seduzira, do caixeiro e de todos os homens de quem tinha razões de queixa.

Mas o que sobretudo a tentou e foi a causa principal da sua resolução foi a alcoviteira ter-lhe asseverado que poderia encontrar a bel-prazer quantos vestidos quisesse, de veludo, seda, cetim, vestidos de baile, decotados ou de cauda roçagante.

Imaginou-se vestida de seda clara, decotada, com guarnições de veludo preto, e esta pintura mental decidiu-a a assinar o contrato: tomaram um carro e ficou fazendo parte da conhecida casa dirigida por Carolina Albertovna Rosanov.

A partir desse dia, principiou para Katucha Maslova uma vida de contínua violação das leis divinas e humanas, vida que, seguida hoje por centenas de milhares de mulheres não só com autorização de um poder legal, cuidadoso do bem-estar dos seus subordinados, mas também sob a sua proteção efetiva, conduz noventa por cento a uma degradante e monstruosa decrepitude, a horrorosos sofrimentos e a uma morte prematura.

Durante a manhã e na maior parte do dia um pesado sono seguia as fadigas da noite.

Entre as três e quatro horas erguiam-se dos leitos de roupas sujas; começavam os gargarejos com água de Seltz, os cafés e os passeios pelos quartos em camisa ou penteador com olhares para a rua por entre as persianas corridas e as indolentes questiúnculas entre si; depois, o banhar-se e perfumar-se, o fazer a cintura delicada arrochando bem o espartilho, escolher o vestido do dia com mais disputas com a patroa sobre este assunto, estudar posições diante do espelho, pintar o rosto e as sobrancelhas; nos intervalos bonbons e gulodices; ao anoitecer vestia-se o vestido de seda clara deixando adivinhar as formas do corpo; depois tinha lugar a passagem para a sala das visitas, brilhantemente iluminada, e começava a receção dos clientes com música, dança, pastéis, vinho e tabaco. A seguir, relações sexuais com novos e velhos, celibatários e casados, negociantes, empregados, arménios, judeus, tártaros, ricos, pobres, saudáveis, doentes, bêbados, esfomeados, homens de sociedade, militares, funcionários, estudantes, colegiais, gente de todas as condições, de todas as idades, de todos os carateres.

E gritos e zombarias e risos e música, e tabaco e vinho, e vinho e tabaco, e música desde a tarde até à madrugada. E pela manhã, somente, a liberdade e um pesado sono, e da mesma maneira todos os dias, do princípio ao fim da semana.

Então ao fim desta, realizava-se a visita ao posto da polícia: doutores — homens ao serviço do governo — algumas vezes gravemente, outras vezes levianamente, procediam a um exame, destruindo completamente a modéstia e o pudor dados pela natureza como defesa, não só aos seres humanos mas também aos animais e passavam-lhes uma autorização escrita para continuarem na mesma vida de pecado da semana anterior. E de novo recomeçava a mesma vida de verão e inverno, dias santificados e de trabalho.

Katucha Maslova viveu esta vida durante seis anos. Por duas vezes mudou de casa, e uma vez baixou ao hospital. No sétimo ano — tinha então vinte e seis — teve lugar o acontecimento que motivou a sua detenção e que fez com que agora tivesse de ser julgada depois de seis meses de prisão em companhia de assassinos e ladrões.


Capítulo 3

 


I

 

À hora em que a Maslova, sentada num banco de um quarto do tribunal, se ocupava em descalçar-se por causa do sofrimento experimentado nos pés durante o trajeto através da cidade, o príncipe Dimitri Ivanovitch Nekludov, que a seduzira, acordava no grande leito de molas coberto por um fino edredão de penas e aconchegava ao peito a camisa de noite de fino linho holandês cheia de pregas que se lhe desabotoara. Encostado descuidosamente ao travesseiro, fumava um cigarro e pensava no que faria naquele dia. Lembrou-se da noite anterior, que passara em casa dos Korchaguine, casai riquíssimo, gozando alta consideração, cuja filha, na opinião de todos, devia ser sua esposa, mas esta recordação fê-lo suspirar; lançou fora a ponta do cigarro e estendeu a mão para uma caixa de prata a fim de tirar outro, mas, considerando, ergueu corajosamente o pesado corpo, e tirando de sob a roupa os pês brancos semeados de pelos, calçou os pantufos. Em seguida vestiu o roupão de seda, e, com passo pesado mas rápido, dirigiu-se para o quarto de toilette, junto ao de dormir.

Aí, começou por limpar cuidadosamente com pó especial, os dentes chumbados em vários sítios: bochechou em seguida com um elixir aromático e aproximando-se do lavatório de mármore lavou as mãos com sabão perfumado, empregando cuidado particular em limpar e escovar as unhas, que usava muito compridas.

Depois disto abriu por completo a torneira do lavatório e lavou o rosto, as orelhas e o pescoço.

Num terceiro quarto aguardava-o um banho de chuva. Tendo refrescado o gordo, branco e musculoso corpo, enxugou-o com uma toalha turca, mudou de camisa, calçou botas de verniz resplandecente e sentou-se em frente do espelho para, com o auxílio de um par de escovas, pentear primeiramente a barba negra e em seguida os cabelos, já um tanto raros na frente.

Tudo o que usava e empregava na confeção da toilette, roupas brancas e de cor, calçado, gravatas, alfinetes, botões de punho e de camisa, tudo era de primeira qualidade, dando pouco na vista, muito simples, muito sólido e muito caro.

Nekludov vestiu-se vagarosamente e caminhou em seguida para a sala de jantar, cujo soalho tinha sido encerado no dia anterior por três homens, tal era o seu tamanho. Uma imponente mesa elástica de carvalho com pés esculpidos imitando patas de leão, e um aparador também de carvalho, eram as principais peças do mobiliário desta sala. A mesa estava posta, com uma toalha engomada de finíssimo linho e com grandes nós nos ângulos; sobre ela encontrava-se uma cafeteira de prata cheia de odorífero café, um açucareiro igualmente de prata, uma manteigueira e uma cesta contendo pão fresco, torradas e biscoitos. Ao lado do talher estava o correio da manhã, cartas, jornais e um fascículo da Revue des Deux Mondes.

Nekludov preparava-se para abrir as cartas, quando entrou na sala, pela porta que comunicava com a antecâmara, uma mulher nutrida, de certa idade, e vestida de preto com uma touca de rendas nos cabelos. Era Agripina Petrovna, criada do quarto da falecida princesa, mãe de Nekludov, morta recentemente nesta casa. Desde então, ficara com o filho na qualidade de governanta.

Agripina Petrovna viajara por diversas vezes no estrangeiro acompanhando sua ama; daí, o porte e os modos senhoris que tinha.

Além disso, habitava a casa de Nekludov desde criança, e tinha conhecido Dimitri Ivanovitch quando ele era simplesmente «Mitenka».

— Bons dias, Dimitri Ivanovitch!

— Bons dias, Agripina Petrovna! Que há de novo? — perguntou Nekludov.

— Uma carta que a criada dos Korchaguine trouxe já há bastante tempo e que creio tem resposta, porque ficou esperando — disse Agripina Petrovna, sorrindo significativamente.

— Está bem, deixe-a ver — disse Nekludov pegando na carta. Mas o sorriso de Agripina Petrovna fê-lo entristecer, porque sabendo qual era a sua significação (que também ela esperava vê-lo desposar a jovem Korchaguine), desagradava-lhe que toda a gente supusesse tal coisa. — Diga à criada que espere um pouco mais!

E Agripina saiu da sala, não sem ter posto no lugar competente uma escova de mesa que haviam desarrumado.

Nekludov abriu o perfumado envelope, desdobrou a carta escrita em papel inglês com uma caligrafia também inglesa, mas de linhas desiguais e leu:


Tendo-me obrigado a servir-lhe de memória, lembro-lhe que hoje, 28 de abril, deve fazer parte do júri criminal e que, por consequência, lhe será impossível acompanhar-nos e a Kolossov, a exposição de pintura, como com a sua leviandade habitual nos havia prometido à moins que vous ne soyez disposé à payer à la cour d’assise les 300 roubles d’amende que vous vous refusez pour votre cheval. Depois de ontem se retirar é que me lembrei do que prometera. Recordo-lho para que não se esqueça.

Princesa M. Korchaguine.


Do outro lado havia um post scriptum:


Maman vous fait dire que votre couvert vous atendra jusqu'à la nuit. Venez absolument, à quelque heure que ce soit.

M. K.


Nekludov franziu as sobrancelhas. Esta carta era a continuação da campanha empreendida havia dois meses à volta dele, peia princesa Korchaguine, a fim de o encerrar em laços cada vez mais difíceis de destruir. Além da hesitação que, diante do casamento, experimentam sempre todos os homens que passaram já a mocidade e que se habituaram ao celibato, e estando mediocremente apaixonado, havia ainda um outro motivo que o impedia de se declarar nessa ocasião, mesmo que estivesse decidido a casar. Não era, porém, o facto de ter seduzido e depois abandonado, havia oito anos, Katucha; não! Isso estava, havia muito, esquecido e nunca seria considerado como impedimento para o casamento.

O motivo era que Nekludov mantinha relações com uma senhora casada, relações que ultimamente decidira despedaçar, o que ainda não conseguira, por encontrar oposição declarada por parte da sua amante.

Nekludov era excessivamente tímido com mulheres, e esta timidez é que tinha sugerido a Maria Vassilievna, mulher de um maréchal de la noblesse, o desejo de o dominar. E, com efeito, arrastara-o a uma ligação que de cada vez era mais absorvente e mais penosa. Sucumbindo à tentação, Nekludov não pôde deixar de sentir-se culpado e não se atrevia a quebrar os laços que o uniam à amante, sem o seu consentimento.

Longe de consentir, ela dizia-lhe que, se depois de lhe haver sacrificado toda a vida ele quisesse pagar-lhe com o abandono, lhe restaria apenas o suicídio.

Precisamente, havia no correio dessa manhã uma carta do marido da sua amante que o príncipe à primeira vista reconheceu por causa do sinete e da caligrafia. Corou e sobressaltou-se como que à aproximação de um perigo. Mas, logo que a abriu tranquilizou-se, pois unicamente lhe anunciava que devia realizar-se no fim do mês de maio uma sessão extraordinária do conselho a que ele, marechal, presidia, e lhe pedia que viesse tomar o lugar que lhe competia, visto as suas propriedades estarem dentro daquele distrito, ajudando a dar un coup-d’épaule às duas graves questões que se discutiriam: a das escolas e a das estradas, fazendo assim viva oposição ao partido reacionário.

O marechal era efetivamente liberal, e andava tão dominado pela luta em que se empenhava contra os reacionários que nem tempo tinha para notar que a mulher o enganava.

Nekludov relembrou os dolorosos momentos por que já tinha passado; uma vez, imaginando que o marido tinha descoberto tudo, preparara-se para um duelo, no qual dispararia a arma para o ar, e de outra vez, após uma cena violenta que havia tido com a amante, esta, desesperada, correra através do jardim em direção a um tanque a fim de se afogar.

— Sim, pensava Nekludov, não só não posso lá ir, como nada posso fazer até que receba a sua resposta.

Havia oito dias que lhe escrevera declarando-lhe terminantemente que, reconhecendo-se culpado e prontificando-se a reparar a sua falta de qualquer maneira, as relações que mantinham, para o bem de ambos, deveriam findar.

Era a resposta a esta carta a que ele aguardava e que não acabava de chegar.

Isto podia ser, porém, um bom sinal, porquanto, se o não fosse, há muito que ela teria escrito ou teria mesmo vindo, como o já tinha feito. Há tempos, Nekludov ouvira falar de um oficial que a cortejava muito e, posto que atormentado com ciúmes, embalava-se com a esperança de se desembaraçar de uma mentira que o oprimia.

Uma outra carta que o correio trouxera era do principal administrador das suas propriedades, dizendo-lhe que se tornava cada vez mais necessária a sua presença, ainda que temporariamente, não só para receber a confirmação dos direitos de sucessão, mas também para resolver a questão da forma como as propriedades seriam de futuro governadas.

Tratava-se de saber se se revalidariam os contratos feitos com os aldeões durante a vida da princesa, mãe de Nekludov, ou se, como já o havia aconselhado o administrador, quer a Nekludov, quer a sua falecida mãe, não seria preferível fazer as terras de conta própria, o que afirmava, seria muitíssimo mais lucrativo. A seguir, desculpava-se de não haver enviado os 3000 rublos de renda que lhe eram devidos: seriam remetidos no correio seguinte; e o atraso provinha de que os aldeões demoravam os pagamentos até serem obrigados a fazê-los por meio da força.

Esta carta agradou-lhe e desagradou-lhe. Agradou-lhe porque se sentiu possuidor de uma fortuna maior do que aquela que até então tivera, mas desagradou-lhe porque se lembrou, da sua mocidade e do período em que com a generosidade e resolução próprias daquela idade se entusiasmara pelas doutrinas sociais de Spencer e Henry George, proclamando, escrevendo e pensando que a terra não podia ser um objeto de propriedade individual, chegando até a dar aos aldeões uma pequena propriedade que herdara de seu pai, para conformar a teoria com a prática.

Tinha agora, depois que a morte de sua mãe fizera dele um grande proprietário, a escolher entre dois caminhos: ou renunciar a todos os domínios, como fizera dez anos antes, quando herdara de seu pai, ou tomando posse deles, reconhecer como falsos e mentirosos os princípios e as convicções que outrora sustentara.

O primeiro era, porém, impossível de realizar, porque, constituindo as propriedades toda a sua fortuna, não tinha coragem para entrar novamente para o serviço militar, recurso de que havia de lançar mão se não fora rico.

Além disso estava habituado a uma vida de luxo e ociosidade e sentia que se sacrificaria inutilmente, porque a força das suas anteriores convicções abandonara-o.

Quanto a negar os princípios desinteressados e generosos que tanto se orgulhava em defender e que bebera na leitura do economista americano e na do sociólogo inglês, era um caminho que extremamente lhe desagradava ter de seguir.

 

 

II

 

Tendo acabado de almoçar, Nekludov encaminhou-se para o gabinete do trabalho. Queria ver na citação oficial qual a hora a que deveria comparecer no tribunal e queria responder à princesa Korchaguine. De passagem atravessou o atelier de pintura, onde, sobre um cavalete, estava principiado um quadro, e lançando-lhe, assim como aos que adornavam as paredes, um rápido olhar, sentiu a impotência há muito manifestada, de progredir naquela arte e a consciência do seu pouco ou nenhum talento. Atribuía isto à excessiva delicadeza do seu temperamento artístico; mas não podia deixar de recordar que cinco anos antes abandonara o exército, porque se julgara dotado de um verdadeiro talento para a pintura, e desdenhara de todos os outros ramos de atividade. Numa triste disposição de espírito entrou no gabinete mobilado com todo o conforto, e, aproximando-se da secretária, procurou numa das numerosas gavetas, todas etiquetadas, a citação do tribunal. Esta marcava as onze horas para princípio dos trabalhos.

Nekludov fechou a gaveta, sentou-se e principiou uma carta em que dizia à princesa que, agradecendo o seu convite, esperava poder comparecer à hora habitual do jantar. Mas, relendo-a, achou-a excessivamente íntima; rasgou-a. Escreveu uma segunda que saiu muito seca, quase indelicada; rasgou-a igualmente.

Premiu o botão da campainha elétrica, e um criado, homem de idade avançada, aspeto grave, rosto barbeado, avental escuro atado à cintura, entrou no gabinete.

— Manda-me buscar um carro.

— Imediatamente.

— E diz a essa criada que está à espera, que agradeço muito o convite e procurarei não faltar.

«Não é muito delicado, mas não consigo escrever! De qualquer maneira, vê-la-ei hoje», pensou Nekludov.

E, acabando de vestir o sobretudo, saiu.

À porta esperava-o a carruagem que ordinariamente o servia, muito elegante e com caoutchoucs pneumáticos nas rodas.

— Ontem à tarde V. Ex.ª mal tinha tempo de andar meia versta, quando cheguei a casa do príncipe Korchaguine — disse o cocheiro meio voltado na almofada. O criado disse-me: «Saiu agora mesmo».

«Até os cocheiros já sabem das minhas relações com os Korchaguines!», pensou Nekludov, e novamente formulou-se-lhe no espírito a pergunta se deveria ou não desposar a jovem princesa, pergunta à qual não se atrevia a responder nem de uma nem de outra maneira.

Começou então a repassar os argumentos pró e contra o casamento em geral. Este, julgava, assegurar-lhe-ia além do repouso do lar doméstico, a possibilidade de uma vida honesta e moral; sobretudo Nekludov esperava que uma família e crianças dariam razão de ser à sua vida, agora destituída de atividade racional. Contra o casamento sentia, porém, aquela espécie de temor, de que já falámos, próprio aos celibatários de certa idade na perspetiva de perderem a liberdade e o receio instintivo diante desta misteriosa criatura: a mulher. O primeiro argumento favorável ao casamento com Missy (Missy era como na intimidade se chamava a jovem princesa, cujo verdadeiro nome era Maria) provinha de ela fazer parte de uma família nobre e diferir em tudo, desde as toilettes até à maneira de falar, de andar e de rir, das mulheres vulgares, não por qualquer excecionalidade, mas somente pela sua «distinção». Era esta a única palavra que traduzia bem essa qualidade que ela tão altamente apreciava. O segundo argumento ia Nekludov buscá-lo ao facto da princesa distingui-lo e compreendê-lo melhor do que ninguém; e nisto via uma prova cabal da inteligência e da segurança do seu raciocínio.

Mas havia argumentos muito sérios contra o casamento com Missy: o primeiro era que, segundo todas as probabilidades, Nekludov poderia encontrar uma rapariga ainda mais «distinta» do que Missy; em segundo lugar esta tinha já vinte e sete anos e provavelmente amara já outros homens, ideia que o atormentava.

Orgulhoso como era não admitia que, mesmo no passado, a princesa tivesse amado outro que não ele. Por certo não podia exigir dela que antecipadamente tivesse conhecimento da sua existência, mas a ideia de que ela amara outro homem afigurava-se-lhe humilhante.

Resumindo, os argumentos pró e contra equilibravam-se, e Nekludov não pôde deixar de rir, comparando-se ao burro da fábula, que não sabia para qual feixe de feno se deveria dirigir.

«Enquanto não receber resposta de Maria Vassillievna, é impossível comprometer-me», pensou. E o sentimento da necessidade de adiar esta resolução, causou-lhe prazer. «Mais tarde pensaremos nisto», dizia a si próprio, enquanto a carruagem rodava no pátio interior do Tribunal. «Por agora trata-se de cumprir um dever social com o cuidado que emprego em todas as minhas ações. E muitas vezes estas sessões são interessantes.»

E, passando pelo guarda do portão, entrou no palácio da Justiça.


Capítulo 4

 


I

 

Quando Nekludov entrou no Tribunal, encontrou-o já transbordando de ativa animação.

Os guardas corriam pressurosos levando papéis, ou passeando lentamente com as mãos cruzadas nas costas; os oficiais de diligências, procuradores e advogados andavam de um lado para o outro; os litigantes e os detidos em liberdade condicional, encostavam-se às paredes, humildemente, ou sentavam-se nos bancos esperando.

— Onde é a sala das audiências? — perguntou Nekludov a um dos guardas.

— Qual, a do crime ou a do cível?

— Eu sou jurado.

— Então devia perguntar pela do crime. Volte à direita, depois à esquerda: é na segunda porta.

Nekludov seguiu esta direção.

Diante da porta que o guarda lhe indicara estavam dois homens conversando. Um era um gordo negociante que, com a evidente intenção de se desempenhar o melhor possível das suas obrigações, bebera e comera abundantemente, a avaliar pela alegre disposição de espírito em que se encontrava; o outro era um caixeiro de origem judaica. Falavam a respeito da cotação do algodão quando Nekludov, aproximando-se, lhes perguntou se era efetivamente ali que se reuniam os jurados.

— Sim senhor, precisamente aqui. Faz parte do júri? É dos nossos? — perguntou o negociante piscando alegremente os olhos.

— Então seremos companheiros do trabalho! — ajuntou depois que Nekludov respondeu afirmativamente. — Baldackov, negociante de segunda classe — disse, ao tempo que estendia a sua larga e flácida mão a Nekludov.

— E a quem tenho a honra de falar?

Nekludov declinou o seu nome e entrou na sala dos jurados.

— O pai fazia parte da casa do imperador — disse o judeu.

— Então é rico? — inquiriu o negociante.

— É um ricaço!

Na pequena sala destinada aos jurados, estava reunida uma dúzia de homens de todas as classes. Tinham Iodos chegado havia pouco e uns estavam sentados, outros andavam de um lado para o outro, examinando-se e travando mútuo conhecimento. Apenas um coronel aposentado vestia uniforme; os outros traziam indistintamente rabona ou fraque e só um vestia blusa de lavrador russo.

Vários dentre eles tinham abandonado as suas ocupações diárias para cumprir as funções de jurados, do que se queixavam amargamente, mas ao mesmo tempo com uma certa satisfação por se tratar do desempenho de um dever social.

Depois de um mútuo e superficial exame, alguns agruparam-se conversando do tempo, da rápida chegada da primavera e dos assuntos a tratar como jurados, enquanto outros procuravam ser apresentados a Nekludov, mostrando-se altamente honrados em travar conhecimento com ele, homenagens que este recebia como legítimas e naturais. Se, porém, lhe tivessem perguntado porque é que se considerava como superior à maioria dos homens, ver-se-ia impossibilitado de responder, porque a sua vida, principalmente nos últimos anos, não tinha merecimento algum.

Falava, é verdade, corretamente o inglês, o francês e o alemão; usava das melhores roupas, quer brancas quer de cor, e as gravatas, botões de punho e alfinetes era tudo comprado do melhor e no primeiro estabelecimento da cidade; mas isto aos seus próprios olhos não era motivo para clamar superioridade.

E, contudo, estava convencidíssimo da sua superioridade, e tão habituado às provas de deferência que usualmente recebia, que a falta destas magoava-o como uma afronta.

Pois precisamente na sala dos jurados esperava-o um rude choque.

Entre aqueles estava um seu antigo conhecido, um tal Pedro Gérasimovitch, que fora professor de seus sobrinhos, os filhos de sua irmã, homem de quem Nekludov nunca conseguira saber o apelido, e que tendo terminado o bacharelato, entrara como professor num liceu. Nekludov detestava-o por causa da sua familiaridade, do seu riso jactancioso e dos seus modos grosseiros.

— Ah! ah! Então também foi agarrado? — foram as palavras com que cumprimentou Nekludov. — Porque é que não arranjou a que o dispensassem?

— Nunca me lembraria de semelhante coisa — respondeu Nekludov secamente.

— Isso é que se chama coragem cívica. Mas espere até ter fome ou sono e veremos se fala assim — acrescentou o professor rindo ruidosamente.

«Este filho de um padre é capaz de principiar a tratar-me por tu!», pensou Nekludov, afastando-se do professor com uma expressão de tristeza no rosto, como se acabasse de saber da morte de algum parente, para se aproximar de um grupo reunido em redor de um indivíduo de alta estatura, barbeado de fresco e que parecia contar animadamente alguma coisa interessante.

Era a história de uma ação que corria no cível e na qual um famoso advogado de S. Petersburgo, que o narrador conhecia, tinha conseguido com que uma velha senhora pleiteando justamente, tivesse perdido a sua causa.

— É um verdadeiro génio! — dizia ele ao advogado.

Todos o escutavam atentamente, e posto que alguns tentassem dirigir-lhe a palavra, era-lhes impossível fazê-lo porque o narrador tinha monopolizado o assunto e o direito de falar.

Apesar de Nekludov ter chegado tarde, teve ainda de esperar muito tempo.

Faltava um dos membros do tribunal, por quem todos esperavam para se abrir a audiência.

 


II

 

O juiz presidente tinha chegado muito cedo. Era um homem nutrido e alto, usando fartas suíças e, posto que casado, levando vida dissipada e deixando que sua mulher fizesse o mesmo, a fim de não se incomodarem um ao outro.

Naquela mesma manhã recebera uma carta de uma governanta suíça e que já o fora em sua casa, prevenindo-o que se encontrava naquela cidade de passagem para S. Petersburgo e que o aguardaria desde as 3 até às 6 no Hotel da Itália. Era isto que fazia com que desejasse começar e acabar o mais depressa possível a audiência daquele dia, a fim de ir ter com a loura Clara para continuar o interrompido romance do verão transato.

Entrando no gabinete, fechou a porta à chave e, abrindo a gaveta inferior de um armário, tirou dois alteres e levantou-os vinte vezes em todas as direções: para cima, para baixo e para os lados, terminando por elevá-los três vezes ao alto, com flexões de joelhos.

«Não há nada como um banho frio e um pouco de ginástica», dizia a si próprio, apalpando o bíceps do braço direito com a mão esquerda, onde usava um anel de ouro. Preparava-se para fazer o moulinet, outro exercício que como o precedente, nunca deixava de executar antes de audiências demoradas, quando bateram à porta.

Escondeu rapidamente os alteres e abriu-a dizendo:

— Peço desculpa.

Era um outro juiz, de aspeto triste, ombros descaídos, pequena estatura e usando óculos de ouro, que entrou no gabinete.

— São horas! — disse com voz aguda.

— Estou pronto — respondeu o presidente, acabando de vestir a toga —, mas Mateus Nikitich ainda não chegou!

— É ser pouco consciencioso! — disse o juiz, sentando-se e acendendo um cigarro.

Este magistrado, homem de uma pontualidade extrema, tivera pela manhã uma cena desagradável com sua mulher, porque esta gastara-lhe todo o dinheiro que deveria durar até ao fim do mês e viera pedir-lhe mais. Ele recusara-o e daí a questão. Ela declarava-lhe terminantemente que neste caso escusava de vir jantar porque não o encontraria feito, e ele partira sobre esta ameaçadora perspetiva, pois sabia-a capaz de a realizar.

«Vá lá alguém viver honrada e irrepreensivelmente!», dizia a si mesmo o juiz, olhando para o nutrido e saudável presidente que parecia vender saúde e bom humor e com os braços muito abertos alisava com as brancas mãos, as espessas suíças, dispondo-as de modo que deixasse ver o colarinho de reluzente alvura. «Ele está sempre alegre e satisfeito enquanto eu não tenho senão desgostos!»

Neste momento entrou um escrivão trazendo documentos que o presidente pedira.

— Muito obrigado — disse este, acendendo também um cigarro.

— Por onde principiamos hoje?

— Caso V. Ex.ª não mande o contrário, pelo envenenamento — respondeu o escrivão.

— Está muito bem.

O presidente calculou que seria um processo dos mais simples e que por consequência estaria terminado às quatro horas, dando-lhe tempo de comparecer ao rendez-vous da sua gentil suíça.

— Breuer já chegou? — perguntou ainda ao escrivão quando este ia a sair.

— Creio que sim.

— Então faça o favor de lhe dizer que começaremos pelo envenenamento.

Este Breuer era o Delegado do Ministério Público que devia fazer a acusação, e efetivamente o escrivão encontrou-o no corredor, com a cabeça inclinada para a frente, casaco desabotoado, uma grande carteira presa sob o sovaco, andando com largos passos, quase que a correr e batendo com os tacões das botas no soalho, ao tempo que agitava um braço febrilmente.

— Miguel Petrovich mandou perguntar se V. Ex.ª está pronto? — disse-lhe o escrivão, indo ao seu encontro.

— Certamente, estou sempre pronto! Por que processo começaremos?

— Pelo do envenenamento.

— Está muito bem!

Na realidade, porém, não julgava que estivesse muito bem. Tendo passado toda a noite a jogar e a beber, em companhia de um amigo de quem se despedia, abandonara a mesa do jogo às cinco da madrugada para irem ainda à antiga casa, onde, seis meses antes se encontrava a Maslova, de modo que não tivera sequer tempo de folhear o processo do envenenamento que ia entrar em julgamento. Por este facto, que era do conhecimento, do escrivão, é que este o indicara ao juiz presidente como devendo ser julgado em primeiro lugar, dando largas à sua antipatia pessoal contra Breuer, quer aos seus olhos de liberal radical (apesar de servir na magistratura recebendo 1200 rublos de pensão), além de ser um conservador que, como a maioria dos alemães servindo na Rússia, era um ortodoxo fanático, desempenhava ainda a comissão que ele escrivão há muito ambicionava

— E o processo dos Skoptsy?1 — perguntou o escrivão.

— Já disse que sem as testemunhas não posso fazer nada — respondeu o delegado — e isto mesmo hei de dizê-lo na audiência.

— Mas que importa isso?

— É impossível — retorquiu; e, agitando o braço, entrou no seu gabinete.

O verdadeiro motivo por que queria adiar o julgamento dos Skoptsy não era a falta de algumas testemunhas insignificantes, mas sim porque se o processo fosse julgado com júri instruído com certeza terminaria pela absolvição, e que numa viloriazita qualquer, com um júri de gente da aldeia, como havia combinado com o presidente, era mais fácil arranjar a condenação dos incriminados, o que particularmente agradava ao seu espirito ortodoxo.

Nos corredores, no entanto, havia aumentado o movimento.

Toda a gente se apinhava na sala das audiências do cível, assistindo ao julgamento de um destes casos chamados interessantes; o mesmo do qual falava com tanta competência na sala dos jurados, a importante personagem barbeada de fresco.

Um astuto homem de leis, apoderara-se ainda que sem sombra de razão nem de direito moral, e todavia de maneira estritamente legal, de toda a fortuna de uma idosa senhora, cujos agravos eram absolutamente justos. Isto era sabido pelos juízes e ainda mais pelo jurista e pelo seu cliente; mas a rábula do advogado fora tal que a velha senhora perdia inevitavelmente a ação.

Na ocasião em que o escrivão entrava no cartório, viu passar na sua frente a velha que acabava de ser despojada dos seus haveres. Era gorda e forte, usando um chapéu com grandes flores. Agitava vivamente as mãos curtas e nutridas, repetindo incessantemente para o advogado que a acompanhava: «Mas onde vai isto parar! onde vai isto parar?» Sentaram-se num banco que encontraram, entabulando logo conversa muito complicada mas que evidentemente já não tinha referência com o processo, pois que o advogado acenava com a cabeça mas olhava mais para as flores do chapéu do que escutava a infeliz cliente.

De repente abriu-se uma porta, e o famoso advogado que fizera com que os 100000 rublos da velha passassem para o seu constituinte apenas pela módica retribuição de 10000 rublos, apareceu, muito brilhante, de colete decotado, deixando ver o engomado peito da camisa e um deslumbrante plastron: um sorriso de satisfação brincava-lhe nos lábios, e caminhando serena e ligeiramente, passou em frente da velha dama.

Involuntariamente todos os olhares se lhe dirigiram e ele, notando-o, parecia dizer em todo o seu porte: «Por quem são, senhores! Nada de cumprimentos!»

 


III

 

Afinal Mateus Nikitich, por quem se aguardava, chegou também e logo o meirinho, homenzito magro, de pescoço comprido e andar desigual, entrou na sala onde se achavam reunidos os jurados. Este empregado era um bom homem, com o curso completo da universidade, mas era-lhe impossível estacionar em qualquer posição social porque se entregava à bebida.

Haveria três meses que uma condessa, protetora de sua mulher, lhe arranjara aquele lugar e ele andava satisfeitíssimo por se ter conservado já tanto tempo nele, o que lhe parecia miraculoso.

— Meus senhores, estará tudo presente? — perguntou, colocando as lunetas e olhando para os jurados.

— Creio que sim — respondeu o alegre negociante.

— Vou verificar — disse o meirinho.

E, tirando do bolso uma lista de nomes, começou a fazer a chamada, olhando para os jurados, quer através, quer por cima das lunetas.

— O conselheiro de Estado J. M. Nikiforov?

— Sou eu! — respondeu a importante personagem, que conhecia todas as questões judiciárias.

— O coronel aposentado Ivan Semenovitch Ivanov?

— Presente — respondeu o que vestia uniforme.

— Pedro Baklackov, negociante de segunda classe?

— Pronto, aqui estou, pronto — disse o jovial negociante, espraiando um franco sorriso pelos circunstantes.

— Capitão das guardas, Príncipe Dimitri Nekludov?

— Sou eu — respondeu Nekludov.

O meirinho curvou-se delicado e amavelmente como se o quisesse distinguir de todos os demais.

Depois continuou:

— Capitão Jorge Dankenko? Negociante Gregório Koulechov? etc., etc..

À exceção de dois, todos estavam presentes.

Todos se encaminharam para o lugar indicado, cada qual afastando-se delicadamente diante da porta para deixar passar o seu colega.

A sala das audiências era vasta, com um estrado ao fundo, a que três degraus davam acesso. No meio estava uma mesa coberta de pano verde e franjas de um verde mais escuro; colocadas atrás, três cadeiras, de encosto muito elevado, em carvalho esculpido.

Por cima destas e dependurado na parede via-se um retrato do imperador num caixilho dourado, de cores berrantes, uniforme, grã-cruz e a mão nos copos da espada. No canto direito um retábulo contendo o Cristo coroado de espinhos fazia face a uma estante de coro, a seguir à qual se encontrava a carteira do agente do Ministério Público. Em frente a esta, à esquerda, achava-se a do escrivão, e mais à frente, perto do público, um gradeamento de madeira cercava o banco dos réus, ainda vazio como todos os outros do estrado.

Neste mesmo lado havia uma fila de cadeiras de encosto, destinadas aos jurados e na parte mais alta do estrado estavam dispostas, quase que chegadas à parede, as mesas dos advogados.

Uma grade de ferro separava a sala do espaço destinadas ao público, para o qual havia bancadas em anfiteatro até à parede do fundo. Na primeira destas, quatro mulheres trajando como domésticas ou operárias e dois homens de igual condição estavam sentados e conversavam em voz muito baixa evidentemente impressionados pela grandeza de toda a decoração.

Apenas os jurados entraram na sala, o oficial subiu ao estrado e, em voz alta, como para intimidar assistência, anunciou:

— Meus senhores, está aberta a audiência.

Tudo se levantou quando os juízes apareceram. À frente vinha o presidente das fartas suíças que Nekludov reconheceu logo: encontrara-o havia dois anos na aldeia, dirigindo o cotillon de um baile e dançando-o com muito entusiasmo.

A seguir vinha o infeliz juiz ainda de aspeto mais sombrio, porque, ao entrar para a sala, encontrara seu cunhado, a quem a irmã afirmara de novo que naquele dia não haveria jantar para ninguém.

— Que queres tu?! Vamos jantar ao restaurante — dissera-lhe rindo o cunhado.

— Não lhe acho graça nenhuma — respondera o tristonho magistrado, entristecendo ainda mais.

Em terceiro lugar apareceu o retardatário Mateus Nikitich, de barba comprida e olhos de bondade, largos e redondos. Sofria muito de um catarro estomacal e seguindo o conselho do médico, principiara um novo tratamento que o demorava em casa mais tempo que o usual. Caminhava para o estrado com ar absorto, e efetivamente estava-o. Habituara-se, por toda a espécie de meios, a adivinhar as respostas às suas mais íntimas perguntas, e assim dissera a si próprio que o número de passos a andar desde o gabinete até à cadeira que ia ocupar fosse divisível por três, seria essa a prova que lhe demonstraria a cura certa da sua doença pelo tratamento que iniciara.

O espaço percorrido não dava mais que vinte e seis passos mas ao chegar ao lugar, encurtou o andamento e conseguiu contar vinte e sete.

Era dos mais imponentes o aspeto que apresentavam o presidente e os seus acólitos, em pé no estrado, envoltos nas amplas dobras do vestuário. Eles próprios assim julgaram e sentiram; como que confusos de tanta grandeza sentaram-se depressa, baixando modestamente o olhar para a mesa, na qual, além do instrumento triangular sobrepujado pela águia imperial chamado o espelho da justiça, havia tinteiros, penas, papel em branco e profusão de lápis de tamanhos, cores e qualidades diversas, aparados recentemente.

Por último entrou o delegado, andando rapidamente, sobraçando sempre a enorme carteira e agitando o braço livre.

Mal se sentou embebeu-se na leitura do processo, aproveitando todos os minutos para confecionar a acusação. Era esta apenas a quarta vez que Breuer acusava, pois a sua nomeação tinha sido recente, e como era muito ambicioso, queria fazer um bom lugar, obtendo tantas condenações quantas fosse possível, todas as vezes que acusasse.

Já estudara o processo nas suas linhas gerais e formara o plano de ação, mas precisava conhecer mais detalhadamente o caso, para apoiar e fundamentar a argumentação.

Na outra extremidade do estrado sentava-se o escrivão, tendo na frente os documentos que tinha de ler; enquanto não começava, ia percorrendo com os olhos o artigo de um jornal apreendido e a respeito do qual desejava falar com o juiz das suíças compridas, que sabia ser da mesma cor política; porém, para poder falar dele deseja valê-lo e conhecê-lo bem a fundo.

 


IV

 

Depois de haver consultado alguns documentos e dirigido umas perguntas ao escrivão e ao oficial, que responderam afirmativamente, o juiz presidente ordenou que trouxessem os presos.

A esta ordem abriu-se ao fundo uma porta e dois soldados de barretinas peludas na cabeça e espadas desembainhadas, entraram seguidos pelos três prisioneiros: o homem, um ruivo com sardas no rosto, e as duas mulheres. Aquele vestia as roupas da prisão, muito compridas e muito largas para o seu corpo, conservando os braços apertados para suster as mangas, que de outro modo lhe esconderiam as mãos.

Olhava obstinadamente para o banco junto do qual passava, parecendo não ver nem os juízes nem o público, até que tendo dado a volta, sentou-se na extremidade do banco que lhes era destinado, deixando excessivo espaço para as mulheres.

Ergueu então os olhos para o presidente e agitou os lábios e os músculos do rosto como que murmurando qualquer coisa.

A mulher que se lhe seguia, igualmente vestia o uniforme das detidas e devia ter cinquenta anos.

Trazia amarrado à volta da cabeça um lenço da prisão e o seu rosto, excessivamente pálido, nada teria de notável se não fosse desprovido por completo de pestanas e sobrancelhas.

Aparentava completa serenidade; ao chegar ao seu lugar, como o vestido se lhe prendesse a um prego, desprendeu-o cuidadosamente, sem se apressar, arranjou-o e sentou-se.

A outra era a Maslova.

Logo que apareceu, todos os homens presentes lhe dirigiram os seus olhares, fixando-lhe o branco rosto, os olhos brilhantes e o farto seio, que o amplo capote não conseguia disfarçar.

O próprio soldado junto do qual ela ia passar não a largava com a vista até que a viu sentar-se; então, como se houvera cometido um crime, retirou os olhos, estremeceu e fixou-os na janela que lhe ficava fronteira.

O presidente esperava que todos estivessem sentados. Dirigiu-se depois ao escrivão e ordenou que se fizesse a chamada dos jurados, ao que se seguiu a imposição de multas aos que faltavam, a leitura das cartas dos que se escusavam e finalmente a substituição dos ausentes pelos suplentes. Em seguida o presidente pediu ao padre para vir dar juramento aos jurados.

O padre era um velho calvo e gordo, de rosto avermelhado, usando uma barba rara e branca. Vestia sotaina de seda de cor de canela, e ao peito, pendente de uma cadeia, trazia uma cruz de ouro que incessantemente revirava com os dedos inchados. No seu lado esquerdo brilhava igualmente uma pequena condecoração. Ordenara-se havia quarenta e nove anos e desejava celebrar no ano seguinte o seu jubileu, como recentemente o fizera o arcipreste da catedral.

Estava adido ao Palácio da Justiça desde a sua construção e orgulhava-se de ter feito prestar juramento a dezenas de milhares de pessoas, continuando, apesar de velho, a trabalhar pelo bem da Igreja, da Pátria e da família, a quem contava legar, além da casa que habitavam, uns trinta mil rublos em bons papéis.

O que, porém, nunca lhe lembrara é que procedesse mal fazendo prestar juramento sobre o Evangelho num tribunal, pois que tinha certo prazer nesta ocupação, que o relacionava com muitas distintas personagens.

Neste próprio dia conhecera o famoso advogado de S. Petersburgo, o que muito o regozijara e principalmente quando soube que só aquele processo lhe rendera dez mil rublos.

Logo que o presidente lhe pediu para fazer prestar juramento aos jurados, o velho padre, erguendo lentamente os pés adormecidos, dirigiu-se para a estante colocada à frente da imagem, seguido por todos os jurados, que apressadamente se haviam levantado.

— Um momento — disse o padre, remexendo na cruz de ouro com a mão direita, e esperando que todos se tivessem aproximado.

Depois que os viu todos reunidos junto à imagem, inclinou de lado a cabeça e enfiou-a pela abertura gordurenta da estola; acabando de compor uns raros cabelos, falou nestes termos:

— hão de levantar a mão direita com os dedos assim! — disse levantando a sua, com os dedos dobrados como se preparados para tomar uma pitada. — Agora repitam o que eu disser: juro pelos Santos Evangelhos e pela cruz viva de Nosso Senhor, que no processo no qual... Não abaixe a mão! — disse, interrompendo-se e dirigindo-se a um dos jurados que a ia abaixando; e, de novo recomeçou, parando lentamente a cada frase: — Que no processo... no qual...

O importante personagem recém-barbeado, o coronel aposentado, o negociante e ainda outros jurados, conservavam o braço levantado e os dedos dobrados exatamente como o queria o padre; outros, porém, procediam descuidosa e indecisamente.

Uns repetiam a fórmula do juramento em voz alta com expressão e paixão; outros murmuravam-na, atrasavam-se e, como que aterrados, apressavam-se a apanhar de novo o fio das palavras do padre. Alas, no conjunto, a impressão experimentada por todos era a de mal estar, excetuando o padre, que estava firmemente convicto de cumprir um útil e importante dever.

Em seguida o presidente convidou-os a escolherem entre si um para desempenhar as funções de presidente do júri; para isto levantaram-se e passaram novamente ao gabinete, onde, mal chegados, puxaram de cigarros, que acenderam.

Alguém lembrou a importante personagem como devendo desempenhar aquele cargo, o que unanimemente foi aceite, e depois do que, abandonando os cigarros, todos voltaram para a sala das audiências.

O presidente do júri indicou-se como nomeado para aquele lugar e todos se sentaram de novo nas cadeiras de altos encostos.

Tudo caminhava rápida, ligeira e solenemente, e esta exatidão, ordem e pontualidade, evidentemente, fortalecia naqueles que tomavam parte nesta solenidade, a crença de que se desempenhavam de um grave dever social.

Nekludov partilhava igualmente estes sentimentos.

Foi então a vez do juiz presidente dirigir a sua solução ao júri, expondo-lhe quais os seus direitos, deveres e responsabilidades. Enquanto durou o discurso mudava constantemente de posição; ou se inclinava à direita para logo se voltar à esquerda, ou, encostando-se à cadeira, em seguida desencostava-se, para arranjar na mesa as folhas de papel soltas e agitar a faca de cortar papel, que largava para tomar um dos lápis.

Os direitos dos jurados consistiam, disse-lhes ele, em poderem interrogar os presos por intermédio do seu presidente e em poderem examinar as provas materiais da ação.

Os deveres consistiam em julgar não injusta mas sim justamente, e finalmente as responsabilidades provinham-lhes das suas deliberações terem de ser secretas, expondo-se à severidade da lei aqueles que comunicassem com estranhos, no exercício das suas funções.

Tudo isto foi escutado religiosamente pelos jurados.

O negociante, acenando convictamente com a cabeça, espalhava no seu âmbito um forte cheiro a aguardente e sufocava altos soluços.

 


V

 

Acabada a alocução começou o interrogatório.

— Simão Kartimkine, levante-se!

Simão ergueu-se nervosamente: os lábios agitavam-se-lhe rápida e ininteligivelmente.

— Como se chama?

— Simão Petrovich Kartimkine — disse de uma só vez, com voz desagradável, evidentemente tendo preparado a resposta.

— A que classe pertence?

— Nós somos da aldeia.

— De que governo e distrito?

— Do governo de Toula, distrito Krapivo, comuna Koupianskou, aldeia de Borki.

— Que idade tem?

— Trinta e quatro, nasci em mil oitocentos...

— Qual é a sua religião?

— Nós somos da religião russa ortodoxa.

— É casado?

— Nunca fomos casados.

— Em que se ocupava?

— Trabalhávamos no Motel Mauritânia.

— Já foi alguma vez julgado?

— Nós nunca fomos julgados porque como vivíamos, antes de...

— Então nunca foi julgado?

— Graças a Deus, nunca, senhor, nunca.

— Foi-lhe entregue a cópia do auto de acusação?

— Sim, senhor, entregaram.

— Pode sentar-se. Eufémia Ivanovna Bochkov! — continuou o presidente, dirigindo-se a uma das duas mulheres.

Porém, Simão continuou de pé, ocultando a Bochkova.

— Kartimkine, sente-se!

Mas Kartimkine teimava em ficar de pé e só quando o escrivão, inclinando a cabeça e fixando nele um olhar severo, lhe ordenou que se sentasse é que ele se resolveu a fazê-lo, tão excitadamente como se levantara, recomeçando a remexer os lábios e embrulhando-se no amplo capote.

— Como se chama? — perguntou de novo o presidente suspirando de fadiga por ser obrigado a repetir sempre a mesma coisa; e examinava uns documentos em vez de olhar para a interrogada, tal era o hábito em que estava de se ocupar simultaneamente de dois assuntos, a fim de terminar mais rapidamente.

Bochkova tinha quarenta e três anos, era da classe burguesa e por profissão desempenhava a de criada do mesmo hotel. Nunca fora julgada e recebera a cópia do auto de acusação. Respondeu a todas as perguntas com atrevimento provocante como se quisesse dizer: «Sim senhor, sou eu Eufémia Bochkova, recebi a cópia, no que tenho muito prazer, e não consinto que ninguém se ria disso!» Não esperou que a mandassem sentar, pois mal findara o interrogatório já o havia feito.

— Como se chama? — perguntou de novo o presidente, desta vez dirigindo-se à terceira detida — Tem de se levantar! — acrescentou afavelmente vendo que a Maslova ficava sentada.

Ela então levantou-se, a cabeça erguida, o peito ereto e, sem responder, fixou resolutamente o presidente com os olhos negros e sorridentes.

— Qual é o seu nome?

Murmurou indistintamente qualquer coisa.

— Fale mais alto! — disse o presidente.

— Lubova — respondeu.

Nekludov, à medida que os presos iam sendo interrogados, examinava-os através das lunetas.

«É impossível! Esta chama-se Lubova, não é o mesmo nome! Mas que prodigiosa semelhança!», dizia ele a si mesmo, não despregando os olhos do rosto da detida.

O presidente ia a passar a outra pergunta, mas algumas palavras do outro juiz das lunetas, chamaram-lhe a atenção para a resposta da prisioneira:

— Como! Lubova? Mas aqui está outro nome?

A detida permaneceu silenciosa.

— Diga-me qual é o seu verdadeiro nome?

— O seu nome de batismo? — sugeriu o juiz das lunetas.

— Em tempos chamei-me Catarina.

«Não, não pode ser», dizia ainda Nekludov; mas não havia já dúvida possível, era ela, a Katucha meia criada, meia governanta que ele sinceramente amara e a quem, num momento de loucura, seduzira e abandonara e em quem desde então evitara sempre pensar porque a recordação era-lhe demasiado dolorosa, humilhando-o e mostrando-lhe que ele, tão altivo da sua retidão, se conduzira cobarde e vilmente para com aquela mulher.

Sim, era bem ela!

Via claramente no seu rosto essa individualidade misteriosa que faz distinguir em face de todas as demais, tornando-a única, especial, sem equivalência possível.

E, apesar da palidez doentia e do emagrecimento, essa individualidade aparecia-lhe nas linhas do rosto, na boca, nos olhos ligeiramente estrábicos, na voz, e principalmente no olhar ingénuo, no sorriso agradável e na expressão da graciosidade de todo o seu porte.

— Devia ter respondido logo isso! — continuou o presidente com a mesma afabilidade. — E o seu apelido?

— Sou filha natural — respondeu a Maslova.

— Não importa, diga o do seu padrinho.

— Mikailovna.

«Mas de que crime pode ela ser acusada?», conjeturava Nekludov, todo arquejante.

— Referia-me ao apelido familiar — retorquiu o juiz.

— Também me conheciam pelo nome de minha mãe, Maslova.

— A que classe pertence?

— À burguesia.

— Religião? Ortodoxa?

— Ortodoxa.

— Profissão? Em que se ocupa?

Maslova calou-se.

— Em que se emprega? — repetiu o juiz.

— Estava numa casa.

— Mas em que casa? — perguntou severamente o outro magistrado.

— Os senhores sabem perfeitamente em que casa eu estava! — respondeu a Maslova, desviando por instantes o olhar para novamente voltar a fixar o presidente.

Um estranho rubor subiu-lhe ao rosto.

Havia qualquer coisa tão extraordinária na expressão do seu semblante, tão terrível e pungente nas suas palavras e no rápido olhar em que envolveu a assistência, que o presidente baixou a cabeça e momentaneamente reinou na sala profundo silêncio. Um riso, vindo das bancadas do público, destruiu-o, o que obrigou o oficial a lançar um prolongado «schhhh»!

O presidente ergueu a cabeça e prosseguiu no interrogatório.

— Nunca foi julgada?

— Nunca — respondeu a Maslova em voz baixa, suspirando.

— Recebeu a cópia do auto de acusação?

— Sim, senhor — respondeu.

— Pode sentar-se!

A detida ergueu a extremidade da saia com o gesto de uma senhora levantando a cauda do vestido, sentou-se envolvendo as mãos nas mangas do capote, e voltou a fixar o presidente.

A tranquilidade e a palidez voltaram-lhe de novo ao rosto.

Procedeu-se em seguida à chamada das testemunhas, que foram enviadas para um gabinete separado, onde também lhes foi fazer companhia o médico perito; deviam todos aguardar ali que fossem de novo introduzidos.

O oficial, levantando-se, começou a leitura do auto de acusação.

Lia-o em voz alta e distinta, mas tão rapidamente que as palavras formavam apenas um ruído abafado, contínuo e adormecedor.

Os juízes agitavam-se impacientes nas cadeiras, desejosos de ver terminada a leitura, e um dos soldados, custosamente, reprimiu por duas vezes um bocejo.

Dos detidos, Kartimkine agitava constantemente os lábios; a Bochkova, conservando todo o sossego, coçava de vez em quando a cabeça, erguendo um pouco o lenço, e a Maslova, imóvel, fixara o olhar no escrivão; durante a leitura, por duas ou três vezes, estremeceu ligeiramente, corou e mudou a posição das mãos, para novamente voltar à primitiva.

Quanto a Nekludov, continuava sentado na cadeira de alto encosto de jurado, observando a Maslova; no íntimo de sua alma agitava-se uma complicada e dolorosa luta.

