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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RESTAURA-ME / Tahereh Mafi
RESTAURA-ME / Tahereh Mafi

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

 

 

 

De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

CONTINUA

Não acordo mais gritando. Não sinto náusea ao ver sangue. Não tremo antes de apertar o gatilho de uma arma.
Nunca mais pedirei desculpas por sobreviver.
E ainda assim...
Fico imediatamente assustada com o barulho de uma porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, dou meia-volta e, por força do hábito, descanso as mãos no punho de uma semiautomática no coldre preso à lateral do meu corpo.

– J, temos um sério problema.

Kenji me encara, olhos estreitados, mãos na cintura, camiseta justa no peito. Esse é o Kenji furioso. O Kenji preocupado. Já se passaram 16 dias desde que tomamos o Setor 45, desde que me coroei comandante suprema do Restabelecimento, e tudo tem permanecido em silêncio. Em um silêncio enervante. Todos os dias, acordo tomada em parte por terror, em parte por satisfação, ansiosamente aguardando os ataques inevitáveis das nações inimigas que desafiarão minha autoridade e declararão guerra contra nós. E agora parece que esse momento finalmente chegou. Então respiro fundo, estalo o pescoço e olho nos olhos de Kenji.

– Fale.

Ele aperta os lábios. Olha para o teto.

– Então... Certo... A primeira coisa que precisa saber é que o que aconteceu não foi culpa minha, entendeu? Eu só estava tentando ajudar.

Hesito. Franzo o cenho.

– O quê?

– Quer dizer, eu sabia que aquele idiota era extremamente dramático, mas o que aconteceu ultrapassou o nível do ridículo...

– Perdão, mas... o quê? – Afasto a mão da arma; sinto meu corpo se acalmar. – Kenji, do que você está falando? Não é da guerra?

– Guerra? O quê?! J, você não está presentado atenção? Seu namorado está tendo um acesso de raiva absurdo agora e você precisa acalmar aquele bundão antes que eu mesmo faça isso.

Irritada, solto o ar em meus pulmões.

– Você está falando sério? Outra vez esta bobagem? Pelo amor de Deus, Kenji! – Solto o coldre preso em minhas costas e jogo-o para trás, na cama. – O que foi que você fez desta vez?

– Está vendo? – Ele aponta para mim. – Está vendo? Por que você se apressa tanto em julgar, hein, princesa? Por que parte do pressuposto de que fui eu quem fez algo errado? Por que eu? – Cruza os braços na altura do peito, baixa a voz e continua: – E, sabe, para dizer a verdade, já faz algum tempo que quero conversar com você, porque tenho a sensação de que, como comandante suprema, não pode demonstrar tratamento preferencial assim, mas claramente...

 

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De repente, Kenji fica paralisado.

Ao ouvir o ranger da porta, arqueia as sobrancelhas; um leve clique e seus olhos se arregalam; um farfalhar abafado indicando movimento e, de um segundo para o outro, o cano de uma arma é pressionado contra a parte de trás da sua cabeça. Kenji me encara. De seus lábios não sai nenhum som enquanto ele articula a palavra psicopata repetidas vezes.

De onde está, o psicopata em questão pisca um olho para mim, sorrindo como se não estivesse segurando uma arma contra a cabeça de um amigo em comum. Consigo disfarçar a risada.

– Continue – Warner ordena, ainda sorrindo. – Por favor, conte o que exatamente ela fez na posição de líder para decepcioná-lo.

– Ei... – Kenji ergue os braços para fingir que está se rendendo. – Eu nunca disse que ela me decepcionou em nada, está bem? E você claramente exagera em suas reações...

Warner bate a arma na lateral da cabeça de Kenji.

– Idiota.

Kenji dá meia-volta. Puxa a arma da mão de Warner.

– Qual é o seu problema, cara? Pensei que estivéssemos bem.

– Estávamos – Warner retruca friamente. – Até você encostar no meu cabelo.

– Você me pediu para cortá-lo.

– Eu não falei nada disso, não, senhor! Pedi para você aparar as pontas!

– E foi isso que fiz.

– Isto aqui – Warner diz, virando-se para mim para que eu possa avaliar os danos. – Isto não é aparar as pontas, seu idiota incompetente...

Fico boquiaberta. A parte traseira da cabeça de Warner está uma bagunça de fios cortados dos mais diversos tamanhos combinados com outras áreas completamente raspadas.

Kenji se arrepia ao olhar o próprio trabalho. E pigarreia.

– Bem... – diz, enfiando as mãos nos bolsos. – Assim, tipo... Não importa, cara. Beleza é uma coisa subjetiva...

Warner aponta outra arma para ele.

– Ei! – Kenji grita. – Não vou aceitar esse tipo de relacionamento abusivo, entendeu? – Vira-se para Warner. – Eu não topei participar para ter que lidar com esta merda.

Warner lança um olhar fulminante e Kenji recua, saindo do quarto antes que Warner tenha outra chance de reagir. E então, justamente quando deixo escapar um suspiro de alívio, Kenji passa outra vez a cabeça pela porta e provoca:

– Para dizer a verdade, achei que o corte ficou uma gracinha.

E Warner bate a porta na cara dele.

Bem-vindo à minha nova vida como comandante suprema do Restabelecimento.

Warner continua olhando para a porta enquanto exala, liberando a tensão de seus ombros, e consigo enxergar ainda mais claramente a bagunça que Kenji fez. Os cabelos espessos, lindos e dourados de Warner – um traço marcante de sua beleza – agora picotados por mãos descuidadas.

Um desastre.

– Aaron – chamo baixinho.

Ele parece cabisbaixo.

– Venha aqui comigo.

Ele dá meia-volta, espiando-me de canto de olho, como se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhar. Empurro as armas que estão sobre a cama, abrindo espaço para que se ajeite ao meu lado. Com um suspiro entristecido, ele afunda o corpo no colchão.

– Estou horroroso – resmunga baixinho.

Sorrindo, nego com a cabeça e toco sua bochecha.

– Por que você o deixou cortar seu cabelo?

Agora Warner olha para mim com olhos redondos, verdes e perplexos.

– Você me pediu para passar um tempo com ele.

Dou uma risada escandalosa.

– E só por isso você deixou Kenji cortar seu cabelo?

– Eu não deixei ninguém cortar meu cabelo – insiste, fechando a cara. – Foi... – hesita. – Foi um gesto de camaradagem. Um ato de confiança que já vi ser praticado entre meus soldados. De todo modo... – Ele vira o rosto antes de prosseguir: – Não tenho nenhuma experiência em fazer amigos e criar amizades.

– Bem... Nós somos amigos, não somos?

Minhas palavras o fazem sorrir.

– Hein? – Cutuco-o. – Isso é bom, não é? Você está aprendendo a ser mais gentil com as pessoas.

– Sim, bem, eu não quero ser mais gentil com as pessoas. Não combina comigo.

– Acho que combina muito bem com você – retruco, com um sorriso enorme no rosto. – Eu adoro quando você é gentil.

– Para você, é fácil falar. – Warner quase dá risada. – Mas ser gentil não é algo que acontece naturalmente para mim, meu amor. Você terá de ser paciente com o meu progresso.

Seguro sua mão.

– Não tenho a menor ideia do que está falando. Para mim, você é totalmente gentil.

Warner nega com a cabeça.

– Sei que prometi fazer um esforço para ser mais bondoso com seus amigos, e continuarei me esforçando neste sentido, mas espero não tê-la levado a acreditar que sou capaz de algo impossível.

– O que quer dizer com isso?

– Só estou dizendo que espero não decepcioná-la. Eu consigo, se pressionado, produzir algum grau de calor humano, mas você precisa saber que não tenho interesse em tratar ninguém da maneira como a trato. Isto aqui – diz, tocando o ar entre nós – é uma exceção a uma regra muito dura. – Seus olhos agora focam meus lábios; suas mãos tocam meu pescoço. – Isto... Isto é algo muito, muito incomum.

Eu paro

paro de respirar, de falar, de pensar...

Warner mal me tocou e meu coração já está acelerado; lembranças se apoderam de mim, escaldam-me em suas ondas; o peso de seu corpo contra o meu; o sabor de sua pele; o calor de seu toque e suas arfadas desesperadas em busca de ar e as coisas que ele me falou no escuro.

Sou invadida por leve desejo e forço-me a afastar a sensação.

Isso ainda é tão novo, o toque dele, a pele dele, o cheiro dele. Tão novo, tão novo e tão incrível...

Warner sorri, inclina a cabeça; imito o movimento e, com uma leve lufada de ar, seus lábios se entreabrem e eu fico parada, meus pulmões quase saltando pela boca, meus dedos segurando sua camisa e ansiando pelo que vem depois disso até que ele diz:

– Sabe, vou ter que raspar a cabeça.

E se afasta.

Pisco, perplexa, e Warner ainda não está me beijando.

– E, sinceramente, tenho esperanças de que você continue me amando quando eu voltar – conclui.

Ele então se levanta e vai embora e eu conto em uma das mãos o número de homens que matei e me impressiono com quão pouca ajuda essas mortes me deram para manter o controle na presença de Warner.

Assinto com a cabeça quando ele se despede com um aceno, reúno meu bom senso de onde o abandonei e caio para trás na cama, a cabeça girando, as complicações de guerra e paz dominando a minha mente.

Não pensei que seria exatamente fácil ser líder, mas acho que acreditei que seria mais fácil que isso:

Pego-me atormentada por dúvidas a todo momento, dúvidas sobre as decisões que tomei. Fico furiosamente surpresa toda vez que um soldado segue minhas ordens. Estou cada vez mais aterrorizada com a possibilidade de que teremos – de que eu terei – de matar muitos, muitos mais antes que esse mundo se acalme. Mas acho que é o silêncio, mais do que qualquer outra coisa, que tem me deixado abalada.

Já se passaram 16 dias.

Fiz discursos sobre o que está por vir, sobre nossos planos para o futuro; fizemos homenagens às vidas perdidas na batalha e estamos nos saindo bem em nossas promessas de implementar mudanças. Castle, fiel à sua palavra, já está trabalhando duro, tentando enfrentar os problemas de agricultura, irrigação e, o mais urgente, buscando a melhor forma de fazer a transição dos civis para fora dos complexos. No entanto, isso será feito em estágios; será uma construção lenta e cuidadosa – uma luta pelo planeta, uma luta que pode durar um século. Acho que todos entendemos essa parte. E se eu só precisasse me concentrar nos civis, não estaria tão preocupada. Contudo, fico tensa porque sei muito bem que nada pode ser feito para consertar esse mundo se passarmos as próximas várias décadas em guerra.

Mesmo assim, sinto-me pronta para lutar.

Não é o que quero, mas irei tranquila para a guerra se ela for necessária para promover mudanças. Só queria que fosse simples. Neste exato momento, meu maior problema também é o mais confuso:

Para lutar uma guerra é preciso haver inimigos, e parece que eu não consigo encontrar nenhum.

Nos 16 dias desde que atirei na testa de Anderson, não enfrentei nenhuma oposição. Ninguém tentou me prender. Nenhum comandante supremo me desafiou. Dos 544 outros setores existentes só neste continente, nenhum me insultou, declarou guerra ou falou mal de mim. Ninguém protestou; as pessoas não promoveram nenhum motim. Por algum motivo, o Restabelecimento está jogando o meu jogo.

Fingindo jogá-lo.

E isso me irrita muito, demais.

Estamos em um impasse estranho, parados em posição neutra enquanto quero desesperadamente fazer mais. Mais pelo povo do Setor 45, mais pela América do Norte, mais pelo mundo como um todo. Mas esse estranho silêncio nos deixou desequilibrados. Tínhamos certeza de que, com Anderson morto, os outros comandantes supremos se levantariam – que enviariam seus exércitos para nos destruir – para me destruir. Em vez disso, os líderes do mundo deixaram clara a nossa insignificância: estão nos ignorando como ignorariam uma mosca, prendendo-nos debaixo de um copo onde ficamos livres para zumbir quanto quisermos, para bater nossas asas quebradas nas paredes somente pelo tempo que o oxigênio durar. O Setor 45 me deixou livre para fazer o que eu quiser; recebemos autonomia e autoridade para revisar nossa infraestrutura sem qualquer interferência. Todos os demais lugares – e todas as demais pessoas – estão fingindo que nada no mundo mudou. Nossa revolução aconteceu em um vácuo. Nossa vitória subsequente foi reduzida a algo tão pequeno que talvez nem mesmo exista.

Jogos psicológicos.

Castle sempre dá as caras, traz conselhos. Foi sugestão dele que eu fosse proativa – que me fortalecesse para controlar a situação. Em vez de simplesmente esperar ansiosa e na defensiva, eu deveria agir, ele disse. Deveria marcar presença. Reivindicar meu poder, ele disse. Ocupar um lugar na mesa de negociação. E tentar formar alianças antes de dar início a ataques. Manter contato com os 5 outros comandantes supremos espalhados pelo mundo.

Afinal, eu posso falar pela América do Norte, mas e o resto do mundo? E a América do Sul? Europa? Ásia? África? Oceania?

Promova uma conferência entre líderes internacionais, ele disse.

Converse.

Busque primeiro a paz, ele disse.

– Eles devem estar morrendo de curiosidade – Castle me falou. – Uma menina de dezessete anos assumindo o controle da América do Norte? Uma adolescente que mata Anderson e se declara governante deste continente? Senhorita Ferrars, você precisa saber que possui um enorme poder neste momento! Use-o a seu favor!

– Eu? – repliquei impressionada. – Que poder tenho eu?

Castle suspirou.

– Certamente, é muito corajosa para a sua idade, senhorita Ferrars, mas sinto por ver sua juventude tão intrinsicamente ligada à inexperiência. Vou tentar colocar de maneira clara: você tem uma força sobre-humana, uma pele quase invencível, um toque letal, só dezessete anos e, sozinha, derrubou o déspota desta nação. E ainda assim duvida que pode ser capaz de intimidar o mundo?

Suas palavras me fizeram estremecer.

– Velhos hábitos, Castle – respondi baixinho. – Hábitos ruins. Você está certo, obviamente. É claro que está certo.

Ele me olhou diretamente nos olhos.

– Precisa entender que o silêncio coletivo e unânime de seus inimigos não é nenhuma coincidência. Eles certamente estão em contato uns com os outros, certamente concordaram em adotar essa abordagem. Porque estão esperando para ver o que você fará a seguir. – Castle balançou a cabeça. – Estão aguardando seu próximo movimento, senhorita Ferrars. E imploro que faça um bom movimento.

Então, estou aprendendo.

Fiz o que ele sugeriu e 3 dias atrás enviei uma nota por Delalieu e fiz contato com os 5 outros comandantes supremos do Restabelecimento. Convidei-os para um encontro aqui, no Setor 45, em uma conferência de líderes internacionais no próximo mês.

Exatamente 15 minutos antes de Kenji entrar em meu quarto, eu havia recebido a primeira resposta.

A Oceania concordou.

Mas não sei direito o que isso significa.


Warner

Ultimamente, não tenho sido eu mesmo.

A verdade é que não sou eu mesmo há o que parece ser um bom tempo, tanto que comecei a me perguntar se eu, em algum momento, soube quem fui. Sem piscar, encaro o espelho enquanto o chiado da máquina de raspar cabelos ecoa pelo cômodo. Meu rosto só está levemente refletido na minha direção, mas é o bastante para eu perceber que perdi peso. Minhas bochechas estão afundadas; meus olhos, maiores; as maçãs do rosto, mais pronunciadas. Meus movimentos são ao mesmo tempo lúgubres e mecânicos enquanto raspo meus próprios cabelos, enquanto o que restava de minha vaidade cai aos meus pés.

Meu pai está morto.

Fecho os olhos, preparando-me para o desagradável peso no peito, a máquina ainda chiando em meu punho fechado.

Meu pai está morto.

Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que ele foi assassinado com dois tiros na testa por alguém que eu amo. Ela estava me fazendo uma gentileza ao matá-lo. Foi mais corajosa que eu fui durante toda a vida, apertou um gatilho que eu nunca consegui apertar. Ele era um monstro. Merecia algo ainda pior.

E ainda assim...

Essa dor.

Respiro com dificuldade e forço meus olhos a se abrirem, grato pela primeira vez por estar sozinho; grato, de alguma maneira, pela oportunidade de extirpar alguma coisa, qualquer coisa, que seja parte da minha pele. Existe uma estranha catarse no que estou fazendo.

Minha mãe está morta, penso, enquanto deslizo a lâmina por meu crânio. Meu pai está morto, penso, enquanto os fios caem no chão. Tudo o que fui, tudo o que fiz, tudo o que sou foi forjado pelas ações e inações deles.

Quem sou eu, indago, na ausência dos dois?

Cabeça raspada, máquina desligada, passo a mão pelo limite da minha vaidade e inclino o corpo, ainda tentando vislumbrar o homem que me tornei. Sinto-me velho e instável, coração e mente em guerra. As últimas palavras que disse a meu pai...

– Oi.

Meu coração acelera e dou meia-volta; imediatamente finjo indiferença.

– Oi – respondo, forçando minhas mãos a se acalmarem, a permanecerem estáveis enquanto espano os fios de cabelo caídos em meus ombros.

Ela me observa com olhos enormes, lindos e preocupados.

Lembro-me de sorrir.

– Como fiquei? Espero que não esteja horrível demais.

– Aaron – fala baixinho. – Está tudo bem com você?

– Tudo certo – respondo, e olho outra vez para o espelho. Passo a mão pelos míseros centímetros de fios macios e espetados que me restaram e penso em como o corte me conferiu uma aparência mais durona, além de fria, do que antes. – Mas confesso que, sinceramente, não me reconheço – acrescento, tentando rir. Estou parado no meio do banheiro, usando apenas uma cueca boxer. Meu corpo nunca esteve tão magro, a linha marcada dos músculos nunca foram tão definidas; e a aparência terrível do meu físico agora está combinando com o corte de cabelo grosseiro de uma maneira que parece quase bárbara, tão diferente de mim que preciso desviar o olhar.

Juliette agora está bem diante de mim.

Suas mãos descansam em meus quadris e me puxam para a frente; tropeço um pouco para acompanhá-la.

– O que está fazendo? – começo a falar, mas quando nossos olhos se encontram, deparo-me com doçura e preocupação. Alguma coisa derrete dentro de mim. Meus ombros relaxam e eu a puxo para perto, respirando fundo durante meus movimentos.

– Quando vamos falar sobre esse assunto? – ela diz, encostada em meu peito. – Sobre tudo? Tudo o que aconteceu...

Estremeço.

– Aaron.

– Eu estou bem – minto para ela. – É só cabelo.

– Você sabe que não é disso que estou falando.

Desvio o olhar. Fito o vazio. Ficamos em silêncio, os dois, por um instante.

É Juliette quem, finalmente, rompe esse silêncio.

– Você está bravo comigo? – sussurra. – Por atirar nele?

Meu corpo fica paralisado.

Os olhos dela, arregalados.

– Não... não – respondo, pronunciando as palavras rápido demais, mas com sinceridade. – Não, é claro que não. Não se trata disso.

Juliette suspira.

