Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.
CONTINUA
Warner está parado com o corpo todo enrijecido ao lado do meu sofá, quase sem olhar para Kenji. Acho que ainda não o perdoou pelo corte de cabelo desastroso, e não posso dizer que o culpo. Warner fica muito diferente sem seus cabelos dourados – não fica ruim, mas diferente. Agora os fios quase não alcançam meros centímetros, todos com tamanho uniforme, um tom de loiro que só começa a aparecer agora. Contudo, a transformação mais interessante em seu rosto é a barba suave por fazer, como se tivesse se esquecido de se barbear nos últimos dias. E me vejo surpresa ao me dar conta de que isso não me incomoda. Ele é naturalmente bonito demais para sua genética ser alterada por um simples corte de cabelo e, verdade seja dita, eu meio que gosto do que estou vendo. Hesito para lhe confessar isso, afinal, não sei se Warner apreciaria um elogio tão pouco convencional, mas há algo positivo nessa mudança. Parece um pouco mais durão agora, um pouco mais masculino. Está menos bonito, mas, ao mesmo tempo, irresistivelmente...
Mais sensual.
Cabelos curtos e descomplicados; aquela sombra de barba começando a aparecer; um rosto muito, muito sério.
Cai bem nele.
Está usando um suéter leve e azul-marinho – as mangas, como de costume, puxadas na altura do antebraço –, e calças justas enfiadas em botas pretas e lustrosas. É um visual sem esforço. E, nesse exato momento, mantém o corpo apoiado em um pilar, os braços cruzados na altura do peito, os pés cruzados na altura do tornozelo, parecendo mais carrancudo que de costume. E essa imagem muito me agrada.
Porém, não agrada nada a Kenji.
Os dois parecem mais irritados do que nunca, e percebo que sou a culpada pela tensão. Continuo insistindo em forçá-los a passar um tempo juntos. Continuo mantendo a esperança de que, por meio de experiências suficientes, Kenji vai passar a ver o que eu amo em Warner e Warner vai aprender a admirar o que admiro em Kenji... Mas meu plano parece não estar funcionando. Forçá-los a passar um tempo juntos já começa a se provar um tiro no pé.
– Então... – quebro o silêncio, unindo as mãos. – Podemos conversar?
– Claro – Kenji responde, mas continua olhando para a parede. – Vamos conversar.
Ninguém diz nada.
Cutuco o joelho de Warner. Quando ele olha para mim, gesticulo um convite para que se sente.
E ele se senta.
– Por favor – sussurro.
Warner franze a testa.
Finalmente, ainda relutante, suspira.
– Você disse que tinha perguntas a me fazer.
– Sim, a primeira: por que você é tão babaca?
Warner se levanta.
– Meu amor – fala baixinho. – Espero que me perdoe pelo que estou prestes a fazer com a cara dele.
– Ei, babaca, ouvi o que você falou.
– É sério, isso precisa parar. – Estou puxando o braço de Warner, tentando fazê-lo se sentar, mas ele se recusa. Minha força sobre-humana é totalmente inútil em Warner; ele simplesmente absorve o meu poder. – Por favor, sentem-se. Todos. E você... – Aponto para Kenji. – Você precisa parar de provocar brigas.
Kenji lança as mãos ao ar, emite um ruído que deixa clara sua descrença.
– Ah, então é sempre culpa minha, não é? Que se dane.
– Não – rebato veementemente. – Não é culpa sua. É culpa minha.
Surpresos, Kenji e Warner viram-se ao mesmo tempo para me encarar.
– Isso que está acontecendo – esclareço, apontando de um para o outro. – Fui eu quem provocou isso. Sinto muito por ter pedido que fossem amigos. Vocês não têm que ser amigos. Não têm sequer que gostar um do outro. Esqueçam tudo o que eu disse.
Warner descruza os braços.
Kenji arqueia as sobrancelhas.
– Eu prometo – asseguro. – Não teremos mais momentos de aproximação forçada. Não precisam mais passar tempo juntos sem a minha presença. Entendido?
– Jura? – Kenji lança.
– Eu juro.
– Graças a Deus! – Warner exclama.
– Digo o mesmo, irmão. Digo o mesmo.
E eu, irritada, reviro os olhos. Essa é a primeira vez que concordam em alguma coisa em mais de uma semana: seu ódio mútuo por minha esperança de que se tornem amigos.
Bem, pelo menos Kenji enfim abriu um sorriso. Ele se senta no sofá e parece relaxar. Warner toma o lugar ao meu lado – sereno, muito menos tenso.
E é isso. Era só disso que precisavam. A tensão se desfez. Agora que estão livres para odiarem um ao outro, parecem perfeitamente amigáveis. Simplesmente não consigo entendê-los.
– Então... você tem perguntas a me fazer, Kishimoto? – Warner indaga.
Kenji assente, inclina o corpo para a frente.
– Sim... Tenho. Quero saber tudo que se lembra da família Ibrahim. Temos que estar preparados para o que quer que Haider decida jogar na mesa hoje durante o jantar, o que... – Kenji olha para o relógio em seu pulso, franze a testa –, por sinal, começa em vinte minutos, não graças a vocês dois, mas enfim... fiquei pensando se poderia nos contar alguma coisa sobre as possíveis motivações dele. Eu gostaria de estar um passo à frente daquele cara.
Warner assente.
– A família de Haider vai levar mais tempo para desfazer as malas por aqui. De modo geral, eles são intimidantes. Mas Haider é muito menos complexo. Aliás, ele é uma escolha um tanto bizarra para uma situação como essa. Fico surpreso por Ibrahim não ter mandado sua filha.
– Por quê?
Warner dá de ombros.
– Haider é menos competente. É hipócrita. Mimado. Arrogante.
– Espere aí... Está descrevendo Haider ou a si mesmo?
Warner parece não dar a mínima para a provocação.
– Você não percebe uma diferença fundamental entre nós – prossegue. – É verdade que sou confiante. Mas Haider é arrogante. Não somos iguais.
– Para mim, parece tudo a mesma coisa.
Warner entrelaça os dedos e suspira, parecendo se esforçar ao máximo para ser paciente com uma criança terrível.
– Arrogância é confiança falsa – afirma. – Brota da insegurança. Haider finge não ter medo. Finge ser mais cruel do que de fato é. Mente com facilidade, o que o torna imprevisível e, em certas ocasiões, um oponente mais perigoso. Mas, na maior parte do tempo, suas ações são movidas pelo medo. – Warner ergue o rosto, olha Kenji nos olhos. – E isso o torna fraco.
– Ah, entendi. – Kenji deixa o corpo afundar no sofá enquanto processa as informações. – Alguma coisa particularmente interessante a respeito dele? Algo que devamos saber de antemão?
– Na verdade, não. Haider é medíocre na maioria das coisas. Só se sobressai ocasionalmente. É obcecado sobretudo pelo próprio corpo, e mais talentoso com rifles de precisão.
Kenji ergue o queixo.
– Obcecado pelo próprio corpo? Tem certeza de que vocês dois não são parentes?
Ao ouvir isso, Warner fecha a cara.
– Eu não sou obcecado pelo...
– Está bem, está bem, acalme-se! – Kenji acena com a mão. – Não precisa criar rugas nesse seu rostinho lindo por causa do meu comentário.
– Detesto você.
– Amo o fato de sentirmos a mesma coisa um pelo outro.
– Chega, vocês dois – falo em voz alta. – Foco. Temos um jantar com Haider em cinco minutos e parece que sou a única aqui preocupada com a revelação de que ele é um atirador especialmente talentoso.
– É, talvez ele esteja aqui para... – Kenji usa os dedos para simular uma arma apontada para Warner, depois para si próprio. – Treinar tiro ao alvo.
Ainda irritado, Warner faz uma negação com a cabeça.
– Haider é poser. Eu não me preocuparia com ele. Conforme já disse, eu me preocuparia mais se sua irmã estivesse aqui. O que significa que devemos começar a nos preocupar muito em breve. – Exala. – Tenho quase certeza de que será a próxima a chegar.
Ao ouvir as palavras, arqueio as sobrancelhas.
– Ela é mesmo tão assustadora assim?
Warner inclina a cabeça.
– Não é exatamente assustadora – diz para mim. – Ela é muito racional.
– Então ela é tipo... o quê? – Kenji pede esclarecimentos. – Psicopata?
– Longe disso. Mas sempre tive a impressão de que ela sente as pessoas e suas emoções, e nunca consegui ler direito aquela mulher. Acho que a mente dela funciona rápido demais. Há uma coisa um pouco... volúvel em sua forma de pensar. Como um beija-flor. – Suspira. Olha para cima. – Enfim, não a vejo há pelo menos alguns meses, mas duvido que tenha mudado.
– Como um beija-flor? – Kenji repete. – Então, tipo, ela fala rápido?
– Pelo contrário – Warner esclarece. – Ela costuma ser muito silenciosa.
– Hum... Entendi. Bem, fico contente por ela não estar aqui – Kenji fala. – Essa mulher parece um tédio.
Warner quase sorri.
– Ela poderia arrancar suas tripas.
Kenji revira os olhos.
Estou prestes a fazer outra pergunta quando um barulho repentino e irritante interrompe nossa conversa.
Delalieu veio nos buscar para o jantar.
Warner
Eu odeio de verdade ser abraçado.
Existem pouquíssimas exceções a essa regra, e Haider não é uma delas. Mesmo assim, toda vez que nos encontramos, ele insiste em me abraçar. Beija o ar dos dois lados do meu rosto, apoia a mão em meus ombros e sorri como se eu realmente fosse seu amigo.
– Hela habibi shlonak? É um prazer enorme vê-lo.
Finjo um sorriso.
– Ani zeyn, shukran. – Aponto para a mesa. – Sente-se, por favor.
– Claro, claro – concorda, e olha em volta. – Wenha Nazeera...?
– Oh – surpreendo-me. – Pensei que tivesse vindo sozinho.
– La, habibi – diz, enquanto se senta. – Heeya shwaya mitakhira. Mas ela deve chegar a qualquer momento. Estava muito animada com a oportunidade de vê-lo.
– Duvido muito disso.
– Hum, com licença, mas eu sou o único aqui que não sabia que você falava árabe? – Kenji me observa de olhos arregalados.
Haider solta uma risada, olhos luminosos enquanto analisa meu rosto.
– Seus novos amigos sabem bem pouco sobre você. – Depois, volta-se para Kenji: – Seu Regente Warner fala sete línguas.
– Você fala sete línguas?! – Juliette exclama, segurando meu braço.
– Às vezes – respondo baixinho.
O jantar de hoje é para um grupo pequeno. Juliette está sentada à cabeceira da mesa. Eu me encontro à sua direita; Kenji, à minha direita.
À minha frente está Haider Ibrahim.
À frente de Kenji, uma cadeira vazia.
– Então – diz Haider, unindo as mãos. – Essa é a sua nova vida? Tanta coisa mudou desde nosso último encontro.
Seguro o garfo.
– O que você veio fazer aqui, Haider?
– Wallah – diz, levando a mão ao peito. – Pensei que fosse ficar feliz em me ver. Eu queria conhecer todos os seus novos amigos. E, é claro, tinha de conhecer sua nova comandante suprema. – De canto de olho, avalia Juliette; o movimento é tão rápido que quase passa despercebido. Em seguida, pega seu guardanapo, abre-o cuidadosamente no colo e fala em um tom muito leve: – Heeya jidan helwa. Meu peito aperta.
– E isso é suficiente para você? – Ele inclina o corpo para a frente, de repente falando muito baixinho, de modo que só eu consiga ouvi-lo. – Um rostinho bonito? E você trai seus amigos com tanta facilidade assim?
– Se você veio aqui atrás de briga, por favor, não percamos tempo jantando antes – retruco.
Haider deixa escapar uma risada alta. Segura seu copo de água.
– Ainda não, habibi. – Toma um gole. Relaxa na cadeira. – Sempre temos tempo para jantar.
– Onde está sua irmã? – questiono, desviando o olhar. – Por que não vieram juntos?
– Por que não pergunta diretamente a ela?
Ergo o olhar e me surpreendo ao encontrar Nazeera parada na passagem da porta. Ela analisa a sala, e seu olhar detém-se no rosto de Juliette só um segundo a mais. Senta-se sem dizer uma única palavra.
– Meus caros, esta é Nazeera – Haider a apresenta, levantando-se com um salto e um sorriso enorme no rosto. Envolve a irmã com um braço na altura de seu ombro, mesmo enquanto ela o ignora. – Nazeera ficará aqui durante minha estada. Espero que a recebam com o mesmo calor humano que me receberam.
Nazeera não cumprimenta ninguém.
O rosto de Haider demonstra um exagero de felicidade. Nazeera, todavia, não esboça nenhuma expressão. Seus olhos são apáticos; o maxilar, solene. As únicas semelhanças entre esses dois irmãos são físicas. Ela tem a mesma pele bronzeada, os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cílios longos e escuros que protegem sua expressão do restante de nós. No entanto, cresceu muito desde a última vez que a vi. Seus olhos são maiores e mais profundos que os de Haider, e ela ostenta um pequeno piercing de diamante abaixo do lábio inferior, além de dois outros diamantes acima da sobrancelha direita. A única outra distinção óbvia entre os dois é que não consigo ver os cabelos dela.
Nazeera ostenta um xale de seda envolvendo a cabeça.
E não consigo evitar o choque. Isso é novidade. A Nazeera da qual me lembro não cobria os cabelos – e por que cobriria? Seu xale é uma relíquia, parte de nossa vida passada. É um artefato religioso e cultural que deixou de existir com a chegada do Restabelecimento. Já faz muito tempo que nosso movimento expurgou todos os símbolos e práticas de fé ou culturais em um esforço para restabelecer identidades e alianças, tanto que os locais de adoração foram as primeiras instituições a serem destruídas ao redor do mundo. Os civis, diziam, deveriam se curvar diante do Restabelecimento e nada mais. Cruzes, luas crescentes e estrelas de Davi – turbantes e quipás e hijabs e hábitos de freiras...
Tudo isso é ilegal.
E Nazeera Ibrahim, filha de um comandante supremo, é dotada de impressionante coragem. Porque esse simples xale, um detalhe aparentemente insubstancial, não é nada menos que um ato declarado de rebelião. Estou tão impressionado que não consigo segurar minhas próximas palavras:
– Você cobre os cabelos agora?
Ao me ouvir, ela ergue o rosto, olhando-me nos olhos. Toma um demorado gole de seu chá e me estuda. Por fim...
Não diz nada.
Sinto meu rosto prestes a registrar surpresa e tenho de me forçar a ficar parado. Ela claramente não se mostra interessada em discutir esse tema. Decido mudar de assunto. Estou prestes a dizer algo a Haider quando,
– Então, você pensou que ninguém fosse perceber? Que cobre os cabelos? – É Kenji, falando e mastigando ao mesmo tempo. Toco meus dedos nos lábios e desvio o olhar, lutando para esconder minha repulsa.
Nazeera finca o garfo em uma folha de alface em seu prato. Come-a.
– Quero dizer, você deve saber que a peça que está usando é uma ofensa digna de ser punida com prisão – Kenji continua falando para ela, ainda mastigando.
Nazeera parece surpresa ao ver Kenji insistindo nesse assunto. Seus olhos o analisam como se ele fosse um idiota.
– Perdão – ela fala com um tom leve, baixando o garfo. – Mas quem é você mesmo?
– Nazeera – Haider chama a atenção da irmã, tentando sorrir enquanto lança um cuidadoso olhar de soslaio para ela. – Por favor, lembre-se de que nós somos os convidados...
– Eu não sabia que havia um código de vestimenta aqui.
– Ah... Bem, acho que não temos um código de vestimenta aqui – Kenji retruca entre uma mordida e outra, alheio à tensão. – Mas isso só acontece porque temos uma nova comandante suprema que não é uma psicopata. Porém, continua sendo ilegal vestir-se assim – censura, apontando com a colher para o rosto dela. – Tipo, é ilegal literalmente em todos os lugares. Certo? – Desliza o olhar por todos nós, mas ninguém responde. – Não é? – insiste, concentrando-se em mim, ansioso por uma confirmação.
Faço um gesto positivo com a cabeça. Lentamente.
Nazeera bebe mais um demorado gole de seu chá, tomando cuidado ao descansar a xícara no pires antes de apoiar o corpo no encosto da cadeira, olhar-nos nos olhos e dizer:
– O que o leva a pensar que eu me importo com isso?
– Quero dizer... – Kenji franze a testa. – Você não tem que se importar? Seu pai é um dos comandantes supremos. Ele sabe que você usa essa coisa – aponta outra vez, agora para a cabeça de Nazeera – em público? Ele não vai ficar irritado?
