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SEGUNDA PARTE
E porque vês tu o argueiro nos olhos de teu irmão e não vês a trave nos teus próprios?
Mt 7, 3.
Capítulo 1
I
Nekludov foi informado que o recurso da Maslova seria julgado pelo Senado dentro de quinze dias, reservara para então a ida a S. Petersburgo, para não só tratar do assunto convenientemente, como também para, no caso de lhe ser negado provimento, preparar-se para a apelação ao Imperador, como lhe aconselhara o advogado. Dadas, porém, as poucas probabilidades que havia, em qualquer das instâncias, de obter a anulação da sentença, a Maslova deveria seguir com uma leva de forçados aí pelos primeiros dias de junho. E como não abandonasse a intenção de a seguir, ainda que fosse para a Sibéria, Nekludov resolveu, neste intervalo de quinze dias, visitar as suas propriedades para regular definitivamente os seus negócios.
Começou por Kouzminskoie. Era a mais próxima, a de maior valor e a que lhe rendia mais. Fora aí que passara a mocidade e a que maior número de vezes visitara. Ainda em vida de sua mãe, e mesmo a pedido dela, arranjara um alemão muito económico para lhe dirigir a propriedade, o qual ainda lá se conservava e com quem fizera o inventário de todos os bens da mesma; estava, pois, bem ao facto do estado em que ela se encontrava, assim como também conhecia as relações existentes entre os mujiques e a administração das terras, isto é — o proprietário ou o seu representante, e sabia bem que essas relações consistiam numa dependência absoluta dos mujiques para com a administração.
Nekludov conhecia já estes factos quando estava na Universidade, na época em que professava e proclamava as doutrinas de Henry George, e isto resolvera-o a doar aos mujiques aquilo que então possuía; a pequena propriedade que por morte de seu pai herdara.
Quando, ao abandonar o exército, principiara a despender vinte mil rublos por ano, o conhecimento da origem da sua riqueza tornar-se-lhe importuno e fizera não só por nunca mais pensar em tal, mas até por esquecê-lo de todo.
Recebia e gastava o dinheiro sem se preocupar donde vinha, até que, com a morte de sua mãe e com a necessidade de regular a sucessão e adotar uma nova fórmula de direção e governo, se lhe formulara de novo uma interrogação sobre os seus direitos e deveres como proprietário.
E, durante todo um mês, preocupara-se seriamente, confessando por fim que nunca teria coragem de destruir a ordem estabelecida, abandonando então a gerência das propriedades, vivendo retirado delas, apenas recebendo tranquilamente a renda.
Outros pontos de vista substituíram estes, depois do encontro com a Maslova.
Sabia perfeitamente que se acompanhasse a Maslova para a Sibéria teria de sustentar relações complicadas e difíceis com todo o mundo de funcionários para com os quais seria vantajosíssimo permanecer numa posição social elevada e dispor de dinheiro. Mas sabia também que lhe era impossível continuar a sustentar uma situação que considerava imoral. Transigiria com parte das suas convicções e ainda que não abandonasse por completo as propriedades aos aldeões, alugar-lhas-ia por uma renda modestíssima. Bem conhecia que estava longe de ser a solução que o problema tinha em teoria, mas era já um passo para essa solução: de uma grosseira forma de opressão passava-se para uma mais branda, e as circunstâncias não permitiam executar de pronto mais cabal providência.
II
Dava meio-dia quando chegou a Kouzminskoie. A nova conceção da vida que formara, simplificara-lha de tal modo, que nem sequer se lembrou de telegrafar ao seu administrador, comunicando-lhe a visita. Na estação alugou um carro e mandou seguir para a sua residência. Durante o trajeto, o cocheiro, um aldeão ainda novo, vestindo camisola escura, sentou-se ao lado da almofada do carro no evidente propósito de conversar com o fidalgo pelo caminho e pôde fazê-lo porque os cavalos, fortes e sãos, corriam velozmente pela estrada sem necessidade de estímulo.
O rapaz, sem saber com quem falava, começou a criticar o gerente de Kouzminskoie.
— Aquele arranjou-se bem! — disse, voltando-se na almofada e agitando o chicote. — Comprou agora uma troika e magníficos cavalos para ele e lá vai, acompanhado pela dama, passear para onde quer. No Natal teve árvore em casa e arranjada como nenhuma outra do distrito! Aquele junta dinheiro, olá se junta! Até comprou agora uma propriedade!
Nekludov fingiu-se indiferente à tagarelice do cocheiro, mas ficou desagradavelmente impressionado com o que, involuntariamente, soube sobre a forma como o seu administrador lhe geria as propriedades.
O dia estava primaveril e Nekludov deliciava-se vendo as grandes nuvens escuras encobrirem por momentos o sol para em seguida o descobrirem, e ora fixava a atenção nos campos, dos quais se abriam bandos de estorninhos, ora admirava os bosques vestidos por completo com um manto de fresca verdura, ou os prados, onde pastavam à solta, cavalos e bois; mas, não o satisfazia por completo o prazer que disfrutava. Havia qualquer coisa que o inquietava e sempre que buscava reconhecer a origem desse desassossego, a sua memória repetia lhe as palavras do cocheiro sobre a administração das suas propriedades.
E só quando chegou à residência e principiou a regularizar o que precisava ser posto em ordem, se lhe desvaneceu esse desagradável sentimento.
Nekludov logo que começou a examinar a escrituração e a prestar atenção às explicações de um seu empregado, que lhe expôs as vantagens resultantes da cedência de pouca extensão de terra aos aldeões, ficou ainda mais resolvido a abandonar a exploração da propriedade a favor dos mujiques.
A escrituração e as explicações do seu empregado demonstravam-lhe que, tal como no passado, os dois terços dos seus bens eram cultivados pelos criados da casa com utensílios aperfeiçoados, enquanto o outro terço era trabalhado pelos mujiques, a quem se pagava à razão de cinco rublos por cinquenta ares.
Noutras palavras, o lavrador comprometia-se por cinco rublos a lavrar e semear cinquenta ares e em seguida ceifar, atar, malhar e transportar para os celeiros, trabalho pelo qual um operário dos mais mal pagos deveria receber dez rublos.
Além disto, tudo que os mujiques necessitavam e que compravam na casa, forragens, lenha e batatas, era-lhes debitado por um preço excessivo; em lugar de duas, eram quatro vezes mal pagos.
Nada disto era novidade para Nekludov, mas agora uma nova orientação guiava-lhe os passos e chegava a admirar-se de ter vivido tanto tempo sem compreender a anormalidade de um tal estado de coisas.
O gerente, posto no conhecimento do projeto que Nekludov arquitetara, tentou demonstrar-lhe, complacentemente, os inconvenientes e perigos que ele arrastava. Em primeiro lugar, quase que se seria forçado a ceder de graça os utensílios e instrumentos agrícolas, pelos quais ninguém daria a quarta parte do seu valor, e em segundo lugar os mujiques não cultivariam a terra com os cuidados necessários, pelo que ninguém aproveitaria com tal resolução.
Aos olhos de Nekludov, porém, tomava vulto a beleza da ação que ia praticar, privando-se da maior parte do seu rendimento e sem atender o gerente, resolveu deixar este assunto regularizado, antes de partir.
Encarregou o gerente, pois, de vender as próximas colheitas, o gado e os utensílios agrícolas, com ordem para lhe ir participando estas vendas e mandou-o convocar uma reunião de mujiques, no dia imediato, não só os de Kouzminskoie, como também os das aldeias limítrofes com as quais confinava a sua propriedade, para os pôr ao corrente da resolução que tomara e combinar o preço da renda.
Maravilhado pela energia com que resistira aos argumentos do gerente e pela abnegação que a sua renúncia em favor dos mujiques representava, Nekludov saiu do escritório e veio passear em redor da casa.
Caminhou ao acaso por entre os canteiros de flores, agora despojados delas, e atravessando o terreno do tennis, que as silvas e a chicória brava tinham invadido, dirigiu-se para a rua das tílias, onde outrora ia fumar o seu cigarro e onde, três anos mais cedo, cortejara a interessante madame Kirimov que visitava sua mãe. E, durante as últimas horas da tarde, estudou o discurso que no dia seguinte dirigiria aos aldeões; à noite tomou o chá com o gerente, dispôs tudo para a liquidação da propriedade, e tranquilo, satisfeito e contente, entrou para o quarto que lhe tinham preparado e que era o chamado dos hóspedes.
Na pequena sala admiravelmente limpa, cheia de quadros dependurados nas paredes, representando vistas de Veneza, havia entre as duas janelas um espelho e num dos cantos, junto à cama, uma mesa na qual estavam uma garrafa com a água e respetivo copo, uma vela no competente castiçal e ao lado deste o espevitador.
Numa mesa maior, fronteira ao espelho, a mala de mão de Nekludov estava aberta, deixando ver num dos vãos o estojo de toilette e alguns volumes sobre direito e criminologia, em russo, alemão, italiano e inglês. Nekludov trouxera-os para os ler nos momentos de ócio; quando os viu, ao entrar no quarto, sentiu que estava muito distanciado deles e dos assuntos que tratavam. Latejavam-lhe outras ideias no cérebro.
Junto ao leito estava uma antiga cadeira de mógono com embutidos, que fizera parte do mobiliário do quarto da mãe de Nekludov, que ao vê-la, experimentou um inesperado sentimento. Sentia-se dominado pela saudade da casa que seria demolida, do jardim que nunca mais seria cuidado, dos bosques e tapadas derribados e dessas dependências, cavalariças, estábulos e celeiros, com os seus habitantes, cavalos e vacas e que, ainda que nunca fossem utilizados por ele, tinham custado tanto esforço e tanta vida.
Um momento antes julgara fácil renunciar a tudo isso; agora via quanto era custoso abandonar esses bens e o rendimento que os tornava preciosos. Lentamente, iam-se acumulando no seu íntimo, argumentos dos quais deduzia que era rematada loucura ceder as terras aos mujiques e abandonar a gerência das propriedades.
«É verdade que não cultivo as terras e por isso não devo continuar a explorá-las como até agora; além disso, o mais provável é ter de ir para a Sibéria, onde nem precisarei de casas nem de terras», sugeria-lhe uma voz.
«Tudo isso é muito bonito, mas lembra-te que não vais passar toda a tua vida na Sibéria», respondia-lhe outra voz, «se te casares podes ter filhos, e deves deixar-lhes as propriedades como as encontraste: bem administradas. Depois, a terra exige obrigações. Quanto é fácil abandonar e destruir, é difícil fundar e construir. O que é essencial para ti é refletir no futuro da tua vida, assentar no que hás de fazer e regularizar a questão das propriedades. E, examina-te bem, interroga-te sobre se será unicamente para sossegar as exigências da tua consciência que queres proceder dessa maneira ou se será também para adquirires superioridade sobre os outros homens e poderes tornar-te jactancioso?»
E Nekludov interrogava-se e analisava-se, terminando por confessar que a opinião dos outros e a ideia do que diriam dele tinha grande influência nas suas resoluções.
O número das interrogações aumentava com a reflexão e Nekludov, com dificuldade, imaginava respostas próprias.
Para se desembaraçar destes pensamentos deitou-se entre a roupa fresca e tentou adormecer, adiando para o dia seguinte, quando estivesse com a cabeça repousada, a resolução dos problemas aos quais agora não dava explicação possível.
Conservou-se, porém, acordado muito tempo, sem que o sono o vencesse. Por entre as janelas, que deixara entreabertas, entrava o ar fresco da noite e o luar; no jardim, quando as rãs interromperam o contínuo grasnar, cantou brandamente um rouxinol: respondeu-lhe um outro abrigado num maciço de lilases junto da janela. E Nekludov recordou-se da música que a filha do diretor da cadeia tocava e do próprio diretor.
Maslova apareceu-lhe em espírito e reviu-a com os lábios trementes, a dizer: «É preciso que não cuide mais de mim!» De repente teve a impressão que o seu gerente caíra ao tanque onde grasnavam as rãs; bem sabia que o seu dever era ajudá-lo a sair de lá, mas não o fazia porque o viu transformar-se na Maslova e exclamar: «Eu sou uma condenada aos trabalhos forçados e tu és um príncipe!»
Agitou-o um estremecimento e ergueu-se no leito: «Não, não posso abandoná-la!», disse-se.
«Faço bem ou mal?», perguntou a si mesmo. «Sabê-lo-ei amanhã!»
E o sono prostrou-o.
Nekludov só acordou no dia seguinte às nove horas.
O seu empregado, que se constituíra na obrigação de o servir, logo que o sentiu despertado trouxe-lhe as botas, engraxadas como nunca o haviam sido, e água de fonte, fresca e límpida; ao mesmo tempo participou-lhe que os mujiques começavam já a chegar.
Nekludov saltou fora da cama e repassou na mente os acontecimentos da véspera. Desaparecera por completo, sem deixar vestígios, o sentimento que o invadira, quando pensara na renúncia às propriedades. Custava-lhe acreditar que se tivesse deixado influenciar a esse ponto, e enquanto se vestia, alegrava-se com a ação que ia praticar, a que se juntava um tudo nada de altivez.
Via através da janela, o terreno de tennis que as silvas tinham invadido e no qual se iam agrupando os lavradores.
As rãs não tinham grasnado baldadamente na véspera; durante a noite o tempo mudara e uma chuvinha miúda e branda, desacompanhada de vento, caía desde a manhã, deixando as folhas e as ervas a gotejar. Pela janela entrava o ar carregado com o aroma da vegetação verde e fresca e o cheiro da terra ensopada em água: uns atrás dos outros vinham chegando os mujiques que se dirigiam para o terreno do tennis desbarretando-se ao verem Nekludov, e formando em círculo, encostados aos varapaus.
O gerente, um vigoroso, forte e musculoso rapaz, vestindo rabona e colete verde com grandes botões, fez a sua entrada no quarto.
Participou a Nekludov que estava tudo reunido, mas que se podia esperar; não quereria Nekludov tomar chá ou café?
— Não, obrigado; ficará para depois, agora vamos tratar deste assunto.
E imaginando a entrevista com os mujiques, sentia-se dominado por um sentimento ainda mais imprevisto do que o dia anterior: era timidez e vergonha.
Ia enfim realizar um dos mais ardentes desejos dos mujiques, no qual nem sequer eles agora sonhavam; essa cedência de todas as suas terras, contra uma modesta renda, era um benefício inestimável que lhes fazia. E, sem causa aparente, sentia-se vexado.
Quando, ao aproximar-se dos aldeões, viu desbarretarem-se aquelas cabeças, umas louras, outras negras, umas grisalhas e encaracoladas, outras calvas, a má disposição que sentia, aumentou tanto, que, por muito tempo, não pôde falar. A chuva miudinha continuava a cair, molhando ao de leve os cabelos, as barbas e o pelo das blusas. Os aldeões, sem se incomodarem com ela, olhavam para o fidalgo, à espera que falasse, enquanto ele, imóvel e perturbado, sentia que o não podia fazer.
Este embaraçador silêncio foi, afinal, quebrado pelo gerente que como alemão tranquilo e senhor de si, se orgulhava de conhecer o aldeão russo. Era contraste notável vê-lo nutrido e bem alimentado, junto dos mujiques de rostos enrugados e corpos franzinos.
— Ouçam — disse o gerente — o príncipe está aqui para vosso bem! Quer alugar-vos todas as terras, ainda que as não mereçais!
— Como assim, Basílio Carlitch? Por acaso não trabalhamos para ti? — respondeu um aldeão de pequena estatura, ruivo, e muito falador. — Nós com a falecida princesa, que Deus tenha nos reinos dos céus, estávamos satisfeitos, e o jovem fidalgo parece que não tenciona abandonar-nos!
— O nosso desejo é respeitar os amos; mas a vida é tão negra! — disse um outro aldeão de feições achatadas e barba comprida.
— Mandei reuni-los para lhes participar que é minha intenção alugar todas as terras! — declarou Nekludov.
Os aldeões não responderam como se não compreendessem as palavras do fidalgo, ou recusassem acreditá-las. Por fim, um, mais corajoso, atreveu-se a perguntar:
— E quais são as condições?
— Alugar-vo-las por uma renda módica, para que possais lucrar alguma coisa.
— Isso é excelente! — disse um velho.
— O que é necessário é que a renda esteja ao nosso alcance — disse um outro.
— Porque razão não aceitaremos?
— É o nosso ganha-pão; é a terra que nos sustenta.
— Isso é bom de dizer! E o dinheiro para a pagar? — disse uma voz.
— Vós é que tendes culpa de o não ter! Trabalhem e guardem o dinheiro — interrompeu o gerente.
— Basílio Carlitch, não há razão para acusações! — respondeu um mujique de nariz pontiagudo. — Estais sempre a perguntar-nos: «Por que deixaste ir o teu cavalo para o trigo?» Ora nós ou trabalhamos, ou descansamos depois da tarefa e o cavalo foge para o trigo; e tu? Multas-nos e arrancas-nos a pele!
— É para vocês terem mais cuidado!
— Isso é bom de dizer, cuidado! Pode alguém fazer mais do que aquilo que nós fazemos?
— Pois façam o que estou sempre a dizer-lhes: ponham divisões nos campos!
— E quem nos dá a madeira? — perguntou um homenzinho muito magro, até aí oculto entre um grupo. — No verão passado, para fazer divisão de um campo, cortei uma árvore e tu mandaste-me durante três meses sustentar os piolhos na cadeia! Foi o que me custou a divisão.
— Que diz ele?— perguntou Nekludov.
— É o primeiro ladrão da aldeia — respondeu o gerente em alemão. — Todos os anos nos deita abaixo árvores... Foi para te ensinar a respeitar a propriedade alheia — disse o gerente, dirigindo-se ao lavrador que tinha falado.
— Bastante já nós te respeitamos — disse o velho — e fazemo-lo porque estamos nas tuas mãos e tu arrancas-nos as entranhas!
— Então, irmão, não magoes, que ninguém te insulta!
— Não me insulta? Ainda o ano passado me esmurrou e tudo ficou como dantes! Bem sabemos que não vale a pena processar gente rica!
— Trata tu de viveres conforme manda a lei!
E durante muito tempo continuou este torneio de frases, imprevisto, inútil e sem fim, em que todos falavam sem saber porquê; Nekludov, dominado pela impaciência, procurou encarreirar de novo a conversa para o assunto que o interessava:
— Então que decidem quanto às terras? Aceitam ou não? Quanto oferecem?
— O fidalgo que peça! As terras são suas!
Nekludov indicou o preço e posto que fosse muito inferior ao que ordinariamente se pagava, nem por isso os aldeões deixaram de regatear, achando-o muito elevado. Nekludov, que esperava ver a sua ideia acolhida com entusiasmo, ficou desiludido e os aldeões, se estavam satisfeitos, não o manifestaram.
Nekludov, porém, reconheceu por um indício certo, que a proposta que apresentara era uma bela pechincha para os aldeões. Quando se tratou de saber quem alugaria as terras, se a coletividade ou apenas uma sociedade, ergueu-se tal discussão, que por pouco passavam a vias de facto. Uns queriam excluir os fracos do contrato, para serem menos a receberem os lucros e os excluídos protestavam e resistiam.
Afinal o gerente interveio e combinou-se a renda; fixadas as datas de pagamento, os aldeões dispersaram, gesticulando e gritando, enquanto Nekludov voltava para o escritório, acompanhado pelo gerente, para redigir o projeto de arrendamento.
Regularizara-se tudo conforme os desejos de Nekludov; as terras ficaram por menos trinta por cento do que a renda habitual, e se os rendimentos de Nekludov tinham sido reduzidos a metade, ainda eram consideráveis, principalmente com a ajuda da venda das madeiras, e das alfaias agrícolas. Tudo caminhava em maré de rosas e contudo, Nekludov ficara dominado por uma sensação de aborrecimento, tristeza e constrangimento.
Observara que os aldeões não tinham ficado tão satisfeitos quanto ele esperava, posto que alguns lhe tivessem agradecido; e, efetivamente, esperava alguma coisa mais.
Quais eram, afinal, os resultados da sua abnegação? — perguntava a si mesmo. — Tinha-se privado da maior parte do seu rendimento, sem que os aldeões recebessem bens proporcionais.
No dia imediato pela manhã, depois de ter regularizado tudo com o gerente, Nekludov dirigiu-se para a estação, na troika em que lhe falara na véspera o cocheiro que o trouxera. Pelo caminho encontrava os aldeões disputando e acenando com a cabeça desapontadamente. Também ele se sentia desapontado, sem saber porquê; sentia a impressão de ter naufragado numa tentativa que plenamente executara. E invadia-o a vergonha e a tristeza.
III
De Kouzminskoie, Nekludov dirigiu-se para a propriedade que herdara de suas tias, onde conhecera Katucha. Desejava regularizar, como fizera na outra, as suas relações com os aldeões sobre o aluguel das terras, e queria aproveitar a ocasião para colher todas as informações possíveis sobre Katucha e sobre o filho. Este tinha efetivamente morrido ou fora abandonado pela mãe?
Quando chegou à propriedade era madrugada, e o que logo mais o impressionou foi o estado de deterioração e decadência em que se1 achavam todas as edificações, principalmente a casa de habitação.
O teto de ferro, com vestígios de outrora ter sido pintado de verde, tornara-se vermelho, roído pela ferrugem e em vários sítios tinha sido levantado pelo vento.
Das paredes haviam sido roubadas, em sítios diversos, tábuas inteiras; e, pregados às traves, tinham ficado grandes pregos, também todos enferrujados.
Os degraus de madeira da escadaria e os guarda-ventos, estavam despedaçados e apodrecidos, as vidraças tinham sido substituídas por tábuas e no interior abundava a porcaria e a humidade, desde a parte da casa habitada pelo administrador, até às cozinhas e cavalariças. Só o jardim não estava destroçado, antes crescera livremente. Por sobre a divisão que o separava, Nekludov confundiu as flores das cerejeiras, das macieiras e das ameixoeiras, com grandes nuvens brancas. Como há catorze anos, quando Nekludov jogava o gorélki com Katucha, o maciço de salgueiros, atrás do qual caíra e se picara nas ortigas, estava também em completa florescência.
Uma tília que Sofia Ivanovna plantara e que Nekludov conhecera uma delgada vara transformara-se numa grande árvore, com o tronco revestido de musgo e coberto de odoríferas flores amarelas.
Em baixo, no fundo da colina, deslizava o regato, espumando ruidosamente junto ao açude do moinho.
E, no prado da outra margem, pastavam em comum os rebanhos da aldeia.
O administrador, um seminarista, que não terminara o curso, caminhou ao encontro de Nekludov; e, sempre a sorrir, pediu-lhe que entrasse e se sentasse no escritório, como se, com o seu sorriso, prometesse alguma excecionalidade.
Nekludov gratificou o cocheiro que o conduzira e este retirou-se. Em toda a casa reinou, por momentos, completo silêncio. Uma rapariga descalça, vestindo camisa bordada, passou em frente da janela, a correr. Logo atrás, correndo também, passou um lavrador, batendo com as botas ferradas no solo.
Nekludov sentou-se junto da janela. A aragem fresca da primavera, agitou-lhe levemente os cabelos deitados na testa incandescida, e fê-lo respirar o belo aroma da terra recentemente lavrada. Do regato elevava-se de mistura com a bulha da queda da água no açude, o ruído das pás das lavadeiras, batendo a roupa.
A recordação do que outrora fora, quando, inocente e ingénuo, ouvia estes mesmos sons, enquanto a brisa lhe levantava também os cabelos, invadiu Nekludov; e, mentalmente, regressando àquela época, sentia se o mesmo de então, com a mesma frescura, pureza e generoso entusiasmo dos dezoito anos; súbito, como que acordando de um sonho, reconheceu a ilusão, viu que nada disso existia já, e uma profunda tristeza apoderou-se dele.
— A que horas deseja jantar? — perguntou-lhe o administrador, sorrindo sempre.
— Quando queira. Não tenho apetite. Eu antes vou dar uma volta pela aldeia.
— Porque não quer descansar nos meus aposentos? Ao menos ali está tudo em ordem. Desculpar-me-á o aspeto externo...
— Isso depois, depois. Diga-me, sabe se ainda existe aqui uma mulher chamada Matrena Charina?
Era o nome da tia de Katucha em casa de quem ela dera à luz a criança.
— A Charina? Sim, senhor, ainda vive na aldeia. Por sinal que me incomoda bem. É ela que está à frente da taberna. Estou sempre a ralhar-lhe e a ameaçá-la com a expulsão, se não pagar; mas chega a ocasião e compadeço-me dela, não posso ser superior! É uma pobre velhota com um rancho de crianças... — explicou o administrador, com o seu eterno sorriso desejando ser amável com o amo e fazê-lo partilhar os seus pontos de vista.
— Em que sítio mora ela? Desejava falar-lhe.
— Na extremidade da aldeia; é a antepenúltima casa do lado esquerdo; junto há uma casa de tijolos e pegado é a taberna. Se deseja vou acompanhá-lo.
— Não, muito obrigado; as indicações são suficientes. Entretanto faça reunir os mujiques, para lhes falar sobre o aluguer das terras.
IV
Ao seguir o atalho através do prado, Nekludov encontrou a rapariga que vira momentos antes passar a correr em frente da janela.
Voltava da aldeia, correndo sempre, firmando-se nos grandes pés descalços, e acompanhando a marcha com o balouçar do braço esquerdo, pendente; com a mão direita segurava de encontro ao peito um pequeno galo de crista vermelha, oscilante, que tranquilamente, ora estendia ora encolhia uma das pernas, firmando-a no avental da rapariga, enquanto movia em todos os sentidos os olhos pequenitos e vivos.
Ao aproximar-se do fidalgo a rapariga diminuiu o andamento, e quando se cruzaram parou, saudando-o respeitosamente; depois redobrou de velocidade, em companhia do galo.
Ao passar junto a um poço, Nekludov encontrou também uma velha, curvada sob o peso de dois baldes de água dependurados nas extremidades de uma vara que sustinha num ombro; a velha, quando o viu, pousou os baldes e fez-lhe uma grande mesura.
Logo a seguir ao poço começava a aldeia. Eram apenas dez horas e o dia, excessivamente quente para a estação, estava magnífico; de vez em quando, as nuvens acasteladas escondiam o sol.
Um forte e acre cheiro a estrume erguia-se dos carros, que subiam a única rua da aldeia e das pilhas formadas nos pátios das cabanas, espalhando-se, mas não desagradavelmente, na atmosfera. Atrás dos carros, descalços e com as camisas e calças manchadas pelo estrume, caminhavam os aldeões, olhando com curiosidade para o forte e robusto fidalgo vestindo roupa cinzenta forrada a seda, que atravessava a aldeia a passo rápido, agitando uma magnífica bengala de castão de prata.
As mulheres apareciam pelas portas para o ver e, seguindo-o com o olhar mostravam-no umas às outras.
Nekludov, ao passar em frente de uma das portas, teve de parar, porque na ocasião saía um grande carro carregado até ao alto com estrume; à frente tentando fazer sair os cavalos, vinha um jovem mujique, calçando laptis5.
Um poldro com as pernas muito compridas, tinha já passado a porta, quando, assustando-se ao ver Nekludov, retrocedeu para junto da mãe, que rinchou de inquietação. Um mujique, velho e magro, também descalço e vestindo calças às riscas e blusa que lhe deixava adivinhar os ossos salientes das costas, vigiava cuidadosamente a saída.
Quando, por fim, o carro começou a percorrer a rua, o velho dirigiu-se a Nekludov e cumprimentou-o respeitosamente.
— O fidalgo é o sobrinho das falecidas senhoras?
— Sim, sou.
— Pois seja bem vindo! Então veio ver-nos? — continuou o velhote amigo de conversar.
— Exato! Quero ver a forma como viveis.
— Como vivemos! Mas na miséria! — respondeu o velho, satisfeito por ter ocasião de conversar.
— Na miséria? E porquê? — perguntou Nekludov, aproximando-se da porta.
— É uma triste vida!
Tinham caminhado para o interior do pátio.
— Nós somos doze pessoas em casa! — continuou, apontando para duas mulheres que, de mangas arregaçadas e saias enfaixadas, deixando ver a perna até ao joelho, estavam em cima dos restos da pilha de estrume, com os forcados nas mãos. — Todos os meses tenho de comprar farinha para pão; e como hei de arranjá-la?
— Então tu não tens trigo?
— Trigo, eu? — exclamou o velho, sorrindo desdenhosamente. — O que tenho dá para três pessoas. Aí pelo Natal já não havia nenhum!
— Então como te arranjas?
— Como calha: aí está! Um dos rapazes foi para a tropa; e pede-se emprestado ao fidalgo ou vou trabalhar alugado. Se ao menos pudéssemos pagar o imposto!
— E quanto é?
— Dezassete rublos; eu nem sei como hei de governar-me!
— Dás licença que veja a tua casa? — perguntou Nekludov, atravessando o pátio, com as narinas atacadas pelo cheiro do estrume.
— É entrar à vontade! — respondeu o velho. E passando rapidamente à frente de Nekludov, abriu-lhe a porta.
As duas mulheres que atavam os lenços nas cabeças e desciam as saias, ficaram espantadas quando viram o fidalgo, tão bem vestido, e com botões de ouro nos punhos, querer entrar na cabana.
Depois de atravessar um pequeno corredor, Nekludov entrou na isba, cheirando a comida azedada, que dois teares tornavam acanhadíssima. Junto ao fogão uma velha com as mangas arregaçadas, mostrando uns braços magros, cozinhava.
— É o fidalgo que veio ver-nos — disse-lhe o velho.
— Que viesse em boa hora! — E, inclinando-se, desarregaçava as mangas da camisa.
— Quis saber como viveis — disse Nekludov.
— Então repara como vivemos — exclamou atrevidamente a velha, agitando a cabeça com um gesto nervoso. — A isba ameaça ruína; qualquer dia mata um de nós. Lá o meu velho diz que ainda está muito bem, e assim vai indo. Agora estou a fazer o jantar, porque sou eu que dou de comer a toda a gente!
— E que é que tendes para jantar?
— O que vamos comer? Um belo jantar; primeiro, pão e kvass; depois, kvass e pão!
E a velha desatou a rir, deixando ver a boca desdentada.
— Fora de brincadeira, deixem-me ver o que ides comer hoje.
— Então, mulher? Mostra-lho!
A velha acenou com a cabeça.
— Então queres ver a nossa comida? Tu és um fidalgo como não conheço outro! Queres ver e saber de tudo! O que há é pão, kvass, caldo e batatas cozidas.
— Mais nada?
— Que mais queres? — respondeu a velha olhando para a porta.
Nekludov olhou também e viu que atrás, no corredor, apinhava-se a aldeia toda. Eram crianças, raparigas, mulheres com recém-nascidos ao seio, tudo aglomerado à porta, examinando o extraordinário fidalgo que vinha inquirir do alimento dos mujiques. E a velha continuava a sorrir, muito orgulhosa da maneira como conversava com o fidalgo.
— Sim! É uma vida bem triste! — disse o velho. — Olá! Que é que vocês querem daqui? — exclamou, dirigindo-se aos curiosos, que quase entravam pela casa dentro.
— Adeus e obrigado! — disse Nekludov, sentindo-se indisposto e envergonhado por motivos que não procurava sondar.
— Humildemente agradecemos a honra que nos destes! — disse o velho.
Nekludov passou por entre duas filas compactas de aldeões que, de boca aberta, se afastaram respeitosamente. Na rua, quando começava a seguir caminho, notou que dois garotitos, descalços, o acompanhavam. O mais velho trazia uma camisa suja, que devia ter sido branca noutros tempos e o outro uma camisa cor de rosa toda remendada. Nekludov entabulou conversa:
— Vocês que querem?
— Onde vais tu agora? — perguntou-lhe o da camisa branca.
— Vou a casa de Matrena Charina! — respondeu Nekludov. — Tu conhece-la?
O mais pequenito desatou a rir. O outro respondeu com toda a seriedade:
— Qual Matrena? É a velha?
— Sim, é a velha!
— Então é a Sémenicha. É no fim da aldeia. Vamos com ele, Fedka? Vamos segui-lo?
— E os cavalos?
— Não faz mal!
Fedka, concordando, todos três começaram a subir a comprida rua da aldeia.
V
Nekludov sentiu-se mais a vontade acompanhado pelos dois garotos, que palrando todo o caminho, o distraíram. O mais pequenito, o da camisa cor de rosa, deixara de rir e com inteligência e gravidade conversava com o companheiro.
— Tu sabes quais são os mujiques mais pobres cá da aldeia? — perguntou-lhe Nekludov.
— Os mais pobres? Mikail é pobre e Seméne Makarov também; mas Marta é a mais pobre de todos.
— Então Aníssia não é muito mais pobre? Nem sequer tem uma vaca! Vive de esmolas.
— Sim, Aníssia não tem vaca — respondeu o mais velho — mas em casa só tem duas pessoas, e Marta tem cinco!
— Mas Aníssia é viúva!
— E Marta é como se fosse! Está sem marido!
— Então onde está ele? — perguntou Nekludov.
— A dar de comer aos piolhos na cadeia — respondeu o mais velho.
— Foi por ter cortado dois vidoeiros, faz agora um ano. Prenderam-no e a mulher agora pede esmola. Tem três filhos e a mãe doente para sustentar.
— E onde é que ela mora?
— Aqui mesmo, nesta casa! — respondeu um deles, apontando para uma cabana em frente da qual engatinhava com esforço uma criança de pernas arqueadas e de cabelo louro.
— Vaska, grande tratante, anda para casa! — gritou da porta uma mulher ainda nova, cujas saia e camisa pareciam cobertas de cinza, tão sujas estavam.
E com olhar assustado correu a agarrar a criança; sem fitar Nekludov entrou de novo para casa com ela.
Fora o marido desta mulher que cortara as duas árvores nos bosques de Nekludov, pelo que estava preso.
— E que mais? Matrena também é pobre? — perguntou Nekludov, quando se aproximavam do fim da aldeia.
— Pobre, ela?!... Ela vende bebidas!... — respondeu o pequeno da camisa cor de rosa, resolutamente.
Junto à porta de Matrena, Nekludov despediu-se dos seus companheiros.
Nekludov entrou e viu logo que não havia mais nada do que a pequena sala para onde entrara e na qual Matrena, ajudada por uma neta, procurava introduzir alguma ordem.
Mais duas crianças, ao verem o recém-chegado, saíram de um canto e vieram para junto da porta, espreitar curiosa e assustadamente.
— Que deseja? — perguntou a velha, com voz áspera, indisposta por ser interrompida na sua ocupação e, como taberneira que era, desconfiada ao ver um desconhecido.
— Eu sou... o proprietário aqui destas terras e queria falar-lhe.
A velha, sem responder, ia-o examinando com os olhitos. De repente a expressão do rosto transformou-se-lhe.
— Pois és tu, meu amor! E eu velha tonta que não te reconheci! E dizia: é alguém que passa e que quer pedir-me qualquer coisa! Em nome do Cristo perdoa-me!
E exprimia-se em voz terna e acariciadora.
— Será possível falarmos em particular? — perguntou Nekludov, indicando com o olhar a porta aberta onde estavam as crianças e onde aparecera agora uma mulher nova e magra, com uma criança nos braços, coberta com uns tristes farrapos, e que apesar de pálida e doente entreabria os lábios num sorriso.
— Vocês que querem daqui! Esperai que eu já vos corro! Rua e fechem a porta! — gritou-lhes Matrena.
As crianças saíram e a mulher com o seu fardo nos braços afastou-se também.
— E eu a perguntar quem seria! E era o meu fidalgo, a minha joia e o meu tesouro, que a gente não se farte de ver! Senta-te neste banco, excelência — continuou a velha, limpando-o cuidadosamente. — E eu a julgar que era o diabo que me vinha apoquentar, e é o meu fidalgo, o meu benfeitor e senhor! Perdoa-me que são os olhos que me atraiçoam!
Nekludov sentou-se. A velha ficou em pé na sua frente, com o queixo apoiado à mão direita e com a esquerda segurando o cotovelo do braço direito. E na mesma voz lisonjeadora, continuou:
— E o tempo passa, Excelência! Mas tu se eras belo, muito mais o estás!...
— Vamos ao que me trouxe cá! Recorda-se de Katucha?
— Catarina? Como não me hei de lembrar! Era minha sobrinha! Muito me fez chorar! Eu sei tudo, sei o que houve! Ah, paizinho, quem é que nunca pecou contra Deus e contra o Tzar? A culpa é da mocidade! E que se lhe há de fazer? Outros no teu lugar tê-la-iam abandonado, enquanto tu recompensaste-la com cem rublos! E ela, que fez ela? Ninguém a chamou à razão! Ah! que se ela tivesse seguido os meus conselhos, poderia ter sido feliz! Ela é minha sobrinha, mas a verdade é que não pensa nada! Arranjei-lhe uma casa tão boa! Mas, não senhor; não se quis humilhar e insultou o amo! Como se nós tivéssemos o direito de insultar nossos amos! Está visto que a despediram! Depois noutra casa, também não quis ficar!
— O que queria saber era se ouviu falar na criança...
— Se ouvi falar! Mas foi aqui que ela nasceu! E que belo rapaz! Mas tão inquieto! Não a deixava sossegada! Batizei-o como devia e depois mandei-o para a roda! A mãe estava fraca e se o deixasse ficar com ela, aquela alminha morreria. É o que fazem todas! Ficam com o pequeno e não o alimentam; Deus torna a tomar conta dele! Nada, disse eu comigo, quero que ele viva. E como havia dinheiro mandei-o para a roda!
— E sob que número foi inscrito?
— Sim, teve um número. Mas mal chegou morreu logo. Foi o que ela disse: «Mal chegou à roda, morreu logo!»
— Quem é ela?
— A que o levou! Era uma que morava em Skorodno, chamada Melânia e que se empregava nisto. Morreu há pouco. Era fina como um coral! Sabe como fazia? Quando lhe traziam uma criança, em vez de a levar ao hospício, ficava com ela algum tempo, à espera de mais. Ia sustentando-as, e quando tinha três ou quatro levava-as todas juntas. Tinha um grande berço e deitava-as todas lá: duas para um lado, duas para outro, uma chucha artificial na boca de cada uma, para não gritarem.
— E a criança era bonita? — perguntou Nekludov com voz trémula.
— Ainda que quisesses melhor não encontravas! Era o teu retrato! Podia lá viver! — respondeu a velha piscando os olhos.
— Então de que morreu? Falta de alimento?
— Pois como querias que fosse bem alimentada? Melânia só ajustou conduzi-la à roda. Não era seu filho, não podia dar-lhe mais alimento! Mas trouxe atestados e certidão! Tudo regularizado! Era esperta como um alho!
E foi tudo que Nekludov conseguiu saber.
VI
Quando Nekludov, depois de se ter despedido de Matrena, saiu para a rua, viu que os garotitos tinham ficado à sua espera. Outros tinham-se-lhes juntado, bem como algumas mulheres, entre as quais Nekludov reconheceu aquela desgraçada com a criança nos braços, coberta de farrapos andrajosos.
O pequerrucho, anémico e de feições chupadas, continuava a sorrir.
Nekludov inquiriu quem era aquela mulher.
— É Aníssia, aquela de quem nós falámos — disse um dos garotos. — Fui eu que a chamei para a ver.
— Como e de que é que vive? — perguntou-lhe Nekludov.
— De que vivo? Do que me dão — respondeu Aníssia, desatando a chorar.
A criança, agitando as pernas da grossura de dois espetos, continuava a sorrir.
Nekludov puxou da carteira e deu dez rublos à mãe. Mal andara dois passos já outra mulher também com um filho ao seio, lhe saía ao encontro e depois outra e mais outra, todas queixando-se da miséria e pedindo auxílio.
Nekludov distribuiu uns cinquenta rublos que trazia consigo e com a tristeza no coração regressou ao escritório do seu administrador.
Soube aí que só à tarde é que se reuniam os aldeões. Para fazer horas, foi passear para o jardim, por entre a alta erva que invadira os caminhos juncados com as flores brancas e cor de rosa das macieiras. E tudo que tinha visto começava a avolumar-se e a sugerir-lhe pensamentos:
«Se estes infelizes morrem é porque a terra necessária ao seu sustento e sem a qual ninguém pode viver não é bastante, ou então porque a cultivam para aqueles que vão vender os produtos no estrangeiro, comprando em troca peliças bengalas, bronzes e carros. Quando os cavalos encerrados numa pastagem comerem toda a erva que lá houver, emagrecerão e morrerão se não lhes deixarem comer a erva da pastagem vizinha: é o que sucede com estes infelizes. Perecem sem o sentir, de habituados que estão a uma organização em que o assassínio das crianças, o esfalfamento das mulheres e a insuficiência de alimento para novos e velhos constituem as principais bases. Lentamente perdem a consciência do mal que os acabrunha e nós, os autores desse mal, consideramo-lo natural e necessário. Então, nas academias e universidades, nas secretarias e nos jornais, discorremos ociosamente sobre a causa da miséria dos aldeões, procuramos o meio de a remediar, enquanto deixamos subsistir sem nunca lhe fazermos a menor alusão, a causa única dessa miséria — a carência de terra com que eles lutam.»
Nekludov compreendeu que simples e claro como isso era, há mais tempo o devia ter percebido.
De repente Nekludov ouviu, na retaguarda da casa, duas vozes de mulheres, falando irritadamente, de tempos a tempos interrompidas pela voz desagradável do administrador. Nekludov prestou atenção.
— Estou exausta de forças! Querer tirar-me a cruz que trago ao pescoço! — dizia uma das mulheres.
— Não havia um instante que tanto ela como a vaca tinham ido para lá! Dê-lhe a vaca, vamos!
— há de pagar a multa ou trabalhar de graça — insistia o administrador.
Nekludov saiu do jardim, contornou a casa e encaminhou-se para o pátio. No alto da escada estava o administrador e ao fundo duas aldeãs — uma delas grávida. Quando viram o amo, as duas mulheres calaram-se e o administrador, tirando as mãos dos bolsos, recomeçou a sorrir.