– Não sei se você sabe, mas é normal ficar de luto pela perda do pai, mesmo que ele tenha sido uma pessoa terrível. Sabe? – Ela olha nos meus olhos. – Você não é um robô.

Engulo o nó se formando em minha garganta e, com delicadeza, desvencilho-me de seus braços. Beijo a bochecha dela e fico ali parado, contra sua pele, só por um segundo.

– Preciso tomar banho.

Ela parece inconsolável e confusa, mas não sei o que mais fazer. Adoro sua companhia, verdade seja dita, mas agora me sinto desesperado por um momento de solidão e não sei de que outra forma consegui-lo.

Então, tomo uma chuveirada. Tomo banhos de banheira. Faço longas caminhadas.

Faço muito isso.

Quando finalmente vou para a cama, ela já está dormindo.

Quero estender a mão em sua direção, puxar seu corpo macio e quente para perto do meu, mas estou paralisado. Esse sofrimento horrível faz que eu me sinta cúmplice na escuridão. Tenho medo de que a minha tristeza seja interpretada como um aval das escolhas dele – da sua própria existência – e, quanto a esse assunto, não quero ser mal interpretado, então não posso admitir que sinto dor por ele, que me importo com a perda desse homem tão monstruoso que me criou. E, na ausência de uma ação saudável, continuo inerte, uma pedra senciente, resultante da morte de meu pai.

Você está bravo comigo? Por atirar nele?

Eu o odiava.

Eu o odiava com uma intensidade violenta que nunca mais voltei a sentir. Mas o fogo do verdadeiro ódio, percebo, não pode existir sem o oxigênio da afeição. Eu não sentiria tanta dor ou tanto ódio se não me importasse.

E isso, minha afeição indesejada por meu pai, sempre foi minha maior fraqueza. Então fico deitado aqui, cozinhando em fogo lento uma dor sobre a qual nunca posso falar, enquanto o arrependimento corrói meu coração.

Sou órfão.

– Aaron? – ela sussurra, e sou arrastado de volta para o presente.

– Sim, meu amor?

Juliette se movimenta sonolenta, ajeita-se de lado e cutuca meu braço com a cabeça. Não consigo conter o sorriso enquanto acomodo o corpo para abrir espaço para ela se aconchegar em mim. Juliette rapidamente preenche o vazio, encostando o rosto em meu pescoço e envolvendo o braço em minha cintura. Meus olhos se fecham como se em oração. Meu coração volta a bater.

– Sinto sua falta – ela diz em um sussurro que quase não consigo captar.

– Estou bem aqui – respondo, tocando com carinho sua bochecha. – Estou bem aqui, meu amor.

Mas ela faz que não com a cabeça. Mesmo enquanto a puxo mais para perto de mim, mesmo enquanto volta a dormir, ela faz que não.

E eu me pergunto se não está errada.


Juliette

Estou tomando café da manhã desacompanhada – sozinha, mas não solitária..

O salão do café está repleto de rostos familiares, todos nós botando o papo em dia a respeito de alguma coisa: sono, trabalho, conversas não concluídas. Os níveis de energia aqui sempre dependem da quantidade de cafeína que consumimos e, nesse momento, tudo ainda está bem silencioso.

Volto minha atenção para Brendan, que está bebericando do mesmo copo de café a manhã toda, e ele acena para mim. Aceno de volta. É o único entre nós que realmente não precisa de cafeína. Seu dom de criar eletricidade também funciona como um gerador reserva para todo o seu corpo. Ele é a exuberância personificada. Aliás, seus cabelos totalmente brancos e olhos azuis da cor do gelo parecem emanar uma energia própria, mesmo estando do outro lado da sala. Começo a pensar que, com o copo de café, Brendan está tentando manter as aparências em grande parte por solidariedade a Winston, que parece não conseguir sobreviver sem a bebida. Os dois se tornaram inseparáveis ultimamente – embora Winston às vezes se ressinta da vivacidade natural de Brendan.

Eles já passaram por muita coisa juntos. Todos passamos.

Brendan e Winston estão sentados com Alia, que mantém seu caderno de desenho aberto ao lado, sem dúvida esboçando alguma ideia nova e impressionante para nos ajudar na batalha. Estou cansada demais para sair do lugar, senão me levantaria para me unir ao grupo. Então, em vez disso, apoio o queixo em uma das mãos e estudo o rosto de cada um de meus amigos, sentindo gratidão. Porém, as cicatrizes no rosto de Brendan e no de Winston me levam de volta a um momento que eu preferiria esquecer – de volta a um momento em que pensamos tê-los perdido. Quando perdemos outros dois. E de repente meus pensamentos são pesados demais para o café da manhã. Então desvio o olhar. Tamborilo os dedos na mesa.

Era para eu encontrar Kenji no café da manhã – é assim que começamos nossos dias de trabalho –, e esse é o único motivo pelo qual ainda não peguei meu prato de comida. Infelizmente, seu atraso já começa a fazer meu estômago roncar. Todos na sala já estão atacando suas pilhas de panquecas macias que, por sinal, parecem deliciosas. Tudo é tentador: os pequenos frascos de maple syrup, os montes perfumados de batatas, as tigelinhas de frutas frescas. No mínimo, matar Anderson e assumir o Setor 45 nos trouxe opções muito melhores de café da manhã. Mas acho que talvez sejamos os únicos que apreciam essa melhoria.

Warner nunca toma seu café conosco. Basicamente, ele nunca para de trabalhar, nem mesmo para comer. O café da manhã é só mais uma reunião para ele, e o toma habitualmente com Delalieu, os dois sozinhos, e mesmo assim não sei se ele come alguma coisa. Warner parece nunca sentir prazer com os alimentos. Para ele, comida é combustível – necessária e, na maior parte do tempo, um estorvo –, algo de que seu corpo precisa para funcionar. Certa vez, quando estava intensamente envolvido em um trabalho burocrático durante o jantar, coloquei um biscoito em um prato à sua frente, só para ver o que acontecia. Ele olhou para mim, olhou outra vez para seus papéis, sussurrou um discreto “obrigado” e comeu o biscoito com garfo e faca. Sequer pareceu desfrutar do sabor. Desnecessário dizer que isso o torna o exato oposto de Kenji, que ama devorar tudo o tempo todo e que depois me confessou ter sentido vontade de chorar ao ver Warner comendo o biscoito.

Por falar em Kenji, o fato de ele ter furado comigo hoje de manhã é bastante estranho, então começo a me preocupar. Estou prestes a olhar o relógio pela terceira vez quando, de repente, Adam surge ao lado da minha mesa, parecendo desconfortável.

– Oi – cumprimento-o um pouco alto demais. – Está... tudo bem?

Adam e eu interagimos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre por acaso. Claro que é incomum vê-lo parado de propósito na minha frente, então, por um momento, fico tão surpresa que quase não percebo o óbvio.

Sua aparência está péssima.

Desleixado. Abatido. Visivelmente exausto. Aliás, se não o conhecesse, juraria que andou chorando. Não pelo fim do nosso relacionamento, espero.

Mesmo assim, antigos impulsos me atormentam, mexendo com sentimentos profundos.

Falamos ao mesmo tempo:

– Você está bem...? – pergunto.

– Castle quer falar com você – ele diz.

– Castle mandou você vir me procurar? – indago, deixando de lado os sentimentos.

Adam dá de ombros.

– Imagino que eu tenha passado pela sala dele bem na hora certa.

– Ah, entendi – tento sorrir. Castle está sempre tentando melhorar minha relação com Adam; ele não gosta de tensão. – Ele falou se quer me ver agora?

– É. – Adam enfia as mãos nos bolsos. – Agorinha mesmo.

– Tudo bem – respondo, e a situação toda parece desconcertante. Adam fica ali parado enquanto reúno minhas coisas, e quero dizer-lhe para ir embora, para parar de me encarar, que isso é estranho, que terminamos há uma eternidade e que foi estranho e que você deixou a situação tão estranha, mas então percebo que ele não está me encarando. Está olhando para o chão, como se estivesse preso ou perdido em algum lugar da sua própria cabeça.

– Ei... Você está bem? – pergunto outra vez, agora com mais delicadeza.

Espantado, ele ergue o olhar.

– O quê? – gagueja. – O que, é... ah... eu, sim, estou bem. Ei, você sabe, é... – Ele limpa a garganta, olha em volta. – Você, é... hum...

– Eu o quê?

Adam fica irrequieto, percorrendo outra vez a sala com o olhar.

– Warner nunca aparece aqui no café da manhã, né?

Minhas sobrancelhas se arqueiam até invadirem a testa.

– Você está procurando por Warner?

– O quê? Não. Eu só... só fiquei curioso. Ele nunca está aqui. Sabe? É esquisito.

Encaro-o.

Ele não diz nada.

– Não é tão esquisito assim – respondo lentamente, estudando seu rosto. – Warner não tem tempo para tomar café com a gente. Está sempre trabalhando.

– Ah! – exclama Adam, e a palavra parece deixá-lo sem ar. – Que pena.

– É? – Franzo a testa.

Mas Adam parece não me ouvir. Ele chama James, que está devolvendo a bandeja do café da manhã. Os dois se encontram no meio da sala e depois desaparecem.

Não tenho ideia do que fazem o dia todo. Nunca perguntei.

O mistério da ausência de Kenji é solucionado assim que passo pela porta de Castle: os dois estão ali, pensando juntos.

Bato à porta em um gesto de pura educação.

– Olá – cumprimento-os. – Queriam me ver?

– Sim, sim, senhorita Ferrars – responde um Castle ansioso. Levanta-se e gesticula, convidando-me para entrar. – Sente-se, por favor. E, por gentileza... – Aponta para algo atrás de mim. – Feche a porta.

No mesmo instante, fico nervosa.

Dou um passo com cuidado para dentro do escritório improvisado de Castle e observo Kenji, cujo rosto apático não ajuda a aliviar meus medos.

– O que está acontecendo? – pergunto. Em seguida, falo apenas para Kenji: – Por que não foi tomar café da manhã?

Castle gesticula para que eu me sente.

Faço justamente isso.

– Senhorita Ferrars – fala com urgência. – Recebeu as notícias da Oceania?

– Perdão?

– A resposta. Recebeu sua primeira resposta, não recebeu?

– Sim, recebi – confirmo lentamente. – Mas ninguém deveria saber sobre isso... Eu planejava contar a Kenji durante o café da manhã de hoje.

– Bobagem – Castle me interrompe. – Todo mundo sabe. O senhor Warner certamente sabe. Assim como o Tenente Delalieu.

– O quê? – Olho para Kenji, que dá de ombros. – Como isso é possível?

– Não fique assim tão em choque, senhorita Ferrars. Obviamente, toda a sua correspondência é monitorada.

Meus olhos se arregalam.

– Como é que é?

Castle faz um gesto frustrado com a mão.

– Tempo é essencial, então, se puder, eu preferiria...

– Tempo é essencial para quê? – questiono, irritada. – Como posso ajudar se nem sei do que estão falando?

Castle aperta a ponte do nariz.

– Kenji – fala abruptamente –, pode nos deixar a sós, por favor?

– Claro. – Kenji fica rapidamente em pé e simula uma saudação de deboche. Vai andando a caminho da porta.

– Espere – peço, agarrando seu braço. – O que está acontecendo?

– Não tenho ideia, filha. – Ele ri e solta o braço. – Essa conversa não me diz respeito. Castle me chamou aqui mais cedo para conversar sobre vacas.

– Vacas?

– Sim, você sabe... – Arqueia a sobrancelha. – Gado. Ele vem me pedindo para fazer o reconhecimento de várias centenas de acres de fazendas que o Restabelecimento tem mantido escondidas. Muitas e muitas vacas.

– Que empolgante.

– Na verdade, é sim. – Seus olhos se iluminam. – O metano facilita muito o trabalho de rastreamento. O que nos leva a questionar por que não fizeram nada pra evitar...

– Metano? – indago, confusa. – Isso não é um gás?

– Percebo que você não sabe muito sobre estrume de vaca.

Ignoro o comentário dele. Em vez disso, digo:

– Então, foi por isso que você não foi tomar café hoje cedo? Porque estava analisando cocô de vaca?

– Basicamente isso.

– Bem, pelo menos isso explica o cheiro.

Kenji demora um instante para entender meu gracejo, mas, quando o faz, estreita os olhos. Encosta um dedo em minha testa.

– Você vai direto para o inferno, sabia?

Abro um sorriso enorme.

– A gente se vê mais tarde? Ainda quero fazer aquela nossa caminhada matinal.

Ele bufa, sem se comprometer.

– Qual é? – digo. – Dessa vez vai ser divertido. Garanto.

– Ah, sim, superdivertido. – Kenji revira os olhos enquanto dá meia-volta e lança mais uma saudação para Castle. – Até mais tarde, senhor.

Castle assente para se despedir, mantendo um sorriso radiante no rosto.

Kenji leva um minuto para finalmente passar pela porta e fechá-la, mas, nesse minuto, o rosto de Castle se transforma. O sorriso tranquilo e os olhos animados desaparecem. Agora que ele e eu estamos totalmente sozinhos, parece um pouco abatido, um pouco mais sério. Talvez até... com medo?

E vai direto ao ponto.

– Quando a resposta chegou, o que dizia? Percebeu algo fora de comum na mensagem?

– Não. – Franzo a testa. – Não sei. Se todas as minhas correspondências estão sendo monitoradas, você já não teria a resposta para essa pergunta?

– É claro que não. Não sou eu quem monitora suas correspondências.

– Quem faz isso, então? Warner?

Castle apenas olha para mim.

– Senhorita Ferrars, há algo extremamente incomum nessa correspondência. – Hesita. – Especialmente sendo sua primeira e, até agora, única resposta.

– Certo – falo, confusa. – O que tem de incomum nela?

Castle olha para as próprias mãos. Para a parede.

– Quanto sabe sobre a Oceania?

– Muito pouco.

– Pouco quanto?

Dou de ombros.

– Consigo apontar no mapa.

– Mas nunca esteve lá?

– Está falando sério? – Lanço um olhar incrédulo para ele. – É óbvio que não. Nunca estive em lugar nenhum, lembra? Meus pais me tiraram da escola. Entregaram-me ao sistema. No fim, me jogaram em um hospício.

Castle respira fundo. Fecha os olhos ao dizer com todo o cuidado do mundo:

– Não havia mesmo nada fora do comum na mensagem do comandante supremo da Oceania?

– Não – respondo. – Acho que não.

– Você acha que não?

– Talvez fosse um pouco informal? Mas não me pareceu...

– Informal como?

Desvio o olhar para tentar lembrar.

– A mensagem era realmente curta – conto. – Dizia mal posso esperar para vê-la, sem assinatura nem nada.

– Mal posso esperar para vê-la? – De repente, Castle parece confuso.

Faço um gesto de confirmação.

– Não era mal posso esperar para encontrá-la, mas para vê-la? – questiona.

Confirmo outra vez.

– Como disse, um pouco informal. Mas pelo menos era educado. O que me pareceu um sinal muito positivo, considerando tudo.

Castle suspira pesadamente enquanto gira na cadeira. Agora está encarando a parede, dedos reunidos sob o queixo. Estou estudando os ângulos pronunciados de seu perfil quando ele fala baixinho:

– Senhorita Ferrars, o que exatamente o senhor Warner lhe contou sobre o Restabelecimento?


Warner

Estou sentado sozinho na sala de conferências, passando a mão distraidamente por meu novo corte de cabelo, quando Delalieu chega. Traz um carrinho de café e o sorriso tépido e trêmulo no qual aprendi a me apoiar. Nos últimos tempos, nossos dias de trabalho têm sido mais corridos do que nunca. Por sorte, jamais usamos nosso tempo juntos para discutir os detalhes desconcertantes dos eventos recentes, e duvido que em algum momento passaremos a fazê-lo.

Sinto uma espécie de gratidão por as coisas se manterem assim.

Aqui, com Delalieu, tenho um espaço seguro onde posso fingir que as coisas mudaram muito pouco na minha vida.

Continuo sendo o comandante-chefe e regente dos soldados do Setor 45; e continua sendo minha obrigação organizar e liderar aqueles que nos ajudarão a enfrentar o resto do Restabelecimento. E, com esse papel, também vem a responsabilidade. Temos muitas coisas a reestruturar enquanto coordenamos nossos próximos passos; Delalieu tem se mostrado fundamental para esses esforços.

– Bom dia, senhor.

Faço um gesto para cumprimentá-lo enquanto serve uma xícara de café para cada um de nós. Um tenente na posição dele não precisaria servir seu próprio café da manhã, mas nós dois preferimos a privacidade.

Tomo um gole do líquido preto – recentemente, aprendi a desfrutar de seu toque amargo – e solto o corpo na cadeira.

– Alguma informação nova?

Delalieu pigarreia.

– Sim, senhor – confirma, apoiando apressadamente a xícara no pires e derrubando um pouco de café com o movimento. – Esta manhã recebemos algumas informações, senhor.

Inclino a cabeça na direção dele.

– A construção da nova estação de comando está correndo bem. Esperamos concluir todos os detalhes nas próximas duas semanas, mas os aposentos privados já mudarão amanhã.

– Ótimo. – Nossa nova equipe, supervisionada por Juliette, agora é composta por muitas pessoas, com inúmeros departamentos para administrar e – à exceção de Castle, que criou um pequeno escritório para si no andar superior – até o momento todos estão usando minhas instalações pessoais de treinamento como quartel-general central. Embora, a princípio, essa tenha parecido ser uma ideia prática, só é possível ter acesso às minhas instalações de treinamento depois de passar por meus aposentos pessoais. Agora que o grupo vive andando livremente pela base, com frequência entram e saem dos meus aposentos sem sequer serem anunciados.

É evidente que essa situação está me deixando louco.

– O que mais?

Delalieu bate o olho em sua lista e responde:

– Finalmente conseguimos proteger os arquivos do seu pai, senhor. Demoramos todo esse tempo para localizar e reaver os lotes de documentos, mas deixamos as caixas no seu quarto, senhor, para que possa abri-las quando quiser. Pensei que... – Ele pigarreia. – Pensei que talvez quisesse ver as últimas propriedades pessoais dele antes que sejam herdadas por nossa nova comandante suprema.

Um terror pesado e gelado se espalha por meu corpo.

– Receio que sejam muitos documentos – Delalieu prossegue. – Todos os registros diários dele, todos os relatórios por ele produzidos. Conseguimos encontrar até mesmo alguns diários pessoais. – Delalieu hesita. E então, em um tom que só eu seria capaz de decifrar, conclui: – Espero que as notas dele lhe sejam úteis de alguma forma.

Ergo o rosto e olho nos olhos de Delalieu. Percebo tensão ali. Preocupação.

– Obrigado – agradeço baixinho. – Eu tinha quase me esquecido.

Um silêncio desconfortável se instala e, por um instante, nenhum de nós sabe o que dizer. Ainda não discutimos esse assunto, a morte de meu pai. A morte do genro de Delalieu. Do marido horrível da sua finada filha, minha mãe. Nunca conversamos sobre o fato de Delalieu ser meu avô. De ele ter passado a ser a única figura paterna que me restou neste mundo.

Não é isso o que fazemos.