Esse jantar não está indo nada bem.
Nazeera, que acabou de segurar outra vez o garfo para pegar um pouco de comida em seu prato, baixa o talher e suspira. Diferentemente do irmão, ela fala um inglês sem qualquer sotaque.
Está olhando para Kenji quando diz:
– Essa coisa?
– Desculpe – ele se expressa timidamente. – Não sei como chamam isso.
Nazeera sorri para ele, mas não há cordialidade em sua expressão. Apenas uma advertência. – Os homens sempre ficam tão desorientados com as roupas das mulheres. Tantas opiniões sobre um corpo que não lhes pertence. Cubra, não cubra. – Acena com a mão, deixando claro seu desdém. – Vocês parecem nunca se decidir.
– Mas... Não é isso que eu... – Kenji tenta se retratar.
– Sabe o que eu penso – ela o interrompe, ainda com um sorriso no rosto – sobre alguém me dizendo o que é legal ou ilegal na minha maneira de me vestir?
Ela ergue os dois dedos do meio.
Kenji engasga.
– Vá em frente – Nazeera o desafia, seus olhos brilhando furiosamente enquanto pega outra vez o garfo. – Conte ao meu pai. Alerte os inimigos. Estou pouco me fodendo para isso.
– Nazeera...
– Cale a boca, Haider.
– Nossa! Ei... desculpe – Kenji de repente fala, aparentando estar em pânico. – Eu não tinha a intenção de...
– Que se dane – ela responde, revirando os olhos. – Não estou com fome. – Ela se levanta de pronto. Com elegância. Existe algo interessante em sua raiva. Em seu protesto nada sutil. E ela é ainda mais impressionante de pé.
Tem as mesmas pernas longas e o corpo magro de seu irmão, e se sustenta com muito orgulho, como alguém que nasceu com posição e privilégios. Usa uma túnica cinza feita com um tecido refinado e denso; calça de couro justa; botas pesadas; e reluzentes socos ingleses de ouro nas duas mãos.
E eu não sou o único encarando.
Juliette, que ficara observando em silêncio durante todo o tempo, está com o rosto erguido, maravilhada. Posso praticamente ver seu processo de raciocínio enquanto ela subitamente enrijece o corpo, olha as próprias roupas e cruza os braços na altura do peito como se quisesse esconder seu suéter rosa. Puxa as mangas como se quisesse rasgá-las.
É tão adorável que quase a beijo bem ali.
Um silêncio pesado e desconfortável se instala entre nós depois que Nazeera vai embora.
Todos esperávamos questionamentos intensos vindos de Haider esta noite; em vez de lançar perguntas, todavia, ele permanece em silêncio, cutucando a comida, parecendo cansado e constrangido. Nenhum dinheiro ou prestígio no mundo pode proteger qualquer um de nós da agonia de jantares constrangedores em família.
– Por que teve que abrir a boca? – Kenji me dá uma cotovelada, fazendo-me estremecer, deixando-me surpreso.
– Perdão?
– Foi culpa sua – ele resmunga, ansioso. – Você não devia ter falado nada sobre o xale dela.
– Eu fiz uma pergunta – rebato duramente. – Foi você quem insistiu no assunto...
– Sim, mas você começou! Por que teve de comentar?
– Ela é filha de um comandante supremo – argumento, esforçando-me para falar baixo. – Sabe melhor do que ninguém que está usando uma peça ilegal segundo as leis do Restabelecimento.
– Ah, meu Deus! – Kenji exclama, balançando a cabeça. – Só... só pare, está bem?
– Como se atreve...
– O que vocês dois estão cochichando? – Juliette pergunta, aproximando-se.
– Só que seu namorado não sabe quando é hora de calar a boca – Kenji responde, levando mais uma colherada à boca.
– É você que é incapaz de ficar calado. – Desvio o rosto. – Não consegue nem ficar de boca fechada enquanto mastiga. Aliás, essa é só mais uma das coisas nojentas que você...
– Cale a boca, cara. Estou com fome.
– Acho que também vou me retirar por esta noite – Haider de repente anuncia. E se levanta.
Todos olhamos para ele.
– Claro – digo. E também me levanto para lhe desejar um boa-noite apropriado.
– Ani aasef – Haider diz, olhando para seu prato ainda parcialmente cheio. – Eu esperava ter uma conversa mais produtiva com todos vocês esta noite, mas receio que minha irmã esteja contrariada por estar aqui. – Suspira. – Mas você conhece Baba – diz para mim. – Ele não deu escolha a ela. – Haider dá de ombros. Tenta sorrir. – Nazeera ainda não entendeu que o que temos que fazer... a maneira como vivemos agora... – hesita – foi a vida que recebemos. Nenhum de nós teve escolha.
E, pela primeira vez esta noite, ele me surpreende; vejo alguma coisa que reconheço em seus olhos. Uma centelha de dor. O peso da responsabilidade. Expectativas.
Sei muito bem o que é ser filho de um comandante supremo do Restabelecimento. E como é se atrever a discordar de alguma coisa.
– Claro – digo a ele. – Eu entendo.
Eu realmente entendo.
Juliette
Warner acompanha Haider de volta aos aposentos que lhe foram reservados e, logo depois que os dois se retiram, o restante do nosso grupo vai embora. Foi um jantar estranho, extremamente curto e com muitas surpresas, e agora sinto dor de cabeça. Estou pronta para ir para a cama. Kenji e eu percorremos em silêncio o caminho que leva ao quarto de Warner, os dois perdidos em pensamentos.
É ele o primeiro a falar.
– Então... Você está muito quieta hoje – diz.
– Sim. – Dou risada, mas não há qualquer sinal de vida nela. – Estou exausta, Kenji. Foi um dia esquisito. E uma noite ainda mais bizarra.
– Em que sentido?
– Não sei, mas que tal começarmos com o fato de que Warner fala sete línguas? – Ergo o rosto, olho em seus olhos. – Quero dizer, que história é essa? Às vezes acho que o conheço tão bem, e então uma coisa assim acontece e isso simplesmente – balanço a cabeça – me deixa aturdida. Você estava certo. Ainda não sei nada a respeito dele. Além do mais, o que estou fazendo a essa altura? Eu não falei nada durante o jantar porque não tinha a menor ideia do que falar.
Kenji suspira.
– É... Bem... Sete línguas é uma coisa bem louca. Mas, quero dizer... Você tem que se lembrar de que ele nasceu nesse meio, entende? Warner teve uma educação que você nunca teve.
– É exatamente disso que estou falando.
– Ei, você vai ficar bem – Kenji me conforta, apertando meu ombro. – Vai dar tudo certo.
– Eu estava começando a sentir que talvez desse conta desse desafio – confesso-lhe. – Tive uma conversa bem longa com Warner hoje e saí me sentindo melhor. Mas agora nem lembro por quê. – Suspiro. Fecho os olhos. – Eu me sinto tão idiota, Kenji. Mais idiota a cada dia.
– Talvez você só esteja envelhecendo. Ficando senil. – Ele dá tapinhas em sua cabeça. – Você sabe.
– Cale a boca!
– Então, é... – Kenji dá risada. – Sei que foi uma noite esquisita e coisa e tal, mas... o que você achou? No geral?
– Do quê? – pergunto, encarando-o.
– De Haider e Nazeera – esclarece. – Ideias? Sentimentos? Sociopatas, sim ou não?
– Ah! – Franzo a testa. – Bem, eles são tão diferentes um do outro. Haider é muito barulhento. Já Nazeera é... Não sei. Nunca conheci alguém como ela antes. Acho que respeito o fato de ela desafiar o pai e o Restabelecimento, mas não sei quais são suas motivações, então não sei se devo lhe dar muito crédito. – Suspiro. – Mas, enfim, ela me pareceu muito... irritada. E muito bonita. E muito intimidadora.
A dolorosa verdade é que nunca me senti tão intimidada por outra garota antes e não sei como admitir algo assim em voz alta. Passei o dia todo – assim como as últimas semanas – me sentindo uma impostora. Uma criança. Odeio a facilidade com a qual minha confiança vem e vai, odeio fraquejar entre quem eu era e quem poderia ser. Meu passado ainda está grudado em mim, mãos de esqueleto me puxando para trás mesmo enquanto eu me impulsiono em direção à luz. E não consigo deixar de me perguntar quão diferente eu seria hoje se em algum momento, enquanto crescia, eu tivesse tido alguém para me encorajar. Nunca tive um modelo feminino forte. Conhecer Nazeera hoje à noite, ver como ela se mostrou altiva e corajosa, me deixou pensando sobre onde ela teria aprendido a ser assim.
Cheguei a desejar ter tido uma irmã. Ou uma mãe. Alguém com quem aprender e com quem contar. Uma mulher que me ensinasse a ser corajosa em meu próprio corpo em meio a esses homens.
Nunca tive isso.
Na verdade, fui criada sob uma dieta rigorosa de provocações e zombarias, golpes no coração, tapas na cara. Cresci ouvindo repetidas vezes que eu não valia nada. Que era um monstro.
Jamais amada. Jamais protegida do mundo.
Nazeera parece não se importar com o que outras pessoas falam, e eu queria tanto ter a sua confiança. Sei que mudei muito, que percorri um longo caminho a partir de quem eu era, mas, mais do que qualquer outra coisa, quero ser confiante e não ter remorsos sobre quem sou e como me sinto, e não ter de ficar tentando ser algo o tempo todo. Ainda estou desenvolvendo essa parte do meu ser.
– Certo – Kenji está dizendo. – É. Bem irritada, mas...
– Com licença?
Ao ouvir a voz, nós dois giramos nos calcanhares.– Por falar no diabo... – Kenji resmunga baixinho.
– Desculpem, acho que estou perdida – Nazeera diz. – Pensei que conhecesse esse prédio muito bem, mas há muita obra e reforma acontecendo aqui e estou... bem, estou perdida. Será que algum de vocês pode me dizer como sair daqui?
Ela quase sorri.
– Sim, claro – respondo, quase retribuindo o sorriso. – Na verdade... – Hesito por um instante. – Acho que você está do lado errado do prédio. Lembra-se da entrada pela qual você veio?
Ela para e pensa.
– Acho que estamos instalados do lado sul – diz, lançando um sorriso enorme e verdadeiro para mim pela primeira fez. Então, titubeia: – Espere. Eu acho que era o lado sul. Sinto muito. – E franze a testa. – Eu cheguei há poucas horas... Haider chegou aqui antes de mim...
– Entendo perfeitamente – respondo, interrompendo-a com um aceno de mão. – Não se preocupe... Eu também levei um tempo para aprender a andar por aqui. Na verdade, quer saber? Kenji sabe andar aqui melhor do que eu. A propósito, este é Kenji... Acho que vocês dois não foram formalmente apresentados ainda.
– Sim... oi – ela o cumprimenta, mas seu sorriso some imediatamente. – Eu me lembro dele.
Kenji a encara como um idiota. Olhos arregalados, piscando. Lábios ligeiramente separados. Cutuco seu braço e ele solta um grito, sobressaltado, mas recobra a consciência.
– Ah, certo – apressa-se em dizer. – Oi. Oi... É, oi, hum, sinto muito pelo jantar.
Ela arqueia a sobrancelha para ele.
E pela primeira vez desde que o conheci, Kenji fica realmente ruborizado. Ruborizado.
– Não, de verdade – ele gagueja. – Eu, hum, eu acho que o seu... xale... é, hum, bem legal.
– Aham.
– Do que é feito? – ele pergunta, estendendo a mão para tocar a cabeça de Nazeera. – Parece tão macio.
Ela afasta a mão de Kenji com um tapa. Seu recuo é visível, mesmo sob a luz fraca. – Que história é essa? Está de brincadeira, né?
– O quê? – Confuso, Kenji pisca os olhos. – O que foi que eu fiz?
Nazeera dá risada; sua expressão se transforma em uma mistura de confusão e ligeiro asco.
– Como pode ser tão ruim nisso?
Kenji fica paralisado, boquiaberto.
– Eu não... hum... Eu só não sei, tipo, quais são as regras. Tipo, posso ligar para você um dia ou...
Solto uma risada repentina, alta e embaraçosa, e belisco o braço dele.
Kenji pragueja em voz alta. Lança-me um olhar furioso.
Estampo o rosto com um sorriso enorme e falo somente para Nazeera:
– Então, sim, hum... Se quiser chegar à saída do lado sul – digo rapidamente –, sua melhor aposta é voltar pelo corredor e virar três vezes à esquerda. Vai encontrar portas duplas à sua direita. Lá, peça a um dos soldados para acompanhá-la.
– Obrigada – ela agradece, retribuindo meu sorriso antes de lançar um olhar esquisito para Kenji. Ele continua massageando o ombro dolorido enquanto acena seu discreto adeus para ela.
É só depois que ela se vai outra vez que eu dou meia-volta e resmungo:
– Qual é o seu problema, hein? – E Kenji segura meu braço, sente os joelhos bambearem, e diz:
– Ah, meu Deus, J, acho que estou apaixonado.
Ignoro-o.
– Não, sério – ele insiste. – Será que é isso? Porque nunca me apaixonei antes, então não sei se é amor ou se não passa de, sei lá, uma intoxicação alimentar.
– Você nem a conhece – respondo, revirando os olhos. – Então, imagino que seja apenas intoxicação alimentar.
– Você acha?
Com olhos estreitados, encaro-o, mas só preciso de uma olhadela para deixar a raiva para trás. Sua expressão é tão estranha e apatetada – uma cara de bobo alegre – que quase me sinto mal por ele.
Suspiro, empurrando-o para frente. Ele fica parando o tempo todo pelo caminho, sem nenhum motivo específico.
– Não sei. Acho que talvez você só esteja... se sentindo, digamos, atraído por ela? Nossa, Kenji, você falou tanta besteira para mim quando eu agi assim por causa de Adam e Warner e agora aí está você, sendo todo hormônios...
– Que seja. Você me deve uma.
Franzo a testa para ele.
Kenji dá de ombros, ainda com um sorriso enorme no rosto.
– Quero dizer, sei que ela deve ser uma sociopata. E sem dúvida me mataria enquanto durmo. Mas nossa, ela é... uau! – exclama. – Ela é bonita pra caralho. Tem o tipo de beleza que faz um homem pensar que ser assassinado durante o sono pode não ser uma forma tão ruim assim de morrer.
– Claro – respondo, mas baixinho.
– Não é?
– Acho que sim.
– Como assim, acha que sim? Eu não estava fazendo uma pergunta. Essa menina é simplesmente linda.
– Claro.
Kenji para, segura meus ombros.
– Qual é o seu problema, J?
– Não sei do que você está...
– Ah, meu Deus! – exclama, espantado. – Você está com ciúme?
– Não! – respondo, mas a palavra sai praticamente gritada.
Agora Kenji está rindo.
– Que loucura! Por que está com ciúme?
Dou de ombros, resmungo alguma coisa.
– Espere, como é? – Ele coloca a mão em forma de concha atrás da orelha. – Está preocupada que eu vá deixá-la por outra mulher?
– Cale a boca, Kenji. Não estou com ciúme.
– Que fofa, J.
– Não estou. Eu juro. Não estou com ciúme. Eu só estou... Só estou...
Estou passando por maus bocados.Mas não tenho tempo de pronunciar essas palavras. De repente, Kenji me levanta do chão, gira comigo e diz:
– Ah, você fica tão fofinha quando está com ciúme...
E eu chuto seu joelho. Com força.
Ele me derruba no chão, agarra as próprias pernas e grita palavras tão obscenas que sequer reconheço metade delas. Saio correndo, em parte me sentindo culpada, em parte me sentindo satisfeita, suas promessas de detonar comigo pela manhã ecoando no ar enquanto sigo meu caminho.
Warner
Hoje participei com Juliette de sua caminhada matinal.
Ela parece extremamente nervosa agora, ainda mais do que antes, e eu me culpo por não tê-la preparado melhor para o que teria de encarar como comandante suprema. Ontem à noite, voltou em pânico para nosso quarto, comentou alguma coisa sobre querer falar mais línguas e recusou-se a debater mais a fundo essa questão.
Sinto que está escondendo alguma coisa de mim.
Ou talvez eu esteja escondendo dela.
Ando tão absorto em meus próprios pensamentos, em meus próprios problemas, que não tive muita chance de conversar com ela sobre como está se sentindo ultimamente. Ontem foi a primeira vez que ela expôs suas preocupações sobre ser uma boa líder, o que me fez imaginar há quanto tempo esses medos a estão incomodando. Há quanto tempo está guardando tudo para si. Temos que encontrar mais oportunidades para conversar sobre tudo o que está acontecendo, mas receio que possamos estar nos afogando em revelações.