 


VI

 

Eis do que constava o auto de acusação:

«Aos 17 de dezembro de 188..., o gerente do Hotel Mauritânia, desta cidade, participou a morte repentina de um dos hóspedes, o negociante siberiano Férapont Smielkov.

«A certidão do médico da quarta divisão atestava que a morte fora devida a uma rutura da aorta, produzida pelo abuso de bebidas espirituosas e o corpo de Smielkov fora devidamente enterrado após o terceiro dia do falecimento. No quarto dia, porém, um companheiro e confrade daquele, o negociante Timochine, chegado de S. Petersburgo e informado das circunstâncias em que se dera a morte de seu amigo, emitiu a suspeita de que esta não tinha sido natural, mas sim que o defunto poderia ter sido envenenado com o fim de se apoderarem de um anel de brilhantes e de uma grande quantia, que Smielkov devia possuir e que não fora mencionada no inventário realizado em seguida ao seu falecimento.

«Tendo-se procedido a um inquérito, provou-se:

«1º. Que pouco tempo antes da sua morte o dito Smielkov tinha recebido num banco, três mil e oitocentos rublos, conforme o declararam o gerente e o caixeiro do negociante Starikov, sendo certo que apenas figurava a importância de trezentos e doze rublos e dezasseis kopecks.

«2º. Que Smielkov no dia anterior àquele em que falecera estivera sempre na companhia de uma tal Lubka, que por duas vezes viera ao seu quarto.

«3º. Que esta cedera à patroa da casa onde vivia, um anel de brilhantes que pertencera ao negociante Smielkov.

«4º. Que a criada do hotel, Eufémia Bochkov depositara à sua ordem no Banco do Comércio, no dia imediato ao da morte do negociante Smielkov, a quantia de mil e oitocentos rublos.

«5º. Que, segundo confissão da prostituta Lubka, esta deitara na aguardente que o negociante mais tarde bebeu, uns pós que o criado Kartimkine lhe dera.

«No interrogatório realizado pelo juiz de instrução, Lubka declarara mais que Smielkov estando na casa onde, segundo a expressão, ela trabalhava, tinha-lhe pedido que fosse ao quarto por ele ocupado no hotel para lhe trazer dinheiro, dando-lhe para esse fim a chave da sua mala de mão, de onde ela retirara 40 rublos, quantia que o negociante lhe dissera que trouxesse. Mais afirmou que fora a única importância que dali retirara como o poderiam testemunhar Simão Kartimkine e Eufémia Bochkov em presença dos quais abrira e fechara a mala.

«Com referência ao envenenamento de Smielkov, Lubka acrescentou que tendo acompanhado o negociante ao Hotel lançara no conhaque que ele ia beber os pós que Kartimkine lhe dera, afirmando-lhe serem soporíferos e que os aceitara para se desembaraçar do negociante, que estando embriagado a apoquentava em excesso.

«Interrogada sobre a proveniência do anel que cedera à sua patroa, disse que lhe fora dado pelo negociante, depois dele lhe haver batido e para a impedir de se retirar.

«Eufémia Bochkov interrogada, declarou que nada sabia sobre a desaparição do dinheiro, pois que nem sequer fora ao quarto do negociante, onde só a Lubka entrara.

«Disse que se alguém retirara dinheiro do quarto do negociante, esse alguém não podia ser senão a Lubka quando tivera em seu poder a chave da mala.

(Neste ponto da leitura do auto de acusação, a Maslova sobressaltou-se, entreabriu a boca como para falar e voltou-se para a Bochkov).

«Sobre a proveniência dos mil e oitocentos rublos depositados no Banco declarou que os ganhara, ajudada por Simão, com quem estava para casar-se, durante doze anos de serviço.

«Simão Kartimkine a princípio confessou que de cumplicidade com a Bochkov e instigado pela Maslova, roubara o dinheiro que fora dividido igualmente entre os três (aqui de novo a Maslova sobressaltou-se e enrubescendo tentou dizer qualquer coisa) e igualmente corroborou que dera à Maslova uns pós para fazer adormecer o negociante. Porém, no segundo interrogatório, negou não só que houvesse roubado o dinheiro, como que tivesse dado os pós à Maslova, lançando sobre esta toda a culpa.

«Sobre a proveniência do dinheiro depositado no Banco, respondeu que havia sido ganho por ele e pela Bochkov e que maior parte era o produto das gorjetas com que os hóspedes do hotel os iam gratificando.

«A autópsia do negociante Smielkov realizada segundo o preceituado pela lei, revelou a presença de veneno nos intestinos.»

O auto de acusação, depois da narração das confrontações e depoimento das testemunhas terminava assim:

«Em consequência do que o mujique Simão Kartimkine, de 33 anos de idade, Eufémia Bochkov, burguesa, de 43 anos de idade, e Catarina Mikhailovna Maslova, de 27 anos de idade, são acusados de ter roubado ao negociante Smielkov, no dia 19 de dezembro de 188... a quantia de dois mil e quinhentos rublos e um anel de brilhantes e de lhe haver ministrado propositadamente um veneno, de que lhe resultou a morte, crimes previstos pelo art. 1455 do Código Penal, e são apresentados em juízo para serem julgados com a colaboração do júri criminal.»

Terminada a leitura, o oficial juntou as folhas do auto e com ambas as mãos alisou a sua comprida cabeleira. Todos lançaram um suspiro de alívio com a impressão de que se ia fazer justiça, e agora que estava aberto o inquérito. Apenas Nekludov não partilhou dela; pensava com espanto no crime que cometera aquela Maslova, que ele, dez anos antes, conhecera cheia de graça e inocência.

 


VII

 

Quando terminou a leitura do auto de acusação, o presidente, depois de haver consultado os seus auxiliares, voltou-se para Kartimkine com uma expressão que dizia: «agora chegou a ocasião de conhecermos a verdade até aos últimos detalhes».

— Simão Kartimkine! — disse, inclinando-se para a esquerda.

Simão levantou-se, dobrou as mangas do capote, e deu dois passos para a frente, agitando sempre os lábios.

— É acusado de, no dia 16 de dezembro de 188... ter roubado, de cumplicidade com Eufémia Bochkova e Catarina Maslova, da mala do negociante Smielkov uma quantia que lhe pertencia e de ter fornecido a Catarina Maslova arsénico em pó, induzindo-a a lançá-lo no liquido que aquele estava bebendo, o que ela fez e do que lhe resultou a morte.

— Confessa-se culpado? — concluiu o presidente inclinando-se para a direita.

— É impossível porque a nossa ocupação...

— Guarde isso para mais logo. Confessa-se culpado?

— É impossível... Eu só...

— Diga isso depois. Confessa-se culpado? — repetiu o presidente em voz calma mas severa.

— É impossível, porque...

Não prosseguiu, porque o oficial impôs-lhe silêncio com um trágico «schhh»!

O presidente, mudando de lugar o cotovelo a que se apoiava e parecendo dizer «esta lebre está corrida», dirigiu-se à Bochkova.

— É acusada de, no dia 19 de dezembro de 188... ter roubado de conivência com Simão Kartimkine e Catarina Maslova, da mala do negociante Smielkov, uma quantia que lhe pertencia e um anel, o que tudo dividiram entre os três envenenando em seguida o negociante com arsénico. Confessa-se culpada?

— Eu não sou culpada de nada! — respondeu, atrevida e duramente. — Nem sequer entrei no quarto... quem arranjou tudo foi com certeza essa porca que aí está.

— Isso depois, isso depois — novamente interrompeu o juiz com severidade. — Reconhece-se ou não culpada?

— Nem roubei o dinheiro, nem dei o veneno, nem entrei no quarto! Se lá tivesse ido seria para correr com aquela marafona!

— Não se confessa culpada?

— Não senhor!

— Está bem!

— Catarina Maslova — disse de novo o presidente dirigindo-se à outra ré — é acusada de, tendo ido ao quarto do Hotel Mauritânia habitado pelo negociante Smielkov, com a chave da mala onde ele guardava valores, ter daí subtraído dinheiro e um anel de brilhantes...

A frase que o presidente ia articulando como uma lição há muito sabida de cor foi interrompida para escutar o que lhe segredava o juiz da sua esquerda que o prevenia que faltava um frasco, que era uma das provas materiais mencionadas na lista. «Eu vejo já isso, eu vejo!», murmurou, e retomando a frase inacabada, continuou:

— ...Ter daí subtraído dinheiro e um anel de brilhantes, o que tudo foi partilhado entre os três e que voltando ao hotel, acompanhada por Smielkov, deu-lhe de beber conhaque envenenado. Confessa-se culpada?

— Não sou culpada de nada! — respondeu prontamente a acusada. — O que já disse torno a repeti-lo: não tirei nada, nada, absolutamente nada. O anel foi ele quem mo deu.

— Então não confessa ter roubado os dois mil e quinhentos rublos? — inquiriu o presidente.

— Já disse que apenas trouxe quarenta rublos!

— E quanto a ter lançado os pós no cálice do negociante, confessa-o?

— Sim, senhor. Fi-lo porque me asseveraram que isso não seria capaz de envenenar ninguém! — disse, franzindo as sobrancelhas.

— De modo que, confessando ter deitado os pós na bebida do negociante, nega ter-lhe roubado quer o dinheiro quer o anel? — replicou o presidente.

— Sim, confesso que deitando os pós no cálice dele sempre os tive por soporíferos e nunca que...

— Muito bem! — interrompeu o presidente, evidentemente satisfeito com os resultados obtidos. — Agora diga-me como é que tudo isso se passou! — continuou, encostando-se para trás na cadeira e pondo as mãos em cima da mesa. — Conte-nos tudo o que sabe! Uma sincera confissão servir-lhe-á de atenuante.

A Maslova voltara a fixar o presidente; agora, porém, calava-se e corava, como que pretendendo vencer a timidez que a invadia.

— Vamos, conte-nos como as coisas se passaram!

— Como se passaram? — disse bruscamente a Maslova. — Ele veio à noite, sentou-se junto de mim, e ofereceu-me de beber...

Calou-se de novo como que desorientada, ou interrompida por outra recordação.

— Bem e depois?

— O quê? Depois?... Ah! Sim, depois ficou e... foi-se embora...

Aqui o delegado do procurador régio ergueu se um pouco, apoiando-se com afetação a um cotovelo.

— Deseja fazer alguma pergunta? — inquiriu o presidente. E como recebesse resposta afirmativa, com um gesto, convidou-o a falar.

— Desejava saber se a ré conhecia anteriormente Simão Kartimkine? — perguntou com solenidade o delegado, sem fixar a Maslova, comprimindo os lábios e franzindo as sobrancelhas.

O presidente repetiu a pergunta.

A Maslova fitava o delegado com olhares assustados.

— Se conhecia Simão? Sim, conhecia-o — disse.

— Desejava também saber quais eram as relações da ré com Kartimkine? Encontravam-se frequentemente?

— As nossas relações? Indicava-me aos hóspedes do hotel, mas eu não tinha relações com ele!— respondeu a Maslova, movendo o olhar inquieto, do delegado para o presidente e inversamente.

— E porque é que Kartimkine a indicava de preferência aos hóspedes e não nenhuma das outras raparigas? — perguntou o delegado, sorrindo astuciosamente, como quem havia muito estava preparando a armadilha.

— Não sei. Como é que hei de sabê-lo? — respondeu a Maslova, olhando em redor com espanto e momentaneamente fixando Nekludov. — Ele indicava-me quem queria.

«Reconheceu-me!», pensou Nekludov, sentindo o sangue afluir-lhe ao rosto. Mas a Maslova desviou o olhar sem o distinguir dos demais, dirigindo-o assustadamente para o delegado.

— A ré nega, pois, que tenha tido relações íntimas com Kartimkine? Está bem. Não tenho mais nada a perguntar-lhe.

E o delegado, desencostando-se e pegando na pena fingiu escrever. Na realidade porém o que estava fazendo era apenas percorrer o papel com a pena sem escrever nada e isto por haver observado que, no geral, os procuradores e advogados em seguida a qualquer pergunta tinham o cuidado de notar as respostas a fim de, em ocasião oportuna, aniquilar os adversários.

O presidente, que até então estivera conversando em voz baixa com o seu ajudante das lunetas, dirigiu-se novamente à detida.

— E o que é que se passou depois — perguntou recomeçando o interrogatório.

— Era tarde — disse a Maslova parecendo mais tranquila — e eu já havia adormecido no meu quarto quando Berta, a criada, me despertou, dizendo: «Volta para baixo que o teu negociante está lá outra vez», e apesar de eu não querer descer, a senhora obrigou-me. Ele estava na sala, bebendo e dando de beber a todas as minhas companheiras e acabando-se-lhe o dinheiro mandou-me buscá-lo ao Hotel. Disse-me onde o tinha e quanto devia trazer. E eu assim fiz.

O presidente continuava a falar em voz baixa com o seu vizinho e com certeza não ouvira o que a Maslova dissera; porém para provar o contrário, repetiu as suas últimas palavras:

— E assim fez! E depois?

— Chegando ao hotel, entrei no quarto, abri a mala e retirei quatro notas vermelhas de 10 rublos cada uma. — E aqui a Maslova interrompeu-se, como que assaltada por um receio, mas em seguida continuou. — E quando entrei no quarto não fui só — disse. — Chamei Simão e aquela — ajuntou designando a Bochkov.

— Mentira! Eu nunca entrei... — Ia a dizer a Bochkov, que o escrivão impediu de continuar.

— E foi na sua presença que retirei as quatro notas.

— Diga-me a ré se ao retirar os quarenta rublos notou que quantia estava na mala? — De novo perguntou o delegado.

— Não a contei; apenas vi que era quase tudo em notas de 100 rublos.

— Então a ré viu notas de 100 rublos! Não preciso saber mais.

— Trouxe-lhe então o dinheiro para casa? — prosseguiu o presidente consultando o relógio.

— Trouxe, sim senhor.

— E depois?

— Depois acompanhei-o novamente ao hotel — disse a Maslova.

— E como é que conseguiu ministrar-lhe os pós? — perguntou o presidente.

— Deitei-lhos no cálice em que ia beber.

— E para que é que lhos deu?

— Para me livrar dele, que não me deixava em paz — respondeu com um sorriso forçado.

— E porquê?

— Perseguia-me evidentemente impelido pelo álcool que já bebera, a ponto que eu, encontrando Simão no corredor, disse a este: «Estou farta de o aturar! Se ele me deixasse ir para casa!» Simão respondeu-me que eles também estavam cansados de o servir e que se eu quisesse retirar-me, que lhe desse aqueles pós para o adormecer. Aceitei-os e, entrando de novo no quarto, vi-o estendido no sofá, implorando aguardente. Então peguei na garrafa do conhaque e enchi dois cálices, lançando no dele os pós que sempre tive como inofensivos, porque de outro modo eu nunca, nunca poderia...

— E como é que se achou possuidora do anel? Em que ocasião lho deu ele? — perguntou o presidente.

— Depois de o acompanhar até ao quarto, quis-me retirar e ele, encolerizando-se, bateu-me na cabeça e partiu-me um pente. Desatei a chorar; ele então, tirando o anel do dedo, deu-mo pedindo-me que ficasse.

O delegado, neste momento, ergueu-se novamente e pediu licença para interrogar um pouco mais a ré.

— Pode dizer-me a ré — disse logo que o presidente lhe concedeu a permissão — quanto tempo esteve no quarto de Smielkov?

Um terror súbito de novo se apoderou de Maslova, que, olhando ansiosamente do delegado para o presidente, respondeu muito depressa:

— Não me recordo.

— E recordar-se-á se entrou em qualquer outro aposento do hotel?

A Maslova refletiu um instante. Depois disse:

— Sim senhor. Entrei no quarto pegado que estava desocupado.

— Sim? E para quê? — inquiriu o delegado, dirigindo-se-lhe diretamente e voltando-se rapidamente na cadeira.

— Para me compor e esperar por um carro.

— E Kartimkine acompanhou-a a esse quarto ou não?

— Efetivamente esteve lá.

— E para quê?

— Como ficasse algum conhaque na garrafa estivemos a bebê-lo.

— E a ré a que respeito conversou com Kartimkine?

— Do quê? — respondeu a Maslova rapidamente. — De nada! O que sabia já o disse, e é tudo. Façam de mim o que quiserem; não sou culpada e não me importo de mais nada.

— Nada mais tenho a perguntar — disse o delegado ao presidente; em seguida tomou nota no esboço do seu discurso que a ré confessara ter entrado num quarto vazio, acompanhada por Kartimkine.

Por momentos reinou completo silêncio.

— Tem mais alguma coisa a acrescentar?

— Nada mais. Disse tudo. — E, suspirando, sentou-se.

Após haver tomado um apontamento e em seguida ao pedido de um dos ajudantes, o presidente suspendeu a audiência por vinte minutos, ergueu-se à pressa e retirou-se.

O pedido fora-lhe feito pelo juiz das fartas suíças e dos olhos bondosos, que, sentindo-se incomodado do estômago, desejava experimentar um cordial; para este fim o juiz presidente suspendera a audiência.

Imediatamente jurados, advogados e testemunhas ergueram-se, todos agradavelmente impressionados, por se terem já desempenhado de uma boa parte dos sagrados deveres que a sociedade lhes impunha, e encaminharam-se para os seus respetivos gabinetes.

Nekludov entrou na sala dos jurados e sentou-se junto da janela.


Capítulo 5

 


I

 

Sim, era bem ela, a Katucha!

Relembrou então como a conhecera.

Tinha terminado o terceiro ano da universidade e viera instalar-se em casa de suas tias para preparar descansadamente a tese quando a viu pela primeira vez. Habitualmente passava o verão na companhia de sua mãe e irmã numa propriedade dos arredores de Moscovo; como nesse ano sua irmã já estivesse casada, sua mãe fora para uma estância termal no estrangeiro e Nekludov, que a não pôde acompanhar por ter de escrever a tese, decidiu-se a passar o verão em companhia de suas tias. Estava certo que encontraria naquele retiro o sossego necessário ao trabalho e que nada o viria distrair; estimando-as sinceramente, estava certo também que elas lhe respondiam com afeição e além disso encantava-o a simplicidade daquela vida à antiga.

Achava-se então naquele delicioso período da existência de um rapaz que, pela primeira vez, reconhece por si próprio toda a beleza e toda a importância da vida e que, compreende a gravidade da tarefa imposta ao homem durante ela, concebe a possibilidade de atingir o mais alto grau de perfeição e elevação moral e entregando-se a esta tarefa, está não só esperançado, mas certo de a realizar.

Lera, havia pouco, os trabalhos sociológicos de Spencer e Henry George e, pela primeira vez, descobrira tudo o que havia de cruel e injusto no regime da propriedade individual o que o impressionava profundamente, lembrando-se que havia de herdar por morte de sua mãe quase 10000 hectares de terra.

A sua natureza, daquelas para quem um sacrifício realizado em nome das necessidades morais é sempre um verdadeiro gozo espiritual, obrigara-o já a renunciar à posse da pequena propriedade que, por morte de seu pai, lhe coubera era partilhas. E, nesta mesma ordem de ideias, escolhera o assunto da sua tese: Propriedade rural.

Durante a época que passara em companhia daquelas senhoras regularizara da seguinte maneira a sua vida.

Levantava-se cedíssimo, com a madrugada, e ia tomar banho no regato que serpenteava junto da colina; depois voltava para casa, por entre os prados húmidos de orvalho. Em seguida ao almoço trabalhava na tese, rodeado pelos livros de consulta, ou saindo, de novo vagueava pelos campos e pelos bosques, para vir repousar, antes do jantar, numa sombra do jardim.

Ao meio dia era o jantar, durante o qual encantava e divertia as duas senhoras com inesgotável alegria; findo ele montava a cavalo ou dava um passeio de barco para, de novo, à tarde, retomar os seus trabalhos. Ao anoitecer fazia-se uma paciência ou lia-se um livro recente.

Vinha então a noite, mas não vinha o sono; era tanta a alegria de viver que sentia no seu ser, que se conservava acordado, muitas vezes, até ao dia. Nas noites de luar, erguia-se e vinha para o jardim, dando largas à imaginação.

E assim, serena e felizmente deslizara-lhe a vida no primeiro mês da estada junto das boas senhoras, sem uma só vez reparar na leve e ágil semipupila e semicriada, a Katucha dos olhos negros.

Educado até então sob a asa maternal, conservava aos 19 anos a inocente ingenuidade de uma criança. Sonhava as mulheres unicamente como esposas e todas aquelas com quem não podia casar eram aos seus olhos não mulheres, mas seres humanos.

Na véspera da festa da Ascensão, naquele verão, uma senhora da vizinhança acompanhada de seus filhos e de um jovem pintor, de uma família de lavradores, amigo íntimo de um deles, veio passar o dia com as tias de Nekludov.

Depois do chá a mocidade veio brincar para o prado que se estendia em frente à casa e donde a erva já tinha sido segada.

Começaram pelo jogo do gorélki e Katucha veio também tomar parte nele; numa ocasião Nekludov, que como os demais corria e trocava parceiros, agarrou-a, tomando-a para par.

Ela estava encantadora e Nekludov, como todos, sentia prazer em vê-la; mas nunca o assaltara a ideia de que entre eles pudessem estabelecer-se relações mais intimas.

O jogo obrigava-os a correrem de mãos dadas, cabendo a vez ao pintor de tentar agarrá-los.

E este, apesar de correr bem e possuir pernas de mujique, curtas, musculosas e curvas, dizia para si: «estes hão de custar a agarrar!»

— Uma, duas, três! — disse o pintor batendo três vezes com as mãos, dando o sinal. Katucha, sorrindo, aproximou-se de Nekludov e tomando-lhe a mão com um desenvolto movimento da sua, correu agilmente para a esquerda, a saia engomada rugindo.

Nekludov também era bom corredor e como não queria ser agarrado pelo pintor, bem depressa se soltou de Katucha que tentava alcançar, correndo velozmente, um maciço de sabugueiros que existia à esquerda, atrás do qual, se conseguissem novamente dar as mãos, estariam salvos do seu perseguidor. Por consequência Nekludov correu, seguindo à orla do prado, naquela direção, correspondendo aos sinais que Katucha lhe fazia para se dirigir para ali. Não se lembrou porém, de um pequeno fosso que havia junto dos sabugueiros, todo coberto de ortigas e tropeçando, caiu dentro, picou-se e molhou-se no orvalho depositado nas folhas.

Katucha, os olhos negros como amoras, a face radiante de alegria, encontrou-o a erguer-se e rindo do seu revés.

— Que foi isso? Caiu e picou-se? — perguntou, fixando nele os negros olhos e estendendo-lhe a mão, enquanto com a outra compunha o cabelo.

— Não me lembrei do fosso — respondeu ele sorrindo e conservando a mão na dela.

De repente, como ela se aproximasse um pouco mais e sem saber como, apertou-lhe fortemente a mão e beijou-a nos lábios.

— Que faz? — disse ela, soltando-lhe a mão. Cortou então dois ramos de salgueiro donde as flores estavam já a cair e agitou-os perto do rosto que ardia; sem se voltar, desatou a correr agitando os braços, para junto dos outros jogadores.

Então, entre Nekludov e Katucha principiaram a estabelecer-se relações iguais às que têm lugar quando dois jovens igualmente puros se sentem mutuamente atraídos.

Bastava que Katucha entrasse no quarto de Nekludov ou que este lhe visse ao longe o vestido de cor-de-rosa e o avental branco, para que tudo aos seus olhos mudasse de aspeto; como quando o sol aparece, tudo se torna mais alegre, mais importante e mais interessante. A vida transbordava-lhe de alegria. E ela, pela sua parte experimentava a mesma impressão. Mas em Nekludov não era só a presença de Katucha que o agitava; bastava o pensamento da sua existência para o encher de felicidade. Se Nekludov recebia novas de sua mãe que o apoquentavam; se a tese não progredia; se estava dominado por um destes vagos ataques de tristeza tão frequentes entre a gente moça, a ideia de Katucha varria-lhe de mente todos os pesares.

Katucha andava sempre muito ocupada em casa, mas trabalhando depressa, poupava o tempo, de modo a poder entregar-se um pouco à leitura dos livros de Dostoievski e Tourgueniev que Nekludov lhe emprestara; entusiasmou-a o Anichar de Tourgueniev. Durante o dia quando se encontravam nos corredores, trocavam rápidas palavras; mas o que os encantava, era as palestras no quarto da velha criada das senhoras, onde Nekludov vinha tomar chá.

Mas logo que Matrena Palovna, a criada, se retirava, a conversação afrouxava e não corria bem. Os olhos diziam coisas muito diferentes das dos lábios, e estes afinal calavam-se; invadia-os um sentimento de mal-estar que os obrigava a separarem-se rapidamente.

E estas intimidades prolongaram-se durante todo o resto do tempo que Nekludov permaneceu em casa de suas tias.

Elas acabaram por as notar, e inquietando-se, julgaram dever informar por carta, sua cunhada, a princesa mãe de Nekludov. Maria Ivanovna temia que aquelas relações tomassem um caráter muito íntimo; mas os seus receios eram infundados, porque Nekludov inconscientemente amava Katucha com um puro amor; e nisto estava a salvação de ambos. Não sentia nenhum desejo de a possuir corporalmente, e este pensamento horrorizava-o. Mais bem fundados eram os temores de Sofia, de espirito mais poético, que temia vê-lo casar com a rapariga, conhecendo bem o caráter resoluto e reto de Dimitri; ela sabia perfeitamente que as origens e a situação de Katucha em nada influiriam no espírito de seu sobrinho, se houvesse tomado tal resolução. Veio confirmar estes temores o facto de Maria Ivanovna ter dado a entender a Nekludov com mil precauções, que se não devia entreter tanto com a rapariga, pois era proceder mal animar alguém com quem se não podia casar e ele ter respondido:

— E porque é que não posso desposar Katucha?

Porém, nunca em tal pensara. Um sentimento de exclusivismo aristocrático, próprio a indivíduos do seu meio, impedia-o de se lembrar de desposar uma rapariga tal como Katucha.

Mas em seguida à explicação que tivera com a tia Maria Ivanovna não lhe desagradava o pensamento de desposar Katucha. Gostava das opiniões radicais e com o ardor da mocidade, repetia a si próprio: «Katucha é uma mulher como as demais. Se a amo, porque é que não casarei com ela?»

Parecia-lhe no entanto que o que sentia por Katucha, era apenas uma das manifestações da alegria que enchia todo o seu ser e de que ela partilhava, e estava convencido que este amor apenas era uma imagem reduzida daquele que havia de sentir mais tarde por uma mulher ideal que o futuro lhe reservava.

No dia da sua partida, quando viu Katucha no pátio ao lado das duas senhoras, os olhos ternamente voltados para ele, marejados de lágrimas, teve a nítida impressão de abandonar alguma coisa muito bela, de inapreciável valor, e que nunca mais se renovaria.

Então, invadiu-o uma grande tristeza.

— Adeus Katucha! Muito obrigado por tudo! — disse-lhe num murmúrio, por detrás de suas tias, antes de subir para o carro.

— Adeus, Dimitri Ivanovitch — respondeu a terna e agradável voz de Katucha. E as lágrimas que até aí retivera, soltaram-se-lhe dos olhos; refugiou-se então na sala, para poder chorar livremente.

 


II

 

Só ao fim de três anos é que Nekludov tornou a ver Katucha. E quando ao cabo desses três anos, ele a voltou a ver, não era já o mesmo de outrora.

Socialmente era um brilhante oficial das guardas que ia juntar-se ao regimento e que aproveitava o fim de uma licença para visitar as velhas parentas.

Mas moralmente diferia muito do ingénuo rapaz que mantivera com a doce Katucha umas simples relações de amor.

Outrora era um rapaz leal e desinteressado, pronto a sacrificar-se pelo que julgasse ser o bem; agora, era um egoísta depravado, preocupando-se unicamente com o seu prazer pessoal.

Outrora o universo parecia-lhe misterioso e, entusiasticamente, tentava penetrar nesse mistério; agora tudo lhe parecia subordinado às condições da sua vida pessoal.

Outrora sentira a importância e a necessidade de convivência com a natureza e com os homens que tinham vivido, pensado e sentido antes dele, os filósofos e poetas do passado; agora o importante e necessário eram as convivências com os seus camaradas e a sujeição às regras mundanas do seu meio.

Outrora concebera as mulheres como criaturas misteriosas e encantadoras — encantadoras pelo próprio mistério que as envolve — agora, mulheres — todas as mulheres com exceção das de sua família e das dos seus amigos — eram limitadas a um fim muito definido: o instrumento de um gozo já experimentado e sobre todos preferido. Outrora não sentia a necessidade de dinheiro e mal gastava a terça parte da sua anuidade; agora mil e quinhentos rublos mensais evaporavam-se e já tivera explicações desagradáveis com sua mãe sobre o assunto. Outrora era o Eu espiritual que governava, agora imperava o forte e animal Eu.

E toda esta profunda transformação, que se operava nele, proviera simplesmente de ter cessado de crer em si para começar a crer nos outros.

É que viver confiando unicamente em si próprio parecia-lhe muito difícil; crendo só em si, isto é, dando apenas ouvidos às suas inclinações mais íntimas, teria de decidir-se, não a satisfazer os impulsos da sua vida animal, egoísta e só preocupada de prazer, mas ao contrário, a proceder quase sempre contra eles; enquanto, crendo nos outros, não havia nada a decidir por antecipadamente tudo estar decidido a favor do seu ser animal. Mas isto não era tudo. Acreditando em si próprio, expunha-se incessantemente à censura dos que o cercavam, enquanto confiando nos outros, estava seguro dos seus elogios.

Se, por acaso, Nekludov falando, se mostrava preocupado com assuntos sérios da vida, tais como Deus, verdade, riqueza e pobreza, todos os do seu meio achavam tais preocupações extravagantes e ridículas; então, a própria família, deixando transparecer uma ironia fina, tratava-o por notre cher philosophe.

Se, ao contrário, lia romances, contava anedotas excitantes ou então trauteava o couplet afrodisíaco que ouvira no Teatro Francês, todos o aprovavam, achavam encantador e incitavam a prosseguir. Quando, julgando proceder bem, moderava as necessidades do ser animal quer vestindo um facto usado, ou abstendo-se de beber vinho, todos o acusavam de querer singularizar-se, tornando-se original; mas se se excedia em despesas com caçadas e jantares, ou ainda em mobilar luxuosamente qualquer dependência da casa que habitava, todos admiravam o requintado gosto que punha em tudo e presenteavam-no com custosos objetos. Enquanto se conservou casto e manifestou o desejo de o continuar a ser até ao casamento todos receavam pela sua saúde; a própria mãe, a quem a ideia do casamento com Katucha enchia de temor, só sossegou quando soube que ele se havia tornado em «verdadeiro» homem, raptando a um camarada uma dama francesa.

Igualmente, quando fora da cedência da pequena propriedade que herdara de seu pai àqueles que trabalhavam a terra, aos aldeões, Nekludov sofreu as censuras e zombarias de todas as pessoas que o rodeavam. Repetiam-lhe, incessantemente, que a sua dádiva não conseguira elevar em nada o bem-estar material dos mujiques e que pelo lado moral dera unicamente o resultado de abrirem três novas tabernas onde, abandonando o trabalho, iam matar o tempo.

Ao contrário, despendendo fortes quantias, quando admitido a fazer parte da sociedade aristocrática, dera nisso um verdadeiro prazer à velha princesa, que achava natural que a mocidade se divertisse, apesar de ter sido obrigada a levantar um empréstimo para ocorrer àquelas loucuras.

A princípio, Nekludov lutara contra esta maneira de viver mas a luta era-lhe difícil, porque tudo o que ele considerava o bem, guiando-se por si próprio, era tido pelos outros como o mal e inversamente. Cedo, pois, submeteu-se; abandonara a crença em si próprio para tomar a dos outros.

Esta renúncia custara-lhe ao princípio, mas os novos hábitos depressa abafaram essa fraca revolta: o fumar e o beber cada vez se enraizavam mais e os horizontes novos aliviavam-no, pensando que de futuro apenas se devia inquietar com a crítica dos homens.

Nekludov entregou-se então a essa vida nova, ardente e tumultuária como o seu temperamento; as exigências da voz interior que reclamava qualquer coisa muito diferente, estavam extintas. Foi então que entrou para o exército.

A vida militar, em geral, torna os homens mais depravados.

Coloca-os em condições de completa indolência, por ausência de trabalho útil e desliga-os dos comuns deveres humanos para os substituir por aqueles que são unicamente convencionais, tais como a honra do regimento, o uniforme e a bandeira; além disso dando-lhes poderes discricionários sobre outros homens, coloca-os em condições da mais servil obediência para com aqueles de uma patente mais elevada.

Quando, porém, a esta depravadora influência se junta a da riqueza e a das relações com famílias reinantes, então os homens que sofrem dela, sucumbem à mania do egoísmo.

Assim Nekludov, logo que entrou para o exército, não teve outras ocupações que não fosse vestir um uniforme esplendidamente feito e escovado por outros, ou montando finos cavalos, tratados e sustentados igualmente por outros, brandir espadas ainda e sempre, feitas e limpas por outros:

Igualmente importantes eram os banquetes nos clubes e restaurantes despendendo grandes quantias, vindas de origens invisíveis e os teatros, bailes e mulheres.

Ê esta a vida que nos militares atua ainda mais depravadamente que nos outros homens, porque se um destes leva tal vida, não pode, no íntimo do seu ser, deixar de se envergonhar, enquanto um como Nekludov, principalmente em tempo de guerra, orgulha-se e desculpa-se.

«Nós estamos prontos a ser sacrificados: por consequência uma vida descuidosa e alegre não só nos é desculpável mas indispensável. Seríamos insensatos, se procurássemos outra!»

Tais eram, neste período da sua existência, os confusos pensamentos de Nekludov, que sentia verdadeiro gozo em ver-se livre de todas as barreiras morais que até aí impusera à sua mocidade; neste estado de mania crónica de egoísmo vivia e depois de três anos de ausência, quando ia bater-se contra os Turcos, de novo veio visitar suas tias.

 


III

 

Dois fortes motivos imperavam em Nekludov obrigando-o a interromper a viagem.

Em primeiro lugar a propriedade de suas tias ficava-lhe no caminho e as duas velhas senhoras haviam tanto instado, que não houvera meio de recusar uma pequena visita, e em segundo lugar e muito principalmente, porque dominava-o o secreto desejo de rever Katucha.

Talvez que antecipadamente houvesse formado, no fundo da sua alma um mau desígnio para com ela, sugerido pelo desenfreado ser animal que o governava; estava, porém, longe de reconhecer essa como a sua intenção manifestando apenas a de rever os lugares onde passara momentos tão felizes e condescender com a vontade das tias, personagens um pouco ridículas, porém, boas e amáveis, que o cercavam sempre de uma atmosfera de ternura e admiração.

Chegou nos fins de março, na manhã de uma sexta-feira santa, quando já começara a degelar, acompanhado por fortes aguaceiros; sentia-se transido de frio e todo molhado, mas ao mesmo tempo, alegre, vigoroso e bem disposto, como sempre estava, nesta época da vida.

«Estará ela ainda cá?», perguntava a si mesmo ao entrar no velho e familiar pátio cercado pelas paredes de tijolos, agora coberto de neve caída dos telhados.

Esperançava-o a ideia de vê-la no limiar da porta, atraída pelas campânulas do trenó. Mas aí apenas estavam duas criadas de pés nus e saias arregaçadas, com baldes de água ao lado, evidentemente lavando o soalho.

Foi Tikhon, o velho criado, que o recebeu, interrompendo também a sua ocupação que o avental de serviço mostrava estar fazendo. Na sala de entrada Sofia Ivanovna, de vestido de seda e touca na cabeça, esperava.

— Ora ainda bem que vieste! — disse, abraçando-o. — A Maria está um pouco incomodada. Fomo-nos confessar esta manhã, e cansou-se.

— Felicito-a, tia Sofia — disse Nekludov beijando-lhe a mão. — Desculpe-me tê-la molhado!

— Depressa para o teu quarto! Estás um pintainho! Ai meu Deus! Que grandes bigodes!

— Katucha! Katucha!

— Depressa! Traz-lhe uma chávena de café!

— Imediatamente — respondeu do interior, uma conhecida e agradável voz.

O coração de Nekludov palpitou de alegria!

Era ela! Ainda lá estava! E por entre as nuvens rompeu alegremente o sol.

Nekludov dirigiu-se, seguido por Tikhon, para o quarto que já ocupara. Bem quisera interrogá-lo a respeito de Katuclia; como estava ela? O que é que fazia? Não estava por acaso noiva? Mas Tikhon era tão respeitoso e ao mesmo tempo tão digno, insistia tanto em encher-lhe de água a bacia, para se lavar, que Nekludov não ousou interrogá-lo sobre a rapariga, limitando-se a perguntar-lhe pelos netos, pelo cavalo velho e pelo Polkam, o cão de guarda.

Todos viviam e tinham saúde à exceção do Polkam, que enraivecera no verão transato.

Tinha tirado a roupa molhada e começava a vestir outra, quando ouviu passos rápidos e familiares no corredor; em seguida bateram à porta. Nekludov reconheceu os passos e a pancada na porta; só ela andava e só ela batia daquela maneira! Lançando aos ombros o seu casacão molhado disse:

— Entra!

Era ela, Katucha, sempre a mesma, mais bonita, mais encantadora que outrora. Os olhos negros, ligeiramente estrábicos, brilhavam ingenuamente e como outrora trazia o mesmo avental de alvura imaculada. Trazia-lhe de mando de suas tias, um sabonete perfumado, ao qual se acabara de arrancar o invólucro e duas toalhas, uma, muito comprida, de fino linho e outra mais áspera para o banho. E tudo, o sabonete intacto com a marca do fabricante, as toalhas e a própria Katucha, tudo era limpo, fresco, agradável e encantador. Um irreprimível sorriso de alegria fê-la agitar os lábios firmes.

— Bons dias, Dimitri Ivanovitch! Como tem passado? — murmurou esforçadamente e enrubescendo.

— Bons dias, Katucha; como estás? — respondeu, sentindo o rosto afoguear-se-lhe.

— Graças a Deus, bem. Aqui tem o sabonete cor-de-rosa que prefere e as toalhas que lhe enviam as suas tias — disse, colocando o sabonete no lavatório e dependurando as toalhas nas costas de uma cadeira.

— Dimitri Ivanovitch trouxe tudo! — notou Tikhon, como se defendesse a independência do visitante, e apontando para o grande estojo de toilette com fechaduras de prata, que Nekludov abrira em cima da mesa e que continha uma profusão de frascos, escovas, perfumes e pós.

— Diz a minhas tias que lhe agradeço muito os seus cuidados. Como me sinto feliz em de novo estar aqui! — acrescentou Nekludov, sentindo-se penetrado de ternura e bondade como três anos antes.

Katucha respondeu com um sorriso e retirou-se.

O acolhimento com que Nekludov foi recebido por parte de suas tias que sempre o haviam adorado, foi ainda mais carinhoso que o habitual. Dimitri ia para a guerra, onde podia morrer ou ser ferido. E isto comovia as velhas senhoras.

Nekludov apenas tencionava demorar-se um dia, mas logo que tornou a ver Katucha resolveu passar o domingo de Páscoa junto dela e neste sentido telegrafou ao seu camarada Chembock, com quem ficara de encontrar-se em Odessa, pedindo-lhe que ali o viesse procurar.

A partir do primeiro momento em que voltou a ver Katucha, Nekludov sentiu o despertar de antigas impressões.

Agora, como então, não podia ver sem emoção o seu avental branco; não podia deixar de sentir prazer ouvindo o som da sua voz, ou do seu riso, ou ainda o ruído dos seus passos; não podia suportar, sem se sentir perturbado, o brilho dos seus olhos, negros como amoras; e mais que tudo não podia deixar de notar sem agitação, como ela corava quando se encontravam.

Sentia-se novamente apaixonado, mas não como três anos antes, quando esse amor era quase um mistério, quando a si próprio não ousava confessar que amava e quando estava convencido que apenas se podia amar uma vez; agora sentia bem que estava apaixonado e disso se alegrava, porque sabia perfeitamente, ainda que se esforçasse por encobri-lo a si próprio, no que é que consistia esse amor e quais eram os seus resultados.

Em Nekludov como em todos os outros homens, a natureza era dupla: desdobrava-se em espiritual e animal. O ser espiritual não procurava a felicidade senão no que pudesse tender para a felicidade geral; o ser animal procurava apenas a sua própria felicidade e para isso estava sempre disposto a sacrificar o bem de toda a humanidade. No estado de loucura egoísta em que ele, nesta época da vida, se achava, o ser animal dominava-o, abafando por completo todas as manifestações do ser espiritual.

Mas quando viu Katucha e sentiu novamente despertar os antigos sentimentos por ela, o ser espiritual ergueu a cabeça reclamando os seus direitos. Começou então a debater-se numa luta íntima, inconsciente e incessante.

Sabia no íntimo da alma que o dever era partir; conhecia que prolongar a sua estada era um mal e que nada de bom poderia resultar! Mas sentia tanto prazer e felicidade que recusou ouvir a voz da consciência e ficou.

No sábado de tarde, véspera de Páscoa, segundo o uso, o padre, acompanhado pelo sacristão, veio benzer o pão; contou que lhes fora muito custoso atravessar em trenó as três verstas que separavam a igreja da propriedade, porque o degelo enchera os caminhos de pequenos pântanos. Nekludov assistiu a toda a cerimónia, bem como a criadagem, e durante ela não despegou os olhos de Katucha que ficara junto à porta, com o turíbulo nas mãos. Tendo trocado com o padre e suas tias os três beijos do costume, preparava-se para se recolher, quando ouviu no corredor a voz de Matrena Palovna, a velha criada, dizendo que ia arranjar-se para assistir com Katucha à missa da meia-noite na igreja e à bênção dos pais.

«Também vou!», disse consigo Nekludov.

O caminho para a igreja estava intransitável, quer para trens quer para carros, não havendo senão o recurso do velho cavalo. Nekludov mandou-o selar, vestiu o brilhante uniforme de oficial e lançando aos ombros o capote de serviço, montou o idoso animal, excessivamente alimentado, que rinchava constantemente, e através da escuridão, sobre a neve e sobre a lama, dirigiu-se para a igreja da aldeia.

 


IV

 

Nekludov devia conservar no decorrer de toda a vida, como uma das mais doces e impressionantes recordações, essa missa da meia noite.

A cerimónia havia já começado quando, depois de ter longamente caminhado através da escuridão, em que só se destacava aqui e ali a alvura da neve, chegou ao adro da igreja.

Os mujiques depressa o reconheceram como o sobrinho de Maria Ivanovna, apressando-se em guiar-lhe o cavalo para sítio seco onde pudesse desmontar e encaminhando-o para a igreja já cheia de gente.

À direita reuniam-se os homens; velhos vestindo roupas de confeção caseira, com as pernas envoltas em longas teias de branco linho, e moços trajando fatos domingueiros, vistosas faixas ao redor da cintura, e botas de canos altos.

À esquerda amontoavam-se as mulheres; as novas com lenços de seda na cabeça, corpos de veludilho escuro com mangas vermelhas das camisas, saias de cores vivas, verdes, azuis e vermelhas, e calçando fortes botas de couro; as velhas, mais modestas, conservavam-se atrás, a cabeça envolvida num lenço branco, usando antigos vestidos e casacos.

Num intervalo entre estas e as raparigas novas, estavam as crianças com trajes festivos e cabelo muito luzidio.

Os homens persignavam-se, curvando e erguendo a cabeça; as mulheres, as velhas sobretudo, olhavam fixamente para a imagem rodeada de velas, e benziam-se, apoiando alternativa e firmemente os dedos dobrados, na testa, nos ombros 8 no ventre, murmurando incessantes orações. As crianças, imitando os grandes, oravam ardentemente, e muito mais quando se sentiam observadas pelos pais. O santuário ladeado por altos círios envoltos em espirais doiradas, resplandecia, e o próprio lustre estava igualmente guarnecido com velas. Do coro elevavam-se os alegres cânticos de um orfeão de amadores, em que os graves dos sonoros baixos se casavam com os sopranos agudos das crianças.

Nekludov entrou no corpo da igreja. No centro estava reunida a aristocracia: um proprietário com a esposa e filho, este vestido de marinheiro, o chefe da polícia, o telegrafista, um negociante com botas de cano e o starosta, que ostentava no peito uma medalha. Ao lado do púlpito, por detrás da esposa do proprietário, Matrena Palovna com vestido lilás e chale às riscas, dava a direita a Katucha. Esta vestia de branco; um simples corpete às pregas prendia-se-lhe em redor das ancas, por meio de um cinto azul. Nos cabelos trazia um laço escarlate.

Tudo tinha um aspeto festivo, solene, alegre e belo; o padre com vestes bordadas a prata e cruz de ouro; o diácono e o sacristão com estolas igualmente bordadas; o incessante coro dos amadores, cujos cabelos muito oleosos brilhavam no coro; as contínuas bênçãos do padre, erguendo um círio adornado com flores e repetindo acompanhado pela assistência: «Cristo ressuscitou! Cristo ressuscitou!» Tudo isto era belo, mas ainda mais bela estava Katucha, com o simples vestido branco de cinto azul e laço vermelho nos cabelos, o olhar extático.

Nekludov pressentiu que ela sem se voltar adivinhara a sua presença. Dirigindo-se ao altar, passou-lhe junto e ainda que não tivesse nada que dizer-lhe, inventou-o e cm voz baixa murmurou:

— Minha tia disse-me que só cearíamos depois da última missa.

O sangue afluiu e espalhou-se no rosto de Katucha; os olhos, negros, sorridentes e felizes, fixaram-se ingenuamente em Nekludov.

— Sim, já sabia — respondeu.

Nesta ocasião o sacristão, que principiava a colheita das esmolas não vendo Katucha roçou-a com a estola. Por deferência com Nekludov afastara-se dele para o não molestar e tocara levemente em Katucha. Nekludov, porém, ficara estupefacto, de como ele, um sacristão, não compreendia que tudo o que se estava fazendo na igreja, tudo o que se fazia no mundo, era apenas por Katucha e que tudo podia passar despercebido, exceto ela, que era o centro de todo o universo. Por ela brilhava o ouro das imagens, por ela ardiam todas aquelas velas e círios e os cânticos que se ouviam: «regozijai-vos, homens, é a Páscoa do Senhor!» eram ainda por ela.

Tudo, tudo o que era belo no mundo era-o por ela e para


ela. E parecia-lhe que Katucha reconhecia isto mesmo, a avaliar pela alegre e extática expressão do rosto, que lhe dizia vibrarem na sua alma as mesmas cordas que na dele.

No intervalo entre as missas, Nekludov saiu da igreja. Afastaram-se para o deixar passar e saudavam-no. Uns reconheciam-no enquanto outros inquiriam: «Quem é?»

Deteve-se nos degraus: os pobres cercaram-no clamando, e só depois de distribuir o cobre que levava, pôde descer.

Amanhecia já, mas o sol ainda não aparecera.

A multidão saía da igreja e agrupava-se pelo adro, mas Katucha não acabava de aparecer, o que o obrigou a retroceder, para aguardá-la.

A igreja continuava a despejar gente que fazia ecoar o lajedo com os pregos das botas, dispersando-se no adro.

Um velho de cabeça trémula, um antigo cozinheiro de Maria Ivanovna, deteve Nekludov, abraçou-o e beijou-o fraternalmente; a mulher, uma velhinha toda enrugada, presenteou-o com um evo pintado de amarelo. Um sorridente, jovem e musculoso mujique, vestindo blusa nova e cinto verde, que os acompanhava, aproximou-se.

— Cristo ressuscitou! — disse, com olhar sorridente; e passando os braços em redor do pescoço de Nekludov, beijou-o três vezes em cheio nos lábios, roçando-lhe nas faces com a pequenita barba encaracolada e impregnando-o do peculiar e agradável cheiro do mujique.

Depois de se ter deixado abraçar pelo mujique e quando este ainda o presenteava com um ovo pintado de cor de canela, Nekludov viu sair da igreja Matrena Palovna, seguida pela pequenita cabeça negra, com o laço escarlate.

Katucha viu-o também por entre a turba que os separava e, de novo, o rubor lhe subiu à face.

Detiveram-se no limiar da igreja distribuindo esmolas aos pobres. Um destes, um desgraçado que em lugar de nariz tinha uma grande chaga, aproximou-se de Katucha.

Ela, tirando da algibeira qualquer coisa, deu-lha: em seguida chamando-o a si e sem o menor sinal de repulsão, antes com estranho fulgor nos olhos, beijou-o três vezes. E enquanto abraçava o mendigo, os seus olhos encontraram-se com os de Nekludov como se lhe perguntassem: «Ando bem procedendo assim?»

— Sim, querida, é esse o bem, é isso o belo. Amo-te.

Por fim desceram a escadaria e Nekludov caminhou ao seu encontro. Não tencionava cumprimentá-las com a saudação da festa, mas queria estar perto de Katucha.

Matrena Palovna, porém, com um aceno, de cabeça e entoação que implicava uma igualdade geral naquele dia, disse-lhe:

— Cristo ressuscitou!

Em seguida limpou cuidadosamente os lábios com o lenço e estendeu-lhos.

— Em verdade ressuscitou! — respondeu Nekludov, abraçando-a.

Olhou depois para Katucha; esta novamente enrubesceu e caminhou para ele.

— Cristo ressuscitou, Dimitri Ivanovitch.

— Em verdade ressuscitou! — disse.

Abraçaram-se e beijaram-se, parando à segunda vez, como que a perguntar se deveriam continuar; decidindo pela afirmativa abraçaram-se e beijaram-se uma terceira vez e separaram-se sorrindo.

— Vão ainda a casa do pároco? — perguntou Nekludov.

— Não, Dimitri Ivanovitch, vamos apenas descansar um pouco, aqui — disse Katucha falando com visível esforço, o seio arfando agitadamente e fitando-o com tímidos, inocentes e ternos olhares.

No amor entre o homem e a mulher existe sempre um momento em que esse amor atinge a sua mais elevada expressão, perdendo todo o caráter sensual, desprezando a reflexão, tomando-se inconsciente e irrefletido.

É a pura união de dois seres num só.

Esse momento conhecera-o Nekludov naquela madrugada de Páscoa. Sentado agora no gabinete dos jurados e tentando recordar todas as circunstâncias em que conhecera Katucha, esse instante erguia-se dentro de si e velava tudo o mais: via-a com a cabecita cuidadosamente penteada, o laço escarlate no alto a envolver-lhe o busto delicado e os peitos ainda mal formados, o corpete branco, às pregas; e nos olhos brilhantes, ligeiramente estrábicos, nas faces rosadas, em todo o seu conjunto, via essa clara expressão de profundo, puro e inocente amor, não só por ele Nekludov, conto por tudo que era belo no mundo e ainda por todo o existente, mesmo por aquele mendigo a quem beijara. Fora este amor que sentira nela e que inconscientemente também partilhara, fundindo-os num só ser.