Nekludov soube então que os aldeões estavam no mau hábito de soltar, no prado pertencente à casa, as vacas e suas crias que lhes pertenciam, e que nesse momento tinham sido vistas pastando no prado duas vacas que pertenciam aquelas mulheres. O administrador queria multá-las em trinta kopeks ou em dois dias de trabalho grátis. As mulheres insistiam em que as vacas tinham ido para o prado contra sua vontade e que não tinham dinheiro, e pediam para que lhes fossem entregues as vacas que tinham sido apreendidas.
— Quantas vezes vos tenho dito que tenhais cuidado com o gado? — exclamou o administrador, sorrindo para Nekludov para que este fosse testemunha da sua indulgência.
— Mal virei costas por um momento e o animal fugiu logo para lá!
— Pois não devias perdê-la de vista!
— Então quem me sustentaria as crianças em casa? Quem havia de dar-lhes o peito? — disse a outra mulher. — E então se as vacas tivessem causado prejuízo! Elas mal tiveram tempo para lamber a erva!
— Mas se vos deixassem, lá se ia todo o feno!
— Para quê mentir e pecar? — exclamou a mulher grávida. — A minha vaca nunca foi agarrada por motivos semelhantes!
— Mas já que a agarrámos, ou pagas a multa ou trabalhas os dois dias.
— Pois trabalharei! Quero, porém, a minha vaca, senão morre de fome nas vossas mãos. Para miséria já me basta a que me atormenta dia e noite. Minha sogra doente, meu marido borrachão! Eu sozinha para fazer o trabalho todo! Não posso! E que vós e o vosso trabalho estourem!
Nekludov pediu ao administrador que restituísse a vaca e regressou ao jardim para pensar novamente no problema que o preocupava.
A solução dele era tão simples que espantava-se de não a ter há mais tempo compreendido.
Compreendeu com toda a força da evidência que o único remédio eficaz contra a miséria dos aldeões era restituir-lhes a terra da qual se sustentavam.
Compreendeu que se as crianças morriam era porque o leite não bastava para a sua subsistência e se o leite não chegava era porque faltavam as pastagens para o sustento das vacas. E de repente recordou-se das teorias de Henry George e do entusiasmo com que as acolhera, admirando-se de tê-las esquecido. «A terra não pode ser objeto de propriedade particular; não pode ser vendida nem comprada, como o não são a água, o ar, e a luz do dia. Todos os homens têm direitos iguais à terra e à riqueza que ela produz».
E Nekludov compreendeu donde provinha a vergonha que sentira durante as negociações para o aforamento de Kouzminskoie.
É que então procurava enganar-se a si mesmo. Sabendo que nenhum homem tem direito de possuir a terra, reconhecera-se com esse direito e cedera aos aldeões parte de uma riqueza que, no íntimo da alma, sabia não ter direito de possuir.
«Hoje porém procederei diferentemente e mais tarde desfarei o arrendamento de Kouzminskoie!» E arquitetou um projeto consistindo em alugar as propriedades de modo que a importância do aluguel não fosse utilizada por ele, mas sim pelos locatários, para pagarem impostos e também para custearem outras despesas de utilidade reconhecida.
Não era o ideal absoluto que sonhava, mas nas circunstâncias atuais, não concebia outra combinação mais próxima do ideal. O essencial era renunciar à posse legal da terra.
Quando regressou ao escritório do seu administrador, este, com o seu eterno e solícito sorriso, participou-lhe que o jantar estava pronto, talvez, um pouco esturrado, disse, apesar dos cuidados que sua mulher e a ajudanta tinha empregado.
Uma grosseira toalha cobria a mesa e sobre esta fumegava a terrina de velho Saxe com asas partidas (último vestígio de um luxo extinto) contendo uma sopa de batata, na qual fora cozido o galo que Nekludov vira algumas horas antes, estendendo e encolhendo as pernas negras.
Nekludov reconheceu-lhe as pernas nadando na sopa e a seguir apareceu o infeliz, decepado de cabeça e membros, e cercado por uma sauce au beurre.
Apesar de tudo estar mediocremente feito, Nekludov comeu com apetite sem saber o que comia, entregue inteiramente ao projeto que arquitetara e que conseguira dissipar-lhe o aborrecimento e o mau humor.
A mulher do administrador espiava, pela porta entreaberta, o modo como a rapariga fazia o serviço da mesa. O administrador, contente com o talento culinário da esposa, sorria cada vez mais complacentemente.
Em seguida ao jantar Nekludov obrigou-o a sentar-se à mesa. Sentia a necessidade de lhe falar, de exprimir a alguém, fosse a quem fosse, os nobres pensamentos que o coração lhe ditava. Expôs-lhe o projeto que concebera de ceder as terras aos mujiques, e pediu-lhe a sua opinião. O administrador sorriu, como se ouvisse formular um pensamento que já germinara no seu cérebro e que lhe agradava ver realizado: na realidade, porém, não compreendera absolutamente nada, não porque Nekludov se tivesse exprimido obscuramente, mas apenas porque estava profundamente convencido que era impossível a qualquer homem ocupar-se doutros interesses que não fossem os seus, e o projeto de Nekludov assentava num renunciamento de interesses pessoais.
Quando Nekludov falou em empregar todo o rendimento das propriedades num fundo de reserva a favor dos mujiques, o administrador julgou ouvir mal.
— Compreendo! — disse. — Aluga as terras e recebe uma percentagem?
— Mas não, não é isso. Ouça bem! Quero entregar-lhes as terras sem encargos.
— Mas nesse caso — exclamou o administrador abandonando o sorriso — nunca receberá rendimento!
— Precisamente, renuncio totalmente.
O administrador suspirou profundamente, mas logo em seguida o sorriso reapareceu-lhe nos lábios. Finalmente compreendera. Compreendera que Nekludov perdera o juízo e que o melhor era procurar a maneira de lucrar alguma coisa com tal decisão. Acabara por admitir a realização do tal projeto — uma excentricidade como muitas, que era necessário explorar convenientemente.
Mas, quando descobriu, passados momentos, que o projeto de Nekludov não lhe seria de nenhuma utilidade, invadiu-o de novo manifesta má vontade, e se continuou a sorrir foi unicamente para ser amável com Nekludov, que era o amo.
Nekludov, cansado e desanimado de fazer-lhe compreender as suas ideias, separou-se dele e entrou no escritório, onde, sentado a uma mesa antiga manchada de tinta e cortada por canivetadas, procurou desenvolver seu plano.
O sol desaparecera e o crescente da lua era já visível. Um enxame de mosquitos invadiu a sala, zumbindo à volta da cabeça de Nekludov, que a escrever, ouvia o tropear dos rebanhos que regressavam e o abrir e fechar das portas dos estábulos, de mistura com as vozes dos mujiques dirigindo-se ao escritório.
Acabou de escrever apressadamente e chamando pelo administrador, declarou-lhe que não queria que os aldeões viessem ao escritório porque ele próprio ir-lhe-ia falar à aldeia, num ponto combinado.
Bebeu rapidamente uma chávena de chá que o administrador lhe mandou preparar e dirigiu-se para a aldeia.
VII
Os mujiques tinham-se reunido junto a casa do starosta e conversavam ruidosamente; logo que Nekludov apareceu fez-se silêncio e como em Kouzminskoie, desbarretaram-se. Estes aldeões eram muito mais rudimentares em civilização do que os de Kouzminskoie e usavam, na maioria, cafetãs feitos em casa e calçavam laptis. Um ou outro andava descalço e estava como viera do trabalho do campo: com as mangas da camisa arregaçadas.
Procurando dominar a timidez que se apoderava dele, Nekludov começou logo a falar, explicando-lhes que projetava ceder-lhes as terras. Todos escutavam silenciosamente, sem que nenhum rosto manifestasse emoção.
— ...e isto porque penso — disse Nekludov enrubescendo — que todos os homens têm direito a servir-se da terra.
— Isso é verdade! A verdade pura! — disseram algumas vozes.
Continuando a falar, Nekludov explicou-lhes que o rendimento das terras devia ser dividido entre todos e que para isso lhes cederia as terras por uma renda que seria fixada por eles próprios e que constituiria, de futuro, um fundo social de uso comum.
Ainda se ouviram algumas palavras de aprovação, mas Nekludov compreendeu pelos rostos dos aldeões, a princípio fitando-o e agora desviando o olhar para o chão, que eles imaginavam haver qualquer astúcia na proposta do fidalgo e que todos estavam de guarda para não serem enganados.
Nekludov era tão claro na sua exposição quanto o podia ser e os aldeões estavam longe de ser estúpidos: se não o compreendiam era pela mesma razão que impedira o administrador de compreender.
Arreigara-se lhes a convicção que os homens tratam unicamente dos seus interesses, o que a experiência lhes confirmara sempre que tinham a tratar com os gerentes das propriedades; já sabiam que quando os mandavam reunir para lhes fazer qualquer nova proposta era, em última conclusão, para os envolver nas malhas astuciosas de uma nova rede.
— Que renda oferecem pelas terras? — perguntou Nekludov.
— Nós não podemos oferecer! Isso é impossível! Logo que a terra não nos pertence não podemos! — responderam várias vozes.
— Mas estou a dizer-vos que essa renda há de ser distribuída conforme as necessidades de cada um!
— Isso não pode fazer-se.
— Façam por compreender! — exclamou o administrador, que viera seguindo Nekludov e que julgava oportuno intervir, para aplanar dificuldades. — Então vocês não entendem que é propósito do príncipe alugar-vos as terras por dinheiro para que esse dinheiro fique constituindo um fundo de reserva comum a fim de acudir às vossas necessidades?
— Nós compreendemos muito bem o príncipe — disse um velhinho desdentado, de rosto impertinente. — É assim qualquer coisa como um banco, em que os pagamentos são a prazos fixos. Mas nós não queremos isso! Sabe Deus o que nos custa a aguentar assim como está! De outra maneira é a nossa ruína!
— É o que é! Mais vale como está agora! — exclamaram várias vozes descontentes, quase que irritadas.
O descontentamento aumentou quando Nekludov lhes participou que o contrato para ser assinado estava em poder do administrador no escritório.
— Assinar? Assinar o quê? Assim como temos trabalhado até agora, assim continuaremos! De que serve isso? Bem se sabe que somos uns ignorantes e não nenhuns doutores!
— Nós não acedemos porque não estamos habituados a esses negócios! Pedimos que tudo fique como até aqui! Ou então se quer fazer algum alívio que se encarregue das sementes!
Isto queria dizer que de futuro seria o proprietário quem forneceria as sementes para semear nos campos trabalhados pelos mujiques.
— Recusais então? Não quereis receber as terras como vo-las dou? — perguntou Nekludov a um mujique de olhar penetrante, descalço, vestindo um cafetã remendado e que com a mão esquerda segurava um barrete esfarrapado, lembrando o modo como os soldados tiram os seus, quando a isso são obrigados.
— Isso mesmo, Excelência — respondeu o aldeão, ainda não desabituado da disciplina militar.
— Visto isso, tendes muita terra? — reinquiriu Nekludov.
— Terra? Quase que nenhuma! — retorquiu o ex-soldado com forçada delicadeza.
— Como assim? Dou-lhes tempo para refletirem! — declarou Nekludov, caminhando de espanto em espanto.
E, ainda mais uma vez, repetiu-lhes a oferta.
— Não temos que refletir! A nossa resposta não se altera — respondeu o velho desdentado, com as feições ainda mais impertinentes.
— Demorar-me-ei até amanhã. Se mudarem de opinião participem-mo.
Ninguém respondeu.
Convencido de que nada mais obteria deles, Nekludov regressou tristemente para a residência.
— Deve concordar, príncipe — disse-lhe o administrador, sempre com o sorriso obsequioso nos lábios — que nunca conseguirá entender-se com eles; são teimosos como jumentos! Quando se lhes mete qualquer coisa na cabeça não há maneira de demovê-los! É sempre com medo de tudo! E apesar disso não se pode dizer que sejam estúpidos: há-os mesmo muito inteligentes como mujiques, por exemplo, o velho, o que foi o primeiro a rejeitar o seu oferecimento. Quando vem ao escritório, convido-o a tomar chá e é um regalo ouvi-lo falar de tudo. Mas aqui torna-se outro! Não há maneira de o fazer compreender.
— Então poderá fazer-se com que alguns deles, os mais inteligentes, venham aqui? Explicar-lhes-ia pormenorizadamente a minha ideia — disse Nekludov.
— Sim, senhor, porque não! — respondeu o administrador.
— Então marque-lhes reunião para amanhã de manhã.
— Nada mais fácil. Amanhã aqui estarão.
VIII
Mal saiu do escritório, Nekludov dirigiu-se para o quarto que lhe haviam preparado para passar a noite. Já conhecia a enorme e alta cama que agora via com duas travesseiras, guarnecida com um edredão e com uma coberta adamascada, que certamente pertencia à mulher do administrador. Este acompanhou-o até à porta e convidou-o a cear os restos do jantar, antes de se recolher. Nekludov recusou e agradeceu; o administrador retirou-se, desculpando-se da simplicidade da receção.
Desvanecera-se a tristeza que dominara Nekludov quando ouvira os aldeões recusarem a sua proposta, e posto que aqui tivesse encontrado da parte dos mujiques hostilidade, enquanto em Kouzminskoie tinha recebido agradecimentos, estava tranquilo e contente.
O ar do quarto estava sufocante, e Nekludov saía na intenção de ir ao jardim; recordou-se daquela terrível noite, da janela através da qual passavam os ténues raios de luz que vinham alumiar o pátio, e não sentiu coragem para tornar a ver lugares de execranda recordação. Sentou-se na escadaria, aspirando o forte perfume dos rebentos dos vidoeiros, que haviam impregnado a serena atmosfera noturna, e quedou-se por muito tempo olhando para as manchas sombrias das árvores e escutando ora o barulho da queda da água no açude, ora o canto de um rouxinol, oculto num maciço de verdura.
Nos quartos do administrador desaparecera a luz; por entre as nuvens surgiu o crescente da lua, e de vez em quando curtos relâmpagos iluminavam o jardim florido.
Ao longe ribombou um trovão; uma nuvem negra cobriu parte do firmamento.
O rouxinol emudeceu. No regato, o grito áspero dos patos confundia-se com a queda da água no açude: pouco depois, no pátio da casa e ao longe, na aldeia, cantaram os galos, como ordinariamente sucede em noite de tempestade, muito antes da madrugada.
Diz o rifão que quando os galos cantam cedo, a noite é alegre.
Para Nekludov assim era; ainda mais do que com alegria sentia a alma a transbordar-lhe de êxtase e felicidade.
A imaginação renovava-lhe as impressões sentidas outrora durante esse encantador verão que ainda jovem e inocente, passara nestes mesmos lugares; e sentia que regressava a esses tempos e ao que então fora. Sentia se regressado à quadra mais bela da sua vida, quando aos catorze anos rogava a Deus que lhe mostrasse a Verdade ou quando» desfeito em lágrimas sobre os joelhos de sua mãe, lhe jurava ser sempre bom e nunca lhe dar desgostos. Era bem o mesmo Nekludov que havia resolvido com o seu amigo Nicolau Irtenev auxiliarem-se mutuamente no caminho do bem, e dedicarem-se a tornar os homens felizes. Recordou-se da tentação que em Kouzminskoie lhe fizera lastimar a perda da sua casa, dos seus bosques e das suas terras.
Rebuscou no coração se ainda haveria algum vestígio dessa saudade, e viu que se desvanecera totalmente e que agora já nem compreendia que a houvesse sentido. Recordou também o que vira nesse dia na aldeia, quando fora a casa de Matrena. E a mulher sem marido, preso por ter cortado num dos seus bosques uma árvore, e a asquerosa Matrena expondo a teoria que era obrigação das raparigas da sua classe tornarem-se amantes dos jovens fidalgos, tudo isso lhe passou pela mente.
Depois foi a maneira como eram conduzidas ao hospício as criancinhas; e diante dos seus olhos, surgiu-lhe o terrível rosto da criança que sorria sempre, as pernas magras como espetos e morrendo de fome.
O pensamento transportou-o, rápido, para outros lugares; para as prisões com os seus cabeças rapadas, os seus grilhões, os seus segredos e o fétido insuportável, e para a vida das cidades, egoísta, luxuosa e estúpida, como a sua o fora.
Por detrás das colinas reaparecia de novo o crescente da lua, projetando no pátio sombras enegrecidas e fazendo brilhar o teto de ferro da casa.
E, como para aproveitar esta doce claridade, o rouxinol recomeçou a cantar no maciço da verdura.
Nekludov, recordando quanto doloroso lhe tinha sido em Kouzminskoie refletir sobre a sua vida e pensar no que faria, abandonando sem resposta problemas íntimos, que nunca conseguira resolver, tão complicada lhe parecia a vida, ficou espantado quando, renovando esses problemas, lhes achou urra solução simples e calma. É porque deixara de pensar no que lhe poderia acontecer para só pensar no que deveria fazer.
Era efetivamente surpreendente que tivesse dificuldade em decidir o que deveria fazer por si próprio, quando via tão claramente o que devia fazer pelos outros.
Reconhecia como indiscutível que devia dar as suas terras aos aldeões, visto que estes precisavam delas e que ele não tinha direitos alguns sobre elas; do mesmo modo não podia abandonar Katucha, antes devia ajudar a continuar nas disposições em que a deixara na última entrevista, pois devia resgatar o erro que cometera. Ignorava quais fossem as consequências de tudo isto, mas reconhecia como seu dever proceder assim.
E esta convicção tão profunda, enchia o de alegria.
A grande nuvem negra espalhara se por todo o firmamento, que largos relâmpagos fendiam, iluminando o pátio e a casa abandonada; mesmo por cima do jardim ribombou fortemente o trovão. O rouxinol tornou a emudecer, e um vento fresco levantou-se, fazendo sussurrar as folhas das árvores e agitando os cabelos de Nekludov. Sobre o teto de ferro bateu uma primeira gota de chuva, seguida logo por outras: o vento, de repente, acalmou, e Nekludov ouviu por cima da cabeça o ribombar prolongado de um novo trovão.
Nekludov entrou para casa, o coração transbordante de alegria.
«Sim, sim! — dizia — é isto mesmo! A utilidade da vida, a sua significação intima e o fim superior para o qual viemos a este mundo, não sei qual são nem posso sabê-lo. Porque é que existiram minhas tias? Porque é que Nicolau Irtenev morreu e eu vivo ainda? Porque é que encontrei Katucha? Porque é que a loucura e a cegueira me dominaram tanto tempo? De nada disto posso saber a razão; compreender a obra do Mestre está fora do meu alcance. Mas cumprir a sua vontade tal como se acha escrita no meu coração, isso posso e sei que devo fazê-lo. E não descansarei enquanto o não tiver realizado.»
A chuva caia torrencialmente, batendo sobre o teto e escorrendo pelos vidros, enquanto frequentes relâmpagos iluminavam a atmosfera.
Nekludov despediu-se e meteu-se na cama, um pouco inquieto com os percevejos que o papel das paredes, sujo e roto lhe fazia suspeitar.
«Sentir-me não amo, mas sim servo», pensava; e transbordava de alegria.
A inquietação que o assaltava quanto aos percevejos, era bem fundada. Mal apagara a luz os insetos começaram a percorrer-lhe o corpo.
— Ceder as terras, ir para a Sibéria; pulgas, percevejos, porcaria! Embora; se for necessário, suportarei tudo.
Porém, a despeito destas belas resoluções, não os pôde suportar naquela noite. Ergueu-se, sentou-se junto da janela e ficou admirando as pesadas nuvens que corriam no firmamento, enquanto o crescente lunar reaparecia de novo.
IX
Só de madrugada é que Nekludov conseguiu adormecer, pelo que no dia seguinte se levantou muito tarde.
Depois do jantar, sete aldeões escolhidos pelo administrador reuniram-se no pomar, onde, debaixo de uma macieira, havia uma mesa e bancos, grosseiramente arranjados.
Nekludov teve enorme dificuldade em conseguir que os sete mujiques pusessem os chapéus e se sentassem. O ex-soldado era o que mais se obstinava, em conservar-se de pé, com o chapéu na sua frente, como costumava colocar a barretina durante os enterros.
Afinal, quando o mais respeitável de todos, um velho de aspeto venerando, ombros largos, e barba encaracolada que lhes dava parecenças com o Moisés de Miguel Ângelo, espesso cabelo grisalho a rodear-lhe a testa queimada pelo sol, resolveu cobrir-se ao tempo que abotoava o cafetã novo e se sentava, todos os outros o imitaram.
Terminada esta formalidade, Nekludov sentou-se no outro banco em frente, e pegando no papel onde esboçara o seu projeto, começou a lê-lo e a explicá-lo.
Ou porque o número dos ouvintes fosse menor, ou porque em vez de pensar na sua pessoa, apenas pensasse no seu projeto, Nekludov não se sentia hoje embaraçado. Involuntariamente dirigia-se de preferência ao velho da barba encaracolada como se desse maior valor às suas aprovações ou discordâncias.
Nekludov, porém, enganava-se na elevada ideia que formava do velho; era verdade que ora baixava aprovadoramente a sua bela cabeça de patriarca, ora a acenava reprovadoramente segundo via fazer aos companheiros, mas, no íntimo, custava-lhe a compreender não só o pensamento de Nekludov como até a significação das palavras que o traduziam.
O que lhe ficava próximo compreendia-as muito melhor. Era um velhinho vesgo, coxo, que vestia camisola escura muito ponteada e calçava botas velhas. No decorrer da conversa, Nekludov veio a saber que este homem era fabricante de fogões; parecia fazer constante esforço de compreensão, agitando as sobrancelhas e expondo em voz alta o que compreendia.
Sentado ao lado deste estava um outro velhinho musculoso e rechonchudo, de barba branca e olhar vivo; estava sempre à espreita de todas as ocasiões para meter um ditinho irónico ou alegre. Era, com certeza, o espirituoso da aldeia.
O ex-soldado parecia também compreender, mas as suas observações limitavam-se a fórmulas banais, sem dúvida reminiscências do serviço militar. De todo o grupo, o mais formal era um forte aldeão de nariz comprido e barba curta, usando blusa e calçando laptis novos. Compreendia tudo e só falava quando era preciso.
Os dois restantes eram o velho desdentado que na véspera fizera a mais relutante oposição à proposta de Nekludov, e um esguio aldeão muito branco e de olhar doce. Ambos estavam silenciosos e escutavam atentamente.
Nekludov principiou por expor as suas ideias sobre a propriedade rural.
— É minha opinião — disse — que ninguém tem direito de vender ou de comprar a terra, porque logo que ele exista, os que têm dinheiro comprarão as terras, tirando aos outros o meio de as aproveitarem.
— Isso é verdade! — disse em voz de baixo o mujique do nariz comprido.
— Isso mesmo! — corroborou o ex-soldado.
— Lá a minha velha um dia destes segou uma pouca de erva para as vacas; agarraram-na, e zás! para a cadeia! — disse o espirituoso da barba branca.
— A nossa terra é do tamanho deste jardim, e ninguém pode arrendar mais! — disse um outro. — Dão-nos ainda mais cabo das costas do que antes da emancipação!
— Estou de acordo convosco e por isso considero pecado possuir terras. Resolvi, pois, renunciar à sua posse — disse Nekludov.
— Se for possível, porque não? — disse o velho da barba encaracolada, que evidentemente entendera que Nekludov desejava alugar as propriedades.
— É o que me trouxe aqui. Renuncio pois aos seus rendimentos, mas é necessário regularizar a forma como os ficareis administrando.
— Basta que dês as terras aos aldeões e está tudo pronto! — exclamou o velhinho desdentado.
Nekludov compreendeu naquelas palavras uma suspeita sobre a lealdade das suas intenções, e momentaneamente perturbou-se. Esforçando por dominar-se e recordando a resolução de ir até final, replicou:
— Boamente dar-vos-ia as terras; mas a quem e como o faria?
Ninguém respondeu. Só um momento depois o ex-soldado apoiou com um: Isso mesmo!
— Então o que é que fariam no meu lugar? — perguntou Nekludov.
— O que faríamos? É bem simples! Dividiríamos a terra pelos aldeões!
— Dividiríamos a terra pelos aldeões — repetiu o velho da barba branca.
E uns atrás dos outros todos apoiaram esta resposta, que lhes parecia absolutamente satisfatória.
— Mas de que forma procederiam a essa divisão? — perguntou Nekludov. — Os criados e aqueles que não trabalham também seriam compreendidos?
— Certamente que não! — respondeu o espirituoso.
O do nariz comprido, porém, não concordou.
— É necessário que todos recebam quinhão igual — declarou com a sua voz de baixo, e depois de refletir um momento.
— Isso é impossível! — replicou Nekludov. — Se eu a dividisse igualmente entre todos, aqueles que não trabalham e que não cultivam iriam vender o seu quinhão aos ricos e de novo a terra acumular-se-ia nas suas mãos. Os que trabalham, teriam a família multiplicada e a terra fragmentar-se-ia. Os ricos voltariam a dominar aqueles que necessitam de terra para viver.
— Isso mesmo! — corroborou o ex-soldado.
— Proíba-se a venda da terra e obrigue-se o possuidor a cultivá-la! — sugeriu o fabricante de fogões, irritadamente.
Nekludov respondeu que era impossível verificar se as terras eram feitas pelo proprietário ou por outrem. Em suma, a partilha era irrealizável.
— Uns ficariam com boa terra, outros com argila ou areia! Então todos quereriam boa terra.
O mujique do nariz comprido, que era o mais inteligente de todos, propôs que se chegasse a um acordo a fim de as terras serem cultivadas em comum.
— Quem cultivar terá a sua parte; quem não cultivar não terá nada! — declarou resolutamente com a sua voz profunda.
Nekludov respondeu que também pensara nisso, mas para tornar essa ideia exequível era necessário que todos tivessem as mesmas charruas e cavalos, ou então que cavalos, charruas e instrumentos aratórios fosse tudo comunal. Era necessário, pois, um acordo completo entre todos os habitantes.
— Nunca em nossa vida conseguiremos tal! — declarou o velho de rosto impertinente.
— Se quiseres ver uma batalha é falar nisso! — disse o da barba branca, com os olhos a rirem-se-lhe. — Até as mulheres pelejariam!
— Então o caso não é tão simples como parece à primeira vista! — disse Nekludov. — E não somos só nós a pensar nestes casos. Um americano chamado Henry George, de quem partilho as ideias, propõe que...
— Procede como te aprouver; aqui és tu que mandas, és o senhor. Nós submeter-nos-emos — disse o velho desdentado.
Nekludov ficou magoado com o à parte, mas alegrou-se quando viu que a interrupção também desagradara a mais alguém.
— Tem paciência, tio Simão, deixa-o explicar-nos as suas ideias! — disse o narigudo aldeão com voz de baixo, que evidentemente era o mais esperto de todos.
Nekludov, mais tranquilo, principiou a desenvolver-lhes a doutrina de Henry George.
— A terra não pertence a ninguém; é exclusivamente de Deus! — disse, ao principiar.
— Nem mais! É isso mesmo! Bem pensado! — apoiaram várias vozes.
— A terra deve, pois, ser propriedade comum. Todos devem ter o mesmo direito a usufruí-la. Há, porém, melhor e pior terra, e todos desejarão trabalhar a terra boa. De que maneira pois se há de estabelecer igualdade? É necessário que quem explore terra boa, divida o excesso do seu rendimento com quem explora a mais ordinária. Ora como é difícil estabelecer quais os que devem pagar e a quem se deve pagar, e como na atual sociedade é indispensável o dinheiro, preferível é estabelecer que, todo aquele que explorar terras, pagará à comunidade, para as necessidades comunais, em proporção com o valor das terras. Obter-se-á desta forma igualdade. Se houver alguém que queira explorar uma extensão de terreno, pagará mais pelo de boa qualidade, menos pelo mais inferior. Se não quiser trabalhar a terra, nada pagará; os que tomarem as terras pagarão a parte do imposto que lhe corresponder para as despesas comunais.
— Tinha mioleira, esse George — disse o velho da barba encaracolada.
— Fala em nome da justiça! — declarou o construtor de fogões, agitando as sobrancelhas. — Quem tem a terra melhor é quem mais paga!
— Bom é que o preço esteja ao nosso alcance! — disse o narigudo.
— Não será nem muito elevado nem muito baixo, porque se for muito baixo estabelecer-se-á de novo negócio com as terras. Assim se exprime George, e é nestes princípios que quero entender-me convosco.
— Isso é razoável e justo! Também assim o desejamos! — responderam os aldeões.
— Tinha bons miolos o tal George! — repetiu o velho parecido com o Moisés. — E dizer que foi ele que inventou tudo isso!
— E se eu quisesse trabalhar a terra? — perguntou o administrador, sorrindo.
— A participação é livre e voluntária! Cada qual toma-a e trabalha-a — respondeu Nekludov.
— Para que precisas tu de terras? Já deves estar farto! — disse o gracejador.
E a discussão finalizou.
Nekludov explicou-lhe uma vez mais o seu projeto, dizendo-lhes que não precisava de resposta imediata e que por isso os aconselhava a que se entendessem com os outros para dar em seguida a resposta.
Todos tomaram este compromisso e em seguida regressaram à aldeia. Durante muito tempo, Nekludov ouviu o som das suas vozes animadas e vibrantes, discutindo ao caminhar na estrada, e até ao anoitecer, os ecos distantes das discussões vinham misturar-se, confundir-se com o monótono ruído da água caindo no açude do moinho.
X
No dia seguinte os mujiques não trabalharam: o dia foi empregado em discutir a proposta do «fidalgo».
Os debates, porém, não deram resultado, porque a comunidade dividira-se em duas fações; uma que considerava as propostas vantajosas e isentas de perigo, outra que se obstinava em recear uma astúcia, que lhe parecia tanto mais perigosa, quanto a desconhecia.
Afinal no dia seguinte concordaram todos em aceitar as condições de Nekludov, e os sete embaixadores apresentaram-se a participar a decisão da comuna.
Guardaram-se, porém, de dizer que tinham sido eles que haviam conseguido o acordo, destruindo a crença numa armadilha, pois tinham espalhado, convictos como estavam, que se o fidalgo procedia desta maneira, era para cuidar da «salvação da sua alma» e expiação dos seus pecados.
Esta explicação adquiriu rapidamente foros de verdade, porque os aldeões haviam sido testemunhas das numerosas esmolas que Nekludov dera e da grande distribuição do dinheiro que tinha feito.
Este vendo pela primeira vez de perto a grande miséria dos mujiques e a extrema dificuldade que tinham em viver, não pudera deixar de dar, sabendo que cometia uma imprudência, porque recebera em Kouzminskoie uma grande quantia produzida pela venda de um bosque e pela renda atrasada.
E logo que correu que o fidalgo dava dinheiro a todos que lho pedissem, assaltara-o uma multidão de gente pobre de todos os sítios, principalmente mulheres, pedindo socorro. Nekludov incomodou-se, receando não poder dar indefinidamente, e não tendo meios para reconhecer a quem dar e a quem recusar. Não sentia coragem para recusar dinheiro a quem lho pedisse, todos parecendo-lhe terem igual necessidade. O dinheiro fundia-se e os mendigos continuavam a afluir; havia só um meio de sair desta situação: partir! Assentou fazê-lo o mais depressa possível.
No último dia da sua estada, dirigiu-se aos quartos de suas falecidas tias, para passar em revista o que abandonava. Numa gaveta inferior de uma secretária ornada com ferragens de latão amarelo em forma de cabeças de leão, encontrou um maço de cartas antigas e junto a fotografia de um grupo tirado em frente de casa: eram Maria e Sofia Ivanovna, Nekludov e Katucha.
De tudo que a casa continha apenas trouxe as cartas e a fotografia. O resto, móveis, quadros, tapeçarias, foi cedido ao moleiro, que tinha inclinação para o luxo e que prometera ao administrador uma boa comissão, se ele arranjasse tudo barato. E a realidade excedeu-lhe a expectativa.
Nekludov, relembrando a saudade que sentira em Kouzminskoie, só em pensar na cedência das suas propriedades, interrogou-se com espanto como pudera experimentar tal sentimento: agora a consciência de uma liberdade deliciosa, reunia-se ao encanto da novidade; era como o explorador que em seguida a dolorosos e cruéis sofrimentos entrevê por fim a almejada terra!
Capítulo 2
I
Quando Nekludov regressou da aldeia, a cidade impressionou-o desagradavelmente. Era noite fechada, e da estação dirigiu-se diretamente para casa. Um forte cheiro de naftalina espalhava-se por todos os aposentos, e Agripina Petrovna e Korney andavam cansados, pouco satisfeitos e aborrecidos; tinham questionado nessa mesma tarde a respeito do serviço, que, afinal, consistia apenas em desamarrar, estender, deixar secar e tornar a amarrar e encaixotar vestuário e tapetes.
O quarto de dormir de Nekludov, apesar de obstruído, não era o que estava mais desarrumado; não fora, porém, arranjado para essa noite, porque Nekludov regressara imprevistamente, vindo encontrar em meio a limpeza que havia sido principiada quando partira e que se ia executando lentamente.
Ao ânimo de Nekludov pareceu isto tudo tão estúpido e ridículo comparado com a miséria que presenciara na aldeia, que resolveu abandonar a casa no dia imediato, para ir viver para um hotel, deixando que Agripina Petrovna continuasse no governo doméstico, sem ser importunada.
Na manhã seguinte Nekludov saiu cedo e alugou dois modestos quartos mobilados na primeira hospedaria que encontrou no caminho da prisão, e dando ordem para lhe irem buscar uma mala que arranjara na véspera, dirigiu-se para casa do advogado.
Fazia um frio muito vivo nessa manhã. Depois das trovoadas e das chuvas, geara, como sucede no princípio da primavera, e a temperatura baixara tanto, soprando uma aragem tão penetrante que, Nekludov, apesar de vestir sobretudo, tremia e teve de andar ligeiro, para aquecer.
O espetáculo que presenciara na aldeia não lhe abandonava a memória: revia mulheres, crianças e velhos, tais como os vira pela primeira vez, dominados pela miséria e pela fadiga; revia principalmente a infeliz criança que lhe sorrira tão lamentavelmente nos braços da mãe, agitando as pernitas descarnadas; e involuntariamente, comparou estas recordações ao que via em volta em si.
Eram merceeiros, padeiros, confeiteiros e lojistas repimpados nas suas lojas, com aspeto de bem tratados, como não encontrara nem sequer um aldeão. Passavam também carros; os particulares com cocheiros atarraxados nas almofadas, as gordas e anafadas pernas apertadas por calções com reluzentes botões dourados, os dos trens de praça, examinando ociosamente os transeuntes.
E estes e as criadas graves, com aventais brancos e cabelo frisado, tinham todos o mesmo aspeto de pessoas bem alimentadas e repousadas. Nekludov, porém, verificava a acentuada semelhança de feições entre estes homens e os da aldeia, e compreendia que também estes haviam pertencido àquele meio e que tinham-se adaptado à vida da cidade, por terem sido expulsos da aldeia pela carência de terras. Estes, passados a burguesia por se terem aproveitado das condições da vida das cidades, estavam satisfeitos e orgulhosos das suas posições. Outros, porém, (os mais numerosos) menos habilidosos e mais infelizes, eram mil vezes mais miseráveis do que quando viviam na aldeia donde os expulsara a falta de terra. Tais eram esses sapateiros que Nekludov via no vão de uma escada a bater sola, as engomadeiras pálidas com o cabelo desgrenhado, brunindo roupa junto das janelas abertas e meio asfixiadas pelo vapor de água ensaboada, ou esses trolhas que Nekludov viu passar junto dele, descalços e salpicados de tintas, da cabeça aos pés. Caminhavam com alguidares cheios de cal à cabeça, de mangas arregaçadas, e insultando-se incessante. Nas feições, eram visíveis os sinais de fadiga e má disposição, que o frio agravava; e os condutores de carroças e todos aqueles que, com o fato em farrapos, pediam esmola, homens, mulheres e crianças, mostravam evidentes sintomas de necessidade e miséria.
Porém, em nenhuma parte essa expressão era tão evidente, como nos rostos que Nekludov via através das janelas das tabernas. Em salas imundas, guarnecidas de alto a baixo com garrafas e vidros, grupos de homens sentados, berravam ou cantavam, com o rosto a escorrer suor e as faces cor de púrpura.
Através de uma janela Nekludov viu um destes desgraçados com as sobrancelhas erguidas e a boca aberta, olhando fixamente na sua frente, esforçando-se em recordar qualquer coisa.
«Mas porque é que toda esta gente vem apinhar-se para as cidades?», interrogava-se Nekludov, respirando com o ar fresco da primavera um repugnante cheiro de óleo de ocre, que se levantara de umas casas pintadas de fresco.
Atravessava agora a rua um carregamento de barras de ferro, que o calcetamento da rua fazia trepidar desagradavelmente.
Era um ruído ensurdecedor que fez dores de cabeça a Nekludov. Quando este apressava o passo para deixar o carro mais distanciado, ouviu chamar pelo seu nome, por entre o ruído da ferragem.
Parou e viu na sua frente um homem bem constituído e vestindo à última moda, de rosto animado, bigodes frisados sentado num magnífico coupé, e acenar-lhe com a mão amigavelmente, e mostrando uns dentes de alvura pouco vulgar através do sorriso.
— Nekludov? És tu?
A primeira impressão de Nekludov foi de prazer.
— Chembok! Tu aqui! — exclamou alegremente.
Reconheceu, porém, nesse mesmo instante, que não havia motivo para regozijo. Era o mesmo Chembok que fora ter com ele a casa de suas tias, no dia imediato àquele em que seduzira Katucha. Nekludov perdera-o de vista havia muito, mas soubera que Chembok também abandonara o regimento e que, apesar das suas dívidas e da sua nenhuma fortuna, continuava, ninguém sabia como, a viver entre gente rica. A elegância do vestuário e a expressão satisfeita do seu rosto provaram a Nekludov que não o haviam enganado.
— Feliz acaso haver-te encontrado! Não há vivalma na cidade! Oh meu rapaz, tu estás velho! — disse Chembok descendo do carro e erguendo o peito e os ombros. — Imagina que só te reconheci pelo andar! Vamos jantar ambos, não é assim? Onde se pode comer razoavelmente nesta terra?
— Parece-me que não posso aceitar — respondeu Nekludov, que só pensava em achar meio de se desfazer do seu companheiro sem o indispor. — E que fazes tu aqui? — perguntou.
— Trato de negócios. A administração do meu tutelado! Sabes de quem sou tutor? De Samanov, o milionário. Imagina que com cinquenta e quatro mil dessiatinas de terra, sofre de amolecimento cerebral! — disse Chembok com certo orgulho. — Estava tudo na maior das desordens! Os aldeões tinham-se apropriado das terras, não pagavam nada e o deficit era enorme. Pois num ano de gerência meti tudo nos eixos e tirei de renda mais 70%. Que te parece, hein?! — perguntou ainda mais orgulhosamente.
Nekludov recordou-se que já ouvira contar essa história. Exatamente porque Chembok tinha dissipado toda a sua fortuna e estava endividado até ao pescoço, é que fora nomeado para administrar a fortuna do velho e peganhoso milionário.
«Como poderei ver-me livre dele sem o magoar?», cogitava Nekludov examinando-lhe o balofo e reluzente rosto com os bigodes encerados com cosmético.
— Então, vamos jantar?
— Hoje é-me impossível — respondeu Nekludov consultando o relógio.
— Nesse caso virás às corridas?
— Impossível!
— Mas não; não há impossíveis! Eu não tenho nenhum cavalo lá, mas Gricha empresta-me um dos seus. Sabes que tem uma magnífica cavalariça? Combinamos então encontrarmo-nos para à noite cearmos juntos, sim?
— Também não posso comprometer-me! — respondeu Nekludov sorrindo.
— Será então para outra vez. E agora onde vais? Queres aproveitar-te...?
— Obrigado, são dois passos daqui a casa do advogado.
— Ah! sim, já sei que passas a tua vida nas cadeias como procurador dos presos! Os Korchaguine falaram-me nisso — disse Chembok rindo ruidosamente. — Sabes que já partiram? Conta-me lá essa embrulhada!
— Sim, o que dizes é verdade! — respondeu Nekludov. — É porém bastante complicado para ser contado no meio da rua.
— hás de ser sempre um original! Eu sempre te espero nas corridas!
— Crê que me é impossível. Não ficas zangado comigo?
— Que lembrança! E este frio; que te parece?
— Sim! Está áspero.
— Bom; visto isso, até mais ver; fiquei contente em te encontrar! — disse Chembok.
E apertando a mão de Nekludov, saltou para a carruagem donde, afectadamente, acenou com a mão enluvada, enquanto um sorriso amigável lhe punha de novo a descoberto os dentes de excessiva alvura.
«É possível que eu tivesse sido isto?», interrogava-se Nekludov, dirigindo-se para casa do advogado. «Talvez pior ainda, pois nunca conseguindo ser aquilo, sonhei sê-lo e imaginei que toda a minha vida decorreria assim».
II
Ainda que não fosse dia destinado pelo advogado para consultas, Nekludov foi imediatamente recebido.
O processo dos Menshov fora estudado pelo advogado, que verificara a acusação infundada.
— O processo é, porém, bastante complicado! — disse o advogado. — O mais provável é que fosse o próprio taberneiro que lançasse fogo à casa para receber o seguro; não há contudo, uma só prova material, como também nada há que prove a culpabilidade dos Menshov. A condenação é unicamente o resultado do excessivo zelo do juiz de instrução e do desmazelo do ajudante do procurador. O mal, porém, está feito e há de ser difícil desfazer o erro. Isso é o menos! Consiga-se que o processo seja julgado novamente neste foro, que me comprometo ganhá-lo! E é escusado falar em salários!
— Agora tratemos do caso desta Fedósia, de quem também me falou. Aqui tem pronta a apelação; se for a S. Petersburgo por causa da Maslova, pode levá-la e recomendá-la. Doutra forma, se nos vamos a fiar nas estações oficiais, perderemos tempo e feitio. Já que se interessa por esses casos, procure obter acesso junto de pessoas que tenham influência na comissão de apelação. Deseja mais alguma coisa de mim?