Por isso, é com uma voz hesitante e nada natural que ele tenta dar continuidade à conversa.

– A Oceania, como você certamente ouviu falar, senhor, afirmou que participaria de um encontro organizado por nossa nova senhora, nossa Senhora Suprema...

Assinto.

– Mas os outros não vão responder antes de conversarem com o senhor – diz, as palavras agora saindo apressadas.

Ao ouvir isso, meus olhos ficam perceptivelmente arregalados.

– Eles são... – Delalieu pigarreia outra vez. – Bem, senhor, como o senhor sabe, são todos amigos da família e eles... bem, eles...

– Sim – sussurro. – Claro.

Desvio o olhar, encaro a parede. De repente, a frustração parece fazer meu maxilar travar. No fundo, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas, depois de duas semanas de silêncio, realmente comecei a ter esperança de que continuassem se fingindo de mortos. Não recebemos nenhuma comunicação desses antigos amigos de meu pai, nenhuma oferta de condolências, nenhuma rosa branca, nenhum tipo de compaixão. Nenhuma correspondência, como costumávamos fazer diariamente, por parte das famílias que conheci quando criança, famílias responsáveis pelo inferno em que vivemos agora. Pensei que, felizmente, com todo prazer, tivesse sido excluído desse grupo.

Mas parece que não.

Parece que traição não é um crime grave o suficiente para alguém ser deixado em paz. Parece que as várias missivas diárias de meu pai expondo minha “obsessão grotesca por um experimento” não foram suficientes para me excluir do grupo. Ele adorava reclamar em voz alta, meu pai, adorava dividir seus muitos desgostos e desaprovações com seus velhos amigos, as únicas pessoas vivas que o conheciam pessoalmente. E todos os dias me humilhava bem diante daqueles que conhecíamos. Fazia meu mundo, meus pensamentos e meus sentimentos parecerem pequenos. Patético. E todos os dias eu contava as cartas se empilhando em minha caixa de correio, ladainhas enormes de seus velhos amigos implorando para que eu usasse a razão, conforme eles definiam. Para que eu me lembrasse de quem realmente era. Para deixar de constranger minha família. Para ouvir meu pai. Para crescer, ser homem e parar de chorar por minha mãe doente.

Não, esses laços são profundos demais.

Fecho os olhos bem apertado para afastar a sequência de rostos, lembranças da minha infância, enquanto peço:

– Diga a eles que entrarei em contato.

– Não será necessário, senhor – Delalieu afirma.

– Perdão?

– Os filhos de Ibrahim já estão a caminho.

Acontece muito rápido: uma paralisia repentina e breve dos meus membros.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, já quase no limite, prestes a perder a calma. – A caminho de onde? Daqui?

Delalieu confirma com um gesto.

Uma onda de calor se espalha tão rapidamente por meu corpo que sequer percebo que estou de pé antes de ter que escorar as mãos na mesa em busca de apoio.

– Como se atrevem? – prossigo, de alguma forma ainda conseguindo me manter no limite da compostura. – O completo desprezo deles... Essa mania insuportável de acharem que têm o direito de fazer qualquer coisa...

– Sim, senhor. Eu entendo, senhor – Delalieu afirma, agora também parecendo aterrorizado. – É só que... como sabe... é o jeito de agir das famílias supremas, senhor. Uma tradição que vem de longa data. Uma recusa de minha parte teria sido interpretada como um ato declarado de hostilidade... E a Senhora Suprema me instruiu a ser diplomático enquanto for possível, então pensei que... Eu... Eu pensei que... Ah, sinto muito, muito mesmo, senhor...

– Ela não sabe com quem está lidando – digo bruscamente. – Não existe diplomacia com essa gente. Nossa nova comandante suprema não teria como saber, mas você... – Agora adoto um tom mais de aborrecimento do que de raiva. – Você devia ter imaginado. Valeria a pena enfrentar uma guerra para evitar isso.

Não ergo o olhar para mirá-lo diretamente quando ele diz, com a voz trêmula:

– Sinto muito. Sinto muito mesmo, senhor.

Uma tradição de longa data, sim, de fato.

O direito de ir e vir foi uma prática acordada há muito tempo. As famílias supremas sempre foram bem-vindas nas terras das demais, em qualquer momento, sem a necessidade de um convite. Enquanto o movimento era novo e os filhos eram jovens, nossas famílias se agarraram a esses princípios. E agora essas famílias – e seus filhos – governam o mundo.

Essa foi a minha vida durante muito tempo. Na terça-feira, a criançada reunida na Europa; na sexta, um jantar na América do Sul. Nossos pais eram loucos, todos eles.

Os únicos amigos que conheci tinham famílias ainda mais loucas que a minha. Não quero voltar a ver nenhum deles, nunca mais.

E ainda assim...

Meu Deus, preciso avisar Juliette.

– Quanto a... Quanto à questão dos civis... – Delalieu continua tagarelando. – Andei conversando com Castle, conforme... conforme seu pedido, senhor, sobre como proceder durante a transição para fora dos... para fora dos complexos...

Mas o restante da reunião da manhã passa como um borrão.

Quando finalmente consigo me desprender da sombra de Delalieu, vou direto ao meu alojamento. Juliette costuma estar aqui a essa hora do dia, portanto, espero encontrá-la para poder avisá-la antes que seja tarde demais.

Logo sou interceptado.

– Ah, hum... oi...

Distraído, ergo o rosto e, no mesmo instante, paro onde estou. Meus olhos ficam ligeiramente arregalados.

– Kent – constato em voz baixa.

Uma breve avaliação é tudo de que preciso para saber que ele não está nada bem. Aliás, sua aparência está terrível. Mais magro do que nunca; olheiras escuras e enormes. Totalmente acabado.

E me pergunto se ele me vê da mesma forma.

– Estive pensando... – diz e vira o rosto, um semblante tenso. Pigarreia. – Estive... – Pigarreia outra vez. – Estive pensando se poderíamos conversar.

Sinto meu peito apertar. Observo-o por um momento, registrando seus ombros tensos, os cabelos desgrenhados, as unhas roídas. Kent vê que o estou encarando e rapidamente enfia as mãos nos bolsos. Quase não consegue me olhar nos olhos.

– Conversar – consigo repetir.

Ele assente.

Expiro silenciosamente, lentamente. Não trocamos uma palavra sequer desde que descobri que éramos irmãos, há quase três semanas. Pensei que a implosão emocional daquela noite tivesse terminado tão bem quanto se poderia esperar, mas muita coisa aconteceu desde então. Não tivemos a oportunidade de reabrir essa ferida.

– Conversar – repito mais uma vez. – É claro.

Ele engole em seco. Olha para o chão.

– Legal.

E de repente sou levado a fazer a pergunta que deixa a nós dois desconfortáveis:

– Você está bem?

Impressionado, ele ergue o rosto. Seus olhos azuis estão arredondados, avermelhados. Seu pomo de adão mexe na garganta.

– Não sei com quem mais falar sobre esse assunto – sussurra. – Não sei quem mais entenderia.

E eu entendo. Imediatamente.

Eu entendo.

Entendo quando vejo seus olhos abruptamente vidrados, tomados por emoção; quando vejo seus ombros tremerem, mesmo enquanto ele tenta se manter imóvel.

Sinto meus próprios ossos sacudirem.

– É claro – digo, surpreendendo a mim mesmo. – Venha comigo.


Juliette

Hoje é mais um dia frio, daqueles em que todas as ruínas cinza e cobertas de neve mostram sua decadência. Acordo todas as manhãs na esperança de encontrar pelo menos um raio de sol, mas o ar gelado permanece implacável ao afundar os dentes em nossa carne. Finalmente deixamos para trás o pior do inverno, mas até mesmo essas primeiras semanas de março parecem desumanamente congelantes. Ajeito meu casaco em volta do pescoço e nele busco algum calor.

Kenji e eu estamos no que se tornou nossa caminhada diária pelas extensões de terra esquecidas em volta do Setor 45. É ao mesmo tempo estranho e libertador poder andar tranquilamente ao ar livre. Estranho porque não posso deixar a base sem uma pequena tropa para me proteger, e libertador porque é a primeira vez que sou capaz de me familiarizar com nossa terra. Nunca tive a oportunidade de andar calmamente por esses complexos; nunca tive a oportunidade de ver, em primeira mão, o que exatamente havia acontecido com esse mundo. E agora sou capaz de vagar livremente, sem ser interrogada...

Bem, mais ou menos.

Olho por sobre o ombro para os seis soldados acompanhando cada um de nossos movimentos, armas automáticas pressionadas contra o peito enquanto marcham. A verdade é que ninguém sabe o que fazer comigo ainda; Anderson utilizava um sistema muito diferente na posição de comandante supremo – nunca mostrou o rosto a ninguém, exceto àqueles que estava prestes a matar, e nunca se deslocou a lugar algum sem sua Guarda Suprema. Mas eu não tenho regras para nada disso e, até decidir como exatamente quero governar, minha situação é a seguinte:

Preciso ter babás me acompanhando toda vez que coloco os pés para fora.

Tentei explicar que essa proteção é desnecessária; tentei lembrar a todos do meu toque literalmente letal, da minha força sobre-humana, da minha invencibilidade funcional...

– Mas seria muito útil aos soldados se você pelo menos mantivesse o protocolo – Warner me explicou. – Vivemos de acordo com regras, regulamentos e disciplina constantes no meio militar, e os soldados precisam de um sistema do qual depender o tempo todo. Faça isso por eles – pediu. – Mantenha o fingimento. Não podemos mudar tudo de uma só vez, meu amor. Seria desorientador demais.

Então, aqui estou eu.

Sendo seguida.

Warner tem sido meu guia constante nessas últimas semanas. Tem me ensinado todos os dias sobre as muitas coisas que seu pai fazia e sobre tudo aquilo pelo que ele próprio é responsável. Há um número infinito de atividades que Warner precisa cumprir todos os dias para cuidar de seu setor, isso sem mencionar a bizarra – e aparentemente infinita – lista de obrigações que eu tenho de cumprir para liderar todo um continente.

Estaria mentindo se não dissesse que, às vezes, tudo isso parece impossível.

Tive 1 dia, só 1 dia, para respirar e aproveitar o alívio depois de ter derrubado Anderson e tomado o controle do Setor 45. 1 dia para dormir, 1 dia para sorrir, 1 dia para me dar ao luxo de imaginar um mundo melhor.

Foi no final do Dia 2 que encontrei um Delalieu aparentemente muito nervoso parado do outro lado da minha porta.

Ele parecia frenético.

– Senhora Suprema – falou, com um sorriso ensandecido no rosto. – Imagino que deva estar sobrecarregada nesses últimos tempos. São tantas coisas para fazer! – Baixou o olhar. Balançou as mãos. – Mas receio que... que seja... acho que...

– O que foi? – indaguei. – Algum problema?

– Bem, senhora... Eu não queria incomodá-la... A senhora passou por tanta coisa e precisava de tempo para se ajustar...

Ele olhou para a parede.

Eu esperei.

– Perdoe-me – prosseguiu. – É só que... quase trinta e seis horas se passaram desde que assumiu o controle do continente e a senhora ainda não visitou seu quartel nem uma vez – ele expôs, todo apressado. – E já recebeu tantas cartas que nem sei mais onde guardá-las...

– O quê?

Nesse momento, ele congelou. Finalmente olhou-me nos olhos.

– O que quer dizer com essa história de meu quartel? Eu tenho um quartel?

Estupefato, Delalieu piscou repetidamente.

– É claro que tem, senhora. O comandante supremo conta com seu próprio quartel em cada setor do continente. Temos toda uma ala aqui dedicada aos seus escritórios. É onde o falecido comandante supremo Anderson costumava ficar sempre que visitava nossa base. E todos sabem que a senhora transformou o Setor 45 em sua residência permanente, então é para cá que enviam todas as suas correspondências, sejam elas físicas ou digitais. É onde os briefings produzidos pelo sistema de inteligência serão entregues todas as manhãs. É para onde outros líderes de setores enviam seus relatórios diários...

– Você não pode estar falando sério – retruquei, espantada.

– Seriíssimo, senhora. – Delalieu parecia desesperado. – Preocupo-me com a mensagem que a senhora possa estar transmitindo ao ignorar todas as correspondências nesse estágio inicial de seu trabalho. – Ele desviou o olhar. – Perdoe-me, eu não quis ir longe demais. Eu só... Eu sei que a senhora gostaria de fazer um esforço para fortalecer suas relações internas... Mas temo as consequências que a senhora pode vir a enfrentar por não respeitar tantos acordos continentais...

– Não, não, claro. Obrigada, Delalieu – respondi, com a cabeça confusa. – Obrigada por me avisar. Fico muito... Fico muito grata por você intervir. Eu não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo... – Naquele momento, bati a mão na testa. – Mas, talvez amanhã cedo? Amanhã cedo você poderia me encontrar depois da caminhada matinal e me mostrar onde fica esse tal quartel?

– É claro que sim – respondeu, com uma leve reverência. – Será um prazer, Senhora Suprema.

– Obrigada, tenente.

– Sem problemas, senhora. – Ele pareceu tão aliviado. – Tenha uma noite agradável.

Atrapalhei-me ao me despedir dele, tropeçando em meus próprios pés, tamanho o meu entorpecimento.

Pouca coisa mudou.

Meus tênis batem no concreto, tocam uns nos outros no momento em que me espanto e me arrasto de volta ao presente. Dou um passo mais determinado para a frente, dessa vez me preparando para mais um golpe repentino e gelado de vento. Kenji me lança um olhar cheio de ansiedade. Olho em sua direção, mas sem realmente prestar atenção nele. Na verdade, estou concentrada no que há atrás dele, estreitando meus olhos para nada em particular. Minha mente segue seu curso, zumbindo no mesmo tom do vento.

– Está tudo bem, mocinha?

Ergo a vista, olhando de soslaio para Kenji.

– Estou bem, sim.

– Nossa, que convincente!

Consigo sorrir e franzir a testa ao mesmo tempo.

– Então... – Kenji diz, exalando a palavra. – Sobre o que Castle queria conversar com você?

Desvio o rosto, imediatamente irritada.

– Não sei. Castle anda meio esquisito.

Minhas palavras atraem a atenção de Kenji. Castle é como um pai para ele – certamente, se tivesse que escolher entre Castle e mim, escolheria Castle –, e Kenji claramente expõe sua lealdade ao dizer:

– Como assim? Que história é essa de Castle andar meio esquisito? Ele me pareceu normal hoje cedo.

Dou de ombros.

– Ele só me deu a impressão de ter ficado muito paranoico de uma hora para a outra. E falou algumas coisas sobre Warner que só... – Interrompo a mim mesma. Balanço a cabeça. – Não sei.

Kenji para de andar.

– Espere. Que coisas são essas que ele falou sobre Warner?

Ainda irritada, dou de ombros outra vez.

– Castle acha que Warner está escondendo coisas de mim. Tipo, não exatamente escondendo coisas de mim... Mas parece que há muita coisa sobre ele que eu desconheço. Então, falei: “Ora, se você sabe tanto sobre Warner, por que não me conta o que preciso saber a respeito dele?”. E Castle respondeu: “Não, blá-blá-blá, o próprio senhor Warner deve contar a você, blá-blá-blá”. – Reviro os olhos. – Basicamente, ele me disse que é estranho eu não saber muito sobre o passado de Warner. Mas isso nem é verdade – continuo, agora olhando diretamente para Kenji. – Sei de muita coisa do passado de Warner.

– Tipo?

– Tipo, por onde começar? Sei tudo a respeito da mãe dele.

Kenji dá risada.

– Você não sabe coisa nenhuma sobre a mãe dele.

– É claro que sei.

– Até parece, J. Você não sabe nem o nome da mulher.

As palavras dele me fazem hesitar. Busco a informação em minha mente, Warner certamente citou o nome da sua mãe em algum momento...

e não encontro a resposta.

Sentindo-me diminuída, olho outra vez para Kenji.

– Ela se chamava Leila – ele conta. – Leila Warner. E eu só sei disso porque Castle faz suas pesquisas. Tínhamos arquivos de todas as pessoas de interesse lá em Ponto Ômega. Mesmo assim, eu nunca soube que ela tinha poderes que a fizeram adoecer. Anderson foi muito bom em esconder essas informações.

– Ah – é tudo que consigo dizer.

– Então era por isso que Castle estava agindo esquisito? – Kenji quer saber. – Porque ele ressaltou, corretamente, diga-se de passagem, que você não sabe nada sobre a vida do seu namorado.

– Não seja cruel – peço baixinho. – Eu sei de algumas coisas.

Mas a verdade é que realmente não sei muito.

O que Castle me falou hoje cedo de fato me incomodou. Estaria mentindo se dissesse que não pensei o tempo todo sobre como era a vida de Warner antes de nos conhecermos. Aliás, com frequência penso naquele dia – aquele dia horrível, terrível –, em uma bela casinha azul em Sycamore, a casa onde Anderson atirou em meu peito.

Estávamos totalmente sozinhos, Anderson e eu.

Nunca contei a Warner o que seu pai me falou naquele dia, mas também não me esqueci de suas palavras. Em vez disso, tentei ignorá-las, tentei me convencer de que Anderson estava investindo em joguinhos psicológicos para me confundir e me imobilizar. Porém, independentemente de quantas vezes eu tenha repassado essa conversa em minha cabeça – tentando desesperadamente diminui-la e ignorá-la –, nunca fui capaz de afastar a sensação de que, talvez, só talvez, nem tudo fosse provocação. Talvez Anderson estivesse me revelando a verdade.

Ainda consigo ver o sorriso em seu rosto enquanto pronunciava as palavras. Ainda consigo ouvir a cadência em sua voz. Estava se divertindo. Atormentando-me.

Ele contou a você quantos outros soldados queriam assumir o controle do Setor 45? Quantos excelentes candidatos tínhamos para escolher? Ele só tinha dezoito anos!

Ele alguma vez contou a você o que teve de fazer para provar seu valor?

Meu coração acelera quando lembro. Fecho os olhos, meus pulmões queimando...

Ele alguma vez contou pelo que eu o fiz passar para merecer o que tem?

Não.

Suspeito que ele tenha preferido não citar essa parte, ou estou errado? Aposto que não quis contar essa parte de seu passado, não é?

Não.

Ele nunca contou. E eu nunca perguntei.

Acho que nunca quis e continuo sem querer saber.

Não se preocupe, Anderson me disse na ocasião. Eu não vou estragar a graça para você. Melhor deixar ele mesmo compartilhar esses detalhes.

E agora, hoje pela manhã, ouço a mesma frase da boca de Castle.

– Não, senhorita Ferrars – ele falou, recusando-se a olhar em meus olhos. – Não, não. Contar seria me intrometer em um espaço que não me cabe. O senhor Warner quer ser aquele que vai lhe contar as histórias de sua vida. Não eu.

– Não estou entendendo – respondi, frustrada. – Qual é a relevância disso? Por que de uma hora para a outra você passou a se preocupar com o passado de Warner? E o que isso tem a ver com a resposta da Oceania?