Ah! Se tudo tivesse terminado naquela noite!

«Sim, tudo que entre nós houve de terrível ainda não tinha acontecido até àquela noite de Páscoa!», pensava, sentado à janela do gabinete dos jurados.

 


V

 

Ao regressar da igreja, Nekludov ceou em companhia de suas tias e seguindo o hábito contraído no regimento, bebeu vários copos de vinho e alguns de aguardente. Retirando-se para o quarto que ocupava, estendeu-se na cama sem se despir e adormeceu logo. Só despertou quando ouviu bater na porta. Reconheceu o modo de bater; era ela. Desceu do leito esfregando os olhos e estirando os braços.

— És tu, Katucha? Entra! — disse.

— O almoço está na mesa — disse ela entreabrindo a porta.

Vestia ainda o mesmo corpete branco, mas sem o laço nos cabelos.

Fitava-o sorridentemente, como se lhe houvesse comunicado alegres novas.

— Já lá vou — respondeu, penteando-se.

Então, durante um minuto, ela deixou-se estar, sem dizer nada; Nekludov, abandonando o pente, deu um passo para ela, que no mesmo instante retrocedeu e caminhou pelo corredor fora com ligeiros passos.

«Que tolo fui em não a ter agarrado!», pensou Nekludov.

O que queria não o sabia bem, mas permanecia com a impressão de que quando ela entrara no quarto deveria ter procedido como todos, em semelhante situação, procedem.

— Espera, Katucha! — disse-lhe.

— Que quer? — perguntou ela abrandando o passo.

— Nada, apenas... — e fazendo um esforço sobre si próprio, lembrando-se como procedem os homens do seu meio em tais ocasiões, passou-lhe o braço em redor da cintura.

Katucha deteve-se e fitou-o nos olhos.

— Não, Dimitri Ivanovitch, isso não — disse, enrubescendo e com lágrimas na voz, enquanto com a pequena e robusta mão afastava o braço que a apertava.

Nekludov largou-a, sentindo-se não só confuso e envergonhado, mas até enojado de si próprio.

Era este um desses momentos em que apenas devia crer na voz íntima; não compreendeu que a confusão e a vergonha que sentia eram causadas pelos melhores sentimentos da sua alma, reclamando liberdade; imaginou diferentemente que era apenas parvoíce tímida e que era obrigação portar-se como toda a gente e como homem.

De novo cingiu-lhe a cintura e beijou-a no pescoço.

Fora porém, um beijo muito diferente dos que precedentemente lhe dera: daquele primeiro e inocente beijo furtado atrás do maciço de salgueiros e dos que ainda naquela manhã trocara com ela. Este levara em si uma significação terrível e que ela bem adivinhara.

— Que faz? — exclamou fugindo, atemorizada, como se se houvesse despedaçado qualquer coisa de inapreciável valor. Nekludov dirigiu-se para a sala de jantar.

Sentados à mesa, já ali se achavam, além de suas tias que vestiam toilettes novas, o médico da família e outra senhora das vizinhanças.

Tudo decorreu como de costume; só na alma de Nekludov amontoava-se uma tempestade. Não dava atenção a nada do que lhe diziam, respondia desastradamente e não pensava senão em Katucha, estremecendo quando recordava a sensação do beijo que lhe furtara. Quando da entrou na sala, sem erguer os olhos, sentiu-lhe a presença e teve de se dominar a fim de a não fitar.

Acabado o almoço retirou-se logo para o quarto, onde caminhando para trás e para a frente, fortemente excitado, escutara todos os ruídos da casa na esperança de ouvir o andar de Katucha. O ser animal que até aí vivia adormecido nele não só despertara, mas conseguira dominar o espiritual e leal Nekludov, que durante a primeira visita e ainda mesmo na manhã desse dia ele fora. Agora, apenas o governavam as exigências animais.

Não pôde, porém, uma única vez encontrá-la só durante o dia apesar dessa espionagem. Com certeza procurava evitá-lo. À tarde, contudo, ela não pôde deixar de ir ao quarto próximo de Nekludov, porque o médico, cedendo às instâncias das duas senhoras, resolvera passar a noite e fora necessário preparar-lhe a cama. Ouvindo-a entrar. Nekludov seguiu-a, caminhando sem ruído e retendo a respiração, como que preparando-se para cometer um crime.

Katucha, com as mãos no interior de uma fronha do travesseiro, preparava-se para enfronhá-lo quando ouviu a porta abrir-se. Voltou-se e sorriu; não era porém o sorriso alegre e feliz do costume; era antes um sorriso assustado e implorador. Nekludov compreendeu-o; era como se lhe dissesse que o que ele ia fazer era mal proceder, e momentaneamente hesitou.

Ia talvez recomeçar a luta entre a sua dupla individualidade. A voz do verdadeiro amor que sentira por ela, falou mais uma vez, ainda que francamente, relembrando-a, com os seus sentimentos, com a sua vida. Mas outra voz dizia-lhe: «Cuidado! Vê que deixas escapar a ocasião de seres feliz e de gozares!» E esta abafava totalmente a primeira.

Resolutamente dirigiu-se-lhe, apenas dominado por uma sensação irresistível e bestial.

Cingiu-a pela cintura num abraço nervoso e sentando-se na extremidade do leito forçou-a a sentar-se.

— Dimitri Ivanovitch, por favor, deixe-me! — implorou em voz suplicante. — Ah! Matrena Palovna, que vem aí! — exclamou, fugindo-lhe bruscamente.

Efetivamente dirigia-se alguém para ali.

— Ouve! Espera por mim à noite — murmurou Nekludov. — Estarás só?

— Que diz? Não, não pense nisso! — dizia apenas com os lábios: toda a confusão trémula do seu ser dizia coisa muito diferente.

Matrena Palovna entrou. Trazia nos braços um cobertor e, com olhar de censura para Nekludov, ralhou a Katucha por haver trazido o cobertor antigo.

Nekludov deu-se pressa em sair sem experimentar vergonha alguma. Bem reparara no olhar de Matrena Palovna e compreendera a censura que ele envolvia e de que se achava merecedor; mas o instinto bestial que substituíra o seu antigo amor dominava-o por completo e, sabendo que procedia mal, não pensava senão nos meios de o satisfazer.

Vagueou durante todo o resto da tarde, como que dementado, dos seus aposentos para os de suas tias e daqui para o pátio. O pensamento fixo era encontrar Katucha só, mas esta evitava-o e Matrena Palovna não a perdia de vista.

 


VI

 

Assim acabou a tarde e fez-se noite. O médico deitara-se e as tias de Nekludov haviam-se retirado igualmente para os seus quartos; Matrena Palovna ajudava a preparar-lhes a toilette noturna. Nekludov sabia isto e deduziu Katucha devia achar-se só no quarto.

Saiu para a escadaria exterior. Estava uma noite escura, húmida e quente; a atmosfera enchera-se do nevoeiro branco que na primavera é produzido pelo degelo. Do riacho que corria a cem passos da casa subia um estranho ruído: era o gelo que estalava. Nekludov desceu e patinhando na lama formada pela neve derretida, encaminhou-se para a janela do quarto.

Palpitava-lhe tão fortemente no peito o coração que ouvia-lhe as pulsações e ora sustinha, ora exalava fortemente a respiração. Do interior do quarto vinha o fraco clarão de uma pequena lâmpada. Katucha estava só, sentada junto à mesa, os olhos fixos no vácuo, pensativamente. Nekludov permaneceu muito tempo observando-a, desejoso de saber o que ela faria não supondo que a vigiassem. Durante um ou dois minutos conservou a mesma posição; moveu em seguida os olhos, sorriu meneando a cabeça, como que falando a si própria e pondo as mãos sobre a mesa recomeçou a olhar em frente.

Contrariado, escutando as palpitações do coração, e o estranho ruído vindo do riacho, Nekludov ficara considerando.

No rio, por entre o nevoeiro, continuava um incessante trabalho: vinham sons soluçantes de qualquer coisa que estalando e desabando até ser esmigalhada, se fundia em pedaços de neve, quebrando-se uns contra os outros como vidros.

Assim permaneceu diante da janela, adivinhando na sofredora e pensativa face de Katucha os sinais de uma luta íntima e apiedando-se dela; estranho caso, essa piedade apenas aumentava o desejo de a possuir.

O desejo físico apoderara-se completamente dele.

Bateu na janela.

Agitou-a um estremecimento geral como que produzido por um choque elétrico e nas suas feições desenhou-se manifesta expressão de terror.

Levantou-se sobressaltada e, dirigindo-se à janela, juntou a face aos vidros. Resguardando a vista com as mãos reconheceu Nekludov e, à expressão atemorizada, juntou-se uma gravidade que nunca ainda lhe vira. Retribuiu-lhe o sorriso unicamente por submissão e Nekludov compreendeu que naquela alma reinava apenas o terror.

Pediu-lhe por sinais que viesse para junto dele.

Respondeu com a cabeça negativamente e permaneceu junto da janela. Ele então aproximou o rosto da vidraça na intenção de a chamar em voz alta; nesta ocasião, porém, ela retirou-se aproximando-se de uma porta interior. Alguém a chamara de dentro.

Nekludov afastou-se.

O nevoeiro tornara-se tão denso que à distância de cinco passos já não se via a casa nem as janelas e apenas se distinguia uma enorme massa sombria donde nascia o clarão vermelho da lâmpada.

No rio, o gelo continuava estalando, tinindo, quebrando, soluçando.

Não muito longe, através do nevoeiro, cantou um galo; respondeu-lhe outro no pátio e mais longe, na aldeia, ainda outros acordaram-se alternadamente, acabando por fundir-se num só canto; em redor, o silêncio era completo. Só o riacho continuava nos seus ruídos.

Depois de andar de um lado para o outro, em frente da casa, uma ou outra vez enterrando os pés nas poças de água, Nekludov tornou a aproximar-se da janela. A luz da lâmpada ajudou-o a distinguir Katucha, outra vez sentada junto à mesa.

Ainda mal havia chegado à janela quando ela olhou para ali.

Bateu. Sem verificar quem batia, viu-a erguer-se e sair do quarto: a porta rangeu, abrindo-se e fechando-se em seguida. Correu a esperá-la à porta da escadaria e, sem uma palavra, apertou-a nos seus braços. Ela correspondeu-lhe e, erguendo a cabeça, procurou-lhe nos lábios um beijo.

Conservaram-se assim num ponto seco de um dos ângulos da casa; atormentava-o a impossibilidade de a possuir.

De repente rangeu uma porta e Matrena Palovna chamou em voz irritada: Katucha!

Arrancou-se dos braços dele e correu para o interior. Nekludov ouviu correr um ferrolho e em seguida reinou profundo silêncio. Por sua vez apagou-se a lâmpada que até aí alumiara frouxamente o pátio; cá fora havia apenas nevoeiro e o ruído vindo do regato.

Aproximou-se outra vez da janela, espreitou, mas não conseguiu ver nada; bateu: não teve resposta.

Entrou em casa pela porta da frente e em seguida no seu quarto, mas não pôde adormecer.

Pouco depois saiu para o corredor, descalço, e encaminhou-se para o quarto de Katucha. Junto a este ficava o de Matrena Palovna cujos roncos sonoros, ao passar, ouviu. Naquele momento, porém, Matrena tossiu e voltou-se no leito que rangeu. Durante minutos Nekludov permaneceu imóvel, ouvindo o pulsar do coração.

Quando de novo ouviu o roncar sonoro da velha, continuou a andar fazendo todo o possível para não obrigar o soalho a estalar. Achava-se à porta do quarto de Katucha, enfim!

De dentro não vinha nenhum ruído, nem o respirar de pessoa adormecida: evidentemente estava acordada.

Mal havia murmurado um Katucha! brandíssimo, já ela se encostara à porta tentando persuadi-lo, zangadamente, a ir-se embora.

— Mas o que está a fazer? O que quer? Repare que as suas tias acordam! — diziam os lábios enquanto todo o seu ser exprimia: «Sou tua».

E foi o que Nekludov compreendeu.

— Abre apenas por um momento! Imploro-te! — pediu sem pensar nas palavras que dizia.

Fez-se um silêncio: ouviu-se depois a sua mão a procurar às escuras a aldrava da porta. Por fim esta correu e Nekludov entrou no quarto dela. Ergueu-a nos braços como a encontrou: braços nus, vestindo apenas uma grosseira camisa, e levou-a consigo.

— Que faz? — murmurava ela.

Ele, porém, não lhe respondendo, apertava-a de encontro ao peito.

— Oh, não, não! Deixe-me! — dizia Katucha, ainda que a chegar-se mais a ele.


***


Quando a deixou, tremente e pálida, não respondendo às perguntas que lhe dirigia, de novo saiu para o exterior da casa, tentando compreender o sentido íntimo do que acabava de acontecer.

A noite estava mais clara: ao longe aumentara o ruído do gelo tinindo e estilhaçando-se, a que se juntava agora o murmúrio da água.

Começava a dissipar o nevoeiro e por entre ele, aparecia vagamente no firmamento o crescente da lua.

«O que me aconteceu afinal? Experimentei realmente uma grande felicidade ou uma grande desdita?», interrogava-se Nekludov. «Ora! É isto o que sucede a todos e o que todos fazem», continuava discorrendo, enquanto se dirigia para o quarto.

Aí chegado, deitou-se tranquilo e adormeceu.

 


VII

 

No dia seguinte, Domingo de Páscoa, Chembok, o camarada de Nekludov, apresentou-se na residência e depressa captou as simpatias das tias de Nekludov, que viram nele um brilhante, belo e alegre oficial, delicadíssimo, eloquente e juntando a uma extrema liberalidade, uma afeição ilimitada por Dimitri.

Ainda, porém, que lhes fosse muito agradável, as duas senhoras não puderam deixar de estranhar a generosidade com que Chembok distribuía dinheiro. A um cego que lhe pediu esmola deu um rublo, pelos criados que assistiram à chegada distribuiu quinze rublos de gorjetas e quando o cãozito de Sofia Ivanovna feriu uma pata, elas espantadas, viram-no despedaçar um lenço de seda bordado (que pelo menos lhe custara 15 rublos, dissera mais tarde Sofia), para com ele ligar o membro ferido do animal.

As boas senhoras confessaram nunca tal ter visto, na sua vida; o que porém ignoravam é que Chembok devia mais de duzentos mil rublos que nunca tencionava pagar e que, por consequência, vinte e cinco rublos a mais ou a menos não lhe faziam diferença alguma. Chembok apenas podia demorar-se aquele dia e ao anoitecer devia partir com Nekludov. Acabara-se-lhes a licença e era impossível prolongá-la por mais tempo.

Durante este último dia, enquanto na sua memória ainda estava fresca a recordação da noite anterior, dois sentimentos se agitaram e lutaram na alma de Nekludov.

Um, evocando-lhe o prazer sensual experimentado, que de resto fora bem inferior ao que esperava, enchia-o de orgulho por tão facilmente haver atingido o seu fim; o outro traduzia-se na consciência de ter praticado uma grande leviandade que necessitava ser reparada, não no interesse de Katucha, mas no que lhe dizia respeito.

É que o estado de loucura egoísta em que se encontrava, não o deixava pensar senão na sua pessoa. Preocupava-o a ideia que fariam dele quando fosse conhecido o seu procedimento com Katucha; porém, o que a esta podia acontecer, nem nisso pensava.

A perspicaz opinião de Chembok que lhe adivinhara as relações, lisonjeava-o em extremo.

— Sim, senhor. Percebo agora esta repentina afeição por tuas tias — dissera-lhe aquele, logo que viu Katucha. — Palavra que teria pedido mais licença, no teu lugar! É encantadora!

E, penoso como era o separar-se dela sem estar perfeitamente saciado, o dever de partir tinha, porém, uma enorme vantagem. É que rompia de vez com relações que no futuro seriam difíceis de sustentar. Pensava em terminá-las condignamente e para isso seria necessário dar-lhe algum dinheiro, não porque ela o necessitasse, mas porque se consideraria desonrado se, tendo-se utilizado dela, não a remunerasse.

Calculou uma quantia em proporção com as respetivas posições, que lhe pareceu ser uma paga generosa, e em seguida ao jantar esperou-a no corredor.

Ela, ao vê-lo, envergonhou-se e tentou retirar-se, chamando-lhe a atenção para a porta do quarto de Matrena que estava aberta: Nekludov, porém, reteve-a.

— Queria despedir-me de ti — disse lhe, procurando passar-lhe para as mãos um envelope contendo uma nota de cem rublos. — Aqui tens...

Ela adivinhou o que ele ia dizer; olhou para o envelope, franziu as sobrancelhas acenando com a cabeça e repeliu-lhe as mãos.

— Então! Porque não? — gaguejou ele, pondo-lhe o envelope na abertura do vestido.

Refugiando-se em seguida no quarto, as sobrancelhas franzidas e a suspirar como se o houvessem ferido, por muito tempo passeou de um para o outro lado, com a tortura daquela cena a sangrar-lhe no coração.

«Mas que deveria eu então fazer? Não é desta maneira que procede toda a gente? O que é que fez Chembok à governanta, como ainda agora me contou? E o tio Giska? E meu próprio pai, de quem ainda vive na aldeia um filho natural? Então se todos procedem assim, o que se lhe há de fazer?»

Estas razões não conseguiam restituir-lhe a paz de espirito, e a recordação da entrevista com Katucha queimava-lhe a consciência. Intimamente, no recanto mais escondido do coração, sentia que procedera de forma tão vil, tão baixa e tão cruel que de futuro perdera o direito, não só de criticar alguém, mas até de poder olhar para o seu semelhante, rosto a rosto, e de continuar como até aí a considerar-se nobre, honrado e generoso. Sem estes direitos, porém, a vida tornava-se-lhe impossível. Forçoso era achar uma solução para o dilema. A nova existência em que se lançou, novos amigos, a guerra e as viagens forneceram-lha: não se pensava nisso, que o tempo não sobejava para tais vagares. E meses decorridos veio o esquecimento.

No regresso da guerra, passando novamente por aquela residência confrangera-se-lhe dolorosamente o coração, quando soube que Katucha abandonara a casa, pouco tempo depois de ele se haver reunido ao regimento e que correram boatos de ela haver dado à luz uma criança. Confrontando datas, a criança podia muito bem ser dele; verdade é que também podia não ser. As duas senhoras contaram-lhe mais, que Katucha já não era a mesma; antes de as deixar pervertera-se, diziam, e herdara os vícios e a ruindade da mãe.

Nekludov agradou-lhe ouvir formular este juízo, pois que ajudava-o a justificar-se e a absolver-se. Teve em princípio a ideia de procurar mãe e filho, mas depressa renunciara a ela; a recordação do seu procedimento continuava a envergonhá-lo e a magoá-lo: e de novo voltou a procurar tranquilidade no esquecimento.

E eis que uma estranha coincidência lhe despertava novamente a memória e a forçava a reconhecer conscientemente o egoísmo, a crueldade e a baixeza que lhe permitiram durante nove anos viver tranquilo com tal crime no coração! Porém o momento da confissão franca e consciente da sua indignidade ainda vinha longe; por agora pensava apenas em evitar ser descoberto dando lugar a que Katucha ou o advogado, revelando a verdade, o apontassem a todos tal como ele era.


Capítulo 6

 


I

 

Era esta a disposição de espírito em que se achava Nekludov enquanto aguardava no gabinete dos jurados, a reabertura da audiência. Sentado junto da janela, escutava o barulho produzido pelos colegas conversando, e fumava cigarros uns após outros. O alegre negociante mostrava-se ardente partidário da maneira de gozar do seu defunto confrade Smielkov, que evidentemente lhe captara as simpatias.

— Ah! Ah! Divertia-se ricamente o velhaco! Siberiano a valer! E nada tolo! Que bom bocado soube arranjar!

O presidente, expressava a convicção que só os pareceres dos peritos poderiam servir de base convincente e Pedro Gerassimovich gracejava com o caixeiro judeu, rindo ambos às gargalhadas.

Quando o oficial, de andar saltitante, entrou no gabinete chamando os jurados, Nekludov sentiu-se aterrorizado, como se fosse ser julgado em vez de ir julgar. Agora mais que nunca reconhecia intimamente quanto era miserável e indigno de levantar o olhar para quem quer que fosse; contudo, tal era a força do hábito, subiu para o estrado e com o mesmo passo firme dirigiu-se para o lugar que ocupara na primeira fila, perto do juiz presidente, sentou-se, cruzou as pernas e tranquilamente começou a brincar com a luneta.

Os réus, que haviam também saído da sala, entravam novamente. No estrado estavam algumas caras novas. Eram testemunhas. Nekludov pôde ver que Katucha olhava frequentemente para uma senhora excessivamente nutrida e vestindo sumptuosamente sedas e veludos, com um enorme chapéu preso por fitas desmedidas. Sentava-se na fila da frente e sustentava no braço uma elegante bolsinha.

Era — Nekludov soube-o logo — a patroa da última casa onde a Maslova trabalhava. A inquirição começou sem demora.

Interrogadas as testemunhas sobre nomes, religião, etc., passou-se ao juramento, que era facultativo, e o velho padre, arrastando custosamente as pernas, de novo apareceu no estrado. E, não cessando de mexer na cruz que trazia ao peito, deu-lhes juramento e aos peritos, com a serenidade e a consciência de cumprir um dever grave e útil.

Finda esta cerimónia, o presidente mandou sair todas as testemunhas, com exceção de Madame Kitaiev, proprietária da casa de toleradas. Convidada a dizer o que sabia sobre o caso do envenenamento, ela, com um sorriso afetado e acenando a cada frase com a cabeça coroada pelo enorme chapéu, expôs minuciosa e metodicamente o que sabia.

Falando com pronunciado acento alemão, contou como Smielkov viera uma primeira vez a sua casa e, saindo, voltara novamente um pouco animado — disse com um sorriso; pedindo de beber, quis que todas as raparigas bebessem com ele e, encontrando-se sem dinheiro, mandara buscá-lo ao hotel onde se hospedara, pela Lubka, a sua preferida — acrescentou sorrindo novamente, e olhando para a detida.

Nekludov julgou ver que Maslova sorrira quando ouviu aquelas palavras; isto causou-lhe uma sensação de enfado. Era um singular misto de repulsão e sofrimento que o invadia.

— A testemunha poder-nos-á dizer que opinião formava de Maslova? — perguntou o advogado desta, nomeado ex-ofício, e que pretendendo entrar para a magistratura tivera de aceitar o encargo.

— A melhor possível! — respondeu madame Kitaiev. — É uma excelente rapariga, bem-educada numa família nobre, elegante, e de bons modos. Sabe inclusive o francês! De vez em quando bebia de mais, mas nunca se desmanchava! É uma excelente rapariga!

Katucha olhava para madame Kitaiev: de repente, passou a fixar os jurados e Nekludov, de preferência, enquanto o rosto se lhe tornava mais grave, quase severo. Por muito tempo o estranho olhar das pupilas negras dardejou sobre Nekludov, que, contrariado, não podia desviar a vista. Lembrava-se da noite decisiva, do estilhaçar do gelo no regato, do nevoeiro e da lua chanfrada, que de madrugada viera alumiar uma sombria e terrível realidade.

As pupilas negras fixadas nele, relembravam-lhe essa sombria e terrível realidade.

«Reconheceu-me!», pensava. E estremecia, como que esperando a condenação.

Mas não, ainda desta vez não o reconhecera.

Apenas suspirou, olhando para o presidente.

E Nekludov também suspirou. «Ah!», murmurou, «ao menos se isto caminhasse mais rapidamente!»

Sentia a mesma impressão de piedade e desgosto a que não se podia furtar quando, caçando, tinha de acabar de matar a ave mal ferida: ela debatia-se na bolsa da caça; e incomodado, hesitava, lastimando-a, mas desejando ao mesmo tempo vê-la morta de vez.

Tais eram os sentimentos que durante o depoimento das testemunhas enchiam a alma de Nekludov.

 


II

 

O processo, porém, arrastava-se lentamente. Depois do perito e de cada uma das testemunhas ter sido interrogada, depois de segundo o hábito, o agente do Ministério Público e os advogados, lhes haver dirigido, com o costumado ar de importância, um sem número de perguntas inúteis, os jurados foram convidados a ir examinar o corpo de delito, consistindo em uma dúzia de frascos, um tubo de ensaio, que servira para análise do veneno e um grande anel de brilhantes, grande que deveria ter sido usado num indicador de grossura não vulgar.

Tudo isto estava selado e etiquetado.

Quando os jurados se levantaram e preparavam para examinar todos aqueles objetos, o delegado, endireitando-se, pediu que primeiramente se procedesse à leitura dos resultados da autópsia praticada no cadáver de Smielkov.

Posto que o juiz presidente, com interesse em ir ter com a governanta suíça, tivesse apressado a audiência tanto quanto lhe fora possível, e sabendo que a leitura pedida pelo delegado apenas podia produzir o efeito de enfadar toda a gente, não lhe era possível opor-se-lhe porque também sabia que o delegado usava de um direito consciente. Ordenou-a pois.

O escrivão, em voz lúgubre e sem fazer distinção entre os «r» e os «l» começou:

Resulta do exame exterior do cadáver:

1º. Que Ferapont Smielkov media 1,90 metros de altura.

(«Nada mau! Bela estatura!», segredou o negociante a Nekludov).

2º. Que aparentava ter 40 anos de idade;

3º. Que na ocasião da autópsia o cadáver estava muito inchado;

4º. Que a cor dos tecidos era esverdeada, com manchas negras em diferentes sítios;

5º. Que a epiderme estava levantada em toda a superfície e arrancada em vários pontos;

6º. Que o cabelo, cor de castanho-escuro e muito espesso, despegava-se ao menor contacto;

7º. Que os olhos saíam das órbitas e que a córnea estava embaciada;

8º. Que das narinas, dos ouvidos e da boca entreaberta escorria um líquido seroso e fétido;

9º. Que devido à tumefação geral do corpo, este quase que não tinha pescoço, etc., etc....

E em mais dezoito parágrafos escritos em quatro páginas de papel, continuava neste tom a descrição externa do enorme, inchado e decomposto corpo do alegre Smielkov, que aproveitara a estada na cidade para se divertir até fartar.

O invencível e repugnante sentimento de que sofria Nekludov aumentara com essa leitura.

A vida de Katucha, o líquido escorrendo das narinas do defunto, os olhos saindo-lhe das órbitas, o seu anterior procedimento para com ela, tudo lhe parecia um conjunto ignóbil e repugnante.

Quando findou a leitura do exame externo, o presidente suspirou em sinal de alívio e ergueu a cabeça; mas baixou-a de novo ouvindo o escrivão começar a leitura do exame interno. O negociante, sentado junto de Nekludov, fazia esforços heroicos para se furtar ao sono, mas de vez em quando baixava a cabeça e oscilava com o corpo; os réus e soldados que os guardavam, conservaram-se imóveis por sonolência.

Resultava do exame interno:

1º. Que a pele envoltória do crânio estava desligada dos ossos sem que houvesse sinais de hemorragia;

2º. Que os ossos do crânio estavam intactos e eram de dimensões normais;

3º. Que na membrana cerebral notavam-se duas pequenas manchas, medindo quatro polegadas, etc., etc..., e seguia neste tom durante mais treze parágrafos.

Seguiam-se os nomes das testemunhas que tinham assistido à autópsia e por último o relatório médico declarando que, a avaliar pelas perturbações produzidas no estômago, intestinos e rins do negociante Smielkov, podia-se inferir, segundo todas as probabilidades, que a morte fora produzida pela absorção de um veneno de difícil reconhecimento, diluído no álcool que em grande quantidade lhe fora encontrado no estômago.

— Carregava-lhe bem! — segredou de novo o negociante que, de repente, despertara.

A leitura destes relatórios durara quase uma hora e ainda não satisfizera o delegado quando o presidente, voltando-se, lhe perguntou:

— Suponho que é inútil a leitura da análise das vísceras?

— Desejava que se fizesse! — respondeu severamente e sem o fitar.

Transparecia-lhe na entoação da voz o direito que tinha em exigir a leitura completa: e, erguendo-se impercetivelmente, como que dava a entender que nada o obrigaria a renunciar a esse direito, cuja recusa seria um motivo de apelação.

O magistrado das suíças compridas, incomodado de novo pelo catarro estomacal, não pôde deixar de dizer ao presidente:

— Mas de que serve ler tudo isso? É apenas para roubar-nos tempo!

O outro das lunetas de ouro, calava se, olhando tristemente na sua frente, como quem não esperara nada de bom nem da mulher, nem da vida em geral.

«No dia 15 de dezembro de 18... os abaixo assinados, em virtude do mandado do juiz presidente de... » — começara a ler o escrivão, elevando a voz para dominar a sonolência que se apoderara de todos — «e na presença do ajudante da Inspeção Médica, procedemos à análise das vísceras, abaixo designadas:

1º. O pulmão direito e o coração (encerrados num boião de vidro de grandes dimensões);

2º. O conteúdo do estômago (encerrado num boião semelhante ao outro);

3º. O estômago (igualmente noutro boião);

4º. O fígado, baço e rins (encerrados num boião mais pequeno);

5º. Os intestinos (num boião semelhante aos primeiros)...»

Neste ponto da leitura o presidente segredou com os magistrados sentados aos seus lados e recebendo como que uma resposta afirmativa, mandou calar o escrivão.

— O Tribunal dispensa esta leitura por supérflua declarou.

O escrivão reuniu as folhas soltas do relatório e o delegado irritadamente tomou um apontamento.

— Os senhores jurados podem agora examinar os objetos do corpo do delito — disse o presidente.

Vários jurados levantaram-se claramente preocupados com a maneira como deviam usar das mãos, aproximaram-se da mesa, olhando para os boiões, para o tubo e para o anel. O negociante experimentou-o num dos dedos.

— Belo dedo, sim senhor! — dizia voltando ao seu lugar. — Do tamanho de um pepino! — acrescentou evidentemente divertido com o gigantesco colega que fantasiara.

 


III

 

Quando terminou o exame do corpo do delito, o presidente encerrou a inquirição, dando imediatamente a palavra ao delegado para não perder tempo; confiava que este, sendo homem como os demais, devia sentir a necessidade de fumar ou de comer e pouparia a assistência.

Porém, o delegado não se sentia nestas disposições; tolo por natureza, tivera a infelicidade de obter uma medalha de ouro quando concluíra os preparatórios e na Universidade fora igualmente recompensado em Direito Romano por uma tese sobre Servidões, o que contribuíra para o tornar arrogante e loucamente vaidoso; além disso, aumentara-lhe a estupidez inata o sucesso que tivera em aventuras amorosas.

Logo que lhe foi concedida a palavra, levantou-se lentamente, exibindo as formas elegantes envoltas na ampla toga; colocando as mãos na carteira inclinou levemente a cabeça e espraiando um olhar por toda a sala, evitando contudo fitar os réus, começou o discurso que preparara durante a leitura dos relatórios médicos:

— Senhores jurados! O caso que nos é hoje apresentado a julgamento constitui, deixai-me assim exprimir, um facto característico de criminalidade.

Um discurso do agente do Ministério Público devia ter, segundo as suas ideias, um alcance geral e social, assemelhando-se nisso aos famosos libelos que estabeleceram a glória dos advogados de nomeada. Ainda que hoje o auditório apenas consistisse em costureiras, criadas, cocheiros e moços de frete, isso não o detinha.

Aqueles que hoje estavam no apogeu da fama e da glória tinham-se estreado do mesmo modo. O essencial era seguir o princípio que se impusera: «penetrar bem no íntimo de todas as questões» desenvolvendo a significação psicológica de cada delito e descobrindo a chaga social do qual era a expressão.

— Tendes diante de vós, senhores jurados, um crime bem característico deste fim de século e que apresenta no seu todo, por assim dizer, os traços particulares de decomposição moral que hoje em dia ataca numerosos elementos da nossa sociedade.

Durante muito tempo, falou conservando este tom, esforçando-se por não esquecer de mencionar nenhum facto relativo ao processo e por não estacar a meio do discurso a fim de que este pudesse deslizar sem interrupção durante cinco quartos de hora. Não o conseguiu, porque perdeu-lhe o fio e durante algum tempo conservou-se tragando saliva, até que retomando-o, redobrou de eloquência. Falava, porém, em voz baixa e insinuante, equilibrando-se ora num ora noutro pé e dirigindo-se aos jurados sossegada e naturalmente; enquanto relanceava para as notas que tomara, erguia a voz trovejante e acusadora, e alternadamente falava aos advogados e para o público. Só os réus nunca lhe atraíram a atenção, apesar de constantemente olharem para ele. Todo o discurso estava polvilhado de citações novas e frases em moda no meio em que vivia, e que eram e são ainda consideradas com a última palavra da ciência: as leis da hereditariedade, os criminosos inatos, Lombroso, Tarde, evolução, luta pela vida, Charcot e degenerescência.

Smielkov era definido como o tipo do russo generoso e confiante, qualidades, que o haviam colocado na dependência dos seres perversos.

Kartimkine era o produto atávico da antiga servidão, homem rudimentar, sem instrução, sem princípios, sem religião, e a amante Eufémia Bochkov era uma vítima da hereditariedade: o aspeto físico e o caráter moral mostravam todos os estigmas da degenerescência

Porém, a instigadora principal do crime era a Maslova, que representava o tipo da decadência social contemporânea no que havia de mais baixo.

— Esta criatura — continuou o delegado sem olhar para ela — diferentemente dos seus cúmplices, recebeu e gozou os benefícios da instrução. Pelo depoimento da proprietária da casa da qual fazia parte, soubemos, senhores, que além de ler e escrever, compreende e fala o francês. Órfã, educada no seio de uma família distinta, poderia viver perfeitamente de trabalho honesto se não trouxesse em si germes de uma tara atávica; mas não, abandonou tudo para entregar-se à satisfação de vis paixões e para melhor as satisfazer, inscreveu-se numa casa de passe, onde pela superioridade intelectual de que dispunha (ouviste-lo afirmar) exercia nos seus adoradores essa misteriosa influência da qual a ciência tanto se tem ocupado nos últimos tempos e que a escola de Charcot tão felizmente definiu como sugestão que ela exerceu no ingénuo e honesto russo para o roubar e em seguida assassinar descaradamente.

— Está hoje divagando muito! — disse o presidente, sorrindo e inclinando-se para o juiz de aspeto severo.

— Um refinado imbecil — respondeu este.

— Senhores jurados — continuava o delegado inclinando a cabeça com deferência — tendes em vosso poder o destino daqueles criminosos e até certo ponto o da sociedade, porque o vosso veredictum tem uma grande importância social. Peço-vos que penetreis na completa significação deste crime, de modo que possais adquirir a convicção do perigo a que está sujeita a sociedade com o contacto de elementos degenerados, fenómenos patológicos direi mesmo, tais como a Maslova, e poder assim impedir que os elementos sãos e robustos sejam contaminados!

E como que esmagado pela importância social do esperado veredictum, o delegado deixou-se cair na cadeira, encantado com o discurso. A significação deste, quando desadornado de todas as flores da teórica, era que a Maslova hipnotizara o negociante e, ganhando-lhe a confiança, aproveitara-a para o roubar; descoberta, porém, por Simão e Eufémia, vira-se obrigada a partilhar com eles o roubo. Para destruir suspeitas, voltara então ao hotel com o negociante e envenenara-o.

Terminado este discurso, levantou-se na bancada dos advogados um homenzinho de meia-idade, vestindo casaca que deixava ver o peitilho da camisa muito engomada, e que começou a falar em defesa de Kartimkine e da Bochkov: estes haviam-no contratado por trezentos rublos e ele não se poupava em desculpá-los, atribuindo toda a responsabilidade à Maslova.

Insistiu principalmente em refutar a afirmação da Maslova, que Simão e Eufémia estavam no quarto quando aquela retirara o dinheiro.

— Esta afirmação carece de valor provindo de quem confessa um crime de envenenamento — dizia o advogado, e sobre os três mil rublos depositados no Banco, não restava a menor dúvida que haviam sido facilmente ganhos por dois criados laboriosos e honrados, que recebiam diariamente três a cinco rublos de gorjetas. Quanto ao dinheiro do negociante, roubado incontestavelmente pela Maslova, esta perdera-o ou dera-o a alguém, embriagada como estava, segundo o provara o inquérito a que se tinha procedido. No envenenamento ainda havia menos dúvidas; a Maslova confessara-o abertamente.

Por consequência, o advogado pedia para que Kartimkine e a Bochkov fossem declarados inocentes do roubo e se os jurados os reconhecessem culpados deste, para pelo menos o serem do envenenamento, e em último caso afastar a hipótese de premeditação.

Concluindo, o defensor de Simão e de Eufémia notou que as brilhantes considerações do Sr. Agente do Ministério Público sobre o atavismo, por mais importantes que fossem no ponto de vista científico, eram inaplicáveis ao caso presente, pois que a Bochkov era filha de pais incógnitos.

O delegado tomou à pressa um apontamento e, lançando um olhar irritado, encolheu desprezivelmente os ombros.

Depois que o advogado se sentou, ergueu-se o defensor oficioso da Maslova, que timidamente e gaguejando começou a discursar.

Não negando que ela tivesse tomado parte no roubo, limitou-se a sustentar a afirmativa de que os pós tinham sido ministrados a Smielkov na crença de serem soporíferos, como sendo a expressão da verdade. Tentou seguidamente um bocado de eloquência, descrevendo o modo como a Maslova fora impelida para a depravação por alguém que a seduzira e ficara impune, enquanto ela tivera de carregar com todo o peso da sua falta: mas falhou nesta excursão pelos domínios da psicologia patética e todos tiveram essa impressão. Numa ocasião em que descrevia a crueldade dos homens e a inferioridade social das mulheres, o presidente, para o ajudar, convidou-o a limitar-se à discussão dos factos. Ele assim fez, acabando rapidamente o discurso. Retomou a palavra o delegado para responder às críticas que lhe dirigiram os advogados que tinham falado.

Defendendo o modo de ver que exprimira sobre o atavismo declarou que se a Bochkov era filha de pais incógnitos, o valor científico da teoria do atavismo, de modo algum se achava amesquinhado:

— Esta teoria — disse — está tão solidamente estabelecida pela ciência que podemos não só do atavismo deduzir o crime, mas também do crime inferir o atavismo.

Quanto a supor, como o fizera o segundo advogado, que a Maslova fora pervertida por um sedutor mais ou menos imaginário (e aqui insistiu ironicamente na palavra «imaginário») era mais verosímil que ela tivesse sempre sido a tentadora das inúmeras vítimas que o acaso lhe fazia cair entre mãos.

E dito isto sentou-se triunfantemente.

O presidente perguntou então aos prisioneiros se tinham alguma coisa a acrescentar em sua defesa.

Eufémia Bochkov repetiu mais uma vez que nada fizera e que a única culpada era a Maslova.

Simão limitou-se a dizer:

— É o que os senhores quiserem. Estou inocente!

Maslova não disse nada.

Quando o presidente se lhe dirigiu, repetindo a pergunta, ergueu os olhos para ele e espalhou-os pela sala como uma fera perseguida; depois, baixou-os de novo e desatou a chorar convulsivamente.

— O que é que tem? — perguntou a Nekludov o negociante que ouvira um som estranho.

Era, na realidade, apenas um soluço reprimido. Nekludov ainda não compreendia a sua nova situação e atribuía esse soluço irreprimível e as lágrimas que lhe marejavam os olhos à tensão e à fraqueza dos seus nervos.

O receio do opróbrio que o cobriria se nessa sala do tribunal fosse conhecido o proceder que tivera com Maslova era mais forte que tudo e impedia-o de notar conscientemente a revolução íntima que pouco a pouco se operava nele.

 


IV

 

Apenas os réus disseram «o que tinham a acrescentarem defesa própria» principiaram a redigir-se as perguntas que haviam de ser apresentadas ao júri. Logo em seguida o juiz presidente tratou de apresentar o resumo dos debates, explicando demoradamente aos jurados, em forma familiar e agradável, que simples roubo deferia de roubo por arrombamento e que roubar de recinto fechado não era precisamente o mesmo que roubar de lugar aberto. Durante esta explicação, detinha o olhar em Nekludov como se particularmente o preferisse e lhe destinasse a preleção, para que ele por sua vez, depois de a haver compreendido, pudesse explicá-la aos jurados, seus colegas. Quando julgou que todo o auditório estava bem impregnado das importantes verdades que enunciara, passou a outras do mesmo modo essenciais: que um assassínio era uma ação da qual resultava a morte de um ser humano e por consequência um envenenamento era um assassínio. Julgando esta verdade bem demonstrada, explicou-lhes seguidamente que quando o roubo era seguido de assassínio, a combinação dos dois crimes era assassínio e roubo.

Durante estas explicações, o presidente não esquecia que lhe era preciso terminar o mais cedo possível a fim de ir ter com a bela suíça que o esperava, mas o hábito estava tão entranhado nele que uma vez posto a falar era-lhe difícil deter-se.

Continuou, pois, explicando aos jurados que se reconhecessem a culpabilidade dos detidos tinham o direito de os declarar culpados, e se os julgassem inocentes, igualmente podiam declará-los inocentes; que se os achassem criminosos numa parte da acusação e inocentes na outra, cabia-lhes o direito de os inocentar num dos crimes e culpá-los no outro.

Lembrou-lhes em seguida que era dever o fazer uso racional de um direito que a lei lhes concedia em toda a plenitude.

Ainda desejava acrescentar que a resposta afirmativa a qualquer das perguntas que lhe eram dirigidas, referir-se-ia ao seu conjunto, e que desejando excetuar parte ou partes dessa pergunta, era necessário mencioná-las, quando deitando os olhos ao relógio, viu, com espanto, que apenas faltavam cinco minutos para as três e que aquela explicação demoraria pelo menos um quarto de hora.

Deu-se pressa, pois, em abordar o fundo da questão.

— Eis em que consiste o caso que tendes de resolver — disse, principiando a repetir o que fora dito inúmeras vezes pelos advogados, delegado e testemunhas.

Dos lados, os dois acólitos escutavam atentamente, olhando a ocultas para os relógios, pois ainda que achassem o discurso excelente — tal como devia ser — ia sendo bastante demorado. Desta impressão partilhavam também o delegado, os empregados e o público.

Tendo acabado o resumo, parecia que nada mais havia a dizer: o presidente, porém, não se decidia a abandonar a palavra, tal era o prazer que sentia escutando as entoações acariciadoras da sua voz, de modo que julgou propositado dirigir ainda algumas palavras aos jurados sobre a importância do direito que a lei lhes conferia, o cuidado e a circunspeção que deviam usar — usar mas não abusar — e sobre o juramento que os ligava. Ao terminar, chamou-lhes a consciência da sociedade e relembrou-lhes que o segredo das deliberações tomadas devia ser sarado, etc., etc.

Logo que o presidente começou a discursar, a Maslova fixara-o, como se receasse perder uma só palavra das que ele pronunciava, e Nekludov pôde examiná-la descansadamente, sem receio de encontrar o seu olhar. Sentiu então em si o que acontece ordinariamente a todos nós quando revemos depois de longos anos de ausência um rosto que nos foi familiar. Impressionara-o logo a transformação que nela se operara durante o tempo que a não vira, mas, lentamente, a impressão dessa mudança desvanecera-se e o rosto aparecera-lhe tal como tinha sido dez anos antes. Os olhos da alma dominando-lhe os sentidos, mostravam-lhe apenas os traços essenciais, aqueles que traduziam a individualidade da outrora jovem Katucha e que nada poderia modificar.

Sim, apesar do uniforme da prisão, apesar do corpo, no conjunto, estar mais cheio, apesar do desenvolvimento do seio e da espessura do braço, apesar das rugas na fronte e na face, apesar das pálpebras tumefactas e dessa descarada e lastimável expressão do rosto, era bem ela, a mesma Katucha, que em certa noite de Páscoa, erguera para ele tão inocentemente os seus ternos e apaixonados olhos, sorrindo de felicidade e de alegria de viver! «E um estranho acaso faz com que, dez anos passados, durante os quais nunca a encontrei, eu a reveja sentada no banco dos réus quando sirvo como jurado! Ah! como acabará tudo isto? Se ao menos houvesse pressa em terminar!» Contudo, ainda não queria ceder aos sentimentos de arrependimento que despontavam e cresciam no seu íntimo, obstinando-se em considerar tudo isto como uma simples coincidência que se desvaneceria sem lhe perturbar a vida. Comparava-se a um rafeiro a quem o dono, agarrando pelo gasganete, esfrega o focinho na imundice que largou. O cachorro gane, tenta fugir e furtar-se ao resultado da inconveniência praticada, mas o implacável dono não consente em restituir-lhe a liberdade.

Do mesmo modo, Nekludov reconhecendo a baixeza do que praticara, tinha a impressão de que uma poderosa mão o conservava em presença do seu crime e não queria dar a verdadeira significação àquilo que praticara, nem compreendia o que é que exigia dele essa força que o agitava; igualmente recusava-se a ver no quadro que tinha ante os olhos o produto do seu modo de proceder, mas a mão invisível prendera-o e ele pressentiu que não mais o largaria.

Preocupava-o agora aparentar tranquilidade e, traçando as pernas desenvoltamente, brincava com a luneta enquanto conservava uma atitude natural e descuidosa. No fundo da alma, durante este tempo, reconhecera a ignomínia não só do seu procedimento para com Katucha, mas de toda essa inútil, má, perversa e miserável existência que durante doze anos vivera. O véu que até então lhe ocultara essa ignominiosa ação e toda a vaidade da sua anterior vida principiava a levantar-se, permitindo-lhe antever o que até então estivera oculto.

 


V

 

Enfim, o juiz presidente terminou o discurso e agitando graciosamente no ar a folha de papel que continha os quesitos, entregou-a aos jurados. Estes, mal dispostos, ergueram-se como que envergonhados de se acharem ali, e sentindo-se felizes por abandonarem os seus lugares, entraram uns atrás dos outros, na sala das deliberações. Quando o último entrou, a porta foi fechada e um soldado desembainhando a espada, colocou-se em frente, de sentinela.

Os juízes levantaram-se e saíram. Igualmente saíram os réus.

Entrando na sala das deliberações, os jurados deram-se pressa em acender cigarros, exatamente como haviam já feito da outra vez; a consciência do que havia de artificial e falso no cargo que desempenhavam, que todos mais ou menos nitidamente experimentavam enquanto sentados na sala das audiências, desapareceu-lhes por completo quando se sentiram novamente livres, fumando cigarros. Tranquilizados e postos à vontade instalaram-se conforme lhes aprouve, começando logo a discutir animadamente.

— A pequerrucha não é culpada — principiou o negociante —, deixou-se enredar! Devemos protegê-la!

— Vamos verificar tudo isso! — respondeu o presidente do júri. — Cuidado que não sejamos influenciados pelas nossas impressões pessoais.

— O juiz presidente fez um belo relatório! — observou o militar reformado.

— Belo! Pois olhe que quase adormeci!

— O principal ponto é que os criados não saberiam nada do dinheiro do negociante se a Maslova não estivesse de acordo com eles! — disse o caixeiro judeu.

— Então é sua opinião que ela roubou? — perguntou-lhe um dos jurados.

— Nunca acreditarei em tal! — exclamou o gordo negociante. — Quem fez tudo foi aquela fúria, de olhos sem pestanas!

— Porém, essa afirma não ter entrado no quarto! — interrompeu o militar.

— Quer então acreditar nela? Nunca me fiarei nessa rameira!

— E de que serve isso? — perguntou ironicamente o caixeiro. — A verdade é que a Maslova era a possuidora da chave.

— Mas isso nada prova! — gritou o negociante.

— E o anel?

— Então ela não o explicou claramente? O siberiano estava excitado e havia bebido bem. Bateu-lhe; logo a seguir arrepende-se, e não é isto natural? «Toma lá», diz-lhe, «e não chores». Tinha 1,90 metros de altura e peso proporcional.

— Não é isso o que tratamos de saber — observou Pedro Gerassimovich. — Vejamos quem é que premeditou e executou esta embrulhada: foi ela só ou foram os dois criados?

— Os criados nada poderiam fazer sem ela; era em seu poder que estava a chave! — de novo interrompeu o judeu.

E durante muito tempo continuou o debate seguindo ao acaso. Por fim o presidente do júri resolveu chamá-los à boa ordem.

— Desculpem-me senhores, mas parece-me melhor sentarmo-nos e discutir.

E dando o exemplo sentou-se na cadeira presidencial.

— São todas desavergonhadas — dizia o caixeiro, reforçando a opinião com a narração do furto de um relógio que uma criatura da mesma vida praticara a um colega.

O militar que o escutava ia contar-lhe um caso ainda mais convincente, o roubo de um samovar de prata, quando o presidente, batendo com o lápis na mesa, disse:

— Por favor, senhores, comecemos.

Estabelecendo-se silêncio começou a ler os quesitos, assim redigidos:

1º. «Simão Petrovich Kartimkine, aldeão de Borki, distrito de Krapivo, de 34 anos, é culpado de haver voluntariamente atentado no dia 19 de outubro de 18... contra a vida do negociante Smielkov com intenção de o roubar? É igualmente culpado de ter roubado ao mesmo Smielkov, depois de, em cumplicidade com outros, o haver envenenado, quantia aproximada a dois mil e quinhentos rublos e um anel de brilhantes?»

2º. «Eufémia Ivanovna Bochkov, burguesa de 43 anos, é culpada de, em cumplicidade com Simão Kartimkine, ter praticado os crimes enumerados no primeiro quesito?»

3º. «Catarina Mikailovna Maslova, de 27 anos, é culpada de, em cumplicidade com os primeiros réus, ter praticado os crimes enumerados no primeiro quesito?»

4º. «Caso Eufémia Bochkov não seja culpada dos crimes indicados no primeiro quesito, não o será de ter retirado da mala fechada do negociante Smielkov quantia aproximada a dois mil e quinhentos rublos, isto quando fazendo parte do pessoal do Hotel Mauritânia?»

— Muito bem, meus senhores, que dizem ao primeiro quesito? — disse o presidente, relendo-o pausadamente.

A resposta não foi difícil, pois que todos estavam de acordo quanto à afirmativa, tanto no roubo como no envenenamento. Só um dos jurados, um velho operário que, sem comentários, respondeu sempre negativamente, recusou-se a culpar Kartimkine.

O presidente, imaginando que o velho era curto de inteligência, julgou dever explicar-lhe que não havia dúvida quanto à culpabilidade de Simão e de Eufémia Bochkov; o velho, porém, respondeu que compreendia perfeitamente mas que o melhor era perdoar: «Nós também não somos santos», disse; e nada pôde abalar-lhe a convicção.