— Sim, desejava. Contaram-me que...
— Ah! Ah! fazem de si o porta-voz de todas as reclamações! — disse o advogado rindo ruidosamente. — Previno-o que nunca conseguirá atendê-las todas. São inúmeras!
— É que se trata de um caso monstruoso! — replicou Nekludov; e, recordando-o conforme lho haviam narrado na véspera na aldeia, contou-o ao advogado.
Era o caso que um mujique instruído lera e comentara os Evangelhos aos seus companheiros de trabalho.
O padre da aldeia vira nisto uma infração, denunciara-o e realizara-se um inquérito que tinha tido por consequências uma acusação do ajudante do procurador, a qual o tribunal confirmara.
— É ou não simplesmente monstruoso? — perguntou Nekludov.
— Mas porque se admira tanto?
— Porquê? Por tudo! Compreendo o procedimento do padre e o dos empregados que cumprem o que lhes é ordenado. Mas esse ajudante do procurador é simplesmente abominável, porque como homem ilustrado podia escolher outro caminho!
— É porque não os conhece! Geralmente pensa-se que todos os magistrados, ajudantes do procurador, juízes até, são homens instruídos e de aspirações liberais. Sim, em tempos assim foi; hoje, porém, está tudo mudado. Os magistrados são funcionários que unicamente se preocupam com a sua promoção a um melhor lugar. Recebem o ordenado e desejam vê-lo aumentado; é ao que se limitam os seus princípios. Assim que isto se consegue estão prontos para acusar, julgar e condenar, seja quem for!
— Pois sim, mas lá está a lei! E ninguém pode desterrar um homem unicamente por ter lido os Evangelhos aos seus amigos.
— Engana-se! Têm o direito não só de o desterrar como até de o condenar a trabalhos forçados, logo que lhes dê na fantasia declarar que esse homem, comentando os Evangelhos, se afastou da explicação autorizada, ofendendo por isso a igreja. E ultraje à fé ortodoxa quer dizer trabalhos forçados!
— É lá possível!
— Afirmo-lho. Quando falo com um magistrado — disse o advogado, continuando — mostro-me sempre afavelmente reconhecido, pois que eu e o senhor e todos nós, enfim se não estamos na cadeia é simplesmente devido à sua muita benignidade.
— Mas então em que consiste a autoridade da justiça se tudo depende de um capricho deste ou daquele magistrado, que quer ou não quer cingir-se à lei?
O advogado saudou esta pergunta com uma sonora gargalhada.
— É bem uma pergunta sua! Mas isso é filosofia, meu caro! Sabe que mais? Venha a minha casa num sábado! Reúnem-se lá sábios, artistas e literatos, com quem se pode discutir livremente essas questões. Não falte, tanto mais que minha mulher ficará satisfeitíssima!
— Agradeço e farei por não faltar... — respondeu Nekludov percebendo que mentia e sabendo que faria o possível para lá não ir e para não se encontrar nessa roda de sábios e artistas.
A gargalhada com que Fainitzin respondera à sua interrogação e a ironia com que pronunciara a palavra «filosofia», fizeram compreender a Nekludov quanto o seu modo de pensar e de sentir diferia do do advogado e do dos seus amigos. E por maior que fosse a diferença que agora existia entre ele e o seu antigo camarada Chembok, a que sempre existiria entre ele, o advogado e os seus íntimos seria ainda maior.
Como a prisão não ficasse perto e como era um pouco tarde, Nekludov tomou um carro.
O cocheiro, homem dos seus quarenta anos, de feições que denotavam inteligência e bondade, no meio do caminho chamou a atenção de Nekludov para um enorme edifício em construção.
— Excelência, repare que grande palácio se está construindo! — disse entusiástica e orgulhosamente.
Com efeito, o novo edifício levava proporções para ser um monumento de imponente aparência. For entre o travejamento, agitavam-se como formigas, os operários manchados de cal, uns colocando tijolos, outros quebrando pedras e outros içando baldes cheios e descendo-os vazios. Um nutrido cavalheiro elegantemente vestido — provavelmente o arquiteto — em pé junto da construção e de cabeça erguida, dava ordens a um contramestre que o ouvia respeitosamente.
E olhando para o enorme edifício, Nekludov pensava: «Pois é possível que toda esta gente, tanto os que executam a construção como os que a dirigem, imaginem que estão levantando qualquer coisa útil? E os operários, uns desgraçados cujas mulheres se estiolam nas aldeias para criarem e sustentarem seus filhos, como estão convictos que fazem o seu dever quando contribuem para que se erga esse palácio inútil e estúpido, que será habitado por qualquer indivíduo da mesma forma estúpido e inútil, enriquecido à custa daqueles a quem ainda agora vai explorando!»
— Que obra tão estúpida! — disse, exprimindo em voz alta o seu pensamento.
— Como? Estúpida? — respondeu o cocheiro um pouco ofendido. — Não é uma obra estúpida a que dá o pão a tanta gente!
— Mas é inútil!
— Se fosse inútil ninguém a mandava fazer! — retorquiu o cocheiro. — Esta casa representa o pão de muita gente.
Nekludov não respondeu, porque o ruído produzido pelas rodas sobre o empedrado da calçada tornava a conversa difícil. Porém, na rua seguinte, que era macadamizada, o cocheiro dirigiu-se novamente a Nekludov.
— Vê aquele grupo? — disse indicando no passeio uns aldeões que, carregados com serras, machados e sacos caminhavam pesadamente. — Pois das aldeias estão sempre a chegar grupos como aquele em busca de trabalho! É medonho!
— Têm vindo mais neste ano do que nos anteriores? — perguntou Nekludov.
— Sem comparação! Nas hospedarias não há um único lugar e o trabalho não aparece em parte alguma!
— Mas, porquê?
— Porque os operários são muitos.
— Mas então porque é que não se deixam ficar nas aldeias?
— E o que haviam eles de fazer lá? Não há maneira de se obter terra!
«Pois será possível que todo o mal provenha dessa única causa?», pensou Nekludov. E, interrogou o cocheiro sobre a quantidade de terra arável que a sua aldeia disfrutava, qual a extensão dos seus bens e porque é que ele viera para a cidade.
— Nós temos um hectare por homem — respondeu o cocheiro. — Meu pai e meu irmão lá estão a olhar por aquilo e tenho mais um irmão que é soldado. Mas a terra não rende nada e meu irmão pensa em vir também para a cidade.
— Então não se pode tomar terras de arrendamento?
— E onde é que as há para arrendar? Os antigos senhores, os fidalgos, devem tudo, e os amos agora são homens de negócio. E a estes ninguém consegue arrendar nem um pedaço de terra! Exploram tudo por sua conta. Na minha aldeia foi um francês que comprou as propriedades do nosso antigo fidalgo.
— E quem é esse francês?
— Chama-se Dufour. há de ter ouvido falar dele. É o cabeleireiro do teatro grande e o negócio é rendoso, pois ganha muito dinheiro. A aldeia é dele e ele dispõe de nós conforme a sua vontade. Ele contudo, não é mau homem; Mas a mulher?! Oh! É uma brutinha de quem estamos desejosos que Deus nos livre. Rouba-nos descaradamente... Chegámos afinal à prisão. Quer que o conduza até ao portão? Receio que já o não deixem entrar.
III
Nekludov sentiu o coração confranger-se-lhe quando avistou os muros da prisão. Perguntava a si mesmo, aterrorizado, em que disposição iria encontrar a Maslova, sentindo-se ainda mais atemorizado com o mistério que a dominava e que hoje lhe parecia existir por toda a prisão.
O carcereiro que acudiu ao seu toque, reconheceu-o e deixou-o entrar; depois, quando Nekludov lhe perguntou pela Maslova, disse-lhe que fora transferida para os serviços da enfermaria. Nekludov dirigiu-se para esse lado, e um velho carcereiro, aí de serviço, guiou-o para a secção das crianças, onde a Maslova fazia serviço.
Um médico ainda novo, exalando um forte cheiro a ácido fénico, saiu-lhe ao encontro, perguntando severamente do que se tratava.
Este médico, que era de rara condescendência para com os doentes, sofrera, por vezes, dissabores com os empregados da prisão e até com o seu próprio chefe, o médico diretor, pelo que agora, temendo da parte de Nekludov um pedido ilegal, queria mostrar que não fazia exceções a ninguém e fingia-se ríspido e áspero.
— Aqui não há mulheres; é a secção das crianças — disse.
— Eu sei: disseram-me contudo que é aqui que está, como enfermeira, uma detida.
— Há efetivamente duas enfermeiras. De quem se trata?
— Estou intimamente ligado com uma, a Maslova — disse Nekludov — e desejava vê-la. Parto amanhã para S. Petersburgo, para tratar de anular a sua sentença e, em antes, desejava entregar-lhe isto: simplesmente uma velha fotografia — acrescentou, tirando do bolso um envelope,
— Está bem; vou mandar chamá-la! — respondeu o médico mais humanamente.
E, dirigindo-se a uma velha enfermeira de avental branco, disse-lhe que chamasse a Maslova.
— Queira sentar-se ou entrar para o parlatório da enfermaria.
— Muito obrigado.
Nekludov, notando a mudança no acolhimento do doutor, quis aproveitá-la para saber se ele estava satisfeito com a Maslova.
— Sim, estou — respondeu o médico. — Não trabalha mal, se levarmos em atenção as casas de onde vem. Olhe, aí vem ela!
Efetivamente, a Maslova, acompanhada pela velha enfermeira, encaminhava-se para ali.
Usava também por cima do vestido listrado, um avental branco cobria-lhe a cabeça um lenço.
Quando viu Nekludov corou, parou um momento, hesitante, carregou as sobrancelhas e, baixando o olhar, dirigiu-se-lhe em passo rápido. Ao princípio não quis apertar-lhe a mão mas, por fim, sempre se resolveu a fazê-lo, corando ainda mais.
Nekludov, que a não vira desde o dia em que ela lhe pedira desculpa da exaltação com que o acolhera anteriormente, esperava encontrá-la dominada pelos mesmos sentimentos. Enganou-se, porque a encontrou reservada e esquiva, talvez com certa hostilidade.
Repetiu-lhe o que dissera ao doutor: que partia para S. Petersburgo e que quisera vê-la, antes da viagem, para lhe entregar o que trouxera de Pánofka.
— É uma velha fotografia que encontrei abandonada numa gaveta. Talvez goste de a ver. Ei-la!
Desenhou-se-lhe no rosto uma expressão de surpresa e, erguendo as negras sobrancelhas, e os olhos, ligeiramente estrábicos, fixou-os em Nekludov como que a perguntar: «Para que me dá isto?»
Depois, sem dizer palavra, pegou no envelope e meteu-o na algibeira do avental.
— Falei também com Matrena, a tua tia.
— Ah! — exclamou ela indiferentemente.
— E são bem tratados aqui?
— Muito bem; não tenho de que me queixar.
— O trabalho não é fatigante?
— Não; somente ainda não estou habituada.
— É, por consequência, preferível viver aqui a viver como até agora?
-- Como até agora! — exclamou, as faces inundadas de um súbito rubor.
— Sim, como até agora, na prisão — apressou-se Nekludov a dizer.
— Preferível porquê?
— Aqui a companhia deve ser melhor. Não é a mesma gente que na prisão.
— Na prisão há também boa gente! — respondeu a Maslova secamente.
— A propósito, já tratei do caso dos Menshov; espero que serão postos em liberdade.
— Deus o queira; é a velha mais extraordinária! — disse ela, repetindo a definição de que se servira para designar a detida, enquanto um sorriso lhe aparecia nos lábios.
— Tenho esperança também de que em S. Petersburgo arranjarei a anular rapidamente a sentença que te condenou.
— Que o seja ou não, agora é-me indiferente!
— E porque só agora?
— Por nada! — respondeu.
Nekludov imaginou ler-lhe no olhar uma interrogação, que interpretou como a manifestação de desejo que ela tinha em saber se ele persistiria na resolução que tomara ou se aceitara a recusa com que ela lhe respondera.
— Não tenho nada com a indiferença que dizes sentir sobre o resultado das minhas diligências para anular a sentença, e para mim esse resultado não alterará em nada aquilo que sempre tencionei fazer. Cumprirei o que prometi, aconteça o que acontecer.
Maslova ergueu novamente o olhar, onde se lia a profunda alegria que as suas palavras queriam desmentir.
— É perder tempo falar-me nisso! — disse.
— Se assim falo é por que quero que saibas a verdade.
— E eu o que disse, disse, e nada mais acrescentarei — declarou, com visível esforço na voz.
De repente, na sala pegada ouviu-se um ruído, seguido do vagido de uma criança.
— Chamam-me — disse a Maslova olhando em redor com inquietação.
— Então adeus!
Fingindo não ver a mão que Nekludov lhe estendia e sem se voltar, a Maslova correu, procurando conter a alegria profunda que lhe trasbordava do coração.
«Que se passa nela? Que pensará? Que sentirá? Quererá apenas experimentar-me? Ou com efeito não consegue perdoar-me? Não quererá ou não poderá dizer-me o que sente e pensa? Estará hoje em melhores ou piores disposições para comigo do que na última entrevista?», interrogava-se Nekludov.
E esforçava-se baldadamente por responder a estas interrogações.
Uma só coisa era claramente visível: a grande transformação que se operava nela e que o unia ainda mais a ela e Àquele em nome de quem se dedicara a esta obra.
E este pensamento enchia-o de ternura e alegre animação.
IV
A sala na qual trabalhava a Maslova era pequena e continha apenas oito leitos de crianças. Quando regressara, a religiosa que presidia aos arranjos, ordenara-lhe que fizesse as camas. Maslova tinha já principiado quando, de repente, inclinando-se demasiadamente para trás e levantando os braços, deu um passo em falso e por pouco não caiu.
Um pequenito convalescente que, com a cabeça atada, estava sentado na cama, viu o movimento e desatou a rir; a Maslova, não podendo conter-se, desatou a rir tão satisfeita e tão contagiosamente, que as outras crianças riram também. A religiosa fingiu zangar-se.
— De que estás tu a rir-te? — disse para a Maslova. — Imaginas que ainda estás de onde vens? Ora vai à cozinha buscar as dietas!
A Maslova cessou de rir e foi onde a mandavam. As duras palavras da enfermeira não tinham podido diminuir o ardor da sua alegria. No decorrer do dia, quando estava só, tirava do envelope a velha fotografia que Nekludov trouxera e examinava-a rapidamente; quando à noite, depois da chamada, pôde entrar para o quarto que, em companhia de outra detida, agora ocupava, pegou na fotografia e, durante muito tempo, examinou-a, rebuscando os mínimos detalhes do rosto, dos vestuários e da parte visível da escadaria.
Esta fotografia amarelecida e envelhecida encantava-a extraordinariamente; o que, contudo, mais lhe agradava era reconhecer-se, jovem e vigorosa, com os anéis de cabelo flutuando em frente, na testa. Mergulhara-se em tão profunda contemplação que nem notou a entrada da sua companheira.
— Que estás a ver? Foi ele que te deu isso? — perguntou-lhe a nutrida enfermeira, espreitando por cima do ombro dela. — Olha, pareces tu!
— Palavra? Ainda me pareço? — disse a Maslova sorrindo de prazer.
— E este é ele? E esta é a mãe?
— Não, é uma sua tia. Mas sério, ainda me pareço?
— Sim, posto estejas bem mudada. Tem outro aspeto o retrato. Vê-se bem que já lá vão muitos anos.
— Mas não foram os anos que me transformaram, foi outra coisa! — respondeu a Maslova, sentindo fugir-lhe a alegre animação que até aí mantivera. O rosto assombreou-se-lhe e uma funda ruga cavou-se-lhe na fronte.
— Que outra coisa? A vida nunca foi de durezas para ti!
— Não, nunca foi dura, mas as galés são preferíveis!
— Que estás a dizer?
— É o que é! Desde as oito da noite até às quatro da madrugada! E isto todos os dias.
— Então porque não te ias embora?
— Mais do que uma vez quis fazê-lo, mas era impossível. O melhor é não falarmos nisto! — exclamou a Maslova.
Levantou-se sobressaltadamente, escondeu a fotografia no fundo de uma gaveta e saiu do quarto, tentando reter lágrimas de cólera.
Examinando a fotografia, julgara-se regressada a épocas idas, tal como tinha sido; pensara na felicidade que então gozara e que ainda agora poderia possuir.
E a sua companheira, levianamente, relembrara-lhe o que agora era! Num medonho momento, abraçou no seu conjunto todo o horror desta vida que sempre lhe causara uma vaga vergonha, que a si mesmo não ousava confessar!
A recordação de uma noite de Carnaval ergueu-se na sua memória, terrivelmente impressionante. Viu-se vestida de seda vermelha, decotada e enodoada de vinho, uma fita vermelha nos cabelos desalinhados, acompanhando até à porta um «visitante». Depois, fatigada, embrutecida, quase bêbeda, fora sentar-se junto da pianista, uma criatura magra, ossuda e com o rosto cheio de impingens; eram duas horas e ainda não principiara a dança. Maslova, de repente, sentiu um grande peso no coração! Num desabafo com a pianista disse-lhe que aquela vida lhe era penosa e que não podia suportá-la mais tempo. A pianista estava também cansada do seu modo de vida e Clara, que se lhes juntou, queixou-se também; combinaram as três despedir-se e mudar de vida, logo que pudessem. Maslova, renunciando a dançar, saiu da sala com tenção de se encerrar no quarto, quando vozes avinhadas de fregueses se ouviram no corredor.
Ouviu-se o violino começar a tocar, logo acompanhado pelo piano; um homem de pequena estatura, embriagado, vestindo casaca, chapéu alto e gravata branca, agarrou a Maslova pela cinta; um outro, gordo e barbudo agarrava Clara e durante muito tempo, dançaram, cantaram, beberam e gritaram! E assim se passara um ano e outro! Quem poderia mudar de vida?
E era ele, Nekludov, o causador de tudo!
Mais forte e mais intenso do que nunca sentiu acordar o ódio que lhe votava! Desejaria insultá-lo, bater-lhe! Oh! quanto lastimou ter deixado escapar, nesse dia, a ocasião de lhe mostrar que o conhecia bem, que nunca conseguiria nada dela porque não se deixaria enganar segunda vez!
Exacerbada pela dor e pela cólera, reavivada a chaga, assaltou-a a ânsia de beber vodka para esquecer e tranquilizar-se. E de nada teria valido o juramento feito se a tivesse podido arranjar. Mas aqui só o chefe dos enfermeiros é que a possuía; e a Maslova abominava-o, porque sabia que ele a cortejava.
Sentou-se num banco do corredor e assim ficou durante muito tempo; por fim entrou no quarto e sem responder às perguntas da sua companheira chorou copiosamente sobre a sua perdida e estéril vida.
Capítulo 3
I
Nekludov, além do principal assunto que o obrigava a ir a S. Petersburgo, o recurso da Maslova, tinha ainda de tratar de mais três pedidos, dois dos quais lhe tinham sido feitos por Vera Bogodouchovska. Da comissão dos perdões tinha a obter a revisão da sentença de Fédosia, a prisioneira condenada por ter tentado assassinar o marido e a quem este já perdoara: tinha de pedir também a liberdade para a estudante Choustova e obter a licença necessária para a mãe de um preso político, encerrado no segredo, poder visitá-lo.
Depois da última visita que fizera a Maslinnikov e da sua permanência no campo, Nekludov sentia-se penetrado de uma repugnância profunda pela sociedade de que até então tinha feito parte; não podia furtar-se ao pensamento de que para o bem estar e prazer dessa sociedade, havia milhões de seres humanos que sofriam, ainda que esses sofrimentos passassem voluntariamente despercebidos, como também o passava tudo que havia de criminoso e de miserável nessa sociedade a que ainda se sentia ligado. Aí, porém, contraíra os seus hábitos; era aí que tinha as suas relações, parentes e amigos; era aí sobretudo que lhe era forçoso procurar apoio e auxílio para ajudar a Maslova e os desgraçados cuja causa se obrigara a defender, ainda que sentindo aversão geral por tal sociedade e por certos indivíduos em particular.
Por estas razões é que Nekludov quando chegou a S. Petersburgo se foi alojar em casa da tia, a condessa Tcharska, esposa de um antigo ministro.
Não ignorava que assim se acharia mergulhado no íntimo dessa sociedade aristocrática de que tão cruelmente se divorciara o que lhe era bem desagradável, mas sabia que magoaria profundamente sua tia não se hospedando em sua casa, e que privar-se-ia de um auxílio extremamente precioso para os seus desígnios.
— É então verdade o que para aí se diz a teu respeito? — perguntou-lhe a condessa Catarina Ivanovna, na manhã da sua chegada e enquanto lhe fazia preparar café com leite. — Estás então um original! Vous posez pour le filantrope! Socorres os criminosos, visitas os prisioneiros! Fazes também sindicâncias?
— De modo algum! Nem nisso penso!
— Melhor então! Vou apostar em como temos alguma aventura amorosa! Sim? Vamos a ouvir!
Nekludov descreveu as relações que tivera com Katucha, tais como haviam sido.
— Sim, sim, recordo-me. Tua pobre mãe falou-me nisso vagamente, em seguida à tua visita àquelas velhas! — A condessa Catarina tivera sempre em grande desprezo as tias paternas de Nekludov. — Não é verdade que te quiseram casar com ela? Como se chama? Elle est encore jolie?
A condessa Catarina Ivanovna era uma saudável, alegre, enérgica e palradora senhora de sessenta anos. Muito alta e corpulenta, tinha um farto buço que se lhe desenhava nitidamente por cima do lábio superior. Nekludov tinha-a em particular estima e desde criança habituara-se a receber com a sua presença energia e alegria.
— Não, tia, tudo isso acabou! Desejo unicamente auxiliá-la porque foi condenada injustamente e porque sou eu o culpado da sua miséria. Sinto-me obrigado a fazer por ela tudo o que possa.
— Imagina que até me disseram que a querias desposar!
— Sim, quis e ainda o quero! Ela é que o não quer.
Catarina Ivanovna, que fitava seu sobrinho tristemente, tranquilizou-se quando ouviu as últimas palavras e de novo sorriu.
— Tem mais juízo do que tu! Ah! meu rapaz, que simplório tu estás! Casar-te-ias com ela?
— Positivamente.
— Depois de ela ter sido o que foi?
— Por isso mesmo! Não fui eu o culpado?
— Estás um verdadeiro simplório — disse a condessa, continuando a sorrir — mas porque estás um simplório e um terrível simplório é que eu gosto de ti.
E Catarina Ivanovna, satisfeitíssima do termo que empregara e que traduzia perfeitamente a ideia que fazia do seu sobrinho, repetia-o encantada.
— Boa estrela te guiou — continuou ela. — Aline inaugurou agora um asilo para Madalenas arrependidas que visitei há dias. Oh! que horror! Tive de me banhar, quando regressei; Aline, porém, dedicou-se de corpo e alma à sua obra. Queres tu confiar-lhe a tua protegida? Se Aline não conseguir chamá-la ao bem, ninguém o consegue.
— Mas tia, se ela está presa à espera de ser enviada às galés! O motivo principal que aqui me traz é fazer anular-lhe a sentença. É um dos muitos casos em que necessito do seu auxílio.
— E de quem depende isso?
— Do senado.
— Do senado? Ah! é onde está o primo Leão! Mas este faz parte da secção heráldica e não conheço mais nenhum! Ce sont des gens de l’autre monde, ou então alemães, pour varier. Não importa, falarei a meu marido, que os conhece todos! Conhece toda a gente! Eu falo-lhe, mas tu é que hás de explicar-lhe o assunto; a mim diz-me que não me compreende! Por mais que eu faça, responde sempre que não me compreende. C'est un parti-pris, mas que hei de fazer-lhe?
A condessa interrompeu-se para receber uma carta que um lacaio agaloado lhe apresentou numa bandeja de prata.
— Que coincidência! É de Aline. Terás ocasião hoje de ouvir Kiesewetter.
— Quem é Kiesewetter!
— Kiesewetter? Vem à noite, e verás quem é! Fala tão bem que até os criminosos mais perversos se lançam de joelhos na sua frente, chorando de arrependidos! Ah! que se a tua Madalena pudesse ouvi-lo! Convertia-se logo! Não faltes esta noite para o ouvir. É um homem extraordinário!
— Mas tia, nada disso me interessa já.
— Mas há de interessar-te! E hás de vir, que o quero eu! Que mais desejas de mim? Videz votre sac.
— Tenho de tratar do caso de um rapaz encerrado na fortaleza.
— Na fortaleza? Posso dar-te uma carta para o barão Kriegsmuth. C’est un très brave homme! Tu conhece-lo! Foi companheiro de teu pai! Il a versé dans le spiritisme, mas é bom homem! E queres pedir-lhe?
— Autorização para que a mãe desse rapaz possa ir visitá-lo. Também tenho de dirigir um memorial ao Cherviansky, o que me agrada pouco.
— E, com razão. É pouco amável! Podemos, porém pedir a Marieta; é seu marido. Tudo que eu lhe pedir, estou certo que o fará. Elle est si gentille!
— Tenho de obter liberdade para uma rapariga estudante que está detida há muitos meses sem saber a razão.
— Ora adeus; ela deve saber porque está presa. É maná celeste que essas cabeças rapadas estejam sob chave!6
— Não sei se é maná celeste. O que sei é que são seres humanos que sofrem, como nós sofreríamos no seu lugar. O que não compreendo é como a tia, cristã convicta que acredita nos Evangelhos, não sente piedade!
— Que estás tu a dizer? Tolices! O Evangelho é o Evangelho, e o que é mau é mau! Queres então que tolere os niilistas, principalmente as mulheres, de cabeça rapada, quando os detesto?
— Mas porque é que os detesta?
— E para que é que eles se metem onde não são chamados?
— Ora essa! Então Marieta, por exemplo, também não trata dos negócios do marido?
— Isso é outra coisa! Mas por este andar qualquer filha de um padre pretenderá dar-nos lições!
— Não querem dar lições, apenas socorrer o povo.
— Não se necessita deles para conhecer as necessidades do povo!
— Está em erro, tia! O povo cada vez tem mais necessidades e nós desconhecemo-las. Eu só agora o notei, quando fui ao campo. Acha justo que os aldeões trabalhem acima das suas forças e que nem sequer tenham com que matar a fome, enquanto nós vivemos no luxo e na ociosidade? — disse Nekludov, levado pela complacência natural de sua tia a comunicar-lhe todos os seus pensamentos.
— Então que queres tu? Que eu vá trabalhar e que nem sequer coma? Mon cher, tu finiras mal!
— Porquê?
Nesta ocasião um velho robusto e alto entrou na sala. Era o marido da condessa Tcharska, ministro honorário.
Aproximou-se de sua mulher e beijou-lhe a mão galantemente.
— Bons dias, Dimitri — disse o antigo ministro, estendendo-lhe a face barbeada de fresco. — Quando chegaste?
— Non, il est impayable! — disse a condessa dirigindo-se ao marido. — Quer que eu vá lavar a minha roupa no ribeiro e que me sustente de batatas! Mal imaginas que simplório aqui está! Apesar disso, peço-te que o sirvas naquilo que ele te pedir. A propósito, disseram-me que madame Kamenska está em perigo de vida! Devias ir visitá-la!
— É horroroso! — respondeu-lhe o marido.
— Agora vão conversar para a sala de fumar, que quero escrever umas cartas.
Mal Nekludov saíra já a condessa o tornava a chamar.
— Queres então que escreva à Marieta?
— Se quiser ter esse incómodo!
— Porei de parte o caso da niilista, que tu depois explicarás ao marido. Ela mais tarde ordenar-lhe-á que faça o que tu lhe pediste e ele fá-lo-á. Ouve, não me julgues desapiedada! Mas tes protégés são verdadeiros monstros! Je ne leur veux pas de mal! Então até à noite, sem falta! Ouvirás Kiesewetter e rezarás um pouco. Cela te fera beaucoup de bien! Então até à noite !
II
O conde Ivan Mikailovitch Tcharsky, antigo ministro, era um homem de profundas convicções.
Desde a sua mocidade que elas consistiam no seguinte:
Convencera-se que assim como é natural que as aves se alimentem de vermes, se resguardem com penas e voem no espaço, o era também o ele sustentar-se das mais requintadas iguarias, vestir-se à última moda e passear em carros dos mais caros, puxados por cavalos dos mais ligeiros.
Mas isto eram coisas que o conde Ivan Mikailovitch considerava como devidas à sua posição e que era necessário que estivessem sempre preparadas para as utilizar.
Tinha ainda enraizada uma outra convicção: era que quanto mais dinheiro recebesse do Tesouro Público, quanto mais condecorações e títulos o adornassem, mais familiaridade teria junto de indivíduos ainda mais altamente colocados do que ele, o que não só seria ótimo para ele como até para o universo inteiro.
Tudo o mais era considerado por ele, comparado a estes dogmas fundamentais, como nulo e sem interesse. Que as coisas marchassem desta ou daquela maneira era-lhe indiferente. Durante quarenta anos vivera o conde Ivan Mikailovitch segundo estas convicções, findos os quais fora nomeado ministro.
Devera esta honra às seguintes qualidades: sabia compreender o sentido dos regulamentos e outros papéis oficiais e sabia mesmo redigi-los, sem sombra de pensamentos ou estilo, mas também sem erros de ortografia; era, além disso, eminentemente representativo, podendo, alternativamente e segundo as circunstâncias, dar a impressão da dignidade, da altivez ou da inacessibilidade e humildade; para complemento, estava absolutamente desligado de quaisquer regras políticas ou morais, estranhas às suas obrigações, o que lhe permitia aprovar ou desaprovar tudo, conforme as conveniências.
É necessário acrescentar que, amoldando a sua opinião segundo os acontecimentos, arranjava-se sempre a nunca estar em contradição manifesta com ele próprio, e isto porque se preocupava unicamente com a satisfação dos seus superiores, sem se inquietar com as consequências para o bem da Rússia e da humanidade.
Quando foi chamado para o lugar de ministro, todos os seus subordinados, a maioria da gente que o conhecia e ele próprio mais do que os outros, estavam convencidos que se ia revelar um distinto homem de Estado.
Quando, porém, passado algum tempo, se reconheceu que ele nada alterava nem melhorava, e quando outros homens que, como ele, sabiam compreender e redigir documentos oficiais, impelidos pelas leis da luta pela vida, o guerrearam, desejosos de o substituir, concordou-se que era um homem de curta inteligência e larga vaidade. Em nada se elevara acima das demais mediocridades vaidosas que ansiavam por substituí-lo e só ele, antes como depois de ser ministro, conservara a funda convicção que tinha direito a receber, de um ano para o outro, honorários cada vez mais proveitosos e títulos e condecorações que lhe elevavam a posição social.
E esta convicção enraizara-se-lhe tão profundamente, que não havia ninguém que tivesse coragem de o contrariar, de modo que de ano para ano o conde Ivan Mikailovitch recebia ordenados cada vez maiores, a título de fazer parte de conselhos, comissões, comités e como recompensa dos seus anteriores serviços, acrescentando todos os anos novos galões às fardas e dependurando no peito novas condecorações esmaltadas; por isto, ninguém tinha em S. Petersburgo tão grande número de relações.
Quando Nekludov lhe principiou a explicar o que é que desejava, escutou-o com a mesma atenção com que, como ministro, escutava os relatórios dos chefes de secretaria, e ao findar disse-lhe que lhe daria duas cartas de recomendação. Uma para o senador Wolff, da secção dos recursos, a respeito de quem se conta muita história — explicou ele — mas que dans tous les cas c’est un homme très comme il faut; o senador deve-me obséquios e fará o que puder — acrescentou. — A outra séria para um membro muito influente da comissão dos perdões, que examinaria o recurso da Fedósia.
A história desta prisioneira, narrada por Nekludov, pareceu interessar sinceramente o antigo ministro.
— Se Sua Majestade me honrar com um convite para a sua reunião íntima de quinta-feira — declarou ele — é possível que tenha ocasião de lhe falar neste assunto.
Logo que recebeu as duas cartas de seu tio e a de sua tia para Marieta Chervianska, Nekludov deu princípio aos seus desígnios.
Principiou por dirigir-se a casa de Marieta. Recordava-se tê-la conhecido quando ainda menina, pertencendo a uma família nobre, mas sem fortuna, e sabia que havia desposado um funcionário muito ativo e ambicioso que soubera colocar-se altamente. Nekludov também não ignorava a reputação suspeita que se criara em redor dele, o que o tornava perplexo, por ser obrigado a pedir um favor a um homem a quem desprezava. E essa perplexidade aumentava com um sentimento ainda mais pessoal. Receava que, com o contacto dessa sociedade que resolvera abandonar, se habituasse de novo a essa vida fácil e superficial.
Já depois de se instalar em casa de sua tia surpreendera em si esse sentimento, e recordava-se bem que durante o tempo que estivera conversando com ela, sentira-se arrastado a falar das mais graves questões num tom irónico e gracejante.
Era sempre a mesma impressão enervante e embriagadora que sentia em S. Petersburgo. Havia tanta limpeza e tantas comodidades, tanta ausência de escrúpulos, morais ou intelectuais, que mais do que em nenhuma outra parte, a vida parecia leve e fácil.
Um cocheiro muito bem arranjado, muito delicado e limpo, conduziu-o numa carruagem muito asseada, por ruas elegantes, bem regadas e imponentes até à casa onde morava Marieta. Em frente desta estacionava um landau ao qual estava atrelada uma magnífica parelha de cavalos ingleses, que um digno e grave cocheiro, com suíças até meio do rosto, como os ingleses, guiava.
Um guarda-portão de farda deslumbrante introduziu Nekludov, que viu no alto da escadaria um lacaio fardado, com as suíças cuidadosamente penteadas. Imóvel, parecia não notar a presença de Nekludov; um outro lacaio apareceu e anunciou:
— O general não recebe; a generala também não, porque vai sair.
Nekludov tirou da carteira um bilhete de visita e, quando se aproximava de uma mesa que havia no vestíbulo, para escrever a lápis algumas palavras de sentimento por não poder falar com ninguém, viu o lacaio que estava no alto da escadaria fazer um sinal ao guarda-portão, que se precipitou velozmente, mandando aproximar a carruagem.
O outro lacaio, endireitando-se e colando as mãos às costuras das calças, seguia com o olhar uma jovem, franzina e baixa senhora, que descia rapidamente a escadaria, sem se preocupar muito com as exigências da sua dignidade.
Um grande chapéu com uma pluma preta cobria a cabeça de Marieta que, com uma romeira preta sobre um vestido também preto, acabava de abotoar as luvas da mesma cor.
Quando viu Nekludov levantou o véu que lhe cobria o lindo rosto com dois olhos muito vivos, e depois de o fitar por segundos, disse em voz alegre e familiar:
— É o príncipe Dimitri Ivanovitch?
— V. Exa. recorda-se ainda do meu nome?
— Como o esqueceria se (lembra-se?) eu e minha irmã andámos apaixonadas por si todo um verão? Acho-o muito mudado, ainda assim! Que pena tenho em ser obrigada a sair! Talvez possamos ainda conversar um pouco na sala — disse, hesitante. — Não é impossível — continuou, depois de ter consultado o relógio do vestíbulo. — Vou aos Kamensky assistir ao enterro. Que horrível coisa, não é?
— Que lhes aconteceu?
— Não sabe?! Morreu-lhes o filho num duelo! Bateu-se com Posen! Imagine, filho único! É horrível! A mãe está louca de desespero. É impossível ficar; venha logo à noite ou amanhã! — disse ela enquanto se dirigia para a porta com passo rápido.
— Hoje infelizmente, é-me impossível. E então que era um negócio de meu interesse — dizia Nekludov acompanhando-a.
— E de que se trata?
— Aqui tem uma carta de minha tia sobre o assunto.
E Nekludov entregou-lhe o pequeno envelope lacrado com um grande sinete.
— A condessa Catarina imagina que eu disponho de alguma influência junto de meu marido! É um erro! Eu nada posso, e não quero mesmo intrometer-me nas suas ocupações; transgredirei, porém, os meus princípios por sua causa, e para ser agradável à condessa. Então de que se trata?
— De uma rapariga encarcerada na fortaleza, que foi presa inocentemente e que está doente.
— Como se chama?
— Lídia Choustov. Junto da carta está um memorial com todas as informações.
— Veremos então o que se pode fazer! — disse Marieta, pondo o pé no estribo da carruagem nova, cujo verniz faiscava ao sol.
Marieta entrou, sentou-se e abriu o guarda-sol; o trintanário subiu para a almofada e mandou partir. A carruagem moveu-se; neste momento, Marieta fechando rapidamente o guarda-sol, tocou com ele nas cosias do cocheiro; os cavalos, erguendo a cabeça sobre a pressão do freio, estacaram, espezinhando o solo com as patas.
— Espero que voltará a visitar-me desinteressadamente! — disse ela, empregando um sorriso, cujo valor conhecia. Em seguida, terminando com a comédia, reabriu o guarda-sol, baixou o véu e fez um sinal ao cocheiro para partir.
Nekludov despediu-se, descobrindo-se.
Os cavalos bateram nervosamente com os cascos no pavimento, e a carruagem afastou-se rodando silenciosa e rapidamente, com caoutchouc novo nas rodas, e ressaltando nas molas à mais leve desigualdade do caminho.
III
Os sorrisos que Nekludov trocara com Marieta, sugeriam-lhe reflexões íntimas. «Mal vires a cabeça para o outro lado, estás outra vez agarrado por esta vida», dizia, pensando nas dificuldades e nos perigos que correria enquanto tivesse de solicitar favores de pessoas fazendo parte de uma sociedade a que nunca mais poderia pertencer.
Depois de se haver orientado, Nekludov dirigiu-se diretamente de casa de Marieta para o Senado. Mal aí chegou, entrou para uma grande sala onde estavam numerosos empregados muito delicados e muito bem vestidos, por quem soube que o recurso da Maslova fora entregue para exame ao senador Wolff, o mesmo para quem seu tio lhe tinha dado uma carta.
— A próxima sessão do Senado será na quarta-feira, disseram-lhe; há tanto que fazer para esse dia que, certamente, o recurso da Maslova ficará para ser discutido na sessão seguinte. Com um pedido especial talvez se possa obter que o prefiram, acrescentou o seu informador.
Foi aqui que Nekludov novamente ouviu falar do duelo no qual sucumbira o desgraçado Kamensky. E, pela primeira vez, ouviu narrar detalhadamente a história de que se ocupava então toda a cidade. Num restaurante em que vários oficiais comiam ostras e bebiam em excesso, como de costume, um deles apreciara o regimento em que Kamensky servia de uma maneira tão insultuosa que obrigara Kamensky a desmenti-lo. O outro esbofeteara-o e no dia imediato realizara-se o duelo. Kamensky fora ferido com uma bala no ventre e falecera duas horas depois. As testemunhas e o adversário tinham sido encarcerados, mas dizia-se que seriam postos em liberdade dentro de quinze dias.
Do Senado, Nekludov dirigiu-se para casa do barão Vorobiev, alto funcionário, fazendo parte da comissão dos perdões, para quem seu tio lhe tinha dado uma carta. Quando chegou, o guarda-portão informou-o, em tom severo, que o barão recebia apenas em dias fixos; Nekludov entregou a carta que levava e encaminhou-se para a residência do senador Wolff.
Wolff tinha acabado de almoçar e como de costume, estimulava a digestão fumando um charuto e andando de um para outro lado do seu gabinete.
Quando Nekludov chegou, encontrou-o ainda nestas ocupações.
Vladimir Efimovitch Wolff era efetivamente um homem très comme il faut e orgulhava-se desta qualidade, mais do que de qualquer outra, pois a ela devia a brilhante carreira que fizera e a realização das suas ambições. Devido a ela contraíra um rico casamento, que o elevara à categoria de senador e lhe dera o rendimento de dezoito mil rublos por ano. Além de se considerar um homem très comme il faut considerava-se como o tipo da retidão cavalheiresca, cujos princípios, contudo, não o impediam de espoliar, às ocultas, pessoas da sua intimidade. Nunca pensou que, solicitar recompensas, comissões e gratificações, fosse infringir essa retidão, assim como o não era, o enganar a mulher com quem casara por causa do seu dinheiro, e que por ele se apaixonara. Pelo contrário, ninguém como ele se orgulhava da feliz organização da sua vida familiar.
A família de Wolff compunha-se da esposa, da irmã desta, de quem ele se apropriara da fortuna, sob o pretexto de a administrar, da filha, rapariga nada bonita, tímida e magra, vivendo isolada e tristemente e tendo por únicas distrações assistir às reuniões evangélicas em casa de Aline ou da condessa Tcharska.
Além destas, Wolff tinha ainda um filho, rapaz tão bem constituído que aos quinze anos tinha tanta barba como um homem e que naquela idade principiara a beber e a perseguir as raparigas. Aos vinte anos o pai expulsara-o de casa, porque não conseguira fazer-lhe terminar os estudos e porque a sua conduta tornava-se comprometedora. Pouco depois tivera de pagar uma primeira dívida de duzentos e trinta rublos e logo a seguir outra de seiscentos rublos, o que o obrigou a declarar-lhe que seria a última. O rapaz, em vez de se regenerar contraíra uma nova dívida de mil rublos, e o pai participou-lhe que deixava de o considerar como seu filho.
A partir dessa época vivia como se não tivesse filhos, e em sua casa ninguém se atrevia a falar nele. Apesar disto estava convencidíssimo que ninguém como ele sabia organizar a sua vida de família.
Wolff recebeu Nekludov, sorrindo amável e ironicamente, pois era assim que exprimia habitualmente os seus sentimentos de homem comme il faut, para com o resto da humanidade.
— Peço-lhe que se sente — disse depois de ler a carta do conde Ivan Mikailovitch — e que me permita continuar a andar. Tenho muito prazer em conhecê-lo e em ser agradável ao conde Ivan Mikailovitch — continuou expelindo uma espessa espiral de fumo azulado e esforçando-se por conservar o charuto bem direito, a fim de impedir que a cinza caísse no tapete.