– Warner conhece esses outros comandantes. Ele conhece as outras famílias supremas. Sabe como o Restabelecimento funciona internamente. E ainda tem muita coisa a lhe revelar. – Castle sacudiu a cabeça. – A resposta da Oceania é extremamente incomum, senhorita Ferrars, pelo simples fato de ser a única que a senhorita recebeu. Tenho certeza de que os movimentos desses comandantes não são apenas coordenados, mas também intencionais, e começo a me sentir mais preocupado a cada instante com a possibilidade de realmente existir outra mensagem implícita naquela correspondência, uma mensagem que ainda estou tentando traduzir.

Naquele momento, eu senti. Senti minha temperatura subindo, meu maxilar tensionando conforme a raiva tomava conta de mim.

– Mas foi você quem disse para entrar em contato com todos os comandantes supremos! Foi ideia sua! E agora está com medo da resposta de um deles? O que...

E então, imediatamente, entendi o que estava acontecendo.

Minhas palavras saíram leves e atordoadas quando voltei a falar:

– Ah, meu Deus, você pensou que eu não receberia resposta alguma, não é?

Castle engoliu em seco. Não falou nada.

– Você pensou que ninguém responderia? – insisti, minha voz mais aguda a cada sílaba.

– Senhorita Ferrars, a senhorita precisa entender que...

– Por que está fazendo joguinhos comigo, Castle? – Fechei as mãos em punhos. – Aonde quer chegar com isso?

– Não estou fazendo joguinhos com a senhorita – ele respondeu, as palavras saindo apressadas. – Eu só... pensei que... – gaguejou, gesticulando intensamente. – Foi um exercício. Uma experiência...

Senti golpes de calor acendendo como fogo atrás dos meus olhos. A raiva entalou em minha garganta, vibrou ao longo da minha espinha. Eu podia sentir a ira ganhando força em meu interior e precisei reunir todas as minhas forças para domá-la.

– Eu não sou mais experiência de ninguém – retruquei. – E preciso saber que droga está acontecendo.

– A senhorita deve conversar com o senhor Warner – afirmou. – Ele vai explicar tudo. Você ainda tem muito a descobrir sobre este mundo e sobre o Restabelecimento, e o tempo é um fator essencial. – Olhou-me nos olhos. – A senhorita precisa estar preparada para o que está por vir. Precisa saber mais e precisa saber já. Antes que os problemas se intensifiquem.

Desviei o olhar, as mãos tremendo com o acúmulo de energia não extravasada. Eu queria – eu precisava – quebrar alguma coisa. Qualquer coisa. Em vez disso, falei:

– Quanta bobagem, Castle! Quanta bobagem!

E ele parecia o homem mais triste do mundo quando falou:

– Eu sei.

Desde então, estou andando de um lado para o outro com uma dor de cabeça insuportável.

E não me sinto melhor quando Kenji cutuca meu ombro, trazendo-me de volta à realidade para anunciar:

– Eu já disse isso antes e vou repetir: vocês dois têm um relacionamento estranho.

– Não, não temos – retruco, e as palavras saem como um reflexo, petulantes.

– Sim – Kenji rebate. – Vocês têm, sim.

Ele sai andando, deixando-me sozinha nas ruas abandonadas, saudando-me com um chapéu imaginário enquanto se distancia.

Jogo um dos meus sapatos nele.

O esforço, todavia, é inútil; Kenji pega o sapato no ar. Agora está me esperando, dez passos à frente, com o calçado na mão enquanto vou saltando numa perna só em sua direção. Não preciso me virar para ver o sorriso no rosto dos soldados atrás de nós. Tenho certeza de que todos me acham uma piada como comandante suprema. E por que não achariam?

Mais de duas semanas se passaram e continuo me sentindo perdida.

Parcialmente paralisada.

Não tenho orgulho da minha incapacidade de liderar as pessoas; não me orgulho da revelação de que, no fim das contas, não sou inteligente o bastante, rápida o bastante ou perspicaz o bastante para governar o mundo. Não tenho orgulho de, nos meus piores momentos, olhar para tudo o que tenho a fazer em um único dia e me impressionar, espantada, com como Anderson era organizado. Como era habilidoso. Como era terrivelmente talentoso.

Não tenho orgulho de pensar isso.

Ou de, nas horas mais silenciosas e solitárias da manhã, ficar deitada, acordada, ao lado do filho de Anderson, um homem torturado até quase a morte, e desejar que o pai ressuscitasse e levasse consigo a carga que tirei de seus ombros.

Então surge esse pensamento, o tempo todo, o tempo todo:

Que talvez eu tenha cometido um erro.

– Olá-á? Terra chamando princesa?

Confusa, ergo o olhar. Hoje estou mesmo perdida em pensamentos:

– Você falou alguma coisa?

Kenji balança a cabeça enquanto me devolve o sapato. Ainda estou me esforçando para calçá-lo, quando ele diz:

– Então você me forçou a sair para caminhar nessa terra horrível e congelada de merda só para me ignorar?

Arqueio uma única sobrancelha para ele.

Ele arqueia as duas em resposta, esperando, ansioso.

– Qual é, J? Isto aqui... – E aponta para o meu rosto. – Isto é mais do que toda a carga de esquisitice que você recebeu de Castle hoje de manhã. – Ele inclina a cabeça na minha direção e percebo uma preocupação sincera em seus olhos quando indaga: – E então? O que está acontecendo?

Suspiro, e a expiração faz meu corpo enfraquecer.

A senhorita deve conversar com o senhor Warner. Ele vai explicar tudo.

Mas Warner não é exatamente conhecido por suas habilidades comunicativas. Não gosta de conversa fiada. Não divide detalhes de sua vida. Não fala de coisas pessoais. Sei que me ama – posso sentir em cada interação quanto se importa comigo –, mas, mesmo assim, só me ofereceu informações vagas sobre sua vida. Warner é um cofre ao qual só tenho acesso ocasionalmente, e com frequência me pergunto quanto ainda me resta descobrir sobre ele. Às vezes, isso me assusta.

– Eu só estou... Não sei – finalmente respondo. – Estou muito cansada. Estou com muita coisa na cabeça.

– Teve uma noite difícil?

Encaro Kenji, protegendo o rosto dos raios gelados do sol.

– Se quer saber, eu quase nem durmo mais – admito. – Acordo às quatro da manhã todos os dias e ainda não consegui ler as correspondências da semana passada. Não é uma loucura?

Surpreso, Kenji me olha de soslaio.

– E tenho que aprovar um milhão de coisas todos os dias. Aprovar isso, aprovar aquilo. E muitas coisas nem são assim tão importantes – relato. – São coisinhas ridículas, como, como... – Puxo uma folha de papel amassada do bolso e sacudo-a na direção do céu. “Como essa bobagem aqui: o Setor 418 quer aumentar o horário do almoço de uma hora para uma hora e três minutos e precisam da minha aprovação. Três minutos? Quem se importa com isso?

Kenji tenta disfarçar um sorriso; enfia as mãos nos bolsos.

– Todos os dias. O dia todo. Não consigo fazer nada de verdade. Pensei que eu fosse fazer algo realmente relevante, sabe? Pensei que seria capaz de, sei lá, unificar os setores e promover a paz ou algo assim. Em vez disso, passo o dia todo tentando evitar Delalieu, que aparece na minha frente a cada cinco minutos porque precisa que eu assine alguma coisa. E estou falando só das correspondências.

Aparentemente, não consigo mais parar de falar, por fim confessando a Kenji todas as coisas que sinto nunca poder dividir com Warner por medo de decepcioná-lo. É libertador, mas também parece perigoso. Como se talvez eu não devesse contar a ninguém que me sinto assim, nem mesmo a Kenji.

Então hesito, espero um sinal.

Ele não está mais olhando para mim, mas ainda parece me ouvir. Sustenta a cabeça inclinada e um sorriso na boca quando, depois de um instante, pergunta:

– Isso é tudo?

Nego com a cabeça com veemência, aliviada e grata por poder continuar reclamando:

– Eu tenho que registrar tudo, o tempo todo. Tenho que preencher relatórios, ler relatórios, arquivar relatórios. Existem quinhentos e cinquenta e quatro outros setores na América do Norte, Kenji. Quinhentos e cinquenta e quatro. – Encaro-o. – Isso quer dizer que preciso ler quinhentos e cinquenta e quatro relatórios todo santo dia.

Impassível, ele também me encara.

– Quinhentos e cinquenta e quatro!

Cruza os braços.

– Cada relatório tem dez páginas!

– Aham.

– Posso contar um segredo?

– Manda.

– Esse trabalho é um saco.

Agora Kenji ri alto. Mesmo assim, não diz nada.

– O que foi? – pergunto. – Em que está pensando?

Ele bagunça meus cabelos e diz:

– Ah, J.

Afasto a cabeça da mão dele.

– Isso é tudo o que recebo? Só um “ah, J” e nada mais?

Kenji dá de ombros.

– O que foi? – exijo saber.

– Sei lá – responde, um pouco constrangido com suas palavras. – Você pensou que seria... fácil?

– Não – falo baixinho. – Só pensei que seria melhor do que isso.

– Melhor em que sentido?

– Acho que... Quer dizer, pensei que seria... mais legal?

– Pensou que estaria matando um monte de caras malvados agora? Fazendo política na base da porrada? Como se fosse só matar Anderson e então, de repente, tchã-rã, paz mundial?

Não consigo encará-lo porque estou mentindo, mentindo muito, quando digo:

– Não, é claro que não. Não pensei que seria assim.

Kenji suspira.

– É por isso que Castle sempre se mostrou tão apreensivo, sabia? Em Ponto Ômega, o negócio era ser devagar e constante. Era uma questão de esperar o momento certo. De conhecer nossos pontos fortes... e também nossos pontos fracos. Havia muita coisa acontecendo em nossas vidas, mas sempre soubemos, e Castle sempre falou que não podíamos derrubar Anderson antes de nos sentirmos prontos para sermos líderes. Foi por isso que não o matei quando tive a oportunidade. Nem mesmo quando ele já estava quase morto e parado bem diante de mim. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Simplesmente não era a hora certa.

– Então... Você acha que cometi um erro?

Kenji franze a testa, ou quase isso. Desvia o rosto. Olha para mim novamente, deixa um breve sorriso brotar, mas só de um lado da boca.

– Bem, acho você ótima.

– Mas acha que cometi um erro.

Ele dá de ombros com um movimento lento e exagerado.

– Não, eu não disse isso. Só acho que precisa de um pouco mais de treinamento, entende? Acho que o hospício não a preparou para esse trabalho.

Estreito meus olhos na direção dele.

Ele ri.

– Olha, você é boa com as pessoas. Você fala bem. Mas esse trabalho vem acompanhado de muita burocracia e também de um monte de besteiras. E de muitas ocasiões em que precisa se fazer de boazinha. Muito puxa-saquismo. Veja bem, o que estamos tentando fazer agora mesmo? Estamos tentando ser legais. Certo? Estamos tentando, tipo, assumir o controle, mas sem provocar uma completa anarquia. Estamos tentando não entrar em guerra neste momento, certo?

Não respondo rápido o bastante e ele cutuca meu ombro.

– Certo? – insiste. – Não é esse o objetivo? Manter a paz por enquanto? Apostar na diplomacia antes de explodirmos a merda toda?

– Sim, certo – apresso-me em responder. – Sim. Evitar uma guerra. Evitar mortes. Fazer papel de bonzinhos.

– Está bem – diz, desviando o olhar. – Então você precisa se controlar, mocinha. Porque, sabe o que acontece se começar a perder o controle agora? O Restabelecimento vai comê-la viva. E é precisamente isso o que eles querem. Aliás, provavelmente é o que esperam... Esperam que você destrua sozinha toda essa merda para eles. Então, não pode deixá-los perceber isso. Não pode deixar as fissuras aparecerem.

Encaro-o, sentindo-me de repente assustada.

Ele passa um braço pelos meus ombros.

– Você não pode se estressar assim por causa de um trabalho burocrático. – Ele nega com a cabeça. – Todo mundo está de olho em você agora. Todos estão esperando para ver o que está por vir. Ou entraremos em guerra com os outros setores... Quer dizer, com o resto do mundo... Ou conseguimos manter o controle e negociar. Você precisa se manter calma, J. Mantenha-se calma.

Mas não sei o que dizer.

Porque a verdade é que ele está certo. Encontro-me em uma situação tão complicada que nem sei por onde começar. Nem me formei no colegial. E agora esperam que eu tenha toda uma vida de conhecimentos em relações internacionais?

Warner foi projetado para essa vida. Tudo o que faz, tudo o que é, emana...

Ele foi feito para liderar.

Já eu?

Meu Deus, no que foi que me meti?, reflito.

Onde eu estava com a cabeça quando pensei que seria capaz de governar um continente inteiro? Por que me permiti imaginar que uma capacidade sobrenatural de matar coisas com a minha pele de repente me traria um conhecimento abrangente em ciências políticas?

Fecho os punhos com força excessiva e...

dor, dor pura

... enquanto minhas unhas cravam a carne.

Como eu achava que as pessoas governavam o mundo? Imaginei mesmo que seria tão simples? Que eu poderia controlar todo o tecido social a partir do conforto do quarto do meu namorado?

Só agora começo a perceber a amplitude dessa teia delicada, intrincada, composta por pessoas, posições e poderes já existentes. Eu disse que aceitava a tarefa. Eu, uma ninguém de 17 anos e com pouquíssima experiência de vida; eu me voluntariei para essa posição. E agora, basicamente do dia para a noite, tenho que acompanhar o ritmo por ela imposto. E não tenho a menor ideia do que estou fazendo.

E o que acontece se eu não aprender a administrar essas muitas relações? Se eu, pelo menos, não fingir ter uma vaga ideia de como vou governar o mundo?

O resto dele poderia facilmente me destruir.

E às vezes não tenho certeza de que sairei viva dessa situação.


Warner

– Como está James?

Sou eu quem quebra o silêncio. É uma sensação estranha. Nova para mim.

Kent assente em resposta, seus olhos focados nas próprias mãos, unidas à sua frente. Estamos no telhado, cercados por frio e concreto, sentados um ao lado do outro em um canto silencioso para o qual às vezes me retiro. Daqui consigo ver todo o setor. O oceano no horizonte. O sol do meio-dia se movimentando preguiçosamente no alto do céu. Civis parecendo soldadinhos de brinquedo marchando de um lado para o outro.

– James está bem – Kent, enfim, responde. Sua voz sai tensa. Ele veste apenas uma camiseta e parece não se incomodar com o frio cortante. Respira fundo. – Quero dizer... ele está bem, entende? Está ótimo. Superbem.

Faço que sim com a cabeça.

Kent ergue o rosto, solta uma espécie de risada nervosa e curta, e desvia o olhar.

– Isso é loucura? – indaga. – Nós somos loucos?

Ficamos um minuto em silêncio, enquanto o vento sopra com mais força do que antes.

– Não sei – respondo, por fim.

Kent bate o punho na perna. Solta o ar pelo nariz.

– Sabe, eu nunca disse isso a você. Antes. – Ergue o rosto, mas não me olha nos olhos. – Naquela noite. Eu não falei, mas queria que soubesse que aquilo significou muito para mim. O que você disse.

Aperto os olhos em direção ao horizonte.

É algo realmente impossível de se fazer, desculpar-se por tentar matar alguém. Mesmo assim, eu tentei. Disse a ele que entendia o que fizera na época. Sua dor. Sua raiva. Suas ações. Disse que ele tinha sobrevivido à criação dada por nosso pai e se tornado uma pessoa muito melhor do que eu jamais seria.

– Eram palavras sinceras – reafirmo.

Kent agora bate o punho fechado na boca. Pigarreia.

– Sabe, eu também sinto muito. – Sua voz sai rouca. – As coisas deram muito errado. Tudo. Está uma bagunça.

– Sim – concordo. – É verdade.

– Então, o que fazer agora? – Kent finalmente se vira para olhar para mim, mas ainda não estou pronto para encará-lo. – Como... como podemos consertar isso? Será que dá para consertar? As coisas foram longe demais?

Passo a mão por meus cabelos recém-raspados.

– Não sei – respondo baixo. – Mas gostaria de consertar.

– É?

Confirmo, acenando com a cabeça.

Kent assente várias vezes ao meu lado.

– Ainda não me sinto preparado para contar a James.

Surpreso, hesito.

– Ah, é?

– Não por sua causa – apressa-se em explicar. – Não é com você que me preocupo. É que... explicar sobre você implica explicar uma coisa muito, muito maior. E não sei como contar que o pai dele era um monstro. Por enquanto, não. Eu realmente achava que James nunca fosse precisar saber.

Ao ouvir suas palavras, ergo o olhar.

– James não sabe? De nada?

Kent nega com a cabeça.

– Ele era muito pequeno quando nossa mãe morreu e eu sempre consegui mantê-lo longe quando nosso pai aparecia. Ele acha que nossos pais morreram em um acidente de avião.

– Impressionante – digo. – É muita generosidade de sua parte.

Ouço a voz de Kent falhar quando ele volta a falar:

– Meu Deus, por que fico tão transtornado por causa dele? Por que me importo?

– Não sei – admito, negando com a cabeça. – Estou tendo o mesmo problema.

– Ah, é?

Assinto.

Kent solta a cabeça nas mãos.

– Ele fodeu mesmo com a nossa cabeça, cara.

– Sim, é verdade.

Ouço Kent fungar duas vezes, duas duras tentativas de manter suas emoções sob controle, e, ainda assim, invejo sua capacidade de ser tão aberto sobre seus sentimentos. Puxo um lenço do bolso interno da jaqueta e o entrego a ele.

– Obrigado – agradece, com a garganta apertada.

Assinto novamente.

– Então, hum... O que rolou com o seu cabelo?

Fico tão surpreso com a pergunta que quase tremo. Considero de verdade a hipótese de contar a história toda a Kent, mas tenho medo que me pergunte por que deixei Kenji tocar em meus cabelos, e então eu teria de explicar os inúmeros pedidos de Juliette para que eu me tornasse amigo daquele idiota. E não acho que Juliette seja um assunto seguro para nós dois ainda. Então, apenas respondo:

– Um pequeno acidente.

Kent arqueia as sobrancelhas. Dá risada.

– Entendi.

Surpreso, olho em sua direção.

Ele fala:

– Tudo bem, sabe.

– O quê?

Kent agora está sentado com a coluna ereta, encarando a luz do sol. Começo a ver sombras de meu pai em seu rosto. Sombras de mim mesmo.

– Você e Juliette – esclarece.

As palavras me fazem congelar.

Ele me encara.

– Sério, tudo bem.

Atordoado, não consigo me segurar e acabo dizendo:

– Não sei se estaria tudo bem se fosse comigo, se nossos papéis fossem inversos.

Kent oferece um sorriso, mas parece triste.

– Eu fui um grande idiota com ela no final – admite. – Então, acho que recebi o que merecia. Mas não foi por causa dela, sabe? Nada daquilo. Nada foi culpa dela. – Ele me olha de soslaio. – Para ser sincero com você, eu vinha afundando já há algum tempo. Estava realmente infeliz e muito estressado e então... – Ele dá de ombros, desvia o olhar. – Para ser honesto, descobrir que você é meu irmão quase me matou.