Ao segundo quesito que se referia à Bochkov, a resposta foi: «Não é culpada». Não foram reputadas bastantes as provas da sua participação no envenenamento, ponto em que o seu advogado havia insistido.

O negociante, desejoso de justificar a Maslova, sustentava que a principal instigadora de tudo fora a Bochkov e arrastara consigo outros jurados, até que o presidente, desejoso de se conservar na mais estrita legalidade, observou que não havia prova material da sua participação no envenenamento.

A discussão foi acalorada acabando por prevalecer esta opinião.

A Bochkov, porém, quando o quarto quesito foi discutido não escapou à culpabilidade. A pedido do velho operário acrescentou-se: «com circunstâncias atenuantes».

O terceiro quesito fora reservado para o final e deu lugar a acesa e viva discussão. O presidente afirmava que a Maslova era criminosa; o negociante sustentava a sua inocência apoiado nesta opinião pelo militar e pelo operário. Os outros jurados hesitavam, parecendo preferir a opinião do presidente; isto era apenas devido a que estavam já fatigados e o instinto levava-os a preferir a opinião que mais depressa os pusesse de acordo para lhes ser restituída a liberdade.

Por tudo que sabia da Maslova e depois dos interrogatórios, Nekludov ficara convencido da sua inocência quer no roubo, quer no envenenamento. Acreditando, ao princípio, que todos seriam do mesmo modo de pensar, depressa reconheceu que se enganara e que a maioria inclinava-se de preferência para a afirmativa, um pouco por causa do cansaço geral, por consideração com o presidente e também porque o bom negociante, não ocultando as suas simpatias pela Maslova, defendia-a desastradamente. Vendo isto, Nekludov sentiu-se tentado a pedir a palavra; invadiu-o o receio que, intercedendo por Katucha, todos adivinhassem as anteriores relações de ambos. Sentia que era um dever intervir e crime deixar passar os debates sem objeção.

Alternadamente enrubescendo e empalidecendo, ia enfim decidir-se a falar quando Pedro Gerassimovich, chocado pelo tom autoritário do presidente, interveio, exprimindo-se no mesmo modo em que Nekludov ia fazê-lo.

— Perdão — disse. — Afirma-se que a culpabilidade ressalta do facto de ela possuir a chave da mala; mas porque é que um outro não poderia abri-la com outra chave?

— Exato, isso mesmo! — apoiou o negociante.

— Além disso é impossível que ela tirasse o dinheiro porque na sua posição não saberia que fazer dele!

— Certamente! É o mesmo que eu digo! — reforçou o negociante.

— O que me parece mais provável é que a sua ida ao hotel com a chave sugerisse aquela ideia aos dois criados que, aproveitando-a, imputaram mais tarde toda a responsabilidade à Maslova.

Pedro Gerassimovich exprimia-se em voz tão irritada que o presidente, sentindo-se provocado, mais obstinadamente continuou defendendo o seu modo de ver. Pedro Gerassimovich, porém, falou tão convincentemente que a maioria acabou por partilhar a opinião que ele defendia, concordando que a Maslova não tomara parte no roubo, quer do dinheiro quer do anel, muito menos deste, por lhe haver sido dado pelo negociante.

Discutiu-se em seguida a culpabilidade que tivera no envenenamento e novamente o negociante, ardente defensor da ré, declarou que a obrigação era proclamá-la inocente, ao que replicou o presidente mostrando a impossibilidade material de o fazer, visto ela própria ter confessado que lhe dera o veneno.

— Sim, na crença que era ópio! — disse o negociante.

— O ópio também mata — respondeu o militar que morria por afastar-se do assunto: e a propósito, contou a aventura que sucedera a uma sua cunhada, a qual por equívoco bebera uma dose de ópio e a quem um hábil médico salvara da morte.

Era tal a satisfação que sentia o militar durante a narração que ninguém tinha coragem para o interromper.

Apenas o caixeiro judeu, seguindo-lhe o exemplo, tentou interrompê-lo:

— Afinal, habituando-se qualquer gradualmente, ao veneno, pode-se suportar impunemente grandes doses: a esposa de um meu parente...

O militar, porém, não era homem que se deixasse interromper, e continuou a história principiada para que todos soubessem o papel que o ópio desempenhara na vida de sua cunhada.

— Lembrem-se, senhores, que são quatro horas dadas — exclamou um jurado.

— Então, senhores, que responderemos? — perguntou o presidente. — Será suficiente qualquer coisa como: «Sim, culpada de haver ministrado o veneno e sem intenção de roubar?»

Pedro Gerassimovich, satisfeitíssimo com o anterior sucesso, concordou plenamente.

— Peço que se acrescente: «Com circunstâncias atenuantes» — exclamou o negociante.

Todos convieram.

Isolado, o velho operário insistiu para que a resposta fosse: «Não culpada».

— Mas é o que se diz na resposta: «Sem intenção de roubar» é a mesma coisa que dizer que ela não é culpada!

— Ajuntando ainda: «com circunstâncias atenuantes», para que não haja dúvidas na absolvição! — impôs o negociante, todo altivo da sua lembrança.

Era tal a fadiga de que todos estavam possuídos e os debates haviam de tal modo anarquizado os espíritos que ninguém se lembrou de acrescentar à resposta «que não houvera intenção de matar». Nekludov, igualmente não o notou, absorvido por inquietação e dor, e as respostas passadas ao papel, na forma usual adotada pelos jurados, foram entregues ao tribunal.

Rabelais conta que um jurista que tinha de dar sentença num processo citara inúmeras leis e depois de ler vinte páginas de um latim incompreensível propusera aos colegas sentenciar segundo a sorte. Se os dados dessem número par o acusador ganharia, se fosse impar o acusado.

Aqui dera-se um caso semelhante. As respostas que o júri adotara não tinham sido aprovadas por existir coerência no modo do pensar geral, mas apenas porque o juiz presidente, tendo discursado demoradamente, esquecera-se de dizer o que era habitual em casos semelhantes: que os jurados podiam responder «sem intenção de matar». Depois, o militar lembrara-se de narrar a enorme história da cunhada o que aborrecera e fatigara todos os colegas. Nekludov absorvera-se em preocupações pessoais e nem sequer notara que as palavras «sem intenção de roubar» exigiam quanto ao assassínio as «sem intenção de matar»; Pedro Gerassimovich, satisfeito por haver prevalecido a opinião que defendera, desinteressara-se do resto do debate, tendo mesmo abandonado a sala quando o presidente relia as respostas. Mas o motivo principal da sua adoção consistira em que os jurados estavam cansados, queriam ver-se livres e ir jantar, e consequentemente tomaram a decisão que primeiro lhes foi proposta e que acabava com tudo o mais rapidamente possível.

Ao analisar a leitura das respostas o presidente agitou uma campainha. O soldado que ficara de sentinela embainhou a espada, afastou-se e juízes e jurados retomaram os seus lugares.

O presidente do júri dirigiu-se solenemente para a mesa dos juízes e entregou-lhes a folha de papel contendo as respostas. O juiz presidente, lendo-as de relance, ficou surpreendido e chamou a atenção dos dois colegas; espantava-o o júri responder com uma negativa quanto ao roubo e afirmar, sem reservas, o assassínio.

Resultava que a Maslova não roubara nem o dinheiro nem o anel e que, sem motivo justificado, envenenara o negociante.

— Veja que resposta inepta — disse o presidente ao juiz da esquerda.

— São trabalhos forçados na Sibéria para quem está inocente!

— Parece-lhe que ela esteja inocente?

— Claramente! É um caso para se aplicar o artigo 817.

O artigo 817 dá aos juízes o direito de modificar a decisão do júri, se esta for insensata.

— Que lhe parece isto? — perguntou o presidente ao outro juiz.

Este não respondeu imediatamente. Estava somando uns números que tinha diante de si num papel e procurava tornar a soma divisível por três para responder. Não o conseguindo, concordou com ele.

— Sim, talvez devêssemos aplicar o 817 — disse.

— É também a sua opinião? — perguntou o presidente ao juiz de aspeto grave.

— Por nada deste mundo devemos fazer semelhante coisa! — respondeu este resolutamente. — Os jornais queixam-se que o júri absolve inúmeros criminosos. Que diriam se nós os imitássemos? Nada, nada, não concordo.

O juiz presidente consultou o relógio.

«É triste, mas o que é que se lhe há de fazer?», dizia consigo. Entregou as respostas ao júri para que fossem lidas em voz alta. Os jurados levantaram-se e o seu presidente, equilibrando-se ora numa, ora noutra perna, leu em voz alta quesitos e respostas. Escrivães, advogados e procuradores não puderam ocultar a estupefação que os invadiu e apenas os réus permaneceram impassíveis como se não houvessem compreendido o sentido daquelas respostas.

Depois os jurados sentaram-se novamente.

O presidente, dirigindo-se ao advogado, perguntou-lhe quais eram as penas que deviam ser aplicadas aos réus e este, atribuindo a severidade do júri para com a Maslova à sua eloquência, pavoneou-se, fingiu refletir e disse:

— Peço para Simão Kartimkine a aplicação do artigo 1452; para Eufémia Bochkov a do artigo... e para Catarina Maslova a do artigo... parágrafo...

As punições a que se referiam estes artigos eram, naturalmente, as mais pesadas que se podiam aplicar.

— O tribunal retira-se para deliberar quanto à aplicação da condenação — disse o presidente levantando-se e saindo acompanhado pelos dois juízes.

Todos sentiram o alívio que a consciência da execução de uma tarefa produz e, erguendo-se, começaram a palrar à vontade.

— Fizemo-la bonita, meus senhores! — disse Pedro Gerassimovich aproximando-se de Nekludov, a quem o presidente do júri dava explicações. — Enviámos aquela desgraçada para a Sibéria!

— O que é que diz? — exclamou Nekludov, a quem a emoção não deixou pensar em formalizar-se contra a imprópria familiaridade do professor.

— O que é verdade! — respondeu Pedro Gerassimovich. — Esquecemo-nos de acrescentar na nossa resposta à palavra «culpada» a frase: mas sem intenção de assassinar. O escrivão disse-me agora que o delegado pede que seja condenada em 15 anos de trabalhos forçados.

— Porém a resposta foi combinada de comum acordo! — interveio o presidente.

Pedro Gerassimovich replicou, dizendo que logo que se havia afirmado que a Maslova não roubara, dever-se-ia ter acrescentado que igualmente não assassinara.

— Mas antes de entregar as respostas, reli-as e ninguém reclamou! — justificava-se o presidente.

— Tive de sair nessa ocasião — disse Pedro Gerassimovich.

— Mas, Dimitri Ivanovitch, como é que não notou nada?

— Nunca imaginei semelhante coisa! — respondeu Nekludov.

— Pois estava bem claro!

— Talvez possamos reparar o erro — disse ainda Nekludov.

— Não, já é tarde. Tudo acabou!

Nekludov olhou para os réus; estes, enquanto se decidia o seu destino, continuavam sentados no banco, entre os soldados. A Maslova sorria. E um mau pensamento introduziu-se na alma de Nekludov. Ainda agora, prevendo a absolvição da Maslova, preocupava-se em saber como encararia novas relações com ela.

Os trabalhos forçados e a Sibéria suprimiam, porém, de repente, a possibilidade de um reatamento de relações.

A ave mal ferida acabaria de debater-se na bolsa da caça e a recordação da sua existência desvanecer-se-ia de todo.

 


VI

 

A afirmação de Pedro Gerassimovich era verdadeira.

Em seguida a uma rápida deliberação, os juízes entraram de novo e o presidente ordenou a leitura da seguinte sentença:

«Aos 28 de abril de 188... por ordem de Sua Majestade Imperial, a secção crime do tribunal do distrito de N..., com colaboração do júri, em virtude dos artigos 771, 776, 777 do código do processo crime, condena Simão Kartimkine, aldeão de 34 anos e Catarina Maslova, burguesa de 27 anos, à perda de todos os direitos civis e pessoais e ordena que ambos sejam enviados para os trabalhos forçados: Kartimkine por oito anos e Catarina Maslova por 4, conforme o artigo 23 do Código Penal.

Condena igualmente Eufémia Bochkov, burguesa, de 44 anos, à perda dos direitos civis e a 3 anos de prisão, conforme o artigo 48 do Código Penal.

Condena além disso os três réus, nas custas e selos do processo, e manda que, caso os réus sejam insolventes, as custas sejam pagas pelo tesouro.»

A seguir, a sentença ordenava que o anel fosse entregue aos herdeiros do negociante e o corpo de delito vendido ou destruído.

Durante a leitura da sentença, Kartimkine agitava-se, esfregando as mãos contra as calças e mexia com os lábios. A Bochkov continuava a permanecer impassível. A Maslova, bruscamente, empurpurecera.

— Eu não sou criminosa, nem culpada! — exclamou mal findara a leitura da sentença. — Juro-o! Não tenho culpa! Nunca pensei em matá-lo, nem nunca o faria! Esta é a verdade! A única verdade!

Tendo lançado com voz estrídula estas frases, de modo que toda a sala as ouvisse, deixou-se cair no banco, escondeu o rosto com ambas as mãos e desatou a soluçar ruidosamente.

Quando Simão e Eufémia se levantaram para sair, ela ficou sentada, soluçando; um soldado pegou-lhe no braço e obrigou-a a levantar-se.

«Não pode ser, é impossível deixar que isto caminhe assim!», dizia consigo Nekludov, esquecendo completamente os maus pensamentos, que momentos antes o tinham assaltado.

E irrefletidamente, impelido por um irresistível impulso, correu para o corredor a fim de mais uma vez a rever. A porta da sala aglomeravam-se jurados e advogados, discutindo e palrando, que o obrigaram a demorar-se antes de poder sair. Quando o pôde fazer a Maslova ia já ao longe; correu, indiferente à curiosidade que despertava e só se deteve quando lhe passou à frente.

Ela havia cessado de chorar e apenas de momento em momento fortes soluços sacudiam-lhe o peito, enquanto enxugava o rosto com a extremidade do lenço que lhe cobria a cabeça.

Passou por Nekludov e não o conheceu. Ele também não tentou atrair-lhe a atenção; deixou-a passar e seguindo caminho começou a procurar o juiz presidente.

Só já conseguiu encontrá-lo no guarda-roupa, perto do guarda portão, preparado para retirar-se. Acabava de vestir um elegante pardessus enquanto o porteiro segurava respeitosamente numa bela bengala de castão de prata.

— V. Ex.ª concede-me um momento de atenção sobre o processo que acaba de ser julgado? Eu fazia parte do júri — disse-lhe Nekludov.

— Com todo o gosto. É o príncipe Nekludov? Muito prazer em de novo reatar conhecimento! — respondeu o magistrado apertando-lhe a mão.

E, com íntima satisfação, relembrou-se do baile onde o encontrara e durante o dançara com mais alegria e entusiasmo que toda a mocidade.

— Em que lhe posso ser agradável?

— Houve um engano na resposta que demos sobre a criminalidade de Maslova. Está inocente e contudo condenada a trabalhos forçados! — explicou Nekludov, assombreando-lhe o rosto.

— Mas a sentença foi baseada nas respostas do júri — disse o juiz dirigindo-se para a porta — apesar de as acharmos bastante incoerentes.

De repente, recordou-se que durante o relatório, para economizar tempo, deixara de explicar aos jurados o modo como deviam formular a condicionalidade das respostas, mas absteve-se de o dizer ao seu interlocutor.

— Cometemos um erro — continuou Nekludov. — Não o poderíamos reparar?

— Há sempre motivos para apelação. Consulte um advogado! — respondeu o presidente, inclinando levemente o chapéu e dando mais um passo para a porta.

— Mas é um caso horroroso!

— De acordo; mas só duas soluções o resolviam...

E o presidente oscilava entre o desejo de ser agradável a Nekludov e o receio de chegar tarde à entrevista. Acabando de compor a suíças na gola do sobretudo, pegou levemente no braço de Nekludov e encaminhou-o para a saída.

— Vem para fora?

— Vou — respondeu Nekludov, vestindo apressadamente o sobretudo e acompanhando o juiz.

A rua, cheia de ruído e movimento, brilhava iluminada por um quente sol.

E a conversa continuou, agora em voz alta, por causa do ruído das rodas no pavimento.

— Como vê, a situação é muito simples e, como lhe dizia, só havia duas soluções: ou a Maslova era absolvida, condenada apenas a alguns meses de prisão, levando-se-lhe em conta o tempo já sofrido, ou era condenada a trabalhos forçados. Nós éramos obrigados a escolher uma destas soluções e isso dependia das respostas do júri.

— Dever-se-ia ter introduzido na resposta a restrição que traduziria o nosso pensamento! Foi uma omissão indesculpável! — disse Nekludov.

— É donde parte todo o mal! — respondeu o presidente a sorrir. Consultou o relógio e viu que apenas lhe restavam três quartos de hora para gozar a companhia da bela Clara. — Aconselho-o a que consulte um advogado! Basta arranjar o motivo para apelação — repetiu o juiz — o que é fácil. Trinta kopecks por uma corrida para o Hotel da Itália — gritou para um cocheiro que ia passando — nunca dou mais!

— Queira V. Ex.ª subir!

— Os meus cumprimentos — disse o presidente despedindo-se de Nekludov. — Se lhe puder ser útil em mais alguma coisa, moro no Palácio Dvornikov, rua Dvoriamskafa; é fácil de reter!

E afastou-se, depois de uma última vez saudar Nekludov com um ligeiro aceno de cabeça.

 


VII

 

Nekludov sentiu-se mais tranquilo quando respirou o ar fresco, em seguida à conversa precedente. Julgava reconhecer que a extraordinária emoção que experimentara provinha do estado de fadiga e das circunstâncias anormais em que se achara desde a manhã e que necessariamente haviam contribuído para exagerá-la. «Mas ainda assim, pensava, que incrível e assombrosa coincidência! É absolutamente necessário cuidar em suavizar a sorte daquela desgraçada, e sem perda de tempo! E já que estou aqui, vou tratar de indagar a morada de Fainitzin ou de Nikirin».

Eram os nomes que lhe acudiam à memória dos mais conhecidos advogados. Voltando atrás, entrou de novo no Palácio da Justiça, tirou o sobretudo e subiu a escadaria. No princípio do corredor encontrou Fainitzin em pessoa. Deteve-o e disse-lhe que desejava falar-lhe sobre negócios particulares. O advogado, que o conhecia de vista e de nome, respondeu que se sentiria feliz em lhe poder ser agradável.

— Infelizmente estou bastante fatigado e ainda tenho muito que fazer; mas em duas palavras queira explicar-me do que se trata. Não será melhor entrarmos para aqui?

E conduziu Nekludov para um gabinete que estava aberto, sem dúvida pertencente a algum empregado do tribunal; aí sentaram-se junto de uma mesa.

— Queira dizer-me do que se trata.

— Primeiramente tenho a pedir-lhe que proceda de maneira que ninguém saiba o interesse que tomo neste caso — disse Nekludov.

— Pode estar tranquilo. Então...?

— Hoje fiz parte do júri e condenámos uma mulher a trabalhos forçados quando ela está perfeitamente inocente! Isto atormenta-me.

E Nekludov, contrariado, sentiu-se enrubescer e perturbar-se. Fainitzin envolveu-o num rápido olhar, para em seguida recomeçar a examinar o pano verde que cobria a mesa.

— Que mais? — perguntou.

— Condenámos uma inocente, pelo que queria anular a sentença apelando para uma instância superior.

— Para o Senado — informou o advogado.

— E queria pedir-lhe que se encarregasse deste caso.

Restava-lhe ainda tocar num ponto delicado e em que muito lhe custava falar; sem respirar acrescentou:

— Compreende que todas as despesas quer de salários quer do processo, sejam quais forem, correm por minha conta?

E de novo sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto.

— Conte-me como aconteceu tudo isso.

Nekludov narrou concisamente o que se passara.

— Muito bem! Amanhã vou estudar o processo para poder informá-Io. E depois de amanhã... Não, é melhor quinta-feira se quiser dar-se ao incómodo de procurar-me em casa; aí pelas seis horas já lhe poderei responder. Combinado? Bom, então até quinta-feira. Desculpe-me, mas ainda tenho aqui bastante que fazer.

Nekludov despediu-se e saiu do Palácio da Justiça.

Esta entrevista com o advogado acabara de o tranquilizar e o pensamento de haver principiado a cuidar em suavizar a sorte de Maslova regozijava-o. Influenciava-se com a beleza do tempo e tragava sofregamente o ar primaveril, não reparando nos cocheiros que se detinham oferecendo-lhe os seus serviços; também o andar contribuía para o dispor melhor.

Um enxame de pensamentos e recordações sobre Katucha começou a zumbir dentro dele, avultando entre todos o seu procedimento para com ela. E de novo tudo se assombreou.

«Não, pensarei mais tarde nisso; agora é necessário desembaraçar-me de todas as desagradáveis impressões por que acabo de passar!»

Recordou-se do jantar dos Korchaguine e consultou o relógio; ainda não era tarde e o jantar não devia ter acabado. Escolheu, na estação de carros mais próxima, um cujo aspeto era mais decente, e passados dez minutos chegava à entrada do vasto e elegante palacete dos Korchaguine.


Capítulo 7

 


I

 

— Queira V. Ex.ª entrar que o estão esperando! — disse a Nekludov o gordo guarda-portão dos Korchaguine, sorrindo bonacheironamente e fazendo girar a porta nos gonzos ingleses sem ruído algum. — Estão a jantar. Deram-me ordem para apenas deixar entrar V. Ex.ª, pedindo-lhe que fosse para a sala de jantar.

O guarda-portão acompanhou-o até à escadaria, onde tocou a uma campainha.

— Está alguém de fora? — perguntou Nekludov enquanto tirava o sobretudo.

— Os senhores Kolossov e Miguel Sergeievich apenas — respondeu o porteiro.

No alto da escadaria apareceu um elegante lacaio encasacado e calçando luva branca.

— V. Ex.ª faz o obséquio de subir? Aguardam-no.

Nekludov subiu a escadaria, atravessou a enorme e sumptuosa antecâmara e entrou na sala de jantar. Toda a família dos Korchaguine estava sentada a volta de uma grande mesa, com exceção da mãe, a princesa Sofia Vassilievna que raramente se ausentava do seu quarto.

O velho Korchaguine ocupava uma das cabeceiras, tendo à direita o médico da casa e à esquerda o seu amigo Ivan Ivanovitch Kolossov, antigo funcionário, presentemente diretor de um Banco. A este seguiam-se Miss Bayner, professora da irmãzita de Missy, e a criança, de quatro anos de idade; à direita, na frente desta, estavam Petia, igualmente filho dos Korchaguine, estudante da 7.ª classe, que se preparava para os exames, e um companheiro que lhe servia de explicador. Mais retirados e fazendo-se vis-à-vis, sentavam-se Miguel Sergeievich Teleguine ou Mitia, primo de Missy, e uma parenta pobre, Catarina Alexievna, senhora de 40 anos, slavófila; finalmente na extremidade da mesa, ficava Missy tendo ao lado um lugar vazio.

— Ora ainda bem! Depressa que estamos ainda no peixe — disse dificultosamente o velho Korchaguine, mastigando com os dentes postiços, e erguendo para Nekludov os olhos injetados de sangue e desprovidos de pestanas. — Estêvão! — disse para o majestoso mordomo indicando-lhe com o olhar o lugar vazio.

Nekludov conhecia há muito tempo o velho Korchaguine e vira-o muitas vezes à mesa. Mas hoje mais que nunca impressionava-o desagradavelmente o seu rosto vermelho congestionado, a boca sensual e o gordo pescoço sob o qual prendia, no rebordo do colete, um guardanapo. Involuntariamente recordou tudo o que sabia da crueldade deste homem que, quando governador de uma província, fizera enforcar e fuzilar inúmeros desgraçados.

— Trata de servir sua excelência — disse o mordomo Estêvão ao elegante lacaio, que foi colocar-se atrás do lugar vazio enquanto ele tirava da gaveta de um aparador uma colher para a sopa. Missy, entretanto, compunha no talher do Nekludov uma prega do guardanapo com o brasão bordado, e que estava elegantemente arranjado em forma de leque.

Nekludov teve de cumprimentar todos os convivas em redor da mesa. À exceção do velho Korchaguine e das senhoras, todos se levantaram estendendo-lhe as mãos. E este passeio à volta da mesa, com apertos de mão a pessoas, a algumas das quais nunca dirigira a palavra, pareceu-lhe naquela tarde excessivamente desagradável e ridículo. Desculpou-se de haver chegado tarde e preparava-se para sentar-se entre Missy e Catarina Alexievna, quando o velho Korchaguine insistiu com ele que à falia do vodka tomasse ao menos um hors d’oeuvre. Nekludov aproximou-se de uma pequena mesa onde havia lagosta, caviar, queijo e arenques, imaginando não ter apetite; porém, começando a comer um pouco de queijo e pão, sentiu que devoraria tudo com avidez.

— Então? Conseguiram abalar os esteios da sociedade? — perguntou-lhe Kolossov, empregando ironicamente a expressão favorita de um jornal reacionário, num artigo tendente a provar os perigos da instituição do júri. — Absolveram os culpados e condenaram os inocentes, não é assim?

— Abalar os esteios! Abalar os esteios! — repetiu o príncipe torcendo-se com riso. O príncipe confiava ilimitadamente no espírito e na ciência do seu amigo de quem igualmente partilhava as opiniões liberais.

Nekludov, arriscando-se a passar por indelicado, não respondeu. Sentou-se em frente do prato da sopa fumegante e continuou comendo com belo apetite.

— Consintam que ele sacie o apetite! — disse Missy, sorrindo familiarmente, mostrando o caráter íntimo das suas relações.

Kolossov havia já esquecido a pergunta que dirigira e continuava, em voz alta e violenta, a discutir o artigo reacionário sobre o júri, que havia sido publicado no tal jornal. Miguel Sergeievich respondia-lhe, instruindo-o sobre mais erros monstruosos de outros artigos publicados no mesmo jornal.

Missy, como sempre, estava distinta. Vestia uma irrepreensível, elegante e simples toilette.

— Deve estar cansadíssimo e cheio de fome — disse a Nekludov quando ele acabou de tomar a sopa.

— Nem por isso! Foi à exposição de pintura?

— Não; adiámos a visita. Estivemos a jogar o tennis em casa dos Salomonov. Sabe que Mister Crooks joga admiravelmente?

Nekludov viera visitar os Korchaguine para se distrair. Sempre lhe agradavam estas visitas não só pelo luxo e pela riqueza que se ostentava em toda a casa e que lhe acariciava os nervos requintados, como também pela atmosfera de inconsciente lisonja de que se sentia cercado.

Hoje, por um acaso singular, desagradava-lhe tudo nesta casa: tudo, desde o guarda-portão, o enorme vestíbulo, as dores, os lacaios encasacados e a ornamentação da mesa, até à própria Missy que lhe pareceu antipática e afetada. Irritava-o o liberalismo e tom grosseiro e jactancioso de Kolossov, a figura sensual e viciosa do velho Korchaguine, as citações francesas da dama slavófila, e os rostos graves da professora e do explicador; mas mais que tudo, irritara-o o modo familiar como Missy falara dele sem o designar pelo seu nome, como faria com outro qualquer conviva.

Nekludov oscilara sempre entre dois sentimentos a respeito de Missy. Umas vezes, vendo-a como que na penumbra, descobria-a senhora de todas as perfeições; parecia-lhe tranca, bela, inteligente e natural; outras vezes, como que passando da penumbra à luz clara do dia, notava-lhe as imperfeições. Hoje era um desses dias.

Distinguia-lhe todas as rugas do rosto, os dentes postiços da boca, o ondeado do ferro de frisar nos anéis do cabelo e os salientes ossos dos cotovelos; notava-lhe além disso, a extraordinária semelhança das unhas, muito compridas e largas, como as dos espessos dedos do velho Korchaguine.

— Que enfadonho jogo o tal tennis! — disse Kolossov. — Quando rapazes, nós jogávamos o laptá, que é muito mais interessante!

— É porque não conhece bem o tennis! Entusiasma loucamente! — exclamou Missy, pronunciando a palavra «loucamente», como pareceu a Nekludov, com afetação insuportável.

Começou então uma discussão na qual se envolveram Miguel Sergeievich e Catarina Alexievna. As crianças e os professores, pouco interessados, calavam-se de aborrecidos.

— Acabem com essas eternas disputas! — disse o príncipe Korchaguine rindo às gargalhadas, enquanto colocava sobre a mesa o guardanapo amarrotado que tirara; e arrastando ruidosamente a cadeira que um lacaio imediatamente retirou, levantou-se. Todos o imitaram e dirigiram-se para uma pequena mesa, onde estavam enfileirados copos com água tépida perfumada. Os convivas lavaram a boca bochechando, discutindo sempre entre dôis goles.

— É verdade ou não que tenho razão? — perguntou Missy a Nekludov, referindo-se à afirmação que fizera a Miguel Sergeievich de que o jogo era o melhor meio de conhecer o caráter de um indivíduo. Tentava perscrutar Nekludov, no rosto de quem havia já notado uma pouco vulgar expressão de concentração e severidade que a inquietava.

— Na realidade, nada posso dizer-lhe; nunca estudei o assunto — respondeu Nekludov.

— Quer ir visitar a mamã? — interrogou Missy.

— Com muito prazer! — respondeu, acendendo um cigarro; porém, o tom da resposta que dera significava claramente que se sentiria feliz se o dispensassem dessa massada.

Ela fitou-o silenciosamente e interrogativamente, cada vez mais inquieta, e Nekludov sentiu-se envergonhado.

«hão de dizer que apenas vim para espalhar aborrecimento!», pensou. Esforçou-se então por ser amável dizendo que sentir-se-ia feliz em apresentar os seus respeitosos cumprimentos à Princesa, caso não a incomodasse.

— Mas não! A mamã ficará satisfeitíssima. E pode fumar lá; Ivan Ivanovitch já deve lá estar.

A princesa Sofia Vassilievna passava a vida estendida numa chaise-longue. Havia mais de oito anos que nem sequer comparecia às refeições, deleitando-se apenas no quarto, entre veludos, dourados, bronzes, marfins, lacas e flores, nunca saindo e vendo exclusivamente, como gostava de dizer, «os seus amigos», pessoas que, por uma ou outra razão, distinguia do comum dos mortais. Nekludov fazia parte deste limitado círculo de «amigos» porque passava por inteligente, porque sua mãe estava muito relacionada com os Korchaguine e porque Sofia Vassilievna desejava vê-lo esposar Missy.

Precediam o quarto da velha princesa dois salões, um grande e outro mais pequeno. Ao passarem pelo maior, Missy, que ia à frente, deteve-se bruscamente e, com um gesto nervoso, agarrou o espaldar de uma cadeira, levantando os olhos para Nekludov.

Missy estava ansiosa por casar e Nekludov, sendo um bom partido, agradava-lhe. Havia-se habituado já ao pensamento de o possuir — possuí-lo, não ele a ela — e trabalhava para este fim com astúcia inconsciente e tenaz.

— Vejo que lhe aconteceu alguma coisa. Diga-me o que foi? — perguntou repentinamente a fim de obter uma franca explicação.

Nekludov recordou-se do encontro no tribunal e, franzindo as sobrancelhas, enrubesceu.

— Sim, um acontecimento estranho, imprevisto e grave — respondeu, desejando não mentir.

— E o que foi? Não mo quer dizer?

— Não posso; desculpe-me! Preciso de refletir muito — disse, corando ainda mais.

— Então não mo quer dizer?

Estremeceu-lhe um músculo do rosto e abandonou o espaldar da cadeira a que se apoiava.

— É impossível! — respondeu Nekludov, sentindo que com esta resposta acentuava a gravidade do que lhe acontecera.

— Seja! Vamos então, que a mamã espera-nos.

E agitando a cabeça como para expulsar um pensamento desagradável, recomeçou a andar mais rapidamente.

Nekludov julgou vê-la fazer um violento esforço para não chorar. Envergonhou-se, censurando-se por havê-la magoado: porém, sabia que o menor sinal de fraqueza perdê-lo-ia, ligando-o para sempre, o que naquela tarde era o seu maior receio. Continuou pois calado até chegar ao quarto da princesa Korchaguine.

 


II

 

A princesa Sofia Vassilievna acabava um delicado e abundante jantar sem que alguém lhe tivesse feito companhia para não ser vista em tão prosaica ocupação. Junto à chaise-longue e numa pequena mesa estava uma chávena com café que ela ia bebendo a pequenos tragos, entremeados com o fumo de um cigarro aromático.

A princesa era uma velha senhora muito magra e alta, com grandes dentes e olhos negros. Apesar da idade ainda linha pretensões a parecer nova. Corriam inúmeros boatos sobre as relações que mantinha com o médico da casa, e Nekludov, que até então nunca dera ouvidos a noveleiros, não pôde furtar-se a recordá-los quando entrou no quarto e viu sentado junto da velha senhora o corpulento doutor, de reluzente barba, cuidadosamente apartada.

Todo o seu aspeto o impressionou desfavoravelmente.

Kolossov, sentado num tamborete colocado perto da chaise-longue, ocupava-se em açucarar o café. Numa pequena mesa tinha um cálice de licor.

Missy apenas entrou, retirou-se logo.

— Quando a mamã estiver cansada e os dispensar façam favor de me procurar — disse, dirigindo-se a Kolossov e a Nekludov e sorrindo alegremente para este, como se entre eles nada de importante tivesse havido.

E, deslizando levemente pelo fofo tapete, saiu do quarto.

— Bons dias, meu amigo! Sente-se e diga alguma coisa! — disse a princesa Sofia, com um sorriso artificialmente preparado, mas que imitava maravilhosamente o natural. — Agora mesmo falávamos de si... Disseram-me que veio muito mal disposto do tribunal. Devem ser penosíssimas, para quem tem coração, essas audiências! — acrescentou em francês.

— Efetivamente — respondeu Nekludov. — Muitas vezes reconhece-se a própria infâ... digo, reconhecemos que ninguém tem o direito de julgar os crimes de outrem.

— Comme c’est vrai! — exclamou a princesa, deixando transparecer na entoação da frase quanto a verdade da reflexão de Nekludov a tinha maravilhado; satisfazia assim o hábito inveterado de lisonjear os seus interlocutores.

— E a respeito de pintura, como vamos? Sabe quanto me interessa o quadro que está executando! Se tivesse mais saúde há muito que teria ido vê-lo!

— Abandonei-o por completo, princesa — respondeu secamente Nekludov, a quem eram tão evidentes estas falsas lisonjas como o eram os anos cuidadosamente disfarçados da princesa.

E, por mais que se esforçasse em ser amável, não o conseguiu.

— Mas isso é um crime! Pois até o próprio Répine2 me falou no talento do meu amigo! — disse a princesa, dirigindo-se a Kolossov, designando-lhe Nekludov.

«Porque é que ela não terá vergonha em mentir tão descaradamente?», pensava Nekludov.

Por fim convencida de que Nekludov não estava bem-disposto para conversar agradavelmente, voltou-se para Kolossov interrogando-o quanto ao merecimento de um novo drama que havia sido representado recentemente.

E na entoação com que lhe dirigiu a pregunta, parecia dizer-lhe que esperava uma resposta que resolvesse todas as dúvidas; sentença de oráculo.

Kolossov criticou asperamente a nova peça, aproveitando estar de posse da palavra para desenvolver a teoria que partilhava em arte. A princesa Sofia mostrava-se, como sempre, impressionada pela verdade das observações que ouvia e arriscava-se uma ou outra vez a defender o autor do drama, para imediatamente confessar-se vencida ou conseguir pelo menos uma acomodação de ideias.

E Nekludov, vendo e ouvindo, via e ouvia o que se desenrolava na sua frente diferentemente de até então.

Alternativamente escutava e fixava a velha senhora ou Kolossov e convencia-se que qualquer deles nada se interessavam pelo drama, assim como não se interessavam nada um pelo outro e que a conversa tendia unicamente a satisfazer ama necessidade física: a de ativar a digestão exercitando os músculos da língua e da garganta.

Convencia-se que Kolossov, tendo bebido vodka, vinho, café e licor, estava ligeiramente embriagado, não como quem bebe por vício, mas como os que bebem habitualmente. Kolossov nem divagava nem dizia tolices; anormalmente excitado e contente de si próprio. E, Nekludov notou também, mesmo no apogeu da discussão, a princesa lançava incessantemente olhares inquietos para uma das janelas por onde entrava um raio oblíquo de sol, prestes a desaparecer, que lhe punha a descoberto as rugas do rosto.

— É isso mesmo, tem razão! — respondeu a princesa a Kolossov ao mesmo tempo que premia o botão de uma campainha elétrica.

Nesta ocasião o médico ergueu-se e, como íntimo da casa, saiu do quarto. Nekludov observou que Sofia Vassilievna, sempre conversando, seguia-o com o olhar.

— Filipe, corra-me aquelas cortinas! — disse ela ao lacaio que acudira ao toque da campainha.

— Sim, notar-se-á a ausência de misticismo; e sem misticismo não há poesia — continuou, espiando com o olhar movimentos do criado ocupado em correr as cortinas.

— O misticismo e a poesia completam-se, não é verdade? O misticismo sem poesia é a superstição, a poesia sem o misticismo é simples prosa.

— Mas não, Filipe! Não é essa janela! A outra, a maior! — exclamou interrompendo a dissertação e reclinando-se na chaise-longue como que cansada do violento esforço a que se entregara.

Para acalmar os nervos, levou aos lábios com a mão carregada de anéis uma cigarrilha aromática, que acendeu.

O robusto e elegante Filipe inclinou levemente a cabeça, como que a desculpar-se. Mas Nekludov julgou ver relampejar-lhe o olhar durante um segundo, como se dissesse: «Diabos te levem, minha velha tonta! O que é que tu queres mais?»

E Filipe novamente começou a executar as ordens da frágil e etérea princesa.

— Confesso que há muita verdade na doutrina de Darwin — recomeçou Kolossov, agitando-se no tamborete —, mas algumas vezes excede-se; exato, exato.

— Acredita na hereditariedade, príncipe? — perguntou Sofia Vassilievna a Nekludov, cujo silêncio era incomodativo.

— Na hereditariedade? Não; não acredito! — respondeu ao acaso; prendia-se-lhe a imaginação às estranhas figuras que mentalmente arquitetava: ao lado do musculoso e belo Filipe, via Kolossov servindo de modelo num atelier, o estômago saliente como um melão, a cabeça desprovida de cabelo e os braços de músculos. Sofia Vassilievna, agora coberta de sedas e veludos mostrava-se-lhe tal como era; a pintura mental, de horrorosa, tinha de ser abandonada.

— Esquecia-me que Missy os espera! — disse-lhe a princesa, atravessando-o com o olhar. — Vão fazer lhe companhia; ela tenciona tocar, para a ouvirem, um novo trecho de Grieg que acaba de estudar. É muito interessante!

«Tenciona tocar, para a ouvirem! Mas é uma mentira que ela inventa como as outras, sem saber para quê!», pensava Nekludov erguendo-se e beijando a branca e ossuda mão de Sofia Vassilievna.

Ao atravessar o salão próximo, Catarina Alexievna deteve-o:

— Então as funções de jurado influenciaram-no tão deprimentemente? — interrogou ela, falando francês como sempre.

— É verdade; desculpem-me; não estou bem-disposto e não devo fazer partilhar os outros da minha má disposição — respondeu Nekludov.

— Mas porque é que está mal disposto?

— Peço que me desculpe o não lho dizer!

— Esqueceu então que ainda há poucos dias nos pregava a necessidade de dizer sempre a verdade e que, apoiando-se neste argumento, nos lançou ao rosto verdades cruéis? Porque é que hoje, por sua vez, não nos diz a verdade?

— Recordas-te Missy? — acrescentou Catarina Alexievna dirigindo-se a Missy, que entrava.

— Tratava-se apenas de um gracejo — respondeu seriamente Nekludov. — E gracejando, há possibilidade de o fazer. Na realidade, porém, somos tão miseráveis... pelo menos eu! Sou tão miserável... que nem pensar posso em dizer a verdade!

— Não tente corrigir o que ia a dizer! Diga sempre que somos muito miseráveis — retorquiu jovialmente Catarina Alexievna fingindo não notar a gravidade de Nekludov.

— Não há nada pior do que confessar má disposição — interrompeu Missy. — Pelo que me respeita nunca tal me sucedeu e por isso mesmo estou sempre bem-disposta. Venha daí comigo dissipar esse mau humor!

Nekludov sentiu-se invadido por um receio igual ao que devem experimentar os cavalos quando os obrigam a morder o freio e os aparelham. Nunca, como agora, sentira tanto o receio de ser metido ao jugo.

Desculpou-se, dizendo que necessitava retirar-se para casa.

— Lembre-se que os seus desgostos incomodam igualmente aqueles que o estimam! — disse-lhe Missy, conservando entre as suas mãos, durante mais tempo que habitualmente, a que ele lhe estendera, despedindo-se. — Vem amanhã?

— Talvez — respondeu Nekludov, envergonhando-se sem saber porquê. E saiu rapidamente a fim de melhor ocultar a vergonha que o oprimia.

— O que é que tudo isto quer dizer? Comme cela m’intrigue! — dizia Catarina Alexievna.

— Que mudança completa! Mais c’est un affaire d’amour propre, il est très susceptible, notre cher Dimitri.

«Plutôt un affaire d’amour sale», pensou Missy, parando e erguendo o rosto de onde desaparecera a animação que até aí o embelezara.

— Todos temos os nossos dias bons e maus — disse em voz alta e indiferente, pensando para si: «Que este não me escape, é que é essencial! Depois de tudo que se tem passado entre nós, seria indigno proceder assim!»

Se porém lhe perguntassem o que é que ela entendia peias palavras: «tudo que se tem passado entre nós», com certeza que nada responderia.

É que Nekludov, ainda que não prometesse claramente desposá-la, incutira-lhe essa esperança. O «tudo» que se passara entre eles havia-se limitado a sorrisos, olhares, alusões e silêncios: o bastante para que julgasse possuí-lo. E a ideia que ainda este lhe escaparia magoava-a cruelmente.

 


III

 

«Vergonha e náusea! Vergonha e náusea!», dizia consigo Nekludov, regressando a pé para casa através de ruas familiares. Não conseguia dissipar a penosa impressão, que a conversa com Missy criara; sentia que, não se havendo nunca declarado formalmente, nem nunca lhe tendo dito nada que o prendesse, estava materialmente livre e contudo, moralmente ligado. Sentia isto claramente; mas sentia igualmente com todas as forças do seu ser que lhe seria impossível desposá-la.

«Vergonha e náusea! Vergonha e náusea!», repetia, referindo-se não só às suas relações com Missy, mas também à sua existência e à de todos. E intimamente repetia, como um estribilho, aquelas palavras; eram as únicas que lhe acudiam aos lábios. Ainda as murmurava quando entrou em casa.

— Não quero cear — disse, dirigindo-se a Korney, criado que o seguira até à sala de jantar e que se preparava para o servir. — Podes retirar-te.

— Sim, senhor! — disse Korney, principiando a levantar a mesa.

E Nekludov imaginou que também este desejava contrariá-lo. Quando mais precisava de paz e de sossego, era exatamente quando todos, propositadamente, o importunavam!

Por fim, Korney saiu e Nekludov aproximou-se do samovar com o fim dele próprio fazer chá; ouviu, porém, da sala próxima os passos de Agripina Petrovna; receando encontrá-la, encerrou-se precipitadamente num dos seus aposentos.

Fora nessa mesma sala onde entrara que sua mãe morrera havia cinco meses. E revendo-a no retrato suspenso na parede ao lado do esposo, ambos reanimados pela luz reenviada pelos refletores de duas lâmpadas que ardiam na sala. Nekludov recordou as últimas relações que tivera com ela. E as mesmas palavras de ainda agora reapareceram-lhe nos lábios: Vergonha e náusea! É o que tudo era, incluindo a falsidade dessas derradeiras relações. Recordou-se das inúmeras vezes que, no último período da doença, lhe desejara a morte. Enganava-se, dizendo que se lhe desejava a morte era unicamente para a ver livre de sofrimentos; mas agora compreendia que era ele próprio que então desejava desembaraçar-se do incómodo que lhe causava aquela morte lenta.

Para fugir a estas obcecantes recordações, aproximou-se do retrato, trabalho de um artista de nome que custara dois mil rublos. A princesa vestia de veludo negro, decotada como num baile; e percebia-se que o pintor empregara o máximo cuidado em fazer sobressair os seios, o intervalo que os separava, o pescoço e os ombros terrivelmente belos. Era simplesmente revoltante apresentar sua mãe como, uma beleza seminua, quando havia apenas cinco meses, naquele mesmo quarto, ela jazia inanimada sobre um sofá, seca como uma múmia e exalando um fétido de que se impregnara toda a casa. E Nekludov lembrou-se que na véspera de morrer, ela agarrara-lhe com as suas mirradas mãos uma das dele e fitando-o, dissera-lhe: «Não me condenes, Mitia, se pequei!» enquanto dos olhos alucinados as lágrimas se lhe despenhavam.

«Vergonhoso!», dizia Nekludov, olhando mais uma vez para o retrato em que sua mãe, ostentando o amplo seio, sorria artificialmente.

E esta meia nudez trouxe-lhe à memória uma outra mulher que há pouco tempo havia visto, igualmente decotada. Fora Missy que, indo para um baile, o convidara a ir admirá-la vestindo uma toilette nova. E Nekludov recordou, agora com repugnância, o prazer que sentira examinando os lindos ombros e braços da jovem princesa; recordou-se que os pais de Missy estavam presentes, assistindo à cerimónia; o grosseiro e sensual pai com um passado de crueldades e a mãe de reputação duvidosa! Sim, vergonha e náusea, nada mais, vergonha e náusea!

«É impossível!», dizia Nekludov a si mesmo. «Isto não pode durar. É preciso desembaraçar-me de todas estas relações e terminar de vez com os Korchaguine, com Maria Vassilievna e com todos!... Sim, fugir daqui, respirar livremente! Irei para o estrangeiro, para Roma, dedicar-me à pintura!»

Assaltaram-no dúvidas sobre a vocação e talento que tinha para a pintura.

«Não importa; o essencial é respirar tranquilamente. Primeiramente dirigir-me-ei a Constantinopla e depois para Roma! É acabar com esta obrigação de ser jurado, regular o negócio em que falei ao advogado e partir!»

De repente, a imagem da prisioneira com os olhos ligeiramente estrábicos ergueu-se diante dele, tal como a vira quando ela pronunciara as últimas palavras, chorando copiosamente! E com um movimento brusco, atirou fora o cigarro que acendera. Acendeu logo outro e, caminhando de um para o outro lado da sala, reviu mentalmente os momentos que passara em companhia de Katucha. Relembrou o último encontro que tivera, a paixão sensual que o dominara e a desilusão que sentira logo que conseguira satisfazê-la. E de novo a reviu, vestida de branco, um laço carmesim nos cabelos, assistindo à missa da meia-noite.

«Sim, amei-a! Amei-a verdadeiramente com belo e puro amor nessa noite, e mesmo antes, enquanto escrevia a minha tese!»

Momentaneamente, então, regressou àquela época, revendo-se tal qual tinha sido. E um perfume de frescura, juventude e liberdade inundou-o; e de novo a tristeza que o acabrunhava se agravou.

A diferença entre o que fora e o que agora era, pareceu-lhe enorme; tão grande, senão maior do que aquela que existia entre a Katucha da igreja na noite de Páscoa, e a prostituta amante do negociante siberiano, que há pouco condenara. Era então um livre e brioso homem com inúmeras carreiras abertas ao seu futuro; agora achava-se envolvido nas malhas de uma vida inútil à qual não via saída, ou antes da qual não tinha forças para se separar. Recordou-se de como a franqueza com que sempre dissera a verdade o tornava altivo, enquanto agora sentia-se mergulhado na mentira, bizarra e desgraçada mentira que todos que o cercavam fingiam tomar pela verdade. Bem desejara fugir-lhe, mas não via saída alguma. Enterrara-se nela, habituara-se e agora estava bem impregnado.

O que faria para se libertar de Maria Vassilievna e para poder novamente olhar face a face seu marido e filhos? Como despedaçaria o compromisso moral que tomara com Missy? Que solução daria à contradição do haver proclamado a injustiça da propriedade rural e explorar domínios à custa dos quais vivia? Como repararia o erro que cometera para com Katucha? Tudo isto reclamava solução.

«É-me impossível», dizia Nekludov, «abandonar uma mulher que amei, contentando-me em pagar a um advogado para a livrar dos trabalhos forçados que de mais a mais não merece. Tentar destruir o meu crime com dinheiro é insensatez, porque seria renovar a cena dos cem rublos!»

E logo, em espírito, relembrou o momento em que tendo ido esperar Katucha ao corredor da casa de suas tias, lhe introduzira no corpete o dinheiro, fugindo em seguida.

«Ah! Esse dinheiro!», dizia a si mesmo Nekludov, sentindo a dolorosa sensação de vergonha e horror que o invadira naquele minuto. «Amar uma mulher, fazer-se amado por ela, seduzi-la e abandoná-la em seguida deixando-lhe uma nota de cem rublos! Só um miserável! E serei eu esse miserável? Será possível? Serei um verdadeiro miserável?», interrogava-se Nekludov.

«Mas ainda duvidas?», respondia-lhe uma voz íntima. «Pois que é senão o comportamento de um miserável, essas relações com Maria Vassilievna e a amizade com o marido? E o teu modo de proceder quando herdaste de tua mãe? E essa incoerência estranha de haveres proclamado imoral uma fortuna que estás gozando? E a tua inútil e detestável vida? E para rematar tudo, o teu proceder para com Katucha? Sim, um miserável é o que tu és! Pouco importa como os outros te considerem; podes enganá-los, mas não a ti próprio!»

E Nekludov compreendeu que a aversão que sentia, havia algum tempo — e nessa tarde em particular — por todos, pelo velho príncipe, por Sofia Vassilievna, por Missy, pela governanta e pelo criado que o acompanhara, provinha de senti-la por si próprio. Por estranho que pareça, a confissão da sua baixeza, sendo-lhe dolorosa, era ao mesmo tempo calmante e consoladora.

Não era a primeira vez que durante a vida procedia ao que chamava «limpeza de consciência», querendo referir-se a crises morais, momentos de cessação de vida interior, em que se decidia a varrer as torpezas que se lhe acumulavam na alma; ao findar a crise, com a alma clarificada como a máquina de um relógio novo, impunha-se regras inflexíveis, escrevia um diário e recomeçava nova vida que esperava nunca alterar. Era uma «página voltada» como a si próprio dizia, em inglês. Mas de novo vinha o contacto do mundo e insensivelmente arrastava-o para o mesmo nível ou ainda mais baixo do que caíra em antes da crise.