— O que desejo pedir é apenas que o recurso da Maslova seja examinado já, para que a condenada, a confirmar-se a sentença, possa partir o mais depressa possível.
— Sim, sim, numa das primeiras levas a sair nos paquetes de Nijni-Novgorod, eu sei! — respondeu Wolff com o eterno sorriso de homem que antecipadamente sabia o que lhe queriam dizer. — Diz então que a condenada se chama?...
— Catarina Maslova.
Wolff dirigiu-se à secretária e abriu uma pasta cheia de documentos.
— A Maslova, é isso mesmo! Eu falarei aos meus colegas e quarta-feira discutiremos o caso.
— Posso então telegrafar ao meu advogado?
— Ao advogado? Num caso destes? Mas é inútil! Em todo o caso pode telegrafar-lhe!
— Receio que as fases para a apelação sejam insuficientes — disse Nekludov — porém a simples leitura do processo mostra que a condenação foi devida a um equívoco.
— Sim, é possível que assim seja; o senado, porém, não se ocupa da essência dos recursos — respondeu Wolff, vigiando cuidadosamente a cinza do charuto. — O senado limita-se a examinar a reta aplicação e interpretação das leis.
— Este caso é, contudo, tão excecional...
— De acordo! Todos são excecionais. Far-se-á o que for preciso e é tudo!
A cinza principiava a oscilar na extremidade do charuto.
— Vem muito frequentemente a S. Petersburgo? — continuou Wolff, sacudindo o charuto no cinzeiro. — Que horrorosa morte a desse jovem Kamensky! Um rapaz adorável e filho único! À mãe está louca de desespero! — prosseguiu, repetindo palavra por palavra o que toda a gente dizia na cidade.
Nekludov levantou-se para se despedir.
— Se lhe convier, venha almoçar comigo um destes dias — disse Wolff, estendendo-lhe a mão.
Era tão tarde que Nekludov adiou para o dia imediato a continuação da sua peregrinação, e regressou para casa da sua tia.
IV
Eram sete horas e meia da tarde quando Nekludov se sentou à mesa de jantar da condessa Catarina Ivanovna, onde também tomaram lugar o conde, a condessa, seu filho oficial das guardas, criatura desagradável e impertinente que comia com os cotovelos encostados à mesa, uma dama de companhia e o intendente do conde.
O jantar foi servido como Nekludov até então não vira em parte alguma.
Os lacaios conduziam as iguarias, colocavam-nas na mesa e retiravam-se, deixando os convivas servirem-se por si mesmos. Os homens serviam as senhoras, como de direito lhes pertencia e enchiam-lhes os copos. Terminado um serviço, a condessa premia o botão de uma campainha elétrica e os lacaios, sem ruído e com toda a rapidez, mudavam os talheres e conduziam o prato seguinte. Todo o jantar era primoroso e os vinhos finíssimos.
O assunto da conversa foi ainda fornecido pela morte do jovem Kamensky. Eram todos unânimes em desculpar Posen, que defendera a honra do regimento. Apenas a condessa Catarina, com a sua habitual, descuidosa e irrefletida maneira de falar, era severa para com o assassino.
— Desculpar gente que se embriaga e que assassina companheiros na primavera da vida! Nunca! Nunca tal me ouvirão — asseverou ela.
— Não compreendo o que quer dizer! — disse o conde.
— Bem sei que nunca me compreende! — respondeu a condessa. — Todos me compreendem com exceção de meu marido — continuou ela dirigindo-se a Nekludov. — O que digo é que lastimo a mãe daquele que mataram e que não admito que as consequências para o assassino sejam prémios e incitamentos.
O filho dos condes, que até então estivera calado, interveio para tomar a defesa de Posen. Com bastante grosseria criticou as palavras de sua mãe, procurando provar-lhe que qualquer oficial teria de proceder como procedera Posen, insistindo em afirmar que se Posen não tivesse assim procedido, o conselho de oficialidade tê-lo-ia expulsado do regimento.
Nekludov escutava os argumentos sem tomar parte na discussão. Como antigo oficial compreendia as afirmações do jovem Tcharsky e achava-as naturais, sem ousar confessá-lo.
Assaltava-o a recordação de um prisioneiro, rapaz ainda novo, que vira na prisão, condenado a trabalhos forçados por ter assassinado um companheiro em seguida a uma questão. E, involuntariamente, não podia fugir à comparação.
Em qualquer dos casos a causa originária do crime fora a embriaguez. O mujique assassinara num momento de irritação e para castigo tinha sido separado da mulher e dos filhos, trazia grilhões nos tornozelos e o cabelo meio rapado, enquanto esperava que o enviassem, para os trabalhos forçados: o oficial, que em condições análogas cometera exatamente o mesmo crime, estava metido num belo quarto, comia bons bocados, bebia belos vinhos, lia os livros que lhe apetecia e brevemente seria posto em liberdade, recomeçando a vida anterior, onde encontraria ainda mais atenções que no passado.
Nekludov não resistiu à tentação de dizer aquilo que pensava, apoiado ao princípio pela condessa Catarina; pouco depois ela abandonava-o, calando-se, e Nekludov teve a impressão de que, exprimindo-se como o fizera, cometera uma inconveniência.
Terminado o jantar, os convivas passaram para o salão grande, que fora arranjado e disposto como uma sala de escola, com bancos e cadeiras, postos em filas; numa das extremidades da sala havia um pequeno estrado com uma mesa e cadeiras de encosto, destinada ao conferente.
Chegavam já numerosos convidados encantados de poderem ouvir o famoso Kiesewetter. Na rua as equipagens sumptuosas cruzavam-se em frente da casa e senhoras vestindo sedas, veludos e rendas, com penteados altos e cinturas artificialmente adelgaçadas, entravam para o salão ricamente ornamentado. Acompanhavam-nas alguns homens com ou sem uniforme, mas sempre de grande toillette; Nekludov notou com espanto entre esta brilhante assistência, a presença de cinco homens do povo: dois criados, um lojista, um operário e um cocheiro.
Kiesewetter era um homenzinho rechonchudo e de cabelo grisalho que, mal subiu ao estrado, começou a discursar. Falava em alemão, e uma rapariga magra de lorgnon assestado, ia traduzindo para russo, com muita facilidade.
Dizia que os nossos pecados são tão grandes e que o castigo é tão grande e inevitável que é impossível viver tranquilo, aguardando tal punição.
«Amadas irmãs e irmãos, pensemos um momento em nós e na nossa vida, na maneira como procedemos, na maneira como irritamos a cólera de Deus e aumentamos os sofrimentos de Cristo; compreenderemos que não há perdão possível, nem saída, nem salvação e que estamos infalivelmente perdidos. Uma terrível punição nos espera: os tormentos eternos! — dizia com lágrimas na voz. — Como e onde procuraremos a salvação, irmãos? Como escaparemos a esse incêndio terrível? Já rodeia toda a casa e não há saída possível!»
Calou-se, enquanto verdadeiras lágrimas lhe deslizavam pelo rosto. Havia oito anos, todas as vezes que chegava àquele ponto do discurso, de todos o que mais lhe agradava, experimentava involuntariamente uma contração na garganta e as lágrimas corriam-lhe pelas faces.
No salão ouviram-se soluços. A condessa Catarina, com a cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos na mesa, deixava ver os ombros decotados, estremecerem agitadamente. O cocheiro fitava o conferente com receio e surpresa, como se estivesse em riscos de o atropelar com os cavalos, se o orador não se retirasse. A filha de Wolff, vestida com requintado luxo, ajoelhara-se escondendo o rosto com as mãos.
O orador, de repente, ergueu a cabeça e nos lábios apareceu-lhe um sorriso semelhante ao que os atores empregam para manifestar alegria. Com voz humilde e branda continuou:
«Mas a salvação existe. Existe e está ao nosso alcance, certa, alegre e fácil. Essa salvação consiste no sangue do Pilho de Deus derramado por nós. O seu martírio e o sangue derramado salvam-nos da perdição. Irmãos, agradeçamos a Deus que se dignou sacrificar o seu filho único para redimir a humanidade! O seu sangue três vezes abençoado...»
Enquanto durou este discurso o mal-estar de Nekludov tornou-se intolerável; aproveitando-se da emoção geral, saiu na ponta dos pês e retirou-se para os seus aposentos.
Capítulo 4
I
No dia seguinte de manhã, Nekludov tinha acabado de vestir-se quando o criado lhe trouxe o bilhete de visita de Fainitzin, que partira, mal recebera o seu telegrama. O advogado tratou logo de saber os nomes dos senadores que iam examinar o agravo.
— Dir-se-ia que foram escolhidos a dedo para representarem as diferentes espécies de senador! — exclamou. — Wolff é o tipo do funcionário petersburguês; Skovorodnikov é um homem de leis profundo e Bé é um homem de leis prático. É com este que podemos contar mais. E a comissão dos perdões?
— Ia agora mesmo para casa do barão Vorobiev, pois não consegui ser recebido ontem.
— Sabe porque Vorobiev foi feito barão? — perguntou o advogado, que notou a entoação irónica com que Nekludov pronunciara o estrangeiro título de barão, reunido a um nome de família tão profundamente russo. — Foi o imperador Paulo que agraciou com esse título o avô do atual, moço fidalgo no paço que lhe prestara alguns favores íntimos, não ousando conferir-lhe um título russo, o que levantaria clamores. Foi assim que tivemos os barões Vorobiev! E que orgulho que ele tem no título! É um trampolineiro que não tem rival. Tenho à minha espera um carro; quer aproveitar-se?
No vestíbulo o guarda-portão entregou a Nekludov uma carta que um lacaio trouxera. Era Marieta que escrevia.
Pour vous faire plaisir, j’ai agi tout à fait contre mes principes et j’ai intercédé auprès de mon mari pour votre protégée. Il se trouve que cette personne peut être relâchée immédiatement. Mon mari a écrit au commandant. Venez donc maintenant me faire une visite désintéressé, je vous attends.
M.
— É então possível! — exclamou Nekludov. — Há sete meses que esta desgraçada está encerrada no segredo e só agora é que descobrem que é inocente?! E bastou uma palavra para lhe restituir a liberdade!
— Não tem de que se admirar! — disse o advogado sorrindo. — Regozije-se antes por ter já conseguido ganhar esta causa!
— É impossível! É um sucesso que me enche de amargura! Como é possível que seja assim a realidade? Porque é que a conservaram então na prisão?
— Não procure profundar o íntimo dessas coisas porque apenas lhe resultará sofrimento.
Desta vez o barão Vorobiev recebia-o. Na sala para onde Nekludov entrou estava um empregado, rapaz novo vestindo uniforme de onde lhe saía o pescoço de excessivo comprimento, ornado de uma saliente maçã de Adão.
— V. Exa. chama-se...? — disse ele, dirigindo-se a Nekludov.
Nekludov declinou o seu nome.
— Sua Exa. acaba de me dar ordens a seu respeito. Será recebido imediatamente.
O empregado entrou na sala junta, para sair pouco depois acompanhando uma velha senhora, toda vestida de preto e que chorava copiosamente.
— Queira entrar — disse o empregado a Nekludov apontando para a porta do gabinete do barão.
Nekludov entrou e viu na sua frente um homem de estatura regular, magro, musculoso, usando o cabelo branco cortado muito rente. Sentara-se numa cadeira em frente da secretária, olhando diante de si alegremente. Um sorriso benevolente desenhou-se-lhe nas feições avermelhadas, quando viu Nekludov.
— Encantado de o ver! Sou íntimo amigo de sua mãe, e conheci-o pequenino e mais tarde oficial. Sente-se e diga-me em que posso servi-lo.
Nekludov contou-lhe a história de Fedósia.
— Está bem. Já entendi. É comovente. Traz memorial?
— Sim, aqui está — respondeu Nekludov, tirando do bolso a petição. — Quis primeiro falar-lhe para lhe pedir a sua especial atenção para este caso.
— E fez muito bem! Certamente serei eu o relator. A história é comovente! — continuou o barão com alegre expressão no rosto. — Entendo bem o caso. A desgraçada era uma criança a quem o marido fez desvairar com as suas grosserias; mais tarde ambos se arrependeram e enamoraram-se. Sim, serei eu o relator do caso.
— O conde Ivan Mikailovitch prometeu-me que pela sua parte pediria...
Mal Nekludov pronunciara estas palavras, já a expressão do rosto do barão se alterava por completo.
— O melhor — disse ele friamente a Nekludov — é entregar a petição.
Nekludov saiu e dirigiu-se à secretária a fim de entregar a petição.
Exatamente como no senado, notou uma quantidade extraordinária de funcionários, empregados e guardas, todos muito limpos, delicados, corretos e distintos no porte e na fala.
«Mas que quantidade! E que aparência de bem alimentados e bem cuidados! E que botas tão luzidias! Sim, ou este conforto ou o dos prisioneiros e dos mujiques!» E, involuntariamente, eram estes os pensamentos que agitavam o espirito de Nekludov.
II
O homem nas mãos de quem estava colocada a sorte dos prisioneiros encerrados na fortaleza, era um velho general com uma larga folha de brilhantes serviços, mas que se dizia ser algo estúpido; possuía uma inumerável quantidade de condecorações, de que nunca se dignava usar as insígnias, excetuando a Cruz Branca que usava dependurada na lapela. Fora-lhe concedida como recompensa de ter obrigado os jovens aldeões russos que serviam sob as suas ordens no Cáucaso, a matar milhares de naturais do país, que defendiam a sua liberdade, os seus lares e as suas famílias. Na Polónia, onde exercera em seguida a sua atividade, novamente obrigara os aldeões a cometer os mesmos atos, o que lhe acarretara novas honrarias e por fim, em qualquer outro governo, distinguira-se da mesma maneira.
Hoje, velho e cansado, desempenhava o cargo de inspetor da fortaleza, cujos deveres e obrigações cumpria com inflexível rigor, considerando-os como tudo o que havia de mais sagrado no mundo.
Estes deveres e obrigações consistiam em conservar nas sombrias células dos segredos os presos políticos de ambos os sexos, de modo que metade morresse infalivelmente no prazo de dez anos; uns enlouqueciam, outros morriam tísicos e o maior número suicidava-se não tomando alimentos, cortando as veias com bocados de vidros ou enforcando-se nas grades das janelas.
O velho general sabia isto perfeitamente, pois tudo se desenrolava sob os seus olhares, mas nenhum destes acidentes o comovia mais do que aqueles produzidos por uma faísca ou por uma inundação. A única coisa que o interessava era obedecer cegamente às ordens vindas «de cima», isto é, ao regulamento. Tudo o que havia de mais essencial era cumprir o regulamento, sem ligar importância às consequências resultantes.
O regulamento mandava que, uma vez por semana, o general corresse todas as células inquirindo dos detidos se tinham a apresentar algum requerimento; todas as semanas pois, o general cumpria com o regulamento e os prisioneiros muitas vezes formulavam os seus pedidos; o general escutava-os atentamente, não respondia e não se importava com esses pedidos, porque antecipadamente sabia que iam de encontro ao regulamento.
Quando Nekludov chegou a casa do velho general, o carrilhão de uma igreja próxima lançou aos ares as notas do «Senhor como és grande» e era seguida bateu duas horas.
Nekludov recordou-se do que lera nas notas de um Dezembrista, sobre a impressão causada no coração dos prisioneiros por esta suave música, repetida todas as horas.
O general estava numa pequena sala onde reinava quase que obscuridade completa, em virtude de todas as janelas terem os cortinados fechados.
Sentava-se, acompanhado por um jovem pintor, irmão de um dos seus subordinados, em frente de uma pequena mesa de um só pé, que tentavam fazer girar, e na superfície da mesa os dedos esguios e delicados do artista, misturavam-se com os espessos, engelhados e ossificados dedos do general. A mesa respondia a uma pergunta feita pelo general, que desejava saber se depois da morte, as almas se reconheciam.
Naquela ocasião falava, por intermédio da mesa, a alma de Joana d’Arc.
Já dissera: «As almas reconhecem-se» e começara a ditar a palava seguinte, quando de repente estacara. Estacara tendo apenas ditado as primeiras letras, um p um o um s, e isto porque o general queria que a letra seguinte fosse um l enquanto o artista queria que fosse um v. O general queria que Joana d’Arc dissesse que as «almas reconheciam-se depois (posl) da sua purificação»; o artista queria obrigar Joana d’Arc a dizer que as almas reconheciam-se pela luz (po svitu) que derramavam.
O general franzindo as espessas e brancas sobrancelhas, fitava as mãos aborrecida e fixamente, enquanto esperava que a mesa indicasse o l; o pintor, com o rosto voltado para um canto da sala, agitava os lábios, pronunciando a letra v. Foi neste momento que o soldado que servia de criado, entregou ao velho general o bilhete de visita de Nekludov. O general, pouco satisfeito com a interrupção, franziu ainda mais as sobrancelhas e em seguida a um momento de silêncio, pôs a luneta, leu o bilhete conservando o braço muito estendido, ergueu-se custosamente e friccionou lentamente os rins e as pernas.
— Manda entrar para o meu gabinete.
— V. Exa. não se inquiete! Terminarei sozinho! — disse o artista. — Sinto que o fluido torna a vir!
— Então termine só! — respondeu o general severamente; e, arrastando as pernas trôpegas, entrou no gabinete.
— Muito prazer em o ver! — disse para Nekludov, apontando-lhe para uma cadeira junto da secretária. — Há muito que está em S. Petersburgo?
Nekludov respondeu que chegara havia pouco.
— E sua mãe a princesa está bem?
— Minha morreu, excelência!
— Desculpe-me. Sinto-o imenso. Sabe que fui camarada de seu pai? Fomos amigos, irmãos! Está também no exército?
— Não, já não.
O general acenou com a cabeça desaprovadoramente.
— Tenho a fazer-lhe um pedido, general — disse Nekludov.
— Ah! Sim? Então era que posso servi-lo?
— Se o considerar deslocado, peço-lhe que me desculpe. Sou porém obrigado a fazer-lho.
— O que é então que deseja?
— Entre os prisioneiros que lhe estão confiados há um tal Gomkevitch cuja mãe pede autorização para o ver, e se for impossível pede, ao menos, autorização para lhe mandar alguns livros.
O general ouviu o pedido sem manifestar satisfação ou descontentamento: limitou-se a inclinar a cabeça e ficou em atitude de quem refletia. Na realidade não refletia absolutamente em nada, como nenhum interesse ligava às palavras de Nekludov sabendo antecipadamente que o regulamento o proibia. Escutava-o por simples deferência.
— Nada posso fazer, porque são pontos fora das minhas atribuições — respondeu. — As visitas são permitidas apenas por decreto imperial, e quanto a livros, os prisioneiros têm autorização para se utilizarem da biblioteca que aqui existe.
— Gomkevitch desejava consultar apenas obras científicas, para estudo.
— Não creia em tal; não é para estudo, é para perturbação, é o que é!
— Estes desgraçados, contudo, devem desejar ocupar-se em qualquer coisa — disse Nekludov.
— Estão sempre a queixar-se; nós já os conhecemos bem! — respondeu o general, falando deles como de uma raça humana especial. — A verdade é que eles disfrutam aqui comodidades que baldadamente se procurariam noutra prisão! — continuou o general, principiando a descrever detalhadamente, as «comodidades». Quem o ouvisse julgaria que os presos estavam encerrados na fortaleza, a fim de ali passarem agradavelmente uma temporada. — Outrora é verdade que eram tratados rigorosamente; hoje é impossível trata-los melhor. Ao jantar têm três pratos, um dos quais de carne: costeletas ou picados, e aos domingos um prato de doce. Prouvera a Deus que todos os russos se alimentassem como eles!
Como todos os velhos, o general encetando um assunto não o largava até o ter bem esgotado.
— Quanto a livros — continuou — não lhes faltam obras religiosas e jornais antigos. A nossa biblioteca é excelente! A princípio pareceram interessar-se, mas ultimamente os livros ficavam por abrir. Fiz experiências pondo pedacinhos de papel entre as folhas, que voltavam na mesma! Também lhes é permitido escrever. Fornecemos-lhes lousas, nas quais podem divertir-se escrevendo, apagando e tornando a escrever! Mas isto também lhes não agrada. Em começo todos procuram «ocupar-se», depois principiam a engordar e tornam-se indolentes.
E o general falava sem suspeitar a terrível significação das suas palavras.
Nekludov escutava a sua voz enrouquecida, examinava-lhe os membros flácidos, as pálpebras tumefactas, quase a desaparecerem sob as espessas sobrancelhas, o crânio desprovido de cabelo e o recém-barbeado e espapaçado queixo, sustido pelo colar do uniforme, no qual brilhava a pequena Cruz Branca, e compreendia a inutilidade de qualquer tentativa de explicação com tal homem.
Ergueu-se ocultando com custo o misto de repulsão e piedade que aquele medonho velho lhe inspirava.
Este, julgou oportuno dar alguns conselhos ao filho do seu antigo camarada:
— Adeus, meu rapaz! — disse. — Não me queiras mal pelo que te vou dizer, que é unicamente por amizade; deixa-te de cuidar dos negócios desta gente! Não creias que há entre eles inocentes! Todos, nota bem, todos são uns miseráveis! Eu conheço-os bem e sei quem eles são. Retoma o serviço; volta para o exército, é o melhor que tens a fazer. O imperador e a pátria necessitam homens de talento e de valor. Pensa por um momento o que aconteceria, se eu e os mais recusássemos servir!
Nekludov suspirou, curvou-se e apertando a ossuda mão do general, saiu da sala.
O general quando ficou só esfregou os rins e arrastou-se de novo para o gabinete, onde durante a sua ausência o artista escrevera a resposta ditada pelo espírito de Joana d’Arc.
O general pôs a luneta e leu: «reconhecer-se-ão pela luz que emanará do seu corpo astral».
— Ah! — exclamou o general, piscando os olhos com satisfação. — Mas, como saber se essa luz é a mesma para todos? — perguntou; e cruzando de novo os dedos com os do artista, instalou-se junto da pequena mesa.
Ao sair Nekludov chamou pelo cocheiro.
— Oh, quanto me aborreci! — disse este. — Estive para me safar sem o esperar!
— Sim, todos aqui se aborrecem! — respondeu Nekludov. E sentando-se na carruagem procurou distrair-se observando as nuvens que corriam pelo firmamento e a água faiscante do Neva cruzando por chalupas e vapores.
III
Era no dia seguinte, quarta-feira, que devia ser examinado o caso da Maslova. Nekludov chegou cedo ao senado, e diante da entrada encontrou-se com o advogado, que chegava também na ocasião. Subiram juntos pela enorme e imponente escadaria até ao segundo andar, e depois de guardarem numa sala bem conhecida por ter no alto da entrada a data da introdução do código, os agasalhos e as bengalas, inquiriram de um guarda se já tinham chegado os senadores. Sim, todos tinham já chegado e o último entrara pouco antes deles.
Fainitzin, que vestia casaca e gravata branca, conduziu Nekludov para uma sala próxima com as paredes guarnecidas por armários de um formato extravagante. Na sala estava um velho de aspeto patriarcal, com compridos cabelos brancos; dois criados tiravam-lhe os agasalhos e, respeitosamente, ajudavam-no a dirigir-se para um dos armários onde Nekludov o viu desaparecer.
Fainitzin correra a falar com um colega que vestia igualmente casaca, e Nekludov pôde examinar com vagar as restantes pessoas que se achavam na sala.
Seriam ao todo uns quinze homens e duas senhoras, uma das quais nova e usando lorgnon e a outra já de meia idade. Nesse dia devia julgar-se também um processo de difamação pela imprensa, o que atraíra o público, que ordinariamente não se incomodava em assistir às sessões de exame de recursos.
O meirinho, homenzarrão rubicundo vestindo um aparatoso uniforme, aproximou-se de Fainitzin, perguntando-lhe qual o recurso que ele ia defender. Enquanto anotava num papel a resposta do advogado, abriu-se a porta do armário e Nekludov via sair o patriarcal ancião, não vestido como entrara, roas sim com um uniforme furta-cores, que lhe dava o aspeto de um pássaro gigantesco.
Este extravagante disfarce constrangia-o tão visivelmente, que deu-se pressa em sair da sala, quase que correndo.
— É Bé, um respeitável cavalheiro! — informou o advogado a Nekludov, tornando a aproximar-se. E principiou a explicar o recurso que ia ser examinado.
Não demorou muito tempo a abertura da audiência, e Nekludov com a demais gente entrou para a sala, mais pequena e mais simplesmente adornada que a da primeira instância, mas de igual disposição. Havia a mesma separação entre o público e os juízes, os mesmos quadros nas paredes e as mesmas mesas para os juízes. Quando o meirinho bradou: «O Tribunal!» ergueu-se toda a gente para saudar os senadores, enquanto eles, de grande uniforme, se sentavam, procurando dar ao rosto aparência de gravidade e respeito.
O tribunal compunha-se de quatro senadores: Nikitine, que fazia de presidente, homem alto, glabro, e de olhar seco como o aço: Wolff, barbeado de fresco e fazendo gala nas suas belas mãos muito brancas; Skovorodnikov, um gordo velhinho, de andar muito pesado e com as feições marcadas pela varíola; e por fim, Bé, o respeitável ancião. Atrás deles subiram para o estrado o escrivão e o agente do Ministério Público, homem novo, magro, seco, pálido e profunda expressão de tristeza no olhar. Apesar do desnorteante uniforme que vestia, Nekludov reconheceu-o como um dos seus melhores amigos da Universidade.
— Chamar-se-á Sélenine o delegado do procurador régio? — perguntou Nekludov ao advogado, que se sentara junto dele, nas bancadas do público.
— Sim, assim é.
— Conhece-o muito; tem altos merecimentos.
— Como delegado soube tornar-se notável pela sua influência e atividade. Dirija-se a ele! — disse o advogado.
— Para quê? Sei que procederá segundo os ditames da sua consciência — respondeu Nekludov, recordando-se das eminentes qualidades do que fora seu íntimo amigo: honra, probidade, piedade e nobreza, no que esta palavra exprime de melhor.
— Sim, seria já tarde, agora — respondeu Fainitzin. E começou a seguir atentamente a discussão do caso.
Nekludov procurou também interessar-se, tentando compreender o que se passava na sua frente. Mas, era-lhe impossível compreender, porque também aqui a discussão não abraçava o fundo da questão, limitando-se a incidir nos factos acessórios. O processo fora motivado pela publicação de um artigo num jornal, em que denunciavam as escroquerias do diretor de uma companhia qualquer.
Para fazer justiça parece que o essencial seria indagar se efetivamente esse diretor roubara ou não os acionistas, e caso afirmativo procurar o meio de terminar com os roubos. Durante a discussão, porém, nem sequer uma palavra foi dita sobre este assunto e apenas se debateu a questão de saber se o diretor do jornal tinha ou não o direito de publicar o artigo, de acordo com um tal parágrafo do código, e na negativa, se cometera uma difamação ou calúnia, ou calúnia ou difamação.
Duas coisas contudo, chocaram profundamente Nekludov: a primeira foi observar que, contrariamente ao que Wolff lhe asseverara, o Senado não se ocupava só de erradas interpretações da lei, mas até calorosamente procurava argumentos para poder anular a condenação do diretor do jornal, e a segunda foi notar que Sélenine, de temperamento frio e inclinações moderadas, se animava extraordinariamente, sustentando opiniões opostas.
Nekludov julgou descobrir no ardor da discussão uma tal hostilidade da parte do delegado para com Wolff, que a certa réplica de Sélenine corou, estremecendo e acabou por calar-se.
A explicação do incidente teve-a mais tarde Nekludov, quando soube que Wolff jantara dias antes do julgamento em casa do diretor de tal companhia, de que Sélenine fora informado.
Evidentemente o discurso de Sélenine ofendera Wolff que, juntamente com os outros senadores, levantou-se da cadeira e encaminhou-se para o gabinete das deliberações.
Momentos depois o meirinho informava Fainitzin que o agravo da Maslova ia ser examinado dentro em pouco.
IV
Logo que os quatro senadores se encerraram na sala das deliberações, Wolff principiou a expor com ardor, quais os motivos que imperavam para que a sentença fosse anulada.
Nikitine o presidente, homem pouco benevolente, estava mal disposto nesse dia. Enquanto se discutira o processo na audiência, arquitetara a sua opinião e agora não atentava em Wolff, todo entregue aos seus pensamentos. Relembrava as palavras que na véspera escrevera nas suas memórias e que narravam como fora Velianov e não ele, o nomeado para o lugar que tanto tempo ambicionara. Nikitine estava profundamente convencido de que a opinião que formavam dos altos funcionários do seu tempo, constituíra um documento importantíssimo para o futuro historiador.
No capítulo que escrevera na véspera, apreciava com extrema severidade a conduta de alguns desses altos funcionários, que segundo a sua expressão, o tinham impedido de salvar a Rússia da ruína, o que simplesmente queria dizer que o tinham impedido de receber um mais elevado ordenado: perguntava a si mesmo, agora, se teria explicado tudo claramente, para que a posteridade pudesse ter, um fiel informador.
— Evidente, evidente! — respondia, quando Wolff se lhe dirigia; o que era evidente é que não ouvia palavra do que se dizia.
Bé também não prestava atenção ao que dizia Wolff. Com aspeto concentrado desenhava num papel que tinha na sua frente diversos brasões. Bé era um liberal da antiga escola: conservava-se fiel às tradições de 1860 e só as opiniões políticas tinham influência para o desviar da sua imparcialidade. Era o que agora acontecia; considerando a perseguição de um jornalista como antiliberal e não vendo em todo o processo mais do que um ataque contra a liberdade de imprensa, sentia-se inclinado a votar contra a apelação. Quando Wolff acabou de falar, Bé, em voz clara, concisamente expôs o seu modo de ver, deixando transparecer um leve tom de enfado, por ser obrigado a demonstrar o que lhe parecia tão evidente, e finalizando, recomeçou a desenhar brasões.
Skovorodnikov, sentado em frente de Wolff, entretivera-se todo este tempo a empurrar a barba e o bigode para dentro da boca, e só cessou para declarar em voz alta e áspera que o processo fora conduzido segundo a lei e que não havia motivo para que a sentença fosse revogada.
O presidente foi da mesma opinião e a sentença confirmou-se.
Wolff ficou furioso e muito mais depois de perceber por certas alusões da parte dos colegas, que estes suspeitavam que o seu desinteresse não era completo.
Não querendo deixar de parecer sempre o homem comme il faut, ocultou maravilhosamente o seu mau humor e pegando no outro processo abriu-o e principiou a ler alguns autos do caso da Maslova.
Os seus três colegas chamaram e pediram chá, entabulando-se logo uma animada conversa sobre o assunto que prendia todas as atenções em S. Petersburgo, juntamente com o caso do duelo. Um alto funcionário, chefe de uma repartição de um ministério, fora preso como implicado num atentado contra o pudor, horrivelmente monstruoso.
— É inacreditável! — disse Bé, parecendo enojado.
— Parece-lhe? — perguntou Skovorodnikov, humedecendo com a língua o papel de um cigarro que tinha feito. — Pois posso mostrar-lhe um livro de um autor alemão de nomeada onde se defendem e pedem coisas mais monstruosas!
— Ora adeus! — disse Bê.
— Trar-lho-ei para a próxima sessão! — respondeu Skovorodnikov, citando sem hesitação frases do livro, título, data e cidade onde tinha sido publicado.
— Diz-se que o nosso herói vai ser nomeado governador não sei de que província da Sibéria! — disse Nikitine.
— Bravo! É completo! Estou a ver o bispo sair-lhe ao encontro na receção, com todo o clero!
Skovorodnikov tragou sofregamente umas fumaças e recomeçou a mascar a barba.
Foi nesta ocasião que o meirinho entrou na sala e participou aos senadores que o advogado Fainitzin defenderia o agravo da Maslova.
— É um verdadeiro romance este processo! — disse Wolff; e contou aos colegas tudo o que sabia das relações de Nekludov com a Maslova.
O chá e os cigarros estavam a acabar e os senadores teriam preferido discutir o caso entre si, na sala das deliberações, se não fora o pedido de Fainitzin.
Assim, apesar da pressa que tinham em retirar-se, resignaram-se a voltar para a sala das audiências.
Wolff relatou os fundamentos do agravo, deixando perceber visível parcialidade e manifesto desejo que a sentença fosse revogada.
— Tem a acrescentar mais alguma coisa? — perguntou o presidente a Fainitzin.
Este levantou-se e puxando pelo deslumbrante peitilho da camisa, principiou a provar minuciosamente e com maravilhosa exatidão e clareza que no decorrer dos debates transatos, a lei tinha sido infringida em seis pontos; rapidamente, depois, examinou o processo, demonstrando a incoerência e a injustiça da sentença da primeira instância.
Quando findou, a anulação da sentença parecia inevitável. Nekludov alimentara ainda mais essa esperança quando, a meio do discurso, o advogado lhe sorrira animadamente. A seguir, porém, olhara para os senadores e isto bastou para que compreendesse que Fainitzin era o único que parecia encantado.
Os senadores e o delegado do Procurador Régio não só não sorrindo nem pareciam encantados, mas pareciam dizer ao advogado: «Fala, fala que perdes o teu tempo; estamos fartos de ouvir outros como tu!»
Quando Fainitzin terminou, o presidente concedeu a palavra ao delegado; este limitou-se a declarar, em poucas palavras, que os fundamentos para o agravo não eram bastantes e que a sentença devia ser mantida; depois disto os senadores levantaram-se e entraram de novo na sala das deliberações.
O debate estabeleceu-se, com opiniões diversas. Wolff insistia pela anulação; Bê, o único que compreendera todo o assunto, insistia pela mesma anulação, descrevendo aos colegas um quadro real da pouca compreensibilidade dos jurados e do descuido dos magistrados. Nikitine, ardente partidário da estrita legalidade opunha-se à anulação; restava o voto de Skovorodnikov que se opôs à revisão porque não compreendia a resolução de Nekludov e porque lhe repugnava a ideia que ele se casasse com a Maslova.
Skovorodnikov era um materialista, darwinista; toda a manifestação do dever ou, o que era pior, de sentimento religioso, parecia-lhe um revoltante absurdo e uma injúria pessoal. Toda esta história da prostituta e a presença do advogado no Tribunal irritaram-no ainda mais.
Continuando a meter a barba para a boca asseverou não querer saber de mais nada do que a legalidade do processo e que contra ela não havia razões para apelação.
Assim, pois, o agravo da Maslova foi rejeitado.
V
— É horrível! — exclamou Nekludov dirigindo-se ao advogado, logo em seguida à leitura do acórdão. — E confirmam a sentença sob o pretexto de que não há irregularidades no processo, quando é evidente que se trata de uma condenação injusta!
— Era um caso assente! — respondeu o advogado.
— E Sélenine também em oposição! É horroroso! — repetiu Nekludov. — E agora, que fazer?
— Apelar já para Sua Majestade. Vou redigir o requerimento para o apresentar, enquanto está em S. Petersburgo.
Neste momento Wolff, com o peito cravejado de condecorações, saiu do gabinete e dirigiu-se a Nekludov.
— Ninguém me ajudou, príncipe; nada pude fazer. Os fundamentos para apelação não foram julgados bastantes — disse, encolhendo os ombros. E afastou-se para entrar num dos armários que serviam de guarda roupa.
Atrás de Wolff saiu Sélenine: sabendo pelos senadores que Nekludov estava no tribunal, reconheceu-o mal o viu.
— Estava longe de te encontrar aqui! — disse-lhe sorrindo com os lábios, pois os olhos apenas exprimiam tristeza.
— Não sabia que eras Procurador Régio.
— Delegado — refletiu Sélenine. — E tu que fazes por cá?
— Vim ver se conseguia justiça e piedade para uma desgraçada, condenada inocentemente.
— Quem é?
— Aquela cuja sentença acaba de confirmar.
— Ah! a Maslova! Mas a apelação não tinha fundamento!
— Não se trata da apelação mas sim dela, que está inocente e contudo castigada!
Sélenine suspirou.
— Sim é possível, mas...
— Não é só possível, é real!
— Como é que o sabes?
— Fiz parte do júri que a condenou. Sei que errámos quando respondemos aos quesitos.
Sélenine refletiu um momento.
— Devias ter apontado o erro imediatamente — retorquiu.
— Assim fiz.
— E concluir essa declaração nos autos. Haveria assim um motivo para apelar.
— Mas pela simples análise do processo via-se bem que a resposta do júri era incoerente — disse Nekludov.
— O Senado, porém, não pode ocupar-se dessas análises. Bastava que o Senado anulasse uma sentença em nome do seu modo de compreender a justiça, para que as decisões do júri perdessem logo a sua significação e para que as injustiças começassem a pulular — respondeu Sélenine, recordando-se de Wolff e do processo que primeiro entrara em julgamento.
— O que unicamente sei é que ela está inocente e que a última esperança que lhe restava de fugir a um castigo monstruoso e imerecido acaba de desaparecer. A justiça suprema confirmou a maior injustiça.
— Não é assim, não confirmou, pois de tal não se ocupou! — insistiu Sélenine com ligeira impaciência na voz. — Estás alojado em casa de tua tia? — perguntou-lhe, desejando mudar de assunto. — Sim, já ontem me havia dito que estavas cá, quando me convidou para ir à tarde ouvir uma prédica de um padre estrangeiro. Se soubesse que estavas lá teria ido.
— Estive lá mas retirei-me aborrecido.
— E porquê? Tratava-se da manifestação de um sentimento religioso, ainda que pervertido.
— Qual história! Uma completa parvoíce! — declarou Nekludov.
— Não, isso não. O curioso e lastimável é que sejamos uns completos ignorantes no que respeita ao ensino da igreja, e que consideremos como novidade o que não é mais do que exposição dos dogmas fundamentais da fé! — disse Sélenine com certo embaraço, recordando-se que noutros tempos partilhara com Nekludov ideias muito diferentes.
Nekludov fitou-o atenta e surpreendidamente. Sélenine sustentou o exame sem baixar o olhar, mas Nekludov descobriu-lhe além da expressão de tristeza, uma pontinha de malquerença.
— Acreditas então nos dogmas da Igreja? — perguntou-lhe Nekludov.
— Porque não? — replicou Sélenine, sustentando sempre o olhar inquiridor de Nekludov.
— É estranho! — disse este suspirando.
— Tornaremos a falar com vagar — disse Sélenine. — Eu vou — acrescentou, dirigindo-se a um empregado que respeitosamente o vinha procurar. — Ver-nos-emos, não é assim? Onde poderei encontrar-te? Eu moro em Nadéjdinskaia, estou em casa à hora de jantar. Ah! Quanto tempo já lá vai, desde a última vez que nos vimos! — acrescentou, apertando a mão a Nekludov antes de afastar-se.
— Sim, se puder irei ver-te! — respondeu Nekludov.
Intimamente, porém, compreendera que este homem, outrora um dos que mais estimara e adorara, não era mais do que um indiferente e que este breve encontro quase lho revelara como um inimigo.
VI
Quando Nekludov conheceu Sélenine como estudante, este era um bom filho, um amigo leal, e para a sua idade, um rapaz da sociedade, instruído, prudente, belo, elegante honrado e sincero. Tinha fácil compreensão e sem fazer sacrifícios nem ser pedante, recebera medalhas de ouro em todas as teses anuais.
Reconhecia como única atividade digna de um ser humano o ser útil à humanidade, não viu outro caminho a seguir senão entrar ao serviço do Estado.
Assim, mal concluiu o curso, examinou sistematicamente todas as carreiras em que podia empregar a sua atividade e resolveu entrar para uma das secretarias ministeriais, onde são concebidas as leis governativas.
Porém, apesar de desempenhar as funções do seu cargo com o mais escrupuloso cuidado, reconheceu que daí não lhe advinha prazer algum e que «aquilo» não era de forma alguma a realização do seu sonho: ser útil à humanidade.
E, aumentando o desânimo à medida que o contacto com os seus colegas lhos revelava assaz curtos de espírito, abandonou o ministério pela magistratura. Aqui era um pouco melhor, mas o descontentamento perseguia-o; compreendeu que tudo era diferente do que imaginara e do que deveria ser.
Uma vez no Senado, as suas relações obtiveram-lhe a nomeação de moço fidalgo no paço, o que o obrigou a andar dentro de unia carruagem com uniforme bordado e avental branco, agradecendo a este e àquele por o terem colocado na posição de um lacaio.
Por mais que tentasse achar uma explicação racionai para a existência de tal dignidade, nunca o conseguiu e agora mais que no Senado, sentia que ainda não era «aquilo» o ser útil à humanidade.
Com receio, porém, de magoar e desgostar aqueles que imaginavam ter-lhe dado uma grande alegria e porque a sua natureza animal sentia-se lisonjeada, quando colocado em frente de um espelho ou recebendo homenagens de inferiores, não se atreveu a renunciar à sua dignidade.
Com o seu casamento deu-se um caso análogo. Um enlace dos mais brilhantes, sob o ponto de vista mundano, foi-lhe preparado e ele, receando ofender a senhora que desejava desposá-lo e aqueles que lhe tinham preparado o terreno, e além disso lisonjeado na sua vaidade pela posse de uma rapariga nova, bonita e de família distinta, casou-se.
O casamento, porém, depressa o convenceu de que exatamente como no Senado e no Paço, não era ainda «aquilo» o serviço a bem da humanidade.
Em seguida ao nascimento do primeiro filho sua mulher declarara-lhe que não queria ter mais e entregara-se à luxuosa vida mundana que ele agora, quer gostasse ou não, tinha de seguir.
Ele, ainda que não fosse de uma beleza notável, era-lhe contudo fiel, e apesar-de deixar perceber que nada lucrava na vida que levava a não ser cansaço e enfado, perseverantemente continuava a segui-lo, envenenando a existência do marido. Todos os esforços deste para alterar tal modo de viver, despedaçaram-se de encontro a uma muralha: a muralha da convicção que tudo corria no melhor dos mundos, o que parentes e amigos asseveravam, fortalecendo-lhes a crença.