Tenho certeza de que eu estou.
Minha mente continua tomada pelas bobagens ditas por Castle. Tenho um bom grau de certeza de que descobriremos que ele está desinformado, que entendeu errado algum detalhe crucial. Mesmo assim, estou desesperado por respostas verdadeiras e ainda não tive a oportunidade de mexer nos arquivos de meu pai.
Portanto, permaneço aqui, nesse estado de incerteza.
Eu esperava encontrar um tempo para mexer naqueles arquivos hoje, mas não confio em Haider e Nazeera para deixá-los sozinhos com Juliette. Dei a ela o espaço de que precisava quando conheceu Haider, mas deixá-la sozinha com eles agora seria uma irresponsabilidade. Nossos visitantes estão aqui por todos os motivos errados e provavelmente em busca de alguma razão para dar início a uma olimpíada mental cruel com as emoções de Juliette. Ficaria surpreso se não estivessem tentando aterrorizá-la e confundi-la. Forçá-la a ser covarde. Começo a me preocupar.
Há tanto que Juliette não sabe.
Acho que não me esforcei o bastante para imaginar como ela deve estar se sentindo. Eu menosprezo muita coisa nessa vida militar, tudo me parece óbvio, mas para ela ainda é novidade. Preciso ter isso em mente. Preciso dizer a Juliette que ela tem suas próprias armas. Que conta com uma frota de carros particulares, um motorista pessoal. Vários jatos particulares e pilotos à sua disposição. E de repente me pergunto se ela já viajou de avião.
Eu paro, imerso no pensamento.
É claro que ela não sabe. Ela não conhece nada além da vida no Setor 45. Duvido de que já tenha sequer nadado, muito menos pisado em um navio e se deslocado pelo mar. Juliette nunca viveu em nenhum lugar que não seus livros e suas lembranças.
Ela ainda tem tanta coisa a aprender. Tanta coisa a superar. E, enquanto me solidarizo profundamente com suas lutas, realmente não a invejo nesse sentido, na enormidade da tarefa em seu horizonte. Afinal, há um simples motivo pelo qual eu nunca quis o trabalho de comandante supremo para mim...
Eu nunca quis a responsabilidade que vem com ele.
Trata-se de uma quantidade imensa de trabalho com muito menos liberdade do que se imagina; pior ainda, é uma posição que requer uma boa carga de habilidades para lidar com pessoas. O tipo de habilidade que inclui tanto matar quanto seduzir alguém de uma hora para a outra. Duas coisas que detesto.
Tentei convencer Juliette de que ela era perfeitamente capaz de assumir o posto de meu pai, mas ela não parece tão persuadida. E agora, com Haider e Nazeera aqui, entendo por que Juliette parece mais insegura do que nunca. Os dois – bem, na verdade, foi só Haider – pediram para participar da caminhada matinal de Juliette hoje. Ela e Kenji vêm conversando bem baixinho, mas Haider tem ouvidos mais afiados do que imaginávamos. Então, aqui estamos, nós cinco, andando pela praia mergulhados em um silêncio desconfortante. Haider, Juliette e eu formamos um grupo, embora não tenhamos planejado assim. Nazeera e Kenji nos seguem alguns passos atrás.
Ninguém fala nada.
De todo modo, a praia não é um lugar horrível para passar a manhã, mesmo com o fedor estranho que a água exala. Para dizer a verdade, é um lugar bastante tranquilo. O som das ondas quebrando forma um pano de fundo relaxante para o que será um dia muito estressante.
– Então... – Haider enfim quebra o silêncio, dirigindo-se a mim. – Vai participar do Simpósio Continental esse ano?
– É claro que vou – respondo baixinho. – Participarei como sempre participo. – Um breve silêncio. – Você vai voltar para casa para participar do seu próprio evento?
– Infelizmente, não. Nazeera e eu estávamos planejando acompanhá-lo no evento norte-americano, mas é claro que... eu não sabia se a Comandante Suprema Ferrars – ele olha para Juliette –, participaria, então...
Juliette fica de olhos arregalados.
– Perdão, mas do que vocês estão falando?
Haider franze só um pouco a testa em resposta, mas percebo a intensidade de sua surpresa.
– Do Simpósio Continental – repete. – Você certamente já ouviu falar dele, não?
Juliette me fita confusa, e então...
– Ah, sim, claro – responde, lembrando-se. – Várias das correspondências que recebi falam sobre esse simpósio, mas eu não tinha me dado conta de que era algo tão importante.
Luto contra a vontade de me encolher. Essa foi mais uma negligência de minha parte.
Juliette e eu já falamos sobre o simpósio, é claro, mas só muito por cima. É um congresso bianual de todos os 555 regentes espalhados pelo continente.
Trata-se de um tremendo evento.
Haider inclina a cabeça, estudando-a.
– Sim, é um negócio importantíssimo. Nosso pai está muito ocupado se preparando para o evento da Ásia, então, ando pensando muito nisso. Mas como o falecido Supremo Anderson nunca participava de reuniões públicas, acabei ficando curioso para saber se você seguiria os passos dele.
– Ah, não, eu estarei lá – Juliette se apressa em dizer. – Eu não me escondo do mundo como ele se escondia. É claro que participarei.
Os olhos de Haider ficam ligeiramente arregalados. Ele desliza o olhar de mim para ela e outra vez na minha direção.
– Quando exatamente será? – Juliette pergunta, e sinto a curiosidade de Haider crescendo cada vez mais.
– Você não viu no seu convite? – ele indaga, todo inocente. – O evento será em dois dias.
Ela de repente se vira, mas não sem que antes eu note suas bochechas coradas. Sinto seu constrangimento imediato, o que parte meu coração. Odeio Haider por brincar assim com ela.
– Eu andei muito ocupada – Juliette responde baixinho.
– Foi culpa minha – intervenho. – Era para eu acompanhar o desenrolar dos preparativos e acabei esquecendo. Mas vamos finalizar o programa hoje. Delalieu já está trabalhando pesado para dar conta de todos os detalhes.
– Perfeito – Haider diz para mim. – Nazeera e eu aguardamos ansiosamente por participarmos com vocês. Nunca estivemos em um simpósio fora da Ásia.
– Claro – respondo. – Será um prazer enorme tê-los conosco.
Haider olha Juliette de cima a baixo e, em seguida, examina suas roupas, os cabelos, os tênis desgastados e simples. E, embora não diga nada, posso sentir sua desaprovação, seu ceticismo e, acima de tudo, a decepção que sente por ela.
O que me faz querer jogá-lo no mar. – Quais são seus planos para o restante de sua estada aqui? – pergunto, agora observando-o mais de perto.
Ele dá de ombros, mostrando total indiferença.
– Nossos planos são flexíveis. Só queremos passar nosso tempo com todos vocês. – Ele olha para mim. – Afinal, velhos amigos precisam ter motivo para visitarem uns os outros? – E por um momento, pelo mais breve dos momentos, percebo a dor sincera por trás de suas palavras. Um sentimento de negligência.
Que me deixa surpreso.
E então desaparece.
– De todo modo – continua –, acredito que a Comandante Suprema Ferrars já tenha recebido várias cartas de nossos velhos amigos. Mesmo assim, parece que seus pedidos para fazerem uma visita vêm sendo respondidos com o silêncio. Receio que se sentiram um pouco ignorados quando contei que Nazeera e eu estávamos aqui.
– O quê? – questiona Juliette, olhando para mim antes de voltar a encarar Haider. – Quais outros amigos? Está falando dos outros comandantes supremos? Porque eu não...
– Ah, não – Haider responde. – Não, não. Dos outros comandantes supremos, não. Pelo menos, não ainda. Só nós, os filhos. Esperávamos fazer um pequeno reencontro. Não reunimos o grupo todo há muito tempo.
– O grupo todo... – Juliette repete baixinho. Depois franze a testa. – Quantos outros filhos existem pelo mundo?
A falsa exuberância de Haider de repente fica estranha. Fria. Ele me olha com uma mistura de raiva e confusão quando diz:
– Você não contou nada sobre nós para ela?
Agora Juliette me encara. Seus olhos ficam perceptivelmente arregalados. Sinto seu medo aumentar. E ainda estou pensando em uma forma de lhe dizer para não se preocupar quando Haider segura meu braço com força e me puxa para a frente.
– O que você está fazendo? – ele sussurra em um tom urgente, veemente. – Você virou as costas para todos nós... e a troco de quê? Disso? De uma criança? Inta kullish ghabi – ele diz. – É uma coisa muito, muito estúpida de se fazer. Eu lhe garanto, habibi, que isso não vai terminar bem.
Há um sinal de advertência em seus olhos.
Então, quando ele de repente me solta – quando liberta um segredo guardado dentro de seu coração – eu sinto que algo terrível se instala na boca do meu estômago. Uma sensação de náusea. Um medo terrível.
E finalmente entendo.
Os comandantes estão mandando seus filhos sondar o que acontece aqui porque acham que vir ele próprios é perda de tempo. Querem que sua prole se infiltre e examine nossa base – que eles usem sua juventude para seduzir a nova e jovem comandante suprema da América do Norte, que finjam camaradagem e, no final, enviem informações. Não estão interessados em formar alianças.
Só vieram aqui para descobrir o trabalho que dará nos destruir.
Viro-me, a raiva ameaçando acabar com minha compostura, e Haider segura meu braço com ainda mais força. Olho-o nos olhos. É só a minha determinação em manter as coisas dentro do campo da civilidade pelo bem de Juliette que me impede de tirar as mãos dele de cima de mim e quebrar-lhe os dedos.
Ferir Haider seria o bastante para dar início a uma guerra mundial.
E ele sabe disso.
– O que aconteceu com você? – pergunta, ainda sibilando em meu ouvido. – Não acreditei quando disseram que tinha se apaixonado por uma menina psicótica e idiota. Eu esperava mais de você. Eu o defendi. Mas isso... – Nega com a cabeça. – Isso é realmente de partir o coração. Não acredito que tenha mudado tanto.
Meus dedos ficam tensos, coçando por formar um punho fechado, e estou prestes a responder quando Juliette, que nos observa a uma certa distância, diz:
– Solte-o.
E há algo na firmeza de sua voz, algo em sua fúria quase incontida, que captura a atenção de Haider.
Surpreso, ele solta meu braço. Vira-se.
– Volte a tocar nele e eu arranco o seu coração – Juliette ameaça baixinho.
Haider a encara.
– Como é que é?
Ela dá um passo à frente. De repente, ficou com uma aparência assustadora. Há fogo em seus olhos. Uma serenidade assassina em seus movimentos.
– Se eu voltar a pegá-lo com as mãos em Warner, vou rasgar o seu peito e arrancar o seu coração – ela repete.
Espantado, Haider arqueia as sobrancelhas. Pisca os olhos. Hesita antes de dizer:
– Eu não sabia que você podia fazer algo desse tipo.
– Em você – assegura –, farei com prazer.
Agora Haider sorri. Ri, e bem alto. E pela primeira vez desde que chegou, realmente parece sincero. O deleite faz seus olhos brilharem. – Você se importaria – diz a ela – se eu pegasse o seu Warner emprestado por um instante? Prometo que não vou tocar nele. Só quero conversar com ele.
Juliette se vira para mim com uma pergunta nos olhos.
Mas só consigo lhe oferecer um sorriso. Quero pegá-la em meus braços e tirá-la dali. Quero levá-la a um lugar tranquilo e me perder dentro dela. Amo o fato de essa garota que enrubesce tão facilmente em meus braços ser a mesma que mataria um homem que me causasse mal.
– Não demoro – digo a ela.
E ela retribui meu sorriso, seu rosto mais uma vez transformado. O sorriso dura apenas alguns segundos, mas de alguma forma o tempo passa lento o bastante para eu reunir os muitos detalhes desse momento e colocá-los entre as minhas lembranças favoritas. De repente, sinto gratidão por esse dom incomum e sobrenatural que tenho de perceber as emoções. Ainda é um segredo meu, conhecido por poucas pessoas – um segredo que consegui esconder de meu pai e dos outros comandantes e seus filhos. Gosto de como isso faz eu me sentir à parte – diferente – das pessoas que sempre conheci. Mas o melhor de tudo é que esse dom me possibilita saber quanto Juliette me ama. Sempre consigo sentir a carga de emoções em suas palavras, em seus olhos. A certeza de que ela lutaria por mim. De que me protegeria. E saber disso deixa meu coração tão pleno que, às vezes, quando estamos juntos, mal consigo respirar.
E me pergunto se ela sabe que eu faria qualquer coisa por ela.
Juliette
– Ai, olhe! Um peixe! – Corro na direção da água e Kenji me segura pela cintura, puxando-me de volta.
– Essa água é nojenta, J. Você não deveria chegar perto dela.
– O quê? Por quê? – questiono, ainda apontando. – Você não está vendo o peixe? Não vejo um peixe na água há muito, muito tempo.
– Sim, bem, ele deve estar morto.
– O quê? – Observo outra vez, apertando os olhos. – Não... Acho que não...
– Ah, sim, sem dúvida está morto.
Nós dois espiamos.
Foi a primeira coisa que Nazeera falou a manhã toda. Tem estado muito quieta, observando e ouvindo tudo com uma calma assustadora. Para dizer a verdade, já percebi que ela passa a maior parte do tempo observando o irmão. Não parece interessada em mim como Haider se mostra, e acho isso confuso. Ainda não entendi por que exatamente os dois estão aqui. Sei que ficaram curiosos para saber quem sou – isso, francamente, eu entendo. Mas há algo mais no ar. E é essa parte incompreensível – a tensão entre irmão e irmã – que não consigo compreender.
Então, espero ouvi-la falar mais.
Mas Nazeera não fala.
Continua observando seu irmão, que está distante, com Warner, os dois discutindo alguma coisa que não conseguimos ouvir.
É uma imagem interessante, ver os dois juntos.
Hoje Warner está vestindo um terno escuro, vermelho-sangue. Sem gravata, sem sobretudo – muito embora a temperatura aqui fora esteja congelante. Só usa uma camisa preta sob o blazer e um par de botas pretas. Segura a alça de uma mala e um par de luvas na mesma mão, e suas bochechas estão rosadas pelo frio. Ao lado de Warner, os cabelos de Haider formam um contraste escuro selvagem e indomado com a luz acinzentada da manhã. Está vestindo calças pretas de corte reto e a mesma camisa de correntes do dia anterior por baixo de um casaco longo de veludo azul, e não parece, nem de longe, incomodar-se com o vento frio batendo e abrindo o casaco, deixando à mostra o peito e o tórax bem musculosos e bronzeados. Aliás, tenho certeza de que faz isso de caso pensado. Os dois caminhando imponentes e sozinhos pela praia deserta – as pesadas botas deixando marcas na areia – formam uma imagem impressionante, mas, sem dúvida, estão vestidos com uma formalidade excessiva para a ocasião.
Para ser sincera, tenho de admitir que Haider é tão bonito quanto sua irmã, apesar de sua aversão a usar camisas. Porém, ele parece profundamente consciente de sua beleza, o que de alguma forma o desfavorece. De todo modo, nada disso tem a menor importância. Só estou interessada no garoto andando ao lado dele. Então, é para Warner que estou olhando quando Kenji diz algo que me arrasta de volta ao presente.
– Acho melhor voltarmos à base, J. – Ele olha a hora no relógio que só recentemente começou a usar no pulso. – Castle disse que precisa conversar com você o mais rápido possível.
– Outra vez?
Kenji assente.
– Sim, e tenho de conversar com as meninas sobre o progresso delas com James, lembra? Castle quer um relatório. A propósito, acho que Winston e Alia finalmente terminaram seu uniforme. Também estão criando uma nova peça para você olhar quando tiver uma oportunidade. Sei que ainda tem muito trabalho com o restante das suas correspondências hoje, mas quando terminar, poderíamos...
– Ei! – Nazeera chama, acenando para nós dois enquanto se aproxima. – Se vocês vão voltar para a base, poderiam me fazer um favor e me conceder uma autorização para dar uma volta sozinha por este setor? – Sorri para mim. – Já faz um ano que não venho aqui e queria dar uma olhada. Ver o que mudou.
– Claro – respondo, retribuindo o sorriso. – Os soldados na recepção podem cuidar disso. Só dê o seu nome a eles e vou pedir para Kenji enviar minha pré-autoriza...
– Ah... sim, na verdade, quer saber? Por que eu mesmo não mostro os arredores para você? – Kenji propõe, abrindo um sorriso exagerado para Nazeera. – Este lugar mudou muito desde o ano passado, e eu ficaria muito feliz de ser seu guia.
Ela hesita.
– Pensei ter ouvido você acabar de dizer que tinha muita coisa para fazer.