A primeira vez que procedera à «limpeza da consciência» fora no verão que passara junto de suas tias.

A crise foi muito viva, crise de exaltação juvenil, cuja duração se prolongou por muito tempo. A segunda declarou-se-lhe na ocasião da guerra contra os turcos; sonhando em sacrificar-se, fez-se enviar para o teatro da guerra, mas as consequências dessa crise desapareceram rapidamente. E a última dera-se quando abandonara o exército para se dedicar à pintura.

Desde então, nunca mais procedera a nenhuma «limpeza».

Era por isso que a diferença entre o que a consciência lhe ordenava que fosse e a vida que levava, nunca fora tão grande como agora.

Sentiu-o e ficou horrorizado; o abismo era tão fundo que lhe pareceu impossível fazê-lo desaparecer.

«Quantas vezes tentaste corrigir-te e melhorar-te sem nada conseguires?», segredava-lhe a voz da tentação. «De que serve recomeçar outra tentativa? E imaginas que és o único? Enganas-te! Todos são como tu, é a vida!»

Porém o ser moral, o ser livre, ativo, vivo, o único verdadeiro que existe em todos nós, despertara e Nekludov escutava-o e acreditava-o. Por maior que fosse a diferença entre o que ele era e o que queria ser, o ser íntimo, eterno e poderoso, afirmava-lhe a possibilidade de transformação.

— Despedaçarei os laços mentirosos que me prendem, custe o que custar, e confessarei tudo, proclamando a verdade! — disse em voz alta. — Direi a verdade toda a Missy: que sou um devasso indigno de a desposar e pedir-lhe-ei perdão de a ter iludido! Direi a Maria Vassilievna... não, não lhe direi nada, mas confessarei ao marido que sou um patife que abusava da amizade que sempre me dedicou. E a ela, à Katucha, confessar-lhe-ei o meu pecado, reconhecendo-me miserável. Sim, farei tudo para suavizar-lhe a sorte; revê-la-ei para lhe pedir perdão... Sim, pedirei perdão como as criancinhas... — Deteve-se um momento; em seguida continuou: — Casar-me-ei com ela se tanto for preciso!

E de novo parou. Aumentava-lhe de momento a momento a exaltação íntima. De repente, juntou as mãos como quando criança, ergueu os olhos e disse:

— Senhor, ajuda-me, guia-me e purifica-me!

Nekludov orava; pedia a Deus que o amparasse e purificasse quando a sua oração já fora atendida pelo Deus que vivia nele e lhe retomara posse da consciência.

E Nekludov sentia-o porque sentia a liberdade, a bondade e a alegria da vida; compreendia agora que todo o bem que o homem pode fazer, ele podia realizá-lo.

Os olhos marejaram-se-lhe de boas e más lágrimas; boas porque eram lágrimas de felicidade provocadas pelo despertar do ser espiritual que tantos anos tivera abafado no seu íntimo; más porque eram lágrimas de orgulho e de admiração por si e pela grandeza da sua alma.

Sufocava; dirigiu-se a uma janela e abriu-a. Em baixo era o jardim. Estava uma noite fresca, clara, silenciosa. Ao longe ouviu-se rodar uma carruagem e de novo reinou silêncio. Um álamo ainda desfolhado, projetava-se em sombra na relva e no ensaibrado do jardim. À esquerda, o teto da cocheira brilhava, prateado pelo luar.

Nekludov admirava o jardim em que se espalhava a doce luz prateada, a cocheira e a sombra do álamo, aspirando o ar vivificante da noite.

— Que beleza, meu Deus! Que beleza! — dizia.

Mas era principalmente na sua alma que estava toda a beleza.


Capítulo 8

 


I

 

Só às 6 horas é que Maslova foi conduzida para a prisão, completamente exausta de forças. A imprevista severidade da sentença esmagava-a e o demorado trajeto através das ruas mal calçadas da cidade acabara por aniquilá-la.

Além disso morria de fome. Num dos intervalos da audiência os soldados que a guardavam tinham comido à sua vista, pão e ovos cozidos, o que lhe fizera crescer água na boca. Reconheceu assim que tinha fome, mas considerou indigno de si baixar-se a pedir-lhes alguma coisa. A audiência recomeçara e durara mais três horas, de forma que a Maslova, à força de embrutecida, já nem sentia a fome. Foi nesta disposição que ouviu a leitura da sentença.

A princípio julgara sonhar. Não podia conceber bem o que fossem trabalhos forçados. Era tudo, com certeza, um pesadelo que ia desaparecer com o acordar. Mas a maneira natural como magistrados, advogados e testemunhas, a sala toda enfim, acolheu a leitura da sentença fê-la compreender qual era a verdadeira realidade.

Então, um impulso de indignação dominara-a e gritara com todas as forças que estava inocente. Esse grito arrebatador fora também acolhido como coisa natural, esperada, incapaz de em nada lhe alterar a situação.

Desatou então a chorar copiosamente, resignada a sofrer até final a estranha e cruel injustiça que o destino fazia cair sobre ela.

Admirava-a nisto tudo um estranho facto; é que uma tal sentença, como aquela a que fora condenada, pudesse ser lavrada por homens — e por homens, na força da vida, não por velhos; por homens que no decorrer da audiência a haviam admirado com olhares benevolentes, excetuando o delegado, que era o único que parecia não ter prazer algum em vê-la e cujos olhares eram os mais malévolos. Pois estes homens que a haviam citado com tanta benevolência tinham sido os mesmos que a haviam condenado a trabalhos forçados, inocente como estava do crime que lhe imputavam!

Sim, chorara todas as lágrimas que pudera, até por fim se estancarem, e quando, finda a audiência, foi encerrada num quarto do tribunal só já pensava em duas coisas: fumar e beber.

Kartimkine e Bochkov reuniram-se-lhe pouco depois da sentença. A Bochkov começou logo a ralhar-lhe:

— Sim, o que é que tu lucraste? Livraste-te? Não, apanhaste o que merecias. Agora toca para a Sibéria fazer de espertalhona!

A Maslova, sentada, com as mãos embrulhadas nas mangas do capote, curvara a cabeça; fitando imóvel o soalho, repetia de vez em quando:

— Não me atormentes que eu também não te atormento.

Quando os dois apoquentadores companheiros foram conduzidos para a prisão e novamente ficou só, lançou um suspiro de alívio. Sentara-se momentos antes, quando o soldado que a guardava entreabriu a porta e lhe entregou três rublos.

— Toma isto que te manda uma senhora.

— Que senhora?

— Vamos! Pega lá e deixemo-nos de conversas.

Fora Madame Kitaiev, a sua antiga patroa, que lhe enviara aquele dinheiro.

Ao terminar a audiência perguntara ao escrivão se poderia dar algum dinheiro à condenada e, recebendo resposta afirmativa, tirara com precaução a luva de três botões que calçava na mão esquerda e procurando no bolso do vestido uma carteira repleta de notas e moedas de prata e cobre, entregara ao escrivão uma nota de dois rublos e meio, juntara-lhe cinquenta kopeks em cobre, tudo o que o escrivão, na sua presença, dera ao soldado para este o fazer chegar à destinatária.

— Faz favor de entregar tudo e já — disse Madame Kitaiev.

O soldado ofendera-se com esta observação e por isso tratara mal a Maslova.

Esta alegrara-se à vista do dinheiro que lhe ia permitir saciar os insofridos desejos.

«Oxalá que possa arranjar depressa tabaco e aguardente», dizia, concentrando o pensamento nestas almejadas aspirações. Era tal a vontade que tinha de beber aguardente que só a ideia trazia-lhe o gosto à boca; igualmente aspirava com sofreguidão o aroma do tabaco que lhe entrava no quarto, às lufadas. Esperou, contudo, muito tempo antes que pudesse satisfazer a ambição de momento.

O escrivão que a devia mandar de novo para a prisão esquecera-se, ficando a conversar sobre política com um dos juízes e com o advogado. Por fim, aí pelas cinco horas, vieram buscá-la para a entregarem outra vez aos soldados que já a tinham escoltado pela manhã. Mal transpôs o limiar do tribunal, entregou a um dos soldados os cinquenta kopecks, pedindo-lhe que comprasse cigarros, pão e aguardente.

— Eu trago tudo — disse rindo o soldado.

Efetivamente trouxe tudo, exceto a aguardente que se negou a comprar.

A Maslova resignara-se a comer simplesmente pão, ao tempo que caminhava; a fome, porém, aumentava.

Era sol-posto quando chegou à prisão. No vestíbulo teve que esperar muito tempo, porque os guardas se ocupavam em receber um bando de cem prisioneiros remetidos de uma cidade próxima. Havia-os de grandes barbas, ou barbeados de fresco, novos e velhos, russos, estrangeiros; uns tinham cabelo cortado e a cabeça meia barbeada, com grilhões nas pernas e todos enchiam o recinto com poeira, barulho e um cheiro ácido de transpiração. Ao passarem pela Maslova olharam-na cobiçosamente e, sorrindo, aproximaram-se, o rosto iluminado pelo desejo, para lhe cingirem a cintura.

— Eis uma bela de Moscovo, com certeza — disse um deles.

— Os meus cumprimentos, minha senhora — disse um outro piscando os olhos.

Um outro ainda, com o rosto tostado, grandes bigodes, a cabeça barbeada e arrastando os grilhões, levou a familiaridade até abraçá-la.

— Já não conheces o teu querido? Não queiras dar-te ares!

— Menos amor, menos amor — respondeu a Maslova, repelindo-o.

— Olá, velhaco! Que estás tu a fazer? — exclamou um guarda que saía da secretaria. O forçado retirou-se, tremendo. O guarda então voltou-se para a Maslova: — E tu, que fazes aqui?

A Maslova quisera responder que vinha do tribunal; faltaram-lhe, porém, as forças.

— Chegámos agora do tribunal — respondeu um dos soldos fazendo a continência.

— Entreguem-na ao chefe dos carcereiros e depressa. Não a quero aqui.

— Sim senhor.

— Sokolov, venha buscá-la! — gritou um dos auxiliares.

O chefe dos carcereiros compareceu, tomando posse de Maslova com uma palmada que lhe deu num dos ombros, ao tempo que lhe indicava com a cabeça o caminho a seguir. Ao chegarem à divisão das mulheres, a Maslova foi apalpada e não lhe sendo encontrado nada proibido (escondera o tabaco dentro de um pão), deu novamente entrada na sala donde saíra pela manhã.

 


II

 

A grande sala em que a Maslova foi encerrada media 9 archines de comprimento por 7 de largura, recebendo luz por duas janelas; um fogão velho enegrecido e vinte leitos de tábuas desjuntas, ocupando dois terços do comprimento, eram todo o mobiliário. Na parede fronteira à entrada, estava dependurada uma imagem, negra de porcaria, com um ramo de perpétuas atado num dos lados; em baixo ardia uma vela. Atrás da porta, à esquerda, estava o balde das imundices.

A inspeção da tarde terminara e as prisioneiras foram fechadas por toda a noite,

Habitavam a sala quinze pessoas; doze mulheres e três crianças. Ainda havia luz bastante e apenas duas mulheres estavam deitadas. Uma, que dormia com a cabeça tapada por um chale, era idiota e estava presa por vagabundagem; passava assim todo o dia. A outra, condenada por roubo, estava tísica. Esta não dormia, mas estava estendida, com os grandes olhos abertos e a cabeça erguida pelo chale, dobrado como travesseira. Para não tossir, retinha custosamente na garganta saliva que lhe aparecia pelos lábios.

Das outras mulheres, cuja maioria vestia apenas camisas de grosseiro tecido, estavam sete agrupadas nas duas janelas, espreitando o bando de prisioneiros que passava em baixo, no pátio. Numa delas estava um grupo de três mulheres, entre as quais a velha que pela manhã conversara com Maslova pela abertura da porta. Chamava-se Korableva, esta criatura de rosto carrancudo, fartas sobrancelhas e uma verruga coberta de pelos no meio da cara; de sob o queixo pendia-lhe, espapaçada, a pele, e apesar de ter raros cabelos grisalhos nas fontes, era forte, alta e bem constituída. Fora condenada por haver assassinado o marido que um dia encontrara desflorando sua própria filha. Era a decana da sala e exercia o comércio de aguardente, em pequena escala. Sentada junto da janela, cosia, pegando na agulha com três dedos da sua grosseira mão, à maneira dos aldeões. Ao seu lado sentava-se, igualmente cosendo, uma mulherzita de nariz chato, com olhos negros, sempre em movimento. Tinha sido guarda da linha no caminho de ferro e fora condenada a três meses de prisão por haver deixado de acenar com as bandeiras a um comboio que por este motivo sofrera um acidente. A terceira era Fedósia — ou Fenichka como aqui lhe chamavam — muito jovem, rosada e branca com luminosos olhos de criança e duas grandes tranças de cabelo, enroladas na pequenina cabeça. Estava presa por ter tentado envenenar o marido.

Efetivamente, tentara envenená-lo na própria noite do casamento, sem saber porquê. Tinha só dezasseis anos e odiava o homem com quem a haviam casado. Porém no decorrer dos oito meses que precederam o julgamento, ela não só se reconciliara com o marido, mas até se apaixonara por ele, de forma que, quando foi julgada, pertencia-lhe em corpo e alma, o que não impedira o tribunal de a condenar, apesar das súplicas e rogos do marido e sogros, que durante esse tempo se lhe haviam afeiçoado ternamente. Boa, alegre, sempre sorrindo, a Fedósia era vizinha da Maslova, no leito; depressa se lhe havia afeiçoado e não havia cuidados que lhe não prestasse.

Não muito retiradas, sentadas num leito, estavam mais duas mulheres. Uma aparentando quarenta anos, era magra e pálida, conservando traços da antiga beleza. Sustentava nos braços uma criancinha que estava amamentando. Esta aldeã fora presa por se insurgir contra a autoridade, quando se procedia ao alistamento militar na comuna a que ela pertencia. Os mujiques consideraram como o ilegal o alistamento de alguns mancebos da comuna e amotinaram-se, impedindo-lhes a saída. Esta rapariga fora a primeira a deitar as mãos às rédeas do cavalo em que ia já seu sobrinho. A outra que estava sentada a seu lado era uma velha, pequenita, corcunda e de cabelos grisalhos. Fingia agarrar um rapaz de 11 anos, corado e bochechudo, que corria em redor, rindo às gargalhadas. A criança, em camisa, corria sempre em redor dela, interrompendo o riso apenas para repetir: «Tu não me agarras, tu não me agarras!

A velha tinha sido declarada cúmplice de um seu filho, condenado por incendiário. Suportava o encarceramento com resignação completa, inquietando-se só pelo marido, que na sua ausência não tinha ninguém que o limpasse e lhe catasse os piolhos.

Na outra janela, com os rostos encostados às grades, estavam quatro mulheres; falavam com os presos que passavam em baixo no pátio, os mesmos que a Maslova encontrara no vestíbulo quando regressara do tribunal. Uma delas — condenada por ladra — era ruiva, muito alta, de corpo flácido e rosto pálido, coberto de sardas. Berrava com voz enrouquecida, através da janela, toda a espécie de nomes obscenos. A seu lado estava uma mulherzinha trigueira, com aparência de rapariga de dez anos, de cinta muito comprida e pernas curtas. Tinha o rosto avermelhado e picado das bexigas, com grossos lábios que deixavam ver uma enfiada de dentes, alvos e salientes.

Agitando os grandes e negros olhos, ria perdidamente, escutando o diálogo travado entre a vizinha e os prisioneiros que estavam no pátio.

Era conhecida por causa da sua fealdade como «a Bela». Atrás dela, sem dizer nada e limitando-se a sorrir com aprovação às obscenidades que ouvia, estava outra mulher magra e ossuda, rosto lastimável, uma desgraçada condenada como recetora de roubos.

A quarta mulher que fazia companhia a estas havia sido condenada por vender ilicitamente aguardente e era a mãe do rapazito que brincava com a corcunda e de uma outra rapariga de sete anos que, por não saberem que destino lhe haviam de dar, tinha obtido permissão de viver com a mãe, na prisão.

A rapariga estava agarrada à mãe escutando atentamente os ditos obscenos e repetindo-os, como para decorá-los. Era muito delicada e franzina, com encantadores olhos azuis e duas tranças de cabelo muito claro, estendidas pelas costas.

A décima segunda prisioneira, era a filha de um diácono, que afogara o filho recém-nascido, num poço. Era alta, robusta e loura, com os cabelos desgrenhados, e olhar imóvel.

Andava de um lado para o outro, não vendo ninguém, não falando a ninguém, limitando-se a grunhir inarticuladamente, quando chegava à parede e tinha de voltar-se.

 


III

 

Quando se abriu a porta para Maslova entrar, a filha do diácono interrompeu, por um momento, o seu passeio e fitou a recém-chegada; depois recomeçou a andar. A Korableva espetou a agulha na saca que cosia e fitou-a também por cima dos óculos, interrogativamente:

— Então tornaste a voltar? Sempre julguei que te absolvessem! — disse, com voz de baixo.

Tirou os óculos e pousou-os juntamente com o trabalho em cima do leito.

— E nós a imaginarmos que tu já estavas à solta! Acontece isso, parece! E até dão dinheiro, outras vezes! — dizia a guarda da linha em voz melódica.

— Condenaram-te? — interrogou timidamente Fenichka erguendo os olhos infantis.

O alegre rosto entristeceu-se-lhe, prestes a chorar.

Maslova não respondeu, aproximou-se da cama e sentou-se.

— Nunca esperei semelhante coisa — disse a Fenichka sentando-se-lhe ao lado.

A Maslova, depois de alguns segundos de imobilidade, levantou-se, pousou na borda do leito o pão que trazia, tirou o capote coberto de pó, desapertou o lenço que lhe cobria a cabeça, descalçou-se e estendeu-se na cama.

A velha corcunda que estivera brincando com o rapaz aproximou-se.

— Meu Deus! Meu Deus! — disse doridamente e abanando com a cabeça.

O rapazito seguira-a e ficara de boca aberta e olhar esgazeado, parado diante do pão que a Maslova trouxera.

Todas estas provas de solicitude haviam despertado na Maslova a vontade de chorar. Contivera-se, porém, até que a velha e o rapaz chegaram junto dela. Quando ouviu a exclamação desoladora da velha e quando encontrou o olhar sério da criança não pôde conter-se mais. O rosto estremeceu-lhe e desatou a chorar.

— Não te preveni que arranjasses um bom advogado? — disse a Korableva. — E o que foi? A Sibéria?

A Maslova não pôde responder sufocada pelas lágrimas; tirou de dentro do pão um maço de cigarros em cujo invólucro brilhante, com cabelo levantado, uma dama muito decotada e entregou-a à Korableva. Esta olhou para a figura, abanou com a cabeça como que censurando-a por gastar dinheiro tão loucamente, tirou um cigarro que acendeu na vela que ardia diante da imagem, aspirou um baforada e entregou-o à Maslova que, mesmo chorando, fumou avidamente,

— Trabalhos forçados — disse enfim, entre dois soluços.

— Esses carrascos malditos não temem a Deus! — gritou a Korableva.

— O que é que ela fez? Porque é que a condenam?

Neste momento ouviu-se uma gargalhada partida da janela onde se encontravam ainda as quatro mulheres. A rapariguita também ria e ouvia-se o seu fresco e agudo riso, misturado com as rudes gargalhadas das companheiras. Com certeza, fora algum dos prisioneiros que fizera no pátio um gesto que provocara esse acréscimo de alegria obscena.

— Olha o cão pelado o que está a fazer! — disse a ruiva, rindo até abalar o corpo flácido e encostando-se de novo às grades.

— Lá está aquela pele de tambor! É caso mesmo para rir! — disse a Korableva apontando para a ruiva.

— E quantos anos?

— Quatro! — respondeu a Maslova, chorando tão copiosamente que uma lágrima rolou-lhe para o cigarro e apagou-lho. Com um movimento febril, amarrotou-o na mão e deitou-o fora.

— São verdadeiros assassinos, palavra! — disse a guarda da linha apanhando o cigarro que a Maslova deitara fora e desejando animá-la. — E nós a imaginarmos que te iam soltar! Aquela é que dizia: «Mandam-na embora!» E eu respondia: Não me palpita! E eu tinha razão! — continuou a guarda, escutando com agrado o som da sua voz harmoniosa.

Durante este tempo, os presos tinham atravessado o pátio inferior e as mulheres que se divertiam com eles à janela juntaram-se ao grupo que rodeava a Maslova.

— Então foste condenada? E porquê? — perguntou-lhe aquela, que estava presa por vender ilicitamente aguardente e que agora estava acompanhada pela filha.

— Porquê? Porque ela não tinha dinheiro! — respondeu a Korableva. — Tivesse ela dinheiro com que pagar a um advogado hábil e astuto que ele livrá-la-ia. Eu conheço um (não me lembro agora o nome), é uma raposa que não tem outra igual; era capaz de a tirar da água sem a molhar! Era quem devias ter arranjado!

— Foi a sorte que assim o quis — interrompeu a condenada por incendiária. — Então também não é terrível separar um velho da mulher e do filho sem ter ninguém que cuide dele? E eu que vim para aqui na velhice? Isto de prisão e de bordão de mendigo nunca esperam por convite.

E pela centésima vez principiou a contar a sua história.

— Ninguém foge ao seu destino! — disse ao terminar, abanando com a cabeça.

Aquela que vendera aguardente ilicitamente sentara-se na cama em frente de Maslova e, puxando a si a pequenita, sua filha, começou a catar-lhe os piolhos.

— É sempre assim com estes malditos! Diziam-me eles: «Porque vendias tu aguardente sem licença?» E com que é que eu havia de sustentar-me e à criança?

Maslova, ouvindo estas palavras, sentiu despertar-lhe a ânsia de beber.

— Dás-me um pouco de vodka? — disse à Korableva, enxugando as lágrimas com a manga da camisa.

Sossegara um pouco; de tempos a tempos, escapava-lhe um soluço.

— Venha dinheiro — respondeu a Korableva.

 


IV

 

A Maslova tirou igualmente de dentro de um pão a nota que Madame Kitaiev lhe dera e entregou-a à Korableva. Esta, que não sabia ler, aceitou-a depois de mostrar à Bela, que passava por saber de tudo: depois foi direita ao fogão, onde tinha escondido uma garrafa. Enquanto esperava pela aguardente, Maslova entreteve-se a escovar o capote e o lenço e a comer pão.

— Eu tinha feito chá, mas agora deve estar frio — disse-lhe Fenichka, indo buscar a uma prateleira colocada junto à sua cama, uma chaleira e um púcaro de lata tudo envolvido numa velha meia.

O chá estava efetivamente frio e sabia mais à lata do que a chá; apesar disso a Maslova bebeu-o, fazendo sopas com o pão.

— Fédia, toma lá — disse ela à criança, partindo um bocado de pão e dando-lho.

As outras mulheres tinham-se afastado e a Maslova, depois de ter na mão a garrafa de vodka, serviu-se dela e ofereceu de beber à Korableva e à Bela; as três eram consideradas como a aristocracia da sala, as únicas que algumas vezes tinham dinheiro.

Pouco depois a Maslova estava reanimada e contava alegremente às companheiras o que lhe acontecera desde pela manhã.

Imitando o presidente, o delegado e os advogados, falou-lhes naquilo que mais a impressionara: a solicitude com que todos os homens a examinavam.

— No tribunal todos olhavam para mim — dizia —; até vinham espreitar-me quando estava fechada! Uns fingiam procurar qualquer coisa ou diziam: onde está isto, aquilo, o papel que aqui deixei? Mas eu entendia-os! O que queriam era devorar-me com o olhar — acrescentou, sorrindo vaidosamente. — São artistas regulares!

— É tal e qual — disse a guarda da linha, aproximando-se. — Os homens andam à volta de nós como as moscas ao redor do açúcar — comentou, em voz melódica.

— Quando cheguei aqui, foi a mesma coisa — continuou a Maslova, sorrindo. — Lá em baixo, na entrada, estavam os presos que tinham chegado do comboio; apoquentaram-me e perseguiram-me tanto que eu já não sabia como havia de me livrar deles. Felizmente apareceu o carcereiro e eles sossegaram: um, principalmente, parecia danado; até cheguei a bater-lhe!

— Que figura tinha? — perguntou a Bela.

— Era muito negro, a cabeça rapada e grandes bigodes.

— Com certeza era ele.

— Quem?

— Quem? Cheglov! Passou agora no pátio.

— Quem é esse Cheglov?

— Não conheces? Já fugiu duas vezes das galés. Agora agarraram-no, mas ele torna a fugir. Até os carcereiros têm medo dele — informou a Bela, que estava ao corrente do que ia pela prisão, graças à correspondência secreta que mantinha com a divisão dos homens.

— Com certeza torna a fugir!

— Sim, foge, mas não nos leva com ele! — disse a Korableva — Conta-nos tu o que é que o advogado te disse a respeito do recurso — disse, voltando-se para a Maslova. — É agora que deves assinar o pedido.

A Maslova respondeu que não ouvira falar em nada disso no tribunal.

Neste momento a ruiva aproximou-se das «aristocratas», que continuavam beberricando aguardente e coçando a cabeça com as unhas das mãos sardentas, disse:

— Eu ensino-te o que deves fazer, Catarina! Deves primeiro requerer ao juiz, dizendo que não te conformas com a sentença, e depois ao delegado.

— Que estás tu a dizer? — perguntou-lhe a Korableva em voz irritada. — Já te conheço. Cheirou-te a aguardente e queres vender os conhecimentos! Rua, que aqui também se sabe o que há a fazer. Rua! Rua!

— Ninguém fala contigo. Que te importa?

— Queres aguardente? Não é para as tuas goelas!

— Dá lhe uma pouca — disse-lhe Maslova sempre pronta a despojar-se do que possuía.

— Espera que vais ver o que é que eu lhe dou se ela não se vai embora.

— Julgas que te tenho medo? — disse a ruiva aproximando-se de Korableva.

— Olha a abandalhada!

— Tu insultas-me, meu pássaro bisnau? — exclamou a ruiva.

— Largueza, largueza! — respondeu a Korableva.

Mas, como a ruiva se aproximasse ainda mais, deu-lhe um murro no peito nu. Como se tivesse apenas esperado por esta provocação, a ruiva lançou um braço à cabeça da adversária, enquanto procurava com a mão livre agarrar-lhe a rosto. A Maslova e outra tentaram separá-las, mas a ruiva agarrara com tal força nos cabelos da Korableva, que não havia maneira de lhos fazer largar. A Korableva, com a cabeça inclinada, batia ao acaso no corpo da sua inimiga, procurando morder-lhe nos braços. Toda a sala se reunira à volta das duas, agitando-se e gritando; até a tisica se levantou, juntando aos gritos das companheiras o ruído de um ataque de tosse. Para aumentar a confusão, as crianças desataram num berreiro de tal ordem, que a carcereira ouviu-o e apressou-se a intervir.

Afinal conseguiram separá-las; a Korableva desamarrou os cabelos para sacudir os que lhe tinham sido arrancados. A outra, a ruiva, aconchegava ao peito descarnado a camisa esfarrapada; ambas gritavam queixas e explicações:

— Já sei, já sei — dizia a carcereira; — tudo isto é por causa do vodka; amanhã, o diretor falar-vos-á! Vamos, toca a deitar e pouco barulho!

Mas isto era difícil de obter. Ainda durante muito tempo a disputa continuou, cada qual contando a seu modo como o caso havia principiado. Por fim a carcereira saiu e as presas prepararam-se para dormir. A velha corcunda ajoelhara-se diante da imagem, rezando.

— Então aqueles dois pássaros bisnaus não queriam dar-me uma lição? — disse de repente a ruiva, já deitada na cama e elevando a voz para ser ouvida pela Maslova e pela Korableva, cujas camas ficavam na extremidade oposta da sala.

— Tem cautela que eu ainda esta noite dou cabo de ti! — respondeu Korableva.

— Tivessem-me deixado, que já a estas horas estavas desolhada! — retorquiu a ruiva.

E por instantes calaram-se. A este pequeno intervalo seguiu-se outra troca de ameaças e injúrias, depois outro intervalo maior, novo acesso de obscenidades e afinal o sossego. A trovoada rebentara e lentamente ia-se afastando, até completa tranquilidade.

Tudo estava deitado e algumas já ressonavam. Só a velha corcunda e a filha do diácono estavam a pé; a velha, que rezava muito, continuava fazendo genuflexões diante da imagem e a outra recomeçara andar de um para o outro lado, logo que a carcereira se retirara.

A Maslova não podia dormir, pensando nas alcunhas com que a haviam designado, no tribunal a Bochkov, e agora aqui a ruiva; não podia também habituar-se a ideia de para futuro ser unicamente uma condenada a trabalhos forçados.

A Korableva, que tentara dormir, voltou-se de novo para a Maslova.

— E estou perdida, perdida sem ter feito nada — dizia baixinho a Maslova. — E às outras, às culpadas nada se lhe diz!

— Coração ao largo, rapariga! Também se vive na Sibéria! E tu viverás! — respondeu-lhe a Korableva tentando consolá-la.

— Bem sei que sim: mas é sempre vergonhoso! E eu não fui criada para isso, habituada como estou ao luxo!

— É a vontade de Deus! — replicou a Korableva. — Contra ela nada há a fazer.

— Será, mãezinha, mas é duro!

Fez-se silêncio.

— Ouves aquela desavergonhada? — disse a Korableva, chamando a atenção da sua vizinha para um ruído estranho que vinha da extremidade da sala.

Efetivamente a ruiva não dormia e chorava estendida no leito. Chorava porque fora injuriada, esmurrada e não conseguira a aguardente que tanto ambicionava! Chorava relembrando que na vida apenas sofrera injúrias, zombarias, humilhações e pancadas. Tentando consolar-se, recordou o seu primeiro amor com o jovem operário Bedka; mas recordou também como findara essas relações e essa terrível noite em que o amante, embriagado, lhe derramara vitriolo no rosto, por gracejo, divertindo-se com os companheiros em vê-la torcer-se com sofrimento. Invadiu-a uma grande tristeza e julgando que ninguém a ouvia, desatou a chorar, como as crianças, fungando e tragando as lágrimas salgadas.

— Tenho pena dela — disse a Maslova — parece que sofre.

— Cada qual com o seu calvário — respondeu a Korableva, voltando-se para dormir.


Capítulo 9

 


I

 

Quando Nekludov despertou na manhã seguinte, relembrou-se que na véspera sucedera-lhe alguma coisa bela e importante. Pouco a pouco fixaram-se-lhe as recordações; «Katucha! O tribunal! Terminar de vez com a mentira, dizer de futuro toda a verdade!»

Por estranha coincidência, havia no correio dessa manhã a tão ambicionada resposta da sua amante. Restituía-lhe a liberdade fazendo votos para que fosse feliz no casamento que ia realizar.

— O meu casamento! — replicou ironicamente; — como isso já está longe! Recordando o projeto que formara na véspera, de pôr o marido de Maria Vassilievna no conhecimento das suas relações, pedindo-lhe perdão e prontificando-se a ceder a qualquer reparação que ele exigisse, não lhe pareceu tão fácil executá-lo, como na véspera.

Pois que necessidade havia de descobrir a um homem uma verdade que o iria incomodar? «Se ele vier perguntar-me o que se passou, dir-lho-ei; mas é desnecessário que seja eu que lho vã dizer».

Igualmente lhe parecia dificultosa a resolução que tomara de dizer a verdade toda a Missy; não havia necessidade alguma de falar nesta ocasião e poupava-se a uma humilhação inútil. Era talvez preferível deixar de frequentar os Korchaguines e conservar semirrelações, até que eles provocassem uma sincera explicação. Procederia com Katucha de outra maneira, «Irei vê-la à prisão, dir-lhe-ei tudo, pedindo-lhe perdão! E se tanto for preciso... casarei com ela!

Continuava agradando-lhe a ideia de sacrificar tudo para satisfazer as exigências da sua consciência.

Quanto à questão de dinheiro e das propriedades, resolveu ser coerente com princípios que defendia. Ainda que não tivesse coragem para despojar-se completamente dos seus bens, prometeu a si próprio apenas conservar uma pequena parte e fazer tudo que lhe fosse possível para ser sincero nas relações com os seus semelhantes.

Há muito tempo que não principiara o dia com tanta energia.

Quando Agripina Petrovna veio à sala de jantar receber as ordens, ele declarou-lhe, com rara firmeza de ânimo, do qual se surpreendeu, que resolvera mudar de habitação e que lhe dispensava os serviços. Era a primeira vez que, depois do falecimento da sua mãe, Nekludov se explicava com a governanta sobre o que tencionava fazer daquela casa excessivamente grande e luxuosa para um celibatário; até aí, como se esperava que casasse brevemente, continuava-se a habitá-la, por acordo tácito. Agripina Petrovna compreendeu imediatamente que este projeto era sequência de outro e fitou Nekludov com espanto.

— Sou-lhe muito reconhecido pela solicitude que sempre mostrou a meu respeito; mas nem preciso de uma casa tão grande, nem de pessoal tão numeroso. Se quer continuar a ajudar-me, peço-lhe que me prepare tudo para a minha mudança e que mande encaixotar todos os móveis inúteis. Quando minha irmã vier que tome conta disso tudo.

Agripina Petrovna abanou com a cabeça.

— Que tome conta de tudo? E quando precisar deles, mais tarde?

— Nunca precisarei, Agripina Petrovna, nunca precisarei! — respondeu Nekludov, adivinhando a intenção que levava a pergunta da governanta. — Diga também a Korney que lhe pago dois meses adiantados e que procure casa.

— Parece-me que isso é proceder mal, Dimitri Ivanovitch! Ainda mesmo que tencione ir viajar, precisa sempre de uma casa para guardar os móveis.

— Não é nada disso, Agripina Petrovna! — respondeu Nekludov sorrindo. — Não vou viajar e se for, é para lugares muito diferentes daqueles que julga.

E um rubor súbito invadiu-o. «É preciso confessar tudo — pensou — nada me impede de falar e de principiar a dizer a verdade!»

— Ontem aconteceu-me uma estranha e grave aventura. Recorda-se da Katucha, que serviu em casa da tia Maria Vassilievna?

— Se recordo! Fui eu que lhe ensinei a coser!

— Pois ontem no tribunal, sendo jurado, condenei-a!

— Oh Senhor! que pena! E porque é que a condenaram?

— Por assassinato... E, fui eu o causador de tudo!

— Ora essa! Como é possível que fosse o causador de tudo!

— Sim, fui o causador de tudo! E todos os meus projetos foram destruídos!

— Mas o que é que está a dizer?

— Já que fui o culpado dela ter seguido aquele caminho, é minha obrigação socorrê-la.

— É o seu bom coração que fala, Dimitri Ivanovitch! Isso são coisas que acontecem a todos e de que não se pode culpar ninguém! O caso é ser-se racional, que tudo se arranja, se esquece e a vida continua. É loucura acusar-se! Eu já ouvira dizer que ela se desviara do bom caminho; assim o quis, assim o tenha! É só dela a culpa.

— Não, a culpa é minha! Devo repará-la.

— Mas como?

— Isso é comigo. Quanto a si não se aflija, que minha mãe declarou no testamento que...

— Não me aflijo, Dimitri Ivanovitch! A falecida beneficiou-me tanto em vida, que nada mais necessito. Tenho uma sobrinha que me apoquenta para que vá viver com ela; no dia em que o abandonar, lá estarei. Custa-me somente que tome tanto a peito aquilo que acontece a todos.

— Que quer? Não penso assim! Peço-lhe de novo, que prepare tudo para a muda. E não se zangue comigo, que sempre lhe serei reconhecido.

Nekludov compreendera, com surpresa, que reconhecendo-se enfatuado e miserável, cessara de desprezar e odiar os outros e que experimentava um sentimento afectuosíssimo por Agripina Petrovna e pelo criado. Apoderou-se dele o desejo de humilhar-se diante de Korney, como o fizera com a governanta; Korney, porém, era tão servil que Nekludov sentiu-se desanimado. Nesse dia continuaram as audiências no Palácio da Justiça, o que o obrigava a comparecer de novo. Tomou o carro da véspera e enquanto passava pelas mesmas ruas que atravessara no fim do dia anterior, espantou-se da mudança que se produzira no seu íntimo, durante vinte e quatro horas. Era completamente outro homem.

O casamento com Missy, que ainda na véspera lhe pareceu tão próximo a realizar-se, via-o agora a que distância! Pensava então que fazia a felicidade da jovem princesa, casando com ela; mas agora julgava-se não só indigno de casar com ela, mas até de manter relações de certa intimidade. «Se ela, soubesse o que eu sou, nunca consentiria em desposar-me. E eu a censurar-lhe os namoricos com Ramanow. E, ainda que a tornasse minha esposa poderia eu ter um único momento de felicidade ou de sossego, sabendo que a outra desgraçada jaz na prisão e que qualquer dia partirá a marchas forçadas para a Sibéria? Em casa, muito sossegado, eu receberia as felicidades pelo meu enlace, ou então andaria a fazer visitas acompanhado de minha esposa! Depois, sentando-me ao lado de um amigo que indignamente enganei, contaria, na assembleia da nobreza, os votos sobre a nova lei escolar e, secretamente, iria fazer companhia a sua mulher, ao findar os trabalhos diários! Ou então continuaria a aplicar-me a esse infindável e maldito quadro, empreendimento superior às minhas forças! «Não, tudo findou e para sempre!» — dizia consigo Nekludov, contente da revolução intima porque passara.

— Em primeiro lugar é necessário tornar a ver o advogado e conhecer-lhe a opinião; depois... depois vê-la e dizer-lhe tudo!

E, sempre que imaginava o modo como se abeiraria dela para dizer-lhe tudo, confessando-se criminoso, reconhecendo-se causador de todo o mal e mostrando-se pronto para o atenuar invadia-o um enternecimento pela sua própria bondade e humedeciam-se-lhe os olhos.

 


II

 

Mal chegou ao Palácio da Justiça, Nekludov encontrou no corredor o escrivão que assistira à audiência do dia anterior. Informou-se com ele para onde é que os réus eram enviados depois do julgamento e de quem se poderia obter permissão para os visitar. O escrivão respondeu-lhe que os réus eram remetidos para sítios diversos e que até à aplicação da sentença, era o juiz presidente que concedia autorização para as entrevistas.

— Quando terminar a audiência eu vou apresentá-lo ao presidente. Agora venha, que vamos começar.

Nekludov agradeceu e entrou no gabinete dos jurados.

Estavam todos a preparar-se para passar à sala das audiências; o negociante, alegre como sempre, comera e bebera lautamente e saudou Nechludow como um velho conhecimento. Mas nem este, nem a familiaridade de Pedro Gerassimovitch, o impressionaram desagradavelmente, como até então.

«Ontem devias ter-te levantado, quando foi pronunciado o veredictum e confessado o crime que cometeste», dizia a si mesmo Nekludov, respondendo à interrogação que se lhe formulara em espírito sobre se deveria revelar aos jurados as relações que mantinha com a condenada da véspera.

Quando, porém, entrou na sala das audiências e viu recomeçar o espetáculo do dia anterior — a mesma chegada dos juízes ao estrado, envoltos nas togas, o mesmo silêncio, os mesmos soldados, jurados e padre — compreendeu que lhe seria impossível perturbar aquele solene conjunto, ainda que dispondo da melhor boa vontade.

Os preliminares para o julgamento foram em tudo semelhantes aos da audiência anterior, excetuando a alocução presidencial ao júri e o juramento dos jurados, que não se realizaram.

O caso que entrava em julgamento era um roubo. O réu era um rapaz de vinte anos, de ombros descaídos, magro, pálido, tossindo constantemente e vestindo um capote escuro; estava sentado no banco, entre dois soldados. Era acusado de, em companhia de um camarada, ter arrombado a porta de uma cocheira e ter furtado um embrulho de esteiras velhas, avaliado em dez rublos e meio. Surpreendidos por um polícia quando conduziam o roubo, confessaram imediatamente tudo e foram enviados para o calabouço. Aí falecera um deles, razão porque agora só comparecia o outro para ser julgado. Nessa mesa, ao lado, estavam as esteiras que haviam sido subtraídas.

A audiência deslizava exatamente como a da véspera, com interrogatórios, testemunhas, provas e contraprovas. O polícia que fizera a prisão respondia invariavelmente a todas as perguntas quer do presidente quer do advogado: «Isso mesmo» ou então: «Não sei.» Eram respostas maquinais a que a disciplina o habituara; adivinhava-se, contudo, que não estava muito satisfeito com a captura que realizara e que lastimava o acusado. Outra testemunha, era um velho de rosto sofredor, proprietário da casa onde fora cometido o roubo. Quando lhe perguntaram se reconhecia como suas as esteiras furtadas, mostrou-se relutante em responder, e quando o delegado o interrogou, inquirindo se as esteiras lhe eram de utilidade, respondeu irritadamente: «Diabo leve as esteiras! Não me servem de nada! Daria de boa vontade o dobro do seu valor para não me incomodarem! Só em carros já eu gastei muito mais! Sou doente e sofro há mais de sete anos ataques de reumatismo.»

Assim falaram as testemunhas. Quando chegou a vez ao réu este contou naturalmente como o caso se passara; falava com voz incessantemente quebrada por ataques de tosse e revirava a cabeça em todas as direções, com o olhar desvairado, como o de um animal preso numa armadilha. E o delegado, inventava perguntas subtis, que lhe dirigia, para lhe desmascarar a astúcia e confundi-lo. Quando se ergueu para formular a acusação, mostrou que o roubo fora cometido com premeditação e arrombamento e que por consequência o réu merecia o castigo mais severo.

O advogado oficioso, ao contrário, provou que o roubo fora cometido sem premeditação, que não houvera arrombamento e que o criminoso não era um ente tão perigoso para a sociedade como o afirmara o delegado. Por último, o presidente tentando conservar-se imparcial, exatamente como na véspera, explicou aos jurados o que eles já sabiam do caso e o que não deviam deixar de saber. Houve também um intervalo para os jurados fumarem e o oficial novamente tornou a anunciar: «Os juízes». Também como na véspera os soldados, que de espada desembainhada guardam o preso, faziam os mesmos esforços que no dia anterior, para não cabecearem com sono.

Averiguou-se pelos debates que o acusado era aprendiz de cigarreiro numa fábrica em que o pai o colocara, onde trabalhara cinco anos até que, em virtude de uma questão entre os operários e o patrão, fora despedido. Achando-se sem trabalho, vagueou ao acaso pelas ruas da cidade, travando então conhecimento com um operário serralheiro, igualmente desempregado e que se entregava à bebida. Ambos embriagados nessa noite, tinham arrombado a porta da cocheira e deitado mão ao primeiro objeto que se lhes deparara. Fora o serralheiro que morrera na prisão e o cúmplice era agora trazido a julgamento como um indivíduo perigoso para a sociedade.

«Tão perigoso como a que condenamos ontem! — pensava Nekludov, assistindo ao desenrolar dos debates. — São seres perigosos? Seja! Mas então o que somos nós que os julgamos? Eu, por exemplo, que sou eu senão um devasso, mentiroso e impostor? E nós então não somos perigosos! Admitindo que esta desgraçada criança seja o único perigoso que está nesta sala, o que é que o senso comum nos diz que devemos fazer dele, já que foi agarrado? É evidente que este rapaz não é um criminoso de profissão, nem nenhum malfeitor extraordinário, mas antes pertence à mais vulgar das espécies. É o que todos sabem e sentem, como igualmente todos sabem que o meio e as condições em que foi criado é que fatalmente o obrigaram a ser aquilo que ali está. Também não é menos evidente a quem não for totalmente desprovido do senso comum, que para obstar a que naturezas daquelas se percam, é necessário, primeiro que tudo, destruir as condições cujos efeitos inevitavelmente lhe originam a ruína. Porém, o que é que nós fazemos? Agarramos ao acaso um destes pobres diabos e sabendo perfeitamente que milhares deles ficam em liberdade, encarceramo-lo, condenando-o a uma ociosidade completa ou a trabalho estúpido e doentio, em companhia doutros da mesma espécie para passado algum tempo os transportar à custa do Estado, do governo de Moscovo para o governo d’Irkoutsk juntamente com criminosos dos piores. Para destruir as condições em que são gerados estes indivíduos não fazemos nada; ao contrário! Incitamos o seu desenvolvimento, multiplicando as fábricas, oficinas, tabernas e as casas de tolerância. Não só não as destruímos mas julgamo-las necessárias, animando-as com o apoio da lei. É assim que criamos não um malfeitor, mas milhares deles; agarramos depois um, ao acaso, e quando conseguimos enviá-lo de um para outro governo, imaginamos que cumprimos o nosso dever e que salvamos a sociedade!»

Assim pensava Nekludov sentado na alta cadeira de encosto, enquanto escutava os discursos dos diversos membros do tribunal.

«E, quando penso — continuava Nekludov fixando o pálido rosto do acusado — quando penso que bastaria apenas que alguém se houvesse apiedado deste infortunado, quando o pai, obrigado pela necessidade, o enviou para a cidade como operário, ou ainda mais tarde, quando depois de doze boras de trabalho, o desgraçado ia com os companheiros procurar alguma distração nas tabernas! Se nessas ocasiões aparecesse um homem que tivesse piedade dele, e lhe dissesse: «Não vás, Vania, não fazes bem!» A criança não teria ido, não se perverteria nem faria o mal que praticou! Mas não; nem um só homem se apiedou dele enquanto viveu como um animal; na fábrica, ao contrário, todos, mestres e companheiros, lhe ensinaram durante esses cinco anos, que o razoável para rapazes da sua idade consistia em mentir, beber, dizer obscenidades, espancarem-se e perseguir as raparigas. Quando afinal, cansado, depravado e arruinado pelo trabalho doentio, pela embriagues, pela devassidão, vagueia sem destino pelas ruas da cidade e se deixa arrastar a entrar numa cocheira e furtar uns velhos esteirões inúteis, nós a quem nada falta, homens ricos, instruídos e fartos, reunimo-nos, com toda a solenidade numa sala, a fim de julgarmos um desgraçado, nosso irmão, para cuja ruina contribuímos!»

Nekludov, todo entregue a estes pensamentos, não prestava atenção ao que se passava em redor. Conjetura porque é que não compreendera mais cedo tudo isto e porque é que os outros não o compreendiam ainda.

 


III

 

Quando os jurados se encaminharam para o gabinete a fim de responderam aos quesitos apresentados pelo juiz presidente, Nekludov, em vez de os acompanhar, enfiou pelo corredor, resolvido a não voltar ao tribunal. «Façam o que quiserem daquele infeliz, mas não que eu tome parte em tal comédia!» Perguntou a um guarda qual era o gabinete do Procurador Geral e encaminhou-se para lá; o porteiro tentou impedir-lhe a entrada, afirmando que o magistrado estava ocupado. Nekludov não lhe deu atenção, entrou na antecâmara e dirigindo-se a um empregado que encontrou, pediu-lhe para o anunciar, como um jurado que desejava tratar de assunto urgente. O título de príncipe e a elegância do vestuário impuseram-no ao empregado, que insistiu e obteve do magistrado que Nekludov fosse imediatamente recebido.

— Em que o posso servir? — perguntou ele, serenamente, e conservando-se de pé, com evidente descontentamento.

— Sou jurado, chamo-me Nekludov e necessito absolutamente de ver a prisioneira Maslova — disse Nekludov, de uma só vez, enrubescendo. Sentia que estava dando o passo mais decisivo de toda a sua vida.

O magistrado a quem se dirigia era um homenzinho magro, de cabelos grisalhos e curtos, olhos vivos e uma barbicha aguçada saindo-lhe do queixo saliente.

— A Maslova? Bem sei! É uma acusada de envenenamento. E para que deseja vê-la? Desculpe a minha pergunta — acrescentou amavelmente — mas não posso conceder-lhe a autorização que me pede, sem saber os motivos que o obrigam a pedir-ma.

— Vê-la é importantíssimo para mim! — disse Nekludov, de novo enrubescendo.

— Sim? — respondeu o magistrado, fixando em Nekludov um olhar penetrante. — Essa mulher foi julgada ontem, não é verdade?

— E condenada injustamente a quatro anos de trabalhos forçados; todavia, está inocente!

— Foi ontem? — continuou o magistrado, sem prestar atenção ao que Nekludov dizia a respeito da inocência da Maslova. — Se foi ontem, deve ainda estar em prisão preventiva, e para estas condenadas as visitas realizam-se em dias fixos. Aconselho-o a realizá-la num deles.

— Necessito vê-la imediatamente — disse Nekludov, que sentiu os lábios tremerem-lhe à aproximação do momento, decisivo.

— Mas que necessidade é essa? — interrogou o magistrado, franzindo inquietadoramente as sobrancelhas.

— Necessito vê-la porque, estando inocente, condenámo-la aos trabalhos forçados e sou eu o criminoso e não ela! — acrescentou Nekludov em voz agitada.

— Como assim?

— Sim, porque fui eu que a seduzi e que a levei ao que presentemente é. Se não fora isto, nunca teria sofrido as consequências do crime que injustamente lhe atribuem.

— Porém isso não me explica porque é que deseja vê-la.

— É porque quero reparar o meu crime... casando com ela! — declarou Nekludov.

E sentia os olhos humedecidos por lágrimas de enternecimento involuntário.

— Realmente? — disse o magistrado. — Eis um caso nada vulgar! Se não me engano fez parte do Zenstvo3 de Kromopersk? — interrogou de novo, relembrando-se que já ouvira falar neste Nekludov que lhe acabava de participar aquela imprevista resolução.

— Exatamente. Parece-me porém que isso não tem relação alguma com o meu pedido — respondeu Nekludov irritadamente.

— Assim é — respondeu o magistrado, sorrindo ironicamente; — mas o projeto que me participou é tão fora da comum e tão bizarro...

— Pode conceder-me a autorização?

— Autorização? Sim, certamente. Queira sentar-se que já lha dou. — E dirigindo-se à secretária, sentou-se a escrever. — Peço-lhe que se sente.

Nekludov continuou de pé.

Quando acabou de escrever, o magistrado entregou-lhe um papel, ao tempo que o fitava com curiosidade.

— Devo declarar-lhe que me é impossível continuar a fazer parte do júri criminal — disse Nekludov.

— Devia apresentar no tribunal os seus motivos, a fim de ser dispensado.

— O motivo é que considero os julgamentos não só inúteis como até imorais.

— Sim? — exclamou o magistrado com o mesmo sorrisinho irónico, dando a entender que tais princípios eram-lhe familiares e que não era a primeira vez que se divertia à custa deles. — Compreende, não é verdade, que na minha qualidade de magistrado não partilhe tais ideias? Explique-as ao tribunal que, na sua competência, apreciá-las-á e declarar-lhe-á se são ou não aceitáveis. Neste último caso terá de pagar uma multa. Dirija-se ao tribunal.