A criança que nascera, de cabelos doirados e encaracolados e pernitas nuas, tornava-se um ser estranho a seu pai, porque ia sendo educada de uma maneira totalmente diversa da que ele desejava ver em prática. Rebentaram então entre marido e mulher as costumadas diligências, cuidadosamente escondidas aos estranhos e brunidas pelo decoro.
Por tudo isto a vida tornou-se para Sélenine uma pesada carga, que lhe fez compreender não ser ainda «aquilo» o serviço a bem da humanidade.
Mais do que tudo, porém a sua atitude em matéria religiosa foi-lhe causa de numerosos dissabores.
Como todos os da sua época e da sua posição, Sélenine, na idade da razão, desembaraçara-se sem esforço das malhas das superstições religiosas em que tinha sido educado e nem sequer notou quando e como o facto se deu.
Ardente e reto como era na mocidade, nunca escondeu de Nekludov, durante o tempo da sua intimidade, o seu desprezo pela religião oficial.
Os anos deslizaram, e Sélenine começou a elevar se na hierarquia social, por esta época teve lugar a reação conservadora e os progressos espirituais de Sélenine estacaram.
Quando morrera seu pai, Sélenine teve que assistir a todas as missas rezadas em casa «pela sua alma» e sua mãe insistiu para que se confessasse e comungasse.
A opinião pública e o serviço do Estado reclamavam a sua comparência em todas as cerimónias religiosas e raro era o dia que passasse sem que não houvesse uma dessas cerimónias que lhe reclamavam a presença. Em vão tentava acreditar em alguma coisa, durante a cerimónia; a sua retidão e amor da verdade não deixaram que se enganasse. Achava-se, pois, colocado neste dilema: ou continuar a reconhecer que todas as manifestações externas do culto eram enganadoras, e o que era simples, embora não o parecesse, alterar a sua vida neste sentido, de forma que não mais tivesse de estar presente a tais cerimónias, ou reconhecê-las como verdadeiras e renegar o passado.
A resolução que parecia mais racional e simples, foi contudo, a rejeitada.
É que, além da hostilidade contínua que teria de sofrer daqueles com quem convivia, teria de abandonar a sua posição e o serviço e sacrificar a esperança de ser útil à humanidade. Tal sacrifício só o realizaria quando estivesse profundamente convencido de proceder retamente.
Ora Sélenine sabia convictamente que a razão estava do seu lado, como qualquer indivíduo instruído não pode deixar de o estar, logo que sabe um pouco de história e como as religiões e especialmente a cristã se originaram.
Então ele, um homem até aí reto e verdadeiro, acabrunhado pela sua vida diária, deixou que uma falsidadezinha se introduzisse no corpo das suas conceções. Fora essa falsidadezinha que o enterrara, com o hábito, na enorme mentira em que agora se debatia.
Antes de resolver a pergunta se a ortodoxia em que fora criado e educado e que todos esperavam vê lo aceitar, sem o que não podia continuar nas suas ocupações, continha ou não a verdade, já a resolvera pela afirmativa.
Para isso, não lera Voltaire, Schopenhauer, Spencer ou Comte, mas sim as obras filosóficas de Hegel, e as religiosas de Vinet e Khomyakoff, onde naturalmente encontrara o que necessitava: tranquilidade de espírito e justificação do ensino religioso em que fora educado, que a sua razão renegara, mas sem o qual toda a sua vida se envenenava e cuja aceitação se lhe impunha, removendo o fermento perturbador do seu espirito.
Adotara então os sofismas habituais com os quais se procura provar que uma única razão humana não pode conhecer a verdade, que a verdade é apenas revelada a uma associação de homens e só por meio de revelação pode ser conhecida e que a igreja é a depositária dessa revelação, etc., etc. Esforçava-se, pois, por assistir a missas, orações, requiens, confessava-se, fazia o sinal da cruz diante das imagens, tudo isto de espirito tranquilo, sem consciência da mentira, e continuando sempre no serviço prático, a única coisa que ainda o fazia dizer não ser de todo um inútil e que, no meio de uma inconsolável vida de família, nua de carinhos, e falha de alegrias, lhe dava algum conforto. Porém, nas profundezas da sua alma, reconhecia não ser aquela religião «aquilo» a que aspirava para bem da humanidade e por isso o seu olhar apenas refletia profunda tristeza.
O encontro com Nekludov, a quem conhecera antes quo estas mentiras se houvessem enraizado na sua alma, relembrou-lhe o que então fora. E porque, desde que retomara a antiga crença religiosa, estava cada vez mais convencido que não era «aquilo» a que aspirava, sentia-se invadido por mortal tristeza.
Nekludov, que em seguida à primeira alegria de o tornar a ver prometera procurá-lo, não fez o mínimo esforço nesse sentido, de modo que, durante o resto do tempo da sua estada em S. Petersburgo, nunca mais se encontraram.
Capítulo 5
I
Nekludov e o advogado, quando saíram do Senado seguiram juntos pela rua fora, com a carruagem a acompanhá-los a distância. O advogado ia-lhe narrando a aventura do importante funcionário de quem falavam entre si os senadores, explicando-lhe porque tinha sido nomeado para o lugar de governador de uma província em vez de, segundo a lei, ser degredado.
Como na ocasião atravessassem uma praça onde existia um monumento por acabar, o advogado, com manifesto prazer, contou-lhe que esse monumento devia ser erigido por subscrição pública, mas que as elevadas personagens que a administravam, tinham embolsado o dinheiro, abandonando o monumento. A propósito de um desses cavalheiros, contou que a amante perdera somas enormes às apostas nas corridas, e que um outro vendera a mulher também por uma grande quantia. Era uma série infinda de irregularidades cometidas por elevados figurões, quando em vez de estarem engaiolados, gozavam posições vantajosas.
O advogado fazia gala na narração das historietas, cuja fonte era inesgotável, porque lhe originavam a crença que os processos por ele empregados para ganhar dinheiro eram inocentes e naturais, comparados com os que os representantes da aristocracia e do poder empregavam. A sua surpresa, pois, foi grande quando ouviu Nekludov chamar o carro e despedir-se, sem escutar o fim de uma anedota.
Nekludov regressara a casa dominado por grandes tristezas que a decisão do Senado, confirmando a monstruosa sentença da Maslova, provocara. E mais triste ficou lembrando-se que aquela decisão tornava mais difícil a realização do projeto de ligar o seu destino ao da Maslova. Para coroar o seu desalento o advogado enchera-o com as tais histórias, que só lhe mostravam por toda a parte o triunfo do mal e involuntariamente perseguia o também o duro e malévolo olhar de Sélenine, que Nekludov conhecera sincero, afetuoso e bom.
Quando entrou em casa de sua tia, o guarda-portão entregou-lhe uma carta que uma «mulher» — e desprezivelmente pronunciou a palavra — viera trazer. Era da mãe da Choustova. Agradecia em frases comovidas ao «benfeitor» e «salvador» de sua filha, e implorava-lhe que não se ausentasse de S. Petersburgo sem a procurar. la nisso o interesse de Vera.
Em seguida a todas as deceções que Nekludov sofrera, durante a sua permanência em S. Petersburgo, o desalento apoderara se dele. Os projetos que dias antes arquitetara, pareciam-lhe agora tão irrealizáveis como os sonhos de mocidade que outrora formara. Quando entrou no quarto procurou um papel na carteira para notar o que ainda tinha a fazer antes de partir; momentos depois a condessa mandava-lhe pedir, por intermédio de um criado, para descerão salão, e tomar uma chávena de chá.
Nekludov guardou os papéis e a carteira e desceu para o salão.
Por uma janela que dava para a escadaria viu à porta de casa a carruagem de Marieta; sentiu uma repentina impressão de alegria. Apetecia-lhe ser novo e sorrir.
Marieta vestia de claro, e, sentada num fauteuil ao lado da condessa, com uma chávena de chá na mão, falava, o rosto iluminado pelo brilho dos ridentes olhos.
Na ocasião em que Nekludov entrava, acabava ela de contar um incidente tão cómico e tão livre — Nekludov adivinhou-o pela sua maneira de rir — que a boa da condessa Catarina Ivanovna ria de tão bom grado que o enorme corpo estremecia-lhe da cabeça aos pés, enquanto Marieta fitava-a maliciosamente, inclinando levemente de lado o rosto alegre e enérgico.
— Tu matas-me! — exclamou a condessa entre duas gargalhadas.
Nekludov cumprimentou-as e sentou-se. Marieta mal notou a expressão grave das suas feições e querendo agradar lhe — o que desejava sem saber porque, desde que o tornara a ver — transformou não só a sua expressão exterior como também a sua disposição intima. Tornou-se séria, melancólica, descontente da vida, cheia de vagas aspirações, isto tudo sinceramente, sem hipocrisia e sem esforço.
Instintivamente adivinhou a disposição em que Nekludov se encontrava naquele momento e para lhe agradar arranjou disposição íntima em tudo semelhante.
Marieta quis saber o resultado dos trabalhos de Nekludov. Este contou-lhe como os seus esforços tinham naufragado e a propósito narrou o encontro que tivera com Sélenine.
— Ah! que excelente alma! É na verdade um chevalier sans peur et sans reproche, uma alma límpida! — exclamaram as duas senhoras, empregando o epíteto de que todo o Petersburgo se servia para designar o jovem delegado.
— Soube que casou; a esposa é agradável? — perguntou Nekludov.
— A mulher? Mas é... o melhor é não criticar ninguém. Parece que não o compreende... Então ele também votou contra? — perguntou Marieta sinceramente comovida. — É horroroso! Quanto lastimo essa infeliz! — E suspirou profundamente.
Nekludov, comovido por contágio, deu-se pressa em mudar de assunto. Falou na Choustova que, graças a Marieta, fora posta em liberdade e quando depois de lhe haver agradecido ia manifestar o horror que sentia só em pensar no que a pobre rapariga e toda a família tinham sofrido durante tanto tempo, simplesmente por não terem tido, até então, ninguém que erguesse a voz a seu favor, Marieta não o deixou continuar e em termos semelhantes aos que ele ia empregar, exprimiu a sua indignação.
— Não me fale nisso — disse. — Quando meu marido me participou que a detida podia ser posta em liberdade, foi esse o pensamento que me impressionou: «Então se pode ser posta em liberdade, para que é que a conservam na prisão?» É revoltante, revoltante!
A condessa Catarina Ivanovna percebeu que Marieta coqueteava com seu sobrinho, o que muito a divertia.
— Sabes que mais? — perguntou ela a Nekludov. — Vem connosco amanhã à reunião da Aline. Temos lá Kieswetter. Não faltes também tu, Marieta — acrescentou dirigindo-se a esta.
— Sais tu qu’il vous a remarqué — continuou, voltando-se para Nekludov. — Disse-me que todas as ideias que me expuseste e que eu lhe comuniquei eram, quanto si, um excelente indício e que dentro em pouco estarias no caminho do Cristo. Conto contigo amanhã à tarde! Tu, Marieta, diz-lhe que venha e que também irás!
— Mas, condessa, não tenho direitos para aconselhar Dimitri Ivanovitch — respondeu Marieta lançando um olhar a Nekludov que exprimia o estar plenamente de acordo com ele para respeitar a mania evangélica da boa e velha senhora. — Além disso bem sabe que não sou muito entusiasta por...
— Sim, sei que és diferente das demais e que pensas muito independentemente!
— Mas não! Pois se sou crente da maneira mais simples e banal! É como se fora uma aldeã ignorante! — disse sorrindo. — É porque, e aí está a dificuldade, tenho de ir amanhã ao teatro Francês!
— Ah! E a propósito, conheces a famosa... como se chama? — perguntou a condessa a Nekludov.
Marieta pronunciou o nome de uma atriz francesa muito célebre.
— Deves ir vê-la! É assombrosa!
— Então na sua opinião onde devo ir primeiro; à atriz ou ao profeta? — perguntou Nekludov sorrindo.
— Não interpretes mal as minhas palavras!
— Parece-me melhor escutar primeiro o profeta e a atriz em seguida; de outro modo, posso não confiar nas profecias! — retorquiu Nekludov.
— Não, primeiro o teatro, depois a penitência.
— Riam e zombem que nada alterará o meu sentimento. Uma coisa é Kieswetter e outra o teatro. Não há necessidade alguma, para a nossa salvação, chorar e mostrar sempre cara compungida. Basta ter fé para que se possa gozar a vida tranquilamente.
— Mas tia, está a profetizar melhor que o melhor dos profetas!
— Quanto a mim sabe o que deve fazer? — perguntou Marieta Nekludov. Ir visitar-me amanhã, ao meu camarote.
— Receio não ter tempo.
A conversa foi interrompida pela entrada de um criado, anunciando a visita do secretário de uma associação de beneficência a que a condessa presidia.
— Oh! que homem tão aborrecido! Vou recebê-lo e voltarei para continuar a nossa conversa. Marieta, enquanto esperam, serve-lhe o chá! — E a condessa, caminhando com passo másculo, saiu da sala.
Marieta descalçou a luva mostrando uma pequena mão carregada de anéis.
— Quer que o sirva? — perguntou, pegando na chaleira de prata sob a qual ardia uma lâmpada de álcool.
O rosto exprimia-lhe gravidade e tristeza.
— Vou fazer-lhe uma confissão! — disse. — Custa-me imenso que aquelas pessoas cuja opinião e estima mais prezo sejam as que me confundam com a posição em que vivo.
E ao pronunciar aquelas palavras parecia querer chorar. Ainda que elas tivessem uma significação muito vaga, pareceram a Nekludov cheias de profundeza, fraqueza e bondade, tal império tinha sobre ele o olhar que acompanhava as palavras da fresca, linda e elegante jovem.
Nekludov não respondeu, não podendo desfitá-la.
— Imagina talvez que não compreendo o que se passa no seu íntimo? Não ignora que já sei o que lhe aconteceu. Todos o sabem. Mas ninguém o compreende e eu compreendo-o e aprovo-o!
— A verdade é que não há que admirar. Eu ainda nada fiz.
— Muito embora! Compreendo os seus sentimentos e os dela. Bom, bom, não tomarei a falar disto — disse interrompendo-se, quando viu leves traços de descontentamento nas feições de Nekludov.
— O que também compreendo — continuou ela, com o pensamento fixo de conquistar Nekludov — é que tendo visto os horrorosos sofrimentos da vida nas prisões, fosse assaltado pelo desejo de ajudar esses infelizes, vítimas do egoísmo e da indiferença dos homens. Compreendo bem o projeto de dedicar a sua vida para suavizar a desses desgraçados. De boa vontade ofereceria a minha. Cada qual, porém, tem o seu destino.
— Não está satisfeita com o seu?
— Eu!? — exclamou como que estupefacta de que pudesse haver alguém que lhe fizesse tal pergunta. — Tenho, sim, obrigação de estar satisfeita e estou-o. Mas há dentro de mim um fermento que trabalha incessante e que procuro abafar.
— Mas é o contrário que deve fazer. Só deve escutar essa voz íntima — disse Nekludov caindo na armadilha, subjugado.
Mais tarde, Nekludov recordou-se muitas vezes desta conversa com vergonha, e muitas vezes suportou a dolorosa recordação da atenção respeitosa com que Marieta o escutava, enquanto ele lhe narrava as suas visitas às prisões e as suas impressões ao contacto com os aldeões.
Quando a condessa voltou, Marieta e Nekludov conversavam como íntimos amigos, os únicos que mutuamente se compreendiam, entre a multidão indiferente e hostil.
Discorriam sobre a injustiça dos poderosos, os sofrimentos dos fracos e a miséria do povo; na realidade, porém, os olhos traduziam outra preocupação, que as palavras encobriam, «Poderás tu amar-me?», perguntavam os olhos de Marieta. «Posso, sim!» respondiam os de Nekludov.
E enquanto os lábios exprimiam nobres pensamentos, o instinto físico atraía-os mutuamente.
Marieta, antes de partir, renovou a Nekludov o oferecimento de o ajudar nos seus projetos e pediu-lhe que, sem falta lhe fizesse uma visita no teatro, no dia imediato, asseverando-lhe que desejava falar «num assunto importantíssimo.
— Quem sabe quando nos tornaremos a ver! — disse, enquanto calçava a luva na mão coberta de anéis, e suspirava. — Está combinado, não é assim?
Nekludov prometeu não faltar.
Depois de se ter deitado e apagado a luz, Nekludov permaneceu muito tempo acordado, sem poder conciliar o sono. Sempre que se recordava da Maslova, do insucesso da sua apelação, do projeto que formara em segui-la para qualquer parte, da renúncia às suas propriedades, via erguer-se na sua frente, como resposta a esses pensamentos, a fina e deliciosa silhueta de Marieta. E a ilusão subia a ponto de lhe ouvir dizer suspirando: «Quem sabe quando nos tornaremos a ver!» E a sua imagem era tão nítida e tão viva que, esboçava-lhe na escuridão um sorriso involuntário. «Farei eu bem em ir para a Sibéria? Farei eu bem em privar-me de toda a minha riqueza?»
As respostas que lhe acudiam ao espirito, nessa clara noite de S. Petersburgo, eram vagas e confusas. Baralhavam-se as ideias no cérebro e apesar de evocar antigos sentimentos que ressuscitavam antigos pensamentos, reconhecia que ambos tinham perdido o seu antigo poder.
«Mais uma vez arquitetei sonhos impossíveis de conciliar com a realidade!», pensava. Sentindo a necessidade de responder às interrogações que se lhe formulavam em espirito, reconhecia a impossibilidade de o fazer por se achar dominado por tristeza e desânimo como há muito não sentia. De madrugada pôde enfim adormecer, com o pesado e lúgubre sono que o derribava, quando outrora sofria alguma elevada perda às cartas, em noites sucessivas passadas sem dormir.
II
Quando Nekludov acordou na madrugada seguinte, o primeiro sentimento de que teve impressão foi o de ter praticado, na véspera, uma vilania.
Reuniu e examinou todos os seus atos da véspera. Não, não praticara nenhuma vilania, mas o que aos seus olhos era ainda pior, tivera vis pensamentos. E Nekludov perguntou a si mesmo, aterrorizado, como pudera, ainda que por instantes, dar ouvidos a tais pensamentos. A resolução que tomara, por mais penosa e nova que fosse, era a única viável, e sabia bem que regressar ao antigo modo de viver, o que bem fácil lhe seria, equivaleria à morte. As hesitações da véspera comparava-as aos movimentos de preguiça e indolência de um homem que ao despertar, se estira na cama e se aconchega bem com a roupa, sabendo que tem de levantar-se para começar os trabalhos diários.
Levantou-se apressadamente, e dirigiu-se ao bairro onde vivia a mãe de Choustova.
Um porteiro indicou-lhe onde esta habitava. Era um segundo andar, e Nekludov guiando-se pelas indicações que o porteiro lhe fornecera, atravessou uns sombrios corredores, trepou por uma escada escura e fatigante, e achou-se numa cozinha abafada onde pairava um forte cheiro de gorduras. Uma velha de mangas arregaçadas, avental atado à cinta e óculos no nariz, estava em pé junto do lume, agitando um guisado numa caçarola.
— O que é que quer? — perguntou desconfiadamente, fitando o intruso por cima dos óculos.
Mas, antes que Nekludov tivesse tempo de se dar a conhecer, o rosto da velha exprimiu uma alegria receosa.
— Oh! príncipe! — exclamou, enxugando as mãos ao avental — que vergonha, mandarem-no subir por essa escada! O nosso benfeitor! Sou a mãe dela! O nosso salvador! — continuou, tentando beijar a mão de Nekludov, que apertava entre as suas. — Atrevi-me a procurá-lo ontem. Foi minha irmã que insistiu para que assim procedesse. Minha filha está aqui. Tenha a bondade de me seguir.
E guiou Nekludov através de um pequeno e mal iluminado corredor, enquanto procurava compor os cabelos desalinhados, e a desordem do vestuário.
— Minha irmã, deve conhecer? Korlinova, implicada num recente movimento político — dizia. — É uma mulher muitíssimo hábil!
E abrindo a porta da extremidade do corredor, obrigou Nekludov a entrar num pequeno quarto, onde, sentada num sofá colocado em frente de uma mesa, estava uma rapariga baixa e nutrida, vestindo blusa de cambraia branca, e cujos cabelos louros levemente encaracolados, enquadravam um rosto redondo, excessivamente pálido. Sentado na sua frente estava um rapaz com um buço nascente, usando blusa bordada nas orlas. O rapaz, sentado numa cadeira de braços, curvava-se para a frente, e falava tão animadamente que nem ele nem a rapariga notaram a entrada de Nekludov.
— Lídia! Está aqui o príncipe Nekludov que...
A rapariga pálida estremeceu nervosamente, e puxando para trás de uma orelha uma madeixa de cabelos louros, fixou medrosamente os olhos garços no recém-chegado.
— Eis então livre essa terrível revolucionária, por quem Vera intercedeu junto de mim! — disse Nekludov sorrindo e cumprimentando-a.
— Sim, afinal! — respondeu a rapariga, sorrindo também, infantilmente, e mostrando uma enfiada de dentes alvos. — Foi minha tia que pediu para o ver! Tia! — exclamou correndo para a porta.
— Vera incomodou-se muito com a sua prisão! — disse Nekludov.
— É melhor sentar-se aqui! — observou Lídia oferecendo-lhe a cadeira de palha que o rapaz abandonara. — Meu irmão! — acrescentou, respondendo ao olhar interrogador que Nekludov lançou ao seu companheiro.
Um sorriso de bondade, semelhante ao que iluminava o rosto de sua irmã, desenhou-se lhe no rosto enquanto apertou a mão do visitante; em seguida sentou-se junto da janela onde pouco depois o foi procurar um colegial de quinze a dezasseis anos.
— Vera é amicíssima da minha tia; eu mal a conheço — disse a rapariga.
Neste momento saiu do quarto contíguo uma mulher, quarentona, rosto agradável e inteligente.
— Que bondade, príncipe, em ter vindo! — exclamou, sentando-se no sofá junto da sobrinha. — E Vera como está? Viu-a? Como suporta a sua sorte?
— Não se queixa e diz ser feliz! — respondeu Nekludov.
— Reconheço-a bem, a Vera! Que grandeza de alma! Tudo para os outros, nada para si!
— Sim, nada pediu para si; ocupou-se unicamente da sua sobrinha. Incomodava-a mais do que tudo a monstruosa injustiça dessa reclusão.
— Injustiça monstruosa, com efeito! A infeliz sofreu por mim!
— Mas não, tiazinha! — exclamou Lídia. — Ainda que não fosse por si, teria guardado aqueles papéis!
— Dá-me licença que nesse ponto saiba mais alguma coisa do que tu! — continuou a tia. — Tudo isto aconteceu — disse ela a Nekludov — por certa pessoa me pedir que lhe guardasse uns papéis; eu que na ocasião não tinha morada fixa, entreguei-os a minha sobrinha. Nessa mesma noite a polícia deu uma busca aqui, apoderou-se dos papéis, encarcerou-a e até agora esteve detida por não querer dizer quem lhos entregara.
— E não o disse! — declarou Lídia com vivacidade, passando a mão por uma madeixa de cabelos, que não saíra fora do seu lugar.
— Eu não disse que tu o descobrisses! — asseverou a tia.
— Se Mitine foi preso não foi por minha culpa! — replicou Lídia, corando e olhando em redor inquietadoramente.
— Mas, Lydotchka, que necessidade tens de falar nisso? — disse-lhe a mãe.
— Porque não? Quero até falar! — declarou Lídia. Cessara de sorrir e, afogueada, enrolava um caracol de cabelo em volta de um dedo, continuando a lançar olhares inquietos em todas as direções. — Nunca o denunciei! — continuou. — Limitei-me a estar calada. Quando me interrogaram a respeito da tia e de Mitine não respondi e declarei-lhes que nada diria. Então o tal... Krilov...
— Krilov é um espião da polícia — esclareceu a tia, dirigindo-se a Nekludov,
— Krilov começou então a apertar-me com interrogatórios — continuou Lídia, mexendo-se e suspirando. — «Nós bem sabemos que há de falar», dizia-me. «Esteja certa que não compromete ninguém; pelo contrário, se falar, muitos que agora sofrem injustamente recuperarão a liberdade!» Eu, apesar de tudo, nada dizia. Krilov mudou então de tática. «Pois bem. Não diga nada; mas também não negue o que eu disser!» E principiou a citar nomes, Mitine entre eles. Imagine qual não foi o meu espanto quando no dia imediato soube que Mitine tinha sido preso! eu, dizia para mim, fui eu que o denunciei!» E este pensamento torturou-me tanto, tanto, que julguei enlouquecer!
— Mas provou-se que em nada contribuíste para tal prisão! — disse a tia.
— Sim, mas eu é que o não sabia. E este pensamento fixo perseguia-me: denunciei-o! Andava de um para outro lado do meu quarto e na cabeça dançava-me sempre a mesma ideia: denunciaste-o! denunciaste-o! Deitava-me e tapava a cabeça: uma voz gritava-me aos ouvidos: denunciaste Mitine! E por mais que fizesse para não ouvir, dizendo a mim mesma ser tudo imaginação não o conseguia. Era horroroso! — exclamou Lídia, cuja excitação aumentava gradualmente, enquanto continuava a enrolar e desenrolar à volta do dedo, uns poucos dos seus cabelos louros.
— Lídia, sossega! — dizia repetidas vezes a mãe, tocando-lhe no braço.
Lídia, porém, já não podia sossegar.
— E o que ainda é mais horroroso... — disse, e sem terminar a frase, suspirou, ergueu-se do sofá e correu para fora da sala, seguida pela mãe.
— Atua terrivelmente na mocidade a detenção celular! — disse a tia, acendendo um cigarro.
— Creio que não só na mocidade como também nos adultos — respondeu Nekludov.
— Não é bem assim. Muitos revolucionários verdadeiros têm-me dito que para eles a detenção representa a tranquilidade e a segurança. Esses desgraçados vivem numa agonia permanente, receosos por si, pelos outros e pela sua causa, cercados de privações e necessidades. Um dia, são presos; terminam as responsabilidades e o que têm a fazer é estenderem-se na cama e descansar sossegadamente. Conheço alguns que, quando são filados, sentem verdadeira alegria. Com a gente moça, como Lídia, e principalmente com inocentes, o caso muda e o primeiro abalo é terrível, e o seguimento comparado com ele, é nada. A privação de liberdade, de ar e de sustento e os maus tratos, não teriam importância e suportar-se-iam facilmente se o primeiro abalo moral não fosse tão rude.
A mãe de Lídia entrou de novo e participou a Nekludov que a filha achara se incomodada e recolhera-se.
— Eis uma vida a desabrochar que esses senhores arruinaram! — disse a tia. — E quando me recordo que fui a causadora desta desgraça o meu sofrimento redobra.
— Nada está perdido por enquanto! O ar do campo restabelecê-la-á!
— O certo é que sem o seu auxílio teria sucumbido! — disse a tia dirigindo-se a Nekludov. — Com estes incidentes, porém, esquecia-me do principal motivo porque desejava vê-lo. Era para lhe pedir o obséquio de entregar esta carta a Vera. Está aberta e pode lê-la e rasgá-la caso os seus princípios não lhe permitam entregá-la.
Nekludov pegou na carta e despedindo-se, saiu.
Na rua, colou o envelope e guardou a carta na carteira para se desempenhar da incumbência da tia de Lídia Choustova.
III
Antes de deixar S. Petersburgo, Nekludov tinha ainda de tratar de um outro assunto.
Em Kouzminskoie tinham-lhe pedido que interviesse a favor de certos aldeões, adeptos de uma seita dissidente que, unicamente por lerem e comentarem os Evangelhos, tinham sido separados de suas famílias e desterrados para o Cáucaso. Nekludov prometera não descurar o caso e redigira uma petição que eles tinham assinado, e que fora enviada a um seu antigo camarada, o ajudante Bogatirev, a quem Nekludov escrevera pedindo-lhe que a fizesse chegar às mãos do Imperador.
Foi pois para casa de Bogatirev que se dirigiu e a quem encontrou almoçando. Posto que não fosse de grande estatura, Bogatirev era robustíssimo e dotado de tal força muscular que vergava uma ferradura entre as mãos; no moral era um excelente homem, leal, franco, liberal mesmo.
Estas qualidades não o impediam de viver com a corte nem de ser afeiçoado ao Imperador e sua família; vivendo na alta sociedade, procedia de tal forma que só notava a parte sã que nela existia, nunca se deixando contaminar pela parte viciosa e corrupta. Da sua boca jamais saíra uma censura a um acontecimento ou a um indivíduo. O mais das vezes calava-se; mas, quando falava, fazia-o em voz sonora e resoluta, gritando quase o que tinha a dizer. E isto era não por cálculo, mas sim por temperamento.
— Ora ainda bem que tiveste a bela ideia de vir visitar-me! Queres almoçar? Senta-te, o bife está magnífico. Principio sempre por qualquer coisa substancial, principio e termino! Ha! ha! ha! Um copo de vinho? — exclamou, apontando para uma garrafa de clarete. — Estive refletindo no teu negócio. Está certo que entregarei a Sua Majestade a tua petição, mas aconselho-te a que vás falar no assunto a Toporov, de quem tudo depende.
Quando ouviu o nome de Toporov, Nekludov fez uma careta.
— Asseguro-te que é de quem tudo depende. Ele tem de ser consultado e se tu lhe falares, talvez consigas imediatamente o que pedes.
— Irei, visto o que me dizes.
— Fazes bem. E que tal te parece S. Petersburgo?
— Principio a sentir-me hipnotizado — respondeu Nekludov.
— Hipnotizado! — repetiu Bogatirev, rindo às gargalhadas. — Então, seriamente, não queres tomar nada? Pior para ti. — E Bogatirev acabou de limpar os bigodes ao guardanapo. — Ficamos então em ires procurar Toporov? Caso Toporov não queira aquiescer tornar-me-ás a dar a petição e amanhã será entregue a Sua Majestade.
E erguendo-se da mesa, persignou-se maquinalmente, assim como limpara os bigodes, e abotoou, o uniforme.
— Adeus e obrigado. Vou diretamente procurar Toporov! — disse Nekludov.
E apertou a forte e cheia mão de Bogatirev com o prazer que sempre sentia quando se achava em contacto com tudo que fosse saudável, fresco e natural. Encaminhou-se, pois, para casa de Toporov, ansioso de seguir o conselho do seu amigo, mas pouco confiado que tal visita produzisse bom resultado.
O cargo que Toporov desempenhava implicava tão íntima contradição, que só quem fosse desprovido de inteligência e de sensibilidade moral o poderia ocupar. Estas qualidades negativas predominavam em Toporov.
Essa contradição consistia em que a atividade de tal cargo tinha em vista proteger e defender, por meio de toda a espécie de medidas repressivas, até mesmo pela força, uma Igreja que se dizia fundada por Deus, e que nem o inferno nem nenhum poder humano conseguiam abalar. Sucedia, pois, que uma instituição imutável e divina, era protegida e defendida por uma instituição puramente humana, o Santo-Synodo, que Toporov, com o concurso dos seus subordinados, dirigia. Toporov, porém, não notava nem queria notar tal contradição: todo o seu cuidado consistia em impedir que qualquer padre católico ou protestante ou mesmo qualquer sectário dissidente, conseguisse destruir essa Igreja, a qual nem o próprio inferno jamais abalara.
Toporov, como todos os indivíduos desprovidos por completo do sentimento religioso, isto é, do sentimento da igualdade e fraternidade humanas, estava convicto que o povo se compunha de seres totalmente diferentes de si próprio e que precisava daquilo que ele sempre dispensara, pois no íntimo do ser não tinha crença alguma, apesar de tudo lhe correr às mil maravilhas. Temia, contudo, que o povo perdesse a fé como ele a perdera, e considerava «dever sagrado» preservá-lo de tal calamidade.
Afirma um livro de cozinha que as lagostas gostam de ser cozidas com vida. Também Toporov pensava e afirmava que o povo gosta de ser mantido da superstição; mas, ao passo que o autor do livro de cozinha fala metaforicamente, ele dava às suas palavras a significação literal.
O seu modo de proceder para com a religião que lhe competia proteger, assemelhava-se ao de um criador de aves para com a comida estragada com que alimenta as galinhas.
A comida estragada repugna ao criador, mas as aves gostam dela, e ele acha muito natural sustentá-las assim. Toporov bem sabia que o culto das Virgens de Kazan e Smolenk é uma superstição; mas desde que o povo gostava da superstição, Toporov julgava ser seu dever velar para que ela fosse mantida. Eram estes os pensamentos de Toporov, a quem nunca passara pela mente, que se o povo insistia na superstição era unicamente porque sempre houvera homens ilustrados como ele, que em vez de se servirem da sua ilustração para o arrancar das trevas, só empregavam os seus esforços em mergulhá-lo ainda mais profundamente.
Quando Nekludov entrou em casa de Toporov, estava este no seu gabinete escutando uma abadessa, senhora da nobreza e das mais distintas, que por todos os meios procurava derramar a religião greco-ortodoxa entre os Uniatas do Ocidente, até então submetidos à autoridade papel.
Na sala de entrada um empregado perguntou-lhe o que desejava e quando Nekludov respondeu que era portador de uma petição que desejava fazer chegar às mãos do Imperador, pediu-lhe licença para a ver e correu a levá-la ao seu chefe Toporov. Pouco depois saía a abadessa, com o véu preso na cabeça flutuando, e a longa cauda do vestido a arrastar. Nas brancas mãos, de unhas transparentes, trazia um rosário de topázios.
Passaram-se alguns minutos antes que Nekludov fosse mandado entrar. Toporov lia a petição agitando a cabeça; surpreendia-o desagradavelmente o estilo claro e simples da narração.
«Se este papel chega às mãos do Imperador», dizia Toporov a si próprio enquanto o lia, «poderá produzir equívocos e dar origem a perguntas inúteis!» E pousando a petição na mesa, tocou e mandou entrar Nekludov.
Toporov recordava-se perfeitamente do assunto em que Nekludov lhe vinha falar. Os aldeões sectários tinham sido exortados oficialmente para regressarem à igreja ortodoxa e tendo recusado tinham sido julgados, mas absolvidos. Então, o arcipreste e o governador da província sob pretexto de que os casamentos dos sectários eram ilegais, lembraram-se de os exilar, separando-os de suas mulheres e filhos. Maridos e mulheres pediam na petição para serem reunidos. Toporov lembrava-se tão minuciosamente do caso que nem lhe escapou a tentação que tivera nessa primeira ocasião em que a sua atenção fora chamada para o assunto, de anular a decisão dos seus subordinados, pondo pedra em cima do processo.
Mas, meditara que do exílio dessa gente nenhum mal resultaria, quer para ele quer para a sua Igreja, enquanto deixando-os em liberdade pelas aldeias era arriscar-se a que pelo exemplo e pela palavra eles fossem de perniciosa influência para os outros habitantes. Além de que, o zelo do arcipreste sofreria um rude choque recebendo uma contraordem. Deixara pois que o caso seguisse os seus trâmites. Mas agora que os exilados tinham encontrado em Nekludov um defensor, que, quer por intermédio da imprensa estrangeira ou por qualquer outro meio podia divulgar o assunto que assim chegaria ao conhecimento do Imperador, urgia tomar uma resolução heroica.
— Como tem passado? — perguntou Toporov, dirigindo se ao encontro de Nekludov. E voltando a sentar-se abordou o assunto. — Sim, sei do que se trata. Mal li as assinaturas, recordei-me deste desgraçado caso. Agradeço-lhe até ter-mo relembrado. É o resultado do excessivo zelo das autoridades provinciais.
Nekludov em pé e silencioso examinava as feições pálidas e mortais do seu interlocutor, sentado na sua frente.
— Vou pois dar ordem imediata para que essas medidas sejam revogadas e sejam reinstalados nas suas casas os aldeões por quem se interessa.
— Visto isso não preciso dar seguimento a essa petição?
— Garanto-lho sob minha palavra! — respondeu Toporov dando à palavra minha uma entoação diferente, como para fazer notar que a garantia da sua palavra era superior a qualquer outra.
— O melhor, porém, é escrever já! Queira sentar-se um momento.
Toporov escolheu uma folha de papel e principiou a escrever. Enquanto o fazia, Nekludov examinava-lhe o crânio estreito e calvo e a nutrida mão de veias azuladas, sustentando a pena; e interrogava-se, buscando perceber porque motivos este homem a quem tudo era indiferente, desempenhava com tanto ardor as suas funções.
— Pronto e em ordem! — disse Toporov, fechando e lacrando o envelope. — Pode participá-lo aos seus protegidos — acrescentou, erguendo os lábios para imitar um sorriso.
— Mas então porque é que estes desgraçados têm estado a sofrer? — perguntou Nekludov guardando o envelope.
Toporov levantou a cabeça e sorriu, desta vez a valer, evidentemente divertido com a pergunta de Nekludov.
— Não lho posso dizer — retorquiu. — Dir-lhe-ei, porém, que os interesses que nos estão confiados são tão importantes que é preferível um excesso de zelo em assuntos religiosos, à indiferença que, por toda a parte, se vai espalhando.
— Mas como explicar que em nome da religião sejam violados os princípios mais elementares da humanidade, sejam dispersadas famílias?
Toporov sorria protectoramente, não ligando grande importância ao que Nekludov dizia.
— É esse o seu critério, e é o critério de um simples particular. Sob o ponto de vista administrativo as coisas tomam outro aspeto — disse. — Lastimo ter de lhe dizer adeus! — acrescentou estendendo a mão ao seu visitante.
Os interesses que lhe estão confiados! Seria preferível dizer «os meus interesses!, não pôde Nekludov deixar de pensar enquanto descia a escadaria. E momentaneamente reviu em imaginação esse povo cujos «interesses religiosos e morais» Toporov estava encarregado de defender.
Reviu a mulher encarcerada por vender ilicitamente aguardente, o rapaz condenado por furto, Menshov acusado injustamente de incendiário e a infeliz Lídia Chostova, encerrada na fortaleza simplesmente porque a polícia esperava tirar dela as informações de que precisava. Reviu os sectários castigados por renegarem a religião ortodoxa e os estudantes por ambicionarem um governo constitucional.
E Nekludov compreendeu claramente que toda essa gente fora detida, encarcerada ou exilada não porque tivessem transgredido as leis ou tivessem praticado o mal, mas apenas porque eram outros tantos obstáculos que impediam os ricos e os poderosos de gozarem tranquilamente os haveres arrebatados ao povo.
Tornava-se evidente para Nekludov que todo o funcionalismo, desde o marido de sua tia e mais magistrados, desde Toporov até todos esses elegantes e corretos senhores que enchiam as secretárias dos ministérios, davam pouca importância ao facto de haver inocentes que sofriam com a presente organização social, procurando apenas verem-se livres de um ou outro verdadeiramente perigoso; de modo que, a regra de que é preferível libertar dez criminosos a condenar um inocente não era observada, dando-se na realidade o inverso, como quando para se aproveitar uma fruta meio apodrecida se tem de cortar além da parte podre, outra que o não está.
Esta explicação pareceu a Nekludov muito clara e simples; a sua simplicidade e clareza fizeram-no, a princípio, hesitar em admiti-la.
Seria possível que um fenómeno tão complexo tivesse a sua explicação em motivos tão simples e, ao mesmo tempo, tão terríveis? Seria possível que todos esses palavrões sobre justiça, lei, religião e Deus apenas servissem para encobrir a mais grosseira cobiça e a mais monstruosa crueldade?
IV
Nekludov teria partido de S. Petersburgo na tarde desse mesmo dia se não houvesse prometido a Marieta ir vê-la ao teatro. Ainda que reconhecesse que o seu dever era não ir lá, resolveu o contrário, enganando-se sob o pretexto de que era obrigação cumprir o prometido. Dizia a si mesmo que mais uma vez, a última, queria tornar a ver essa sociedade a que já pertencera e que de futuro lhe seria estranha. «Uma última vez quero presenciar as suas seduções e avaliar a que ponto posso resistir-lhes!»
Mas, bem no íntimo, reconhecia que o pensamento não era completamente sincero.
Mal acabou de jantar, vestiu a casaca e dirigiu-se ao teatro onde chegou muito depois do espetáculo haver principiado. Representava-se a eterna «Dama das Camélias», para exibição de uma célebre atriz francesa, que mais uma vez, e com nova interpretação, mostrava ao público como morrem as tísicas.
O teatro estava repleto. Nekludov não teve dificuldade de encontrar o camarote de Marieta que os porteiros, pressurosos, lhe indicaram. O lacaio da casa, uniformizado esperava de pé em frente da porta do camarote e depois de o saudar, abriu-lha.
Na sala, todos os olhares fixavam-se numa atriz magra, feia, e velha, coberta de sedas e rendas que, em voz afetada e áspera, declamava.
Ao entrar no camarote duas correntes de ar, uma quente, a outra fresca, roçaram-lhe pelo rosto e um espectador, voltando-se na sua direção lançou um schiu indignado, reclamando contra o barulho que fizera a porta ao fechar-se.
No camarote, além de Marieta, estavam uma senhora muito nutrida, vestida de vermelho, com um penteado desmedido, e dois homens. Um, o marido de Marieta, que Nekludov via pela primeira vez, era alto e bem constituído, peito arqueado, nariz aquilino, o rosto severo e frio. O outro era um gorducho, louro e adamado, usando bigode e suíças.
Marieta, muito elegante, graciosa e delicada, sentava se na frente do camarote muito decotada, exibindo uns sólidos e musculosos ombros, que na junção ao pescoço eram formoseados por um pequeno e negro sinal. Quando viu Nekludov sorriu-lhe familiarmente e indicou lhe com o olhar uma cadeira colocada atrás. O marido, com a tranquilidade que empregava em todas as suas ações cumprimentou-o, curvando levemente a cabeça. No olhar que em seguida dirigiu à mulher reconhecia-se a satisfação de possuir tão formosa e elegante criatura.