– O quê? Não! – Ele ri. – Não tenho nada para fazer. Sou todo seu. Pelo tempo necessário.
– Kenji...
Ele belisca minhas costas, fazendo-me tremer. Viro-me para ele e fecho a cara.
– Hum, está bem – Nazeera responde. – Bem, talvez mais tarde, se você tiver tempo...
– Eu tenho tempo agora mesmo – ele afirma, e agora sorri como um idiota para ela. Como um idiota de verdade. Não sei como sal-vá-lo de si mesmo. – Podemos ir? – pergunta. – Podemos começar aqui... Posso mostrar primeiro os complexos, se quiser. Ou então... Podemos começar também no território não regulamentado. – Encolhe os ombros. – Como preferir. É só dizer.
Nazeera subitamente parece fascinada. Olha para Kenji como se pudesse cortá-lo em pedacinhos e fazer uma sopa com sua carne.
– Você não é um membro da Guarda Suprema? – indaga. – Não deveria ficar com sua comandante até ela voltar em segurança à base?
– Ah, é, sim... Não, quer dizer... Ela vai ficar bem – apressa-se em dizer. – Além do mais, temos esses caras – ele acena para os soldados que nos acompanham – que cuidam dela o tempo todo, então, ela vai ficar bem.
Belisco com força a barriga dele.
Kenji fica sem ar, vira-se. – Estamos a uns cinco minutos da base – diz. – Você vai ficar bem voltando para lá sozinha, não vai?
Fuzilo-o com os olhos.– É claro que consigo voltar sozinha – sussurro meio que gritando. – Não é por isso que estou furiosa. Estou furiosa porque você tem um milhão de coisas para fazer e fica agindo como um idiota na frente de uma garota que claramente não tem o menor interesse em você.
Parecendo machucado, Kenji dá um passo para trás.
– Por que está tentando me magoar, J? Onde está seu voto de confiança? Onde está o amor e o apoio dos quais tanto necessito neste momento de dificuldade? Preciso que seja meu cupido.
– Vocês sabem que consigo ouvi-los, não sabem? – Nazeera inclina a cabeça para o lado, seus braços cruzados frouxamente na altura do peito. – Estou parada bem aqui.
Hoje parece ainda mais deslumbrante, com os cabelos cobertos por uma peça de seda que parece ouro líquido. Usa um suéter vermelho intrincadamente trançado, leggings de couro preto com alto relevo e botas pretas com plataforma de aço. E continua com aqueles pesados socos ingleses de ouro nas duas mãos.
Queria poder perguntar onde ela arruma essas roupas.
Só me dou conta de que Kenji e eu a estamos encarando excessivamente quando ela, por fim, pigarreia. Solta os braços e dá passos cuidadosos para a frente, sorrindo – não sem gentileza – para Kenji, que de repente parece incapaz de respirar.
– Ouça – Nazeera diz com um tom delicado. – Você é uma graça. É, de verdade. Tem um rosto bonito. Mas isso – ela aponta entre eles dois – não vai rolar.
Kenji parece não tê-la ouvido.
– Você acha meu rosto bonito?
Nazeera ri e franze a testa ao mesmo tempo. Ergue dois dedos e diz:
– Tchau.
E é isso. Sai andando.
Kenji não fala nada. Seus olhos permanecem focados em Nazeera, que se distancia.
Dou tapinhas em seu braço, tento soar solidária.
– Vai ficar tudo bem. Rejeição é uma coisa compli...
– Foi incrível!
– É... O quê?
Ele se vira para mim.
– Quer dizer, eu sempre soube que tinha um rosto bonito, mas agora sei, com toda a certeza, que tenho mesmo um rosto bonito. E isso é tão legitimador.
– Sabe, acho que não gosto desse seu lado.
– Não seja assim, J. – Ele bate o dedo em meu nariz. – Não fique com ciúme.
– Eu não estou com ci...
– Poxa, eu também mereço ser feliz, não mereço? – E de repente ele fica em silêncio. Seu sorriso desaparece, a risada some, deixando-o com um aspecto entristecido. – Quem sabe um dia.
Sinto meu coração pesar.
– Ei! – falo com gentileza. – Você merece ser o mais feliz do mundo.
Kenji passa a mão pelos cabelos e sorri.
– É... bem...
– É ela quem sai perdendo – afirmo.
Ele me observa.
– Acho que foi bem decente, para uma rejeição.
– Ela só não conhece você ainda – conforto-o. – Você é um partidão.
– Sou, não sou? Tento explicar isso para as pessoas o tempo todo.
– As pessoas são bobas. – Dou de ombros. – Para mim, você é maravilhoso.
– Maravilhoso, é?
– Exatamente – confirmo, entrelaçando meu braço ao dele. – Você é inteligente e engraçado e...
– Bonito – ele completa. – Não esqueça o bonito.
– E muito bonito – repito, assentindo.
– Sim, fico lisonjeado, J, mas não gosto de você assim.
Suas palavras me deixam boquiaberta.
– Quantas vezes tenho que pedir para você parar com essa mania de se apaixonar por mim? – brinca.
– Ei! – exclamo, empurrando-o para longe. – Você é terrível.
– Pensei que eu fosse maravilhoso.
– Depende da hora.
E Kenji cai na risada.
– Está bem, mocinha. Já está pronta para voltar?
Suspiro, miro o horizonte.
– Não sei. Acho que preciso de mais um tempo sozinha. Há muita coisa acontecendo na minha cabeça, preciso me organizar.
– Eu entendo – ele garante, lançando-me um olhar compreensivo. – Faça como preferir.
– Obrigada.
– Mas você se importa se eu já voltar? Deixando as brincadeiras de lado, realmente tenho muitas coisas para fazer hoje.
– Eu vou ficar bem. Pode ir.
– Tem certeza? Vai ficar bem sozinha aqui?
– Sim, sim – respondo, empurrando-o para a frente. – Vou ficar mais do que bem. Além do mais, eu nunca estou totalmente sozinha. – Aponto com a cabeça para os soldados. – Esses caras estão sempre comigo.
Kenji assente, dá um rápido apertão em meu braço e sai correndo.
Em poucos segundos, estou sozinha. Suspiro e viro-me na direção da água, chutando a areia ao fazê-lo.
Sinto-me tão confusa.
Estou presa entre preocupações diferentes, encurralada por um medo do que parece ser meu inevitável fracasso como líder e meus temores envolvendo o passado impenetrável de Warner. E a conversa de hoje com Haider não ajudou em nada nesse segundo ponto. Seu choque evidente ao perceber que Warner sequer se importou em me contar sobre as outras famílias – e os filhos – com as quais cresceu realmente me deixou incomodada. E me levou a questionar o que mais eu não sei. Quantas outras coisas tenho para desvendar.
Sei exatamente como me sinto quando o olho nos olhos, mas, às vezes, estar com Warner me faz sentir um choque. Está tão desacostumado a comunicar coisas básicas – a qualquer pessoa – que todos os dias que passo com ele faço novas descobertas. Nem todas elas são ruins – aliás, a maior parte das coisas que descobri a respeito dele só me fez amá-lo ainda mais. Mas até mesmo as revelações inócuas acabam se mostrando confusas.
Na semana passada, encontrei-o sentado em seu escritório ouvindo álbuns antigos em vinil. Eu já tinha visto sua coleção antes – ele tem uma pilha enorme que lhe foi entregue pelo Restabelecimento em conjunto com uma seleção de obras de arte e livros velhos. Era para Warner estar separando os itens, decidindo o que ia guardar e o que queria destruir. Porém, eu nunca o tinha visto apenas sentado e ouvindo música.
Ele não notou quando entrei naquele dia.
Estava sentado, totalmente imóvel, olhando apenas para a parede e ouvindo o que depois descobri ser um álbum do Bob Dylan. Sei qual disco era porque, muitas horas depois que ele saiu, espiei no escritório. Não consegui controlar a curiosidade. Warner só ouvia uma música do vinil – voltava a agulha toda vez que a faixa terminava – e eu queria saber o que era. Descobri que se tratava de uma música chamada “Like a Rolling Stone”.
Ainda não contei a ele o que vi naquele dia. Queria descobrir se compartilharia espontaneamente essa história comigo. Porém, Warner nunca falou nada, nem mesmo quando perguntei o que ele fizera naquela tarde. Ele não mentiu, mas sua omissão me fez refletir sobre por que não me contou.
Tenho um lado que quer revelar toda essa história. Quero saber o lado bom e o lado ruim e expor todos os segredos e tirar tudo a limpo. Porque, agora mesmo, tenho certeza de que minha imaginação é muito mais perigosa do que qualquer uma de suas verdades.
Mas não sei direito como fazer isso acontecer.
Ademais, tudo está acontecendo rápido demais agora. Estamos todos tão ocupados o tempo todo que já é difícil manter meus próprios pensamentos coordenados. Nem sei aonde nossa resistência está indo agora. Tudo me preocupa. As preocupações de Castle me preocupam. Os mistérios de Warner me preocupam. Os filhos dos comandantes supremos me preocupam.
Respiro fundo e solto o ar, demorada e ruidosamente.
Olho para a água, tento limpar a mente me concentrando nos movimentos fluidos do mar. Há apenas três semanas eu me sentia mais forte do que jamais me sentira na vida. Tinha finalmente aprendido a usar meus poderes; como moderar a minha força, como projetar. E, mais importante, a ligar e desligar minhas habilidades. Então, esmaguei as pernas de Anderson com minhas próprias mãos. Fiquei parada enquanto os soldados enfiavam incontáveis balas de chumbo em meu corpo. Eu era invencível.
Mas agora?
Esse novo trabalho é mais do que eu imaginava.
Política, no fim das contas, é uma ciência que ainda não entendo. Matar coisas, quebrar coisas... destruir coisas? Disso eu entendo. Ficar furiosa e ir para a guerra, eu entendo. Mas participar pacientemente de um jogo de xadrez com um grupo de desconhecidos espalhados por todo o mundo?
Meu Deus, eu realmente prefiro atirar em alguém.
Estou lentamente retornando à base, meus tênis se enchendo de areia pelo caminho. Para ser sincera, temo o que Castle tem a me dizer. Mas já estou fora há tempo demais. Tenho muitas coisas a fazer, e o único jeito de deixar esses problemas para trás é enfrentando-os. Tenho que lidar com eles, sejam lá quais forem. Suspiro enquanto flexiono e solto os punhos, sentindo o poder entrar e sair do meu corpo. É uma sensação estranha para mim, ser capaz de me desarmar quando tenho vontade. É bom poder andar por aí na maior parte dos dias com meus poderes desligados; é bom poder acidentalmente tocar a pele de Kenji sem que ele tema que eu vá feri-lo. Pego dois punhados de areia. Poder ligado: fecho o punho e a areia é pulverizada, virando poeira. Poder desligado: a areia deixa uma marca vaga na pele.
Solto a areia, limpo os grãos que ficaram nas palmas das minhas mãos e aperto os olhos para protegê-los do sol da manhã. Estou procurando os soldados que me seguiram esse tempo todo porque, de repente, não consigo avistá-los. O que é estranho, já que acabei de vê-los há menos de um minuto.
E então eu sinto...
Dor
Que explode em minhas costas.
É uma dor aguda, lancinante, violenta, que me cega em um instante. Dou meia-volta em uma fúria que imediatamente me paralisa, meus sentidos se desligando mesmo enquanto tento mantê-los sob controle. Eu reúno minha Energia, vibrando de repente com electricum, e me surpreendo com minha própria burrice por esquecer de religar meus poderes, especialmente em um lugar aberto como esse. Eu estava distraída demais. Frustrada demais. Sinto a bala em minha clavícula, incapacitando-me, mas luto em meio à agonia e tento avistar meu agressor.
Mesmo assim, sou lenta demais.
Outra bala atinge minha coxa, mas dessa vez sinto-a apenas deixando um hematoma superficial, ricocheteando antes de deixar sua marca. Minha Energia está fraca, e diminuindo a cada minuto, acho que porque estou perdendo sangue – e me sinto frustrada por quão rapidamente fui atingida.
Idiota idiota idiota...
Tropeço ao me precipitar pela areia; ainda sou um alvo fácil aqui. Meu agressor pode ser qualquer um, pode estar em qualquer lugar, e nem sei direito para onde olhar quando três outras balas me atingem: na barriga, no pulso, no peito. Elas não penetram meu corpo, mas ainda conseguem arrancar sangue. Mas a bala enterrada, a bala enterrada em minhas costas, essa lança fisgadas de dor pelas veias e me deixa sem ar, minha boca escancarada. Não consigo recuperar o ar e o tormento é tão intenso que não posso deixar de me perguntar se essa seria alguma arma especial, e se essas seriam balas especiais...
oh
O barulho abafado escapa do meu corpo quando os joelhos batem na areia, e agora tenho certeza, certeza absoluta de que essas balas contêm veneno, o que significaria que até mesmo essas feridas superficiais poderiam ser perig...
Eu caio, cabeça girando, de costas na areia, entorpecida demais para conseguir enxergar direito. Meus lábios estão formigando; meus ossos, soltos; e meu sangue, meu sangue se esparramando rápido e estranho e começo a rir, pensando ter visto um pássaro no céu – não só um, mas muitos, todos eles voando voando voando
De repente, não consigo respirar.
Alguém passou o braço em volta do meu pescoço; está me puxando para trás e eu estou engasgando, cuspindo, tossindo meus pulmões pra fora, e não consigo sentir a língua e estou chutando a areia com tanta força que já perdi meus tênis e acho que ela chegou, a morte outra vez, tão cedo tão cedo mas eu já estava cansada demais mesmo e então
A pressão desaparece
Tão rápido
Estou arfando e tossindo e há areia nos meus cabelos e nos meus dentes e vejo cores e pássaros, muitos pássaros, e estou girando e...
crac
Alguma coisa quebra e soa como um osso. Minha visão fica aguçada por um instante e consigo avistar alguma coisa à minha frente. Alguém. Aperto os olhos, sinto que minha boca poderia engolir a si mesma e acho que pode ser o veneno, mas não é; é Nazeera, tão bela, tão bela parada à minha frente, suas mãos em volta do pescoço flácido de um homem e ela o solta no chão
Ela me pega no colo
Você é tão forte e tão linda eu murmuro, tão forte e quero ser como você, digo a ela
E ela fala shhh e me diz para ficar parada, me garante que vou ficar bem
e me carrega para longe.
Warner
Pânico, terror, culpa. Medo descontrolado...
Mal consigo sentir meus pés quando tocam o chão, o coração batendo tão forte que chega a doer fisicamente. Estou correndo na direção da ala médica parcialmente construída no quinto andar e tentando não me afogar na escuridão dos meus próprios pensamentos. Tenho que lutar contra o instinto de fechar os olhos com força enquanto corro ao subir pelas escadas de dois em dois degraus porque, obviamente, o elevador mais próximo está temporariamente desligado em virtude dos reparos.
Nunca fui tão idiota.
No que eu estava pensando? No que estava pensando? Eu simplesmente me distanciei dela. Não paro de cometer erros. Não paro de fazer suposições. E nunca me senti tão desesperado pelo vocabulário vulgar de Kishimoto. Meu Deus, as coisas que eu poderia dizer agora. As coisas que sinto vontade de gritar. Nunca me senti tão furioso comigo mesmo. Tinha tanta certeza de que ela ficaria bem, total certeza de que Juliette jamais iria lá fora ao ar livre desprotegida...
Um golpe repentino de terror me esmaga.
Vai passar.
Vai passar, muito embora meu peito pulse com exaustão e indignação. É irracional sentir raiva da agonia – é inútil, eu sei, ficar com raiva dessa dor. Mesmo assim, aqui estou eu. Sinto-me impotente. Quero vê-la. Quero abraçá-la. Quero perguntar-lhe como pôde baixar a guarda enquanto andava sozinha em um espaço aberto...
Algo em meu peito parece se rasgar quando chego ao último andar, meus pulmões queimando em virtude do esforço. Meu coração bombeia o sangue furiosamente. Mesmo assim, avanço pelo corredor. Desespero e terror alimentam minha necessidade de encontrá-la.
Paro abruptamente onde estou quando o pânico ressurge.
Uma onda de medo faz minhas costas se inclinarem e eu me dobro, as mãos nos joelhos, tentando respirar. É espontânea essa dor. Dilacerante. Sinto um formigar assustador atrás dos olhos. Pisco, com força, lutando contra o golpe de emoção.
Como foi que isso aconteceu?, quero perguntar a ela.
Você não se deu conta de que alguém tentaria matá-la?
Estou quase tremendo quando chego ao quarto para o qual a levaram. Praticamente consigo sentir seu corpo mole e manchado de sangue sobre a mesa de metal. Aproximo-me correndo, intoxicado, e peço a Sonya e Sara para fazerem outra vez o que fizeram antes: me ajudarem a curá-la.