— Estou resolvido a nunca mais lá voltar! — respondeu secamente Nekludov.

— Então, até mais ver! — disse o magistrado, impaciente por se ver livre do incómodo visitante.

— Quem é este sujeito que acaba de sair? — perguntou-lhe, momentos depois, um juiz que entrava no gabinete quando Nekludov saía.

— É Nekludov, lembra-se? Aquele que no Zenstvo se evidenciou por propostas originais. Imagine que, sendo agora jurado, encontrou no banco dos réus uma rapariga que ele diz ter seduzido e com quem quer casar!

— É lá possível?

— Ele próprio mo declarou num momento de estranha exaltação.

— Parece que nos cérebros da mocidade de hoje habita qualquer coisa anormal.

— Mas este já não é novo. E a respeito de Ivachenkow? Jurou que há de matar-nos! É um moinho de palavras; fala, fala e nunca acaba!

— Deve-se retirar-lhe a palavra. Daquela maneira torna-se obstrucionista.

 


IV

 

Do gabinete do magistrado, Nekludov dirigiu-se diretamente à cadeia dos condenados preventivos. Porém, não encontrou aí a Maslova, porque, em consequência de uma agitação política que tivera lugar havia meses, todos os presos que deviam aí estar tinham sido mudados para a prisão velha, cedendo os lugares a estudantes, empregados e operários. Era, pois na prisão velha que se achava a Maslova, e Nekludov dirigiu-se para lá.

A distância entre as duas prisões era grande, e quando Nekludov chegou era quase noite. Ao entrar, a sentinela deteve-o e fez soar uma campainha interior. A porta abriu-se e Nekludov apresentou, ao guarda que apareceu, a ordem escrita que levava. Este leu-a do princípio até ao fim. Com toda a lentidão, releu-a e terminou por dizer que sem autorização do diretor nada podia fazer. Nekludov apenas conseguiu que o deixassem ir aos aposentos do diretor. Subindo a escadaria, ouviu os sons distantes de um trecho de música tocado num piano. Logo que a criada, de rosto rabugento e com um dos olhos tapado por uma tira de pano, lhe abriu a porta, os sons do piano feriram-lhe os tímpanos distintamente, escapados de uma sala próxima. Era a mais batida das rapsódias de Liszt bem executada, porém, apenas até certa altura. A pessoa que a tocava, ao chegar àquele ponto, abandonava o final para recomeçar de novo até aos mesmos compassos.

Nekludov perguntou à criada se o diretor estava em casa.

— Não senhor, não está.

— E a que horas voltará?

A criada encaminhou-se para o interior, deixando Nekludov à entrada. A rapsódia desta vez parou sem ser no ponto do costume e Nekludov ouviu uma voz feminina dizer, na sala próxima:

— Diga-lhe que o papá foi jantar fora e que hoje é impossível falar-lhe. Que venha outro dia.

E a pianista recomeçou com a rapsódia para, passados alguns compassos, se interromper de novo; uma cadeira mexeu-se, arrastada, e a pianista decidiu-se a vir em pessoa despedir o importuno que a incomodava.

— O papá não está — disse uma rapariga pálida, de cabelos claros, desalinhados e profundos círculos arroxeados em redor dos olhos, entreabrindo a porta que dava para a sala de entrada.

Ao notar que falava com um cavalheiro elegante e bem vestido, abrandou a entoação.

— Faça favor de entrar! Deseja pedir alguma coisa ao papá?

— Queria ver uma presa que está aqui.

— Com certeza uma presa da secção dos detidos políticos?

— Não. Não é política. Trago uma autorização especial.

— Sinto imenso que meu pai tenha saído. Sem sua ordem nada posso fazer. Mas peço-lhe que se sente! — disse ela, notando o movimento de Nekludov para se retirar. — É talvez bom dirigir-se ao ajudante, que deve estar na secretaria. Informá-lo-á de tudo. Com quem tenho a honra de falar? — continuou ela.

— Muitíssimo obrigado — disse Nekludov, sem lhe responder à interrogação.

E tornou a descer a escadaria, enquanto atrás dele recomeçava a rapsódia tão pouco própria daquele local e tão pouco em harmonia com o aspeto lastimável da executante.

Em baixo, no pátio, Nekludov encontrou-se com um empregado de bigodes erguidos, a quem perguntou pelo ajudante do diretor. Era ele o próprio. Leu a autorização e declarou-lhe que era a prisão central, pelo que não a considerava válida. Além disso a hora era imprópria, por se haver já realizado a chamada noturna.

— Amanhã. Amanhã é bom dia, que é domingo. Depois das dez horas da manhã, entrará toda a gente. Então o diretor estará presente e poderá falar com a prisioneira no parlatório ou na secretaria.

Desiludido de ver Katucha naquele dia, Nekludov voltou para casa. Emocionado, caminhava rapidamente relembrando os incidentes daquele dia. E a sua exaltação recrudescia com a ideia de que falara ao magistrado em se humilhar diante dela e que a procurara em duas prisões.

Ao chegar a casa, rebuscou numa gaveta um caderno, onde antigamente escrevia o diário dos seus atos e dos seus pensamentos. Releu algumas páginas e depois, febrilmente, acrescentou-lhe as linhas seguintes:


Há dois anos que não escrevo nada neste caderno, e julguei que nunca mais me entregaria a esta criancice, Não é, porém, uma criancice. É, ao contrário, uma palestra íntima como o eu real e divino. Há dois anos que o meu eu jazia adormecido no coração, de maneira que não tinha ninguém com quem palestrar. Ontem, 28 de abril, em seguida ao acontecimento extraordinário passado no tribunal onde era jurado, ele despertou. Sentada no banco dos réus, reencontrei a Katucha por mim seduzida e abandonada e não podendo impedir uma má interpretação, condenámo-la aos trabalhos forçados. Procurei hoje o magistrado que me podia conceder autorização para a ver, e obtendo-a, tentei visitá-la. Não o consegui, mas não esmoreci na resolução de lhe pedir perdão e de reparar o meu erro, ainda que casando com ela.

Senhor! Imploro teu auxílio! O meu coração transborda de alegria e de serena tranquilidade.


Capítulo 10

 


I

 

Na noite que se seguiu à sua condenação, a Maslova, despedaçada pela fadiga, dormira com sono de chumbo; mas, na imediata não pôde adormecer. Estendida no leito, era a única que na sala estava acordada, os grandes olhos muito abertos, a pensar.

Dizia a si mesma que por nada deste mundo consentiria em casar com um forçado, quando fosse transportada para a ilha de Sakhsline, como lho haviam dito. Forçosamente havia de impedir que tal se realizasse. Servia-lhe qualquer outro, um inspetor, um oficial ou um guarda mesmo, mas com um forçado, nunca!

«Qualquer deles é fácil de seduzir! É necessário, porém, não emagrecer, senão estou pronta!» — dizia a si própria.

A mais recente impressão que se lhe avivava no cérebro, era a maneira como advogados, juízes e jurados a tinham examinado e como todos os homens a olhavam inflamados pelo desejo, quando atravessara a cidade. Já na prisão fora visitada por uma companheira, Clara, que lhe contara que um dos seus clientes preferidos, um estudante, ficara contristado por não a tornar a ver em casa de Madame Kitaiev. Pensava em todos que a tinham amado, menos em Nekludov.

Sim, nem em Nekludov, nem na sua infância e mocidade jamais pensava! Eram recordações dolorosas, dissimuladas no fundo do coração e em que nunca devia tocar, nem mesmo em sonhos. Se não reconheceu Nekludov no tribunal não foi só pela idade o ter transformado, por usar grandes barbas e bigodes e por lhe rarear o cabelo: tê-la-ia reconhecido apesar disto se se não houvesse habituado a nunca pensar nele.

Fora numa triste e horrível noite em que Nekludov passara, vindo da guerra, na estação do caminho de ferro, sem se demorar, que Katucha principiara a fazer por esquecer-se.

Nesta ocasião sabia já que estava grávida. Mas enquanto andara esperançada em tornar a ver Nekludov, não só o pensamento da criança que ia nascer não a desgostava, como até a alegrava e enternecia.

As tias de Nekludov haviam-lhe escrito, pedindo-lhe que, de passagem, se detivesse algumas horas, ao que ela respondera por telegrama que era urgente a sua comparência em S. Petersburgo.

Katucha formara imediatamente o plano de ir à estação voltar a vê-lo.

O comboio passava na estação às duas da manhã. Katucha, depois de haver ajudado as amas na toilette noturna, calçara umas fortes botas, atara o lenço ao redor da cabeça e partira, acompanhada por uma rapariguita de dez anos, filha da cozinheira.

A noite estava chuvosa, escura e fria. Caíam de vez em quando pesadas gotas de chuva, sem continuidade.

Katucha enquanto caminhava através dos campos, distinguia bem o atalho, conhecedora como era do caminho: mas no bosque a obscuridade tornou-se completa e extraviando-se involuntariamente, chegou à estação quando o comboio também já lá estava. Precipitando-se no cais, reconheceu imediatamente Nekludov, sentado junto da janela de uma carruagem vivamente iluminada.

Em frente um ao outro, dois oficiais jogavam as cartas numa pequena mesa. Nekludov, virado para eles, fitava-os sorrindo. Logo que o viu, ela correu para a carruagem com a intenção de o chamar; neste momento a máquina silvara e o comboio, lentamente, pôs-se em marcha. Um dos jogadores notou-a e tentou baixar a janela, mas não pôde; e o comboio, acelerando o andamento, obrigou-a a correr. Afinal, a janela abrira-se, mas o revisor que ia saltar para o comboio, afastou-a bruscamente e ela teve de correr mais depressa, ainda que acompanhando só as carruagens da cauda, de segunda e terceira classe e por último o vagão com a lanterna vermelha. E ela continuara a correr, a correr do-fim do cais pela via adiante, sem o lenço que o vento lhe arrancara, os cabelos em desordem e chapinhando na lama.

— Catarina! — gritava a pequenita que a acompanhara, correndo atrás dela — olhe que lhe caiu o lenço!

Katucha deteve-se a este grito e, agarrando a cabeça com ambas os mãos, exclamou:

— Desapareceu!

Via cavar-se diante de si um abismo terrível.

«Ele está numa carruagem confortável, sentado em cadeiras de veludo, rindo e divertindo-se — dizia a si mesma — e eu sozinha aqui, à chuva e ao vento!» E, sentando-se no chão, desatara a chorar, sacudida por soluços tão fortes, que tinham assustado a pequenita.

— Vem para casa, Catarina — dissera-lhe esta, passando-lhe os braços ao redor do pescoço, para a consolar.

Porém Katucha deixara-se ficar sentada, insensível à chuva e ao vento. «Quando passe outro comboio, deitar-me-ei nos rails e tudo acabará!» Mas, de repente, dentro dela, estremecera a criança, e o desespero que a invadira abrandara. Tudo que momentos antes a atormentara, a impossibilidade de viver, o ódio que votara a Nekludov, o desejo de se vingar suicidando-se, tudo se desvanecera: mais tranquila, erguera-se e, cobrindo de novo a cabeça com o lenço, encaminhou-se para casa.

Cansada e enlameada chegou a casa; a partir dessa noite operara-se-lhe na alma essa terrível revolução que a conduzira ao que agora era. Fora nessa noite que cessara de acreditar em Deus, em que até então confiara, julgando que todos acreditavam n’Ele; desde essa noite convencera-se que Deus não existia, que ninguém acreditava n’Ele e que aqueles que falavam em seu nome e nas suas leis, apenas tinham em vista enganá-la.

O homem que ela amava e que a amara, seduzindo-a e disfrutando-a era ainda o melhor entre quantos mais tarde conhecera. Todos os outros eram mil vezes piores! No decorrer da vida estas convicções enraizaram-se-lhe. As tias de Nekludov suas amas, essas piedosas senhoras, no dia em que ela não pôde trabalhar tanto como nos passados, expulsaram-na. As pessoas com quem em seguida tivera relações, umas — as mulheres — apenas viam nela um modo de arranjar dinheiro; outras — os homens — desde o homem da polícia até ao último dos carcereiros da prisão — consideravam-na como um objeto para a satisfação dos instintos sexuais. E do que toda a gente cuidava no mundo era de satisfazer os seus instintos. Fortalecera-lhe esta crença o escritor com quem ela vivera o seu segundo ano de vida independente, que lhe asseverou convictamente que a satisfação dos instintos sensuais era a única beleza e o único ideal da vida.

Cada qual vivia neste mundo unicamente para si e tudo o que se dizia de Deus e do Bem era puro engano! Assim pensava a Maslova. E, quando se interrogava porque é que os homens se atormentavam mutuamente em vez de gozar a vida em sossego, apressava-se em repelir a interrogação inoportuna. Então um cigarro e um pouco de vodka tornavam-se essenciais para a tranquilizar.

 


II

 

O dia seguinte era um domingo. Logo que ressoou no corredor, às cinco da manhã, o silvo do carcereiro, a Korableva acordou a companheira, que só adormecera de madrugada.

«À vida, de novo!» Foi o primeiro pensamento que a assaltou enquanto esfregava os olhos alucinados, respirando contrariadamente a pesada atmosfera da sala. Desejava tornar a adormecer para refugiar-se na inconsciência, mas o hábito e o medo haviam expulsado o sono e ergueu-se, meio sentada, as pernas fora do leito, o olhar ao redor.

Todas as outras estavam já acordadas e só o rapazito, e a rapariga ainda dormiam. A mãe retirava com precaução o capote de sob eles, a fim de os não despertar. A que fora condenada por crime de rebelião contra as autoridades, estendia em frente do fogão uns farrapos que tinham servido de paninhos ao pequenito, que nos braços de Fenichka se agitava, chorando e gritando sem que as palavras acariciadoras dela o conseguissem sossegar. A tísica, com o rosto congestionado e segurando o peito com ambas as mãos, estava sofrendo o costumado acesso de todas as manhãs, suspirando tão ruidosamente nos intervalos, que mais parecia soluçar. A ruiva, estendida na cama, mostrando as pernas nuas e grossas, contava, em voz alta e alegre, o sonho complicado que tivera. A velha corcunda, de pé em frente da imagem, repetia infatigavelmente as mesmas orações, persignando-se e fazendo genuflexões. A filha do diácono, sentada na cama, olhava fixamente na sua frente, a face despedaçada pela insónia. A Bela frisava o cabelo, gordurento e negro, com os dedos.

No corredor ouviram-se pesados passos de homens e a porta abriu-se deixando entrar dois detidos, de feições carrancudas e desagradáveis, vestindo blusas de riscado e calças da mesma fazenda, que não lhes chegavam ao tornozelo. Ergueram o vaso das dejeções aos ombros e conduziram-no para fora. As mulheres, umas atrás das outras, saíam para o corredor para se lavarem nas torneiras.

A ruiva, que esperava vez, arranjou logo uma questão com outra mulher de uma sala vizinha, e de novo recomeçaram as injúrias, os gritos e as reclamações.

— Vocês apostaram em ir até ao segredo! — disse o carcereiro aproximando-se da ruiva e aplicando-lhe nas costas uma pancada tão forte que ressoou em todo o corredor. — Pouco barulho, pouco barulho — acrescentou, afastando-se.

— O velhote tem mão leve! — disse a ruiva, sem se zangar com a caricia.

— Vamos depressa! Já toca à missa — ordenou de novo o carcereiro.

A Maslova ainda não havia acabado de pentear-se quando chegou o ajudante do diretor com um papel na mão.

— Em forma para a chamada! — gritou o carcereiro.

Chegavam também as presas das outras salas e, afinal, colocaram-se todas em duas filas, estendidas pelo corredor fora, as da fila de trás com as mãos colocadas nos ombros das da frente. O ajudante contou-as, fez a chamada e afastou-se com o registo.

Quando chegou a vigilante encarregada de as conduzir à missa, a Maslova e Fenichka achavam-se colocadas no meio da coluna formada por mais de cem mulheres, todas vestindo o uniforme branco da prisão, com lenços também brancos, na cabeça. Só de vez em quando via-se uma aldeã com o traje da terra: eram as mulheres de alguns condenados que haviam conseguido partilhar da sorte dos maridos. A comprida coluna enchia a escadaria, descendo. Ouvia-se o ruído do calçado batendo no lajedo, o murmúrio de vozes, e, de vez em quando, o riso. Ao virar um ângulo da escadaria, a Maslova notou à frente da coluna, o rosto maldoso da sua inimiga, a Bochkov e indicou-a à Fenichka.

Ao findar a escadaria, fez-se silêncio e começaram a entrar na igreja persignando-se e fazendo genuflexões, dirigindo-se para uma das capelas, ainda vazias, mas já deslumbrantes de luzes. Colocaram-se à direita, sentando-se compactamente numa enfiada de bancos. Logo a seguir entraram os homens, que se arrumaram à esquerda e no centro, enquanto um pequeno número se dirigia por uma escadazita interior, para um órgão colocado no coro. A igreja tinha sido restaurada e composta de novo, graças à generosidade de um rico negociante que aí gastara dezenas de milhares de rublos. Resplandecia de dourados e cores vivas.

Durante algum tempo reinou completo silêncio, unicamente interrompido pelo assoar de um ou outro, por um acesso de tosse, ou pelo arrastar das algemas. Em certa ocasião, os prisioneiros que se conservavam no centro abriram alas, dando passagem até à primeira fila, ao diretor da prisão, que avançava solenemente.

Principiaram os ofícios divinos.

Consistiam esses ofícios no seguinte: um padre, vestindo um traje de brocado tão singular quão incómodo, partia fatias de pão e colocava-as numa bandeja, molhando-as em seguida no vinho que estava dentro de um cálix, acompanhando tudo com inúmeras orações. Entretanto o diácono lia e cantava, acompanhado alternadamente pelo coro dos presos, orações de toda a espécie em eslavo antigo, já difíceis de compreender no seu sentido e totalmente incompreensíveis pela maneira rápida como eram recitadas.

Estas orações eram destinadas principalmente a chamar a bênção divina sobre o imperador e sua família. Em todas elas faziam-se-lhes referências, havendo algumas destinadas só a esse efeito e que era necessário ouvir ajoelhado.

Além disso o diácono tinha de ler alguns versículos dos Atos dos Apóstolos, e leu-os com voz tão afetada e estranha que ninguém conseguiu perceber coisa alguma. Seguiu-se-lhe o padre lendo uma passagem do Evangelho segundo S. Marcos, em que se dizia que o Cristo ressuscitado aparecera a Maria de Magdala e aos seus onze discípulos, a quem ordenara que pregassem o Evangelho a toda a gente e que aqueles que tivessem fê e se batizassem, seriam salvos e poderiam, por simples contacto das mãos, expulsar os demónios, curar os doentes e falar todas as línguas.

Supunha-se que os bocados de pão molhados no vinho, ao mesmo tempo que o padre fazia certos gestos e dizia as orações se transformavam no corpo e sangue de Deus e era essa a significação destes ofícios divinos.

Um destes gestos consistia em o padre levantar ambas as mãos sobre a cabeça e sustentá-las nesta posição; outro era o ajoelhar-se em frente do altar, beijando o que lá se encontrava. Mas, de todos, o principal, era o que ele fazia quando, pegando com as duas mãos num pequeno guardanapo, o agitava por cima da bandeja e do cálix dourado.

Com efeito, era nesse momento que se supunha que o pão e o vinho se transformavam em carne e sangue; por consequência, presidia a esta parte da missa peculiar solenidade.

— Intercedei por nós, Puríssima e Santíssima Mãe de Deus! — exclamava o padre, de pé em frente do altar, separado do resto da igreja por uma grade divisória; e, imediatamente, o coro respondia-lhe, glorificando a Mãe do Cristo, Virgem Maria, sentada num trono celeste entre querubins e serafins. E enquanto duravam os cânticos, ia-se consumando a milagrosa transformação.

Em seguida, o padre, levantando o guardanapo com o qual cobrira a bandeja, cortou um dos bocados de pão em quatro pedacinhos, e tornando a humedecê-los no vinho, comeu-os: significava isto que tinha comido a carne de Deus e bebido o seu sangue. Depois, correu uma cortina, abriu uma cancela na grande divisória e, dirigindo-se à multidão, perguntou se havia alguém que quisesse comer e beber a carne e o sangue de Deus.

Naquele domingo, porém, apenas algumas crianças se mostraram desejosas de tal fazer.

O padre perguntou-lhes os nomes e, tirando com uma colher, de cada vez, um dos pedacinhos do pão molhado em vinho, introduziu-lhos sucessivamente até ao fundo das bocas, enquanto o diácono, que o seguia, lhas limpava, cantando alegremente que podiam considerar-se felizes os que tinham comido e bebido a carne e o sangue de Deus. Terminando, o padre voltou para o altar, comeu e bebeu o pão e o vinho que tinham sobejado, limpou cuidadosamente os lábios e a barba, deu uns últimos toques nuns pequenos arranjos, e, com passo rápido, as solas das botas novas de vitela rangendo, desceu do altar.

Terminara o que era a parte principal dos ofícios divinos. Porém, o padre, desejoso de suavizar os sofrimentos dos presos, quis ainda contribuir para isso com um oficio suplementar. Então, de pé, no meio da capela-mor e em frente da imagem desse Deus, cuja carne acabara de comer, principiou a recitar em voz e tom ora cantante, ora natural, as seguintes palavras: «Doce Jesus, glória dos Apóstolos, Jesus, louvor dos mártires, Senhor Todo-Poderoso, salva-me, pecador que sou, mas que a ti recorro, salva-me! Jesus, tem piedade de mim e escuta os rogos de tua Mãe, de todos os profetas, de todos os santos. Salva-me, Jesus, e recebe-me nas doçuras do céu!»

O padre parou neste ponto, respirou profundamente, persignou-se e curvou-se até tocar no chão; todos o imitaram. O diretor, guardas e presos curvaram-se e de junto do órgão partiu um forte tinido de grilhões.

Depois o padre prosseguiu: «Criador dos anjos, Jesus Salvador, Jesus o meigo apoio dos imperantes, Jesus o meigo, realização das profecias, Jesus o meigo, coragem dos mártires, Jesus filho de Deus, compadece-te de mim!». O nome de Jesus pronunciado pelo padre mais de cem vezes saía-lhe da boca, por fim, como um silvo, até que ajoelhando-se e prostrando-se, só o coro continuou a cantar: «Jesus, filho de Deus compadece-te de nós»! E, ao terminar, novamente a multidão se inclinou e ergueu, enquanto as algemas tiniam de encontro umas às outras.

Fizeram-se em seguida várias invocações, terminando todas com um Aleluia! Os presos persignaram-se e curvaram-se; primeiramente a cada Aleluia, depois uma vez em cada duas, depois uma vez em cada três ou quatro, e a sua satisfação foi enorme quando viram o padre fechar o livro e dirigir-se para o altar.

Contudo, ainda não terminara a cerimónia; faltava um último requisito.

Voltando ao altar, o padre pegou numa cruz dourada, com medalhas esmaltadas nas quatro extremidades, e caminhou novamente para o meio da capela-mor. Então, enquanto conversava com o diretor, o padre deu alternadamente a beijar a cruz e a mão, desfilando na sua presença, diretor, subdiretor, guardas e presos de um e outro sexo.

E assim findaram os ofícios divinos destinados a reconfortar as ovelhas transviadas e a reconduzi-las ao bom caminho.


***


E nenhum dos assistentes, desde o padre e o diretor até à Maslova, nenhum se recordava que esse Jesus, cujo nome o padre repetiu inúmeras vezes, esse Jesus a quem se erguiam louvores bizarros e incompreensíveis, proibira precisamente tudo o que se estava praticando naquele recinto; ninguém compreendia que esse Jesus não só desaprovaria todas essas cerimónias desprovidas de significação e sacrílegas, mas que, em termos claros, proibira aos homens encarregados de instruir os outros, que se vestissem diferentemente do comum, assim como proibira aos seus discípulos que orassem no templo, ordenando-lhes que procurassem a solidão, e o concentramento íntimo, como proibira também que se construíssem templos, declarando que viera para destrui-los e para ensinar os homens a orarem em espírito e na verdade. Mas mais do que tudo isto, esse Jesus proibira que os homens julgassem os seus semelhantes, que os prendessem e que os atormentassem como se praticava naquele recinto; proibira aos homens que empregassem a violência uns para com os outros, asseverando que viera para dar a liberdade aos que a não tinham.

Longe porém de pensar em nada que a isto se assemelhasse estava o padre, que com a consciência tranquila, realizava todas as cerimónias.

É que, desde a infância, fora educado na convicção que tais cerimónias, eram a manifestação da única e verdadeira fé, aquela em que outrora todos os santos viveram e na qual, no tempo presente, acreditavam todas as autoridades, espirituais e temporais. Verdade é que não acreditava que a alma aproveitasse alguma coisa, pelo facto de repetir infinitas vezes palavras incompreensíveis, nem que o pão se transformasse em carne, nem que comendo esse pão comia um verdadeiro pedaço de Deus; porém, não podendo pensar em tudo isso, abstinha-se de o fazer, acreditando na necessidade de crer. Mas, o que lhe arraigava mais a crença era que havia dezoito anos, o cumprimento das cerimónias impostas por essa crença, produzia-lhe um rendimento graças ao qual sustentava sua família, trazia o filho no liceu e pagava à Escola normal a mensalidade para a educação das filhas.

A crença do diácono assemelhava-se a esta; a sua fé porém era mais sólida do que a do padre, pois esquecera completamente os dogmas da religião que servia, para reter apenas que as comunhões, batismos, enterros, orações simples e com acompanhamento, pagavam se segundo uma tabela fixa, que todo o cristão satisfazia sem murmurar; por isso os seus: «Tem piedade, tem piedade!» eram sempre ditos de boa vontade, e quer lesse ou cantasse, procedia sempre com tanta serenidade e tão tranquila confiança na necessidade das suas ações, como qualquer outro que tratasse de vender madeira, farinha ou batatas.

O diretor da prisão e todos os seus subordinados, posto que não conhecessem nem nunca tivessem querido conhecer os dogmas da fé que professavam, nem a significação das cerimónias que se realizavam na capela, acreditavam todavia que era indispensável possui-la e tomar parte em todas as cerimónias, porque as autoridades superiores, a principiar do Tzar, mostravam crer nela, e nunca faltavam às cerimónias do uso. Ainda mais. Confusamente, compreendiam que tal religião justificava a desumanidade dos cargos que exerciam, e que sem ela ser-lhes-ia difícil, senão impossível, consagrar a sua existência a atormentar os seus semelhantes, o que, graças a essa crença, faziam com a consciência tranquila.

O diretor, então, era um homem de tal honestidade e bondade, que nada neste mundo o obrigaria a prosseguir em tal vida, se não encontrasse apoio na religião. Era por isso que se conservava durante toda a cerimónia muito direito e imóvel, executando com o máximo cuidado todas as genuflexões e sinais da cruz, esforçando-se por comover-se quando se cantava o coro: «Glória dos querubins!» E como uma das crianças que comungava fosse tão pequenina que dificilmente, chegava à grade, ele, solicitamente, ergueu-a nos braços e assim a conservou até a consumação do ato.

Entre os presos, a maioria — excetuando alguns que compreendendo claramente o que havia de burla em tal religião, tinham deixado de crer, quer nela ou em qualquer outra — a maioria acreditava que as imagens douradas, os círios, os cálices, as casulas, as cruzes e essa infinita repetição dos «Meigo Jesus» e «Tem piedade», possuíam virtude mágica por intermédio da qual se podiam obter, quer nesta vida ou na futura, grande fartura de haveres.

Muitos, é verdade, tinham procurado obter esses haveres na vida presente, servindo-se das orações, cirios e missas; essas tentativas tinham falhado, as orações não tinham sido atendidas; eram infelicidades acidentais, pois uma religião que tantos homens de ciência confessavam e tantos metropolitanos aprovavam, não podia deixar de ser instituição de infinita vantagem, necessária não só para a felicidade da presente vida, como também para a da vida futura.

Era isto o que a Maslova também acreditava. Perdera a sua crença em Deus, mas continuava julgando indispensáveis as orações, sinais da cruz, e genuflexões. Mas, como todas as suas companheiras, durante os ofícios divinos, na concentração forçada, apenas sentira tédio.

A Maslova, que ficara em pé, na multidão dos prisioneiros, não via mais do que as costas das mulheres que lhe ficavam em frente; quando, porém, todas se inclinaram para beijar a mão e a cruz do padre, pôde observar os assistentes entre os quais o diretor e os carcereiros e atrás deles um homem com uma pequena barba e cabelos louros que reconheceu ser o marido da Fenichka, não despregando os olhos da mulher.


***


— Maslova! Ao parlatório! — disse um carcereiro, quando as mulheres saíam da igreja.

— Que sorte! — exclamou a Maslova, encantada com a distração que lhe aparecia.

Era com certeza Berta ou Clara que vinham vê-la, pensava. E, caminhando alegremente, enfiou pelo corredor fora, seguida por outras prisioneiras que vinham de ser chamadas igualmente.


Capítulo 11

 


I

 

Nekludov levantara-se igualmente muito cedo. Quando saiu em direitura a prisão, a cidade parecia ainda adormecida. Só um vendedor de leite, puxando de porta em porta uma carroçazita, lançava o pregão habitual: «Leite! Leite! Leite!»

Durante a noite caíra a primeira chuva branda da primavera e em toda a parte onde o chão não era empedrado, verdejava a erva. Nos jardins, as bétulas ornavam-se de uma penugem, esverdeada; as cerejeiras e os álamos desenrolavam as compridas e odoríferas folhas. Entretanto, abriam-se vagarosamente as portas das casas e, quando Nekludov atravessou o mercado dos objetos usados, já o encontrou cheio de gente. À volta das tendas, dispostas em fila, apinhavam-se homens e mulheres, apalpando, apressando, discutindo e regateando, casacos, coletes e calças.

Abriam-se também as tabernas, para as quais entravam operários em traje festivo, com botas muito engraxadas, contentes de poderem furtar-se um dia às fadigas da oficina; alguns faziam-se acompanhar por suas mulheres, de lenços de seda flamantes na cabeça e jaquetas ornadas de vidrilhos. Os polícias, em grande uniforme e com revólveres presos à cinta, conservavam-se imóveis às esquinas das ruas, na espectativa de algum sucesso para os distrair daquele aborrecimento. Nas avenidas dos jardins e por entre a relva húmida dos canteiros, corriam e brincavam crianças e cães, enquanto as amas, sentadas em grupos nos bancos, tagarelavam e riam ruidosamente. Das ruas elevava-se o ruído das carroças rodando no pavimento, a que se juntava o som e o eco da sinalhada das igrejas, chamando os fiéis para um ofício divino semelhante ao que estava sendo rezado na igreja da prisão e ao qual se dirigiam raros transeuntes em trajes endomingados.

Quando Nekludov chegou à prisão encontrou-a ainda fechada. A prisão ficava situada numa pequena praça, à direita da qual se erguia um baixo edifício de madeira, fronteiro a um outro de dois andares com uma bandeira a flutuar. Em frente da porta da prisão passeava uma sentinela de arma ao ombro. A cem passos daí, estacionava um grupo de homens e mulheres, quase todos com embrulhos nas mãos.

Na construção de madeira havia uma passagem por onde se entrevia um guarda de uniforme agaloado, tendo sobre os joelhos um livro de registos. Os visitantes tinham de se lhe dirigir para fazer inscrever o nome do presidiário com quem desejavam falar.

Nekludov aproximou-se e indicou Catarina Maslova.

— Porque é que ainda se não pode entrar? — perguntou.

— Está-se à missa. Logo que termine, a entrada será franqueada.

Nekludov aproximou-se do grupo dos visitantes. Nesta ocasião um homem de rosto fendido com rugas vermelhas, pês nus e coberto de farrapos, saiu do grupo e caminhou até à porta da prisão.

— Olá! onde vais tu? — perguntou-lhe o soldado, preparando a espingarda.

— O que é que estás tu a vociferar? — respondeu-lhe o esfarrapado, regressando lentamente; — então não queres deixar-me entrar? Melhor! esperarei! Mas é escusado vociferar como se foras general!

Uma gargalhada geral apoiou a facécia.

A maioria dos visitantes era gente pobre, vestindo singelamente, alguns até, esfarrapados: outros havia, contudo, que trajavam elegantemente. Junto de Nekludov estava um indivíduo trajando sobrecasaca, cuidadosamente barbeado, gordo e corado, trazendo nas mãos um pesado embrulho que parecia conter roupas. Nekludov perguntou-lhe se era a primeira vez que ele vinha à prisão. Não — respondeu ele, não era a primeira vez, porque vinha todos os domingos. E contou a Nekludov que era porteiro de um Banco e que vinha visitar um irmão condenado por falsificação. Quando, depois de haver narrado toda a sua vida, se preparava para exigir de Nekludov a retribuição semelhante, a atenção de ambos foi atraída pela chegada de um trem de praça, donde saíram um estudante, moço ainda, e uma senhora vestida de claro. O estudante, que trazia um grande embrulho dirigiu-se a Nekludov, perguntando se lhe permitiam distribuir pelos prisioneiros uma ração de pão alvo, que era o conteúdo do embrulho.

— Foi esta senhora, que é minha noiva, quem teve esta ideia, e seus pais no-lo aconselharam.

— É também a primeira vez que aqui venho e ignoro quais são os costumes; parece-me que anda bem em dirigir-se ali — respondeu-se Nekludov, mostrando, com o dedo, o guarda uniformizado, sentado a registar nomes.

De repente, abriu-se o forte portão de ferro, que déu saída a um oficial de grande uniforme, acompanhado por um guarda, com quem trocou palavras em voz baixa; este, em seguida, declarou que os visitantes podiam entrar.

A sentinela colocou-se a um lado e os visitantes precipitaram-se para a porta, como se receassem chegar tarde.

Por detrás da porta, um outro guarda ia contando em voz alta os visitantes que desfilavam na sua frente, para tornarem a ser contados ao fundo do corredor por um outro guarda que tocava nos braços de todos que passavam, antes de os deixar atravessar uma pequena porta. Adquiriam assim a certeza de que nenhum dos visitantes ficava na prisão, nem saía nenhum dos presos. Quando Nekludov passou, o guarda, embebido em cálculos, deu lhe um forte safanão, o que o irritou bastante, apesar da excelência das suas intenções. A portazinha pela qual passara dava para uma grande sala abobadada, com grades de ferro na janela. Nekludov atravessou-a de vagar, deixando passar à sua frente a vaga apressada dos visitantes. Agitava o uma repugnância instintiva pelos malfeitores ali encarcerados e compadecendo-se dos inocentes, como o gatunozito da véspera e como Katucha, que tinham de suportar aqueles companheiros, orgulhava-se, pensando na ação heroica que ia praticar.

Na extremidade da sala, um outro guarda prevenia os visitantes de qualquer coisa a que Nekludov, embebido em reflexionar, não prestou atenção.

Continuando a seguir o grupo que caminhava à sua frente encontrou-se no parlatório dos homens, quando devia ter-se dirigido ao das mulheres.

Como foi o último de todos a entrar no parlatório, ficou espantado com o ruído ensurdecedor produzido por muitas vozes falando ao mesmo tempo. Só compreendeu a causa que o motivava quando, chegado ao meio da sala viu que os visitantes se conservavam de pé, junto a um gradeamento, semelhante a um enxame de moscas ao redor de um pedaço de açúcar.

É que a sala estava dividida em duas partes por uma dupla rede de forte arame, distanciada uma da outra cerca de metro e meio. Neste intervalo andavam de um lado para outro dois soldados. Na parte oposta àquela por onde Nekludov entrara, estavam os prisioneiros separados dos visitantes por duas fortes redes e por uma distância de metro e meio, tornando-se impossível não só dar-lhes qualquer coisa, mas mesmo distingui-los quando não se dispusesse de muito boa vista.

A mesma dificuldade subsistia quando se pretendia falar de um para outro grupo, e para se entender qualquer palavra era necessário berrar.

E como todos desejassem ser ouvidos e como o alarido produzido por um fosse excedido pelo vizinho, o resultado era que todos berravam quanto podiam.

Era esta a causa do extraordinário clamor que chocara Nekludov ao entrar na sala, que teve de reconhecer ser-lhe impossível compreender uma única palavra e que só pela expressão dos rostos se adivinhavam as relações existentes entre os presos e os visitantes.

Junto de Nekludov estava uma velhita de lenço na cabeça, agarrada ao gradeamento e gritando para um forçado de cabeça rapada e ainda novo; o rapaz franzia as sobrancelhas e escutava atentamente. Seguia-se o esfarrapado que, pouco antes, tanto fizera rir a assistência, em frente à porta da entrada; conversava com um amigo, gesticulando, gritando e rindo. Junto a este, Nekludov viu sentada no chão uma mulher, decentemente vestida, com uma criança nos braços, chorando e soluçando tanto que nem forças tinha para erguer os olhos para o forçado que estava na sua frente, do outro lado da outra grade, de cabeça rapada e grilhões nos pês.

Quando Nekludov compreendeu que era desta forma que lhe permitiam falar com Katucha, sentiu-se invadido por indignação contra os inventores e autorizadores de tal suplício. Espantava-o que ninguém se indignasse contra uma instituição de tal modo horrorosa que afetava os mais sagrados sentimentos, e teve de reconhecer que os soldados carcereiros e os próprios detidos, estavam já habituados a esta maneira de realizar as entrevistas, considerando-a natural e inevitável. Nekludov permaneceu alguns minutos imóvel, acabrunhado pela consciência da sua fraqueza e dominado por uma sensação moral semelhante ao enjoo.

 


II

 

— Não importa! — disse consigo Nekludov. — É preciso que faça o que cá vim fazer! Mas a quem dirigir-me?

E procurou na multidão alguém que o informasse. Descobriu um homenzinho magro, vestindo uniforme com charlateiras. Nekludov dirigiu-se-lhe:

— Perdão, senhor — disse-lhe, com requintada amabilidade — poder-me-á indicar onde é a secção das mulheres e onde se poderá falar com uma delas?

— Quer então ir para o parlatório das mulheres?

— Sim, desejava falar com uma detida.

— Porque é que não o declarou quando passou na outra sala? Quem é que deseja ver? — acrescentou, suavizando a voz.

— Catarina Maslova,

— Presa política?

— Não, apenas...

— Então o quê? Detida? Condenada?

— Exato. Condenada desde anteontem — respondeu brandamente Nekludov, temendo destruir com uma expressão mais forte, a boa disposição em que via o funcionário.

Efetivamente os seus modos brandos pareceram influir no pequeno déspota.

— Vou mandá-lo conduzir ao parlatório das mulheres, posto seja proibido sair daqui antes da hora. Para outra vez não se engane. Sidorov! — disse, dirigindo-se a um carcereiro, coberto de medalhas — conduz este senhor ao parlatório das mulheres!

O carcereiro abriu a porta que estava fechada com dupla volta, atravessou o corredor e a sala abobadada, acompanhado por Nekludov e, enfiando por outro corredor, conduziu-o ao lugar indicado.

Este era em tudo semelhante ao dos homens, apenas de menores dimensões, com menos gente e com mais barulho. No intervalo entre os gradeamentos, passeava uma vigilante de uniforme com divisas nas mangas, canhões azuis e cinto da mesma cor fazendo as vezes de autoridade.

Repetia-se a mesma cena que Nekludov já presenciara: de um lado os visitantes dependuravam-se nas grades, vestidos todos diferentemente; do outro lado aglomeravam-se as detidas, a maioria vestindo de branco, com lenços da mesma cor na cabeça. E, a todo o comprimento da grade, não havia um único lugar vazio. Do lado das visitas a aglomeração era tal, que várias mulheres tinham de erguer-se na ponta dos pês, para poderem gritar por cima da cabeça daquelas que lhe ficavam em frente.

Nekludov pouco a pouco habituou-se a vozearia da sala, e não tardou em sentir a atenção atraída pela alta e magra figura de uma boémia que, no meio da sala do lado das prisioneiras, explicava, gesticulando e berrando, a um visitante de blusa azul, também um boémio, qualquer coisa que ele, de pé, escutava. Ao lado deste, um aldeão de barbicha loura, corava, esforçando-se por conter as lágrimas, escutando o que lhe dizia uma linda presa que estava em frente e que o fitava ternamente com grandes olhos azuis.

Era Fenichka e o marido.

Em seguida Nekludov examinou os rostos das prisioneiras encostadas às grades: a Maslova, porém, não estava lá. Adivinhou-a, oculta pela primeira fila. Estacou-lhe a respiração e sentiu redobrarem-lhe as pulsações do coração. Aproximava-se o momento decisivo.

Gostosamente abriu caminho até à separação e olhou em direção da Maslova.

Esta estava atrás da aldeã dos olhos azuis, sorrindo e escutando a conversa com o marido. Em vez do capote escuro que trazia no dia da audiência, vestia toda de branco. Por sob o lenço saíam-lhe os mesmos anéis de cabelo negro.

«É necessário tomar uma resolução — dizia — mas, como chamá-la? Se ela me visse!»

Ela porém não se lembrava de tal. Esperava a chegada de Berta ou Clara e não suspeitava que aquele elegante, era quem a procurava.

— Quem deseja ver? — perguntou a Nekludov a vigilante, detendo-se na sua frente.

— Catarina Maslova — respondeu com esforço Nekludov.

— Olá, Maslova! — chamou a vigilante — procuram-te!

 


III

 

A Maslova voltou-se, olhando em redor, com a cabeça e peito erguidos, o rosto exprimindo sempre a diligente solicitude que Nekludov outrora conhecera, e conseguindo enfiar-se entre duas presas fitou-o, interrogadora e surpreendidamente. Ainda porém não o reconhecera. Deduzindo do seu aspeto exterior que era um homem rico, sorriu-lhe.

— É a mim quem procura? — perguntou juntando às grades os olhos sorridentes e ligeiramente estrábicos.

— Sim, queria... — Nekludov estacou, sem saber se a deveria tratar por tu; decidiu ser um pouco cerimonioso.

— Cantigas! Bem me fio eu nisso! — gritou à direita um visitante esfarrapado.

— Tiraste-as ou não?

— Cada dia pior! Está a ir-se embora! — berrava outro à esquerda.

A Maslova não ouviu nada do que lhe disse Nekludov, mas enquanto ele falava, a expressão fisionómica fez com que julgasse reconhecê-lo, tão incertamente que em seguida pensou haver-se enganado.

Apesar disso, o sorriso desapareceu-lhe dos lábios e um vinco de sofrimento desenhou-se-lhe na testa.

— Não ouço nada do que está dizendo! — gritou do outro lado fechando os olhos e franzindo ainda mais a testa.

— Vim para...

«Sim, cumpro o meu dever, expio!» — dizia Nekludov, sentindo as lágrimas inundarem-lhe os olhos e sufocarem-lhe a garganta; compreendendo que à menor palavra que pronunciasse desataria a soluçar, calou-se, agarrando com os dedos o gradeamento.

— Cega seja eu se sei alguma coisa! — gritava uma prisioneira na extremidade da sala.

A emoção dera ao rosto de Nekludov uma expressão pela qual Maslova acabou de o reconhecer. Desvaneceram-se-lhe todas as dúvidas.

— Parece-me reconhecê-lo — disse sem erguer os olhos, enquanto um súbito rubor lhe inundava o rosto e as feições adquiriam uma gravidade anormal.

— Venho pedir-lhe perdão! — disse Nekludov, em vez monótona e alta, como se repetisse uma lição sabida de cor.

Quando acabou de pronunciar aquela frase, sentiu-se envergonhado e olhou em redor. No mesmo instante sentiu quão salutar era essa vergonha e que era dever continuar expor-se a ela.

Então, em voz tão alta quanto lhe foi possível, exclamou:

— Perdoe-me! Fui enormemente culpado para consigo!

Ela conservava-se imóvel, junto do gradeamento, sem o desfitar; Nekludov não teve forças para continuar e afastou-se, reprimindo os soluços que lhe abalavam o peito.

O carcereiro que o acompanhara havia ficado na sala, evidentemente seguindo com o olhar as minudências desta cena. Quando viu Nekludov afastar-se dirigiu-se-lhe perguntando-lhe porque é que não continuava a conversar.

Nekludov, assoando-se e querendo parecer tranquilo, respondeu:

— É impossível falar através destas separações. Não se ouve nada!

O carcereiro refletiu momentaneamente.

— Ouça! Talvez seja possível trazer aqui a presa. Mas sô por um momento — disse afinal. — Maria Karlovna! — gritou para a vigilante — mande aqui a Maslova para assunto grave!

Logo depois abriu-se uma porta ao lado dando saída à Maslova.

Caminhando brandamente, aproximou-se de Nekludov, para quem olhava sem erguer o rosto, que, apesar de doentio, tumefacto e pálido, era ainda agradável; parecia tranquila e só os olhos negros, sob as pálpebras inchadas, brilhavam desacostumadamente.

— Podem falar aqui um momento — disse o carcereiro afastando-se discretamente.

Nekludov sentou-se num banco fixo à parede.

A Maslova, que se conservara respeitosa diante do carcereiro, logo que o viu afastar-se sentou-se também no mesmo banco, com a saia um pouco erguida.

— Reconheço que lhe deve ser difícil perdoar-me — principiou Nekludov, detendo-se logo em seguida, como que a retomar coragem; depois continuou: — Se é impossível reparar o passado, estou contudo disposto a fazer presentemente o que me seja possível. Diga-me o que...

— Como é que conseguiu encontrar-me? — perguntou-lhe ela, sem responder à pergunta. E ora o fixava, ora olhava para o solo.

«Meu Deus! Auxilia-me! Diz-me o que devo fazer!», implorava Nekludov, espantado da reles e viciosa expressão que aquele rosto pálido manifestava.

— Anteontem, eu fazia parte do júri que a julgou — respondeu. — Não me conheceu?

— Não. Não vi ninguém nem tive ocasião de fazer observações.

— Diga-me, teve uma criança? — perguntou Nekludov, sentindo-se enrubescer.

— Graças a Deus, morreu logo! — respondeu a Maslova seca e maldosamente, desviando a vista.

— E de quê? Como assim?

— Eu quase que estava a morrer — continuou em voz tranquila.

— E porque é que minhas tias a despediram?

— Pois para que serve uma criada grávida? Logo que o notaram puseram-me na rua! Mas de que serve falar nisso? Já não me lembra nada; esqueci tudo! O que lá vai, lá vai! Tudo terminou!

— Não, não terminou! Quero resgatar o meu pecado!

— Não há nada que resgatar; o que está feito, está feito, e tudo acabado! — repetiu ela; e fitou-o sorrindo-lhe atraentemente.

Maslova estava longe de sonhar em rever Nekludov e muito menos nesta ocasião e naquele lugar. Daí proviera que ao vê-lo sentira-se magoada, forçada a recordar aquilo em que nunca mais pensara. Recordara, ao vê-lo, o maravilhoso mundo de sentimentos e de sonhos que o seu primeiro amor lhe revelara; recordara também como o amara, como ele a amara e como a abandonara cruelmente, fazendo-a sofrer esse calvário de humilhações e desgostos, logo em seguida a uma felicidade momentânea. E estas recordações eram-lhe insuportáveis.

Não tendo coragem para profundar a origem da sua dor recorria ao processo habitual: enterrava nas trevas da alma aquelas dolorosas recordações.

Ao rever Nekludov, Maslova tentou identificá-lo com o rapaz que amara outrora, mas renunciara imediatamente, porque isso era-lhe doloroso; desde então, passou unicamente a ver naquele cavalheiro bem vestido, de barbas cuidadosamente aparadas, um desses fregueses que se utilizavam das criaturas da sua espécie, que por sua vez procuravam extrair deles o mais que podiam. Fora por isso que lhe sorrira convidativamente; e agora calava-se, refletindo na melhor forma de o explorar.

— Sim — disse por fim — tudo acabou, e daqui para a Sibéria! — E não pôde deixar de estremecer pronunciando aquelas terríveis palavras.

— Eu sabia e estava certo que não era culpada! — disse Nekludov.

— Eu, culpada! Serei por acaso ladra ou envenenadora?

Calou-se um momento; depois continuou:

— Disseram-me que foi tudo por não ter um bom advogado e que agora é preciso apelar. E isto é caro... despesas... advogado...

— Não há dúvida — respondeu Nekludov. — Já falei com um advogado.

— Mas que seja bom... ainda que custe caro...

— Farei tudo que for possível.

Fez-se um novo silêncio. A Maslova sorria cada vez mais provocantemente.

— Queria pedir-lhe... se puder ser... algum dinheiro. Pouca coisa... aí uns dez rublos! Se puder ser... É quanto me basta.

— Porque não? — respondeu Nekludov, sentindo-se perplexo e procurando a carteira.

A Maslova, olhando rapidamente para o carcereiro que passeava na sala para trás e para a frente, disse:

— Repare que ele não veja dar-me o dinheiro, senão tira-mo!

Nekludov escolheu uma nota de dez rublos e como o carcereiro se voltasse na ocasião em que ia a passar a Maslova, amarrotou-a na mão.

«Esta mulher está morta», dizia Nekludov, examinando-lhe o pálido e balofo rosto, cujos olhos brilhantes espiavam alternativamente o carcereiro e a mão que conservava os dez rublos.

E Nekludov sentiu-se momentaneamente desfalecer.

A voz do tentador que na antevéspera escutara, de novo se ergueu, tentando desviá-lo do que devia fazer, para só pensar nas consequências do que ia praticar. «Nunca farás nada dessa mulher!» dizia o tentador; «vais atar uma pedra ao pescoço para mais facilmente te afogares, impedindo-te de seres útil aos outros. Dá-lhe dinheiro! Isso! Todo o que tens na carteira! Agora diz-lhe adeus, e põe ponto final!»

Neste momento supremo, Nekludov compreendeu que se debatia numa crise definitiva e que, estando em frente de dois caminhos, não havia hesitação possível; bastava seguir aquele que já escolhera. Era este o instante decisivo de que dependeria toda a sua vida futura, e para a que necessitava tentar o último esforço.

Invocando o Deus que na antevéspera sentira tão claramente no coração, resolveu falar abertamente e imediatamente à Maslova.

— Katucha! Vim aqui para pedir-te perdão! Tu não me respondeste: não me disseste se me perdoavas ou se algum dia me perdoarás.

Ela porém não o escutava; continuava espiando o carcereiro e os dez rublos. Quando aquele virou costas, com um gesto rápido estendeu a mão e apoderando-se da nota, escondeu-a na cinta.

— É curioso o que está a dizer! — respondeu, somado de tal modo, que Nekludov sentiu náuseas.

Este sorriso deu-lhe a impressão de que o odiava e que nunca conseguiria penetrar no íntimo da alma.

Porém, sem que soubesse explicar, esta impressão em vez de o afastar da Maslova, prendia-o ainda mais estreitamente. Reconhecia como seu dever conseguir despertar aquela alma e sentindo a terrível dificuldade que tinha a vencer, era essa mesma dificuldade que mais o atraía.