Quando terminou o monólogo, o teatro desfez-se em aplausos. Marieta levantou-se e sustendo com uma das mãos a cauda do vestido de seda, passou para o fundo do camarote, apresentando Nekludov ao marido. Este sorrindo sempre para a mulher cumprimentou Nekludov afirmando-lhe pausadamente que tivera muito prazer em conhecê-lo. E não disseram nada mais.
— Se não lhe tivesse prometido vir, teria já partido — disse Nekludov para Marieta.
— Ainda que não lucre nada em me ver, terá ocasião de admirar uma atriz magnífica — disse ela adivinhando-lhe a intenção da amabilidade. — Não é verdade que esteve admirável nesta última cena? — perguntou dirigindo-se ao marido.
— Confesso-lhe que nada disto me comove já — disse Nekludov. — Tenho visto tanta miséria real que...
— Vamos, sente-se e conte-me tudo isso!
O marido escutava distraidamente, sorrindo com crescente ironia.
— Visitei hoje a desgraçada que, em seguida a tanto tempo de cárcere, conseguiu ser posta em liberdade. Parece-me que está arruinada.
— É a tal de quem te falei — disse Marieta ao marido.
— Ah! sim, fiquei satisfeito por poder conseguir-lhe a liberdade — respondeu este saindo para fumar.
Nekludov sentado, aguardava que Marieta lhe dissesse o que de importante lhe tinha a dizer. Ela, porém, nada lhe dizia, apenas gracejava e falava do drama que particularmente devia interessar Nekludov, pensava.
Nekludov depressa compreendeu que ela nada tinha a dizer-lhe e que simplesmente desejara aparecer-lhe no deslumbramento da sua toilette de gala, decotada e deixando ver o sinal negro no ombro. Quando Nekludov se compenetrou da verdade, uma dupla sensação de prazer e repugnância, dominou-o.
O prazer provinha do encanto exterior de todo o ambiente, e examinando o que ele encobria produzia-se-lhe a repugnância. Marieta deleitava-o, mas sabia bem que essa encantadora criatura era uma mentirosa, vivendo com um marido avelhacado, e que desde a véspera lhe dizia falsidades com evidente ambição de o volver em seu apaixonado.
Nisto havia para Nekludov o quer que fosse de odioso e agradável. Por várias vezes levantou se para se despedir, mas tomava a sentar-se. Quando, por fim, o marido regressou com um forte cheiro de tabaco impregnado nos espessos bigodes, olhando para Nekludov, este aproveitou a ocasião da porta estar aberta, despediu-se e saiu.
A passar pela perspetiva Newsky, viu na sua frente uma mulher alta, bem proporcionada, e vestida, com visível elegância, que caminhava ligeira pelo passeio de asfalto.
Todos os que passavam voltavam-se e fixavam-na. Nekludov apertou o passo, alcançou-a e por sua vez fitou-a também. O rosto provavelmente pintado era belo, as feições finas e os olhos faiscavam provocantemente. Irresistivelmente Nekludov lembrou-se de Marieta: esta criatura fazia-lhe nascer a mesma impressão de sedução e repulsão que, pouco antes, sentira no camarote.
Furioso consigo mesmo, Nekludov dirigiu-se rapidamente para o cais, onde com grande espanto dos polícias, principiou a andar de um para outro lado.
«Marieta sorriu do mesmo modo, quando entrei no teatro e ambos os sorrisos têm a mesma significação», dizia consigo. «A única diferença é que esta fala francamente — se queres leva-me, senão segue o teu caminho — enquanto a outra finge ter outros pensamentos e experimentar sentimentos elevados e requintados o fundo é o mesmo; uma fala verdade enquanto a outra mente. Além disto uma é obrigada pela necessidade, enquanto a outra se diverte com essa terrível paixão. Esta, a das ruas, é como a água estagnada oferecida àqueles cuja sede é maior do que a repugnância que lhe inspira; a outra é como o arsénio que, invisivelmente, envenena e desorganiza tudo.»
Nekludov lembrou-se das suas antigas relações com a mulher do maréchal de la noblesse e um tropel de vergonhosas recordações invadiu-o.
«A animalidade cega da bruta natureza, é medonha!», pensava ele.
«Enquanto, porém, permanece desataviada e despida de falsos ouropéis, observamo-la do cume da nossa vida espiritual e quer lhe resistamos ou a satisfaçamos, permanecemos sempre o que já éramos antes. Mas quando essa animalidade se atavia com o vestuário da poesia e dos sentimentos estéticos e pretende inspirar respeito e adoração, então toma cuidado para não seres tragado pela onda arrastadora! O homem cede lugar à besta e cessa de distinguir o bem do mal. E é isto o mais medonho».
Nekludov via e percebia isto tão claramente, como via na sua frente, os palácios, a fortaleza, o rio, os navios e as carruagens. A desmaiada e triste luz que nessa noite de verão dissipava as trevas da cidade era como essa outra que lhe varrera as negruras da alma para as substituir por uma também triste e desmaiada luz.
Compreendia que tudo que era tido por importante e bom, era na realidade nulo e vergonhoso e que todo o deslumbramento e luxo da vida moderna, encobriam vícios tão velhos como o mundo, originados pelo lado mais bestial da natureza humana.
Nekludov quisera esquecer e não dar ouvidos a esta descoberta, mas era-lhe impossível. E um doloroso receio, acompanhado pela alegria da certeza, começava a despontar no seu íntimo.
Capítulo 6
De regresso de S. Petersburgo, Nekludov dirigiu se à prisão, para participar à Maslova que o agravo fora rejeitado, e que era conveniente preparar-se para partir para a Sibéria. Restava ainda a apelação para o Imperador, e Nekludov trazia o requerimento para ela assinar, mas a verdade é que não esperava nada dela e, nem mesmo desejava vê-la atendida, por estranho que pareça. Habituara-se à ideia de partir para a Sibéria, viver com degredados e desterrados, e quando pesava as probabilidades que influíam para que a apelação última fosse atendida, receava um desenlace favorável, que o forçaria a procurar uma solução, que de outro modo estava achada. Recordava-se de uma frase do escritor americano Thoreau que, ainda do tempo da escravidão, dizia: «O único lugar de um homem justo, que com a passividade sanciona um governo que mantém alguém encarcerado injustamente, é também a cadeia». Tudo que vira em S. Petersburgo, despertara-lhe na memória esta frase.
O carcereiro da enfermaria reconheceu-o, saiu-lhe ao encontro e participou-lhe que a Maslova não estava ali.
— Então onde está?
— Na antiga sala.
— Mas, porque foi removida para lá?
— Oh, excelência, bem se vê que não conhece aquela gente! — respondeu o carcereiro sorrindo desprezivelmente. — Passou-se o quer que fosse entre ela e um enfermeiro, o que obrigou o doutor em chefe a expulsá-la.
Nekludov nunca imaginou que estivesse tão ligado à Maslova, como nesta ocasião. As palavras do carcereiro caiam sobre ele como um acidente imprevisto, fazendo-lhe brotar um sentimento igual ao que se sente recebendo a notícia de uma desgraça esmagadora. Sentiu-se invadido por um doloroso sofrimento que o privara de toda a reflexão.
Pauso a pouco foi retomando posse da sua consciência, que lhe permitiu distinguir ver-se dominado pela vergonha. E essa vergonha nascia da alegria ridícula que sentira quando fantasiara uma transformação na alma de Maslova! Todas as altivas palavras com que ela repelira o sacrifício que propusera, todas essas lágrimas, não tinham sido mais do que uma comédia representada por tão miserável criatura para se utilizar e insinuar no seu ânimo. Não se enganara, não, quando na última entrevista julgara reconhecer nela os indícios de uma perversidade, de que, de futuro, não era lícito duvidar.
E todos estes pensamentos e recordações, atropelavam-se-lhe na mente, enquanto se afastava da enfermaria. «E agora que fazer?», interrogava-se. «Estou ainda ligado a ela ou tal conduta desprende-me dos nossos mútuos laços».
Mal formulara esta interrogação, compreendeu que se abandonasse de novo a Maslova punir-se-ia mais a si próprio do que a ela. E esta ideia atemorizava-o.
«Não, o que aconteceu não pode alterar a minha resolução; pode apenas reforçá-la. Se ela precedeu com o enfermo como mo disseram, obedeceu a hábitos adquiridos durante a sua vida anterior, e que só a ela prejudicam; nada tenho com tais ações, de que só ela é responsável. Mas o que me diz respeito, o que exige a minha consciência é o sacrifício da minha liberdade, para resgatar o meu pecado.
«Haja, pois, o que houver, casar-me-ei com ela e segui-la-ei para toda a parte». E com malévola obstinação repetia estas palavras, atravessando rapidamente os corredores.
À entrada da sala grande pediu ao carcereiro de serviço para informar o diretor que desejava ver a Maslova. O carcereiro, que já o conhecia, respondeu-lhe participando-lhe uma grave notícia: o «capitão» fora reformado e substituído por um outro diretor muito mais severo.
— As coisas agora vão correr de outra maneira! Vai ser medonho!
E saiu para prevenir o novo diretor. Este não se demorou.
Era um homem alto e magro, maçãs do rosto salientes e conjunto desagradável.
— As visitas são permitidas apenas nas horas regulamentares — disse para Nekludov, sem o fitar.
— Porém, eu desejava que a detida assinasse um requerimento de apelação.
— Queira entregar-mo que o regularizarei.
— Tenho absoluta necessidade de ver a Maslova, ainda que por momentos. Ainda há pouco tempo me eram permitidas essas visitas!
— Até aqui faziam-se muitas coisas que nunca mais se farão! — respondeu o diretor, olhando fixamente para Nekludov.
— Porém trago autorização do governador — insistiu Nekludov, puxando pela carteira.
— Com licença — disse o diretor. E pegando no papel principiou a lê-lo vagarosamente. — Queira entrar para a secretaria — disse.
Desta vez a secretaria estava vazia. O diretor sentou-se em frente da mesa e principiou a remexer na papelada com a evidente intenção de assistir à revista.
Nekludov perguntou-lhe se poderia falar a uma presa política, Vera.
— É impossível — respondeu o diretor —; estão proibidas as visitas aos presos políticos. — E recomeçou a leitura da papelada.
Nekludov, que tinha na carteira a carta para Vera, achou-se colocado na situação de um «suspeito», podendo ficar prisioneiro se o revistassem.
Quando a Maslova entrou na secretaria, o doutor ergueu a cabeça e, sem os fitar, disse:
— Podem conversar! — E regressou à papelada.
A Maslova vestia, como antigamente, o uniforme da prisão e na cabeça trazia o mesmo lenço. Quando notou a expressão severa e fria do rosto de Nekludov, corou e pegando numa dobra do casaco, baixou o olhar. Esta atitude confirmava a Nekludov a narrativa do carcereiro.
Desejava ardentemente tratá-la como nas demais vezes; quando, porém, tentou estender-lhe a mão foi-lhe impossível, tal era a aversão que sentia dentro de si.
— Sou portador de más notícias! — disse com voz tranquila, mas sem a fitar nem cumprimentar. — A sentença foi confirmada.
— Já imaginava que assim fosse! — respondeu ela em voz baixa.
Em qualquer outra ocasião Nekludov ter-lhe-ia perguntado porque dizia ela isso; agora limitou-se a examiná-la. Os olhos trasbordavam-lhe de lágrimas. Mas nem por isso se sentiu enternecido; antes redobrava-lhe a irritação.
O diretor erguera-se e caminhava de um para outro lado.
Nekludov, apesar de dominado por irritação, julgou dever exprimir o pesar que lhe inspirava a resolução do Senado.
— Não é motivo para desesperar! — disse. — Temos ainda o recurso para o Imperador...
— Oh! não é isso que... — respondeu ela, fixando nos dele os seus olhos, doridamente marejados de lágrimas.
— O que é então?
— Disseram-lhe na enfermaria que...
— Nada tenho com isso! — interrompeu Nekludov secamente, franzindo as sobrancelhas. Esse miserável sentimento de orgulho ofendido dominava-o de novo, ouvindo-a falar na enfermaria. «Eu, um homem de sociedade, com quem a rapariga mais aristocrática se sentiria feliz em casar, ofereço-me para desposar esta criatura e ela mesmo em antes principia com intrigas com um enfermeiro!» E enquanto pensava assim, fitava-a rancorosamente. — É preciso assinar isto! — disse colocando na mesa uma folha de papel que tirara da carteira. A Maslova enxugou as lágrimas com a ponta do lenço, e sentando-se junto da mesa, perguntou onde deveria assinar.
Nekludov indicou-lhe o sítio, e enquanto ela escrevia, conservou-se de pé, fitando as suas costas que estremeciam com soluços irreprimíveis.
Uma nova luta entre bons e maus sentimentos, entre o seu orgulho ofendido e a piedade que ela lhe inspirava, ergueu-se-lhe na alma.
E o sofrimento que lhe inspirava compaixão foi maior e acabou por triunfar. Quer lhe brotasse do coração a piedade ou quer relembrasse os seus próprios pecados, em tudo semelhantes aos que agora censurava àquela infeliz, sentiu-se criminoso e lastimou-a.
Ela, entretanto, acabara de escrever e depois de limpar à saia os dedos manchados de tinta ergueu-se e fitou-o.
— Aconteça o que acontecer, nada alterará a minha resolução! — disse-lhe Nekludov.
Sentia aumentar o sentimento de compaixão por ela, só em pensar que lhe perdoara; impelia-o uma imperiosa necessidade de a consolar.
— Aquilo que disse cumpri-lo-ei. Irei para onde a enviarem.
— Mas para quê? — interrompeu ela, com o rosto animado!
— Veja o que pode precisar para a viagem.
— Nada necessito. Obrigada!
O diretor aproximou-se. Nekludov, sem esperar pelo aviso, despediu-se da Maslova, o coração transbordante de um sentimento que até ali nunca sentira, sentimento de profunda tranquilidade e de profundo amor pela humanidade.
«Compreendo-o agora, dizia altivamente, nada que a Maslova possa fazer alterará a feição que me une a ela. Que intrigue com os enfermeiros ou não isso é com ela! Quanto a mim o meu dever é amá-la, não para meu bem, mas para o seu e para o de Deus !»
***
Essa «intriga» em que Nekludov tão prontamente acreditara e pela qual a Maslova fora expulsa da enfermaria consistira no seguinte:
Maslova um dia, fora mandada peia enfermeira geral procurar na farmácia, situada na extremidade de um corredor, uma erva medicinal. Ao chegar ali encontrara-se com o enfermeiro Austinow, homem alto, com o rosto cicatrizado pela varíola, que havia muito a cortejava. Vendo-a só, enlaçara-a nos seus braços; ela defendera-se e desprendeu-se-lhe das mãos tão violentamente que o enfermeiro oscilou e foi bater de encontro a uma prateleira, o que motivou a quebra de alguns frascos que ali se encontravam colocados.
Na ocasião sucedeu passar o médico em chefe; ouvindo o tinido dos vidros e vendo a Maslova com os cabelos desalinhados e a face incandescida, fugindo a correr, gritou-lhe:
— Olá, santinha! Se vens para aqui fazer barulho mando-te para donde vieste! O que é que aconteceu? — perguntou severamente ao enfermeiro, fitando-o por cima das lunetas.
O enfermeiro sorriu servilmente e começou a expor o caso, lançando a culpa toda sobre a Maslova. Sem o deixar terminar, o médico pediu nesse mesmo dia a transferência daquela insubmissa criatura para a sala geral.
A Maslova ficara pouco incomodada com a expulsão da enfermaria, mas o mesmo não lhe sucedeu quanto à razão invocada para tal procedimento, pois havia muito, desde o primeiro encontro com Nekludov, que bastava o pensamento de relações carnais, para a horrorizar. Nada a humilhava e angustiava tanto como o lembrar-se que em virtude do seu passado, qualquer homem se julgava com direito de a possuir. Quando, na secretaria, se dirigira a Nekludov, fora com o firme propósito de se justificar da injusta acusação que lhe era assacada. Logo às primeiras palavras que pronunciara, compreendeu que ele não a acreditaria e que as desculpas apenas lhe ajudariam a confirmar as suspeitas. E as lágrimas tinham-na sufocado.
Maslova continuava imaginando que não perdoara a Nekludov, como lho dissera na segunda entrevista, e que até o odiava. Na realidade, porém, desde essa segunda entrevista recomeçara a amá-lo. E era tal a força dessa renovada afeição que, inconscientemente, fazia tudo que ele desejava que fizesse; deixar de beber, de fumar e de galantear com os homens, e só para agradar a Nekludov consentira em passar para o serviço da enfermaria. Tudo o que fazia era unicamente porque adivinhava que ele assim o desejava. Se, todas as vezes que ele lhe falara em desposá-la, declarara não aceitar esse sacrifício, é porque lisonjeava o seu amor próprio, perseverando em tal atitude, que, como na primeira vez, não era despida de altivez. Mais do que isto, porém, influía na sua recusa a certeza que o seu casamento com Nekludov seria para ele uma constante origem de sofrimentos. Jurara a si mesma que nunca aceitaria tal sacrifício, mas o coração sangrava-lhe, quando pensava que ele a desprezava, julgando-a destinada a ser sempre o que fora, sem nunca notar a transformação que se operara na sua alma.
Mais do que a dor produzida pela notícia da sua próxima partida para a Sibéria, em virtude da decisão do Senado, atormentava-a a ideia de que Nekludov partira com a suspeita na sua alma, que ela tivera quaisquer relações com o enfermeiro.
Capítulo 7
Era possível que a Maslova tivesse de partir na primeira leva, de forma que, Nekludov não tinha tempo a perder para regularizar os seus negócios.
Estes, porém, eram tão numerosos que por mais tempo de que dispusesse, nunca poderia regularizá-los definitivamente.
Era nisto que a sua situação diferia completamente da do passado. Então, tinha dificuldades em arranjar uma ocupação e todas diziam respeito a uma só pessoa: Dimitri Ivanovitch Nekludov, o que não impedia que não lhe parecessem mortalmente aborrecidas. Agora as suas ocupações tinham deixado de se centralizar em si próprio e, ao contrário, diziam respeito aos outros; e contudo interessavam-no apaixonavam-no e o número delas variava infinitamente. Neste momento os negócios que ocupavam dividiam-se em quatro categorias: ele próprio, com os seus hábitos de ordem pedantesca, assim os dividira e consequentemente classificara em quatro postas diferentes, a papelada relativa a cada um deles.
A primeira categoria compreendia tudo que se referia ao caso da Maslova. Nekludov estava provisoriamente impossibilitado de proceder sobre este assunto, enquanto não fosse resolvido o recurso à instância suprema.
A segunda categoria compreendia os diversos problemas que diziam respeito à sua fortuna. Nekludov doara aos mujiques a propriedade que herdara de suas tias, apenas exigindo deles uma renda que destinava às necessidades comunais, mas em Kouzminskoie as coisas tinham ficado no mesmo pé em que as encontrara, isto é, a renda tinha de lhe ser paga. Aqui era necessário fixar as épocas do pagamento e calcular a parte que devia embolsar e a que devia ceder aos mujiques. E para isso Nekludov via-se forçado a esperar, ignorando a despesa que acarretaria a sua ida para a Sibéria, que cada dia se lhe afigurava mais provável.
A terceira categoria compreendia os socorros a prisioneiros que, incessantemente e cada vez em maior número, se lhe dirigiam. E neste ponto Nekludov tinha uma dificuldade enorme em se ocupar de cada um deles em particular, em vista do seu grande número, além de que o insucesso das primeiras tentativas não o animava o continuar. E uma preocupação de ordem mais abstrata principiara a preocupá-lo logo em seguida à sua visita às prisões.
Essa preocupação limitava-se a saber como e porque fora criada a espantosa instituição que se chama tribunal criminal e de que derivavam as prisões, os segredos, as fortalezas e o sacrifício de milhares de seres humanos. Por informações que o advogado lhe fornecera, pelas estatísticas judiciárias consultadas pacientemente e pelas suas relações pessoais com prisioneiros, Nekludov chegara à conclusão de que a totalidade dos «criminosos» podia ser dividida em cinco espécies.
Pertencem à primeira espécie dos condenados inocentes, vítimas de erros judiciários, tais como Menshov, o pseudo-incendiário, a Maslova e outros mais. Por informações da secretaria o número deles era muito limitado, talvez sete por cento mas tal posição excitava particular interesse.
A segunda espécie conglobava os condenados por crimes praticados em circunstâncias excecionais, tais como: o furor, o ciúme, a embriaguez — isto é, por crimes que, segundo todas as probabilidades, seriam praticados pelos homens que haviam julgado estes, quando colocados nas mesmas circunstâncias. O número era considerável. Nekludov calculou-o em cinquenta por cento.
Do terceiro grupo faziam parte os condenados por ações que à sua inteligência nada tinham de criminosas, mas que o eram para os homens encarregados de redigir e aplicar as leis, tais como os acusados de venderem aguardente sem licença e os que subtraíam erva ou lenha de uma propriedade qualquer.
À quarta classe pertenciam aqueles dos condenados cujo valor moral era superior ao da sociedade em que viviam, e que por isso os encerrara nas prisões. Tais os sectários religiosos, os Polacos e Circassianos condenados por defenderem a sua independência, e os presos políticos condenados por crime de rebelião contra a autoridade. Entre eles estavam homens da mais fina têmpera.
Por último, a quinta espécie de criminosos consistia nos desgraçados para com os quais a sociedade era infinitamente mais culpada do que eles o tinham sido para com a sociedade. Eram seres rejeitados pela sociedade e embrutecidos por uma opressão incessante, tais como: a criança dos esteirões e centenares doutros miseráveis, arrastados pelo ambiente em que viviam a cometer uma ação considerada criminosa,
Havia na prisão muitos ladrões e assassinos pertencentes a esta categoria e Nekludov classificava igualmente nesta altura esses indivíduos profundamente e naturalmente pervertidos, apelidados por uma escola nova «criminosos natos» cuja existência constitui o argumento mais convincente para os que sustentam a necessidade de códigos e punições. Nekludov não via mais nestes representantes do tal tipo criminal do que uns desgraçados para com os quais a sociedade era bem culpada do que o eram eles para com a sociedade, a agravante de que a sociedade já tinha sido culpada para com os seus progenitores, o que ainda mais agravava a responsabilidade da coletividade.
Fora na prisão que Nekludov conhecera um indivíduo que agora classificava nesta última classe: era um tal Ochotin, ladrão reincidente, filho ilegítimo de uma prostituta. Este homem criado dia e noite nos asilos, não tendo conhecido até aos trinta anos ninguém com sentimentos morais superiores aos seus, filiara-se num bando de salteadores e acabara por considerar o roubo como seu ofício habitual. Possuía, porém uma veia cómica tão notável que lhe atraía a simpatia geral. Implorou também a proteção de Nekludov e fê-lo zombando de si, dos seus companheiros, dos juízes e de todas as leis divinas e humanas.
Além deste havia ainda um tal Fedorov que tinha assassinado e enterrado um velho para lhe roubar alguns rublos. O pai deste homem tinha sido violentamente despojado de tudo que possuía por um vizinho, que conseguira assim arruiná-lo. Fedorov era dotado com um temperamento ardente e fascinador que o tornavam ansioso pelo gozo, e nunca procurara dominar se porque nunca ouvira falar de outro ideal de vida que não fosse o prazer, como lho testemunhavam as ocupações de todos quantos conhecia.
Estes dois prisioneiros foram os que mais impressionaram Nekludov. Não podia furtar-se a reconhecer que qualquer deles teria seguido o caminho do bem, se a sociedade tivesse procurado educá-los e não os abandonasse no caminho do crime. E se apesar de todos os seus vícios, estes infelizes conseguiam ainda despertar-lhe simpatia, entre aqueles que lhe inspiravam repugnância pela sua crueldade e aviltamento, não conseguiu reconhecer o famoso tipo criminal tão citado pela escola italiana, concordando apenas em que eram individualidades pessoalmente antipáticas, mas que nisto se assemelhavam a outras personalidades, que encontrava não nas prisões, mas nos salões, trajando casaca, uniforme ou vestido de cauda e rendas.
Assim classificara Nekludov o conjunto dos criminosos e agora preocupava-o ainda um outro ponto a resolver, o qual consistia em saber porque é que todos esses indivíduos tinham sido encarcerados e eram torturados de todas as formas, enquanto outros, que era tudo se lhes assemelhavam, alguns até mais inferiores em nível moral eram deixados em liberdade com missão de os julgar e condenar. Nekludov, a princípio tivera esperança de encontrar resposta a esta e outras interrogações nos livros; comprara, pois, todas as obras que tratavam do assunto e lera atentamente Lombroso, Garofalo, Perri, Maudsley, Tarde e outros criminalistas de nome.
Estas leituras, porém, tinham sido seguidas de uma dolorosa desilusão. Era o mesmo que acontece a quem principia a estudar uma ciência não para se dedicar a ela exclusivamente e poder escrevê-la é ensiná-la, mas sim para achar resposta a qualquer pergunta simples, prática e vital. A ciência que ele procurara estudar respondia a mil interrogações extremamente subtis e sagazes mas àquela que mais o preocupava fiem sequer fazia referência. E contudo ela era simplicíssima.
Limitava-se a querer saber de onde provinha o direito de alguns homens encerrarem, torturarem, desterrarem, castigarem e assassinarem outros homens em tudo semelhantes àqueles que eram seus algozes. Porém, em vez de formularem uma resposta simples e clara a esta pergunta, os sábios cujas obras estudavam, discutiam uns sobre o livre-arbítrio, outros sobre a antropometria e outros ainda procuravam avaliar a influência que exerce na criminalidade o instinto de imitação. Alguns procuravam indagar o que vinha a ser a moralidade, degenerescência, temperamento e sociedade e estudavam também que o clima, a alimentação, ignorância, o hipnotismo e a paixão exercem na criminalidade.
Estas respostas recordaram a Nekludov a que um dia lhe dera um rapazito que vinha da escola e com quem se encontrara.
— Então já sabes soletrar?
— Muito bem! — respondera a criança.
— Então como soletras «perna»?
— Mas que perna? De cão ou de boi? — perguntara-lhe o garoto com olhar de finório.
Era desta forma que os sábios respondiam à única interrogação que preocupava Nekludov.
E este continuava a estudar-lhe os livros, a-pesar-de cada vez estar mais convencido que nenhum proveito tiraria. Contudo, atribuía à superficialidade da ciência criminal esta carência de respostas e recusava-se admitir como verdadeira a solução que, nos últimos dias se apresentava como mais evidente ao espirito.
Capítulo 8
I
A partida da leva de degredados da qual fazia parte a Maslova fora definitivamente marcada para o dia 5 de julho, e Nekludov resolveu partir no mesmo dia.
Na véspera, sua irmã e cunhado chegaram à cidade, para o visitar.
Natália Ivanovna Ragojinska era mais velha do que seu irmão dez anos, e tivera grande influência na sua educação.
Durante a infância unira-os sempre uma sincera afeição, a qual se transformou, até ao casamento dela, numa perfeita igualdade de sentimentos e de ideias, o que ainda mais estreitara a sua mútua amizade. Nicolau Irtenev, amigo e confidente de Dimitri, era e foi até à sua prematura morte o apaixonado de Natália.
Depois disto Natália casara-se, Nekludov entrara para o exército, e cedo ambos estavam depravados; ele pela vida mundana, ela pelo casamento.
Natália desposara um homem que amava sensualmente, e que era destituído do que outrora seu irmão e ela consideravam como o ideal do belo e no bem, e que nem compreendia nem apreciava tal ideal.
A aspiração da perfeição moral, o desejo de se tornar útil aos homens, tudo que inflamara outrora o coração de Natália era interpretado por seu marido de uma forma prática, que traduzia por excesso de egoísmo e ambição insofrida.
Ragojinski, marido de Natália, era um homem sem nome e sem fortuna, maleável em excesso para com todos os partidos políticos e intriguista, o que, junto ao dom de saber agradar às mulheres, lhe permitira fazer rápida carreira na magistratura. Era já homem de quarenta anos quando conhecera no estrangeiro Nekludov e conseguira agradar a Natália; o casamento realizara-se quase contra a vontade da mãe, que o considerara como humilhante para sua filha.
Nekludov, ainda que tentasse dissimulá-lo, detestava seu cunhado. E detestava-o pela vulgaridade dos seus sentimentos, pela estreiteza do seu espirito e pelo seu desenfreado orgulho; mas mais do que isto fazia ainda detestá-lo o facto de sua irmã se haver tão egoistamente apaixonado por uma natureza tão baixa, e ter com este amor abafado tudo que nela havia de belo e bom. E Nekludov nunca podia recordar que sua irmã era a mulher desse nutrido homem de calva luzidia, sem doloroso sofrimento. Nem as próprias crianças que nasceram, haviam conseguido fazer despontar nele uma pouca de simpatia. Quando tinha conhecimento que sua irmã andava grávida sentia a impressão de que ela mais uma vez tinha sido manchada pelo contacto daquele homem que o enojava.
Os Ragojinski não tinham trazido seus filhos, e Natália, depois de estar alojada nos melhores aposentos do melhor hotel dirigiu-se à sua antiga morada; Agripina Petrovna deu lhe parte que Dimitri não habitava o palácio e indicou-lhe a casa para onde se tinha ido alojar. Natália foi procura-lo ali, e também não o encontrou. Um criado imundo que acudiu ao seu chamamento, no corredor todo o dia iluminado por um bico de gás, participou-lhe que o príncipe não estava nos aposentos.
Natália deu se a conhecer como irmã de Nekludov e pediu permissão para ir aos aposentos de seu irmão escrever-lhe duas linhas.
Antes de principiar a escrever não pôde deixar de examinar curiosamente as duas pequenas salas que seu irmão ocupava. A mesma limpeza e ordem meticulosa, que sabia serem predicados indispensáveis na existência de seu irmão, reinava por toda a parte e a simplicidade da instalação encheu-a de admiração. Em cima de um maço de papéis havia, ao menos, um objeto do seu conhecimento e que no meio daquela nudez, a impressionava agradavelmente: era um pesa-papéis de mármore ao qual estava junto um cão de bronze. De um dos volumes colocados em cima da mesa saía por entre as folhas não totalmente abertas, a extremidade de uma faca de papel de marfim, que reconheceu haver dado em tempos a seu irmão. E um leve prazer bafejou-a.
Terminada a análise dos quartos sentou se e escreveu um bilhete a Nekludov pedindo-lhe que a fosse ver o mais depressa possível. E, acenando com a cabeça, surpreendida pelo que vira, entrou de novo para a carruagem e regressou ao hotel.
Duas coisas interessavam particularmente Natália no que dizia respeito a seu irmão. Queria saber ao certo o que havia de verdade sobre o seu casamento com Katucha do qual toda a gente falava inclusive a sociedade da pequena cidade onde ordinariamente vivia, e obter informações exatas sobre a cedência das propriedades aos aldeões, do que ainda mais se falava, o que era tido como uma ação cuja significação política e social era das mais perigosas.
O casamento com Katucha tinha a sua parte que agradava a Natália. Admirava a resolução e a coragem independentes de que seu irmão dava provas, reconhecendo-o e reconhecendo-se ela mesma, tais como haviam sido na sua mocidade. Porém aterrorizava-se quando se lembrava de que seu irmão ia desposar uma criatura abominável, e este sentimento acabara por abafar o primeiro, que a decidira a empregar todos os esforços para o dissuadir de tal projeto, não ignorando que lhe parecia dificílimo.
O outro assunto, a cedência das propriedades aos aldeões, era-lhe no íntimo indiferente; seu marido, porém sobressaltara-se exigira dela a promessa que insistiria com Nekludov para o demover de tal decisão. Inácio Ragojinski considerava esse passo de Nekludov como o cúmulo da ilegalidade, da leviandade e da vaidade, que só se explicava por uma mania arreigada de querer singularizar-se e atrair as atenções sobre a sua pessoa.
— Ora digam-me se é ou não loucura ceder as terras aos aldeões e obrigá-los a pagar renda a eles próprios?! — dizia.
— Se Dimitri quer desfazer-se das suas propriedades pode vender-lhas por intermédio do Banco dos Lavradores! Isto pelo menos é racional! Tudo isto denota um anormal estado de espirito! — acrescentava o finório, a quem agradava a ideia de dar seu cunhado como pródigo, o que lhe entregaria a gerência de todos os bens.
II
Nekludov mal entrou e leu o bilhete de sua irmã, dirigiu-se apressadamente ao hotel em que ela se alojara.
Encontrou-a sozinha na sala contígua ao quarto, no qual o marido dormia a sesta. Natália usava um vestido de seda preta muito justo ao corpo e adornava o pescoço com uma fita escarlate; o cabelo muito negro estava penteado à última moda: percebia-se que empregava todos os esforços para rejuvenescer, a fim de agradar ao marido.
Quando viu Dimitri, correu ao seu encontro, fazendo rugir o vestido de seda. Os dois irmãos abraçaram-se e em seguida fitaram-se, sorrindo.
Teve lugar entre eles essa misteriosa troca de olhares, cheios de significação, em que as almas se deixam surpreender, na sua mais clara verdade; mas logo em seguida, a esses olhares sucederam as palavras, nas quais já não existia sinceridade.
Nekludov não a tornara a ver depois da morte de sua mãe.
— Estás mais nova e mais nutrida! — disse-lhe.
Os lábios de Natália estremeceram de prazer.
— E tu emagreceste!
— E teu marido como vai?
— Está a descansar um pouco. Não dormiu nada de noite. Soubeste que fui procurar-te?
— Soube. Encontrei o teu bilhete. Mudei-me porque a casa era excessivamente grande para mim e aborrecia-me. O que está de portas adentro, mobília, louças, etc., é-me inútil; se quiseres podes tomar conta de tudo.
— Agripina Petrovna já me tinha dito alguma coisa a esse respeito. Agradeço-te muito, mas...
Neste momento o criado do hotel entrou, trazendo chá numa bandeja de prata. Nekludov e Natália calaram-se enquanto o não viram sair.
— Dimitri, não ignoro nada — recomeçou Natália, erguendo resolutamente os olhos para os de seu irmão.
Nekludov não respondeu.
— Pois podes, na verdade, ter esperança em reconduzir aquela criatura ao caminho do bem, depois de uma tal vida? — interrogou ela.
Ele continuava silencioso, pensando na maneira de se explicar com ela sem a desgostar. Mais do que nunca sentia a alma de posse de uma tranquila alegria e do desejo de viver em paz com todos os homens.
— Não procuro reconduzi-la ao caminho do bem mas sim procuro eu próprio encontrá-lo!— respondeu afinal.
Natália Ivanovna suspirou.
— Mas para isso há outros meios sem ser o casamento.
— Decerto, mas esse é melhor, além disso vou para um meio onde posso ser útil.
— Esse casamento fará a tua infelicidade! — disse Natália.
— Não posso preocupar-me com a minha felicidade.
— Compreendo isso; mas ela, se ainda lhe resta coração, não pode ser feliz com tal união; não pode desejá-la!
— E na verdade não a deseja!
— Mas a vida... enfim...
— A vida o quê?
— A vida exige alguma coisa diferente.
— Sim, a vida apenas exige que cumpramos com o nosso dever! — respondeu Nekludov, examinando o belo rosto de sua irmã, no qual os anos começavam a fazer aparecer rugas à volta dos olhos e da boca.
— Não te compreendo! — disse ela suspirando.
«Pobrezita, como está mudada!», pensava Nekludov; enquanto mil recordações da infância lhe perpassavam rápidas pelo cérebro, um grande acesso de ternura inundou-lhe o coração.
Nesta ocasião Inácio Ragojinski saiu do quarto contíguo, como de costume, de cabeça altiva e peito dilatado. Sorriu condescendentemente para seu cunhado e este reconheceu-lhe a calva luzidia, a barba preta e os vidros das lunetas, tudo mais brilhante.
— Oh! que surpresa! Como está, como tem passado? — exclamou afectadamente. Ainda que, logo a seguir ao casamento tivesse ensaiado tratar por tu seu cunhado a tentativa fora tão mal sucedida que regressara a um tratamento mais cerimonioso.
Depois de um mútuo aperto de mãos, Ragojinski deixou-se cair brandamente numa cadeira.
— Interrompo-os?
— Absolutamente nada! O que faço e o que digo nunca o oculto a ninguém.
O sentimento de serena tranquilidade e o profundo desejo de viver em paz com todos os homens, abandonaram Nekludov mal viu o rosto sem expressão de seu cunhado, as suas mãos peludas e lhe ouviu a voz jactanciosa e protetora.
— Falávamos das suas intenções — informou Natália. — Queres chá?
— Sim, quero. E quais são essas intenções?
— Acompanhar para a Sibéria uma condenada aos trabalhos forçados, para com quem me reconheço criminoso! — declarou Nekludov.
— Ouvi dizer que além de a acompanhar estava resolvido a fazer alguma coisa mais!
— Exato! A desposá-la se, afinal, consentir.
— É então verdade? Ficar-lhe-ia obrigado se me expusesse o que o incita a assim proceder. Confesso-lhe que não compreendo!
— O que me obriga a assim proceder é que esta mulher... É que o seu primeiro passo no caminho do vício...
Nekludov não conseguiu exprimir-se razoavelmente; apenas começava a sentir-se cada vez mais irritado.
— O que explica o meu proceder — disse por fim — é que sendo eu o criminoso, foi ela a condenada.
— Então se foi condenada com certeza que não era inocente!
— Perdão! Era-o e completamente.
E Nekludov narrou toda a história do processo de Maslova com desusada vivacidade.
— Sim, compreendo o que sucedeu! O juiz presidente foi negligente, e os jurados foram irrefletidos. Para esses casos, porém, lá está o Senado.
— Mas se o Senado negou o provimento ao recurso!
— É que, nesse caso, não havia motivos para recorrer! — disse Ragojinski que, evidentemente, partilhava a opinião prevalecente de que a verdade ressalta das sentenças judiciárias. — É verdade que o Senado não pode vigiar senão a rigorosa aplicação da lei, mas se existia um erro judiciário deviam apelar para o imperador.
— É o que fizemos, ainda que sem esperanças de sermos atendidos. Provavelmente o ministro ordenará um inquérito e buscará informar-se no Senado, que lhe responderá que a lei foi bem aplicada! E, como de costume, condenar-se-á uma inocente!
— Perdão, perdão! — interrompeu Ragojinski com um sorriso condescendente. — Primeiramente o ministro não se dirigirá ao Senado mas pedirá unicamente o processo e, se verificar a existência de algum erro, dará a sua decisão de conformidade. E em segundo lugar não é costume condenar os inocentes. Condenados e castigados só os culpados e criminosos — afirmou ele com entoação tranquila e sorrindo complacentemente.
— E eu convenci-me do contrário! — afirmou Nekludov, que gradualmente se ia sentindo cada vez mais mal disposto para com seu cunhado. — Estou convencido de que cinquenta por cento dos indivíduos condenados pelos tribunais são inocentes.
— Mas são inocentes em que sentido?
— No mais simples que a palavra exprime, como essa mulher acusada de ter envenenado o negociante o está! Como está inocente um homem que vi um destes dias ser condenado por um assassínio que não cometeu; como estão inocentes uma mãe e um filho acusados de fogo posto, cujo autor foi o próprio dono do prédio!
— Sim, não nego que não haja erros judiciários. A justiça humana não pode ser infalível.
— E a grande maioria dos condenados está inocente, porque tenda sido educados em determinados meios, não consideram como criminosas as ações por que foram encarcerados.
— Perdão, isso não é assim. Qualquer ladrão sabe que um roubo não é uma boa ação e que não se deve roubar porque é imoral — disse Ragojinski com um sorriso levemente irónico que acabou de exasperar Nekludov.
— Mas não sabe tal! Dizem-lhe que não deve roubar, mas se ele vê que o patrão lhe rouba o salário, que o governo por intermédio dos seus empregados o rouba, sobrecarregando-o com impostos...
— Isso é simplesmente anarquismo! — interrompeu Ragojinski tranquilamente.
— É-me indiferente o nome, contanto que seja a verdade! — continuou Nekludov. — Esse homem sabe que o fisco o rouba; sabe que nós, os proprietários, o roubamos explorando em nosso favor o que deveria ser propriedade comum, e nós quando esse homem numa necessidade imprescindível se apodera de uma pouca de lenha seca num dos nossos bosques, pregamos com ele na cadeia, gritando que é um ladrão!
— Não o compreendo, ou antes se o compreendo pesa-me não concordar consigo. A terra deve pertencer a alguém. Ragojinski convencera-se de que Nekludov era um socialista e como na sua conceção de socialismo entrava a divisão igual da propriedade por todos, o que era rematada loucura, principiou a querer provar-lho.
— Se hoje dividirmos a terra em partes iguais, amanhã ou depois passará para as mãos dos mais laboriosos e mais bem dotados.
— Mas quem lhe fala em dividir a terra em partes iguais? A terra não deve pertencer a ninguém, assim como não pode ser um objeto de compra e venda!
— O direito à propriedade é inato no homem; sem ele ninguém cultivaria a terra com cuidado. Suprima-se esse direito e regressaremos à barbária! — disse com autoridade Ragojinski repetindo o vulgar argumento baseado na afirmativa que o desejo dos homens de possuírem terra prova que a necessitam.
— Mas o contrário é que é a verdade! Só então deixará de haver terra inculta como agora! Nós os proprietários assemelhamo-nos àqueles cães que guardam as manjedouras e que não comem nem deixam comer!
— Ouça, Dimitri Ivanovitch, o que está a dizer é rematada loucura! Pois é lá possível suprimir o direito de propriedade nos nossos dias? Bem sei que há muito tempo defende essa... mania. Permita-me, porém, dizer-lhe com franqueza...
O rosto de Inácio Ragojinski empalidecera de-repente e a voz tornara-se trémula. Evidentemente o ponto em que ia falar interessava o particularmente,
— Aconselhá-lo-ia sinceramente a refletir nesse assunto antes de pôr em prática as suas ideias!
— Refere se pessoalmente ao meu caso?