Só então percebo que o quarto está cheio.
Estou tirando o blazer quando noto a presença dos outros. Há pessoas encostadas nas paredes – pessoas que provavelmente conheço, mas que não perco tempo tentando reconhecer. Ainda assim, de alguma forma, ela se destaca ali.
Nazeera.
Eu poderia fechar minhas mãos em volta de sua garganta.
– Saia já daqui – arfo, com uma voz que não parece minha.
Nazeera parece mesmo em choque.
– Não sei como conseguiu fazer isso – acuso-a –, mas a culpa é sua... Sua e do seu irmão... Vocês fizeram isso com ela...
– Se quiser conhecer o homem responsável – Nazeera responde em um tom tranquilo e frio –, fique à vontade. Sua identidade ainda é desconhecida, mas as tatuagens em seu braço indicam que ele é de um setor vizinho. Seu corpo encontra-se guardado em uma cela no subsolo.
Meu coração para, e então acelera.
– O quê?
– Aaron? – É Juliette, Juliette, minha Juliette...
– Não se preocupe, meu amor – apresso-me em dizer. – Vamos resolver esta situação, está bem? As meninas estão aqui e vamos fazer isso de novo, como na última vez...
– Nazeera – ela pronuncia, olhos fechados, lábios se movimentando com dificuldade.
– Sim? – Congelo. – O que tem Nazeera?
– Salvou... – a boca de Juliette para no meio de um movimento, então ela engole em seco e prossegue: – a minha vida.
Olho para Nazeera. Estudo-a. Ela parece feita de pedra, não mexe um músculo em meio ao caos. Encara Juliette com um olhar curioso no rosto e simplesmente não consigo decifrá-la. Mas não preciso de nenhum poder sobre-humano para me dizer que tem algo errado com essa garota. Meu instinto humano básico deixa claro para mim que ela sabe de alguma coisa... Alguma coisa que se recusa a me contar. E isso me leva a desconfiar dela.
Então, quando Nazeera finalmente se vira para mim, ostentando um olhar profundo e firme e assustadoramente sério, sinto um golpe de pânico perfurar meu peito.
Juliette está dormindo agora.
Nunca me senti mais grato por minha habilidade cruel de roubar e manifestar as Energias de outras pessoas do que nesses momentos infelizes. Em várias ocasiões tivemos esperança de que, agora que Juliette aprendeu a ligar e desligar seu toque letal, Sonya e Sara seriam capazes de curá-la – seriam capazes de encostar suas mãos no corpo de Juliette em caso de emergência, sem terem de se preocupar com sua própria segurança. Mas Castle logo apontou que ainda existe a chance de que, uma vez que o corpo de Juliette comece a melhorar, seu trauma apenas parcialmente curado poderia instintivamente desencadear velhas defesas, mesmo sem permissão. Nesse estado de emergência, a pele de Juliette poderia acidentalmente se tornar outra vez letal. É um risco – um experimento – que esperávamos nunca mais ter de enfrentar. Mas agora?
E se não estivéssemos por perto? E se eu não tivesse esse estranho dom?
Não quero nem pensar nisso.
Então, fico aqui sentado, a cabeça enterrada nas mãos. Espero silenciosamente do outro lado da porta enquanto ela dorme para curar seus ferimentos. Nesse momento, as propriedades terapêuticas estão se espalhando por todo seu corpo.
Até lá, continuarei sendo acometido pelas ondas de emoções.
É imensurável, essa frustração. Frustração com Kenji, por ter deixado Juliette sozinha. Frustração com seis soldados que perderam suas armas para esse único agressor não identificado. Mas, acima de tudo, meu Deus, acima de tudo, nunca me senti tão frustrado comigo mesmo.
Fui negligente.
Eu deixei isso acontecer. Meus descuidos. Minha ridícula obsessão por meu pai – o envolvimento excessivo com meus próprios sentimentos depois de sua morte –, os dramas patéticos do meu passado. Permiti a mim mesmo me distrair; fiquei envolvido demais comigo mesmo, fui consumido por minhas próprias preocupações e problemas cotidianos.
É culpa minha.
É culpa minha porque entendi tudo errado.
É culpa minha pensar que ela estava bem, que não precisava mais de mim – mais estímulo, mais motivação, mais direcionamento – diariamente. Ela continuava exibindo esses extraordinários momentos de crescimento e transformação, e isso acabou me desarmando. Só agora percebo que esses momentos me levavam a enxergar as coisas da forma errada. Juliette precisava de mais tempo, de mais oportunidades para solidificar seus pontos fortes. Precisava de prática; e precisava ser forçada a praticar. Ser inflexível, lutar sempre por si mesma.
E ela chegou muito longe.
Hoje é quase irreconhecível se comparada à garota insegura que conheci. É forte. Deixou de sentir medo de tudo. Mesmo assim, continua tendo só dezessete anos. E está nessa posição há pouquíssimo tempo.
Sempre me esqueço disso.
Eu devia tê-la aconselhado quando ela disse que queria assumir o cargo de comandante suprema. Devia ter dito algo naquela ocasião. Devia certificar-me de que ela entendia a enormidade daquilo em que estava se metendo. Devia tê-la advertido de que seus inimigos tentariam mais cedo ou mais tarde atentar contra sua vida...
Tenho que arrastar as mãos para longe do rosto. Inconscientemente, pressionei os dedos com tanta força que provoquei mais uma dor de cabeça.
Suspiro e solto o corpo contra a cadeira, abrindo as pernas e sentindo a cabeça encostar na parede fria de concreto atrás de mim. Sinto-me entorpecido, mas, ao mesmo tempo, um tanto elétrico. Com raiva. Impotente. Com essa necessidade insuportável de gritar com alguém, com qualquer pessoa. Meus punhos se apertam. Fecho os olhos. Ela tem que ficar bem. Ela tem que ficar bem por ela e por mim, porque preciso dela e porque preciso que esteja bem...
Alguém pigarreia.
Castle se senta na cadeira ao meu lado. Não olho em sua direção.
– Senhor Warner – diz.
Não respondo.
– Como está, garoto?
Pergunta idiota.
– Isso... – ele continua, apontando para o quarto dela. – É um problema muito maior do que qualquer pessoa vai admitir. Acho que você também sabe disso.
Meu corpo enrijece.
Ele me encara.
Viro-me apenas um centímetro em sua direção. Finalmente percebo as leves marcas de expressão em volta de seus olhos, na testa. Os fios brancos brilhando em meio aos dreadlocks presos na altura do pescoço. Não sei quantos anos Castle tem, mas suspeito que tenha idade suficiente para ser meu pai.
– Você tem algo a dizer?
– Ela não pode liderar essa resistência – ele explica, apertando os olhos na direção de algo ao longe. – É nova demais. Inexperiente. Raivosa. Você sabe disso, não sabe?
– Não.
– Era para ter sido você – Castle afirma. – Eu sempre tive uma esperança secreta, desde quando você apareceu em Ponto Ômega, de que quem ocuparia esse cargo seria você. De que você se uniria a nós. E nos guiaria. – Balança a cabeça. – Você nasceu para isso. Teria cumprido as obrigações com plena destreza.
– Eu não queria esse trabalho – respondo em um tom duro, tenso. – Nossa nação precisava ser transformada. Precisava de um líder com coração e paixão, e eu não sou essa pessoa. Juliette se importa com as pessoas. Ela se importa com as esperanças, com os medos da população... e vai lutar por eles de um jeito que eu jamais conseguiria.
Castle suspira.
– Ela não pode lutar por ninguém se estiver morta, garoto.
– Juliette vai ficar bem – retruco, furiosamente. – Agora ela está descansando.
Castle passa um instante quieto. Quando, enfim, quebra o silêncio, ele diz:
– Tenho uma grande esperança de que, muito em breve, você pare de fingir que não entende o que eu falo. Não tenha dúvida de que respeito demais sua inteligência, por isso, não posso retribuir o fingimento. – Castle está olhando para o chão, as sobrancelhas tensas. – Você sabe muito bem onde estou tentando chegar.
– E o que você quer dizer com isso?
Ele se vira para olhar na minha direção. Olhos castanhos, pele castanha, cabelos castanhos. Seus dentes brilham quando ele diz:
– Você diz que a ama?
De repente, sinto meu coração acelerar, as palpitações ecoando em meus ouvidos. Para mim, é muito difícil admitir esse tipo de coisa em voz alta. Em especial para um homem que, no fundo, é um verdadeiro estranho.
– Você realmente a ama? – insiste.
– Sim – sussurro. – Amo.
– Então a contenha. Faça-a parar antes que eles façam. Antes que esse experimento a destrua.
Viro-me, o peito latejando.
– Você continua não acreditando em mim – diz. – Muito embora saiba que estou dizendo a verdade.
– Só sei que você pensa que está me dizendo a verdade.
Castle nega com a cabeça.
– Os pais de Juliette estão vindo atrás dela. E quando chegarem você vai ter certeza de que não desviei vocês do caminho certo. Mas, quando isso acontecer, será tarde demais.
– Sua teoria não faz o menor sentido – retruco, frustrado. – Tenho documentos declarando que os pais biológicos de Juliette morreram há muito tempo.
Ele estreita os olhos.
– Documentos são falsificados facilmente.
– Nesse caso, não – respondo. – Não é possível.
– Garanto que é possível.
Continuo negando com a cabeça.
– Acho que você não entende – aponto. – Eu tenho todos os arquivos de Juliette. E a data de morte de seus pais biológicos sempre esteve muito clara em todos. Talvez você os esteja confundindo com os pais adotivos...
– Os pais adotivos só tinham a custódia de uma filha... Juliette... certo?
– Sim.
– Então como você explicaria a segunda filha?
– O quê?! – Encaro-o. – Qual segunda filha?
– Emmaline, a irmã mais velha. Você, obviamente, se lembra de Emmaline.
Agora estou convencido de que Castle perdeu o que lhe restava de sanidade.
– Meu Deus! – exclamo. – Você ficou mesmo louco.
– Que disparate! – responde. – Você se encontrou com Emmaline muitas vezes, senhor Warner. Talvez, na época, não soubesse quem era, mas você viveu no mundo dela. Interagiu muito com ela. Não foi?
– Receio que esteja extremamente mal-informado.
– Tente lembrar-se, garoto.
– Tentar lembrar-me do quê?
– Você tinha dezesseis anos. Sua mãe estava morrendo. Havia rumores de que seu pai logo seria promovido da posição de comandante e regente do Setor 45 para a de comandante supremo da América do Norte. Você sabia que, dentro de alguns anos, ele o levaria para a capital, e você não queria ir. Não queria deixar sua mãe para trás, então propôs assumir o lugar de seu pai. Propôs assumir o Setor 45. E estava disposto a fazer qualquer coisa para conseguir isso.
Sinto o sangue saindo do meu corpo.
– Seu pai lhe deu um emprego.
– Não – sussurro.
– Você se lembra do que ele o obrigou a fazer?
Olho para minhas mãos abertas e vazias. Meu pulso acelera. Minha mente gira.
– Você se lembra, garoto?
– Quanto você sabe? – questiono, mas meu rosto parece paralisado. – Sobre mim... sobre isso?
– Não tanto quanto você, mas mais que a maioria das pessoas.
Afundo o corpo na cadeira. A sala rodopia à minha volta.
Só consigo imaginar o que meu pai diria se estivesse vivo para presenciar esta cena. Patético. Você é patético. Não pode culpar ninguém além de si mesmo, ele diria. Está sempre estragando tudo, colocando suas emoções acima das obrigações...
– Há quanto tempo você sabe? – Olho para Castle, sinto a ansiedade enviando ondas de um calor indesejado para as minhas costas. – Por que nunca falou nada?
Castle se ajeita na cadeira.
– Não sei quanto exatamente devo dizer sobre isso. Não sei até que ponto posso confiar em você.
– Não pode confiar em mim? – exclamo, perdendo o controle. – Foi você quem passou esse tempo todo escondendo informações. – Ergo o olhar, de repente me dando conta de uma coisa. – Kishimoto sabe disso?
– Não.
Minhas feições se reorganizam. Fico surpreso.
Castle suspira.
– Mas vai saber muito em breve. Assim como todos os outros.
Descrente, balanço a cabeça.
– Então você está me dizendo que... que aquela garota... aquela era irmã dela?
Castle assente.
– Impossível.
– É um fato.
– Como isso pode ser verdade? – questiono, ajeitando o corpo na cadeira. – Eu saberia se fosse verdade. Eu teria acesso a informações sigilosas, seria alertado...
– Você ainda é apenas uma criança, senhor Warner. Às vezes se esquece disso. Esquece-se de que seu pai não lhe contou tudo.
– Como você sabe, então? Como sabe de tudo isso?
Castle me estuda.
– Sei que me acha tolo – ele diz –, mas não sou tão simplório quanto talvez imagine. Eu também tentei liderar esta nação certa vez e, durante o tempo que passei no submundo, fiz muitas pesquisas. Passei décadas construindo o Ponto Ômega. Acha que fiz isso sem também entender meus inimigos? Eu tinha três arquivos de um metro de altura contendo informações sobre cada comandante supremo, suas famílias, seus hábitos pessoais, suas cores preferidas. – Estreita os olhos. – Você, certamente, não pensava que eu fosse tão ingênuo. Os comandantes supremos ao redor do mundo guardam muitos segredos, e eu tive o privilégio de conhecer alguns deles. Contudo, as informações que reuni no início do Restabelecimento se provaram verdadeiras.
Só consigo encará-lo, sem entender direito.
– Foi com base no que descobri que fiquei sabendo de uma jovem com um toque letal trancafiada em um hospício do Setor 45. Nossa equipe já vinha planejando uma missão de resgate quando você descobriu a existência dela... como Juliette Ferrars, um nome falso... e então percebeu que ela poderia ser útil nas suas pesquisas. Por isso, nós, do Ponto Ômega, esperamos. Ganhamos tempo. Nesse ínterim, fiz Kenji se alistar. Ele passou vários meses reunindo informações antes de seu pai, finalmente, aprovar o pedido que você fez para tirá-la do hospício. Kenji se infiltrou na base do Setor 45 seguindo ordens minhas; sua missão sempre foi recuperar Juliette. Desde então, passei a procurar Emmaline.
– Continuo sem entender – sussurro.
– Senhor Warner – ele diz, impaciente –, Juliette e sua irmã estão sob a custódia do Restabelecimento há doze anos. As duas são parte de um experimento contínuo que envolve testes e manipulação genética, mas cujos detalhes ainda estou tentando desvendar.
Minha mente parece prestes a explodir.
– Agora acredita em mim? – pergunta. – Já fiz o bastante para provar que sei mais da sua vida do que você imagina?
Tento falar, mas minha garganta está seca; as palavras raspam o interior da boca.
– Meu pai era um homem doente e sádico, mas não teria feito isso. Não pode ter feito isso comigo.
– Mas fez – Castle responde. – Ele deixou que você levasse Juliette à base, e fez isso sabendo muito bem quem ela era. Seu pai tinha uma obsessão perturbadora por tortura e experimentos.
Sinto-me desligado da minha mente, do meu corpo, mesmo enquanto me forço a respirar.
– Quem são os pais verdadeiros dela?
Castle balança a cabeça.
– Ainda não sei. Seja lá quem forem, sua lealdade ao Restabelecimento era profunda. Essas meninas não foram roubadas de seus pais. Elas foram oferecidas por eles de livre e espontânea vontade.
Fico de olhos arregalados. De repente, estou nauseado.
A voz de Castle muda. Ainda sentado, ele puxa o corpo para a frente na cadeira, mantendo um olhar penetrante.
– Senhor Warner, não estou dividindo essas informações com você com o objetivo de provocar dor. Saiba que essa situação toda também não é fácil para mim.
Ergo o olhar.
– Eu preciso da sua ajuda – fala, estudando-me. – Preciso saber o que fez durante aqueles dois anos. Preciso saber dos detalhes da sua obrigação com Emmaline. O que você tinha de fazer? Ela estava sendo mantida como cativa? Como a usavam?
Balanço a cabeça.
– Eu não sei.
– Sabe, sim – ele responde. – Tem que saber. Pense, garoto. Tente lembrar.
– Eu não sei! – grito.
Surpreso, Castle recua.
– Ele nunca me contou – prossigo, quase sem ar. – Esse era o trabalho. Seguir as ordens sem questioná-las. Fazer o que o Restabelecimento me pedia. Provar minha lealdade.
Desanimado, Castle solta o corpo na cadeira. Parece realmente abatido.