Pela primeira vez sentiu pela Maslova um sentimento que até então nunca se lhe manifestara por ninguém; não desejava nada pessoalmente, desejava só vê-la cessar de ser o que era, para voltar a ser o que fora.

— Katucha, porque me falas assim? Sabes que sei que tu és e que me recordo do tempo passado, em Panofka...

— Águas passadas não moem moinhos — respondeu ela secamente.

— Se o relembro é porque desejo reparar e resgatar o meu crime! — respondeu Nekludov.

Ia a sair-lhe dos lábios a declaração que se prontificava a casar com ela, quando ergueu os olhos e momentaneamente fitou os dela; o que eles diziam era tão grosseiro e repugnante que as palavras morreram-lhe nos lábios.

Um momento depois ouviu-se o toque de saída e Nekludov foi prevenido de que a entrevista não podia continuar. A Maslova levantou-se, intimamente satisfeita por se ver livre dele.

— Adeus, ou antes, até à vista, porque voltarei a fim de te dizer coisas importantíssimas e que necessitam ser ditas — disse-lhe Nekludov estendendo-lhe a mão.

— Pois venha, que me será agradável — respondeu ela, empregando o convidativo e prometedor sorriso com que se dirigia aos «fregueses» habituais.

— És para mim mais que uma irmã!

— O quê? — respondeu ela sem se mostrar surpreendida e entrando para a prisão.

 


IV

 

Nekludov imaginara sempre que, quando Katucha o tornasse a ver arrependido e pronto a reparar o erro cometido se regozijaria, e voltaria a ser outra vez a mesma Katucha.

Com enorme surpresa, constatara que Katucha já não existia e que em seu lugar estava a Maslova.

E, o que ainda mais o surpreendia, era que Katucha não só não se envergonhava de ser uma prostituta — quando se envergonhava de ser uma prisioneira — não só não se envergonhava da sua atual condição mas até se mostrava altiva e aparentava felicidade.

O caso, porém, não era para espantos.

Todos nós que nos entregamos a uma atividade qualquer, necessitamos considerá-la importante e razoável, para podermos trabalhar; resulta pois que seja qual for o nível em que se estacione um ser humano, esse ser forma uma conceção da vida, em que necessariamente a sua ocupação é considerada necessária e razoável.

Imagina-se a maior parte das vezes que um ladrão, traidor, assassino ou prostituta se envergonha da profissão que exerce, ou pelo menos a considera má. Na realidade tal facto não se dá.

Os homens a quem o destino ou os pecados colocaram em situação definida, por mais imoral que ela seja, arranjam a conceber a vida em geral, de forma que a sua situação anormal, lhes apareça como legítima e admissível. Para conservar este modo de ver, apoiam-se instintivamente aos que se encontram nas mesmas condições, aos que concebem a vida em geral com o mesmo critério e que ocupam igualmente situações claras mas anormais.

Admiramo-nos de ver ladrões jactando-se da sua habilidade, prostitutas da sua corrupção e assassinos da sua insensibilidade.

Se, porém, nos admiramos, é porque estas espécies de indivíduos são restritas, e porque se movem em círculos e em atmosferas que não têm contacto com os nossos. Já não nos surpreende, por exemplo, ver homens ricos orgulharem-se da sua riqueza; — isto é, de roubo ou de usurpação — ou ainda ver os poderosos orgulharem-se do seu poder, o que significa violência e crueldade. Não notamos a maneira como a conceção natural da vida é desvirtuada por esta gente, assim como o é a primitiva significação de bem e de mal, e não só o não notamos, como não nos admiramos.

E isto unicamente porque o número daqueles que partilham essa perversa conceção é grande, e porque nos achamos compreendidos nesse número.

A Maslova arquitetara uma conceção desta espécie, da vida universal e da sua vida particular. Caída na prostituição mais abjeta, condenada a trabalhos forçados, concebera a vida de forma que lhe justificasse a conduta e permitisse mesmo orgulhar-se da sua situação.

A conceção fundamental do seu modo de ver, baseava-se em que a principal felicidade de todos os homens sem exceção — velhos e novos, ricos e pobres, instruídos ou analfabetos — era a posse corporal da mulher. Era indiscutível para a Maslova que todos os homens, ainda quando ocupados por outros pensamentos, só almejavam o seu corpo. Ora como sabia que era interessante e que podia ou não satisfazer, segundo a sua vontade, os desejos dos homens, considerava-se uma individualidade importante e necessária.

Tal era a conceção que formara da vida, que toda a sua experiência, passada e presente, confirmava plenamente.

Há dez anos que não via senão homens atormentados pela ânsia de a possuírem, em qualquer parte em que se encontrasse.

Talvez tivesse cruzado no caminho de vida com homens estranhos a essa ansiedade; estes, nunca os notara. Sintetizara o mundo como um conjunto de homens desejosos do seu corpo, esforçando-se por possuir quer por sedução, violência, astúcia ou compra. A Maslova afeiçoara-se tanto mais a esta conceção da vida, quanto sentia instintivamente que perderia a importância que se atribuía se a abandonasse. Assim, para a conservar, ligava-se cada vez mais com aqueles que concebiam a vida sob o mesmo ponto de vista. Provinha daí o excesso de cuidado que empregava em expulsar do coração as recordações da sua primeira mocidade, que diferiam do seu atual modo de ver; com certeza não conseguira isto completamente, mas fora até recalcá-las nas profundezas do coração, onde se iam desvanecendo, entaipadas como as abelhas costumam entaipar, com camadas, de cera, os ninhos dos insetos que conhecem como destrutores dos seus cortiços. Recusara por isso ver em Nekludov o homem que amara casta e inocentemente, para o considerar unicamente como um freguês rico, um homem que era obrigação explorar e com o qual deveria manter relações em tudo semelhantes às dos demais fregueses. «Não, não pude dizer-lhe hoje o que era mais importante? Quase que não pude falar!» — dizia consigo Nekludov, saindo dentre a turba dos visitantes. «Fica para a próxima visita o dizer-lhe tudo!» Na sala imediata, dois carcereiros contavam, de novo os visitantes para não haver trocas. Quando Nekludov passou, nem sequer notou que de novo lhe tocavam bruscamente no ombro.


Capítulo 12

 

Nekludov tinha resolvido, logo em seguida ao encontrar Katucha nos bancos dos réus, mudar por completo o seu modo de viver; projetara alugar a casa que habitava, despedir a criadagem e passar a viver como um estudante.

Agripina Petrovna convenceu-o que era loucura realizar a mudança antes do inverno; ninguém alugaria um casarão daqueles durante o verão, e do mesmo modo seria impossível vender o mobiliário. Era, pois, necessário conservá-lo em algures e não podia estar melhor do que em casa. Nekludov não pôde por isso executar de pronto a resolução que tomara.

E, não só continuou tudo a seguir o caminho habitual como até a casa se encheu de nova atividade. Tudo que era mobiliário, roupas e peles, foi tirado dos seus lugares para ser espanejado e escovado, trabalho em que tomaram parte todos os criados: o porteiro e o ajudante, a cozinheira e Korney o lacaio. Nekludov viu abrirem-se guarda-roupas e estenderem-se em cordas, quantidade de casacos, calças, uniformes, peliças e outras peças de vestuário, que mais ninguém usaria; assistiu ao despregar dos tapetes, e à mudança dos móveis de um para outro aposento, tudo seguido de inúmeras limpezas, e suportou o cheiro da naftalina que em toda a parte se achava espalhada. Espantou-o a descoberta que fez da enorme quantidade de objetos inúteis que conservava. «A única coisa para que tudo isto serve, pensava Nekludov, é para dar à criadagem ocupação em que entretenha o tempo! Quanto ao mais, não serve de nada alterar o meu modo de viver, enquanto se não decidir a sorte de Katucha. Tudo depende de que o destino lhe dê liberdade ou a condene à Sibéria, porque neste caso hei de acompanhá-la!»

No dia indicado pelo advogado Fainitzin, Nekludov foi procurá-lo. A casa que ele habitava era enorme e luxuosa, adornada com plantas raras, magnificas cortinas nas janelas e mobilada ricamente, ainda que com mau gosto, como sucede em casa de pessoas enriquecidas rapidamente, sem trabalho e sem escrúpulos.

Na sala de entrada, uma dúzia de clientes esperava vez, como nos dentistas, entretendo-se com a leitura dos jornais ilustrados antigos.

O secretário do advogado, sentado em frente de uma imponente secretária, na extremidade da sala, reconheceu Nekludov e dirigiu-se-lhe, dizendo que ia informar o seu chefe da presença do príncipe.

Neste mesmo instante a porta do gabinete de Fainitzin abriu-se e o advogado em pessoa apareceu, conversando animadamente com um homem gordo, ainda novo, de nariz encarnado e vestindo roupa nova. As feições de ambos exprimiam o contentamento de haverem terminado um bom negócio, não muito liso, mas um bom negócio.

— É culpa sua, paizinho! — dizia o advogado sorrindo.

— Estaríamos todos no céu, se não fôssemos pecadores!

— Sim, sim, bem sei isso.

E riam ambos afectadamente.

— Oh! Príncipe Nekludov, por quem é... faça favor de entrar! — disse Fainitzin vendo Nekludov; e conduziu-o para o gabinete, mobilado simples mas ricamente.

— Quer fumar? Esteja à vontade! — continuou o advogado, sentando-se em frente de Nekludov e esforçando-se por reprimir o sorriso que a recordação do excelente negócio que fizera lhe fazia acudir aos lábios.

— Obrigado — respondeu Nekludov. — Vim cá por causa do processo de Maslova.

— Ah! Sim, sim! Mas que patifes que são estes sacos de dinheiro! Reparou neste que agora saiu? Pois imagine que possui doze milhões de rublos e que ninguém é capaz de lhe arrancar, ainda que seja com os dentes, a mais insignificante nota de vinte e cinco rublos!

E dizia tudo isto familiarmente como para dar a entender a Nekludov, que eles pertenciam a uma sociedade, com a qual nem o cliente antecedente nem nenhum dos que esperavam na sala, tinham absolutamente nada.

— Desculpe-me, mas aquele patife irritou-me os nervos! Necessito desafogar! — continuou Fainitzin, como desculpando-se de falar em coisas que não tinham referência com os negócios a tratar. — Tratemos agora do seu caso. Estudei cuidadosamente o processo e infelizmente o outro advogado deixou passar os motivos para apelação.

— E o que é que resolveu?

— Falo já. Diga-lhe — declarou ele ao secretário, que entrara na ocasião e lhe entregara um bilhete de visita — diga-lhe que é o que já lhe disse; se pode, muito bem; se não pode, nada feito.

— Diz que é impossível aceitar tais condições.

— Então nada feito! — retorquiu Fainitzin; e as feições assombrearam-se-lhe malevolamente. — Diz-se que os advogados ganham dinheiro sem trabalho! — continuou, dirigindo-se a Nekludov. — Ora imagine que consegui livrar um devedor insolvente de uma ação que estava em riscos de perder e agora fedas nas mesmas condições se dirigem a mira! Mal imagina o trabalho que só isto me dá! Mas é necessário ganhar o pão! Voltando ao seu processo, ou antes ao processo que o interessa, como lhe disse foi abominavelmente dirigido. Motivos reais para apelação, não há; mas talvez se lhe possa pegar! Eis aqui a minuta do agravo que redigi para lhe mostrar!

Pegou num papel que estava na mesa e começou a lê-lo em voz alta, passando muito rapidamente pelas fórmulas usuais para insistir noutros pontos:

— Agravo apresentado ao tribunal do Senado, etc., etc... contra o veredictum do tribunal criminal, etc., que condenou Catarina Maslova à pena de..., etc., etc., em virtude dos artigos, etc., etc.

Deteve-se, erguendo os olhos para Nekludov. É que, por muito habituado que estivesse, não podia furtar-se ao prazer de escutar o belo documento que produzira.

— Esse veredictum — recomeçou — parece-nos ter procedido de ilegalidades e erros tão graves, que não pode ser mantido. Em primeiro lugar, a leitura da autópsia do negociante Smielkov foi interrompida pelo juiz presidente antes de terminar.

— Mas foi a acusação que exigiu essa leitura! — disse Nekludov com surpresa.

— Não importa! A defesa poderia ter-se apoiado nela.

— Mas se era inútil para qualquer das partes!

— É em todo o caso um motivo para apelar. Continuemos: Em segundo lugar o defensor de Catarina Maslova foi interrompido pelo juiz presidente quando, para caracterizar a personalidade da sua constituinte, expunha as razões íntimas que lhe haviam motivado a queda, com o fundamento de sair fora dos debates. Ora, por mais que uma vez, o Senado tem insistido na importância considerável que nas causas crimes, tem a análise psicológica de um caráter, para a avaliação precisa do grau de criminalidade. Temos por consequência, dois! — disse o advogado olhando novamente para Nekludov.

— É que o advogado falava tão desastradamente, que ninguém compreendeu o que ele queria dizer!

— Não duvido! É um papalvozito que só sabe dizer tolices. O caso é que façamos daí um outro motivo para o agravo. Vamos à continuação: Em terceiro lugar, o presidente, em oposição ao artigo... do Código Criminal não explicou aos jurados que podiam declarar, que a Maslova deitando os pós no líquido do negociante Smielkov, o fizera sem intenção de matar. O resultado foi ter sido pronunciado o veredictum do qual se apela, quando é certo que se o presidente lhes houvesse lembrado essa restrição, haveria probabilidades de que o ato cometido pela Maslova seria classificado como homicídio involuntário e não como assassinato. É esta a principal base!

— Mas isso devíamos tê-lo compreendido, sem que no-lo explicassem! Somos os responsáveis do erro cometido!

— Quarto e último: a resposta dos jurados está redigida contraditoriamente. Reconheceram-na como não culpada de ter roubado o negociante, ao passo que a criminavam de o haver envenenado; do que resulta, como pensamento não expresso, que a detida ministrou efetivamente o veneno a Smielkov, sem intenção de o matar, pois que de outro modo só o roubo poderia explicar a razão do assassinato. Além disso, tal resposta do júri achava se incursa no art.º 817, pelo que o presidente devia mostrar aos jurados o seu erro e obrigá-los a formularem outra resposta mais explícita.

— E porque é que ele o não fez? — interrogou Nekludov.

— Isso é lá com ele — respondeu o advogado.

— Parece-lhe que o Senado faça justiça?

— Conforme os senadores que julgarem o agravo... Ouça agora a conclusão.

E Fainitzin leu o final, em que apoiando-se em vários artigos do Código e na exposição precedente, pedia que a sentença fosse anulada e o processo julgado por um outro tribunal.

— E é o mais que se pode fazer! — disse, ao terminar. — Confesso-lhe francamente que as probabilidades a nosso favor são poucas e que tudo depende de quem julgar. Se tem alguma influência nessas alturas é tratar de a empregar.

— Estou bastante relacionado com várias pessoas influentes.

— Então depressa, antes que esses senhores vão tratar das suas doenças, para não ter de esperar três meses. Se formos mal sucedidos ainda temos a apelação para Sua Majestade. Então é que é necessário manejar as influências. É escusado dizer-lhe que estou sempre pronto para o auxiliar quer redigindo o memorial, quer utilizando as minhas relações.

— Mil vezes obrigado... E sobre os seus salários...

— O meu secretário dar-lhe-á cópia desta petição e a nota da despesa.

— Ainda tenho outra coisa a perguntar-lhe. Tenho licença para ver a condenada na prisão, mas desejava conversar noutros dias que não os da visita, e noutra parte que não fosse o parlatório geral. De quem posso obter tal autorização?

— Do governador. Este, porém, está ausente e é o vice-governador que o substitui. É um idiota completo, de quem duvido que consiga qualquer coisa.

— É Maslinnikov? Conheço-o perfeitamente! — disse Nekludov, erguendo-se para despedir-se.

Enquanto Nekludov conversava com o advogado, entrara na saía de espera, com passo rápido, uma mulherzita medonhamente feia, ossuda e de rosto amarelecido, com nariz achatado. Era a esposa de Fainitzin. Sem se importar com a sua fealdade, vestia luxuosamente sedas, veludos e rendas, e usava o raro cabelo que lhe restava penteado pretensiosamente. Caminhava acompanhada por um homem alto e magro, de rosto lívido, vestindo rabona guarnecida de seda e gravata branca, que Nekludov conhecia como escritor.

— Anatole! — disse ela ao marido entreabrindo a porta do gabinete. — Simão Ivanovitch está aqui. Esperamos-te no salão; traz o teu estudo sobre Garchine, que ele trouxe o poema.

Nekludov quis despedir-se, mas ela dirigiu-se-lhe:

— É ao príncipe Nekludov que... Há muito que o conheço de nome. Dá-nos a honra de assistir à nossa reunião literária? Será interessantíssima! Anatole lê maravilhosamente!

— Veja que diversas são as minhas ocupações! — disse o advogado sorrindo e apontando para a mulher, significando que não se podia recusar nada a criatura tão sedutora.

Nekludov agradeceu delicadamente e recusou um pouco friamente, dizendo que não lhe era possível aceitar tão penhorante convite.

— Que presumido! — disse a mulher do advogado, logo que ele saiu.

Na sala próxima o secretário entregou a Nekludov a cópia da petição e quanto a respeito de salários disse-lhe que Anatole Petrovich os fixara em mil rublos, acrescentando como explicação que Fainitzin não costumava encarregar-se desta espécie de trabalhos e que só por condescendência tomara conta daquele.

— E quem deve assinar a petição? — perguntou Nekludov.

— A condenada, se o puder fazer; senão Anatole Petrovich por procuração.

— Não, eu levo-lha para ela assinar — disse Nekludov, contente do pretexto que no dia imediato lhe serviria para se explicar com Katucha.


Capítulo 13

 

À hora habitual ressoaram nos corredores da prisão os assobios dos carcereiros, as portas chapeadas de ferro abriram-se, principiou a ouvir-se o ruído de pês andando, e nos corredores espalhou-se o fétido dos potes das dejeções, conduzidos pelos prisioneiros para os esgotos; os presos vestiram-se, assistiram à chamada e em seguida sentaram-se nas camas tomando chá.

Nesse dia, a conversa durante o almoço estava animadíssima em todas as salas: versava sobre o caso do dia, as vergastadas que iam ser aplicadas a dois detidos. Um deles era um rapaz inteligente e instruído, chamado Vassiliev, condenado por haver assassinado a amante num acesso de ciúme. Todos os seus companheiros de prisão o estimavam pela alegria e liberalidade que sempre o acompanhavam e pela maneira firme como procedia com as autoridades da prisão; conhecendo bem o regulamento interno, não admitia que o transgredissem. Conseguira com isto que carcereiros e mais empregados não o vissem com bons olhos.

Três semanas antes, um carcereiro batera num preso, que ao passar lhe entornara um pouco de caldo no uniforme novo. Vassiliev interviera a favor do seu companheiro, dizendo que o regulamento proibia bater nos prisioneiros.

— O regulamento? Ora espera que eu ensino-te o regulamento! — respondera o carcereiro, principiando a insultar Vassiliev. Este respondeu-lhe do mesmo modo, e quando o carcereiro se preparava para também lhe chegar, Vassiliev agarrara-lhe as mãos, conservara-o imóvel por alguns segundos, e em seguida expulsara-o da sala. O carcereiro queixou-se e o inspetor condenou Vassiliev ao segredo.

O segredo consistia numa espécie de células escuras, fechadas exteriormente por dupla fechadura.

Dentro não havia nem cama, nem mesa, nem cadeira o que obrigava os presos a sentarem-se e a deitarem-se no chão imundo, onde por entre a escuridão e o frio, corriam tantos e tão atrevidos ratos, que chegavam a ir roubar o pão das mãos dos condenados.

Vassiliev declarara que não iria para o segredo, porque não o merecia. Empregaram a força e ele lutou, ajudado por dois outros detidos, até que conseguiu escapulir-se.

Afinal, a pedido dos carcereiros acorreram reforços, entre eles o chamado Petrov, conhecido pela sua força, e os rebeldes foram agarrados e metidos no segredo. O inspetor deu-se pressa em redigir um relatório em que informava o governador do que ele chamava um começo de insubordinação e em resposta veio a ordem condenando os dois principais culpados, Vassiliev e um vadio chamado Népoumiak, a receberem trinta vergastadas.

Era no parlatório das mulheres que, nessa manhã, os condenados deviam receber o castigo.

Desde o dia anterior que toda a prisão sabia do caso e por isso nas diversas salas, à hora do almoço, não se falava noutro assunto.

Sentadas no canto predileto, a Korableva, a Bela, Fenichka e a Maslova falavam excitadas e animadas pela aguardente que já tinham bebido e que, graças ao dinheiro da Maslova, corria abundantemente. Enquanto bebiam o chá conversavam das vergastadas.

— Ele não se amotinou — dizia a Korableva, trincando com os fortes dentes um pedaço de açúcar. — Nada mais fez do que defender o companheiro. Já ninguém tem direito a bater nos presos!...

— Dizem que é um rapaz muito novo e valente — disse Fenichka, que estava com as compridas tranças enroladas à volta da cabeça, vigiando a chaleira colocada ao lado.

— Tu é que podias falar-lhe do desgraçado, Mikhailovna! — disse a guarda-linha, dirigindo-se à Maslova.

O lhe era Nekludov.

— Com certeza que hei de falar. Está pronto a fazer o que eu quiser! — respondeu a Maslova sorrindo vaidosamente.

— Sabe Deus quando ele voltará, e parece que já foram buscar Vassiliev — disse Fenichka. — É horroroso — acrescentou, suspirando.

— Uma vez vi eu vergastar um mujique, lá na comuna. Eu ia a casa do sogro do chefe da estação, e quando cheguei à aldeia...

E a guarda-linha principiou uma história muito longa.

No andar superior ouviam-se vozes e o ruído de passos, o que fez interromper a história principiada. Calaram-se todas com o ouvido à escuta.

— Lã o vão levar — disse a Bela, quebrando o silêncio. — Matam-no, com certeza! De mais a mais os carcereiros estão furiosos por ele não os deixar fazer o que eles querem!

No andar superior fizera-se silêncio: A guarda-linha recomeçou a história de como à sua vista tinha sido vergastado o mujique, o que fizera com que se lhe revoltassem os intestinos. A Bela contou como Cheglov sofrera as chicotadas sem murmurar uma queixa. Em seguida Fenichka serviu o chá; a Korableva e a guarda-linha recomeçaram a costura e a Maslova estendeu-se na cama, com os joelhos erguidos.

Dispunha-se a dormir para ver se passava o aborrecimento, quando a vigilante entrou, prevenindo-a para ir à secretaria falar com quem a procurava.

— Não te esqueças de lhe falar em nós — disse-lhe Menshova, a velha devota, enquanto ela compunha o cabelo diante de um espelho, cujo aço quase desaparecera. — Diz-lhe que não fomos nós que deitámos o fogo, mas sim o próprio taberneiro, e que há um trabalhador que o viu. Diz-lhe também que peça para ver Mitri. Mitri explicar-lhe-á tudo, tal qual foi. Lembra-lhe que enquanto nós, que nada fizemos, estamos aqui presas, o outro, o patife, está na taberna a divertir-se com uma mulher que lhe não pertence e que o meu velho não tem em casa quem lhe cate os piolhos.

— Eu digo, eu digo tudo! — respondeu a Maslova. — Vá, mais uma pinga para dar coragem! — acrescentou.

A Korableva encheu-lhe um copito de vodka. A Maslova bebeu-o de um trago, limpou a boca, e sorrindo alegremente como quando pedira de beber «para ganhar coragem» seguiu a vigilante que a esperava no corredor.


Capítulo 14

 


I

 

Nekludov, que chegara cedo à prisão, esperava havia muito.

Logo que chegara tinha mostrado a um carcereiro a autorização escrita que possuía.

— Agora é impossível — respondeu-lhe ele. — O diretor está ocupado.

— Na secretaria? — perguntou Nekludov.

— Não, aqui no parlatório! — respondeu o carcereiro, levemente constrangido.

— É dia de visitas hoje?

— Não, é um outro assunto.

— Então como conseguirei falar-lhe?

— Basta esperar aqui, e quando passar...

Momentos depois, Nekludov viu entrar no vestíbulo onde se achava, um empregado de uniforme com galões faiscantes, bigodes frisados, todo ele muito vivo, que ao vê-lo interrogou severamente o carcereiro.

— Para que permite que esteja aqui gente? Mande entrar para a secretaria!

— Disseram-me que o diretor, com quem necessito falar, devia passar aqui — disse Nekludov, intervindo e surpreso de notar nas feições deste, o mesmo constrangimento que surpreendera no carcereiro.

Neste momento a porta que se abrira à passagem do empregado com quem Nekludov agora falava, abriu-se de novo, e um carcereiro, de estatura colossal, excitado e a suar, entrou.

Era Petrov, o de força hercúlea.

— há de servir-lhe de lembrança! — disse, dirigindo-se ao empregado.

Este, com um aceno de cabeça, indicou-lhe o estranho, e Petrov sem dizer mais nada, saiu pelo lado oposto.

— A quem e o que é que há de servir de lembrança? Porque parece toda essa gente tão constrangida? — perguntava Nekludov a si mesmo.

— Aqui ninguém pode esperar! Queira ir para a secretaria! — disse-lhe o empregado.

Nekludov preparava-se para executar essa ordem, quando viu entrar pela mesma porta, o diretor da prisão. Este parecia ainda mais constrangido que os seus subordinados. Uma profunda emoção transtornava-lhe as feições.

Nekludov dirigiu-se-lhe, mostrando a permissão.

— Fedovot! — exclamou o diretor, chamando por um dos carcereiros — vai buscar a Maslova à sala n.º 5 das mulheres. Leva-a para o gabinete dos advogados.

— Dá-me licença que o acompanhe — disse dirigindo-se a Nekludov.

Subiram por uma escadaria de caracol, que findava numa pequena sala mobilada com uma mesa e algumas cadeiras.

O diretor sentou-se.

— Terríveis deveres, terríveis deveres! — disse, suspirando e tirando um cigarro da cigarreira.

— Parece que está cansado? — perguntou Nekludov.

— Cansado e farto deste serviço! São deveres muito pesados, muito pesados! Quer-se suavizar a sorte destes desgraçados, e tudo o que se faz só serve para a piorar! Se ao menos pudesse abandonar isto! É muito, muito duro!

Nekludov ignorava em que consistiam as dificuldades do serviço do diretor; ainda que o não conhecesse, pareceu-lhe que um sofrimento excecional e uma desanimadora e triste disposição o dominavam.

— Não duvido que seja erriçado de dificuldades o cargo que desempenha — disse-lhe. — Mas se o incomoda a tal ponto, porque é que o não abandona?

— A falta de meios, a família...

Deteve-se um momento. Depois continuou:

— Mas há mais ainda; porque eu, no limite das minhas forças, faço o possível para suavizar a sorte destes desgraçados, o que até certo ponto consigo, enquanto um outro no meu lugar, tratá-los-ia de modo muito diverso! Parece-lhe que seja pequeno encargo dirigir perto de 2000 pessoas desta espécie? É preciso saber como proceder! Não se pode esquecer que são nossos semelhantes a quem devemos lastimar, mas é preciso não ser brando, aliás está tudo perdido.

E o diretor encetou a narração de uma aventura recente; uma desordem entre dois presos, que findara com a morte de um deles.

A meio da narração entrou a Maslova, acompanhado pelo carcereiro.

Nekludov viu-a no limiar da porta, antes que ela desse pela presença do diretor. Caminhava atrás do carcereiro com vivacidade, o rosto empurpurecido e ardente, sorrindo e acenando com a cabeça. Quando viu o diretor deteve-se momentaneamente, como que assustada; recobrando ânimo dirigiu-se alegremente a Nekludov.

— Bons dias — disse-lhe sorrindo e apertando-lhe fortemente a mão, em vez do ligeiro cumprimento anterior.

— Trouxe para assinar, a petição de agravo — disse Nekludov admirado de a ver tão animada. — Foi redigida por um advogado e é só assiná-la para ser enviada para S. Petersburgo.

— Pois então toca a assinar! Não custa nada!

E sorria, enquanto um dos olhos pestanejava mais que o usual.

Nekludov tirou do bolso a folha de papel e aproximou-se da mesa.

— Pode assinar-se aqui? — perguntou ao diretor.

— Vá, senta-te! — disse este à Maslova. — Aí está pena e tinta. Sabes escrever.

— Em tempos soube! — respondeu ela, sorrindo para Nekludov.

Em seguida, erguendo um pouco a saia e enrolando as mangas, sentou-se à mesa, agarrou com a pequena e forte mão a pena, e voltando-se para Nekludov, sempre a sorrir, perguntou-lhe o que devia fazer.

Este explicou-lhe sumariamente onde e como devia assinar.

— Nada mais? — perguntou ao terminar, fixando alternativamente Nekludov e o diretor.

— Ainda tenho que te dizer — respondeu Nekludov, tirando-lhe a pena da mão.

— Nesse caso, diga!

Súbito, o rosto tornou-se-lhe grave, como se em espirito relembrasse o passado, ou como se a atacasse a sonolência.

O diretor levantou-se e saiu. Nekludov ficou só com a Maslova.

 


II

 

Chegara, enfim, para Nekludov, o momento decisivo. Desde a primeira entrevista que incessantemente se censurava por não lhe dizer o principal, o desejo que tinha de, esposando-a, expiar o erro que cometera. Mas, agora, havia de dizer tudo, custasse o que custasse!

Sentou-se em frente dela no lado oposto da mesa, bem resolvido a executar a resolução tomada.

O gabinete em que se achavam era rasgadamente batido pelo sol. Nekludov, pela primeira vez, pôde examinar à vontade o rosto da Maslova, no qual apareciam já, à volta dos olhos «pês de galinha» e rugas nos cantos da boca. As pálpebras tumefactas davam ao conjunto um precoce aspeto de fadiga e degradação. Nekludov sentiu-se invadido pela tristeza e aumentou-lhe a compaixão.

Colocando-se de modo a não ser ouvido pelo carcereiro que o conduzira e que se sentara junto da janela, na outra extremidade do gabinete, Nekludov curvou-se para a Maslova e disse-lhe:

— Se o agravo não der resultado, recorreremos para o imperador. há de fazer-se tudo que for possível.

— Que pena não ter aparecido há mais tempo! Eu teria tido um bom advogado, e não um imbecil, que foi o causador de tudo. Agora todos me felicitam, por sua causa! — disse ela, desatando a rir. — Ah! se no julgamento soubessem que me conhecia, o caso teria corrido de outra maneira! Assim, diziam lá eles, «não é mais que uma ladrai»

— «Quão diferente está da outra vez !» — dizia Nekludov, preparando-se para encetar o assunto principal.

Ela, porem, recomeçou:

— Ouça o que lhe quero dizer... Há lá na sala uma velha que faz admirar todos que a conhecem. É tão extraordinária que com certeza, não há outra igual! Ela e o filho foram condenados, nem Deus sabe porquê! aqui, todos dizem que eles estão inocentes ainda que os acusem de fogo posto. A velha ao saber quem me vinha visitar, disse-me: «Pede-lhe que fale com o meu rapaz, que lhe explicará o caso todo!» Eles chamam-se Menshovs! E a velha é tão simpática! Vê-se logo que está inocente. Não é verdade, meu amor, que hás de interessar-te por eles? — disse fitando-o e sorrindo-lhe familiarmente.

— Com certeza. hei de informar-me e verei o que há de verdade — respondeu Nekludov, cada vez mais surpreso daquela expansibilidade. — Quero, porém conversar a respeito de um assunto íntimo. Recordas te do que eu disse na nossa conversa anterior?

— Foi tanta coisa! — respondeu. — A que é que se refere?

E sorria-lhe constantemente, inclinando a cabeça ora de um, ora de outro lado.

— A ter vindo para te pedir que me perdoasses — disse wle.

— Perdoar? Para quê? Não tenho nada a perdoar! Era melhor...

— Ainda não acabei — continuou Nekludov — quero que saibas que estou resolvido a reparar o meu erro, não com palavras, mas sim com atos... Quero casar contigo!

O espanto desenhou-se no rosto da Maslova. Os olhos até aí irrequietos fixaram-se severamente nos de Nekludov.

— Era o que faltava! — disse, com áspera entoação.

— Perante Deus, sinto-me obrigado a fazê-lo.

— Este também fala em Deus! Deus? Que Deus? Melhor teria sido que o recordasse quando...

E estacou com a boca aberta.

Nekludov só então sentiu o forte cheiro a aguardente que se lhe exalava da boca e compreendeu a causa de toda a animação.

— Sossega — disse-lhe.

— Não preciso sossegar! Imaginas que estou bêbeda? Sim, estou bêbeda mas sei o que digo! — vociferou rapidamente, enquanto o sangue lhe afluía ao rosto. — Eu sou mulher de todos e uma condenada às galés e tu, tu és um fidalgo, um príncipe! Tem cuidado que te sujas, se me tocas! Gira, gira lá para as tuas princesas!

— São bem cruéis as palavras que estás dizendo, e contudo não o são nada comparadas com o meu sofrer! — respondeu Nekludov agitadamente. — Não podes avaliar a que ponto me reconheço miserável e criminoso para contigo.

— Agora! — respondeu ela, rindo maldosamente — mas não quando forçadamente me presenteaste com a nota de cem rublos!

— Sim, bem sei! Mas que fazer! Jurei, porém, não te abandonar! hei de cumpri-lo.

— E eu digo-te que tal não farás!

— Katucha! — disse Nekludov tentando pegar-lhe na mão.

— Não me toques! Sou uma condenada às galés e tu és um príncipe! Rua! Não tens que fazer aqui! — gritou ela, enlouquecida pela cólera e escondendo a mão. — Desaparece daqui! — continuou. — Abomino-te e a tudo que é teu, desde esse monóculo até ao teu farto e longo corpo! Rua! Rua!

E rapidamente, ergueu-se.

O carcereiro aproximou-se:

— Que escândalo estás tu a dar?

— Deixe-a, peço-lhe — disse Nekludov.

— Cuidadinho, senão ensino-te a teres juízo — concluiu o carcereiro.

— Um momento mais! — disse Nekludov.

O carcereiro afastou-se e sentou-se.

A Maslova sentou-se novamente. Baixara os olhos, agitando febrilmente os dedos das pequenas mãos.

Nekludov, de pé, junto dela, não sabia o que fazer.

— Então não me acreditas? — perguntou.

— Não acredito o quê? Que queiras casar comigo? Tal não acontecerá! Antes enforcar-me! Pois então!

— Apesar disso, continuarei procurando ser-te útil.

— Isso é lá consigo. A verdade é que não preciso de ninguém! De ninguém, palavra!

— Ó, quem me dera ter morrido, então! — disse, desatando a chorar.

Nekludov quis falar mas não pôde. Aquelas lágrimas dilaceravam-lhe o coração.

Pouco depois ela ergueu os olhos, fitou-o surpreendidamente, e com o lenço principiou a enxugar as lágrimas que lhe deslizavam pela face.

O carcereiro aproximou-se e preveniu-os de que findara o tempo concedido.

— Voltarei amanhã para ver se estás mais tranquila. Até lá há tempo para refletir — disse Nekludov.

Ela não respondeu; ergueu-se e, sem um olhar, saiu acompanhada pelo carcereiro.


***


— Olá, minha felizona, vão acabar-se os teus trabalhos! — disse à Maslova a Korableva, quando a viu entrar na sala. — Põe-te na rua, com certeza. Os ricos fazem o que querem!

— Tal qual — respondeu a guarda-linha, na sua voz harmoniosa. — Aos ricos basta manifestar um desejo para que logo seja realidade! Havia um lá na aldeia...

— Falaste-lhe a meu respeito? — interrogou a velha.

A Maslova não respondeu; estendeu-se na cama, o olhar fixo num canto da sala e assim ficou até ao anoitecer.

Todo um mundo interior de sofrimentos que ela abandonara com ódio, julgando tê-lo esquecido para sempre, acordara com o que Nekludov lhe dissera. Era claro que o esquecimento em que até então vivera, dissipando-se, se tornava impossível e que só permaneceria a insuportável recordação do passado.

Ao anoitecer, quando se ergueu, comprou mais aguardente, e, acompanhada pelas outras, bebeu-a.

 


III

 

— Aqui está como são estas coisas! — dizia maquinalmente Nekludov, enquanto caminhava no corredor da prisão. Só agora, e pela primeira vez, avaliava bem a enormidade do erro que cometera! Se não tivesse tentado expiá-lo e repará-lo, nunca lhe compreenderia a enormidade, assim como Katucha nunca reconheceria quão criminoso tinha sido para com ela!

Era a primeira vez que os factos lhe apareciam na evidência do seu mais claro horror.

Até então, como que se divertia com o seu enternecimento e a expiação parecia-lhe uma brincadeira; agora, porém, dominava-o o espanto. Era impossível tornar a abandonar aquela criatura, e não conseguia visionar que fim teriam essas novas relações.

Ao transpor a porta da prisão, Nekludov viu aproximar-se um carcereiro de feições desagradáveis, dissimuladas, aspeto de judeu. Introduziu-lhe misteriosamente na mão um papel.

— Isto é para V. Exa. — murmurou. — É uma certa pessoa que...

— Mas quem?

— V. Exa. ao ler, saberá. É uma prisioneira política. Eu sou o carcereiro. Bem sei que é proibido, mas ela pediu-me... tive dó... — disse hipocritamente.

Nekludov ficou surpreso que, um carcereiro da secção política, se tivesse encarregado de tal incumbência, e guardou o papel no bolso até sair da prisão. Na rua desdobrou-o e leu as seguintes linhas, escritas apressadamente a lápis:


Tive conhecimento da sua vinda à prisão e do interesse que manifesta por uma presa da secção criminal.

Desejo imenso poder falar-lhe, para o que pedirá autorização para me ver.

Se lha concederem, fornecer-lhe-ei informações interessantes sobre a sua protegida e sobre o nosso grupo.

Vera Bogodouchovska


— Bogodouchovska! Onde é que ouvi este nome? — interrogava-se Nekludov ainda abalado pela entrevista com Katucha. — Ah! agora me recordo! A rapariga da caçada ao urso!

Vera era professora numa aldeia do governo de Novgorod quando Nekludov estivera nessa aldeia acompanhado por alguns amigos, a caçar o urso.

A professora havia-lhe pedido certa soma para poder matricular-se na Universidade. Nekludov dera-lha e nunca mais ouvira falar dela. Agora reaparecia-lhe como presa política, prometendo revelar-lhe assuntos interessantes a respeito da Maslova!

Eram bons tempos de simplicidade e frescura comparados com a complicação e aridez dos de agora.

Nekludov sentiu verdadeiro alívio em recordá-los.

Era véspera de carnaval, numa aldeia distante sessenta verstas do caminho de ferro. A caçada fora magnífica. Tinham morrido dois ursos e depois de um bom jantar, quando tudo estava pronto para a partida, o dono da choupana onde se haviam recolhido, veio dizer que uma rapariga queria falar com o príncipe Nekludov.

— É bonita? — perguntou um dos caçadores.

— É o que vamos ver — respondeu Nekludov.

Acabando de lavar a boca saíra, sem supor o que desejaria dele a tal rapariga.

No quarto junto, estava ela, vestindo uma grosseira peliça de aldeã e chapéu de feltro na cabeça. Era magra, ossuda, rosto comprido e apenas com belos olhos.

— Aqui está o príncipe, Vera! — disse o locandeiro, saindo e deixando-os sós.

— Em que posso servi-la? — perguntou Nekludov.

— Eu... eu... desejava... Sei que é rico e que gasta dinheiro divertindo-se e caçando. Ora eu tenho um grande desejo, o de ser útil aos outros. Mas não o posso ser, porque não sei nada.

O olhar exprimia franqueza ilimitada, e Nekludov compreendeu a resolução e a timidez que as feições traduziam. Figurara-se no seu lugar, compreendera-a e apiedara-se.

— Mas então que deseja de mim?

— Sou aqui professora e queria matricular-me na Universidade, o que não posso fazer por falta de dinheiro. Quer-mo emprestar? Restituir-lho-ei quando terminar o curso! Muitas vezes digo a mim mesma: «Os ricos matam ursos, embriagam os mujiques, só fazendo o mal; porque não farão algum bem?» Só necessito de 80 rublos, mas se não quiser, é o mesmo, pouco importa.

— Pelo contrário! Agradeço-lhe ter-me proporcionado esta ocasião. Trago-lhe já o dinheiro!

E Nekludov reentrara na sala de jantar e, sem responder aos gracejos dos seus companheiros, abrira o saco de viagem e retirara os 80 rublos, que em seguida entregara à professora.

— Peço-lhe que não me agradeça; sou eu que o devo fazer! — disse-lhe quando lhe entregou o dinheiro.

Nekludov recordava agora com prazer estes incidentes. Igualmente sentia prazer recordando como, por pouco, estivera para zangar-se com um companheiro que quisera gracejar da aventura e como um outro o apoiara e defendera, o que provocara um estreitamento de relações com este.

A caçada fora divertida e bem sucedida e Nekludov, ao regressar à estação do caminho de ferro, sentia-se alegre e bem disposto. Os trenós deslizavam sem ruído, aos pares, por entre pinheiros vergados pela neve. De vez em quando brilhava na escuridão a viva luz vermelha dos cigarros, acendendo-se. Ossip, o guarda florestal, corria de um a outro trenó, enterrando-se na neve até aos joelhos; contava aos caçadores os hábitos dos veados e dos ursos que, naquela época do ano, vagueavam pelos bosques, aqueles alimentando-se da casca tenra dos álamos, estes, àquela hora, repousando na quente profundidade dos seus covis.

Nekludov recordava tudo isto e sobretudo recordava a deliciosa impressão que a consciência da sua saúde, força e descuidosa liberdade, então lhe produzia.

— Uma leve peliça, ar fresco e frio e a neve fustigando o rosto! O corpo quente, o rosto fresco e na alma nem cuidados, nem remorsos, nem temores, nem desejos! Como tudo isto era belo! E agora, meu Deus! Apenas dificuldades e penosos incómodos!

Evidentemente Vera fizera-se revolucionária e fora presa pelas suas ideias. Nekludov resolveu vê-la, com o desejo de saber o que ela lhe aconselharia para suavizar a sorte da Maslova.


Capítulo 15

 

Quando Nekludov acordou na manhã seguinte, o dia precedente, nos mínimos detalhes, perpassou-lhe rápido, no cérebro.

E, de novo, sentiu-se dominado pelo espanto.

Mas a determinação que tomara de continuar a obra empreendida, era mais forte que esse espanto que o invadia, e obrigava-o a caminhar sem lhe recear as consequências.

Eram nove horas quando saiu para procurar o vice-governador Maslinnikov.

Queria obter autorização para falar na prisão não só com a Maslova, mas também com o filho da velha por quem ela se interessara. Além destas, havia ainda outra, a que lhe escrevera na véspera, Vera Bogodouchovska; era também necessário obter autorização para a ver.

Nekludov conhecia Maslinnikov há muito tempo.

Primeiramente no regimento, onde o futuro vice-governador desempenhava o cargo de tesoureiro, conhecera-o como um honrado e consciencioso oficial, que não via nem queria ver mais nada no mundo além do seu regimento e da família imperial. Depois, sob a instigação de sua mulher, abandonara o exército pelas secretarias; e aquela, rica e astuta como era, bem depressa o colocou em posição de obter brilhantes promoções.

De resto, sua mulher zombava intimamente dele, animando-o como um cãozinho de estimação. Nekludov visitara-os no inverno anterior, mas não voltara porque revelaram-se-lhe falhos de todo o interesse. Nekludov, ao vê-lo, pareceu-lhe que o tempo não passava por sobre o seu amigo. Era exatamente o mesmo rosto cheio e sem expressão, a mesma corpulência e a mesma elegância requintada no vestuário. Como militar, Maslinnikov usava sempre uniformes talhados à última moda, irrepreensivelmente limpos e ajustando-se, sem uma única prega, às costas e ao peito: o que agora usava, como governador, era igualmente talhado à última moda, imaculado e ajustando-se-lhe perfeitamente ao busto.

Pareceu alegrar-se quando viu Nekludov.

— Que surpresa, meu velho! Fizeste bem em aparecer. Vamos ver minha mulher! Tenho precisamente dez minutos para dispores deles, antes da sessão. O governador está ausente e sou eu quem o substituo! — disse, empavonando-se todo, com tão evidente satisfação que não conseguia ocultá-la.

— Sim... Mas olha que o que cá me traz são interesses meus.

— Hein! — disse Maslinnikov, cujo rosto e voz se tornaram mais severos.

— É este o caso: Há na prisão central do estado, uma pessoa por quem me interesso (ouvindo a palavra «prisão», o rosto de Maslinnikov, tornou-se ainda mais severo); queria obter autorização para conversar com ela fora das horas oficiais da visita. Disseram-me que isto dependia de ti.

— É escusado dizer-te que não posso recusar-te nada! — respondeu o gordo Maslinnikov, colocando as mãos nos joelhos de Nekludov com familiar condescendência. — Por enquanto não há nada impossível, porque... sou rei por uma hora.

— Dás-me, pois, uma autorização escrita para visitá-la?

— É uma mulher?

— É.

— E quem é?

— Uma condenada aos trabalhos forçados injustamente.

— Ah! voila bien les jurés, ils n’en font pas d’autres! — disse Maslinnikov, principiando, de repente e sem motivo, a falar francês. — Sei que não concordas comigo — continuou — mas que queres? C’est mon opinion bien arretée! Tu continuas sendo liberal?

Não era já a primeira vez que Nekludov ficava surpreendido por o classificarem como liberal pelo simples facto de exigir para os acusados o direito de defesa, e por se indignar contra o direito de atormentar e espancar os criminosos, ainda os piores, ou por preferir esta àquela forma de julgamento.

— Não sei se sou ou não liberal — respondeu — o que sei é que a justiça de hoje, com todas as suas imperfeições, vale bem mais que a antiga.

— Dirigiste-te a algum advogado?

— Sim, a Fainitzin!

— Que triste ideia tiveste em te dirigires a esse! — disse Maslinnikov, torcendo o rosto.

É que ainda não lhe esquecera como Fainitzin, no ano anterior, tendo-o obrigado a comparecer numa audiência como testemunha, divertira toda a assistência, durante meia hora, à custa dele.

— Aconselho-te a que não te fies nele. C’est un homme taré!

— Ainda me resta um outro pedido — disse Nekludov, sem lhe dar atenção. — Conheci em tempo uma rapariga, professora, que hoje está também presa e que manifestou desejos de me ver. Podes igualmente conceder-me autorização para lhe falar?

Maslinnikov inclinou a cabeça para o lado e refletiu.

— Em que secção está essa professora?

— Disseram-me que na secção política.

— Não sei se sabes que só a família é que tem direito de visitar esses prisioneiros. Concedo-te, porém, uma autorização geral. Je sais que tu rien abuseras pas... E que tal é ela, ta protegée? Jolie?

— Medonha!

Maslinnikov abanou com a cabeça desaprovadoramente, dirigiu-se à secretária e começou a escrever numa folha de papel oficial.

— Vais ver a ordem que existe na prisão! E olha que não é fácil manter a ordem quando está tudo cheio de condenados às galés! Só uma severa vigilância como a minha, acompanhada de muito interesse! Verás como tudo anda limpo e bem disposto. Nestes casos o essencial é saber como se há de lidar com aquela gente. Ultimamente tive, é verdade, um pequeno dissabor, uma insubordinação. Qualquer outro, no meu lugar, teria logo chamado àquilo uma revolta e teríamos a lamentar desgraças! Comigo o caso foi outro! É imperdoável — continuou, puxando com a carnuda mão, onde brilhava um anel com pedra azul, pelos punhos, com botões de ouro — é imperdoável a falta de indulgência e de autoridade! Eis o que é necessário: indulgência e autoridade!

— Não sei nada disso! O que sei é que fui à prisão duas vezes e fiquei mal impressionado — respondeu Nekludov.

— Sabes o que deves fazer? Travar conhecimento com a condessa Passek. Devias simpatizar imenso com ela! Não trata senão de casos análogos. Elle fait beaucoup de bien. É graças a ela, e, modéstia à parte, graças a mim que o regime das nossas prisões foi modificado. Nenhum dos horrores do antigo regime subsiste, e os presos são verdadeiramente felizes! Enfim, tu verás! Mas que lembrança de te dirigires ao tal Fainitzin! Eu não o conheço pessoalmente; as nossas posições sociais não nos põem em contacto; dizem-me, porém, que é um parvo, que, em pleno tribunal diz coisas...

— Muito obrigado pela tua amabilidade! — disse Nekludov guardando a folha de papel escrita pelo vice-governador.

E levantou-se para sair.

— Agora, vamos ver minha mulher!

— Desculpa-me: hoje é impossível!

— Não me perdoará haver-te deixado sair! — respondeu Maslinnikov, acompanhando o antigo camarada até à escadaria, honra que dava aos visitantes de posição comparável à sua, pois que para os superiores reservava a de os acompanhar até ao vestíbulo. — Então, vamos, apenas por um momento?

Nekludov foi inflexível. Quando depois de ter descido a escadaria, vestia o sobretudo, que um criado lhe segurava, Maslinnikov, de cima, disse-lhe familiarmente:

— Então não faltes sexta-feira! É o dia de minha mulher! Vou anunciar-lhe a tua visita!

E regressou ao gabinete.


Capítulo 16

 


I

 

Nekludov, ao sair de casa de Maslinnikov, tomou um carro e dirigiu-se imediatamente à prisão. Pediu para falar com o diretor e esperou-o no gabinete que já conhecia.

Agora, como quando viera a primeira vez à prisão, ouvia, à medida que ia subindo, os sons do detestável piano. Desta vez porém, as Rapsódias de Liszt eram substituídas pelos Estudos de Clementi, executados com o mesmo vigor excessivo, a mesma precisão e a mesma rapidez.

A criada que lhe abriu a porta, disse que o «capitão» estava em casa e mandou-o entrar para uma pequena sala mobilada com um sofá, uma mesa, três cadeiras e um grande candeeiro, com abat-jour cor de rosa.

Momentos depois entrava o diretor, de rosto abatido e desgostoso.

— Queira sentar-se, príncipe! Em que posso ser-lhe útil? — perguntou enquanto acabava de abotoar o uniforme.

— Falei com o vice-governador e aqui está a autorização que me concedeu! — respondeu Nekludov. — Quero falar à Maslova.

— À Maslova? — perguntou o diretor, a quem a música impedia de ouvir distintamente.

— À Maslova.

— Ah, sim, bem sei.

E levantou-se, caminhando em direitura à porta da sala, donde vinham as escalas de Clementi.

— Fazes favor de parar um momento, Maroussia? Não se pode falar aqui! — disse, com uma entoação que traduzia claramente ser aquela música a cruz da sua vida.