Mais uma vez surpreso, pisco os olhos.

– Pois é. – Ele ri, balançando a cabeça. – Sei que parece estranho agora, mas na época eu só... Sei lá, cara, pensei que você fosse um sociopata. Fiquei muito preocupado com a possibilidade de você descobrir que éramos irmãos e, quer dizer... Sei lá... Pensei que você tentaria me matar ou algo assim.

Ele hesita. Olha para mim.

Aguarda.

E só então percebo – mais uma vez, surpreso – que ele quer que eu negue sua suspeita. Quer que eu diga que não era nada disso.

Mas posso entender sua preocupação. Então, respondo:

– Bem, eu tentei matá-lo uma vez, não tentei?

Kent arregala os olhos.

– É cedo demais para fazer piada com isso, cara. Essa merda ainda não tem graça.

Desvio o olhar ao dizer:

– Eu não estava tentando ser engraçado.

Posso sentir os olhos de Kent sobre mim, estudando-me, acho que tentando me entender ou entender minhas palavras. Talvez as duas coisas. Mas é difícil saber o que se passa em sua cabeça. É frustrante ter um dom sobrenatural que me permite saber as emoções de todos, exceto as dele. Isso faz que eu me sinta fora de prumo perto de Kent. Como se eu tivesse perdido a visão ou algo assim.

Por fim, ele suspira.

Parece que passei em um teste.

– Enfim – diz, mas agora soa um tanto incerto –, eu tinha certeza de que você viria atrás de mim. E só o que conseguia pensar era que, se eu morresse, James morreria. Eu sou tudo o que ele tem no mundo, entende? Se você me matasse, você o mataria. – Olha para suas mãos. – Passei a não dormir mais à noite. Parei de comer. Estava ficando louco. Não conseguia mais aguentar nada daquilo, e você estava, tipo... vivendo com a gente? E então tudo o que aconteceu com Juliette... Eu só... Sei lá... – Suspira demorada e tremulamente. – Fui um idiota. Acabei descontando tudo nela. Culpei-a por tudo. Por eu ter me afastado das únicas coisas que acreditava serem certas na minha vida. É tudo culpa minha, na verdade. Questões pessoais do passado. Eu ainda tenho muita coisa para resolver – enfim, admite. – Tenho problemas com a ideia de as pessoas me deixarem para trás.

Por um momento, fico sem palavras.

Nunca imaginei que Kent seria capaz de reunir pensamentos tão complexos. Minha capacidade de perceber emoções e sua capacidade de anular dons sobrenaturais sem dúvida nos tornam uma dupla muito peculiar. Sempre fui forçado a concluir que ele era desprovido de pensamentos e emoções. No fim das contas, Kent é muito mais emocionalmente preparado do que eu poderia esperar. E sincero, também.

Contudo, é estranho ver alguém com o mesmo DNA que eu falando tão abertamente. Admitindo em voz alta seus medos e limitações. É franco demais, como olhar direto para o sol. Preciso desviar o olhar.

Por fim, digo apenas:

– Eu entendo.

Kent pigarreia.

– Então... sim – ele diz. – Acho que só queria dizer que Juliette estava certa. No fim das contas, nós dois acabamos nos afastando. Tudo isso – aponta para nós dois – me fez perceber muitas coisas. E ela estava certa. Sempre vivi desesperado por alguma coisa, algum tipo de amor ou afeição ou alguma coisa. Não sei... – Nega com a cabeça. – Acho que eu queria acreditar que ela e eu tínhamos algo que, na verdade, não tínhamos. Eu estava numa sintonia diferente. Caramba, eu era uma pessoa diferente. Mas agora sei quais são as minhas prioridades.

Fito-o com uma pergunta nos olhos.

– Minha família – esclarece, olhando-me nos olhos. – É só o que me importa agora.


Juliette

Estamos voltando lentamente à base.

Não tenho pressa de encontrar Warner e enfrentar o que provavelmente será uma conversa complicada e estressante, então me dou o direito de demorar o tempo necessário. Passo pelos destroços da guerra e pelos escombros cinza dos complexos conforme deixamos para trás um território não regulamentado e os resquícios borrados que o passado produziu. Sempre fico triste quando nossa caminhada se aproxima do fim; sinto uma enorme saudade das casas que pareciam ter saído todas de uma forma, das cercas de madeira, das lojinhas tampadas com tábuas e dos bancos e construções velhos e abandonados que compunham a paisagem das ruas tomadas pela grama irregular. Gostaria de encontrar um jeito de fazer tudo isso voltar a existir.

Respiro fundo e saboreio o ar frio que queima meus pulmões. O vento me envolve, puxando e empurrando e dançando, chicoteando freneticamente meus cabelos, e nele me perco, abro a boca para inalá-lo. Estou prestes a sorrir quando Kenji lança um olhar sombrio em minha direção, fazendo-me tremer, fazendo-me pedir desculpas com os olhos.

Meu pedido de desculpas desanimado pouco faz para aplacá-lo.

Forço-o a fazer outro desvio a caminho do mar, que costuma ser minha parte preferida da nossa caminhada. Kenji, por sua vez, detesta essa parte do trajeto – assim como seus coturnos, um dos quais agora se afunda na lama que no passado era areia limpa.

– Ainda não consigo acreditar que você goste de olhar para essa água nojenta, infestada de urina e...

– Não está exatamente infestada – destaco. – Castle diz que, definitivamente, há mais água que xixi.

Kenji só consegue me lançar um olhar fulminante.

Continua resmungando em voz baixa, reclamando que seus coturnos estão ensopados de “água de mijo”, como gosta de chamar, enquanto entramos na rua principal. Fico feliz em ignorá-lo, permaneço decidida a aproveitar os últimos momentos de paz – afinal, é uma das poucas horas que tenho para mim ultimamente. Olho outra vez para as calçadas rachadas e telhados esburacados de nosso antigo mundo, tentando – e às vezes conseguindo – me lembrar de uma época em que as coisas não eram tão desoladoras.

– Você sente saudade em algum momento? – pergunto a Kenji. – De como as coisas costumavam ser?

Kenji está com o peso do corpo apoiado em apenas um dos pés, limpando alguma sujeira do outro coturno, quando ergue o olhar e franze a testa.

– Não sei exatamente do que você acha que se lembra, J, mas as coisas não eram muito melhores do que estão agora.

– O que quer dizer com isso? – pergunto, apoiando o corpo em um dos velhos postes de luz.

– O que você quer dizer com isso? – ele rebate. – Como pode sentir saudade de alguma coisa da sua antiga vida? Pensei que detestasse a vida que levava com seus pais. Pensei que tivesse dito que eles eram horríveis e abusivos.

– Sim, de fato eram – afirmo, virando o rosto. – E não tínhamos muitos bens. Mas há algumas coisas que gosto de lembrar, alguns momentos agradáveis... Antes de o Restabelecimento chegar ao poder. Acho que só sinto saudade das coisinhas que me faziam feliz. – Olho outra vez para ele e sorrio. – Entende?

Ele arqueia uma sobrancelha. Então, decido esclarecer:

– Sabe... o barulho do carrinho de sorvete todas as tardes, ou o carteiro passando na rua. Eu me sentava perto da janela e assistia às pessoas voltando do trabalho para casa ao anoitecer. – Desvio novamente o olhar, nostálgica. – Era gostoso.

– Hum.

– Você não achava?

Os lábios de Kenji se repuxam em um sorriso infeliz enquanto inspeciona sua bota, agora já sem aquela sujeira.

– Não sei, mocinha. Esses carrinhos de sorvete nunca passavam no meu bairro. O mundo do qual me lembro era deteriorado e racista e volátil pra cacete, pronto para ser hostilmente tomado por algum regime de merda. Já estávamos divididos. A conquista foi fácil. – Respira fundo e suspira ao dizer: – Enfim, eu fugi de um orfanato quando tinha oito anos, então não tenho muitas memórias emocionantes ou positivas.

Congelo, surpresa. Preciso de um segundo para encontrar minha voz.

– Você morou em um orfanato?

Kenji assente antes de me oferecer uma risada curta e destituída de humor.

– Sim. Passei um ano morando nas ruas, cruzando o Estado como um andarilho. Você sabe, antes de termos setores. Até Castle me encontrar.

– O quê? – Meu corpo fica rígido. – Por que você nunca me contou essa história? Convivemos esse tempo todo e... e você nunca falou nada disso...

Ele dá de ombros.

– Chegou a conhecer seus pais? – indago.

Ele assente, mas não olha para mim.

Sinto meu sangue gelar.

– O que aconteceu com eles?

– Não importa.

– É claro que importa – digo, tocando seu cotovelo. – Kenji...

– Não tem importância – responde, afastando-se. – Todos nós temos problemas. Todos temos questões pessoais do passado. Precisamos aprender a conviver com elas.

– Não se trata de saber lidar com seu passado – retruco. – Eu só quero saber. Sua vida, seu passado... são importantes para mim.

Por um momento, lembro-me outra vez de Castle – seus olhos, sua urgência – e sua insistência de que há mais coisas que preciso saber também sobre o passado de Warner.

Tenho tanto a descobrir sobre as pessoas com as quais me importo.

Kenji enfim abre um sorriso, mas é um sorriso que o faz parecer cansado. Por fim, suspira. Sobe rapidadamente alguns degraus rachados que levam à entrada de uma antiga biblioteca e senta-se no concreto frio. Nossa guarda armada nos espera, mas fora de nosso campo de visão.

Kenji bate a mão no chão a seu lado.

Apresso-me pelos degraus para me sentar.

Daqui olhamos para um antigo cruzamento, semáforos velhos e fios de eletricidade destruídos e emaranhados caídos na calçada. E ele diz:

– Então, você sabe que eu sou japonês, não é?

Assinto.

– Bem, onde cresci, as pessoas não estavam habituadas a verem rostos como o meu. Meus pais não nasceram aqui; falavam japonês e um inglês bem ruim. Algumas pessoas não gostavam nada disso. Enfim, morávamos em uma região bem complicada, com muitas pessoas ignorantes. E pouco antes de o Restabelecimento começar sua campanha, prometendo sanar todos os problemas da nossa população ao extinguir culturas e línguas e religiões e todo o resto, as relações raciais estavam em seu pior momento. Havia muita violência no continente como um todo. Comunidades em guerra, matando umas às outras. Se você tivesse a cor errada na hora errada... – ele usa os dedos para simular uma arma e atirar no ar –, as pessoas o faziam desaparecer. Nós evitávamos problemas, sempre que possível. As comunidades asiáticas não sofriam tanto quanto as comunidades negras, por exemplo. Os negros estavam na pior situação. Castle pode contar mais sobre isso a você. Ele tem as histórias mais terríveis. Mas o pior que minha família teve de enfrentar foi, com uma certa frequência, ouvir gente falar merda quando saíamos juntos. Lembro que chegou um momento em que minha mãe nunca mais quis sair de casa.

Sinto meu corpo ficando tenso.

– Mas enfim... – Ele dá de ombros. – Meu pai só... você sabe... ele não conseguia suportar aquele lugar nem ouvir as pessoas falando merda da família dele, entende? Ele ficava realmente furioso. Não que isso acontecesse o tempo todo nem nada assim, mas quando de fato acontecia, às vezes terminava em discussão, outras vezes não. Não parecia ser o fim do mundo. Mas minha mãe sempre implorava para meu pai ignorar, deixar para lá, mas ele não conseguia. – Seu semblante fica sombrio. – E não o culpo. Certo dia, as coisas terminaram muito mal. Naquela época, todo mundo andava armado, lembra? Os civis tinham armas. É uma loucura imaginar algo assim agora, sob o Restabelecimento, mas na época todos andavam armados, tinham suas próprias armas. – Kenji fica em silêncio por um instante. – Meu pai também comprou um revólver. Disse que precisávamos ter aquela arma, por precaução. Para nossa própria segurança. – Kenji não olha para mim ao continuar: – E, quando vieram falar merda de novo, meu pai resolveu ser um pouco corajoso demais. Eles usaram a arma contra ele. Meu pai tomou um tiro. Minha mãe tomou um tiro quando foi tentar acabar com a briga. Eu tinha sete anos.

– Você estava lá? – ofego.

Ele assente.

– Vi tudo acontecer.

Cubro a boca com as duas mãos. Meus olhos ardem com as lágrimas não derramadas.

– Eu nunca contei essa história para ninguém – confessa, franzindo o cenho. – Nem mesmo para Castle.

– O quê? – Baixo as mãos. Estou de olhos arregalados. – Por que não?

Ele nega com a cabeça.

– Não sei – responde baixinho, olhando ao longe. – Quando conheci Castle, tudo ainda era muito recente, entende? Ainda era real demais. Quando ele quis conhecer a minha história, falei que não queria tocar nesse assunto. Nunca. – Kenji olha para mim. – Depois de um tempo, ele parou de perguntar.

Impressionada, só consigo encará-lo. Estou sem palavras.

Kenji vira o rosto. Parece falar consigo mesmo ao dizer:

– É tão estranho contar tudo isso em voz alta. – Ele respira com dureza, fica de pé bruscamente e vira a cabeça para que eu não consiga olhar em seu rosto. Ouço-o fungar alto, 2 vezes. E então ele enfia as mãos nos bolsos para dizer: – Sabe, acho que talvez eu seja o único de nós que não teve problema com o pai. Eu amava meu pai. Pra caralho.

Ainda estou pensando na história de Kenji – e em quantas coisas ainda tenho a descobrir sobre ele, sobre Warner, sobre todos aqueles que passei a chamar de amigos – quando a voz de Winston me arrasta de volta ao presente.

– Ainda estamos buscando uma maneira de dividir os quartos – anuncia. – Mas está dando certo. Aliás, estamos um pouco adiantados na programação dos quartos. Warner acelerou o trabalho na asa leste, então podemos começar a mudança amanhã.

Ouço uma breve salva de palmas. Alguém grita animado.

Estamos fazendo um rápido tour no nosso novo quartel.

A maior parte do espaço aqui ainda está em construção, então o que mais vemos é uma bagunça barulhenta e empoeirada, mas fico animada ao notar o progresso. Nosso grupo precisava desesperadamente de mais quartos, banheiros, mesas e escritórios. E temos de criar um verdadeiro centro de comando, de onde possamos efetivamente trabalhar. Espero que esse seja o começo de um novo mundo. O mundo no qual sou a comandante suprema.

Parece loucura.

Por enquanto, os detalhes do que faço e controlo ainda estão sendo esclarecidos. Não desafiaremos os outros setores ou seus líderes até termos uma ideia melhor de quais podem ser nossos aliados, e isso significa que precisaremos de um pouco mais de tempo.

“A destruição do mundo não aconteceu do dia para a noite, portanto, sua salvação também não acontecerá”, Castle gosta de dizer, e acho que ele está certo. Precisamos tomar decisões conscientes para avançar, e investir em um esforço para manter a diplomacia pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seria muito mais fácil realizar um progresso global se, por exemplo, não fôssemos os únicos trabalhando por uma transformação.

Precisamos forjar alianças.

Contudo, a conversa entre mim e Castle hoje cedo me deixou muito incomodada. Não sei mais o que sentir – ou o que esperar. Só sei que, apesar da máscara de coragem que visto para falar com os civis, não quero sair de uma guerra para entrar em outra; não quero ter de matar todo mundo que ficar no meu caminho. As pessoas do Setor 45 estão confiando seus entes queridos a mim – inclusive seus filhos e cônjuges, que se tornaram meus soldados – e não quero arriscar mais suas vidas, a não ser que isso se prove absolutamente necessário. Espero me adaptar a essa situação. Espero que exista uma chance, por menor que seja, de alguma cooperação conjunta com os demais setores e os 5 outros comandantes supremos. Algo assim poderia render bons frutos no futuro. E me pergunto se poderíamos conseguir nos unir sem derramar mais sangue.

– Isso é ridículo. E ingênuo – Kenji diz.

Ergo o rosto na direção de sua voz, olho em volta. Está conversando com Ian. Ian Sanchez, um cara alto, magro, um pouco convencido, verdade seja dita, mas de bom coração. O único sem superpoderes entre nós. Não que isso tenha importância.

Ian mantém a coluna ereta, os braços cruzados na altura do peito, a cabeça virada para o lado, os olhos voltados para o teto.

– Não me importo com o que você pensa...

– Bem, eu me importo – ouço Castle interromper. – Eu me importo com o que Kenji diz.

– Mas...

– E também me importo com o que você pensa, Ian – Castle prossegue. – Mas precisa entender que, nesse caso especificamente, Kenji está certo. Temos que abordar tudo com muito cuidado. Não há como saber ao certo o que está para acontecer.

Exasperado, Ian suspira.

– Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que não entendo por que precisamos de todo este espaço. É desnecessário.

– Espere... Qual é o problema aqui? – questiono, olhando em volta. E então me dirijo a Ian: – Por que você não gosta deste novo espaço?

Lily passa o braço pelos ombros de Ian.

– Ian só está triste – ela comenta, sorrindo. – Não gosta de estragar a festa do pijama.

– O quê? – pergunto, franzindo o cenho.

Kenji dá risada.

Ian fecha a cara.

– Eu só acho que estamos bem onde estamos – explica. – Não sei por que precisamos nos mudar para tudo isto. – Ele abre os braços enquanto analisa o espaço cavernoso. – Parece um destino tentador. Ninguém se lembra do que aconteceu da última vez em que construímos um enorme esconderijo?

Vejo Castle tremer.

Acho que todos nos lembramos.

O Ponto Ômega, destruído. Bombardeado até se transformar em nada. Décadas de trabalho árduo varridas em um instante.

– Não vai acontecer de novo – garanto, com firmeza. – Além do mais, estamos mais protegidos do que nunca aqui. Temos todo um exército conosco agora. Estamos mais seguros neste prédio do que estaríamos em qualquer outro lugar.

Minhas palavras são recebidas com um coro imediato de apoio, mas ainda assim me pego arrepiada, porque sei que as palavras que acabei de dizer são só parcialmente verdadeiras.

Não tenho como saber o que vai acontecer conosco ou quanto tempo duraremos aqui. O que realmente sei é que precisamos de um novo espaço – e precisamos resolver isso enquanto ainda temos fundos. Ninguém tentou nos boicotar ainda; nenhuma sanção foi imposta pelos demais continentes ou comandantes. Pelo menos, não por enquanto. O que significa que precisamos passar pela fase de reconstrução enquanto ainda temos financiamento.

Mas isso...

Esse espaço enorme dedicado tão somente aos nossos esforços?

Isso é tudo coisa de Warner.

Ele foi capaz de liberar um andar inteiro para nós – o último andar, o 15o do quartel do Setor 45. Foi necessário um esforço hercúleo para transferir e distribuir o equivalente a todo um andar de pessoal, trabalho e móveis para outros departamentos, mas, de alguma maneira, ele conseguiu resolver tudo. Agora o andar está sendo reformado especificamente para atender às nossas necessidades.