– Você era a única esperança que me restava – admite. – Pensei que, enfim, conseguiria solucionar esse mistério.
Encaro-o, coração acelerado.
– Eu continuo sem ter a menor ideia do que você está falando.
– Há um motivo para ninguém conhecer a verdade sobre essas irmãs, senhor Warner. Há um motivo para Emmaline ser mantida sob alta segurança. Ela é fundamental, de alguma maneira, para a estrutura do Restabelecimento, e ainda não sei como nem por quê. Não sei o que ela está fazendo para eles. – Olha direto no meu rosto, um olhar que me atravessa. – Por favor, tente lembrar. O que ele o forçou a fazer com ela? Qualquer coisa que conseguir se lembrar... Qualquer coisa, mesmo...
– Não – sussurro, mas a vontade é de gritar. – Não quero lembrar.
– Senhor Warner, entendo que seja difícil para você...
– Difícil para mim? – De repente, me levanto. Meu corpo treme de raiva. As paredes, as cadeiras, as mesas à nossa volta começam a tremer. As luminárias balançam perigosamente no teto, as lâmpadas piscam. – Você acha difícil para mim?
Castle não fala nada.
– O que você está me dizendo agora é que Juliette foi plantada aqui, na minha vida, como parte de um experimento maior... Um experimento do qual meu pai sempre esteve a par. Está me dizendo que Juliette não é quem eu penso ser. Que Juliette Ferrars sequer é seu nome verdadeiro. Está me dizendo que ela não apenas é uma garota com pais vivos, mas também que passei dois anos torturando sua irmã sem saber. – Meu peito lateja enquanto o encaro. – É isso?
– Tem mais.
Deixo escapar uma risada alta. O barulho é insano.
– Senhorita Ferrars logo vai descobrir tudo isso – Castle me alerta. – Portanto, eu o aconselharia a ser mais rápido com essas revelações. Conte tudo a ela, e conte quanto antes. Você precisa confessar. Faça isso agora mesmo.
– O quê? – indago, espantado. – Por que eu?
– Porque se não contar logo a ela, senhor Warner, posso garantir que outra pessoa contará...
– Não estou nem aí – respondo. – Vá você contar a ela.
– Você não está me ouvindo. É imperativo que ela ouça essa história da sua boca. Juliette confia em você. Ela o ama. Se descobrir sozinha ou por meio de alguma fonte menos fidedigna, podemos perdê-la.
– Nunca vou deixar isso acontecer. Nunca vou permitir que ninguém volte a feri-la, mesmo que isso signifique que eu mesmo tenha de protegê-la...
– Não, garoto – Castle me interrompe. – Você me entendeu errado. Eu não quis dizer que a perderíamos fisicamente. – Ele sorri, mas a imagem é estranha. Parece assustado. – Eu quis dizer que a perderíamos... aqui... – ele toca sua cabeça com um dedo – e aqui – e toca em seu coração.
– O que quer dizer com isso?
– Simplesmente que você não pode viver em negação. Juliette Ferrars não é quem você pensa ser e não é alguém com quem possamos brincar. Ela parece, em alguns momentos, completamente indefesa. Ingênua. Até mesmo inocente. Mas você não pode se permitir esquecer de que ainda há raiva no coração dela.
Surpreso, meus lábios se entreabrem.
– Você leu sobre isso, não leu? No diário dela? – ele indaga. – Já leu a respeito de até onde a mente dela pode ir... de como pode ser sombria...
– Como foi que você...
– E eu – continua, interrompendo-me –, eu já vi. Eu já a vi, com meus próprios olhos, perdendo o controle dessa fúria silenciosamente contida. Juliette quase destruiu todos nós em Ponto Ômega muito antes de seu pai. Ela arrebentou o chão em um ataque de loucura inspirado por um mero mal-entendido – ele conta. – Porque ficou nervosa com os testes que estávamos fazendo com o senhor Kent. Porque ficou confusa e um pouco assustada. Ela não ouvia racionalmente... E quase matou a nós todos.
– Lá era diferente – retruco, negando com a cabeça. – Isso foi há muito tempo. Agora ela é diferente. – Desvio o olhar, fracassando em minha tentativa de controlar a frustração gerada por suas acusações ligeiramente veladas. – Ela está feliz...
– Como pode estar realmente feliz se nunca enfrentou seu passado? Nunca deu atenção a ele, apenas o deixou de lado. Nunca teve tempo ou ferramentas para examiná-lo. E essa fúria... esse tipo de raiva... – Castle balança a cabeça – não desaparece de uma hora para a outra. Ela é volátil e imprevisível. E escreva o que eu digo, garoto: a fúria de Juliette vai ressurgir.
– Não.
Ele me encara. Seu olhar me deixa abalado.
– Você não acredita no que está dizendo.
Não respondo.
– Senhor Warner...
– Não será assim – respondo. – Se essa fúria ressurgir, não será assim. Raiva, talvez, mas não essa fúria. Não a fúria descontrolada e sem limites...
Castle sorri. É um sorriso tão repentino, tão inesperado, que me faz interromper a fala.
– Senhor Warner –, o que acha que vai acontecer quando a verdade sobre o passado de Juliette, enfim, vier à tona? Acha que ela vai aceitar tudo tranquilamente? Calmamente? Se minhas fontes estiverem corretas, e em geral costumam estar, os rumores no submundo afirmam que o tempo dela aqui está chegando ao fim. O experimento já foi concluído. Juliette assassinou um comandante supremo. O sistema não vai deixá-la sair impune, com seus poderes livres. E ouvi dizer que o plano é extinguir o Setor 45. – Castle hesita. – Quanto a Juliette, é provável que a matem ou a levem para outro lugar.
Minha mente gira, explode.
– Como sabe disso?
Castle deixa escapar uma risada rápida.
– Você não pode achar mesmo que Ponto Ômega tenha sido o único grupo de resistência na América do Norte, senhor Warner. Eu tenho muitos contatos no submundo. E o que eu disse continua valendo. – Faz uma pausa. – Juliette logo terá acesso às informações necessárias para unir todas as peças do quebra-cabeça de seu passado. E vai descobrir, de um jeito ou de outro, qual foi a sua participação em tudo o que aconteceu.
Desvio o olhar antes de encará-lo outra vez. Sinto meus olhos arregalados e minha voz instável ao sussurrar.
– Você não entende. Ela jamais me perdoaria.
Castle nega com a cabeça.
– Se Juliette descobrir por intermédio de outra pessoa que você sempre soube que ela era adotada? Se ouvir da boca de outra pessoa que você torturou a irmã dela? – Assente. – Sim, é verdade. É muito provável que jamais o perdoe.
Por um terrível momento, deixo de sentir meus joelhos. Sou forçado a me sentar, meus ossos tremendo.
– Mas eu não sabia – declaro, detestando o som das palavras, detestando me sentir como uma criança. – Eu não sabia quem era aquela garota. Não sabia que Juliette tinha uma irmã... Eu não sabia...
– Não importa. Sem você, sem contexto, sem uma explicação ou pedido de desculpas, será muito mais difícil ela perdoar tudo o que aconteceu. Mas se contar você mesmo e contar agora a ela? O relacionamento de vocês talvez ainda tenha uma chance. – Balança a cabeça. – De um jeito ou de outro, precisa contar a ela, senhor Warner. Porque temos de adverti-la. Juliette precisa saber o que está por vir e temos que começar a traçar nossos planos. Seu silêncio acerca deste assunto só vai terminar em ruína.
Juliette
Sou uma ladra.
Roubei este caderno e esta caneta de um dos meus médicos quando ele não estava olhando, subtraí de um dos bolsos de seu jaleco, e guardei em minha calça. Isso foi pouco antes de ele dar ordens para aqueles homens virem me buscar. Os homens com ternos estranhos e máscaras de gás com uma área embaçada de plástico protegendo seus olhos. Eram alienígenas, lembro-me de ter pensado. Lembro-me de ter pensado que deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos aqueles que me algemaram com as mãos para trás, que me prenderam em meu assento. Usaram Tasers em minha pele várias e várias vezes por nenhum motivo que não sua vontade de me ouvir gritar, mas eu não gritava. Cheguei a gemer, mas em momento algum pronunciei uma palavra sequer. Senti as lágrimas descerem pelas bochechas, mas não estava chorando.
Acho que os deixei furiosos.
Eles me bateram para eu acordar, muito embora meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou do assento sem tirar minhas algemas e chutou meu joelho antes de dar ordens para que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentava, mas não conseguia, e finalmente seis mãos me puxaram pela porta e meu rosto passou algum tempo sangrando no asfalto. Não consigo lembrar direito do momento em que me empurraram para dentro.
Sinto frio o tempo todo.
Sinto o vazio, um vazio como se não houvesse nada dentro de mim, nada além desse coração partido, o único órgão que restou nesta casca. Sinto o palpitar dentro de mim, sinto as batidas reverberando em meu esqueleto. Eu tenho um coração, afirma a ciência, mas sou um monstro, afirma a sociedade. E é claro que sei disso. Sei o que fiz. Não estou pedindo comiseração. Mas às vezes penso – às vezes reflito: se eu fosse um monstro, é claro que já teria sentido a essa altura, não?
Eu me sentiria nervosa e violenta e vingativa. Conheceria a raiva cega, o desejo por sangue, a necessidade de vingança.
Em vez disso, sinto um abismo em meu interior, um abismo tão grande, tão sombrio, que sequer consigo enxergar dentro dele; sou incapaz de ver o que ele guarda. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.
Não sei o que posso fazer outra vez.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Estou outra vez sonhando com pássaros.
Queria que fossem embora logo. Estou cansada de pensar neles, de ter esperança neles. Pássaros, pássaros, pássaros... por que não vão embora? Balanço a cabeça como se tentasse limpá-la, mas imediatamente percebo meu erro. Minha mente ainda está densa, pesada, nadando em confusão. Abro os olhos muito lentamente, sondando, mas não importa quanto eu os force a abrir, não consigo absorver nenhuma luz. Levo tempo demais para entender que acordei no meio da noite.
Uma arfada brusca.
Sou eu, minha voz, minha respiração, meu coração batendo acelerado. Onde está minha cabeça? Por que pesa tanto? Meus olhos se fecham rapidamente, sinto areia nos cílios, grudando-os. Tento afastar o entorpecimento, tento lembrar do que aconteceu, mas partes de mim ainda parecem sem vida, como meus dentes, os dedos dos pés e os espaços entre as costelas, e dou risada, de repente, e nem sei por quê...
Fui baleada.
Abro os olhos num ímpeto, minha pele deixa escapar um suor frio e repentino.
Meu Deus, eu fui baleada, fui baleada fui baleada
Tento me sentar e não consigo. Sinto-me tão pesada, tanto peso produzido por sangue e ossos, e de repente estou congelando, minha pele se transforma em borracha fria e úmida contra a mesa de metal na qual me encontro e de um instante para o outro
quero gritar
e de repente me vejo outra vez no hospício, o frio e o metal e a dor e o delírio, tudo me confunde e então estou chorando, em silêncio, lágrimas quentes escorrendo por minhas bochechas e não consigo falar, mas tenho medo e ouço suas vozes, eu ouço
os outros
gritando
Carne e osso se rompendo na noite, vozes apressadas, abafadas – gritos suprimidos –, os colegas de prisão que nunca vi...
Quem eram eles?, indago.
Não penso neles há muito tempo. O que aconteceu com aquelas pessoas? De onde vinham? Quem deixei para trás?
Meus olhos estão grudados; os lábios, separados em um terror silencioso. Não me sinto tão assombrada assim desde muito tempo muito tempo muito tempo atrás
São os medicamentos, imagino. Tinha veneno naquelas balas.
É por isso que consigo ver os pássaros?
Sorrio. Dou risada. Conto-os. Não só os brancos, os brancos com faixas douradas como coroas em suas cabeças, mas também os azuis e os pretos e os amarelos. Vejo-os quando fecho os olhos, mas também os vi hoje, na praia, e pareciam tão reais, tão reais
Por quê?
Por que alguém tentaria me matar?
Mais um tranco repentino em meus sentidos e então estou mais alerta, mais como eu sou, o pânico afastando o veneno por um único momento de clareza e consigo me levantar, apoiar-me nos cotovelos, cabeça girando, olhos desvairados que analisam a escuridão e estou prestes, muito prestes a me deitar, exausta, quando vejo alguma coisa e...
– Você está acordada?
Inspiro bruscamente, confusa, tentando decifrar o som. As palavras são caóticas, como se eu as ouvisse debaixo d’água, então nado em sua direção, tentando, tentando, meu queixo caindo contra o peito enquanto perco a batalha.
– Você viu alguma coisa hoje? – a voz quer saber de mim. – Alguma coisa... estranha?
– Quem... onde... onde você está? – pergunto, estendendo cegamente a mão no escuro, olhos só entreabertos agora. Sinto uma resistência e a seguro em meus dedos. Uma mão? Mão estranha. É uma mistura de metal e pele, um punho com um toque forte de aço.
Não gosto disso.
Solto.
– Você viu alguma coisa hoje? – insiste.
E dou risada ao lembrar. Eu consegui ouvi-los – ouvir seus grasnados enquanto voavam sobre o mar, ouvir suas patinhas pisando na areia. Eram tantos. Asas e penas, bicos e garras afiadas.
Tanto movimento.
– O que você viu? – a voz insiste em saber, e me faz sentir-me estranha.
– Estou com frio – digo, antes de me deitar outra vez. – Por que faz tanto frio?
Um breve silêncio. Um farfalhar de movimento. Sinto um pesado cobertor sendo estendido sobre o lençol simples que já cobria meu corpo.
– Você devia saber que não estou aqui para feri-la – a voz afirma.
– Eu sei – respondo, embora eu não entenda por que falei isso.
– Mas as pessoas nas quais você confia estão mentindo para você – a voz alerta. – E os outros comandantes supremos só querem matá-la.
Abro um sorriso enorme enquanto me lembro dos pássaros.
– Olá – digo.
Alguém bufa.
– Vou vê-la pela manhã. Conversaremos em outro momento – anuncia a voz. – Quando se sentir melhor.
Estou tão aquecida agora, aquecida e cansada e outra vez me afogando em sonhos caóticos e memórias distorcidas. Sinto-me nadando em areia movediça, e quanto mais tento sair, mais rapidamente sou devorada e só consigo pensar que
aqui
nos cantos escuros e empoeirados da minha mente
sinto um alívio estranho
aqui sempre sou bem-vinda
em minha solidão, em minha tristeza
neste abismo existe um ritmo do qual me lembro. As lágrimas caindo em compasso, a tentação de recuar, a sombra do meu passado
a vida que escolhi esquecer
nunca
jamais
me esquecerá
Warner
Passei a noite toda acordado.
Vejo infinitas caixas à minha frente, os conteúdos que elas guardavam espalhados pelo quarto. Papéis empilhados nas mesas, abertos no chão. Estou cercado de arquivos. Muitos milhares de páginas de burocracia. Os velhos relatórios de meu pai, seu trabalho, os documentos que governaram sua vida...
Li todos eles.
Obsessivamente. Desesperadamente.
E o que encontrei nessas páginas não ajuda a me acalmar...
Sinto-me angustiado.
Estou sentado aqui, com as pernas cruzadas, no chão do meu escritório, sufocado por todos os lados pela imagem de uma fonte familiar e os garranchos ilegíveis de meu pai. Minha mão direita está presa atrás da cabeça, desesperada por alguns centímetros de fios de cabelo para poder puxá-los para fora do crânio, mas sem encontrá-los. É muito pior do que eu temia, e não sei por que fiquei tão surpreso.
Não foi a primeira vez que meu pai guardou segredos de mim.
Foi depois que Juliette escapou do Setor 45, depois que fugiu com Kent e Kishimoto e meu pai veio aqui para arrumar a bagunça... Foi então que descobri que meu pai tinha conhecimento do mundo deles. De outras pessoas com habilidades especiais.
Ele manteve essa informação escondida de mim por muitíssimo tempo.
Eu ouvia rumores, é claro – dos soldados, dos civis –, ouvia falar de muitas imagens e histórias incomuns, mas achava que tudo não passava de uma grande bobagem. As pessoas precisam encontrar um portal mágico para escapar da dor.
Mas ali estava, tudo verdade.
Depois da revelação de meu pai, minha sede por informação se tornou insaciável. Eu precisava saber mais – quem eram essas pessoas, de onde vinham, quanto sabiam...
E descobri verdades que todos os dias passei a desejar não ter descoberto.
Existem hospícios, exatamente iguais aos de Juliette, espalhados por todo o mundo. Os não naturais, conforme o Restabelecimento passou a chamá-los, eram presos em nome da ciência e das descobertas. Mas agora, finalmente, começo a entender como tudo começou. Aqui, nestas pilhas de papéis, estão as respostas horríveis que eu buscava.