O piano calou-se; as cadeiras foram arrastadas com mau humor e alguém entreabriu a porta, espreitando para a sala.

O diretor, visivelmente satisfeito com o intervalo que conseguira, tirou do bolso uma cigarreira; ofereceu a Nekludov, que recusou, e acendeu um cigarro.

— Posso então falar a Maslova?

— Que vens tu cá fazer? — perguntou o diretor a uma pequenita de cinco anos, que se introduzira na sala e que, sem desfitar Nekludov, tentava trepar para os joelhos do pai. — Olha que tu cais, tem cuidado! — dizia o diretor, sorrindo indulgente da manobra da criança.

— Então se é possível mande-me procurar a Maslova! — repetiu Nekludov.

— A Maslova! Infelizmente é impossível falar-lhe hoje.

— E porquê?

— Ouça príncipe, por culpa dela! — respondeu o diretor sorrindo impercetivelmente. — Príncipe, por favor não lhe torne a dar dinheiro! Se quer, entregue-mo que lho administrarei conforme as suas necessidades, porque de outro modo... Olhe, ontem, com certeza com dinheiro que lhe deu, arranjou aguardente (é um mal impossível de destruir), embriagou-se e está bulhenta!

— É impossível!

— Foi necessário castigá-la, transferindo-a para outra sala; ordinariamente é uma presa sossegada, mas não torne a dar-lhe dinheiro! É preciso saber lidar com esta gente.

Nekludov recordou a cena do dia anterior e de novo sentiu-se invadido pelo espanto.

— E a Bogodouchovska, da secção política, poderei vê-la? — perguntou depois de um silêncio.

— Porque não?

E erguendo nos braços a pequenita, que continuava a olhar para Nekludov, pousou-a brandamente no chão, e levantou-se em seguida para guiar o príncipe à prisão.

Ainda não tinha acabado de vestir o sobretudo, já as escalas de Clementi corriam de novo no teclado do piano.

— Ela estudava no Conservatório, mas em virtude de umas desordens que lá se deram, despediram os alunos! — disse o diretor enquanto desciam a escadaria. — Tem muita habilidade! Creio que gostaria de tomar parte em concertos!

Nekludov e o diretor encaminharam-se para a secretaria, atravessando salas cujas portas se abriram, o mais depressa possível à sua passagem.

Num corredor encontraram conduzindo baldes, quatro condenados que tremeram ao ver o diretor. Um, principalmente, baixou a cabeça, as feições contraídas, o olhar faiscante.

— É evidente que o talento deve ser desenvolvido e que não se deve mutilá-lo: mas um piano posto a tocar um dia todo numa casa como a nossa! É horroroso! — desabafava o diretor, sem fazer caso dos presos.

E arrastando as cansadas pernas, acompanhou Nekludov à sala grande.

— Como se chama a prisioneira que deseja ver? — perguntou.

— Bogodouchovska.

— Essa está no outro corpo do edifício, com os políticos. Queira esperar que vou mandar procurá-la.

— Enquanto espero, não poderei ver o preso Menshov, condenado por incendiário?

— Esse está num quarto à parte. Quer ir lá vê-lo?

— Quero, sim. Interessa-me isso.

— Esteja certo que não há nada interessante.

Nesta ocasião entrou o elegante ajudante do diretor.

— Acompanhe o príncipe ao quarto de Menshov — disse-lhe o diretor — em seguida conduza-o para a secretaria. Entretanto vou mandar chamar a Bogodouchovska.

— Queira ter a bondade de me seguir — disse o ajudante a Nekludov sorrindo amavelmente e espalhando um forte cheiro a água de Colónia. — Interessa-o o nosso edifício?

— Sim, mas interesso-me mais por esse Menshov, que me dizem estar inocente do crime que lhe imputam.

O ajudante encolheu os ombros.

— É possível — disse tranquilamente, enquanto por delicadeza parava para deixar entrar Nekludov num largo corredor, que tresandava. — Muitas vezes, porém, mentem!... É aqui!

As portas dos quartos estavam abertas e vários presos passeavam no corredor. O ajudante, ao passar, correspondia distraidamente à continência dos guardas, não fazendo caso dos presos, alguns dos quais apressavam-se a entrar nos quartos quando o viam enquanto outros paravam e ficavam imóveis respeitosamente, com as mãos unidas às costuras das calças.

Atravessaram todo este corredor e na extremidade foi-lhes aberta uma porta de ferro, pela qual comunicaram para um corredor, mais estreito, mais sombrio e cheirando ainda mais infectamente.

Em ambos os lados do corredor viam-se portas fechadas à chave, com pequenas aberturas no alto.

Apenas um carcereiro passeava de um para o outro lado com aspeto triste e carrancudo.

— Qual o quarto de Menshov?

— A oitava porta à esquerda.

— Tudo isto está ocupado? — perguntou Nekludov.

— Tudo, exceto um.

 


II

 

— Dá-me licença que espreite a uma destas portas? — pediu Nekludov ao seu guia.

— À vontade! — respondeu o ajudante, sorrindo amavelmente, começando a falar com o carcereiro.

Nekludov afastou a tampa corrediça da abertura e olhou para o interior.

Um homem ainda novo, estatura elevada, andava de um para outro lado do quarto, vestindo apenas uma camisa. Quando ouviu barulho, ergueu a cabeça, olhou para a porta e franziu as sobrancelhas; depois continuou o passeio.

Nekludov deixou de olhar e dirigiu-se para outro quarto.

Ao espreitar pela abertura, deu de cara com uns olhos negros, estranhos e penetrantes, que o obrigaram a fechar rapidamente a tampa. Num terceiro quarto viu um homenzinho que dormia na cama, com as pernas encolhidas e a cabeça coberta.

No imediato, o preso estava sentado com a cabeça apoiada às mãos e os cotovelos nos joelhos. Quando ouviu abrir-se a abertura, ergueu a cabeça e dirigiu o olhar, maquinalmente, para a porta; o rosto pálido e os olhos encovados, traduziam claramente a pouca importância que ligava em saber quem vinha espreitar ao seu quarto.

Era evidente que este desgraçado não esperava bem algum de quem quer que fosse que viesse examiná-lo.

O desespero pintado nas suas feições amedrontou Nekludov, que desistiu de olhar e examinar os outros quartos para ir diretamente ao de Menshov.

O carcereiro abriu a porta, fechada com duas voltas e Nekludov achou-se em frente de um homem ainda novo. musculoso, de pescoço comprido, barba curta e olhos redondos e bondosos, que em pé, junto ao leito, vestia apressadamente a blusa, olhando para os recém-chegados com manifesto susto.

Dirigia os olhos redondos e bondosos, incessantemente e com expressão de inquietação e admiração ora para Nekludov ora para o ajudante e inversamente.

— Aqui está um cavalheiro que deseja interrogar-te a respeito do teu caso.

— Houve alguém que me falou a seu respeito — disse Nekludov caminhando até à extremidade do quarto e colocando-se junto à janela gradeada. — Queria que me contasse como sucedeu isso.

Menshov aproximou-se da janela e encetou a narração. A princípio falava timidamente, lançando olhares inquietos ao ajudante; pouco a pouco animou-se e quando o ajudante saiu para o corredor, desaparecera-lhe a timidez.

As maneiras, o modo de falar eram de um simples e honrado mujique, e Nekludov começava a sentir-se singularmente impressionado por encontrar esse inofensivo mujique, vestindo o uniforme da prisão, num sombrio quarto. Enquanto lhe escutava a narrativa ia examinando o leito, o colchão de palha, a janela imunda guarnecida com o forte gradeamento de ferro, as paredes escorrendo humidade e o triste rosto e os membros emagrecidos daquele homem, evidentemente nascido e criado para uma vida livre de trabalho, no ar puro dos campos; e cada vez se sentia mais triste, recusando acreditar o que lhe contava aquele desgraçado como a verdade, tão horrível era pensar que se pudesse arrancar um homem sem motivo, a uma vida normal de trabalho, ataviá-lo ridiculamente com um uniforme de prisioneiro e encerrá-lo num lugar horroroso.

E era ainda mais horrível pensar que uma exposição tão ingénua, expressa em voz tão simples e franca, acompanhada por um olhar de tanta bondade, pudesse ser invenção e embuste.

Menshov tinha casado havia pouco quando a mulher lhe foi raptada pelo taberneiro da aldeia. Procurara obter justiça dirigindo-se a este e àquele mas o taberneiro untara as mãos às autoridades e escapara indemne.

Um dia Menshov conseguira agarrar a mulher, e à força levara-a para casa, mas ela fugira-lhe no dia seguinte.

Dirigiu-se novamente ao taberneiro a reclamar a sua mulher, mas apenas obteve em resposta que ela não estava em casa dele; o taberneiro, em seguida quis pô-lo fora de casa. Ele não quis sair, e o taberneiro, ajudado por um outro, bateu-lhe até fazer sangue e expulsou-o. No dia seguinte rebentava um incêndio em casa do taberneiro, e Menshov e a mãe eram acusados de ter posto o fogo. Porém não tinha sido Menshov; nesse dia estava em casa de um amigo.

— É verdade que não lançaste o fogo?

— Nem nisso pensei, Excelência, nem sequer em tal pensei! Foi ele próprio, o patife, que lhe deitou o fogo! Ainda há pouco segurara a casa! E acusaram-nos, a mim e a minha mãe, de incendiários! É verdade que o insultei e injuriei quando fui reclamar minha mulher: o meu coração trasbordava! Mas deitar fogo! Não, não deitei! Nem lá estava quando o fogo rebentou! Foi ele, propositadamente, para nos acusar!

— Falas verdade?

— Tão verdade como se falasse a Deus, Excelência! Seja meu pai! — disse, tentando ajoelhar-se diante de Nekludov. — Compadeça-se de mim e faça com que não morra aqui, sem razão.

E desatou a chorar, os lábios trementes, enquanto com a ponta da blusa tentava estancar as lágrimas.

— Já acabou? — perguntou o ajudante.

— Já — respondeu Nekludov. — Não desanimes e tem coragem; hei de fazer o que for possível — disse, dirigindo-se a Menshov.

Este estacou à entrada da porta, sendo preciso que o carcereiro o empurrasse para a fechar.

Mas, até final, o desgraçado permaneceu espreitando pela abertura superior.

 


III

 

Nekludov e o ajudante do diretor passaram novamente pelo corredor mais largo; era a hora de jantar, e todas as portas dos quartos estavam abertas, enquanto os presos passeavam no corredor.

Nekludov, quando se viu rodeado por essa infinidade de homens, vestindo todos uniformemente e fitando-o com curiosidade, sentiu estranha sensação de compaixão por esses prisioneiros, de espanto e horror por aqueles que ali os tinham encerrado, e de vergonha por si próprio que assistia indiferente a tudo aquilo.

Quando passava em frente de uma sala, vários presos vieram ao seu encontro, cumprimentando-o respeitosamente.

— Imploramos de V. Exa. que se digne fazer com que decidam a nossa sorte!

— Enganam-se. Não pertenço à administração, nada posso fazer.

— É o mesmo! — disse uma voz indignada. — Está lá fora, pede falar a esses da administração! Há dois meses que nos conservam aqui, sem que tenhamos feito mal algum.

— Como assim? — perguntou Nekludov.

— É a verdade! Vai em dois meses que nos meteram aqui, sem nós mesmo sabermos porquê!

— É efetivamente a verdade, mas foi o acaso que motivou isto — informou o ajudante. — Estes homens foram presos por falta de passaporte e deviam ser enviados para o respetivo governo a que pertencem; sucede que a prisão desse governo ardeu e nós recebemos ordem para não os expedir. Uma parte, os que pertenciam a governos diferentes, foram enviados, mas estes foi necessário conservá-los aqui.

— É esse o seu único crime? — inquiriu Nekludov. — E aproximando-se da porta, olhou para o interior da sala.

Um grupo de quarenta ou mais homens, vestindo todos o uniforme da prisão, rodearam Nekludov e o ajudante do diretor. Alguns tentaram falar ao mesmo tempo, mas afinal foi um robusto mujique de cabelos grisalhos, quem se encarregou de falar em nome de todos. Confirmou que tinham sido encarcerados por causa dos passaportes, não porque os não tivessem, mas unicamente por terem caducado havia quinze dias. Era um facto que se dava todos os anos e que passava sem que houvesse alguém que fizesse qualquer objeção; naquele ano prenderam-nos, e havia dois meses que os conservavam aferrolhados como criminosos.

— Somos todos pedreiros pertencentes ao mesmo artel4 e trabalhávamos todos juntos. Dizem que a prisão lá do governo ardeu. Mas nem somos culpados, nem lhe deitámos o fogo! Pelo amor de Deus, interceda por nós.

Nekludov escutava distraidamente o discurso, com a atenção atraída por um enorme piolho cinzento, que passeava dos cabelos para a barba do pedreiro.

— Como é isto possível? — perguntou novamente Nekludov ao ajudante.

— Que quer? A lei manda que eles sejam enviados aos seus respetivos governos para aí serem julgados!

Quando o ajudante acabava de falar, um homem de pequena estatura, gestos nervosos e a boca contraída, saiu do grupo e começou a queixar-se do modo como os carcereiros os tratavam.

— Pior que aos cães! — asseverou.

— Vamos, vamos, não abuses da nossa indulgência — disse o ajudante. — Cala-te, ou então...

— Ou então o quê? — replicou o prisioneiro desesperadamente. — Acaso somos criminosos para estarmos aqui?

— Silêncio! — bradou um carcereiro.

O prisioneiro calou-se.

«Como é possível semelhante coisa?», interrogava-se Nekludov, enquanto recomeçava a percorrer o corredor, com centenares de olhos a espiarem-lhe a passagem.

— É então permitido conservar estes inocentes na prisão? — perguntou Nekludov ao seu companheiro, logo que saíram do corredor.

— Que quer que lhe faça? Acautele-se, porque esta gente mente muito! Quem os ouvir imagina que são todos inocentes!

— Mas aqueles, pelo menos, estão inocentes?

— Sim, admitamos isso. Mas todos eles são uns depravados, de quem não se consegue nada sem severidade. Há até malandros de tal força que são capazes de se lançarem a nós! Ainda ontem tivemos de castigar dois.

— O quê? Castigá-los? Como?

— Chibatando-os por ordem superior.

— Julgava que as punições corporais estavam proibidas!

— Não para os presos destituídos dos seus direitos.

Nekludov compreendeu então a cena a que assistira na véspera, no vestíbulo. Compreendeu porque esperara pelo diretor, que assistia à punição. E mais que nunca, invadiu-o um misto de curiosidade, tristeza, espanto, vergonha e repugnância que ia até à náusea.

Sem dar atenção ao ajudante, e sem olhar em redor, dirigiu-se apressadamente para a secretaria.

O diretor lá estava, mas tão ocupado que se esquecera de mandar chamar a Bogodouchovska.

Recordou-se do que prometera quando viu entrar Nekludov.

— Mil perdões! Vou mandar chamá-la imediatamente! Queira sentar-se!

 


IV

 

A secretaria consistia em duas salas; uma, a da entrada, recebia a luz de duas janelas imundas, e além de um fogão coberto de porcaria, tinha num dos cantos, um estalão destinado a tomar as alturas aos prisioneiros, e dependurada na parede fronteira à entrada uma grande imagem de Cristo crucificado — era evidente que só por escárnio pela sua doutrina se conservava aquela imagem num lugar de tortura. Esta sala estava quase vazia; apenas os carcereiros andavam de um para o outro lado. A outra sala era maior e achavam-se aí reunidas umas vinte pessoas de ambos os sexos, sentadas em bancos encostados às paredes e conversando em voz baixa. Junto da janela havia uma escrivaninha.

Quando Nekludov entrou, viu o diretor sentado em frente dela e aceitando o convite que ele lhe dirigiu sentou-se também; entretanto o diretor mandara chamar a Bogodouchovska. Nekludov pôde, pois, observar sossegadamente o quadro que tinha ante os olhos.

O que primeiro lhe atraiu a atenção foi um rapaz de presença agradável, vestindo um curto casaco e que de pé, em frente de uma rapariga e de um prisioneiro, ambos sentados, contava-lhes qualquer coisa, acompanhando a narrativa com uma animada gesticulação.

Um pouco mais distante, um velho de óculos azuis, conversava com uma prisioneira ainda nova, a quem havia pegado na mão, e que escutava avidamente todas as suas palavras.

Um rapazito de rosto pensativo e medroso, estava em pé junto ao velho e não o desfitava.

Atrás destes, num canto, dois namorados cochichavam alegremente. A rapariga era uma linda loura bem vestida e maneiras distintas; o apaixonado era um detido de belas feições, cabelo ondeado, vestindo um grosseiro casaco.

Alguns passos para lá da mesa, e ao correr da outra parede, Nekludov notou o rosto de uma mulher, cujos cabelos eram já grisalhos e que vestia de preto; evidentemente era uma mãe: todos os seus olhares convergiam para um rapaz tisico, vestido de cauchu com quem tentava falar, não o conseguindo, sufocada pelas lágrimas; mal pronunciava uma palavra, tinha de desistir da tentativa. O pobre rapaz conservava nas mãos um papel que dobrava e amarrotava, deixando transparecer no rosto um olhar irritado.

Ao lado destes, Nekludov viu uma rapariga vestida de cinzento com uma pelerine aos ombros, que se esforçava por consolar sua mãe, sentada e encostada a seu lado, chorando, enquanto ela a acariciava brandamente.

Tudo era belo nesta rapariga; as compridas e brancas mãos, o cabelo ondeado, cortado muito rente, o nariz aquilino e a boca pequena. Porém o principal encanto de todo o rosto provinha de dois grandes olhos castanhos, muito salientes, cheios de doçura, de franqueza e de bondade.

Enquanto Nekludov, sentado junto ao diretor, examinava estes grupos com curiosidade, o rapazito, de rosto pensativo, aproximou-se dele e, com voz adelgaçada, perguntou-lhe:

— E tu por quem esperas?

Nekludov ficou surpreendido com a pergunta; o rosto da criança, com olhos expressivos impressionou-o e com a maior seriedade possível disse-lhe que esperava por uma senhora.

— É tua irmã? — perguntou o pequeno.

— Não, não é. E tu com quem estás aqui?

— Com a mamã! É uma presa política! — respondeu a criança.

— Maria Palovna, chame pelo Kolia! — disse o diretor, considerando ilegal a conversa do pequerrucho com Nekludov.

Maria Palovna, a bela rapariga que estava sentada perto de Nekludov, levantou-se e dirigiu-se para junto deles.

— Está com certeza a perguntar-lhe quem é? — disse ela a Nekludov, com um sorriso nos belos lábios e olhando-o fixamente com os seus salientes olhos. E havia tal simplicidade no seu sorriso, no seu olhar e na sua pronúncia, que impunha-se a evidência de um constante sentimento afetuoso e fraternal por todos com quem tratava. — É sempre assim! Quer saber tudo! — continuou; e sorriu para a criança tão ternamente que esta e o próprio Nekludov tiveram de lhe corresponder, sorrindo também.

— Efetivamente perguntava-me quem eu vinha ver!

— Maria Palovna, sabe que não tem licença para falar a estranhos — disse o diretor.

— Está bem, está bem — respondeu pegando na mão da criança e voltando para junto da mãe do tísico.

— De quem é filho este pequeno? — perguntou Nekludov ao diretor.

— A mãe é uma presa política, e o rapaz é aqui nascido.

— Sim?

— Sim. Agora vai para a Sibéria com a mãe.

— E quem é esta rapariga?

— Desculpe-me, mas não posso responder-lhe. Além disso, está aí a Bogodouchovska.

 


V

 

Nekludov viu efetivamente entrar Vera Bogodouchovska, caminhando agilmente, muito pequena, magra, pálida e com olhos muito grandes e límpidos.

— Quanto lhe agradeço ter vindo! — disse, apertando a mão a Nekludov. — Ainda se recorda de mim? Sentemo-nos.

— Não esperava encontrá-la aqui!

— Estou perfeitamente e nada peço de melhor! — disse Vera.

Os anos não a tinham alterado. Pitava Nekludov com a bondosa expressão do seu olhar e falando sempre, incessantemente movia em todas as direções o pescoço magro e pálido que lhe saía do corpete sujo e remendado, do seu vestuário.

Nekludov interrogou-a sobre os motivos por que fora presa, e ela, animando-se gradualmente, principiou uma narração muito detalhada, mas em que as suas aventuras figuravam menos do que a organização e as aventuras do seu partido. Durante a descrição que fazia, intercalava palavras tais como propaganda, organização, grupos, secção, subsecção e outras divisões revolucionárias, que estava convencida que toda a gente entendia, mas que o próprio Nekludov ouvia pela primeira vez.

E uns atrás dos outros, contou-lhe todos os detalhes daquela organização, convencidíssima de que Nekludov sentiria enorme prazer e extraordinário interesse em conhecê-la. E Nekludov, examinando-lhe o pescoço delgado, os cabelos raros e mal penteados e os grandes olhos redondos, perguntava a si mesmo porque é que ela lhe contava e se interessava tanto por tudo aquilo. Lastimava-a, ainda que diferentemente do modo como lastimava Menshov, o mujique, de rosto e mãos macilentas, encerrado sem razão, num quarto empestado. Não a lastimava pela situação que a si própria procurara, mas sim pela evidente anarquia mental que lhe reinava no cérebro. Era claro que a desgraçada julgava-se uma heroína e como tal se lhe apresentava; e por isso Nekludov a julgou digna de compaixão.

A ilusão lamentável de que a via possuída transparecia também no rosto de várias pessoas que estavam na sala. Compreendeu que a sua chegada tinha despertado a atenção de todos e que as suas atitudes e os gestos não seriam os mesmos se não estivesse ali para os presenciar.

Verificava isto na atitude e nos gestos da rapariga com o uniforme da prisão e no casal dos apaixonados, em todos, exceto no velho, no tísico e na rapariga de olhos castanhos e salientes.

O caso de que Vera queria falar a Nekludov era um pouco complicado.

Uma companheira de Vera chamada Choustova fora presa ao mesmo tempo que ela, havia cinco meses, e encerrada na cadeia, posto não estivesse filiada em nenhuma secção.

Unicamente lhe tinham encontrado em casa, quando da busca, alguns papéis e livros que os companheiros aí tinham guardado. Vera, que se considerava como responsável por esta prisão, desejava pedir a Nekludov, «que estava bem relacionado», para empregar diligências a fim de que a Choustova fosse libertada.

Além disto queria pedir-lhe que conseguisse que um seu amigo, Gourhévitch, pudesse ser visitado pela família e lhe fosse facultada a leitura de livros científicos. Nekludov prometeu fazer o que lhe fosse possível.

Da sua vida contou, que tendo terminado os estudos para parteira, filiara-se numa secção dos libertadores do povo, lera o Capital de Karl Marx e consagrara-se inteiramente ao «progresso da revolução».

A princípio caminhara tudo perfeitamente. Escreviam-se proclamações e fazia-se propaganda nas minas; um dia, um dos membros da secção fora preso, a polícia deitara mão aos papéis e realizara uma razia geral.

— Eu fui apanhada também e daqui vou para a Sibéria. Mas que me importa, se me sinto feliz?

Nekludov perguntou-lhe depois quem era a bela rapariga dos olhos salientes, Vera contou que era filha de um general, filiada há muito tempo no partido revolucionário e que se acusara de ter disparado um tiro de revólver contra um polícia. O caso fora o seguinte:

Os membros do partido reuniram-se numa casa, onde existia uma imprensa secreta. Uma noite que estavam todos reunidos, a polícia bateu-lhe à porta e eles, a fim de ganharem tempo para destruir o que os comprometesse, fizeram barricadas às entradas. A polícia arrombara as portas e quando lhes ia a deitar a mão, ouviu-se um tiro, e um deles caiu morto. Quando se procedeu ao inquérito para descobrir o assassino, a rapariga apresentara-se tomando toda a responsabilidade do facto; e, ainda que nunca tivesse pegado num revólver, fora forçoso reconhecer-lhe a culpabilidade. Condenada a trabalhos forçados, aguardava que a enviassem para a Sibéria.

— Uma individualidade interessante e um caráter altruísta! — disse Vera terminando a narração.

Era inegável que Vera sentia manifesto prazer em falar e mostrar os seus conhecimentos. Bastava que Nekludov lhe fizesse de vez em quando uma pergunta para ela falar infindamente. Apesar disso Vera ainda não falara na Maslova, o que para Nekludov era de maior interesse.

Resolveu perguntar-lhe o que ela queria dizer-lhe a este respeito e logo Vera começou, dizendo-lhe que já sabia, bem como toda a prisão, a história da Maslova e o interesse que Nekludov lhe dispensava. Era por isso que dava o conselho de obter para a sua protegida a transferência para o serviço da enfermaria, onde eram necessárias auxiliares. Aí, ela estaria muito melhor, não só sob o ponto de vista moral, como sob todos os outros.

 


VI

 

A conversa foi interrompida pelo diretor que, levantando-se, declarou ter acabado o tempo concedido para as visitas e que os visitantes deviam retirar-se. Nekludov despediu-se de Vera, ia já a sair quando se deteve no limiar para presenciar as despedidas dos outros visitantes.

O único efeito que a prevenção do diretor produzira, foi tornar as conversas mais rápidas e animadas, sem que ninguém parecesse disposto a retirar-se. Um ou outro par ergueu-se para continuar a conversa de pé. Mas daí a pouco principiaram os adeuses, os soluços e as lágrimas. A mãe do rapaz tísico estava completamente transtornada, enquanto o filho continuava a amarrotar entre as mãos a folha de papel; Nekludov notou-lhe no rosto uma expressão de maldade, proveniente do esforço que fazia para resistir ao desesperador contágio de sua mãe. Esta, com o rosto encostado a um dos ombros do rapaz, chorava tão copiosamente como uma criança.

A formosa rapariga que Nekludov involuntariamente seguia com o olhar, conservava-se de pé, em frente da mãe banhada em pranto e incessantemente tentava consolá-la. O velho de óculos azuis continuava com a mão de sua filha entre as dele, acenando com a cabeça a tudo que ela dizia.

O casal de namorados levantara-se, ficando ambos imóveis, sem dizer palavra, os olhos fitos um no outro.

— São aqueles os únicos felizes! — disse a Nekludov o rapaz de casaco curto que se deteve também no limiar da porta, presenciando a cena. — Para a semana casam-se aqui na prisão e toca para a Sibéria! — continuou ele.

— E quem é o noivo?

— É um condenado a trabalhos forçados. Ao menos aqueles estão contentes; o resto custa a presenciar! — continuou o rapaz, mostrando a Nekludov o velho dos óculos azuis, de cuja garganta saíam agora fortes soluços.

— Então, senhores? Peço-lhes que não me obriguem a lançar mão doutros meios! — exclamou o diretor, repetindo a mesma frase umas poucas de vezes. — Então, então, o que é que significa tudo isto? — continuava ele, fraca e irresolutamente. — Vamos, vamos, que já passa da hora há muito tempo... Previno-os pela última vez! — disse, depois de uma pausa.

E erguia-se, sentava-se, tirava uma fumaça ao cigarro para em seguida deixá-lo apagar e torná-lo a acender.

Era evidente que por muito inveterados que estivessem nele os argumentos especiais que permitem a um homem fazer sofrer outros homens sem se sentir responsável por esses sofrimentos, o diretor não podia deixar de ter consciência que era um dos autores da espantosa agonia que se espalhava naquele ambiente. E era também evidente que isto fazia-o sofrer, pesando-lhe dolorosamente sobre o coração.

Afinal prisioneiros e visitantes começaram a separar-se; uns dirigiam-se para a porta de comunicação interior e os outros para a que dava passagem para a sala contígua.

Pela porta de comunicação interior, Nekludov viu sair o tísico, a filha do velho de óculos azuis, a linda Maria Palovna conduzindo pela mão a criança nascida na prisão.

Então os visitantes saíram e com eles Nekludov.

— São reuniões extraordinárias, estas! — disse a Nekludov o rapaz que já se lhe dirigira na sala, e que evidentemente gostava de conversar. — Para felicidade nossa o «capitão» é um bom homem que não se cinge estritamente ao regulamento das prisões. Senão seria como nas outras partes, um martírio! Toda a gente o diz!

— Então nas outras prisões as visitas não se realizam assim?

— Isso sim! O mais que lhe concedem é ver os presos políticos através das grades, como os condenados às galés!

No fim da escadaria o diretor aproximou-se de Nekludov e chamando-o à parte disse-lhe:

— Príncipe, se quiser pode ver a Maslova amanhã.

Percebia-se que desejava ser agradável a Nekludov.

— Muito obrigado! — respondeu este saindo apressadamente. Renovava-se-lhe, ainda mais fortemente que no domingo anterior, quando pela primeira vez visitara a prisão, a impressão de repugnância e horror que então sentira.

Eram horrorosos os sofrimentos de Menshov; condenado injustamente — e não só os sofrimentos físicos, como também a dúvida e a desconfiança de Deus e do Bem que o desgraçado mujique infalivelmente havia de sentir, vendo a crueldade dos homens, obstinados em torturá-lo. Igualmente horrorosas eram as violências e as torturas a que estavam sujeitos os pedreiros, encarcerados unicamente por não terem os documentos em ordem e a loucura de todos aqueles empregados, preocupados, tão só com o fazer sofrer homens, seus irmãos, imaginando colaborar numa útil e boa obra. Porém, mais horroroso, mais repugnante e mais lastimável era esse velho diretor que obrigava a mãe a separar-se de seu filho, o irmão de sua irmã e que martirizava os seus semelhantes, apesar de cansado, velho e naturalmente bondoso!

«Para que existe tudo isto?», perguntava Nekludov a si próprio, sem acertar com a resposta.


Capítulo 17

 


I

 

No dia imediato pela manhã, Nekludov procurou o advogado Fainitzin, expôs-lhe a situação de Menshov e pediu-lhe que se encarregasse de aclarar o caso. O advogado prometeu-lhe consultar o processo para verificar se Menshov falava verdade e, caso assim fosse, encarregava-se de tentar libertá-lo, gratuitamente, apenas pelo prazer de importunar a magistratura.

Nekludov falou-lhe em seguida nos cento e trinta desgraçados pedreiros encarcerados por causa dos passaportes. Queria saber de quem dependia aquele assunto e quem era o culpado de tal acontecimento. Fainitzin refletiu, manifestamente embaraçado para formular uma resposta clara.

— Quem é o culpado? — disse por fim. — Ninguém. Reclame dos juízes; lançarão toda a culpa para o governador. Inquira deste a verdade; afirmar-lhe-á que são os juízes os responsáveis. Resultado: Ninguém é culpado.

— Procurarei ainda hoje Maslinnikov para o informar de tudo.

— É tempo perdido! Olhe ele não é seu parente nem amigo, não? Então acredite-me, é um cretino e mais ainda um canalha!...

Nekludov recordou-se do que Maslinnikov lhe dissera do advogado e, sem responder, despediu-se.

À tarde dirigiu-se para casa do vice-governador, a quem desejava pedir dois obséquios: a transferência de Maslova para a enfermaria, fazendo parte do pessoal, e a libertação dos cento e trinta pedreiros encerrados sem razão. Ainda que lhe repugnasse solicitar favores de um homem que aborrecia, sujeitava-se, por saber que era esta a única forma de alcançar o que pretendia.

Ao chegar a casa de Maslinnikov, viu o pátio interior cheio de coupés, vitórias e landeaux e só então se recordou que era naquele dia o at home da mulher de Maslinnikov, ao qual ele lhe pedira que não faltasse. Em frente da escadaria estava parado um magnífico landeau, e um trintanário de pelerine forrada deitada nos ombros e roseta no chapéu alto, ajudava uma senhora a descer, que, com a cauda do vestido levantada, deixava ver uma perna magra, calçada de meia de seda preta. Examinando as carruagens que esperavam no pátio, Nekludov reconheceu a dos Korchaguine. O velho cocheiro, nutrido e rubicundo, reconheceu-o e descobrindo-se, cumprimentou-o com um sorriso cheio de deferência e familiaridade.

Nekludov perguntava ainda ao guarda-portão se Miguel Ivanovitch recebia, quando ele próprio apareceu no alto da escadaria. Acompanhava uma visita que devia ser personagem altamente colocada, porque honrava o, acompanhando-o até ao fim da escadaria.

Efetivamente Nekludov reconheceu nele um dos mais influentes funcionários governamentais. Enquanto descia as escadas falava em francês com Maslinnikov, a respeito de uns quadros vivos que se projetavam organizar para um benefício caritativo. Era uma ocupação excelente para as senhoras, dizia. «Divertem-se e arranjam dinheiro!»

— Quelles s’amusent et que le bon Dieu les benisse! Como está, príncipe? Que é feito de si, que ninguém o vê? — disse, cumprimentando Nekludov. — Allez vite présenter vos devoirs à ces dames! Já lá estão os Korchaguine e Nadina Bochsevden. Toutes les jolies femmes de la ville vous attendent! — acrescentou, voltando-se para que o lacaio agaloado lhe deitasse aos ombros o agasalho. — E au revoir, mon cher!

E apertou a mão de Maslinnikov uma última vez.

— Vamos para a sala! Quanto me alegro em ver-te — disse este a Nekludov, animadamente. E agarrando-se pelo braço, arrastou-o pela escadaria acima, apesar da sua corpulência, com a agilidade de um rapaz novo.

A alegre disposição em que se achava tinha sido motivada — Nekludov notou-o logo — pela deferência com que o alto e poderoso funcionário o tratara. Era uma satisfação semelhante à que sente um cão quando o dono o afaga, coça e puxa pelas orelhas. O rafeiro abana a cauda, salta, e torce-se, insensatamente, em redor.

Maslinnikov estava igualmente disposto a fazer o mesmo. Nem sequer notava a concentrada expressão das feições de Nekludov; e, alegremente, sem lhe dar atenção conduziu-o para a sala de receção. Nekludov viu-se obrigado a acompanhá-lo, sem poder resistir, nem escusar-se.

— Deixemos os negócios para logo! Tudo que quiseres, bem sabes que é só pedir! — dizia Maslinnikov guiando-o. — Anuncia o príncipe Nekludov! — disse para um lacaio. — Vous n’aurez qu'a commander, je vous obéirai! — continuou, dirigindo-se a Nekludov. — Porém agora é necessário ver minha mulher. Outro dia, quando te retiraste sem a ver tive que aturar!

Anna Ignatievna, a mulher do vice-governador, conhecida pela «generala», sentada num sofá e rodeada por um círculo de íntimos, acenou amavelmente com a cabeça a Nekludov quando este entrou na sala.

No fundo desta, ao redor de uma mesa de jogo, estavam sentadas várias senhoras conversando com homens em pé, junto delas; um incessante murmúrio de vozes, graves e agudas, elevava-se deste grupo.

— Enfin! Julguei que nos tinha esquecido! Está zangado connosco? Quem lhe fez mal?

Foi como Anna Ignatievna saudou o recém-chegado para dar a entender uma familiaridade que nunca existia.

— Ainda não se conhecem? Madame Bielaskaia, Miguel Ivanovitch Chernov... Sente-se aqui, junto de mim!

— Missy, venez donc à notre table! On vous apportera votre thé! — disse, levantando a voz e dirigindo-se ao outro grupo. — Uma chávena de chá, príncipe?

— Nunca acreditarei em tal! Não o amava, é o que é! — ouviu-se dizer uma voz feminina.

— Magníficos estes biscoitos! Mais um, se faz favor! — dizia outra voz.

— Quando parte para o campo?

— Amanhã. Foi por isso que viemos hoje. A primavera está deliciosa e a sombra das árvores tão convidativa!

Com um pequenino chapéu de veludo na cabeça e um vestido listrado a desenhar-lhe as formas, Missy estava formosíssima. Quando viu Nekludov enrubesceu.

— Imaginava-o já ausente! — disse.

— Não falta muito! — respondeu Nekludov. — Apenas me demoro por causa de certos interesses, que são os que me trazem aqui.

— Não quer ver a mamã antes de partir? Ela deseja muito vê-lo.

Sentindo que mentia e que ele lhe compreendera a mentira, enrubesceu ainda mais.

— Creio que não tenho tempo — respondeu Nekludov, tentando parecer indiferente.

Missy encolheu desdenhosamente os ombros, e, carregando as sobrancelhas, dirigiu-se novamente ao oficial com quem conversava quando Nekludov entrou, e que batendo com a espada pelas cadeiras, viera pressuroso, tirar-lhe das mãos a chávena vazia.

— Deve também contribuir para a nossa obra!

— Certamente! Não me recuso! Preferia porém reservar-me para os quadros vivos! Verá como tenho um especial talento!

Anna Ignatievna estava encantada; o seu at home excedia as suas previsões.

— Mika falou-me no interesse que toma pelas prisões — disse para Nekludov. — Como eu compreendo bem! Mika (era o gordo Maslinnikov) pode ter os seus defeitos, mas bem sabe como tem bom natural! Os infelizes prisioneiros são para ele outros tantos filhos! Está sempre a repetir-mo. Il est d’une bonté...

Deteve-se sem achar termo bastante expressivo para definir a bondade do marido, e como entrasse, nesse momento, uma velha senhora de rosto cheio de rugas, dirigiu-se-lhe toda sorridente.

Nekludov conservou-se sentado durante alguns momentos, conversando unicamente para não destoar no conjunto. Pouco depois ergueu-se e dirigiu-se a Maslinnikov.

— Concedes-me então um momento de atenção?

— Vamos lá. Que há de novo?

— Não seria preferível conversar noutro lugar?

E passaram para um gabinete que comunicava com a sala, sentando-se junto da janela.

 


II

 

— E agora sou todo teu! Queres fumar? Espera um pouco que vou buscar um cinzeiro. Não há necessidade de sujar o tapete, não é assim?

E, depois de ter arranjado um cinzeiro, sentou-se em frente de Nekludov, dizendo:

— Sou todo ouvidos.

— Quero falar-te em dois assuntos importantes...

— Diz então!

Do rosto de Maslinnikov, que repentinamente se tornou sombrio, desapareceu aquela alegre excitação, semelhante à do cachorro a quem o dono acaricia.

Através da porta ouviam-se vozes conversando na sala. Uma feminil com certeza, dizia: «Jamais, jamais vous ne me le ferez croire!» e mais distante, a voz de um homem contava uma história, em que os nomes da «Condessa Vorouzov» e «Victor Apraxine» figuravam constantemente. Um confuso murmúrio de palavras e sonoras gargalhadas fazia coro ao narrador.

Maslinnikov dava mais atenção ao que se passava na sala do que às explicações de Nekludov.

— Começo — disse este — por te importunar por um pedido para aquela mulher que...

— Ah, sim, a tal que foi condenada injustamente! Bem sei, bem sei.

— Queria que ordenasses a sua transferência para o serviço da enfermaria. Asseveraram-me que era factível.

Maslinnikov comprimiu os lábios e refletiu.

— Não sei bem se será possível — respondeu com ar de importância. — hei de informar-me e amanhã mesmo mando-te um telegrama com a resposta.

— Garantiram-me que os doentes são muitos e que há necessidade de enfermeiras suplementares.

— hei de ver, hei de ver! Qualquer resposta que possa dar-te enviá-la-ei pelo telégrafo.

— Obsequeias-me imenso — respondeu Nekludov.

Na sala ressoou uma gargalhada geral.

— Vou apostar que foi alguma das do Vítor! — disse Maslinnikov sorrindo. — Não podes calcular que endiabrada veia tem, quando está bem disposto!

— O outro assunto de que desejo dar-te conhecimento é o seguinte. Na prisão que acabo de visitar estão cento e trinta operários encerrados há mais de um mês, unicamente por terem sido encontrados com os passaportes prescritos.

E Nekludov narrou o caso detalhadamente.

— Como tiveste conhecimento de tudo isso? — perguntou Maslinnikov. O rosto exprimia-lhe visível inquietação e descontentamento.

— Ao passar pelo corredor por onde me dirigia para ver um preso, esses desgraçados saíram-me ao encontro implorando que...

— Quem era o preso que ias ver?

— Um aldeão injustamente condenado como incendiário e a quem arranjei um defensor. Isto, porém, nada tem com o fim da minha visita. O que desejo que me digas é se aqueles homens cometeram unicamente o crime de não terem os passaportes em ordem e se...

— Isso é com o Procurador Régio! — interrompeu bruscamente Maslinnikov. — Aí tens tu os senhores magistrados! Paga-se a um Procurador Régio para visitar as prisões e examinar se as detenções são ou não legais e o que é que ele faz? Joga o whist, mais nada!

— Queres dizer que nada podes fazer? — perguntou Nekludov, relembrando-se de que o advogado o prevenira que o Procurador e Governador acusar-se-iam mutuamente de desleixo.

— Ao contrário! Vou ordenar um inquérito!

— Pede para ela! C’est un souffre-douleur — exclamava na sala uma voz de mulher.

Ouviu-se nova gargalhada.

— Está pois certo que farei tudo que for possível — continuou Maslinnikov, deitando fora o cigarro que sustinha na branca mão cheia de anéis. — E se voltássemos para junto das senhoras?

Nekludov demorou-o um pouco mais junto à porta.

— Contaram-me que há dias, na prisão, tinham sido chibatados dois homens. É verdade?

Maslinnikov tornou-se cor de púrpura.

— Contaram-te isso? Bom, não é possível dar-te carta branca! São coisas que não te dizem respeito. Vamos, que Anna está a chamar-nos — disse.

E agarrando-o pelo braço, arrastou-o para a sala.

Nekludov, porém, soltou-se-lhe das mãos e sem se despedir nem falar a ninguém atravessou a sala e desceu a escadaria.

— Mas o que é que tem ele? — perguntou Anna Ignatievna ao marido.

— É uma despedida à la Française — disse alguém.

— Não, à la Zoulu é o que é!

— Foi e há de ser sempre um original.

Entrou uma pessoa e saiu outra e a tagarelice recomeçou, animada pelos comentários sobre a visita de Nekludov.

O at home de Madame Maslinnikov terminou assim magnificamente.

No dia seguinte Nekludov recebeu uma carta do vice-governador, escrita em papel lustroso, com um brasão de armas no canto superior. Participava-lhe que se informara sobre a transferência da Maslova para a enfermaria e que provavelmente se conseguiria. Maslinnikov assinava a carta com uma rubrica muito complicada, confessando-se «velho afetuoso camarada».

«Grande tolo!» não pôde Nekludov deixar de dizer para si, adivinhando na palavra «camarada» um ardil lisonjeiro, provocado para nivelar a diferença das respetivas posições.


Capítulo 18

 

Um dos preconceitos mais enraizados e mais geralmente admitidos, é o que imagina em todo homem qualidades próprias e definidas: que um homem é bom ou mau, inteligente ou estúpido, enérgico ou apático e outras mais. Na realidade, porém, não há tal.

Podemos dizer de um homem, que ele é um maior número de vezes antes bom do que mau, antes inteligente do que estúpido, ou antes enérgico do que apático, ou inversamente: mas dizer de um homem, como sempre fazemos, que ele é bom e inteligente, e de um outro que é tolo e mau, é desconhecer o verdadeiro caráter da natureza humana. Os homens são como os rios, compostos todos da mesma água, uns, porém, de leito vasto e corrente lenta, outros encerrados estreitamente nas suas margens, desaguando velozmente, este com a água límpida e tépida, a daquele toldada e gelada.

Todos os homens são igualmente depositários dos germes de todas as qualidades humanas e ora evidenciam uma, ora outra, diferindo muitas vezes do que habitualmente são.

Nalguns indivíduos, porém, estas mudanças são mais raras e levam muito tempo a preparar-se, enquanto noutros são rápidas e frequentes.

Nekludov era destes últimos. Incessantemente operavam-se nele bruscas e completas transformações, produzidas por causas diversas, físicas ou morais.

Uma destas bruscas transformações operara-se nessa ocasião.

Esse alegre entusiasmo e essa crença num radical rejuvenescimento de todo o seu ser, todos esses sentimentos vividos em seguida à audiência no tribunal e à primeira entrevista com Katucha, haviam-se desvanecido completamente transformados em profundo horror e cruel repugnância, depois da última e desanimadora entrevista.

A resolução de nunca mais abandonar a que fora sua amante era, contudo, inabalável, bem como a de casar com ela se numa transformação de sentimentos, o exigisse. Curvava-se a esta determinação, dolorosamente sacrificado. No dia imediato ao da visita a Maslinnikov voltou à prisão para rever Katucha.

O diretor concedeu-lhe licença para a ver, mas unicamente no parlatório feminino e já não nem na secretaria, nem no gabinete onde se realizara a última entrevista.

O diretor tratava Nekludov com pronunciada diferença das demais vezes; apesar da sua natural bondade tornara-se reservado; era a consequência da visita que Nekludov fizera a Maslinnikov, pois este ordenara a todo o pessoal uma atitude mais cautelosa para com tão indiscreto visitante.

— Sim, pode falar-lhe — disse o diretor — mas relembro-lhe o que lhe pedi quanto a dinheiro. Sua Excelência o senhor governador escreveu-me sobre a transferência dela para a enfermaria... sim, a coisa é possível e o médico consente. Somente ela é que não quer! Diz que «não tem necessidade de andar a fazer os despejos dos sarnentos». Oh! príncipe! Não sabe ainda que raça é aquela!

Nekludov não respondeu e encaminhou-se para o parlatório. O diretor mandou um carcereiro buscar a Maslova.

Quando Nekludov entrou no parlatório ainda aí não estava ninguém, e só passados momentos é que se abriu a porta do fundo e a Maslova, silenciosa e tímida, caminhou na sua direção.

Sem o fitar, apertou-lhe a mão e murmurou:

— Perdoe-me a forma como lhe falei outro dia, Dimitri Ivanovitch.

— Não sou eu que devo perdoar... — principiou Nekludov.

— Embora; o que é essencial é que me abandone — replicou enquanto o olhar exprimia a mesma anterior hostilidade.

— Mas porque queres que te abandone?

— Porque sim!

— Mas porque sim?

Ela não respondeu e lançou-lhe outro olhar impregnado de maldade.

— Então, já que é preciso, eu falo — disse por fim. — É necessário que cessem os cuidados que me dispensa e que me são insuportáveis! Falo-lhe como penso e digo a verdade! Basta de cuidados — repetiu, com os lábios trementes. — Prefiro enforcar-me!

Nekludov compreendeu que nesta violenta recusa, havia qualquer coisa mais do que ódio e possibilidade de perdoar uma inolvidável ofensa, havia qualquer coisa nobre e bela.

Esta proibição, feita tranquilamente e a sangue frio, desvanecia-lhe todas as dúvidas e renovava-lhe a entusiástica disposição em que estava, três dias antes.

— E eu, Katucha, sustento o que te disse! — afirmou ele gravemente. — Peço-te que consintas em casar comigo! Se recusares, seguir-te-ei sempre para onde te levarem!

— Isso é consigo. De mim nada mais direi!

E os lábios recomeçaram-lhe a tremer.

Nekludov calou-se também, sem forças para falar. Por fim cobrou ânimo:

— Katucha — disse — parto para a aldeia, onde vou tratar de negócios meus; daí seguirei para S. Petersburgo tratar do recurso; se Deus quiser, farei anular a sentença.

— É-me indiferente que a anulem ou não. Quer de uma, quer de outra maneira, o resultado é sempre o mesmo!...

Nekludov julgou ver que as lágrimas a sufocavam.

Seguiu-se um grande silêncio.

— Afinal conseguiu ver Menshov? — disse ela, procurando ocultar a sua emoção. — Não é verdade que são inocentes? Ia pôr as mãos no fogo!

— Sim, convenci-me da sua inocência!

— E ainda não sabe quão admirável é a velha!

Nekludov então contou detalhadamente tudo o que soubera dos Menshov, e terminando, perguntou-lhe se precisava de alguma coisa.

— Não, nada absolutamente.

De novo fez-se silêncio.

— Ah, é verdade — recomeçou ela, fitando-o com os olhos levemente estrábicos —, se deseja que eu passe para a enfermaria, irei! E aguardente, hei de tentar não tornar a beber!...

Nekludov, sem dizer nada, olhou para ela.

Os olhos sorriam-lhe.

«Sim! É possível uma transformação!», dizia a si mesmo.

E por entre as dúvidas dos dias anteriores começava a tomar vulto a crença num sentimento novo para ele: a invencibilidade do Amor.

Maslova, reentrando na sala pestilencial, despiu o casaco e sentou-se na cama, com as mãos apoiadas nos joelhos.

A sala estava quase vazia. À exceção da tísica, da mãe dando o peito à criança, da velha Menshov e da guarda-linha, tudo o mais estava a lavar a roupa. A filha do diácono fora dada como doida e passada à enfermaria.

A velha dormia estendida na cama; as crianças brincavam no corredor e ouvia-se-lhes as vozes e as gargalhadas. Quando a Maslova entrou, a guarda-linha sem interromper a meia que fazia, dirigiu-se-lhe.

— Então, viste-o? — perguntou.

Maslova não respondeu. Sentada na borda do leito agitava maquinalmente as pernas pendentes.

— Então, minha choramingas! Nada de chorar! Não desanimes! Então Katouchka!

Maslova continuava a não responder.

— As outras foram lavar. Dizem que hoje há muita roupa.

No corredor ouviam-se passos e vozes e as outras habitantes da sala apareceram à entrada, descalças, cada uma com um grande pão nos braços.

Fedósia correu para a Maslova.

— Então o que aconteceu? Nada de mau? — perguntou, fitando a sua amiga com os límpidos olhos, de criança. — Espera que eu vou arranjar-te o chá!

— Então ele mudou de opinião? Já não casa? — perguntou a Korableva.

— Não, não mudou. Eu é que não quero e assim lho disse!

— Foste tola! — murmurou a Korableva em voz de basso.

— Ela fez bem! — disse a Fedósia. — De que serve casar se é impossível viver juntos?

— Então o teu homem não vai para a Sibéria contigo? — perguntou-lhe a guarda-linha.

— O meu homem é outro caso. Mas ele, de que lhe serve casar se não pode viver com ela?

— Está calada, idiota! Para que lhe serve? Para a encher de ouro!

— Ele disse-me: «Para onde te mandarem eu irei» — disse a Maslova. — E vai com certeza! Mas a mim é que pouco me importa que ele venha ou não. Não serei eu que lho hei de pedir... Agora vai a S. Petersburgo — continuou depois de um momento de silêncio — vai tratar do meu processo! É parente de todos os ministros! Melhor fora que me deixasse tranquila! Não preciso dele para nada — disse, terminando e como que reconsiderando.

— Que história tão pândega! — disse a Korableva distraidamente. — Queres tu agora uma pinga?

— Não, obrigada — respondeu a Maslova. — Bebam vocês, que eu pago!

 

 

 

C   O   N   T   I   N    U   A