Quando tudo estiver concluído, teremos tecnologia de ponta que nos permitirá ter acesso não apenas às pesquisas e segurança de que precisamos, mas também às ferramentas para Winston e Alia continuarem criando novos aparelhos, dispositivos e uniformes de que possamos precisar um dia. Muito embora o Setor 45 já tenha sua ala médica, precisaremos de um local seguro para Sonya e Sara trabalharem, um lugar onde serão capazes de continuar desenvolvendo antídotos e soros que um dia poderão salvar vidas.

Estou prestes a explicar tudo isso quando Delalieu entra na sala.

– Suprema – diz, assentindo em minha direção.

Ao som de sua voz, todos damos meia-volta.

– Sim, tenente?

Um leve tremor permeia sua voz quando ele diz:

– A senhora tem um visitante. Ele está pedindo dez minutos do seu tempo.

– Visitante? – Instintivamente me viro para Kenji, que parece tão confuso quanto eu.

– Sim, senhora – confirma Delalieu. – Ele está esperando no térreo, na sala principal da recepção.

– Mas quem é essa pessoa? – pergunto, preocupada. – De onde ela veio?

– Seu nome é Haider Ibrahim. É o filho do comandante supremo da Ásia.

Sinto meu corpo travar com a apreensão repentina. Não sei se sou tão boa assim em esconder o pânico que se espalha por mim quando digo:

– Filho do comandante supremo da Ásia? Ele falou o que o trouxe aqui?

Delalieu nega com a cabeça.

– Sinto muito, mas o visitante se recusou a dar qualquer detalhe, senhora.

Estou arquejando, a cabeça girando. De repente, só consigo pensar na preocupação de Castle com a Oceania ainda hoje de manhã. O medo em seus olhos. As muitas perguntas que se recusou a responder.

– O que devo dizer a ele, senhora? – Delalieu insiste.

Sinto meu coração acelerar. Fecho os olhos. Você é a comandante suprema, digo a mim mesma. Aja como tal.

– Senhora?

– Sim, claro. Diga a ele que eu já...

– Senhorita Ferrars. – A voz aguda de Castle atravessa a névoa em meu cérebro. Olho em sua direção. – Senhorita Ferrars – repete, agora com um tom de advertência nos olhos. – Talvez devesse esperar.

– Esperar? – indago. – Esperar o quê?

– Esperar para encontrá-lo só quando o senhor Warner também puder estar presente.

Minha confusão se transforma em raiva.

– Obrigada pela preocupação, Castle, mas eu posso resolver isso sozinha.

– Senhorita Ferrars, imploro para que reconsidere. Por favor – pede, agora com mais urgência na voz. – A senhorita precisa entender... Não estamos falando de um assunto menor. O filho de um comandante supremo... pode significar muito...

– Como eu disse, obrigada por sua preocupação – interrompo-o, minhas bochechas queimando.

Ultimamente, tenho sentido que Castle não tem fé em mim – como se não estivesse torcendo nem um pouco por mim –, o que me faz pensar outra vez na conversa desta manhã. E me leva a questionar se posso acreditar em alguma coisa do que ele diz. Que tipo de aliado ficaria ali parado, expondo minha inépcia diante de todos os presentes? Faço tudo o que está ao meu alcance para não gritar com ele quando prossigo:

– Posso lhe assegurar de que vou me sair bem.

Então, viro-me para Delalieu:

– Tenente, por favor, diga ao nosso visitante que descerei em um momento.

– Sim, senhora.

Ele assente e vai embora.

Infelizmente, minha bravata sai pela porta com Delalieu.

Ignoro Castle enquanto busco o rosto de Kenji na sala; apesar de tudo que falei, não quero enfrentar essa situação sozinha. E Kenji me conhece muito bem.

– Oi, estou aqui. – Ele cruza a sala com apenas alguns poucos passos; em segundos está ao meu lado.

– Você vem comigo, não vem? – sussurro, puxando a manga de sua blusa como se eu fosse uma criança.

Kenji dá risada.

– Estarei onde você precisar de mim, mocinha


Warner

Sinto um enorme medo de me afogar no oceano do meu próprio silêncio.

No tamborilar contínuo que acompanha a quietude, minha mente é cruel comigo. Penso demais. E sinto, talvez muito mais do que deveria. Seria apenas um leve exagero dizer que meu objetivo na vida é vencer a minha mente, as minhas lembranças.

Então, tenho que continuar me empenhando.

Costumava me recolher ao subsolo quando queria um momento de distração. Costumava encontrar conforto em nossas câmaras de simulação, nos programas criados para preparar os soldados para o combate. Porém, como recentemente fizemos um grupo de soldados se mudarem para o subsolo em meio a todo o caos da nova construção, não consigo encontrar alívio. Não tenho escolha senão subir.

Entro no hangar a passos rápidos que ecoam pelo vasto espaço enquanto caminho, quase instintivamente, na direção do helicóptero militar na extremidade da ala direita. Os soldados me veem e se apressam em sair do meu caminho, seus olhos entregando a confusão mesmo enquanto batem continência para mim. Faço um gesto breve na direção deles, sem oferecer explicações enquanto subo na aeronave. Coloco os fones no ouvido e falo baixinho no rádio, avisando aos controladores de tráfego aéreo que tenho intenção de levantar voo, e aperto o cinto no banco da frente. O leitor de retina me identifica automaticamente. Tudo pronto. Ligo o motor e o rugido é ensurdecedor, mesmo com os fones que abafam o ruído. Sinto meu corpo começando a relaxar.

E logo estou no ar.

Meu pai me ensinou a atirar quando eu tinha nove anos. Quando completei dez, ele rasgou a parte traseira da minha perna e me ensinou a suturar meus próprios ferimentos. Quando tinha onze, ele quebrou meu braço e me abandonou na natureza por duas semanas. Aos doze, aprendi a fazer e desarmar minhas próprias bombas. Ele começou a me ensinar a pilotar aeronaves quando completei treze anos.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta. Tive de aprender sozinho.

Quando estou a milhares de pés do chão, o Setor 45 parece um jogo de tabuleiro parcialmente montado. A distância faz o mundo parecer pequeno e transponível, um comprimido fácil de engolir. Mas sei muito bem que essa ideia é ilusória, e é aqui, acima das nuvens, que finalmente entendo Ícaro. Também me sinto tentado a voar perto demais do Sol. É apenas minha incapacidade de não ser prático que me mantém amarrado à Terra. Então, respiro para me acalmar e volto ao trabalho.

Hoje estou fazendo meu voo mais cedo que de costume, por isso as imagens lá embaixo são diferentes daquelas que aprendi a esperar todos os dias. Em um dia comum, eu estaria aqui em cima no fim da tarde, verificando os civis que saem do trabalho e trocam seu dinheiro nos Centros de Abastecimento. Em geral, voltam apressados a seus complexos logo em seguida, cansados, levando para casa os produtos básicos recém-adquiridos e a ideia desanimadora de que terão de fazer tudo outra vez no dia seguinte. Agora todos ainda estão no trabalho, deixando a Terra sem as formigas operárias. A paisagem é bizarra e bela quando vista de longe, com o vasto oceano, azul, de tirar o fôlego. Mas conheço muito bem a superfície marcada do nosso mundo.

Essa realidade estranha e triste que meu pai ajudou a criar.

Fecho os olhos com força enquanto minha mão agarra o acelerador. Simplesmente há coisas demais para enfrentar hoje.

Em primeiro lugar, a tranquilizadora ideia de que tenho um irmão cujo coração é tão complicado e problemático quanto o meu.

Em segundo lugar, e talvez o mais desagradável: a chegada iminente de assuntos ligados ao meu passado, e a ansiedade que os acompanha.

Ainda não conversei com Juliette sobre a chegada iminente de nossos convidados e, para ser sincero, nem sei mais se quero falar sobre isso. Nunca discuti muito a minha vida com ela. Nunca contei histórias de meus amigos de infância, seus pais, a história do Restabelecimento e meu papel dentro dele. Nunca tive tempo. Nunca chegou o momento certo. Juliette é comandante suprema já há dezessete dias, e nosso relacionamento tem só dois dias a mais do que isso.

Nós dois andamos ocupados.

E mesmo assim superamos tantas coisas – todas as complicações que surgiram entre nós, toda a distância e a confusão, todos os mal-entendidos. Ela passou tanto tempo sem confiar em mim. Sei que a culpa é só minha pelo que aconteceu entre nós, mas tenho medo de as coisas ruins do passado gerarem em Juliette um instinto de desconfiança em mim; provavelmente, já estou acostumado a isso a essa altura da vida. E tenho certeza de que lhe contar mais sobre a minha vida execrável só vai piorar as coisas logo no início de um relacionamento que quero tão desesperadamente manter. Proteger.

Então, por onde começo?

No ano em que completei dezesseis anos, nossos pais, os comandantes supremos, decidiram que deveríamos nos alternar em atirar uns nos outros. Não para matar, só para ferir. Queriam que soubéssemos qual era a sensação de ser atingido por uma bala. Queriam que entendêssemos o processo de convalescência. Acima de tudo, queriam que soubéssemos que nossos amigos podiam nos atacar a qualquer momento.

Sinto a boca repuxar em um sorriso infeliz.

Suponho que tenha sido uma lição importante. Afinal, agora meu pai está sete palmos abaixo da terra e seus velhos amigos parecem não dar a mínima. Mas o problema naquele dia foi ter sido ensinado por meu pai, um atirador de excelência. Pior ainda: eu já praticava todos os dias há cinco anos – dois anos a mais que os outros – e, como resultado, era mais rápido, mais cruel e mais treinado que meus companheiros. Não hesitei. Atirei em todos antes que eles sequer conseguissem pegar suas armas.

Aquele foi o primeiro dia em que senti, com algum grau de certeza, que meu pai tinha orgulho de mim. Havia passado tanto tempo buscando desesperadamente sua aprovação e, naquele dia, senti que finalmente a conquistara. Ele me olhou como eu sempre quis que me olhasse: como um pai que se importava comigo. Como um pai que via um pouquinho de si em seu filho. Perceber isso me fez ir para a floresta, onde logo vomitei no meio dos arbustos.

Só fui atingido por uma bala uma vez na vida.

A memória ainda me mata de vergonha, mas não me arrependo de tê-la. Eu mereci. Por não entendê-la, por tratá-la mal, por estar perdido e confuso. Mas tenho tentado muito ser um homem diferente; ser, se não mais gentil, no mínimo melhor. Não quero perder o amor que consegui conquistar.

Não quero que Juliette saiba do meu passado.

Não quero dividir histórias da minha vida, histórias que só me enojam e revoltam, histórias que maculariam a impressão que ela tem de mim. Não quero que saiba como eu passava meu tempo quando criança. Ela não precisa saber quantas vezes meu pai me forçou a vê-lo arrancar a pele de animais mortos, não precisa saber que ainda sinto a vibração de seus gritos em meus ouvidos enquanto ele me chutava várias e várias vezes porque me atrevia a desviar o olhar. Preferiria não ter de relembrar as horas que passei algemado em um quarto escuro, forçado a ouvir os barulhos fabricados de mulheres e crianças gritando desesperadas por ajuda. Tudo isso era para me tornar mais forte, ele dizia. Era para me ajudar a sobreviver.

Em vez disso, a vida com meu pai só me fez desejar a morte.

Não quero contar a Juliette que sempre soube que meu pai era infiel, que abandonara minha mãe há muito tempo, que eu sempre quis matá-lo, que sonhava que o matava, planejava sua morte, esperava um dia quebrar seu pescoço usando justamente as habilidades que ele próprio me fizera desenvolver.

Não quero contar que falhei. Todas as vezes.

Porque sou fraco.

Não tenho saudade dele. Não tenho saudade da vida dele. Não quero os seus amigos ou o seu impacto em minha alma. Mas, por algum motivo, seus velhos camaradas não vão me dar paz.

Eles estão vindo para cá para pegar o seu quinhão, e receio que dessa vez – como aconteceu em todas as outras vezes – acabarei pagando com meu coração.


Juliette

Kenji e eu estamos no quarto de Warner – que passou também a ser o meu quarto –, parados no meio do cômodo onde fica o guarda-roupa, enquanto lanço roupas na direção dele, tentando decidir o que usar.

– O que acha desta? – indago, jogando uma peça brilhante em sua direção. – Ou desta? – E lanço outra bola de tecido.

– Você não sabe nada sobre roupas, sabe?

Dou meia-volta, inclino a cabeça.

– Ah, desculpa, mas quando foi que tive oportunidade de aprender sobre moda, Kenji? Enquanto crescia sozinha e torturada por pais horríveis? Ah, não... Talvez enquanto apodrecia em um hospício?

Minhas palavras o deixam em silêncio.

– Então, o que acha? – insisto, apontando com o queixo. – Qual?

Ele segura as duas peças que lancei em sua direção e franze a testa.

– Você está me fazendo escolher entre um vestido curto e brilhante e calças de pijama? Bem, digamos que... acho que eu escolheria o vestido? Mas não sei se vai ficar bom com esses tênis surrados que você sempre usa.

– Oh. – Olho para meus tênis. – Bom, não sei. Warner escolheu essas coisas para mim há muito tempo, antes de sequer me conhecer. Só tenho eles – admito, olhando para cima. – Essas roupas são sobras do que recebi logo que cheguei ao Setor 45.

– Por que não usa a roupa que fizeram para você? – Kenji questiona, apoiando o corpo na parede. – O traje novo que Alia e Winston confeccionaram para você?

Nego com a cabeça.

– Eles ainda não concluíram os últimos ajustes. E ainda há manchas de sangue de quando atirei no pai de Warner. Além disso... – Respiro fundo e prossigo: – Eu era diferente. Usava aqueles trajes que me cobriam da cabeça aos pés quando pensava ter de proteger as pessoas da minha pele. Mas agora eu sou diferente. Posso desligar o meu poder. Posso ser... normal. – Tento sorrir. – Portanto, quero me vestir como uma pessoa normal.

– Mas você não é uma pessoa normal.

– Eu sei disso. – Uma onda de calor produzido pela frustração aquece minhas bochechas. – Eu só... acho que gostaria de me vestir como uma pessoa normal. Talvez só por um tempo? Nunca pude agir como alguém da minha idade e só quero me sentir um pouco...

– Eu entendo – Kenji admite, erguendo uma das mãos para me interromper. Olha-me de cima a baixo. E prossegue: – Bem, digamos que, se é isso que está buscando, acho que já está com uma aparência normal agora. Essas roupas funcionam. – E aponta na direção do meu corpo.

Estou usando calça jeans e um suéter rosa. Meus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto. Sinto-me à vontade e normal – mas também me sinto como uma menina de 17 anos desacompanhada e fingindo ser algo que não é.

– Mas eu supostamente sou a comandante suprema da América do Norte – insisto. – Acha normal eu me vestir assim? Warner sempre está com ternos refinados, sabe? Ou roupas bem legais. Sempre parece tão equilibrado... tão intimidador...

– A propósito, onde ele está? – Kenji me interrompe. – Quero dizer, sei que você não quer ouvir isso, mas concordo com Castle. Warner deveria estar aqui para esse encontro.

Respiro fundo. Tento me manter calma.

– Sei que Warner sabe de tudo, está bem? Sei que ele é o melhor em praticamente tudo, que nasceu para essa vida. O pai dele o preparou para liderar o mundo. Em outra vida, outra realidade? Esse papel deveria ser dele. Sei muito bem disso. Sei, mesmo.

– Mas?

– Mas este não é o trabalho de Warner, é? – respondo, furiosa. – É o meu trabalho. E estou tentando não depender dele o tempo todo. Quero tentar fazer algumas coisas sozinhas. Assumir o controle.

Kenji não parece convencido.

– Não sei, J. Acho que talvez essa seja uma daquelas situações em que você ainda devesse contar com a ajuda dele. Warner conhece esse mundo melhor do que a gente e, além do mais, é capaz de dizer quais roupas você deveria usar. – Kenji dá de ombros. – Moda realmente não é minha área de expertise.

Pego o vestido curto e brilhante e o examino.

Há pouco mais de duas semanas enfrentei sozinha centenas de soldados. Apertei a garganta de um homem com minhas próprias mãos. Enfiei duas balas na testa de Anderson, e fiz isso sem hesitar ou me arrepender. Mas aqui, diante de um armário cheio de roupas, estou intimidada.

– Talvez eu devesse mesmo chamar Warner – admito, olhando por sobre o ombro, na direção de Kenji.

– Exato! – Ele aponta para mim. – Boa ideia.

Mas então,

– Ah, não... Esqueça – contrario a mim mesma. – Está tudo bem. Eu vou me sair bem, não vou? Quero dizer, qual é o problema? O cara é só um descendente, não é? Só o filho de um comandante supremo. Não é um comandante supremo de verdade. Certo?

– Ahhh... Tudo isso é assunto de gente grande, J. Os filhos dos comandantes são, tipo, outros Warners. Basicamente, são mercenários. E foram preparados para tomar o lugar de seus pais...

– É... não... eu sem dúvida devo enfrentar sozinha essa situação. – Estou me olhando no espelho agora, arrumando meu rabo de cavalo. – Certo?

Kenji faz uma negativa com a cabeça.

– Sim. Exato – insisto.

– É... bem... não... Acho essa uma péssima ideia.

– Eu sou capaz de fazer algumas coisas sozinha, Kenji – esbravejo. – Não sou nenhuma sem noção.

Ele suspira.

– Como quiser, princesa.


Warner

– Senhor Warner... Por favor, senhor Warner, devagar, senhor...

Paro subitamente, dando meia-volta decidido. Castle está me perseguindo pelo corredor, acenando com uma mão frenética na minha direção. Adoto uma expressão moderada para olhá-lo nos olhos.

– Posso ajudá-lo?

– Onde você estava? – pergunta, visivelmente sem ar. – Estive procurando por você em toda parte.

Arqueio uma sobrancelha, lutando contra a necessidade de lhe dizer que meu paradeiro não é da sua conta.

– Tive que dar algumas voltas aéreas.

Castle franze a testa.

– Mas não costuma fazer isso mais no fim da tarde?

Suas palavras quase me fazem sorrir.

– Então você andou me observando...

– Não vamos fazer joguinhos aqui. Você também andou me observando.

Agora realmente sorrio.

– Andei?

– Você subestima demais a minha inteligência.

– Não sei o que pensar de você, Castle.

Ele ri alto.

– Ora, ora, você é um excelente mentiroso.

Desvio o olhar.

– O que você quer comigo?

– Ele chegou. Está aqui agora e ela está com ele e eu tentei contê-la, mas ela se recusou a me ouvir.

Alarmado, viro o rosto.

– Quem está aqui?

Pela primeira vez, vejo a raiva se acender nos olhos de Castle.

– Agora não é hora de se fazer de desentendido comigo, garoto. Haider Ibrahim está aqui. Sim, ele já chegou. E Juliette foi encontrá-lo sozinha, completamente despreparada.

O choque me deixa momentaneamente sem palavras.

– Você ouviu o que eu disse? – Castle quase grita. – Ela tem uma reunião com ele agora.

– Como? – indago, voltando a mim. – Como ele já está aqui? Chegou sozinho?

– Senhor Warner, por favor, me escute. Você precisa conversar com ela. Precisa explicar a situação, e precisa explicar agora – ele alerta, agarrando meus ombros. – Eles vieram atrás del...

Castle é lançado para trás, com força.