Juliette e sua irmã foram as primeiríssimas não naturais encontradas pelo Restabelecimento. A descoberta das habilidades incomuns dessas garotas levou-os a encontrar outras pessoas como elas em todo o mundo. O Restabelecimento passou a capturar todos os não naturais que conseguisse encontrar; alegou aos civis que estavam limpando o antigo mundo e suas doenças, aprisionando-os em campos para analises médicas mais cuidadosas.
A verdade, entretanto, era muito mais complicada.
O Restabelecimento rapidamente separou os não naturais úteis dos inúteis. E fez isso por interesse próprio. Aqueles com as mais relevantes habilidades foram absorvidos pelo sistema, espalhados ao redor do mundo pelos comandantes supremos, para seu uso próprio no trabalho de perpetuar a ira do Restabelecimento. Os outros foram jogados no lixo. Isso, por fim, levou à ascensão do Restabelecimento e, com ela, ao surgimento dos muitos hospícios que passaram a abrigar os não naturais pelo globo. Para que mais estudos fossem realizados, alegavam. Para experimentos.
Juliette ainda não tinha manifestado suas habilidades quando seus pais a doaram ao Restabelecimento. Não. Foi sua irmã quem começou tudo.
Emmaline.
Foram os dons sobrenaturais de Emmaline que deixaram todos à sua volta espantados; foi Emmaline, a irmã de Juliette, que, sem querer, atraiu atenção para si própria e para sua família. Os pais, cujos nomes continuam desconhecidos por mim, sentiram medo das demonstrações frequentes e incríveis de psicocinese da filha.
Também eram fanáticos.
Os arquivos de meu pai trazem informações limitadas sobre a mãe e o pai que, de livre e espontânea vontade, entregaram suas filhas para a realização de experiências. Analisei cada documento e só consegui descobrir pouquíssimas informações sobre seus motivos, e acabei recolhendo, em várias notas e detalhes extras, uma descrição assustadora dessas personagens. Parece que os dois tinham uma obsessão doentia pelo Restabelecimento. Os pais biológicos de Juliette eram devotos da causa muito antes de essa causa sequer ganhar força como um movimento internacional, e acreditavam que entregar a filha para ser estudada poderia ajudar a lançar luz sobre o mundo atual e suas muitas doenças. Sua teoria era a seguinte: se aquilo estava acontecendo com Emmaline, talvez também estivesse acontecendo com outras pessoas. E talvez, de alguma maneira, as informações encontradas pudessem ser usadas para ajudar a melhorar o mundo. Rapidamente, o Restabelecimento obteve a custódia de Emmaline.
Juliette foi levada por precaução.
Se a irmã mais velha tinha se mostrado capaz de feitos incríveis, o Restabelecimento acreditava que o mesmo poderia valer para a mais nova. Juliette tinha só cinco anos e foi mantida sob vigilância.
Depois de um mês em uma instalação do Restabelecimento, ela não mostrou nenhum sinal de qualquer habilidade especial. Injetaram-lhe uma droga que destruiria partes fundamentais de sua memória antes de enviá-la para viver sob supervisão do meu pai, no Setor 45. Emmaline manteve seu nome verdadeiro, mas a irmã mais nova, solta no mundo real, precisaria de um nome falso. Passaram a chamá-la de Juliette, plantaram memórias falsas em sua cabeça e lhe encontraram pais adotivos que, felizes demais com a oportunidade de levarem uma filha para casa, já que não tinham filhos, seguiram a instrução de nunca contar a ninguém que a menina fora adotada. Também não sabiam que estavam sendo monitorados. Todos os outros não naturais inúteis foram, em geral, mortos, mas o Restabelecimento escolheu monitorar Juliette em um ambiente mais neutro. Esperavam que uma vida em uma casa comum inspiraria a habilidade latente dentro da menina. Por ter laços de sangue com a talentosíssima Emmaline, Juliette era considerada valiosa demais para simplesmente se livrarem dela tão rápido.
É a próxima parte da vida de Juliette que me era mais familiar.
Eu sabia de seus problemas em casa, de suas muitas mudanças. Sabia das visitas de sua família ao hospital. Dos telefonemas que eles faziam à polícia. Ela ficou em centros de reabilitação para menores. Viveu na região que no passado fora o sul da Califórnia antes de se instalar em uma cidade que se tornou parte do que hoje é o Setor 45, sempre dentro dos domínios de meu pai. Sua criação entre pessoas comuns foi consistentemente documentada em relatórios policiais, queixas de professores e arquivos médicos, em uma tentativa de entender em que ela estava se transformando. Por fim, depois de finalmente descobrirem os perigos do toque letal de Juliette, as pessoas maldosas escolhidas para serem seus pais adotivos passaram a abusar dela – pelo resto da adolescência – e, por fim, acabaram devolvendo-a ao Restabelecimento, que se mostrou de braços abertos para recebê-la outra vez.
Foi o Restabelecimento – meu próprio pai – que colocou Juliette de volta no isolamento. Para que fossem feitos mais testes. Para mais vigilância.
E foi então que nossas histórias se cruzaram.
Esta noite, nestes arquivos, finalmente fui capaz de compreender algo ao mesmo tempo terrível e alarmante:
Os comandantes supremos do mundo sempre souberam de Juliette Ferrars.
Passaram esse tempo todo observando-a crescer. Ela e a irmã foram entregues por seus pais insanos, cuja aliança com o Restabelecimento reinava acima de tudo. Explorar essas meninas – entender seus poderes – foi o que ajudou o Restabelecimento a dominar o mundo. Foi por meio da exploração de outros não naturais inocentes que o Restabelecimento conseguiu conquistar e manipular pessoas e lugares com tanta rapidez.
Foi por isso, agora me dou conta, que se mostraram tão pacientes com uma garota de dezessete anos que se proclamou governante de todo um continente. Foi por isso que permaneceram tão silenciosos sobre o fato de ela ter assassinado um dos outros comandantes.
E Juliette não tem ideia de nada disso.
Não tem ideia de que está sendo peça de um jogo, uma presa. Nem imagina que não tem nenhum poder real no meio de tudo isso. Nenhuma chance de mudar nada. Nem a menor chance de fazer a diferença no mundo. Ela foi, e sempre será, nada além de um brinquedo para eles – uma experiência científica para se observar com atenção, para ter certeza de que a mistura não vai ferver rápido demais.
Mas ferveu.
Pouco mais de um mês atrás, Juliette não passou nos testes deles, e meu pai tentou matá-la por isso. Tentou matá-la porque chegou à conclusão de que ela tinha se tornado um empecilho. Essa não natural, dessa vez, havia se transformado em adversária.
O monstro que criamos tentou matar meu próprio filho. Depois, atacou-me como um animal feroz, atirando em minhas duas pernas. Nunca vi tamanha selvageria – uma raiva tão cega e desumana. Sua mente se transforma sem emitir qualquer aviso. Ela não mostrou nenhum sinal de psicose ao chegar na casa, mas pareceu dissociada de qualquer estrutura de pensamento racional enquanto me atacava. Depois de ver com meus próprios olhos sua instabilidade, fiquei mais certo do que precisava ser feito. Agora escrevo isto na cama do hospital, como um decreto, e como precaução para meus colegas comandantes. No caso de eu não me recuperar desses ferimentos e ser incapaz de dar sequência ao que precisa ser feito, vocês, que estão lendo isto agora, precisam reagir. Terminar o que eu não consegui terminar. A irmã mais nova é um experimento fracassado. Vive, conforme temíamos, alheia à humanidade. Pior: tornou-se um empecilho para Aaron. Ele ficou – em uma guinada muito infeliz dos eventos – terrivelmente interessado por ela, aparentemente sem se importar sequer com sua própria segurança. Eu não tenho ideia do que ela provocou na mente dele. Só sei que jamais devia ter alimentado minha curiosidade e permitido que ele a trouxesse para a base. É uma pena, mesmo, que ela em nada se pareça com a irmã mais velha. Pelo contrário: Juliette Ferrars se transformou em um câncer incurável, que devemos extirpar de nossas vidas de uma vez por todas.
– EXCERTO DOS REGISTROS DIÁRIOS DE ANDERSON
Juliette ameaçou o equilíbrio do Restabelecimento.
Ela foi um experimento que deu errado. E se transformou em um estorvo. Precisava ser expurgada da terra.
Meu pai tentou com afinco destruí-la.
E agora vejo que seu fracasso foi de grande interesse para os demais comandantes. Os registros diários de meu pai foram compartilhados; todos os comandantes supremos dividiam seus registros uns com os outros. Era a única maneira de os seis se manterem informados, o tempo todo, dos acontecimentos na vida de cada um.
Portanto, eles conheciam essa história. Sabiam de meus sentimentos por ela.
E todos receberam a ordem de meu pai para matar Juliette.
Mas estão esperando. E só posso imaginar que haja mais coisa escondida por trás de tudo isso – alguma outra explicação para o fato de estarem há tanto tempo hesitando. Talvez estejam pensando que podem reabilitá-la. Talvez estejam se perguntando se Juliette não poderia continuar a servir a eles e à causa, basicamente como sua irmã tem servido.
A irmã de Juliette.
Sou imediatamente atormentado pela lembrança.
Cabelos castanhos, magra. Tremendo descontroladamente debaixo d’água. Longas mechas castanhas suspensas como enguias furiosas ao redor de seu rosto. Fios elétricos enfiados debaixo de sua pele. Vários tubos permanentemente ligados ao pescoço e ao tronco. Ela vivia submersa há tanto tempo que, quando a vi pela primeira vez, mal parecia uma pessoa. Sua pele era leitosa e enrugada, a boca aberta em um “O” grotesco em volta de um aparelho que forçava o ar para dentro de seus pulmões. É apenas um ano mais velha que Juliette. E foi mantida em cativeiro por doze anos.
Ainda está viva, mas por pouco.
Eu não fazia ideia de que aquela garota era irmã de Juliette. Aliás, não tinha ideia sequer de que aquela garota era uma pessoa. Quando recebi minha tarefa, ela não tinha nome. Só me foram passadas instruções, ordens para seguir. Não sabia o que ou quem me havia sido atribuído. Só entendi que era uma prisioneira e sabia que estava sendo torturada – mas não sabia, ali, naquele momento, que havia algo sobrenatural naquela garota. Eu era um idiota. Uma criança.
Bato a parte de trás da cabeça na parede. Uma vez. Com força. Fecho os olhos bem apertado.
Juliette não faz ideia de que já teve uma família de verdade – uma família horrível, insana, mas mesmo assim uma família. E se pudermos acreditar no que Castle diz, o Restabelecimento está atrás dela. Para matá-la. Para explorá-la. Então, precisamos agir. Temos de alertá-la, e preciso fazer isso quanto antes.
Mas como... como posso começar a contar isso a ela? Como faço para contar sem explicar o meu papel nisso tudo?
Sempre soube que Juliette era filha adotiva, mas nunca lhe contei essa verdade simplesmente porque pensei que pioraria as coisas. Para mim, seus pais biológicos estavam mortos há muito tempo. Para mim, contar a ela que tinha pais biológicos mortos não tornaria sua vida melhor.
Mas isso não muda o fato de que eu sabia.
E agora tenho que confessar. Não só isso, mas toda a verdade envolvendo sua irmã. Preciso contar que Emmaline continua viva e sendo torturada pelo Restabelecimento. Que eu contribui para essa tortura.
Ou então:
Que sou um verdadeiro monstro, completamente, totalmente indigno de seu amor.
Fecho os olhos, tapo a boca com as costas da mão e sinto meu corpo se desfazer. Não sei como me desenredar da sujeira criada por meu próprio pai. Uma sujeira da qual, sem querer, fui cúmplice. Uma sujeira que, ao ser revelada, destruirá cada fragmento da felicidade que a muito custo consegui criar em minha vida.
Juliette nunca, nunca mesmo, vai me perdoar.
Eu vou perdê-la.
E isso vai me matar.
Juliette
Tenho curiosidade de saber o que estão pensando. Meus pais. Tenho curiosidade de saber onde estão. Tenho curiosidade de saber se estão bem agora, se estão felizes agora, se enfim conseguiram o que queriam. Tenho curiosidade de saber se minha mãe terá outro filho. De saber se alguém será bondoso o bastante para me matar e de saber se o inferno é melhor do que este lugar. Tenho curiosidade de saber como meu rosto está agora. Tenho curiosidade de saber se voltarei a respirar ar puro.
Tenho curiosidade de saber tantas coisas.
Às vezes, passo dias acordada, apenas contando tudo o que consigo encontrar. Conto as paredes, as rachaduras nas paredes, meus dedos das mãos, meus dedos dos pés. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, os passos necessários para cruzar este espaço e voltar para onde eu estava antes. Conto meus dentes e os fios de cabelo e quantos segundos consigo segurar a respiração.
Às vezes, fico tão cansada que esqueço que não posso desejar mais nada, e então me pego desejando aquilo que sempre quis. Aquilo com que sempre sonhei.
O tempo todo desejo ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso. Ter uma pessoa em quem confiar, alguém que não jogue coisas em mim ou coloque minha mão no fogo ou me espanque por ter nascido. Alguém que ouça que fui jogada no lixo e tente me encontrar, que não tenha medo de mim.
Alguém que entenderia que eu jamais tentaria feri-lo.
Estou curvada em um canto deste quarto e enterro a cabeça nos joelhos e embalo meu corpo para a frente e para trás para a frente e para trás para a frente e para trás e desejo e desejo e desejo e sonho com coisas impossíveis e choro até dormir.
Tenho curiosidade de saber como seria ter um amigo.
E então, me pergunto quem mais está preso neste hospício. E fico me perguntando de onde vêm os outros gritos.
E fico me perguntando se estão vindo de mim.
– EXCERTO DOS DIÁRIOS DE JULIETTE NO HOSPÍCIO
Sinto-me estranha nesta manhã.
Sinto-me lenta, como se andasse na lama, como se meus ossos estivessem preenchidos com chumbo e minha cabeça, ai...
Estremeço.
Minha cabeça nunca esteve mais pesada.
Indago se esses seriam os últimos sinais do veneno ainda assombrando minhas veias, mas alguma coisa em mim parece errada hoje. As lembranças do meu tempo no hospício de repente se tornam presentes demais – empoleiradas bem na frente da minha mente. Pensei que conseguiria afastar essas lembranças da minha cabeça, mas não, elas estão aqui outra vez, arrastadas para fora da penumbra. Em total isolamento por 264 dias. Quase 1 ano sem acesso ou escapatória ao mundo exterior. A outro ser humano.
Tanto tempo, tanto tempo, tanto mas tanto tempo sem o calor do contato humano.
Tremo involuntariamente. Empurro o corpo para a frente.
O que há de errado comigo?
Sonya e Sara devem ter ouvido meus movimentos, porque agora estão paradas diante de mim, suas vozes claras, mas, de alguma maneira, vibrando. Ecoando pelas paredes. Meus ouvidos não param de zumbir. Aperto os olhos para tentar enxergar melhor seus rostos, mas de repente me sinto zonza, desorientada, como se meu corpo estivesse de lado ou como se talvez estirado no chão ou talvez eu precise estar no chão ou aiai,
acho que vou vomitar...
– Obrigada pelo balde – agradeço, ainda com náusea. Tento me sentar, mas, por algum motivo, não me lembro o que tenho que fazer para me sentar. Minha pele começou a suar frio. – O que aconteceu comigo? – indago. – Pensei que vocês curassem... curassem...
Apago outra vez.
Cabeça girando.
Olhos fechados para protegê-los da luz. A janela que vai do chão ao teto parece não conseguir bloquear o sol de invadir a sala e não consigo evitar os pensamentos de quando vi o sol brilhar tão forte. Ao longo da última década, nosso mundo sofreu um colapso; a atmosfera tornou-se imprevisível, o tempo muda em picos agudos e dramáticos. Neva quando não devia nevar; chove onde não devia chover; as nuvens estão sempre cinza; os pássaros sumiram de uma vez por todas do céu. As folhas, que no passado eram verdes e viçosas nas árvores e jardins, agora são sem vida, apodrecendo. Estamos em março e, mesmo enquanto a primavera se aproxima, o céu não mostra qualquer sinal de mudança. A terra continua fria, congelada, continua escura e turva.
Ou pelo menos tudo estava assim ainda ontem.
Alguém coloca um pano fresco em minha testa, e esse toque frio é bem-vindo; minha pele parece inflamada mesmo quando tremo. Meus músculos relaxam paulatinamente. Mesmo assim, queria que alguém fizesse algo para evitar esse sol forte. Estou apertando os olhos, mesmo enquanto eles permanecem fechados, o que só faz minha enxaqueca piorar.