— Sim, considero como obrigação de todos nós que ocupamos certa posição, sustentar as responsabilidades que para nós dela derivam. Devemos conservar as regalias com as quais nascemos, que nos foram transmitidas por nossos pais, e que por consequência devemos transmitir aos nossos filhos.
— Mas considero como obrigação primária...
— Perdão! — disse Ragojinski, não se deixando interromper. — Eu não falo nem no meu interesse nem no dos meus filhos. A posição destes está garantida e para mim espero poder ganhar bem a minha vida enquanto viver. É, pois, livre de qualquer pensamento egoísta e por íntima convicção que lhe aconselho a refletir, e a ler por exemplo...
— Perdão! Não preciso que ninguém se ocupe dos meus negócios nem que me indiquem o que devo ou não devo ler! — exclamou Nekludov empalidecendo também. E sentindo as mãos arrefecerem-lhe e perder a serenidade, calou-se e principiou a beber o seu chá. — E os teus filhos como vão? — perguntou Nekludov a Natália, depois de estar mais tranquilo.
Ela respondeu-lhe dizendo que as crianças tinham ficado com a avó e contente por ter acabado a questão entre os dois, contou-lhe como as crianças brincavam «às viagens» com os brinquedos, exatamente como Nekludov na infância brincava com duas bonecas, uma das quais era um negro e a outra uma dama a quem chamava a «francesa».
— Como tu ainda te recordas! — disse Nekludov sorrindo.
— Se recordo! Os meus agora brincam do mesmo modo!
A penosa impressão produzida pela desagradável disputa tinha-se desvanecido, e Natália, mais tranquila, não querendo falar diante de seu marido de assuntos só compreensíveis e interessantes para ela e para seu irmão, guiou a conversa para o acontecimento que emocionava todo S. Petersburgo, o duelo em que o jovem Kamensky perdera a vida.
Inácio Ragojinski criticou severamente o preconceito que impedia de considerar o duelo como um crime vulgar e Nekludov, indignado, respondeu-lhe em termos que a questão recomeçou sobre assunto diverso.
Inácio Ragojinski compreendia que Nekludov o aborrecia, e quisera provar-lhe a injustiça do seu sentimento. Nekludov, pela sua parte, exasperado por seu cunhado tentar envolver-se nos seus negócios íntimos, ainda que conscientemente reconhecesse que como parente próximo tinha esse direito, mais excitado se tornava com a audácia e tom jactancioso, empregava na defesa racional de princípios, que eram para ele Nekludov a última palavra do absurdo.
— Que queria então que fizesse? — perguntou este.
— Que o assassino de Kamensky fosse condenado aos trabalhos forçados como um criminoso vulgar!
— E que se lucraria com isso?
— Seria justo!
— Como se a atual organização judiciária tivesse em vista fazer justiça! — disse Nekludov.
— Então que outro fim imagina que possa ter?
— O de sustentar uma ordem de coisas favorável a certa casta social!
— Eis uma novidade para mim! — respondeu Ragojinski sorrindo. — Não é para isso que geralmente se diz que serve a justiça!
— Na teoria assim é; a prática, porém, convenceu-me do contrário. As atuais instituições judiciárias apenas servem para conservar a sociedade no estado presente. Provém daí que tanto são perseguidos e castigados aqueles cujo nível moral é inferior ao ordinário como aqueles que são superiores e que se esforçam por elevar a sociedade até ao seu nível.
— Não posso permitir que se diga que os magistrados condenam homens de moralidade elevada e superior à ordinária! Aqueles que nós condenamos são, na maior parte, refugo da sociedade.
— Pois afirmo-lhe que conheço condenados bem superiores, moralmente, aos homens que os julgaram!
Ragojinski, porém, como homem habituado a não ser interrompido, continuou a falar, sem ouvir o que Nekludov dizia, o que o tornou indignado.
— Assim como não posso permitir que se diga — continuou — que os tribunais só servem para manter a ordem existente. Os tribunais têm um duplo fim: o de corrigir...
— Não está má a correção resultante do encarceramento! — exclamou Nekludov.
— ...e o de mondar da sociedade indivíduos depravados e embrutecidos que representam uma ameaça constante para a existência social.
— E eu sustento que os tribunais não se desempenham desses deveres! Punições racionais há apenas duas, que se empregavam outrora; o chicote e a morte.
— Nunca imaginei ouvir tal coisa da sua boca!
— Mas porquê? É racional fazer sofrer um homem para impedir que recomece a ação pela qual foi castigado, e compreendo que se corte a cabeça daquele que se tornou perigoso para o sossego dos outros homens. Mas, agarrar um indivíduo já depravado pela preguiça e pelos maus exemplos, para o encerrar numa prisão onde a preguiça e a ociosidade são obrigatórias, é proceder de quem não tem senso comum!
— E de que serve transportar à custa do Estado (garantiram-me que estas viagens custam 500 rublos por cabeça) presos do governo de Toula para o de Irkoustk ou para o de Koursk?
— O que não impede que essas passeatas sejam temidas e que sem elas e sem as prisões nós não estaríamos sentados aqui, tranquilamente, como estamos!
— O que não impede, que a sociedade esteja longe de ser protegida, apesar das prisões, pois esses homens cedo ou tarde recuperam a liberdade, com a agravante de virem mais perigosos, depois do internato a que são submetidos!
— Quer dizer que o atual regime penitenciário precisa ser aperfeiçoado?
— Mas não! Seria inútil! Para aperfeiçoar as prisões despender-se-ia mais dinheiro do que o que hoje se inutiliza com a instrução pública e que o povo seria obrigado a pagar.
— Mas que quer então que faça? Que se mate toda a gente, ou como propôs recentemente um estadista iminente, que se vazem os olhos dos criminosos? — perguntou Ragojinski com um sorriso forçado.
— Isso seria cruel, mas não destituído de senso comum. O que atualmente se pratica e que é tão ineficaz e estúpido que custa a acreditar como há indivíduos racionais que tomem parte em tão absurda e cruel ocupação!
— Porém eu faço parte dessa instituição! — disse Ragojinski empalidecendo.
— Isso é lá consigo! Assiná-lo apenas o que me é incompreensível.
— Há muitas coisas que lhe são incompreensíveis! — disse Ragojinski com voz trémula.
— Presenciei, em pleno tribunal, um delegado do Procurador Régio erguer-se da sua cadeira e empregar todos os esforços para conseguir que fosse condenada uma infeliz criança, que em qualquer homem brioso apenas provocaria piedade; assisti a outra audiência em que um sectário foi condenado por ter lido os Evangelhos a alguns amigos, e não quer que afirme que os tribunais apenas espalham o mal por intermédio das suas absurdas resoluções?
— Eu não desempenharia o cargo que ocupo se não estivesse convencido da sua legitimidade — respondeu Ragojinski levantando-se.
Nekludov julgou ver um brilho peculiar sob as lunetas de seu cunhado. «Oh Deus! serão lágrimas?», pensou. Efetivamente eram lágrimas de despeito e humilhação. Ragojinski dirigiu se para junto da janela, tirou o lenço, limpou as lunetas e os olhos. Em seguida sentou-se, acendeu um charuto e não falou mais.
Nekludov sentiu-se dorido e envergonhado de ter magoado seu cunhado e sua irmã àquele ponto, tanto mais que, partindo no dia imediato, não os tornaria a ver.
Depois de trocar algumas palavras banais, despediu-se e encaminhou-se para casa.
«Tudo o que lhe disse é talvez a verdade, de outro modo teria replicado, mas não devia ter-lhe falado assim», dizia Nekludov consigo. «Decididamente a transformação por que tenho passado não é senão superficial, aliás não me teria irritado tanto, não teria humilhado Inácio Ragojinski como humilhei, e não teria magoado tão profundamente a minha querida Natália.
Capítulo 9
I
A leva de degredados da qual fazia parte a Maslova devia partir no dia seguinte às 3 da tarde. Nekludov assentou em comparecer à porta da prisão ao meio-dia para vê-la sair e acompanhá-la até à estação de caminho de ferro.
Nessa noite, antes de se deitar, como estivesse a pôr em ordem os seus papéis, encontrou o «diário» em que ia lançando uma ou outra impressão e não pôde deixar de ler os últimos períodos. Antes de partir para S. Petersburgo, escrevera: «Katucha não aceita o meu sacrifício e persiste no seu. A transformação íntima que se opera nela — temo que me engane — encanta-me. Se não me engano, conseguirei ressuscitá-la». A seguir escrevera: «Hoje sofri um grande abalo: tive conhecimento de que Katucha se portou indevidamente na enfermaria e um terrível sofrimento domina-me; nunca imaginei que essa má nova me magoasse tanto. Na entrevista seguinte que tive com essa infeliz, tratei-a desabridamente, o coração trasbordando de náusea, sem me recordar de quantas vezes eu mesmo tinha cometido o pecado de que agora a acusava, ainda que não fosse senão em pensamento; então o ódio que nascera no meu peito dirigi-o contra mim mesmo e quando o substituí pela compaixão que sempre deveria acompanhar as minhas relações para com ela, experimentei um inefável bem-estar». Nekludov pegou então na pena e escreveu: «Tornei a ver Katucha hoje, e ainda, por egoísmo, fui mau e duro para com ela. Esse mesmo egoísmo obrigou-me a ser incivil para com Natália a quem falei, hoje, depois de haver dito a seu marido algumas frases verdadeiras mas que poderiam ser ditas mais suavemente. E, bem o sinto, o pesar que me oprime o coração tem aqui as suas raízes. Porém, que fazer? Amanhã inaugura-se para mim uma nova existência! Adeus, tempos passados, adeus para sempre!»
O primeiro sentimento de Nekludov ao despertar no dia imediato foi o de um profundo arrependimento pela sua conduta com o seu cunhado. «E impossível deixar ficar as coisas neste estado!», disse consigo; «irei procurá-lo e pedir lhe ei desculpa!»
Consultou o relógio e só então viu que, se quisesse assistir à partida dos prisioneiros, não lhe sobraria o tempo. Deu se pressa, pois em acabar de emalar o que tencionava levar e depois de remeter tudo para a estação, mandou buscar um carro e fez-se conduzir à prisão.
Era julho e o calor sufocava. Do pavimento das ruas, da cantaria e dos tetos das casas, que a transata abafada noite não conseguira refrescar, elevava-se um reflexo constante que, com o ardor e barulho do sol, tornava a atmosfera irrespirável. Sopravam baforadas de vento quente que levantavam nuvens de pó, dificultando a marcha aos raros transeuntes que os cosiam com as paredes das casas, aproveitando uns restos da sombra. Contudo, no meio da rua, Nekludov viu alguns cantoneiros recebendo o sol de chapa, e batendo com os maços nos pedregulhos até enterrá-los na terra ardente.
Quando Nekludov chegou à prisão, a porta ainda estava fechada. Desde as quatro da madrugada que lá dentro se procedia à contagem daqueles que iam partir Eram 623 homens e 64 mulheres que, enfileiradas dois a dois, estacionavam no pátio, em pé e ao sol, aguardando a saída.
Num canto, em frente a uma mesa com tinteiros, papel e penas, estavam o novo diretor, dois auxiliares, o comandante militar da escolta e o médico. Os presos eram chamados e desfilavam um a um, dando-se a respetiva baixa no caderno.
Os raios do sol começavam a invadir a mesa e o calor tornava-se abafadiço por causa da aglomeração no pátio.
— Bom Deus! Isto não acaba? — perguntou o comandante da escolta, homem alto, nutrido e rosto congestionado, expelindo baforadas de fumo através dos espessos bigodes. — Isto é de matar! Onde foram buscar tanta coisa? Ainda há mais?
— Faltam vinte homens e as mulheres.
Enquanto isto se passava no interior, fora de portas, além da sentinela de espingarda ao ombro, Nekludov notou a existência de vinte carroças destinadas às bagagens dos prisioneiros e à condução de um ou outro doente e, num canto, viu um grupo com certeza parentes ou amigos dos presos, que esperavam a saída para os tornar a ver uma última vez e mimoseá-los com géneros ou dinheiro, se fosse possível.
Nekludov reuniu se a este grupo e esperou em frente da porta ainda uma hora. Ouviram-se por fim, os tinidos dos grilhões, as vozes de comando, o ruído de centenares de pés andando e de vozes tossindo e falando. E, ainda durante mais cinco minutos, aparecerem e desaparecerem no portão, diferentes carcereiros.
De repente, o largo portão abriu-se ruidosamente, o tinido dos grilhões tornou-se mais percetível e uma força militar de uniformes claros formou em semicírculo ao redor da praça; era uma manobra praticada já muitas vezes. Começaram então a desfilar, dois a dois os degredados. Em primeiro lugar, saíram os condenados a trabalhos forçados, vestindo uniformemente blusas cinzentas, e bonés baixos nas cabeças rapadas, todos com um saco às costas; arrastavam as pernas carregadas com os grilhões e, com a única mão livre que lhes deixavam, seguravam na extremidade dos sacos que lhes caíam pelas costas. Caminhavam firmemente, agitando o outro braço, como se fossem para uma grande caminhada; momentos depois paravam e formavam em filas de quatro.
Seguiam-se outros, vestindo blusas iguais e também com a cabeça rapada, mas sem grilhões, apenas com as mãos encadeadas atrás, nas costas. Eram os deportados.
Na mesma ordem seguiam-se as mulheres; as condenadas a trabalhos forçados, de blusas cinzentas e lenços na cabeça, e as deportadas, atrás das quais caminhavam as que voluntariamente acompanhavam os maridos. Estas eram na maior parte aldeãs, e como tais vestiam e algumas até crianças levavam ao colo.
Por entre as fileiras dos prisioneiros, como jovens poldros disseminados numa manada de cavalos, caminhavam a pé crianças mais idosas. Os homens seguiam silenciosos, trocando apenas de vez em quando uma ou outra palavra, enquanto das fileiras das mulheres, se elevava um confuso e ininterrupto murmúrio de vozes.
Nekludov julgou reconhecer a Maslova na ocasião da saída; depressa, porém, a perdeu de vista, na confusa onda de criaturas uniformemente vestidas de cinzento, em tudo semelhantes umas às outras e desprovidas de todo o atributo humano.
A leva tinha sido contada no pátio interior e, enquanto os seus componentes formavam em filas de quatro foram contados. Quando terminou a recontagem o comandante da escolta deu uma ordem e, entre a multidão produziu-se certo reboliço.
Os doentes, homens, e mulheres, abandonaram as fileiras e precipitaram se para os carros tratando de se instalar e a bagagem. Nekludov pôde ver numa promiscuidade completa mães com os filhos ao seio, crianças de ambos os sexos alegradas pela variedade do passeio e doentes de feições sombrias e rabugentas.
Alguns prisioneiros com a cabeça descoberta, vieram pedir ao comandante licença para seguir nas carroças. Este, a princípio, fingiu não os ouvir, voltando-se para o outro lado enrolando um cigarro; súbito, Nekludov viu-o voltar-se de mão erguida para um que se aproximara mais.
— Eu dou-te a carroça! A pé, que vai muito bem! — gritou ele.
Apenas um velho todo trémulo conseguiu ser favorecido. Desbarretou-se, persignou-se e, pousando a sacola numa das carroças esforçou-se, em vão, durante multo tempo para conseguir içar as pernas magras carregadas com os grilhões e só quando, de dentro, uma velha o ajudou, pôde descansar.
O comandante, depois de ver as carroças repletas, enxugou o suor que em camarinhas se lhe depositava no pescoço rubro, na testa e na calva, e persignou-se.
— Ordinário! marche! — bradou.
Os soldados puseram as armas ao ombro: os condenados desbarretaram se e persignaram-se, das fileiras femininas levantou-se um clamor de despedidas em resposta ao que do grupo lhe era dirigido, e o cortejo começou a agitar-se, rodeado pelos soldados de uniforme claro levantando nuvens de poeira a cada movimento das pernas agrilhoadas.
À frente caminhava uma dupla fila de soldados; depois vinham os condenados a trabalhos forçados, os simples deportados e as mulheres; no couce, enfileiradas quatro a quatro, arrastavam-se as carroças, transbordando de bagagens e inválidos. No tejadilho de uma delas Nekludov notou uma mulher muito agasalhada, que soluçava continuamente.
II
Já as primeiras filas do cortejo haviam dobrado a extremidade da rua, quando coube a vez às carroças de se porem em movimento, tão extenso ele era. Nekludov ainda esperou alguns momentos e, em seguida, entrou para o carro que o esperava e mandou caminhar vagarosamente para poder procurar a Maslova e saber dela se lhe haviam sido entregues alguns objetos indispensáveis para a longa viagem que tinha de realizar e que lhe mandara entregar. O calor tornara-se ainda mais abafadiço e no meio da estrada, levantava se uma nuvem de pó produzida pela marcha da coluna. Quando Nekludov conseguiu alcançar as primeiras filas das prisioneiras reconheceu sem dificuldade a Maslova. la na segunda fila acompanhada pela Bela, por Fedósia e por uma mulher grávida que se arrastava com dificuldade. A Maslova caminhava com passo ágil carregando com o seu saco às costas e olhando para a frente, tranquila e resolutamente. Nekludov mandou parar o carro e desceu, no propósito de se dirigir e falar-lhe, mas um oficial inferior que acompanhava a escolta, precipitou se sobre ele.
— É proibido falar com os prisioneiros! — gritou.
Mas, como reconhecesse Nekludov, que já era conhecido de todos os empregados da prisão, levou a mão à barretina e, em tom mais respeitoso, observou lhe:
— Excelência, tenha paciência até à estação. Aqui é impossível falar-lhe.
Nekludov afastou-se e fez sinal ao cocheiro para o seguir enquanto acompanhava o cortejo a pé. Este, por onde passava, despertava as atenções formadas por compaixão e tremor.
Paravam as carruagens, e, pelas portinholas, entreviam-se cabeças inclinadas examinando curiosamente os degredados. Os transeuntes estacavam, fixando fascinadoramente o terrível espetáculo. Alguns aproximavam-se e davam uma esmola, que os soldados recolhiam enquanto outros ficavam como que hipnotizados seguindo com o olhar os últimos carros, até os perderem de vista.
Numa encruzilhada, o cortejo deteve um carro particular. No exterior sentava-se um nutrido cocheiro de faces reluzentes e uma dupla fila de botões amarelos na farda; no interior, ocupava os lugares superiores um casal de gente fina. Ela, uma pálida e franzina criatura com um leve chapéu de cor na cabeça e um transparente guarda-sol aberto; ele, de chapéu alto e sobrecasaca. No assento fronteiro, davam-se as mãos duas crianças, seus filhos; uma rapariguinha com belo cabelo solto, fresca e rosada como uma flor, sustentando também aberto, um microscópico guarda-sol, e um rapaz de oito anos de pescoço magro e comprido, largos colarinhos, blusa e boné de marinheiro. O pai ralhava zangadamente com o cocheiro per não ter aproveitado a ocasião de passar à frente do cortejo, e a mãe procurava encobrir-se com o guarda-sol da nuvem de poeira que voava na atmosfera, enquanto o rosto manifestava a impressão de enfado causada por tal encontro.
O cocheiro ainda tentou romper as filas do cortejo, mas apenas conseguiu levantar um certo borborinho, que o obrigou a refrear os cavalos, e só quando as últimas carroças passaram, pôde seguir caminho. As crianças com a curiosidade despertada pelo espetáculo que tinham presenciado esperavam por uma explicação que as elucidasse. E como nem o pai nem a mãe lha dessem tiraram nos de si próprios. A rapariga que espiara a expressão do rosto de seu pai e de sua mãe resolveu o problema ficando na convicção que os indivíduos que vira desfilar pertenciam a uma espécie diferente daquela a que pertenciam seus pais e os seus conhecimentos, que eram gente execranda tratada e punida como mereciam.
Por isso a pequenina apenas sentiu medo e ficou alegre quando os perdeu de vista. O rapaz do pescoço magro e comprido, que presenciara todo o desfilar sem despegar o olhar do que via interpretou o problema diferentemente.
Compreendeu, sem dificuldade que os seres que desfilavam na sua frente eram em tudo seus semelhantes pois sentia em si Deus que lho revelava, e percebeu que havia alguém que lhes causava o mal de que iam sofrendo; brotou lhe do coração a compaixão por aqueles seus semelhantes e não se horrorizando dos «cabeças rapadas» e dos agrilhoados, sentiu os lábios estremecerem-lhe num prenúncio de uma crise de lágrimas. Mas fazendo um violento esforço dominou-se... porque parecia mal chorar naquele lugar.
***
Nekludov acompanhava os condenados, conservando o mesmo andamento que eles, e ainda que vestido levemente, principiava a sentir-se incomodado com o calor.
Por fim este tornou-se; insuportável; depois de um quarto de hora de caminho através de uma atmosfera abafadiça, imóvel e ardente, voltou para a carruagem. Aqui o calor pareceu-lhe ainda mais intolerável; ordenou ao cocheiro que andasse mais rápido e tentou pensar na discussão que tivera na véspera com o seu cunhado; o que, porém, algumas horas antes ainda tanto o interessava, não conseguia já reanimá-lo. Todas as suas energias concentravam-se no terrível espetáculo que presenciava agora. Mais do que isso ainda, incomodava-o o calor.
Atravessaram na ocasião, uma pequena praça; à sombra de uma árvore atraiu-lhe a atenção um grupo formado por dois colegiais em frente de um vendedor ambulante de sorvetes. Um já esvaziara um cálice e lambia sofregamente uma pequena colher e o outro vigiava o homem dos sorvetes que lhe enchia o cálice de neve dourada.
— Onde poderei tomar qualquer coisa? — perguntou Nekludov ao cocheiro, sentindo o indomável desejo de se refrescar.
— Aqui bem perto há um bom café respondeu o cocheiro; e voltando a uma esquina parou em frente de um estabelecimento, decorado com uma grande tabuleta.
Atrás do balcão estava o dono do estabelecimento em mangas de camisa e na sala dois criados com blusas sujas; depois de haverem examinado com curiosidade o freguês desconhecido, correram pressurosos a oferecer-lhe os seus serviços.
Nekludov pediu água de Seltz e sentou-se a uma pequena mesa coberta com uma toalha enodoada.
Numa mesa próxima estavam sentados dois homens tomando chá; um de pequena estatura e nutrido, tinha um cachaço saliente, todo coberto por cabelos negros semelhantes aos de Inácio Ragojinski. Esta semelhança recordou a Nekludov a conversa da véspera e o desejo que tinha de tornar a ver sua irmã antes de partir. «E se eu lá fosse?» dizia a si mesmo. «É impossível, perderia o comboio. É preferível escrever-lhe!» Pediu pena, papel e tinta e enquanto bebia, a pequenos tragos, a água fresca e crepitante, pôs-se a pensar no que lhe diria. As ideias, porém, baralhavam-se-lhe no cérebro, não o deixando arquitetar nem uma frase.
«Querida Natália, não posso partir sob a dolorosa impressão que me deixou a conversa que tive com teu marido e...», principiou Nekludov a escrever. «Mas, que dizer mais? Pedir-lhe-ei desculpa das palavras que pronunciei? Mas elas só exprimiam a verdade que eu sentia, além do que meu cunhado julgaria que me desdigo. Quem o mandou a ele intrometer-se nos meus negócios? Não, é impossível escrever.»
E sentindo reanimar-se dentro de si o ódio que votava àquele estranho, incapaz de todo de o empreender, amarrotou a carta principiada, meteu-a no bolso, pagou e subiu para o carro a fim de alcançar de novo o cortejo.
O calor, longe de diminuir, aumentara; parecia que dos passeios e das paredes se exalavam baforadas tórridas. O chão tisnava os pés através do calçado, e quando Nekludov pousou a mão no rebordo envernizado da carruagem, sentiu a ardência das queimaduras.
O cavalo arrastava-se pesadamente pelo macadam poeirento e o cocheiro dormitava na almofada; Nekludov, inutilizado pelo calor, sentia-se incapaz de um pensamento. Ao voltar uma esquina, em frente de uma grande casa, um grupo de homens com um soldado da escolta no meio deles, atraiu-lhe a atenção.
Mandou parar e, dirigindo-se a um porteiro, perguntou-lhe:
— Que se passa?
— É um degredado que...
Nekludov desceu do carro e aproximou-se.
Um detido de rosto congestionado e barba ruiva estava estendido sobre as pedras desiguais do pavimento com a cabeça em nível inferior ao resto do corpo, e este apertado de encontro ao passeio. Com as costas sobre as pedras erguia, gemendo, o largo peito e com as palmas das mãos muito abertas, parecia fitar o firmamento com o olhar imóvel injetado de sangue.
Ao redor tinham-se reunido um polícia, um distribuidor do correio, uma velha com um guarda-sol, um caixeiro e um rapazito com um cesto vazio.
— Esta gente está fraca depois de tal cativeiro e obrigam-nos a marchar com este calor! — disse o caixeiro, dirigindo-se a Nekludov.
— Morre com certeza! — dizia a velha em voz aflitiva.
— Depressa! descubram-lhe o peito! — disse um dos assistentes.
O polícia principiou a desabotoá-lo com mãos trémulas, pondo-lhe a descoberto o pescoço de veias tumefactas. Ainda que comovido e entristecido julgou do seu dever repreender os presentes:
— Vamos, que estão aqui a fazer? Toca a andar e não impeçam que o ar circule!
— O médico é obrigado a examiná-los antes de saírem da prisão e deve mandar os doentes e fracos de carro!
— E, vejam lá, obrigam este a sair a pé! — explicava o caixeiro muito contente de poder mostrar os seus conhecimentos do regulamento.
O polícia acabou de desapertar o preso e erguendo-se, espraiou outra vez a vista em redor.
— Então que disse eu? Ninguém tem nada com isto, toca a girar! — disse, procurando com o olhar compreender se o soldado aprovava as ordens que estava dando.
O soldado, porém, estava embebido na contemplação das suas botas, sem dar atenção à perplexidade do polícia.
— Os que têm obrigações e deveres não os cumprem. A lei não permite que se deixe assim morrer gente!
— Sim, um preso é um preso, mas é também um homem! — disseram várias vozes partindo do grupo que, incessantemente, ia engrossando.
— Levantem-lhe a cabeça e deem-lhe água! — disse Nekludov.
— Mandei buscá-la — respondeu o polícia.
E erguendo custosamente o preso pelos braços, conseguiu colocar-lhe a cabeça no passeio.
— Que quer dizer isto! — exclamou de repente uma voz imperiosa e grosseira. Era um chefe de polícia vestindo um uniforme deslumbrante e botas de cano alto ainda mais deslumbrantes, que acorrera irritadamente. — Não é permitido estar parado, toca a girar! — disse dirigindo-se aos individuos aí aglomerados, mesmo sem saber do que se tratava.
Quando deu pelo infeliz prisioneiro estendido nas pedras, acenou com a cabeça, como para dar a entender que já tinha visto muitos casos idênticos, e interpelou o polícia para saber como se produzira o acidente.
O polícia contou que à passagem do cortejo o prisioneiro caíra e o comandante da escolta ordenara que o deixassem ficar.
— Está bem. É necessário levá-lo para a esquadra. Mande chamar o carro...
— Quando o guarda-portão regressar — disse o polícia fazendo continência.
O caixeiro recomeçara a falar no calor.
— Que te importa? Segue o teu caminho, vá! — disse-lhe o chefe da polícia fixando-o com tal severidade que o caixeiro houve por bem calar-se.
— É necessário dar-lhe de beber! — repetiu Nekludov.
O chefe da polícia lançou-lhe também um olhar severo, mas vendo-o bem vestido não se atreveu a dizer-lhe nada. Nesta ocasião o guarda portão com um jarro cheio de água e o polícia esforçou se por introduzir alguma na boca do moribundo, a quem erguera a cabeça; a boca deste, porém, não se abria e a água começara a entornar-se-lhe pela barba, molhando a blusa e a camisa poeirentas.
— Deita-lha na cabeça! — ordenou o chefe da polícia.
O polícia desbarretou o preso e virou-lhe o jarro em cima da calva rodeada de cabelos ruivos.
Os olhos do infeliz abriram se desmedidamente, como que espantados, mas o corpo permaneceu imóvel.
A água misturada com o pó corria-lhe pelas faces; pela boca principiaram a fazer-se ouvir surdos gemidos, enquanto fortes estremecimentos convulsionavam o corpo.
— Aqui está um carro! Coloquem-no aqui! — exclamou o chefe apontando para o carro de Nekludov. — Vamos, aproxima-te.
— Estou tomado! — respondeu o cocheiro.
— O carro é meu, mas eu cedo-o! Pago todo o serviço — disse Nekludov para o cocheiro.
— Então porque esperas? Depressa!
O soldado, o porteiro e o polícia ergueram o prisioneiro e colocaram-no no assento inferior do carro. O corpo, porém, não se sustinha; a cabeça tombava e o corpo deslizava das almofadas.
— É preferível deitá-lo — disse o chefe.
— Pode estar sossegado; conduzi-lo-ei assim — afirmou o polícia, sentando-se-lhe ao lado e passando-lhe o braço em redor da cinta, enquanto o soldado lhe endireitava as pernas.
No passeio tinha ficado o boné do desgraçado; o chefe apanhou-lho e colocou-lho na cabeça molhada que tombava ora para um, ora para outro lado.
— Podem partir! — ordenou.
O cocheiro, com o soldado ao lado, castigou a alimária e voltou para trás, em direção da esquadra.
Dentro o polícia tentava em vão suster a cabeça do prisioneiro, que oscilava continuamente. Nekludov seguia a pé, atrás da carruagem.
III
Quando o carro parou em frente da esquadra, foi logo rodeado por vários polícias, que se apressaram a retirar o prisioneiro, falecido durante o trajeto.
Nekludov chegou dez minutos depois, quando o cadáver era conduzido para a enfermaria.
Havia nesta quatro camas a condizerem em falta de limpeza com a sala, duas das quais estavam ocupadas: uma por um tísico e a outra por um homem com a cabeça e pescoço ligados.
Numa das camas desocupadas foi colocado o cadáver.
Um homenzinho de olhar brilhante e grande mobilidade de expressão, aproximou-se com passo rápido, examinou o morto, olhou para Nekludov e desatou a rir. Era um doido que, enquanto não era transferido para o hospital, aí permanecia.
— Querem me assustar! — disse. — Mas não o conseguirão.
Momentos depois Nekludov viu entrar o chefe da esquadra e um médico. Este dirigiu-se à cama, pegou na mão pálida e ainda tépida do morto, ergueu-lha e tornou a deixá-la cair.
— Está pronto! — disse acenando com a cabeça. — Porém como o regulamento exigia mais, descobriu o peito do morto ainda molhado, e auscultou-o escrupulosamente. Estavam todos silenciosos; o médico ergueu a cabeça, acenou de novo com ela, e delicadamente, com a ponta dos dedos, cerrou os olhos azuis do cadáver, que haviam ficado muito abertos.
— Não me assustais, não me assustais! — repetia o doido, escarrando para o chão.
— E agora? — perguntou o chefe.
— Agora é conduzi-lo para a casa mortuária.
— Conduzam o cadáver para a casa mortuária — ordenou o chefe. — E tu vem à secretaria assinar o auto — disse dirigindo-se ao soldado, que se conservava ainda de pé, de guarda ao que lhe haviam confiado.
O cadáver foi conduzido para o rés do chão por quatro polícias. Nekludov preparava-se para o seguir quando o doido o interpelou.
— Não está de acordo com eles, não é verdade? Então dê cá um cigarro!
Nekludov deu-lhe o cigarro; o doido remexendo incessantemente com as feições, principiou a contar-lhe as perseguições de que era alvo.
— São todos contra mim! E por intermédio dos seus médiuns atormentam-me dia e noite!
— Queira desculpar-me — disse Nekludov sem aguardar o fim da narração, pois desejava ver o destino que davam ao cadáver.
Os polícias tinham atravessado o pátio e estavam parados em frente de uma porta; Nekludov preparava-se para os seguir quando foi impedido pelo chefe.
— Que deseja?
— Nada! — respondeu Nekludov.
— Então se não quer nada, queira retirar-se.
Nekludov saiu e dirigiu-se para o seu carro. O cocheiro dormia na almofada e Nekludov acordando-o, mandou-o seguir para a estação.
Mal haviam andado cem passos quando encontraram uma telega, na qual jazia inanimado outro prisioneiro, a quem um soldado acompanhava. Nekludov fez parar os dois carros e pôde examiná-lo com vagar,
Estava estendido de costas, a cabeça rapada e descoberta, pois o barrete tinha deslizado para o rosto, e a cada volta das rodas o corpo era sacudido de um para o outro lado. Ao lado da carroça, caminhava um cocheiro calçando fortes botas e segurando nas rédeas. Na retaguarda seguia um polícia. Nekludov mandou parar o seu carro.
— Excelência, repare o que eles fizeram! — disse o cocheiro.
Nekludov apeou-se, seguiu a carroça e entrou novamente no posto policial. Um homem alto e ossudo, um chefe de bombeiros, estava no pátio, em pé e com as mãos nos bolsos, examinando com olhar severo um cavalo bem alimentado que um bombeiro passeava de um para outro lado. O cavalo coxeava de uma das mãos.
No pátio estava também um chefe da polícia que, quando viu entrar a carroça, se dirigiu ao soldado que a acompanhava.
— De onde vêm? — perguntou-lhe, acenando com a cabeça, pouco satisfeito.
— Da rua Corbatooskaia — respondeu o polícia.
— É algum preso? — perguntou o chefe dos bombeiros.
— Hoje já é o segundo!
— Parece, na verdade, que tudo foi mal preparado. É bom certo que o tempo vai medonho! — disse o chefe dos bombeiros.
E dirigindo se ao bombeiro que passeava o cavalo, gritou-lhe:
— Prende-o na divisória do canto! E deixa estar, cão dos diabos, que hei de ensinar-te a molestar cavalos que valem dez vezes mais do que tu!
E entretanto o morto era retirado da carroça e conduzido para a enfermaria. Nekludov seguia-o meio hipnotizado.
— O que é que deseja? — perguntou lhe um polícia. Nekludov não respondeu e entrou na enfermaria.
Sentado na cama o louco fumava sofregamente o cigarro que Nekludov lhe dera.
— Então voltou? — disse rindo-se. Mas, quando viu o cadáver fez uma careta e murmurou: — Mais! Ainda mais? Já estou farto! Ou serei alguma criança?
E voltava-se para Nekludov sorrindo interrogativamente.
Contrastavam com a franzina envergadura do outro falecido o belo corpo e as belas feições deste morto. Era um homem no vigor da vida: os lábios já azulados eram assombreados por fino bigode e sorriam; e no crânio barbeado nascia a testa levemente arqueada e enérgica.
As orelhas eram do mais puro desenho e o rosto exprimia tranquilidade, austeridade e bondade. Percebia-se que preciosas qualidades de alta vida moral, haviam sido destruídas neste homem. As fortes mãos e os pés agrilhoados, o conjunto harmónico do corpo musculoso, provavam bem quão vigoroso tinha sido aquela criatura humana. E morrera, fora assassinado, e não só não era lastimado como homem, como nem sequer era notada a falta que produziria como admirável instrumento de trabalho, sacrificado vãmente!
Nekludov assim o compreendeu, surpreendendo no olhar dos que o acompanhavam o sentimento provocado por esta morte, que tanto incómodo lhes causava.
Afinal chegou o médico que se tinha mandado procurar, e com ele entrou também um comissário de polícia. O médico era um homem magro e alto, vestindo uma leve roupa de alpaca. O comissário em contraste, era baixo, gordo, de rosto rechonchudo, que ele ainda mais alargava com o hábito de encher a boca com ar, que lentamente ia expelindo. O médico sentou-se na cama junto do morto, tomou-lhe o pulso, auscultou-o, colocando o ouvido sobre o coração e erguendo-se e esticando as calças, disse:
— Não pode estar mais morto!
O comissário aspirou um pouco de ar e expeliu-o compassadamente.
— A que prisão pertencia? — perguntou ao soldado.
O soldado respondeu-lhe e chamou-lhe a atenção para as grilhetas que pendiam dos pés do morto.
— Vou mandar tirá-las — disse o comissário. E enchendo a boca com ar saiu.
— Mas como acontece um caso destes? — perguntou Nekludov ao médico.
Este fitou-o através das lunetas.
— Como acontece? Quer então saber porque é que eles morrem de insolação? É bem simples! Esta gente passa todo um inverno encerrado, sem fazer exercício nem receber luz e no verão seguinte, numa bela manhã, obrigam-nos a caminhar apertados uns contra os outros, sob um sol incandescente. Impossível deixar de haver casos destes!
— Mas porque é que os obrigam a sair?
— Essa pergunta deve ser feita a quem manda e não a quem executa. Posso saber a quem tenho a honra de estar falando?
— Sou um estrangeiro.
— Muito boas tardes! Não posso perder tempo! — E o médico mal humorado, com a perda do tempo, deixou Nekludov e encaminhou-se para os leitos.
— Então que tal vai isso? — perguntou a um dos doentes com a cabeça ligada.
Nekludov tornou a descer as escadas, passou pela sentinela de capacete de metal, e subiu para o carro, cujo cocheiro de novo tinha adormecido.
Tristemente, mandou caminhar para a estação.
IV
Quando Nekludov chegou à estação, encontrou já toda a leva acomodada em carruagens de janelas gradeadas. No cais de embarque estavam várias pessoas que se despediam de parentes e amigos, esperando que lhes fosse facultado aproximarem-se das carruagens.
Todos os empregados que tinham acompanhado a leva, andavam de um para outro lado, com aspeto de preocupados. É que durante o trajeto através da cidade tinham sucumbido por insolação, cinco degredados: três tinham morrido no caminho e os restantes tinham falecido já na estação. O que preocupava, porém, os empregados, não era que esses cinco homens confiados aos seus cuidados tivessem morrido, quando com leve precaução teriam sido poupados à morte: o que mais os inquietava era terem de cumprir as formalidades que os regulamentos exigiam, entregar os cadáveres às respetivas autoridades, apartar os objetos e as roupas que lhes pertenciam e dar baixa nos seus nomes na lista dos que partiam para Novgorod, tudo isto era excessivamente enfadonho, principalmente num dia tão quente.
Era este o motivo que os tornava preocupados, enquanto andavam da direita para a esquerda, e fora isto que os levara também a proibir as conversas junto das carruagens, enquanto tudo não estivesse regularizado. Nekludov pôde, porém, obter a permissão desejada, gratificando um dos empregados, que lhe pediu que não se demorasse muito tempo para não ser visto pelo comandante.
O comboio compunha-se de dezoito carruagens, que com exceção da reserva para oficiais e empregados, trasbordavam de prisioneiros. Nekludov ao passar junto das janelas das carruagens ouvia além do tinido dos grilhões, questões a conversas onde abundavam os grosseiros palavrões; em nenhuma, porém, se falava dos companheiros que tinham ficado pelo caminho. Questionava-se apenas por causa dos sacos, dos lugares, ou para arranjar água para beber.
Nekludov por curiosidade olhou para o interior de uma das carruagens. Na coxia central dois empregados tentavam desapertar as algemas, um abrindo os cadeados e outros tirando-os.
As mulheres estavam nas carruagens atrás das reservadas para os homens.
Logo na primeira, Nekludov ouviu uma voz gemendo monotonamente: «Oh meu Deus! Oh meu Deus!»
O empregado com quem Nekludov falara, dissera-lhe que a Maslova devia estar na terceira carruagem. Nekludov aproximou o rosto do gradeamento e sentiu vir de dentro uma baforada de ar quente tresandando a transpiração, que o obrigou a voltar a cabeça ao mesmo tempo atordoado pela gritaria produzida por todas aquelas vozes femininas. Todos os lugares estavam tomados por mulheres em cabelo, de blusas desapertadas e rostos congestionados inundados de suor, falando, vociferando e gesticulando. O rosto de Nekludov encostado às grades acabou por atrair-lhes as atenções, e as que mais próximas se achavam da janela calaram-se e chamaram pela Maslova, que estava do outro lado da carruagem sentada junto da loura e sorridente Fedósia.
Maslova logo que notou Nekludov levantou-se, atou à cabeça o lenço que desapertara, e com um sorriso nas feições rosadas e animadas aproximou-se da janela deitando as mãos ao gradeamento.
— Isto é que é calor! — disse alegremente.
— Entregaram-lhe as encomendas?
— Sim, muito obrigada.
— Não será necessário mais nada? — perguntou Nekludov, incomodado pelo calor que se armazenava na carruagem.
— Obrigada, não necessito de mais nada.
— Pede-lhe que veja se arranja a que nos deem de beber — murmurou timidamente Fedósia.
— Se fosse possível beber qualquer coisa! — repetiu a Maslova.
— Então não lhes deram de beber?
— Deram-nos uma cântara cheia mas bebemo-la toda!
— Vou falar com o comandante — disse Nekludov. — E agora até Nijni-Novgorod, pois só aí nos tornaremos a ver.
— Então também vai? — exclamou a Maslova, fingindo não saber nada. E fitou Nekludov com profunda alegria.
— Vou! Parto no comboio imediato.
Maslova não respondeu, suspirou e baixou o olhar.
— É verdade, fidalgo, que morressem doze homens no caminho? — perguntou uma presa, mulher velha, com cara acentuadamente aldeã.
— Não ouvi falar em doze, mas vi eu próprio dois — respondeu Nekludov.
— Pois dizem que são doze! E não se faz nada a esses carrascos?
— E aqui, entre as mulheres houve algum acidente? — perguntou Nekludov.
— Não, aqui não houve nada. Nós somos mais fortes! — disse rindo outra presa. — Só a uma é que se lhe meteu na cabeça aliviar-se aqui. Ouve-a? — acrescentou, apontando para um dos cantos da carruagem.
— Perguntou-me se eu precisava de alguma coisa — disse a Maslova tentando conservar o alegre sorriso que se lhe esboçava nos lábios — não se importe em arranjar que nos deem de beber mas veja se consegue que esta desgraçada fique no hospital, aliás morrerá pelo caminho!