Grita enquanto se recompõe, os braços e pernas esticados à sua frente, como se tivesse sido levado por um golpe de vento. Continua nessa posição impossível, pairando vários centímetros acima do chão, e me encara, arfando. Lentamente, ele se ajeita. Seus pés enfim tocam o chão.

– Você usaria meus próprios poderes contra mim? – diz, arquejando. – Eu sou seu aliado...

– Nunca – aconselho-o rispidamente –, jamais coloque suas mãos em mim, Castle. Ou da próxima vez posso matá-lo por acidente.

Ele pisca os olhos. E então percebo, posso sentir como se fosse capaz de segurá-la com minhas próprias mãos: pena de mim. Está por toda parte. Horrível. Sufocante.

– Não se atreva a sentir pena de mim – advirto-o.

– Peço desculpas – fala baixinho. – Não queria invadir seu espaço pessoal. Mas precisa entender a urgência da situação. Primeiro, aquela resposta da Oceania... E agora, Haider chega? Isso é só o começo – conjectura, baixando ainda mais a voz. – Eles estão se mobilizando.

– Você está procurando pelo em ovo – rebato, com a voz instável. – A chegada de Haider hoje tem exclusivamente a ver comigo. A inevitável infestação do Setor 45 por um enxame de comandantes supremos tem exclusivamente a ver comigo. Eu cometi uma traição, lembra? – Balanço a cabeça e saio andando. – Eles só estão meio... irritados.

– Pare – ele pede. – Ouça o que tenho a dizer.

– Não precisa se preocupar com isso, Castle. Eu dou conta.

– Por que não me escuta? – Agora ele está de novo correndo atrás de mim. – Eles vieram para levá-la de volta com eles, garoto! Não podemos deixar isso acontecer!

Eu congelo.

Viro-me para encará-lo. Meus movimentos são lentos, cuidadosos.

– Do que está falando? Levá-la de volta para onde?

Castle não responde. Em vez disso, seu rosto fica inexpressivo. Confuso, olha na minha direção.

– Tenho mil coisas a fazer – continuo, agora impaciente. – Portanto, se puder ser breve e adiantar de que droga está falando...

– Ele nunca contou a você, contou?

– Quem? Contou o quê?

– Seu pai. Ele nunca contou a você. – Castle passa a mão no rosto. De um instante para o outro, parece velho, prestes a morrer. – Meu Deus, ele nunca contou a você.

– Do que está falando? O que foi que ele nunca me contou?

– A verdade – Castle responde. – A verdade sobre a senhorita Ferrars.

Encaro-o, sinto o medo comprimir o meu peito.

Castle balança a cabeça enquanto diz:

– Ele nunca contou de onde ela realmente veio, contou? Nunca contou a verdade sobre os pais dela.


Juliette

– Pare de tremer, J.

Estamos no elevador panorâmico, a caminho de uma das principais áreas de recepção, e não posso deixar de ficar agitada.

Fecho os olhos com bastante força. E tagarelo:

– Meu Deus, eu sou uma total sem noção, não sou? O que estou fazendo? Minha aparência não está nem perto de ser profissional...

– Quer saber? Quem se importa com as suas roupas? – Kenji fala. – No fim das contas, tudo é uma questão de atitude. De como você se comporta.

Ergo o olhar na direção do rosto dele, notando mais do que nunca a diferença de altura entre nós.

– Mas eu sou tão baixinha.

– Napoleão também era baixinho.

– Napoleão era horrível – declaro.

– Mas fez muitas coisas, não fez?

Franzo a testa.

Kenji me cutuca com o cotovelo.

– Mesmo assim, talvez fosse melhor não mascar chiclete – aconselha.

– Kenji – chamo-o, ouvindo apenas em parte suas palavras. – Acabo de me dar conta de que nunca conheci nenhum oficial estrangeiro.

– Eu sei. Eu também não – confessa, bagunçando meus cabelos. – Mas vai dar tudo certo. Você só precisa se acalmar. E, a propósito, você está uma graça. Vai se sair bem.

Afasto a mão dele com um tapa.

– Posso não saber muito ainda sobre o que é ser uma comandante suprema, mas sei que não devo estar uma graça.

E então, o elevador emite um ruído e a porta se abre.

– Quem foi que disse que você não pode estar uma graça e botar moral ao mesmo tempo? – Ele pisca um olho para mim. – Eu mesmo sou uma graça e boto moral todos os dias.

– Caramba... sabe de uma coisa? Esquece o que eu falei – é a primeira coisa que Kenji me diz. Parece constrangido e me lança um olhar de soslaio ao continuar: – Talvez você realmente devesse melhorar seu guarda-roupa.

Eu poderia morrer de vergonha.

Seja lá quem for, sejam quais forem as suas intenções, Haider Ibrahim é a pessoa mais bem-vestida que já encontrei na vida. Ele não se parece com ninguém que eu já tenha visto na vida.

Ele se levanta quando entramos na sala – é alto, muito alto – e, no mesmo instante, fico impressionada com sua aparência. Usa uma jaqueta de couro cinza por cima do que imagino ser uma camisa, mas na verdade é uma série de correntes tecidas, atravessando o peito. Sua pele é bem bronzeada e está parcialmente exposta; a parte superior do corpo fica pouco escondida pela camisa de correntes. A calça preta afunilada desaparece dentro dos coturnos que vão até a canela, e seus olhos castanho-claros formam um contraste impressionante com a pele bronzeada e são emoldurados por cílios longos e negros.

Agarro meu suéter rosa e nervosamente engulo o meu chiclete.

– Oi – cumprimento-o e começo a acenar, mas Kenji é gentil o bastante para abaixar a minha mão. Pigarreio. – Sou Juliette.

Haider caminha na minha direção com cautela, seus olhos repuxados no que parece ser um semblante de confusão enquanto me avalia. Sinto-me desconfortavelmente constrangida. Extremamente despreparada. E, de repente, uma necessidade desesperadora de usar o banheiro.

– Olá – ele finalmente cumprimenta, mas a palavra soa mais como uma pergunta.

– Podemos ajudá-lo? – pergunto.

– Tehcheen Arabi?

– Ah. – Olho para Kenji, depois para Haider. – Hum, você não fala inglês?

Haider arqueia uma única sobrancelha.

– Você só fala inglês?

– Sim? – respondo, sentindo-me mais nervosa do que nunca.

– Que pena. – Ele bufa. Olha em volta. – Estou aqui para ver a comandante suprema. – Sua voz é intensa e profunda, e vem acompanhada de um discreto sotaque.

– Sim, oi, sou eu – respondo com um sorriso no rosto.

Seus olhos ficam arregalados, incapazes de esconder a confusão.

– Você é... – Franze a testa. – A suprema?

– Aham. – Abro um sorriso ainda maior.

Diplomacia, digo a mim mesma. Diplomacia.

– Mas a informação que nos chegou foi a de que ela era forte, letal... Aterrorizante...

Faço uma afirmação com a cabeça. Sinto meu rosto esquentar.

– Sim, sou eu mesma. Juliette Ferrars.

Haider inclina a cabeça, seus olhos analisando meu corpo.

– Mas você é tão pequena. – Ainda estou tentando encontrar um jeito de responder a isso quando ele balança a cabeça e diz: – Peço desculpas, eu quis dizer que... que é tão jovem. Mas claro, também é muito pequena.

Meu sorriso já começa a provocar dor no rosto.

– Então foi você – indaga, ainda confuso – quem matou o Supremo Anderson?

Assinto. Dou de ombros.

– Mas...

– Perdão – Kenji entra na conversa. – Você tem um motivo específico para ter vindo aqui?

Haider parece impressionado com a pergunta. Olha para Kenji.

– Quem é esse homem?

– Ele é meu segundo em comando – respondo. – E pode ficar à vontade para responder quando ele falar com você.

– Ah, está bem – Haider afirma com um ar de compreensão nos olhos. Acena para Kenji. – Um membro da sua Guarda Suprema.

– Eu não tenho uma Gua...

– Exatamente – Kenji responde, batendo rapidamente o cotovelo em minhas costelas para me calar. – Perdoe-me por ser um pouco superprotetor. – Sorri. – Tenho certeza de que entende.

– Sim, claro – Haider admite, parecendo solidário.

– Podemos nos sentar? – convido-o, apontando para os sofás da sala. Ainda estamos parados na entrada e a situação já começa a ficar constrangedora.

– Claro. – Haider me oferece o braço para enfrentar a jornada de quatro metros até os sofás, e lanço um rápido olhar confuso para Kenji.

Ele dá de ombros.

Nós três tomamos nossos assentos; Kenji e eu ficamos de frente para o visitante. Há uma mesa de centro longa de madeira entre nós, e Kenji pressiona o botão minúsculo embaixo dela para chamar o serviço de café e chá.

Haider não para de me encarar. Seu olhar não é nem lisonjeiro nem ameaçador – parece genuinamente confuso. E fico surpresa ao perceber que é essa reação que me deixa mais desconfortável. Se seus olhos demonstrassem raiva ou desprezo, talvez eu soubesse melhor como reagir. Em vez disso, ele parece calmo e agradável, mas... surpreso. E não sei o que fazer com isso. Kenji estava certo. Eu queria, mais do que nunca, que Warner estivesse aqui; sua habilidade de perceber emoções me daria uma ideia mais clara de como responder.

Enfim, quebro o silêncio entre nós.

– É realmente um prazer conhecê-lo – digo, esperando soar mais gentil do que realmente me sinto. – Mas eu adoraria saber o que o traz aqui. Afinal, percorreu um longo caminho...

Nesse momento, Haider sorri. A reação traz um toque de calor tão necessário ao seu rosto, fazendo-o parecer mais jovem do que antes.

– Curiosidade – é tudo o que oferece em resposta.

Dou o meu melhor para esconder a ansiedade.

A cada instante fica mais óbvio que ele foi enviado para cá para realizar algum tipo de reconhecimento e levar informações para seu pai. A teoria de Castle estava certa – os comandantes supremos devem estar morrendo de curiosidade para saber quem sou eu. E começo a me perguntar se esses seriam os primeiros dos vários olhos à espreita que virão me visitar.

Nesse momento, o serviço de chá e café chega.

Os homens e mulheres que trabalham no Setor 45 – aqui e nos complexos – andam mais animados do que nunca ultimamente. Há uma injeção de esperança em nosso setor, algo que não existe em nenhum outro lugar do continente, e as duas senhoras que se apressam para dentro da sala com o carrinho de comida não são imunes aos efeitos dos eventos recentes. Lançam sorrisos enormes e calorosos na minha direção e arrumam a porcelana com uma exuberância que não passa despercebida. Noto que Haider observa nossa interação muito de perto, examinando o rosto das mulheres e a maneira à vontade como se movimentam na minha presença. Agradeço-as por seu trabalho, o que deixa meu visitante visivelmente espantado. Com as sobrancelhas erguidas, ajeita-se no sofá, entrelaça as mãos sobre as pernas, um cavalheiro perfeito, totalmente em silêncio até as mulheres saírem.

– Vou aproveitar sua gentileza por algumas semanas – Haider anuncia de repente. – Quero dizer, se isso não for problema.

Franzo o cenho, começo a protestar, mas Kenji me interrompe:

– Claro – diz, abrindo um sorriso enorme. – Fique todo o tempo que desejar. O filho de um comandante supremo é sempre bem-vindo aqui.

– Vocês são muito gentis – elogia, fazendo uma breve reverência com a cabeça.

Ele então hesita, toca alguma coisa em seu punho e nossa sala em um instante é invadida por pessoas que parecem ser membros de sua comitiva.

Haider se levanta tão rapidamente que quase não percebo seu movimento.

Kenji e eu nos apressamos para também ficar de pé.

– Foi um prazer conhecê-la, Comandante Suprema Ferrars – diz o visitante, dando um passo à frente para apertar minha mão, e fico surpresa com sua coragem. Apesar dos muitos rumores que sei que ouviu a meu respeito, não parece se importar em se aproximar de minha pele. Não que isso tenha importância, obviamente... Já aprendi a ligar e desligar meus poderes sempre que eu quiser. Mas nem todo mundo sabe disso ainda.

De qualquer modo, ele dá um rápido beijo nas costas da minha mão, sorri e faz uma reverência muito discreta.

Consigo abrir um sorriso desajeitado e fazer uma breve reverência.

– Se me disser quantas pessoas trouxe em sua comitiva – Kenji começa a dizer –, posso já ir cuidando das acomodações para...

Surpreso, Haider solta uma gargalhada.

– Ora, não será necessário – afirma. – Eu trouxe minha própria residência.

– Você trouxe... – Kenji franze a testa. – Você trouxe sua própria residência?

Haider assente, mas sem olhar para Kenji. Quando volta a falar, dirige-se exclusivamente a mim:

– Espero encontrá-la com o restante da sua guarda hoje no jantar.

– Jantar? – repito, piscando rapidamente os olhos. – Hoje?

– É claro – Kenji apressa-se em dizer. – Esperaremos ansiosamente.

Haider assente.

– Por favor, mande lembranças minhas ao seu Regente Warner. Já se passaram vários meses desde nossa última visita, mas espero ansiosamente vê-lo. Ele já falou sobre mim, é claro? – Um sorriso enorme estampa seu rosto. – Nós nos conhecemos desde a infância.

Impressionada, só consigo assentir. A percepção dos fatos começa a afastar a confusão.

– Sim. Certo. É claro. Tenho certeza de que Warner ficará muito feliz com a oportunidade de vê-lo.

Mais uma afirmação com a cabeça e Haider vai embora.

Kenji e eu ficamos sozinhos.

– Que porra foi...

– Ah – Haider passa a cabeça pela porta. – E, por favor, avise ao seu chef que eu não como carne.

– Claro – Kenji confirma, assentindo e sorrindo. – Sim, certamente. Pode deixar.


Warner

Estou sentado no escuro, de costas para a porta do quarto, quando ouço alguém abri-la. Ainda é o meio da tarde, mas estou há tanto tempo sentado aqui, olhando para essas caixas fechadas, que parece que até o Sol se cansou de me observar.

A revelação de Castle me deixou atordoado.

Ainda não confio em Castle – não acredito que fizesse a mínima ideia do que estava falando –, mas, ao fim da conversa, não consegui afastar uma terrível sensação de medo, e meus instintos passaram a implorar uma verificação dos fatos. Eu precisava de tempo para processar as possibilidades. Para ficar sozinho com meus pensamentos. E quando expressei isso a Castle, ele respondeu: “Processe tudo o que quiser, garoto, mas não deixe nada distraí-lo. Juliette não deve se encontrar sozinha com Haider. Alguma coisa não me parece certa nisso, senhor Warner, e você precisa encontrá-los e estar com eles. Agora. Mostre a ela como navegar pelo nosso mundo”.

Mas não consegui fazer isso.

Apesar de todos os meus instintos de protegê-la, eu não a limitaria assim. Juliette não pediu minha ajuda hoje. Fez a escolha de não me contar o que estava acontecendo. Minha intromissão abrupta e indesejada só a faria pensar que concordo com Castle, ou seja, que não acredito que ela seja capaz de realizar seu trabalho. E eu não concordo com Castle. Na verdade, acho-o um idiota por subestimá-la. Então, voltei para cá, para este quarto, para pensar. Para olhar os segredos não revelados de meu pai. Para esperar a chegada dela.

E agora...

A primeira coisa que Juliette faz é acender a luz.

– Oi – cumprimenta com cautela. – O que está acontecendo?

Respiro fundo e viro-me em sua direção.

– Esses são os arquivos antigos de meu pai – explico, apontando com uma das mãos. – Delalieu reuniu tudo isso para mim. Pensei em dar uma olhada para ver se alguma coisa aqui poderia ser útil.

– Ah, nossa! – exclama, seus olhos iluminam-se ao reconhecê-los. – Eu estava mesmo me perguntando o que seriam essas coisas. – Atravessa o cômodo para se agachar ao lado das caixas, passando cuidadosamente os dedos por elas. – Precisa de ajuda para levá-las ao seu escritório?

Nego com a cabeça.

– Quer que eu ajude a separá-las? – propõe, olhando por cima do ombro. – Eu ficaria feliz em...

– Não – respondo, muito prontamente. Levanto-me, faço um esforço para parecer calmo. – Não, não será necessário.

Juliette arqueia as sobrancelhas.

Tento sorrir.

– Acho que quero passar um tempo sozinho com esses arquivos.

Ao ouvir minhas palavras, ela assente, mas entende tudo errado e seu sorriso compreensivo faz meu peito apertar. Sinto um instinto, uma sensação gelada esfaqueando meu interior. Ela acha que eu quero espaço para enfrentar minha dor. Que mexer nas coisas do meu pai será difícil para mim.

Mas Juliette não sabe. Queria eu mesmo não saber.

– Então... – ela fala enquanto se aproxima da cama, deixando as caixas de lado. – Hoje foi um dia... interessante.

A pressão em meu peito se intensifica.

– Foi?

– Acabo de conhecer um velho amigo seu – conta, soltando o corpo no colchão.

Leva a mão atrás da cabeça para soltar os cabelos, até agora presos em um rabo de cavalo, e suspira.

– Um velho amigo meu? – repito.

Mas, enquanto ela fala, só consigo encará-la, estudar a forma de seu rosto. Não consigo, no presente momento, saber com total certeza se o que Castle me falou é verdade; mas sei que encontrarei nos arquivos de meu pai, nas caixas empilhadas dentro desse quarto, as respostas que procuro.

Mesmo assim, ainda não tenho coragem de olhar.

– Ei – ela chama, acenando para mim. – Você ainda está aí?

– Sim – respondo reflexivamente. Respiro fundo. – Sim, meu amor.

– Então... Você se lembra dele? – ela indaga. – Haider Ibrahim?

– Haider. – Confirmo com um gesto. – Sim, claro. É o filho mais velho do comandante supremo da Ásia. Ele tem uma irmã – falo, mas roboticamente.

– Bem, eu não soube da irmã – ela conta. – Mas Haider está aqui. E vai passar algumas semanas. Vamos todos jantar com ele hoje à noite.

– A pedido dele, certamente.

– Sim. – Ela ri. – Como você sabe?

Sorrio. Vagamente.

– Eu me lembro muito bem de Haider.

Juliette fica em silêncio por um instante. Em seguida, conta:

– Ele me revelou que vocês se conhecem desde a infância.

E eu sinto, embora não consiga dar nome a essa sensação, a tensão repentina que se espalha pelo quarto. Só faço um gesto afirmativo.

– Isso é muito tempo – Juliette prossegue.

– Sim. Muito tempo mesmo.

Ela se mexe na cama. Apoia o queixo em uma das mãos e me encara.

– Pensei que você tivesse dito que nunca teve amigos.

As palavras dela me fazem rir, mas o som é falso.

– Não sei se chamaria nossa relação de amizade, exatamente.

– Não?

– Não.

– Será que poderia elaborar um pouco mais?

– Há pouco a ser dito.

– Bem... Se vocês não são exatamente amigos, por que então Haider está aqui?

– Tenho minhas suspeitas.

Ela suspira. Diz que também tem as suas e morde a parte interna da bochecha.

– Acho que é assim que começa, não é? Todos querem dar uma olhada no show de horrores. No que fizemos... Em quem eu sou. E vamos ter que dançar conforme a música.

Mas só estou ouvindo vagamente suas palavras.

Em vez disso, encaro as muitas caixas atrás de Juliette, as palavras de Castle ainda ecoando em minha mente. Lembro que devo dizer alguma coisa a ela, qualquer coisa, para parecer envolvido na conversa. Então, tento sorrir ao dizer:

– Você não me disse que ele tinha chegado. Queria ter estado lá para ajudá-la de alguma forma.

As bochechas dela, subitamente rosadas de constrangimento, contam uma história; seus lábios contam outra.

– Não achei que precisasse contar tudo a você o tempo todo. Consigo cuidar sozinha de algumas coisas.

Seu tom duro é tão surpreendente que força minha cabeça a se concentrar. Olho-a nos olhos e noto que ela está me encarando com um olhar repleto de dor e raiva.

– Não foi isso que eu quis dizer – explico. – Você sabe que acredito que você é capaz de fazer qualquer coisa, meu amor. Mas eu poderia ter dado uma ajudinha a você. Conheço essa gente.

Agora seu rosto está ainda mais ruborizado. Ela não consegue me olhar nos olhos.

– Eu sei – admite baixinho. – Eu sei. Só tenho me sentido um pouco sobrecarregada ultimamente. E hoje cedo tive uma conversa com Castle, uma conversa que deixou minha cabeça um pouco confusa. – Suspira. – Estou me sentindo estranha hoje.

Meu coração começa a bater rápido demais.

– Você conversou com Castle?

Ela assente.

Esqueço-me de respirar.

– Ele disse que precisávamos conversar sobre algumas coisas. – Juliette me fita. – Por exemplo, há mais coisas sobre o Restabelecimento que você não me contou?

– Mais sobre o Restabelecimento?

– Sim. Há alguma coisa que você deva me contar?

– Alguma coisa que eu deva contar...

– Hum, você vai continuar repetindo o que eu digo? – ela questiona, dando risada.

Sinto meu corpo relaxar. Um pouquinho.

– Não, não, é claro que não – respondo. – Eu só... Eu sinto muito, meu amor. Confesso que também estou um pouco aéreo hoje. – Aponto para as caixas do outro lado do quarto. – Parece que tenho muito a descobrir sobre meu pai.

Ela balança a cabeça, seus olhos grandes e tristes.

– Sinto muito, de verdade. Deve ser horrível ter que ver todas as coisas dele assim.

Suspiro e falo mais para mim mesmo do que para ela:

– Você não tem ideia. – Então, viro o rosto. Ainda estou olhando para o chão, a cabeça pesada com o que aconteceu hoje e as demandas que o dia geraram. Juliette estende a mão para testar minha reação, e pronuncia apenas uma palavra.

– Aaron?

E então posso sentir, posso sentir a mudança, o medo, a dor em sua voz. Meu coração continua batendo forte demais, mas agora por um motivo totalmente diferente.

– O que foi? – pergunto, olhando imediatamente para ela. Sento-me ao seu lado na cama, estudo seus olhos. – O que aconteceu?

Ela balança a cabeça. Olha para suas mãos abertas. Sussurra ao dizer:

– Acho que cometi um erro.

Meus olhos se arregalam enquanto a observo. Seu rosto se contrai. Suas emoções saem do controle, agredindo-me com seu ardor. Juliette está com medo. Está com raiva. Com raiva de si mesma por sentir medo.

– Você e eu somos tão diferentes – admite. – Ao conhecer Haider hoje, eu apenas... – Suspira. – Eu lembrei de como somos diferentes. Como nossa criação foi diferente.

Estou congelado. Confuso. Sinto seu medo e apreensão, mas não sei onde ela quer chegar com isso. Ou o que está tentando dizer.

– Então você acha que cometeu um erro? – indago. – Sobre... nós?

Sinto um pânico repentino enquanto ela processa o que estou dizendo.

– Não! Meu Deus! Não sobre nós – ela se apressa em responder. – Não, eu só...

Sou inundado por um alívio.

– ... eu ainda tenho muito a aprender – prossegue. – Não sei nada sobre governar... nada. – Juliette emite um ruído de impaciência e irritação. Mal consegue pronunciar as palavras. – Eu não fazia ideia do que estava aceitando. E todos os dias me sinto extremamente incompetente. Às vezes, não sei se consigo acompanhar seu ritmo nisso tudo. – Hesita antes de acrescentar baixinho: – Esse trabalho deveria ter ficado com você, você sabe disso. Não devia ser meu.

– Não.

– Sim – ela retruca, assentindo. Não consegue mais olhar no meu rosto. – Todo mundo pensa isso, mesmo que não diga. Castle. Kenji. Aposto que até os soldados pensam.

– Todos podem ir para o inferno.

Ela sorri de leve.

– Acho que podem estar certos.

– As pessoas são idiotas, meu amor. A opinião delas não tem o menor valor.

– Aaron – Juliette franze a testa ao pronunciar a palavra. – Agradeço por você ficar com raiva por mim, de verdade, mas nem todas as pessoas são idio...

– Se a consideram incapaz, é porque são idiotas. Idiotas porque já se esqueceram que você foi capaz de realizar em questão de meses o que eles passaram décadas tentando. Esquecem-se de onde você partiu, o que superou, a velocidade com a qual encontrou a coragem necessária para lutar quando mal conseguia ficar de pé.

Parecendo derrotada, Juliette ergue o rosto.

– Mas eu não sei nada de política.

– Você não tem experiência – digo a ela. – Isso é verdade. Mas pode aprender essas coisas. Ainda tem tempo. Estou disposto a ajudar. – Seguro sua mão. – Meu amor, você inspirou as pessoas deste setor a seguirem-na em uma batalha. Elas colocaram a própria vida em risco e sacrificaram seus entes queridos porque acreditaram em você. Na sua força. E você não as decepcionou. Jamais se esqueça da enormidade do que fez. Não deixe ninguém tirar isso de você.

Ela me encara com olhos arregalados, brilhando. Pisca ao desviar o rosto, enxugando rapidamente uma lágrima que escapou.

– O mundo tentou esmagá-la – digo, agora com um tom mais gentil. – E você se recusou a se estilhaçar. Venceu cada um dos obstáculos e saiu uma pessoa mais forte, ressurgindo das cinzas e deixando todos à sua volta impressionados. E vai continuar surpreendendo e confundindo aqueles que a subestimam. É inevitável. Mesmo assim, você deve estar preparada e deve saber que ser líder é uma ocupação ingrata. Poucas pessoas demonstrarão qualquer sinal de gratidão pelo que você faz ou pelas mudanças que implementa. Elas têm memória curta... Aliás, elas têm memórias que surgem de acordo com a conveniência. Qualquer nível de sucesso que você alcançar será escrutinizado. Suas conquistas serão deixadas de lado, só servirão para gerar mais expectativas naqueles à sua volta. Seu poder acaba afastando-a dos amigos. – Desvio o olhar, nego com a cabeça. – Você vai se sentir sozinha. Perdida. Vai desejar a aprovação daqueles que no passado admirou, pode agonizar entre agradar velhos amigos e fazer o que é certo. – Ergo o rosto, sinto o coração inchar de orgulho enquanto olho para ela. – Mas você não deve nunca, nunca mesmo, deixar os idiotas a influenciarem. Isso só vai fazê-la se perder.

Os olhos de Juliette brilham com lágrimas não derramadas.

– Mas como? – pergunta com uma voz instável. – Como eu tiro essas pessoas da minha cabeça?

– Ateie fogo nelas.

Juliette arregala os olhos.

– Mentalmente – esclareço, arriscando um sorriso. – Deixe essas pessoas alimentarem o fogo que a mantém lutando. – Estendo a mão, uso os dedos para acariciar seu rosto. – Idiotas são altamente inflamáveis, meu amor. Deixe todos eles queimarem no inferno.

Ela fecha os olhos, ajeita o rosto em minha mão.

E eu a puxo para perto, encostando minha testa à sua.

– Aqueles que não a entendem sempre duvidarão de você – afirmo.

Ela se afasta uns poucos centímetros. Olha para cima.

– E eu... – continuo. – Eu nunca duvidei de você.

– Nunca?

Nego com a cabeça.

– Em momento algum.

Juliette desvia o olhar. Enxuga os olhos. Dou um beijo em sua bochecha, sinto o sal das lágrimas.

Ela se vira outra vez para mim.

Quando me olha, consigo sentir. Sinto seus medos desaparecendo, sinto suas emoções se transformando. Suas bochechas coram. Sua pele de repente fica quente e elétrica sob meu toque. Meu coração bate mais rápido, mais forte, e ela não precisa dizer nada. Posso sentir a temperatura entre nós mudar.

– Oi – ela diz. Mas está olhando para minha boca.

– Olá.

Ela encosta seu nariz no meu e alguma coisa dentro de mim ganha vida. Sinto minha respiração acelerar. Meus olhos se fecharem voluntariamente.

– Eu te amo – ela diz.

Essas palavras provocam alguma coisa em mim toda vez que as ouço. Elas me transformam. Criam algo novo dentro de mim. Engulo em seco. Sinto o fogo consumir minha mente.

– Sabe... – sussurro. – Nunca me canso de ouvi-la dizer isso.

Juliette sorri. Toca o nariz na linha do meu maxilar enquanto se ajeita, levando os lábios à minha garganta. Estou sem ar, morrendo de medo de me mexer, de perder esse momento.

– Eu te amo – ela repete.

Minhas veias são tomadas por um calor escaldante. Sinto-a em meu sangue, seus sussurros esmagando meus sentidos. E por um segundo repentino, desesperado, penso na possibilidade de estar sonhando.

– Aaron – ela me chama.

Estou perdendo uma batalha. Temos muito a fazer, muito do que cuidar. Sei que deveria agir, sair dessa situação, mas não consigo. Não consigo pensar.

E então ela sobe no meu colo e minha respiração se torna acelerada, desesperada, uma luta contra um ímpeto de prazer e dor. Não tenho como fingir nada quando Juliette está assim, tão próxima de mim. Sei que é capaz de me sentir, que consegue sentir quanto a quero.

Eu também consigo senti-la.

Seu calor. Seu desejo. Ela não esconde o que quer de mim. O que quer que eu faça com ela. E saber disso só deixa meu tormento mais agudo.

Ela me dá um beijo suave, suas mãos deslizando por baixo da minha blusa, e me abraça. Puxo-a para perto e ela se acomoda no meu colo, fazendo-me novamente respirar de forma dolorosa e angustiante. Todos os meus músculos se enrijecem. Tento não me mexer.

– Sei que já é tarde – ela diz. – Sei que temos um milhão de coisas para fazer. Mas sinto sua falta. – Juliette estende o braço, os dedos deslizando pelo zíper das minhas calças, seu toque fazendo meu corpo arder em chamas. Minha visão fica turva. Por um momento, não ouço nada além do meu coração latejando na cabeça.

– Você está tentando me matar – digo.

– Aaron. – Posso sentir seu sorriso quando ela sussurra no meu ouvido, ao mesmo tempo em que desabotoa minha calça. – Por favor.

E eu... eu me entrego.

De repente, tenho uma mão em sua nuca, a outra em volta da sua cintura, e eu a beijo, fundindo-me com ela, caindo para trás na cama e puxando-a comigo. Eu sonhava com isso – com momentos assim –, como seria abrir o zíper de sua calça jeans, deslizar os dedos por sua pele nua, senti-la, quente e macia, contra meu corpo.

Paro de súbito. Afasto-me. Quero admirá-la, estudá-la. Lembrar a mim mesmo que Juliette está realmente aqui, que é mesmo minha. Que me deseja tanto quanto eu a desejo. E quando a olho nos olhos sou tomado por um sentimento avassalador, que ameaça me afogar. E logo ela está me beijando, mesmo enquanto me esforço para recuperar o ar, e tudo, todo tipo de pensamento e preocupação, é empurrado para longe, substituído pela sensação de sua boca na minha pele. Suas mãos, reivindicando o meu corpo.

Meu Deus, isso é uma droga irresistível.

Juliette me beija como se soubesse. Soubesse... como eu preciso desesperadamente disso, preciso dela, preciso desse conforto e libertação.

Como se ela também precisasse.

Seguro-a em meus braços, viro-a tão rápido que ela chega a gemer de surpresa. Beijo seu nariz, as bochechas, os lábios. Os contornos de nossos corpos se fundem. Sinto-me dissolvendo, transformando-me em pura emoção quando ela abre a boca, quando me saboreia, quando geme em minha boca.

– Eu te amo – consigo dizer, cada palavra ofegante. – Eu te amo.

É mesmo interessante notar quão rapidamente me tornei o tipo de pessoa que cochila no fim da tarde. A pessoa que fui no passado jamais desperdiçaria tanto tempo dormindo. Por outro lado, aquele indivíduo do passado nunca soube relaxar. Dormir era brutal, ilusório. Mas agora...

Fecho os olhos, encosto meu rosto em sua nuca e respiro.

Ela se mexe quase imperceptivelmente ao me sentir ali.

Seu corpo nu esquenta junto ao meu, meus braços a envolvem. São seis horas. Tenho mil coisas a fazer e não quero, de jeito nenhum, sair daqui.

Beijo seus ombros e ela arqueia as costas, suspira e vira-se para me olhar. Puxo-a para perto.

Juliette sorri. E me beija.

Fecho os olhos, minha pele ainda quente com a memória de seu corpo. Minhas mãos estudam a forma de seus contornos, seu calor. Sempre me impressiono com a maciez de sua pele. Suas curvas são suaves. Sinto meus músculos se retesarem com anseio e me surpreendo com quanto a desejo.

Outra vez.

Rápido assim.

– É melhor nos vestirmos – ela sugere com uma voz arrastada. – Ainda preciso me encontrar com Kenji para conversar sobre hoje à noite.

De repente, recuo.

– Caramba – sussurro, afastando-me. – Não era isso mesmo que eu esperava ouvi-la dizer.

Juliette ri. Muito alto.

– Hum. Kenji é um assunto que não o deixa animado. Já entendi.

Sentindo-me mesquinho, só consigo franzir a testa.

Ela beija meu nariz.

– Eu realmente queria que vocês dois fossem amigos.

– Ele é um desastre ambulante – retruco. – Veja o que fez com meus cabelos.

– Mas é meu melhor amigo – ela rebate, ainda sorrindo. – E não tenho tempo para escolher entre vocês dois o tempo todo.

Olho de soslaio para ela. Agora está sentada na cama, o corpo coberto apenas com o lençol. Seus cabelos castanhos e longos estão desgrenhados; as bochechas, rosadas; os olhos, grandes e redondos e ainda um pouco sonolentos.

Não sei se seria capaz de dizer não a ela.

– Por favor, seja educado com ele – ela pede, arrastando-se sobre mim, prendendo o lençol no joelho e perdendo a compostura.

Arranco o lençol de uma vez por todas, o que a faz arfar, surpresa com a imagem de seu próprio corpo nu. E não consigo evitar: tenho que tirar vantagem do momento, então a puxo outra vez para debaixo de mim.

– Por quê? – questiono, beijando seu pescoço. – Por que se sente tão ligada assim a esse lençol?

Juliette desvia o olhar e enrubesce, e estou outra vez perdido, beijando-a.

– Aaron – arfa, sem ar. – Eu tenho... tenho mesmo que ir.

– Não vá – sussurro, depositando leves beijos em sua clavícula. – Não vá.

Seu rosto está corado; os lábios, muito vermelhos. Os olhos, fechados, desfrutando do prazer.

– Eu não quero – admite, a respiração presa enquanto seguro seu lábio inferior entre os meus dentes. – Não quero, mesmo, mas Kenji...

Bufo e solto o corpo no colchão, puxando um travesseiro para cobrir meu rosto.


Juliette

– Por onde você andou, caramba?

– O quê? Lugar nenhum – respondo, sentindo o calor tomar conta do meu corpo.

– Como assim, lugar nenhum? – Kenji insiste, quase pisando nos meus pés enquanto tento passar por ele. – Estou esperando aqui há quase duas horas.

– Eu sei... Desculpe...

Ele segura meus ombros, fazendo-me girar. Desliza o olhar por meu rosto e...

– Que nojo, J, mas que droga é...?

– O quê? – Arregalo os olhos, toda inocente, mesmo com o rosto em chamas.

Kenji me lança um olhar fuzilante.

Pigarreio.

– Eu falei para você fazer uma pergunta a ele.

– Eu fiz.

– Meu Deus do céu! – Kenji esfrega a mão agitada na testa. – Hora e lugar não significam nada para você?

– Hã?

Ele estreita os olhos para mim.

Abro um sorriso.

– Vocês dois são terríveis.

– Kenji – digo, estendendo a mão.

– Eca, não toque em mim...

– Está bem – respondo, franzindo a testa e cruzando os braços.

Ele faz uma negativa com a cabeça, desvia o olhar. Ostenta uma careta e fala:

– Quer saber? Que se dane! – E suspira. – Warner pelo menos contou alguma coisa útil antes de vocês dois... digamos, mudarem de assunto?

Kenji e eu acabamos de voltar à recepção, onde ainda há pouco encontramos Haider.

– Sim, contou – respondo, determinada. – Ele sabia exatamente de quem eu estava falando.

– E?

Sentamos nos sofás. Dessa vez, Kenji escolhe tomar o lugar à minha frente. Pigarreio. E me pergunto em voz alta se deveríamos pedir mais chá.

– Nada de chá. – Kenji solta o corpo no encosto do sofá, cruza as pernas, calcanhar direito apoiado no joelho esquerdo. – O que Warner revelou sobre Haider?

Seu olhar é tão focado e implacável que fico sem saber o que fazer. Sinto-me estranhamente constrangida. Queria ter lembrado de ter prendido outra vez os cabelos. Tenho que ficar o tempo todo afastando os fios do rosto.

Sentada, forço a coluna a permanecer ereta. Recomponho-me.

– Ele disse que nunca foram, de fato, amigos.

Kenji bufa.

– Até aí, nenhuma surpresa.

– Mas que se lembra dele – continuo, apontando para nada em particular.

– E? Do que ele lembra?

– Ah, hum. – Coço um incômodo imaginário atrás da orelha. – Não sei.

– Você não perguntou?

– Eu, é... esqueci?

Kenji revira os olhos.

– Droga, eu sabia que devia ter ido lá pessoalmente.

Sento-me sobre as mãos e tento sorrir.

– Quer pedir uma xícara de chá?

– Nada de chá! – Kenji lança um olhar furioso na minha direção. Pensativo, bate a mão na perna.

– Você quer...?

– Onde está Warner agora? – Kenji me interrompe.

– Não sei – respondo. – Acho que ainda está no quarto dele. Tinha um monte de caixas lá que ele queria analisar.

Kenji imediatamente se coloca de pé. Ergue um dedo.

– Eu já volto.

– Espere! Kenji... Não acho que seja uma boa ideia...

Mas ele já se foi.

Solto o corpo no sofá e suspiro.

Exatamente como suspeitei. Não foi uma boa ideia.

 

 

                             CONTINUA