— Vou tentar — respondeu Nekludov. E afastou-se da carruagem dando lugar a Tarass, o marido da Fedósia, que conseguira por fim licença para lhe falar. Durante muito tempo percorreu o cais em todos os sentidos sem encontrar a quem se dirigisse! Quanto mais se aproximava a hora da partida mais redobrava a atividade de todos os empregados. Uns tratavam de colocar os prisioneiros, outros compravam provisões para a viagem, outros cuidavam das bagagens ou acompanhavam as esposas dos oficiais que partiam com os maridos. Nenhum tinha vagar para ouvir Nekludov.
Dera já o segundo sinal de partida quando Nekludov conseguiu encontrar o comandante. O gordo oficial enxugava o suor que lhe escorria da testa e repreendia um ajudante.
— Que deseja? — perguntou a Nekludov.
— Está uma mulher numa carruagem com as dores do parto, pensei que...
— Está com as dores? Ela lá se arranjará! — respondeu o militar correndo com as pernas curtas para a sua carruagem.
Soou uma última badalada. Respondeu-lhe o assobio do condutor do comboio e o silvo da máquina. Do cais e das carruagens soltaram-se exclamações de despedidas, gritos de adeuses. Nekludov viu passar uma atrás das outras as enormes carruagens às janelas das quais se apinhavam os prisioneiros de cabeças rapadas. Em seguida passou a primeira carruagem das mulheres e na terceira, junto da janela conservava-se ainda a Maslova. Quando viu Nekludov trocou com ele um olhar e um sorriso que de novo o comoveram.
Capítulo 10
I
O comboio no qual devia seguir Nekludov não partia antes de duas horas. Para utilizar este intervalo, pensou em voltar ao hotel onde se alojara sua irmã; as impressões que durante toda a manhã sentira, tinham-no comovido e fatigado a tal ponto que se não sentia com forças para se arrastar até lá. Entrou na sala de espera, sentou-se num sofá e encostando a cabeça à almofada, adormeceu.
Dormia havia muito tempo quando foi despertado por um arrastar de cadeiras. Ergueu-se sobressaltadamente, recordou-se do sítio onde se encontrava e reconstruíram-se-lhe na mente as cenas que presenciaria pela manhã. Eram o cortejo dos degredados, os dois prisioneiros falecidos no trajeto e a partida do comboio com as carruagens de janelas gradeadas, atulhados de prisioneiros; e por último, mais nitidamente dolorosa, reaparecia-lhe a Maslova com o rosto encostado ao gradeamento sorrindo lhe tristemente. Agora, porém, o cenário que tinha na sua frente era diverso: uma mesa com garrafas, plantas, candelabros e flores, na extremidade da qual dormitavam alguns criados encasacados e, um pouco retirado, um balcão também repleto de garrafas e bebidas, ao qual estavam viajantes comprando provisões.
Quando Nekludov acabou de adquirir consciência de si mesmo, notou que todos os presentes observavam curiosamente o que se estava passando à porta de entrada. Olhando viu também um grupo de indivíduos que conduzia numa cadeira uma senhora muito envolvida em agasalhos.
Um dos primeiros condutores era um lacaio, cujas feições não eram estranhas a Nekludov, assim como um porteiro uniformizado e de boné agaloado que vinha atrás da cadeira. Junto a esta vinha uma criada grave muito elegante, com uma mala de mão, um estojo de couro e vários guarda-sóis. Do outro lado da cadeira Nekludov reconheceu o velho príncipe Korchaguine, de lábios sensuais e pescoço apoplético, em trajes de viagem. Ao seu lado vinham Missy e o irmão e um diplomata rapaz novo, que Nekludov conhecia muito bem, o conde d’Ostem, com o pescoço muito alongado, maçã de Adão muito saliente, e rosto sempre sorridente. O diplomata conversava com Missy, que parecia muito interessada e divertida com os seus gracejos. Por último Nekludov viu que o médico também os acompanhava, como de costume mal humorado e fumando cigarros.
O imponente cortejo atravessou a sala em direção ao gabinete reservado para as senhoras, atraindo na sua passagem uma respeitosa curiosidade. Pouco depois o príncipe, seguido logo por Missy e Ostem, voltou para a sala e sentando-se à mesa pediu ao criado refrescos e de comer. Missy ainda não se tinha sentado quando reconheceu à porta alguém a quem se dirigia pressurosa.
Era Natália Ragojinski. Vinha na companhia de Agripina Petrovna, procurando alguém com o olhar, por toda a parte. Viu seu irmão e Missy ao mesmo tempo e enquanto cumprimentava a jovem princesa disse para Nekludov, que se aproximara:
— Enfim, sempre te encontrei! Principiava a desanimar!
Nekludov cumprimentou Missy e Ostem, abraçou sua irmã e entabulou-se conversação. Missy contou que tinha havido um incêndio na casa da propriedade onde passavam o verão, o que os obrigava a irem durante algumas semanas para casa de uma parente, sua tia, que residia perto de Nijni-Novgorod. Ostem aproveitou a ocasião para contar alegres histórias sobre incêndios.
Nekludov não lhe prestou atenção e dirigiu-se a sua irmã.
— Estou bem satisfeito por teres vindo!
— Há duas horas que eu e Agripina Petrovna exploramos a cidade toda em tua procura sem te encontrar.
E, com um gesto de cabeça, indicou-lhe a governanta que de waterproof e chapéu de flores, se conservava modestamente afastada, para não estorvar a conversa.
— Imagina que adormeci aqui, naquele sofá! Estou contentíssimo por teres vindo! — repetiu. — Tinha principiado uma carta para ti!
— Sim? — perguntou ela um pouco assustada. — A respeito de quê?
Missy e o seu novo adorador, percebendo que se entabulava uma conversa íntima entre os dois irmãos, afastaram-se. Nekludov e sua irmã aproximaram-se de um sofá, de veludo verde colocado entre as janelas, sobre o qual estava uma mala pequena, um rolo de viagem, uma chapeleira e sentaram-se.
— Ontem depois de vos haver deixado tive tenções de voltar atrás e pedir desculpa a teu marido — disse Nekludov; — se o não fiz é porque receei que ele interpretasse mal esse passo. Reconheço que fui violento e mau para com ele, o que agora me penaliza.
— Eu bem sabia que intencionalmente eras incapaz de ser mau! — disse Natália. — Bem sabes que...
E antes de poder terminar a frase, os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas enquanto apertava nervosamente a mão de seu irmão. Nekludov compreendeu o que ela queria dizer: que amando seu marido mais do que ninguém, sofria com as dissidências entre ele e seu irmão, a quem também era afeiçoadíssima.
— Obrigado, Natália, muito obrigado! Ah! se soubesses o que hoje presenciei! — disse, recordando-se de repente dos prisioneiros mortos. — Dois presos quase que assassinados!
— Assassinados! Como? Por quem?
— Sim, assassinados. Obrigaram-nos a marchar com sol a descoberto sobre eles, e dois morreram de insolação.
— Impossível. Mas quando foi isso? Hoje?
— Sim, ainda não há muito. Vi os cadáveres.
— Mas a quem imputar essas mortes? — perguntou Natália.
— A quem? Aos que os obrigaram a andar com este calor! — respondeu Nekludov, nitidamente percebendo que sua irmã partilhava outros modos de ver, diferentes dos seus.
— Pois é possível, meu Deus! — exclamou Agripina Petrovna que ouvira o final da conversa.
— E nós nem sequer temos a menor ideia dos sofrimentos infligidos àqueles desgraçados, quando era nosso dever informarmo-nos! — continuava Nekludov fixando involuntariamente o olhar no velho príncipe Korchaguine que, de guardanapo ao pescoço, se empanturrava de fiambre.
— Nekludov! — gritou-lhe ele. — Não quer tomar um refresco? Para quem viaja é magnífico!
Nekludov agradeceu com um aceno de cabeça.
— E que vais então fazer? — continuou Natália.
— O que puder. Sinto que devo fazer qualquer coisa. E o que as minhas forças me permitirem fazer, fá-lo-ei.
— Sim, compreendo-te. E com aqueles está tudo terminado? — disse Natália, referindo-se aos Korchaguine.
— Tudo e ao que parece sem saudades de nenhum de nós.
— Lastimo-o! Simpatizo tanto com Missy! Mas enfim nada tenho a dizer. Falaste, porém, em contrair novos encargos? — perguntou Natália com certa timidez. — Porque partes?
— Parto porque é esse o meu dever! — respondeu Nekludov secamente como para pôr ponto na conversa.
Esta frieza e concentração para com sua irmã envergonhara-o e no seu íntimo censurou-se por tal conduta. «Porque não lhe direi tudo que penso?», dizia consigo. «Bem sei que Agripina Petrovna está a ouvir-me, mas que importa?»
— Referes-te à intenção que formei de casar-me com Katucha? — exclamou com voz vibrante. — Sim, esse projeto nasceu no primeiro dia em que tornei a vê-la e desde então apenas se tem enraizado; ela porém, e recusou e recusa aceitar o meu sacrifício, preferindo continuar a sacrificar-se. E eu não posso consentir que ela continue a sacrificar-se, o que nas suas condições, significa muito. Parto, pois, com ela; para onde for irei e procurarei com todas as minhas forças ajudá-la e suavizar-lhe a dura sorte.
Natália não respondeu. Só Agripina Petrovna fitando alternadamente Nekludov e a irmã, acenou com a cabeça desoladoramente.
Neste momento abriu-se a porta do gabinete das senhoras e reapareceu o cortejo.
Filipe, o belo lacaio, e o guarda-portão de boné agaloado conduziam a velha princesa para a carruagem.
A meio da sala a velha senhora mandou parar, e chamando Nekludov com um sinal, estendeu-lhe a branca mão carregada de anéis, com certo receio, como que a adverti-lo que não apertasse muito.
— Quelle épouvantable chaleur! — disse. — É-me insuportável! Ce climat me tue! — E em seguida a uma ligeira conversa a respeito dos horrores do clima russo, mandou continuar a marcha.
— Irá visitar-nos ao campo, não é assim? — disse, voltando para Nekludov o comprido rosto e sorrindo-lhe para exibir os dentes postiços.
A princesa e o séquito tomaram para a direita do cais onde estacionavam as primeiras classes e Nekludov encontrando Tarass, o marido da Fedósia que com o saco aos ombros se dirigia para o lado oposto, acompanhou-o. Um carregador seguia-os mais atrás com a bagagem de Nekludov.
— Aqui tens o meu companheiro! — disse Nekludov a sua irmã, mostrando-lhe Tarass, de quem já lhe tinha contado a história.
— Pois quê? Segues viagem neste compartimento? — perguntou Natália vendo o irmão parar em frente de uma carruagem de terceira classe e mandar o carregador colocar-lhe dentro as malas.
— Certamente! É-me muito mais agradável e quero acompanhar aquele bom rapaz — respondeu. — Ouve, Natália, tenho ainda que te dizer — disse depois de um momento de silêncio. — Não fiz doação aos aldeões da propriedade Kouzminskoie; se eu morrer, pois, teus filhos herdarão.
— Dimitri, por favor, poupa-me essas conversas! — disse Natália.
— E ainda que me case... sim, com certeza... sei que não terei filhos...
— Dimitri, por favor — repetiu Natália.
Nekludov, porém, adivinhou-lhe no olhar o prazer que lhe causara o que lhe dissera.
Na outra extremidade do comboio formara-se um grupo de amigos e curiosos, em frente da carruagem ocupada pelos Korchaguine. A maioria dos passageiros estava já instalada nos seus respetivos lugares e só os retardatários atravessavam os cais a largas passadas; os condutores, uma a uma, iam fechando as portas.
Nekludov subiu para a carruagem, conservando-se porém na plataforma, e Natália, em companhia da governanta, ficou no cais, comprometida pela sua toilette e pelo seu chapéu novo, empregando esforços a fim de arranjar assunto para conversar e sem o conseguir. Nem sequer lhe podia pedir que lhe escrevesse, pois que de há muito cessara entre os dois correspondência regular.
As poucas palavras que tinham trocado sobre dinheiro e herança tinham acabado de destruir o que de fraternal existira até aí nas suas relações. Eram, de futuro, dois seres estranhos um ao outro.
Natália Ragojinski sentiu, pois, grande alívio quando o comboio principiou a mover-se e que com um sorriso nos lábios e um aceno de cabeça pronunciou o «adeus, Dimitri, adeus!» E ainda o comboio não desaparecera de todo, só já pensava na forma como narraria a seu marido os mínimos detalhes da conversa.
Nekludov ainda que se inspirasse em bons sentimentos nas relações com sua irmã, sentira-se também constrangido e desejara bem o momento da separação. Percebia claramente que nada subsistia da Natália doutros tempos e que agora sua irmã era apenas a escrava desse homem de tez queimada que o enojava. E percebera igualmente pela súbita alegria que lhe surpreendera no rosto, que apenas a interessava aquilo que dizia respeito a seu marido e no caso presente a renúncia às propriedades e a herança provável. E uma profunda tristeza apoderou-se Nekludov.
II
O calor na grande carruagem de terceira classe, exposta ao sol desde a manhã, era tão intenso que Nekludov apenas entrou preferiu voltar para a plataforma e conservar-se em pé.
E aqui também se abafava; só quando o comboio, depois de ter atravessado por entre a casaria se lançou pelos campos fora é que Nekludov pôde respirar livremente.
«Assassinos, assassinos!», dizia para si, recordando a conversa que tivera com sua irmã a respeito dos prisioneiros. E com límpida perceção e intensa precisão revia as belas feições do segundo prisioneiro falecido, os finos lábios sorridentes, a fronte enérgica e a pequena orelha tão puramente debuxada, junto do crânio semibarbeado.
E como numa alucinação, sentia-se perseguido por esta impressão.
— Mas o que torna o caso mais horroroso — dizia para si Nekludov — é que aqueles infortunados foram assassinados sem que seja possível imputar a sua morte a alguém.
«Maslinnikov foi, com certeza, quem deu as ordens para que fossem conduzidos à estação. Mas Maslinnikov limitou-se a cumprir uma formalidade; trouxeram-lhe a assinar um ofício redigido numa das repartições, e o imbecil, sem se inquietar com as consequências, com uma penada rabiscou a sua bela e floreada assinatura; nada deste mundo o convenceria que se tornara responsável pelos acidentes que mais tarde aconteceram. Muito menos se pode exigir responsabilidades do médico da prisão, que, antes da partida, examinou escrupulosamente todos os prisioneiros. É um funcionário que cumpriu a sua obrigação conscienciosamente, tanto que obrigou os doentes a irem de carro; pode por acaso exigir-se dele que tivesse saído da hora marcada para a partida da leva, para então se opor a que os prisioneiros caminhassem em filas cerradas com tal calor? E o diretor? Mas o diretor apenas se limitou a executar as ordens dos seus superiores; estes ordenaram-lhe que numa certa época expedisse um certo número de degredados, tantos homens e tantas mulheres; e tantos homens e tantas mulheres tinham partido. Era igualmente impossível acusar o comandante da escolta; recebera instruções para conduzir de um sítio para outro um determinado número de prisioneiros, e tratara de se desempenhar desta incumbência o melhor que pudera. Podia lá prever que dois homens robustos e válidos não suportariam a fadiga e ficariam na estrada? Ninguém é culpado, e o certo é que os dois degredados foram assassinados pelos mesmos homens que não têm responsabilidade da sua morte!»
«E a origem de tudo isto», prosseguiu Nekludov consigo, «é todos esses homens, governadores, diretores, juízes e polícias, acreditarem que há momentos na vida em que as relações diretas de homem para homem não são obrigatórias. Todos esses homens, desde Maslinnikov até ao comandante da escolta, se não fossem funcionários ter-se-iam lembrado vinte vezes que era impossível fazer seguir a leva com tal calor; teriam feito parar o cortejo no caminho, vinte ou mais vezes e se vissem que um dos presos principiava a sentir-se mal, com falta de ar, tê-lo-iam feito sair das fileiras para o sentar à sombra, dando-lhe uma pouca de água, e se um acidente se produzisse manifestariam compaixão. Mas nada disso fizeram e até impediram que outros o fizessem, porque não viam na sua frente homens com direitos a sentimentos espontâneos, mas apenas o serviço, isto é, o desempenho de funções que os dispensavam de sentimentos de fraternidade.»
Nekludov estava tão embebido nestas reflexões que não notou a mudança de tempo que se preparava. Grandes e espessas nuvens encobriam o sol e dos limites do horizonte, no poente, avançava lentamente uma outra nuvem pardacenta, transformando-se em chuva compacta que caía nos campos e nos bosques. A atmosfera embebera-se rapidamente de humidade e de vez em quando o clarão de um relâmpago rasgava a nuvem, enquanto o longínquo ribombar do trovão se confundia com o ruído das carruagens em movimento. A nuvem aproximava-se e já grossas gotas de chuva, tocadas pelo vento, manchavam a plataforma da carruagem e o casaco de Nekludov. Este passou para o outro lado da plataforma e aspirando fortemente o ar refrescado pela chuva e o aroma que a terra ávida exalava ao recebê-la, examinou os jardins, os bosques, os campos amarelos dos centeios, os da aveia ainda verdes, e as manchas escuras dos batatais. Parecia que havia sido tudo envernizado: o verde tornara-se mais verde, o amarelo mais amarelo, o negro mais negro.
— Mais! Mais! — exclamou Nekludov involuntariamente, partilhando da alegria das coisas ao contacto da chuva.
O aguaceiro engrossou, com efeito, um pouco mais, mas foi de curta duração. A nuvem pardacenta, depois de haver desaguado, correu, impelida pelo vento, para longe, e só a raros intervalos caíram algumas gotas.
O sol reapareceu e de novo brilhou tudo com duplo fulgor; nos confins do horizonte, a poente, formou-se o arco-íris com a cor violeta muito pronunciada.
«Em que pensava eu ainda agora?», interrogou-se Nekludov quando estas mudanças atmosféricas terminaram e quando o comboio principiou a atravessar uma alta trincheira que não permitia olhar para os campos.
«Ah, sim, pensava no que é que transforma todos esses funcionários, diretores, comandantes, etc., homens na maioria bons e inofensivos, em seres cruéis e maldosos!»
E Nekludov recordou a indiferença com que Maslinnikov escutara a narração do que se passava na prisão, a severidade do diretor da prisão e a desumanidade do comandante da escolta, que deixava que uma mulher de parto sofresse, sem auxílio algum.
«Todos esses homens são, evidentemente, tão impenetráveis a sentimentos de humanidade como o são à chuva as pedras que sustentam esta trincheira, dizia consigo Nekludov, vendo perpassar rápidas as pedras que revestiam a trincheira, por onde a chuva escorria até aos rails. É talvez indispensável cortar trincheiras e revesti-las de pedra, mas penaliza ver a terra privada da chuva por que anseia, quando podia, com a outra, produzir trigo, erva, arbustos e árvores! Assim é com os homens! O mal todo tem a sua origem em que os homens imaginam que existem determinadas situações, nas quais se pode proceder sem amor para com os seus semelhantes, quando tais situações não existem. Pode-se proceder sem amor para com as coisas; sem amor pode-se rachar lenha, malhar ferro ou coser tijolos, mas nas relações de homem para homem, o amor é tão indispensável como é indispensável a prudência quando se lida com abelhas. É a natureza que assim o quer, pois que o amor é a lei fundamental dessa mesma natureza. Quando se lida com abelhas, se pusermos de parte a prudência, prejudicar-nos-emos e prejudicaremos as abelhas. Do mesmo modo não podemos pôr de parte o amor quando tivermos de lidar com os homens, pois que o amor recíproco é o único fundamento racional da vida humana. É verdade que não é possível obrigar ninguém a amar como se pode obrigar a trabalhar; não se segue, porém, que se deva lidar com os homens sem amor, principalmente quando temos necessidade dos nossos semelhantes. Aquele que não sente amor pelos seus semelhantes que trate de si, das coisas inanimadas ou do que mais lhe agrade exceto dos homens! Assim como só quando se sente apetite é que se pode comer sem receio de perturbações, do mesmo modo só quando sentirmos o amor, devemos ocupar-nos dos homens. De outro modo é melhor estar sossegado. Procede nas tuas relações com os homens sem amor, como ontem fizeste com teu cunhado, e não haverá limites para o mal que a tua crueldade fará brotar. Sim! sim! É esta a verdade!», repetia Nekludov consigo, satisfeito pela frescura que gozava depois do asfixiante calor do dia que o acabrunhara e por ter caminhado mais um passo para a solução do problema moral que o preocupava.
Capítulo 11
I
A carruagem em que seguia Nekludov estava quase repleta. Além de alguns criados, artistas, operários de fábrica, marchantes, um ou outro judeu e mulheres de operários, notavam-se um soldado e uma dama com sua filha. A mãe, com grandes pulseiras nos pulsos nus, fazia-se acompanhar de um indivíduo de feições duras com aspeto de rico burguês.
Toda esta gente que à partida se remexia e agitava, tratando de colocar-se à vontade, o melhor que cada qual pudesse, conservava-se agora sentada tranquilamente. Uns comiam, outros fumavam ou conversavam animadamente com o seu vizinho.
Tarass, o marido de Fedósia, sentara-se do lado direito, com um lugar reservado na sua frente para Nekludov.
As suas feições traduziam uma íntima alegria e conversava animadamente com um aldeão ao seu lado, vestindo uma grande camisola e que era, como Nekludov mais tarde o soube, um jardineiro que regressava de uma licença. Nekludov preparava-se para ocupar o seu lugar quando, ao passar pela passagem central da carruagem, notou um velho de barba branca que conversava com uma rapariga vestida de aldeã. Junto desta estava uma pequenita de sete anos, com blusa nova e duas tranças de cabelo, tão claras que pareciam brancas e que balouçando as pernas ainda curtas para chegarem ao chão, remexia, incessantemente, com os lábios, mastigando sementes.
Nekludov parou um momento em frente deste grupo e o velho, notando-o, puxou pelas extremidades da blusa que se estendiam pelo banco e em voz convidativa disse-lhe:
— Sente-se, tem aqui lugar!
Nekludov agradeceu e sentou-se junto dele. A aldeã, que se calara por momentos, recomeçou a contar como seu marido, que vivia na cidade, a recebera durante as semanas que fora passar em sua companhia.
— Cheguei no sábado de Aleluia e agora volto para a aldeia — dizia. — No Natal, se Deus quiser, tornar-nos-emos a ver!
— Bom é que assim seja! — disse o velho voltando-se para Nekludov.
— É bom que se vejam de vez em quando porque o rapaz é novo e na cidade depressa lhe andaria a cabeça a roda.
— Paizinho, meu marido não é desses! Nunca fará uma tolice! É inocente e bom como uma rapariga. Quanto ganha, quanto manda para a terra. Se tivesse visto a felicidade que se apoderou dele quando viu a sua filha!
A rapariguita, que escutava a conversa agitando sempre as pernas e quebrando sementes, fitou Nekludov e o velho, com os seus tranquilos olhos azuis, como para confirmar as palavras da mãe.
— Se tem juízo, Deus lho pagará! — disse o velho. — E daquilo não gosta? — acrescentou, mostrando com o olhar um par de operários sentados do outro lado. O marido, com a cabeça inclinada para trás, esvaziava a fortes goladas uma garrafa de vodka, enquanto a mulher esperava que ele terminasse, com o saco donde tirara a garrafa nas mãos.
— Não, o meu homem não bebe! — respondeu a aldeã, satisfeita por poder elogiar o marido. — Homens como ele, paizinho, não há muitos na terra! Mal imagina como é bondoso — disse ainda, dirigindo-se a Nekludov.
— Não pode ser melhor — respondeu o velho, que tinha a atenção presa pela cena que se passava no outro lado.
O operário, depois de beber, passara a garrafa à mulher que por sua vez se alegrou ao vê-la e principiou também a beber. O marido, percebendo que estavam a atrair a atenção de Nekludov e do velho, dirigiu-se-lhe:
— Então que há, senhores? É por estarmos a beber? Ninguém repara, contudo, como trabalhamos, mas todos têm olhos quando bebemos! De trabalho já tenho o bastante, minha mulher também, agora toca a beber! Lá o que os mais pensam dá-me pouco cuidado.
— Sim, assim é! — disse Nekludov, que não sabia o que responder.
— É como lhes digo! A mulher tem a cabeça segura, gosto dela e ela de mim! Não é assim, Mavra?
— Pega na garrafa, que já bebi — respondeu-lhe esta. — Que tolices estás tu a dizer?
— Ora aqui está como ela é! — continuou o operário. — Não vai a terra, mas quando começa a chiar é como um carro com cebo nos eixos! Não é verdade, Mavra?
Mavra encolheu os ombros, rindo grosseiramente.
— É como ela é! Não tem igual em firmeza de cabeça, mas não suporta a mordedura de uma pulga! Palavra que é verdade! Estais a imaginar que estou bêbedo! Sim! bebi-lhe um golito de mais, mas que se lhe há de fazer?
E estirando-se ao comprido, encostou a cabeça ao ombro da mulher e adormeceu.
Nekludov conservou-se ainda mais algum tempo junto do velho, que lhe quis contar a sua vida. Era um construtor de fogões que durante os cinquenta e três anos que exercera o seu ofício, tinha arranjado um sem número de fogões e que agora, desejando descansar, entregara o ofício aos filhos e ia para a terra visitar a família.
Nekludov escutou-lhe toda a narração e no fim levantou-se e dirigiu-se para o lugar que o marido da Fedósia lhe reservara.
— Então, «fidalgo», não quer sentar-se? Tira-se daí o saco para ficar mais à vontade! — disse o jardineiro, que estava em frente de Tarass, fixando em Nekludov um bom e sorridente olhar.
— Há muito lugar! E quanto mais apertados, melhor para conversar! — disse Tarass com voz adelgaçada enquanto erguia o seu enorme saco como se fosse uma pena e o colocava sob o banco.
Tarass principiou por confessar que não sabia falar sem ter bebido, pois era necessário beber o seu copázio para que as palavras lhe acudissem. E efetivamente, Tarass era muito concentrado, mas quando bebia — o que sucedia raras vezes — tornava-se tagarela. Então as palavras acudiam-lhe com vivacidade e elegância e tudo o que dizia vinha impregnado dessa encantadora afabilidade que os seus olhos azuis e o constante sorriso nos lábios exprimiam. Hoje era um desses dias, pois Tarass bebera em antes de principiar a viagem. A chegada de Nekludov tinha interrompido a narração, mas depois de colocar o saco sob o banco e cruzar as mãos grosseiras nos joelhos, continuou a contar ao jardineiro toda a história da sua mulher, detalhe por detalhe, sem esquecer porque é que fora condenada e porque é que ele a seguia para a Sibéria.
Nekludov, que não conhecia todos os detalhes da história, principiou a escutar e a sentir-se vivamente interessado.
Infelizmente Tarass ia já num ponto avançado da narração e Nekludov não pôde pedir-lhe que recomeçasse. Soube, porém, o que tinha acontecido quando, depois do envenenamento, os pais da Fedósia tinham descoberto o crime.
II
— O culpado de tudo fui eu, e por isso mesmo, para meu castigo, é que eu conto o caso! — disse Tarass para Nekludov. — O acaso deparou-me este bom homem e ligámos conversa! Pois o mal foi ter falado muito! Assim, irmão, como te disse, tudo depressa se descobriu. Então a velha chamou meu pai: «Vai buscar a justiça!», disse-lhe. Meu pai, porém, é uma criatura de Deus. «Espera, mulher! Melhor será acomodá-los!», disse-lhe ele. «A rapariga é ainda uma criança! Com certeza não soube o que fazia! É preciso mas é ter compaixão dela, é o que é! Verás como se arrepende.» Mas, isso sim! Minha mãe nada quis atender: «Ah, sim, o que tu queres», disse-lhe ela, «é que a tenhamos em casa para também nos envenenar como se fôssemos baratas!» Então, irmão, foi-se vestir e desandou em procura das autoridades. Estas pressentiam um bom arranjo e, zás!, prenderam a Fedósia!
— E tu, que fazias? — perguntou o jardineiro.
— Torcia-me, rebolava-me com dores e vomitava. Os intestinos estavam voltados para fora e eu nem sequer podia falar. O pai, entretanto, atrelou a égua à telega e, junto com a autoridade, levaram a Fedósia. E ela, irmão, mal a interrogaram, confessou tudo! Disse onde tinha arranjado o veneno e como cozinhara o pastelão! «Então para que fizeste tu isso?», perguntaram-lhe. «Para me ver livre dele! Antes quero ir para a Sibéria do que viver com ele!», respondeu. Queria dizer viver comigo! — esclareceu Tarass, sorrindo. — Enfim, confessou tudo. E como não restavam dúvidas, prisão! Vem o tempo das colheitas. A mãe estava só, velha e cansada, não podendo senão com a cozinha. Nós pusemo-nos a pensar. E se a pudéssemos afiançar? O pai foi falar a um da justiça. Nada. Foi a outro. Não quis ouvi-lo. Falou ainda a mais quatro. Nenhum o atendeu. Desanimávamos já quando demos com um empregado, finório que ele era! «Se me derem cinco rublos», disse-nos ele, «encarrego-me de a pôr em liberdade!» Afinal viemos às boas por três rublos. Pois, irmão, o que imaginas? Fez o que me prometeu! Eu ia melhorando: parti para ir buscá-la. Chego, deixo os cavalos na estalagem, levo a papelada e corro à prisão. «Que queres tu?», perguntam-me. «Quero minha mulher, que está aqui, na prisão!» «E o mandado de soltura, tem-lo?» Eu entreguei o que levava. Leram-no e depois disseram-me: «Entra, senta-te e espera!» Eu entrei, sentei-me e pouco depois um deles perguntou-me: «És tu que te chamas Vergounov?» «Sou eu!» «Bom, espera um pouco mais». Passou-se uma boa hora, abriu-se uma porta e, enfim, trouxeram-me Fedósia. «Bom», disse-lhe eu «vamos embora!» «Vieste a pé? «Não, tenho os cavalos na hospedaria!» Voltei à hospedaria, paguei a despesa, engatei e guardei o resto do feno na caixa do carro. Ela sentou-se, muito embrulhada no seu chale, sem dizer palavra. Eu nada dizia. Partimos. Já próximo de casa diz-me ela: «E tua mãe ainda vive?» «Ainda!», respondi-lhe. «E o pai também?» «Sim!» «Tarass», disse-me então, «perdoa-me! Nunca soube o que fazia!» E eu respondi-lhe: «Não falemos nisso, há muito que te perdoei!» E não trocámos mais palavra. Quando chegámos a casa, vejo-a deitar-se de joelhos diante de minha mãe. «Que Deus te perdoe!», disse-lhe a velha. Meu pai só lhe disse: «Olá, como vais tu? O que lá vai, lá vai! Agora é viver segundo a lei! Chegas a tempo de nos ajudar. O trigo, graças ao Senhor, está basto e bem espigado. Amanhã irás com Tarass para a ceifa!» Então, irmão, começou ela a trabalhar. Mas que trabalhar! Era inacreditável! Nós trazíamos arrendados três palmos de terra, e graças ao Senhor tanto o trigo como a aveia davam colheita abundante. Eu ceifava e ela atava. E tão desembaraçada no trabalho que era a admiração de toda a casa! Eu não sou peco a trabalhar, mas à noite, quando regressávamos a casa, sentia os dedos inchados e os braços fatigados; só pensava em descansar, mas ela! Ainda antes da ceia ia para o alpendre fazer abraçadeiras para o dia seguinte! Só vendo se acreditava!
— E era mais bondosa para contigo? — perguntou o jardineiro.
— Nem se fala nisso! Afeiçoou-se de tal modo a mim, que os dois éramos uma só alma! Todos os meus pensamentos eram os seus. Até a mãe, que é bem rude, dizia: «Fedósia está outra! Não parece a mesma!» Um dia em que íamos buscar feixes, perguntei-lhe: «Diz-me cá, Fedósia, como tiveste tu aquela ideia?»«Então que queres?», respondeu-me ela. «Meteu-se-me na cabeça que não podia viver contigo. Antes queria morrer!» «E agora?» «Agora, és tu a minha vida!»
E Tarass interrompeu-se, sorrindo alegremente.
— Um dia — continuou ele suspirando — ainda a ceifa não estava de todo terminada, quando ao chegar a casa encontrámos de novo as autoridades junto da porta. Vinham buscar Fedósia para ser julgada. E nós já nem nisso pensávamos!
— Com certeza que foi tentação do demo! — disse o jardineiro. — Um homem nunca se lembraria de deitar a perder a sua alma! Lá na nossa aldeia havia um rapaz...
Mas o jardineiro não pôde continuar porque o comboio principiou a diminuir de velocidade.
— Uma estação! — disse ele. — Toca a refrescar!
A conversa interrompeu-se. Nekludov saiu atrás de Tarass e do jardineiro, para estender as pernas andando de um para o outro lado na plataforma da estação, ainda toda molhada.
III
Na ocasião em que descia da carruagem, Nekludov notou a presença de várias equipagens luxuosas no pátio da estação, umas com três, outras com quatro cavalos engatados, que agitavam sonoramente as guizeiras; e quando se achou na plataforma de madeira da estação, viu que em frente de uma carruagem de primeira classe principiavam a aglomerar-se várias pessoas. A que mais sobressaía era uma idosa, corpulenta e alta senhora, de waterproof e chapéu enfeitado por grandes plumas; acompanhava-a um rapaz de pernas muito magras, em traje de ciclista, que segurava um enorme e bem alimentado cão, com uma luxuosa coleira. Atrás destes estavam, solícitos, um lacaio com agasalhos e guarda-chuvas, uma criada e um cocheiro.
Adivinhava-se que todo este grupo era composto de pessoas saudáveis, bem alimentadas e contentes da vida, o que exprimiam por uma extraordinária satisfação e confiança nas suas pessoas. Em redor deste grupo formou-se uma aglomeração maior, atraída pelo fausto que se exibia. Era o chefe da estação, de boné com vivos vermelhos, um soldado, uma aldeã que vendia pãezinhos, o telegrafista e alguns passageiros que tinham descido dos seus compartimentos.
Nekludov reconheceu logo o ciclista.
Era o irmão mais novo de Missy: a nutrida senhora que o acompanhava também lhe não era estranha: era a tia de Missy, para casa de quem os Korchaguine iam passar o verão. O condutor do comboio abriu a portinhola com toda deferência, e conservou-a segura enquanto Felipe, o lacaio e um empregado da estação, conduziam e desciam a velha princesa na sua cadeira de entrevada. As duas irmãs abraçaram-se e Nekludov pôde ainda ouvir frases trocadas em francês para saber se a princesa iria na caleche ou no coupé.
Por fim o séquito pôs se em marcha, as duas senhoras à frente e na cauda a criadagem carregada de guarda-chuvas, mantas e agasalhos.
Nekludov, a quem não agradava tornar a encontrar os Korchaguine e fazer novas despedidas, parou e encobriu-se com um poste telegráfico até o séquito sair da estação. À frente iam a velha princesa, seu filho, Missy e o médico; atrás, noutra fila, o príncipe conversava com sua cunhada. E como muitas vezes sucede, chegaram aos ouvidos de Nekludov fragmentos de frases em francês, uma das quais, sem ele saber porquê, fixou-se-lhe na memória com a entoação de voz que a exprimira, impressionando-o.
O príncipe falava de alguém a sua cunhada.
— Oh! Il est du grand monde, du vrai grand monde! — dizia com a sua sonora e jactanciosa voz, atravessando a porta de saída, saudado respeitosamente por uma dupla fila de empregados e carregadores.
Neste momento, na extremidade do cais apareceu um grupo de operários calçando tamancos e com sacolas aos ombros.
Em passo rápido dirigiram-se para a primeira carruagem, que encontraram, preparando-se para entrar; o condutor, porém, apareceu e impediu-os.
Os operários seguiram para a frente, um pouco confusos, atropelando-se, e subiram para outra carruagem; nesta parece que não havia lugar porque o condutor surgiu novamente, obrigando-os a descerem e injuriando-os. Então dirigiram-se para a terceira carruagem, aquela que Nekludov também ocupava. O condutor ainda queria obrigá-los a procurarem lugar noutra parte, mas Nekludov, que presenciara a cena, disse-lhes que dentro havia lugares em abundância e que podiam entrar. Eles assim fizeram e Nekludov seguiu-os.
Os operários entraram seguindo pela coxia central da carruagem, procuravam acomodar-se e instalar-se, quando o rico burguês que acompanhava as duas damas, considerando a companhia dos operários como uma afronta pessoal, se opôs à sua admissão, intimando-lhes a retirada. Os operários viraram costas, batendo com as sacolas pelas paredes e pelos bancos, preparando-se para sair. Percebia-se que se sentiam sinceramente culpados e que estavam prontos a irem de carruagem para carruagem até ao fim do mundo em procura de lugares. Eram ao todo uns vinte homens, uns velhos, outros adolescentes, todos de feições secas, queimadas pelo sol, e olhos encovados que exprimiam cansaço e resignação.
— Onde ides agora, súcia de bandalhos? Já que aqui estais, deixai-vos ficar! — gritou-lhes o condutor, da outra extremidade da carruagem.
— Voilà encore des nouvelles! — disse a mais nova das duas senhoras, convencida que atrairia a atenção de Nekludov com o seu elegante francês.
A outra senhora, a das pulseiras, fungava e tapava as narinas, fazendo caretas e trocando rápidas exclamações de enfado, por ter de viajar em companhia desses horrorosos mujiques que cheiravam mal. Os operários sentindo o alívio e alegria de quem escapa são e salvo de um terrível perigo, trataram de instalar-se, atirando para cima dos bancos, com um movimento dos ombros, os sacos que traziam.
O jardineiro, que viera àquela estação com Tarass, encontrara um amigo noutra carruagem, para onde se mudara, de forma que junto de Tarass havia três lugares vazios. Outros tantos operários deram-se pressa em ocupá-los, mas quando Nekludov chegou, o seu elegante vestuário perturbou-os, involuntariamente, ergueram-se para procurar outros lugares. Foi necessário que Nekludov insistisse e tornasse a insistir para obrigá-los a sentarem-se, e em vez de ocupar o seu lugar deixou-se ficar na passagem, encostado ao braço de um dos assentos.
IV
Um dos três operários, homem alto e magro, aparentando ter os seus cinquenta anos, ao sentar-se trocou um olhar desconfiado com o companheiro mais novo que se sentara na sua frente. Evidentemente ambos tinham ficado surpreendidos e inquietos de que Nekludov, em vez de os insultar, na sua qualidade de «fidalgo», lhes tivesse cedido o seu lugar.
E conjeturavam qual o mal que, por este facto, teriam de sofrer.
Quando, porém, Nekludov começou a faiar familiarmente com Tarass e eles perceberam que ninguém os incomodaria, tranquilizaram-se e um deles, o que estava junto de Tarass, mudou-se para o outro assento a fim de deixar lugar a Nekludov. O velho operário tomou lugar junto de Nekludov; a princípio sentiu-se deslocado, metendo debaixo do banco, tanto quanto podia, os pês calçados em grosseiros tamancos, para não incomodar o «fidalgo»; pouco a pouco, porém, foi ganhando ânimo e encetou conversa com Nekludov, que se tornou tão familiar, a ponto de lhe chamar a atenção para a importância das suas palavras, colocando-lhe sobre o joelho a sua grosseira e calejada mão.
Disse logo como se chamava, de que aldeia era e contou que regressava à terra, bem como os companheiros, depois de terem trabalhado durante dois meses e meio numa mina. À sua parte recebera agora dez rublos que com cinco, ganhos no mês passado, somavam quinze rublos; por este preço sujeitara-se a entrar todos os dias na água até aos joelhos, trabalhando nestas condições desde pela manhã até à noite.
— Quem não está habituado, sofre um bocado — disse — mas logo que se endurece termina o sofrimento. A princípio a alimentação não era grande coisa. Mas, afinal, tiveram pena de nós, a comida melhorou e o trabalho fazia-se com uma perna às costas. O operário tornara-se loquaz, e contou mais que trabalhava assim havia vinte anos e que sempre mandara tudo o que ganhava para casa, primeiro a seu pai, depois ao irmão mais velho e agora a um primo que olhava pela família e que lutava com dificuldades. Contudo, dos sessenta rublos que ganhava por ano, reservava dois ou três para as suas extravagâncias: tabaco e fósforos... E todos nós somos pecadores! Se aparece ocasião de se beber uma pinguita, sempre vai! — acrescentou, sorrindo familiarmente.
E não era só ele que mandava o dinheiro à família; os casados cujas mulheres viviam na aldeia, procediam todos assim. Naquele dia o mestre antes de os despedir pagara de beber a todos. A todos não, porque um morrera e outro ia muito doente Nekludov descobriu logo o doente sentado a um canto. Era um rapazola magro, pálido, de lábios azulados. Estava atacado de febres intermitentes, contraídas no trabalho com água pelos joelhos. Nekludov foi vê-lo e não querendo fatigá-lo com perguntas, pois o olhar com que o doente o recebeu traduzia tanto sofrimento, aconselhou o velho operário a ministrar-lhe quinino. Escreveu o nome num papel e deu-lho. Como quisesse também dar-lhe dinheiro, o operário recusou obstinadamente.
— Tenho visto muitos fidalgos — disse dirigindo-se a Tarass enquanto Nekludov se conservava voltado — mas como este nunca vi nenhum! Em vez de atormentar uma pessoa até lhe cede o seu lugar! Quer isto dizer, irmão, que há muitas espécies de «fidalgos»!
Nekludov, entretanto examinava os membros secos e musculosos destes homens, os seus grosseiros vestuários e rostos fatigados; sentia-se rodeado por uma humanidade desconhecida, com interesses, alegrias e sofrimentos sérios. Estava bem na presença da verdadeira vida humana.
— Le voici le grand monde, le vrai grand monde! — dizia a si mesmo, relembrando a frase francesa do príncipe Korchaguine e toda a miserável e mesquinha sociedade dos Korchaguine, com a vaidade dos seus interesses.
E mais profundamente que do nunca, Nekludov experimentava o alegre sentimento do viajante que descobre uma nova região fértil em frutos e flores.