– A ferida está totalmente curada – ouço alguém dizer. – Mas parece que o veneno não foi expurgado do organismo.
– Não consigo entender – responde outra voz. – Como isso é possível? Por que vocês não puderam curá-la completamente?
– Sonya? – consigo dizer. – Sara?
– Sim? – as gêmeas respondem ao mesmo tempo, e posso sentir seus passos apressados, duros como batidas de tambores em minha cabeça conforme se aproximam da minha cama.
Tento apontar para as janelas.
– Podem fazer alguma coisa para evitar o sol? – pergunto. – Está forte demais.
Elas me ajudam a sentar e sinto minha vertigem começando a estabilizar. Pisco, e abrir os olhos requer um grande esforço, mas consigo fazer isso antes de alguém me entregar um copo de água.
– Beba isso – Sonya instrui. – Seu corpo está seriamente desidratado.
Engulo a água rapidamente, surpresa com o tamanho da minha sede. Elas me entregam outro copo. Continuo bebendo. Tenho de engolir 5 copos de água antes de conseguir sustentar minha cabeça sem uma enorme dificuldade.
Quando finalmente me sinto mais normal, olho em volta. Olhos arregalados. Tenho uma dor de cabeça insuportável, mas os demais sintomas começam a ficar para trás.
Primeiro, vejo Warner.
Está parado em um canto do quarto, olhos vermelhos, as roupas de ontem amarrotadas no corpo. Encara-me com um olhar de medo declarado, o que me surpreende. Totalmente diferente de como ele costuma ser. Warner raramente mostra suas emoções em público.
Queria poder dizer alguma coisa, mas agora não parece ser a hora apropriada. Sonya e Sara continuam me observando atentamente, seus olhos amendoados brilhando em contraste com a pele. Porém, alguma coisa nelas parece diferente. Talvez seja porque nunca as olhei tão de perto assim em nenhum lugar que não fosse o subsolo, mas a luz forte do sol reduz suas pupilas ao tamanho de uma ponta de alfinete, fazendo seus olhos parecerem diferentes. Maiores. Novos.
– A luminosidade está tão estranha hoje – não consigo evitar comentar. – Alguma vez já esteve tão claro assim?
Sonya e Sara olham pela janela, olham outra vez para mim, franzem o cenho uma para a outra.
– Como está se sentindo? – perguntam. – Sua cabeça ainda dói? Está com tontura?
– Minha cabeça está me matando – respondo, e tento rir. – O que tinha naquelas balas? – Uso o indicador e o polegar para apertar o espaço entre meus olhos. – Sabem se essa dor de cabeça vai passar logo?
É Sara quem responde:
– Sinceramente... não sabemos o que está acontecendo com você.
– Seu ferimento cicatrizou – Sonya explica –, mas parece que o veneno está afetando sua mente. Não temos como saber ao certo se ele foi capaz de causar danos permanentes antes de conseguirmos prestar os primeiros socorros.
Ao ouvir as palavras, ergo o olhar. Sinto a coluna enrijecer.
– Danos permanentes? – indago. – Ao meu cérebro? Isso é possível?
Elas assentem.
– Vamos monitorá-la de perto nas próximas semanas, só para ter certeza. As alucinações que você está tendo talvez não sejam nada grave.
– O quê? – Olho em volta. Olho para Warner, que continua sem dizer nada. – Que alucinações? Eu só estou com dor de cabeça. – Aperto outra vez os olhos, virando o rosto para evitar a janela. – Nossa! Desculpe – digo, estreitando os olhos contra a luz. – Faz tempo que não temos um dia assim. – Dou risada. – Acho que estou mais acostumada à escuridão. – Uso a mão para formar uma espécie de viseira, de modo a proteger os olhos. – Precisamos arrumar umas persianas para essas janelas. Alguém me lembre de pedir isso a Kenji.
Warner fica pálido. Sua pele parece congelada.
Sonya e Sara compartilham um olhar de preocupação.
– O que foi? – pergunto, sentindo um frio no estômago enquanto olho para os três. – Qual é o problema? O que estão escondendo de mim?
– Não há sol hoje – Sonya responde baixinho. – Está nevando outra vez.
– Escuro e nublado, como todos os outros dias – Sara complementa.
– O quê? Do que estão falando? – retruco, rindo e franzindo a testa ao mesmo tempo. Consigo sentir o calor do sol tocando meu rosto. Percebo que provoca um impacto direto nos olhos delas, que suas pupilas se dilatam quando vão para algum canto com menos luminosidade. – Vocês estão brincando comigo, não estão? O sol está muito claro, mal consigo olhar pela janela.
Sonya e Sara negam com a cabeça.
Warner olha para a parede, mantém as mãos entrelaçadas na nuca.
Sinto meu coração começando a acelerar.
– Então estou vendo coisas? – pergunto. – Estou tendo alucinações?
Todos assentem.
– Por quê? – indago, esforçando-me para não entrar em pânico. – O que está acontecendo comigo?
– Não sabemos – Sonya responde, olhando para as próprias mãos –, mas temos esperança de que esses efeitos sejam apenas temporários.
Tento apaziguar minha respiração. Tento permanecer calma.
– Certo. Bem, eu preciso ir. Estou liberada? Tenho mil coisas a fazer...
– Talvez devesse ficar mais um tempo aqui – sugere Sara. – Deixe-nos cuidar de você por mais algumas horas.
Mas já estou negando com a cabeça.
– Eu preciso tomar um pouco de ar. Preciso ir lá fora...
– Não... – É a primeira coisa que Warner diz desde que acordei, e ele quase grita a palavra na minha direção. Mantém a mão erguida em um apelo silencioso.
– Não, meu amor – ele diz, soando estranho. – Você não pode voltar a sair. Não... Ainda não. Por favor.
A expressão em seu rosto é suficiente para partir meu coração.
Tento me acalmar, sinto meu pulso acelerado voltando ao normal e o encaro.
– Desculpe – falo. – Desculpe por ter assustado todo mundo. Foi um momento de burrice e tudo foi culpa minha. Baixei a guarda só por um segundo. – Suspiro. – Acho que alguém andou me observando, à espera do momento certo. De todo modo, não vai voltar a acontecer.
Tento sorrir, mas ele não se mexe. Sequer retribui o sorriso.
– Sério – tento outra vez. – Não se preocupe. Eu devia ter imaginado que existem pessoas por aí esperando para me matar assim que eu parecesse vulnerável, mas... – Dou uma risada. – Acredite, tomarei mais cuidado da próxima vez. Vou até pedir uma guarda maior para me acompanhar.
Ele nega com a cabeça.
Estudo-o, analiso seu terror. Continuo sem entender.
Faço um esforço para me colocar de pé. Estou usando meias e uma camisola hospitalar, e Sonya e Sara se apressam para me entregar um robe e chinelos. Agradeço a elas por tudo o que fizeram por mim e as duas apertam minhas mãos.
– Estaremos ali fora se precisarem de alguma coisa – Sonya e Sara avisam ao mesmo tempo.
– Obrigada mais uma vez – digo, mantendo um sorriso no rosto. – Eu as manterei informadas de como vão indo as... hum... – Aponto para minha cabeça. – As visões estranhas.
Elas assentem e vão embora.
Dou um passo na direção de Warner.
– Oi – falo com delicadeza. – Vai ficar tudo bem, de verdade.
– Você poderia ter sido assassinada.
– Eu sei – respondo. – Ando tão desligada ultimamente... Eu não esperava nada disso. Mas foi um erro que não voltarei a cometer. – Uma risadinha rápida. – Sério.
Por fim, ele suspira. Libera a tensão em seus ombros. Passa a mão no rosto, na nuca.
Nunca o vi assim antes.
– Sinto muito por tê-lo assustado – digo.
– Por favor, não peça desculpas, meu amor. Não precisa se preocupar comigo – responde, balançando a cabeça. – Estava preocupado com você. Como está se sentindo?
– Você quer dizer, tirando as alucinações? – Abro um leve sorriso. – Estou bem. Precisei de um instante para voltar a mim hoje cedo, mas me sinto muito melhor agora. Tenho certeza de que as visões logo ficarão para trás. – Agora abro um sorriso enorme, mais para tentar tranquilizá-lo do que por qualquer outro motivo. – Enfim, Delalieu quer que eu me encontre com ele o mais rápido possível para discutir meu discurso no simpósio, então acho que talvez eu deva resolver isso. Nem acredito que já é amanhã. – Balanço a cabeça. – Não posso me dar ao luxo de perder mais tempo. Porém... – Olho para baixo, para o meu próprio corpo. – Talvez primeiro eu deva tomar um banho, não acha? Vestir algumas roupas de verdade?
Tento sorrir outra vez para Warner, tento convencê-lo de que estou me sentindo bem, mas ele parece incapaz de falar. Apenas olha para mim, seus olhos vermelhos e intensos. Se eu não o conhecesse direito, pensaria que andou chorando.
Estou prestes a perguntar qual é o problema, quando ele fala:
– Meu amor.
e, por algum motivo, seguro a respiração.
– Preciso conversar com você – prossegue.
Na verdade, está sussurrando.
– Está bem – respondo, deixando o ar sair dos meus pulmões. – Converse comigo.
– Não aqui.
Sinto o estômago revirar. Meus instintos me dizem que devo entrar em pânico.
– Está tudo bem?
Ele demora muito para responder:
– Não sei.
Confusa, estudo-o.
Ele retribui o gesto, seus olhos verde-claros refletindo a luz de tal forma que, por um momento, nem sequer parecem humanos. E não diz mais nada.
Respiro fundo. Tento me acalmar.
– Está bem – respondo. – Está bem. Mas, se vamos voltar para o quarto, posso pelo menos tomar um banho antes? Quero muito me livrar dessa areia e sangue ressecado que ainda estão grudados no meu corpo.
Ele assente. Ainda sem emoção.
E agora eu realmente começo a entrar em pânico.
Warner
Estou andando pra lá e pra cá no corredor em frente ao quarto, esperando impacientemente que Juliette termine seu banho. Minha cabeça está um turbilhão. A irritação vem me perturbando há horas. Não tenho a menor ideia do que ela vai dizer. De como reagirá ao que tenho a lhe contar. E me sinto tão horrorizado com o que estou prestes a fazer que nem sequer ouço alguém chamando meu nome, até essa pessoa me tocar.
Dou meia-volta rápido demais, meus reflexos conseguem ser ainda mais acelerados do que minha mente. Prendo-o com os punhos para trás e encosto seu peito contra a parede, e só agora percebo que é Kent. Ele não reage; apenas ri e me pede para soltá-lo.
Faço isso.
Solto seu braço. Estou espantado. Balanço a cabeça para limpar a mente. Esqueço de me desculpar.
– Você está bem? – outra pessoa me pergunta.
É James. Ainda tem o tamanho de uma criança e, por algum motivo, isso me surpreende. Respiro com cuidado. Minhas mãos tremem. Nunca estive mais longe de me sentir bem, e estou perturbado demais pela minha ansiedade para me lembrar de mentir.
– Não – respondo. Dou um passo para trás, colidindo com a parede e batendo os pés no chão. – Não – repito, mas dessa vez nem sei mais com quem estou falando.
– Ah, quer conversar sobre o que está acontecendo? – James continua tagarelando.
Não entendo por que Kent não o manda calar a boca.
Faço um sinal negativo com a cabeça.
Mas essa minha resposta só parece encorajá-lo. James se senta ao meu lado.
– Por que não? Acho que você deveria conversar sobre o que está acontecendo – insiste.
– Cara, por favor! – Kent finalmente diz a ele. – Talvez fosse melhor dar um pouco de privacidade a Warner.
Mas James não se convence. Estuda meu rosto.
– Estava chorando?
– Por que vocês fazem tantas perguntas? – esbravejo, soltando a cabeça em uma das mãos.
– O que aconteceu com seu cabelo?
Olho espantado para Kent.
– Pode, por favor, levá-lo embora daqui?
– Você não deveria responder perguntas com outras perguntas – James diz para mim, apoiando a mão em meu ombro.
Quase salto para fora do meu próprio corpo.
– Por que está tocando em mim?
– Parece que um abraço lhe faria bem – ele responde. – Quer um abraço? Abraços sempre fazem eu me sentir melhor quando estou triste.
– Não – retruco duramente. – Não quero abraço nenhum. E não estou triste.
Kent parece rir. Está a alguns passos de nós, de braços cruzados, sem fazer nada para melhorar a situação. Lanço um olhar furioso em sua direção.
– Você parece bem triste, sim – James insiste.
– Neste exato momento, só sinto irritação – rebato com dureza.
– Mas se sente melhor, não? – James sorri. Dá tapinhas em meu braço. – Está vendo? Eu falei que conversar sobre o assunto ajuda.
Surpreso, pisco. Encaro-o.
Sua teoria não está exatamente correta, mas, por mais estranho que pareça, de fato me sinto melhor. Frustrar-me com ele ainda há pouco... digamos que ajudou a afastar o pânico e a focar os pensamentos. Minhas mãos se estabilizaram. Sinto-me um pouquinho mais fortalecido.
– Bem, obrigado por ser irritante – respondo.
– Ei! – Ele franze a testa. Fica na ponta dos pés, passa as mãos nas calças como se quisesse limpá-las. – Eu não sou irritante.
– Sem dúvida, é irritante – rebato. – Especialmente para uma criança do seu tamanho. Por que até hoje ainda não aprendeu a ficar quieto? Quando tinha a sua idade, eu só falava quando alguém falava comigo.
James cruza os braços.
– Espere aí, o que você quer dizer com essa história de criança do meu tamanho? Qual é o problema com o meu tamanho?
Aperto os olhos para ele.
– Quantos anos você tem? Nove?
– Estou quase completando onze!
– É muito pequeno para alguém de onze anos.
E então ele me dá um soco. Forte. Na coxa.
– Aaaaaai! – grita, exagerando em sua reação. Sacode os dedos. Fecha a cara para mim. – Por que sua perna parece feita de pedra?
– Dá próxima vez, melhor escolher alguém do seu tamanho – provoco. Ele estreita os olhos para mim. – Mas não se preocupe. Tenho certeza de que logo vai estar mais alto. Eu só passei a crescer bastante depois que fiz doze ou treze anos, então, se você for parecido comigo...
Kent pigarreia com força, e eu foco a atenção.
– Isto é, se você for como, hã, seu irmão, tenho certeza de que vai ficar bem.
James olha outra vez para Kent e sorri. Aparentemente, o soco desajeitado já foi esquecido.
– Espero mesmo que eu seja como meu irmão – responde, agora com um sorriso enorme no rosto. – Adam é o melhor, não é? Espero ser exatamente como ele.
Sinto um sorriso brotar também em meu rosto. Esse menininho... também é meu, meu irmão, e talvez nunca venha a saber disso.
– Não é? – James insiste, ainda sorridente.
Fico meio perdido na conversa.
– Perdão?
– Adam – ele explica. – Adam é o melhor, não é? É o melhor irmão mais velho do mundo.
– Ah... sim – respondo, engolindo o nó na garganta. – Sim, claro. Adam é, hum, o melhor. Ou algo perto disso. Seja como for, você é muito sortudo por tê-lo ao seu lado.
Kent lança um olhar na minha direção, mas não fala nada.
– Eu sei – James responde, inabalado. – Eu tive mesmo muita sorte.
Concordo com a cabeça. Sinto alguma coisa revirar em meu estômago. Levanto-me.
– Sim. Agora... se me der licença.
– Sim, já entendi – Kent assente. Acena para se despedir. – A gente se vê por aí, né?
– Sem dúvida.
– Tchau! – James se despede enquanto Kent o acompanha pelo corredor. – Fico feliz por estar se sentindo melhor!
Mas, no fundo, eu só me sinto pior.
Volto ao quarto, agora não tão em pânico quanto antes, mas, por algum motivo, mais melancólico. E tão distraído que, ao entrar, quase não percebo Juliette saindo do banheiro.
Não usa nada além de uma toalha.
Suas bochechas estão rosadas por causa da água quente. Os olhos, enormes e iluminados quando ela sorri para mim. É tão linda. Tão inacreditavelmente linda.
– Preciso pegar roupas limpas – diz, ainda sorrindo. – Você se importa?
Nego com a cabeça. Só consigo encará-la.
Por algum motivo, minha reação é insuficiente. Juliette hesita. Franze a testa ao me olhar. E finalmente vem na minha direção.
Sinto meus pulmões prestes a pararem.
– Ei! – chama a minha atenção.
Mas só consigo pensar no que tenho a lhe contar e em como ela pode reagir. Existe uma esperança pequena e desesperada em meu coração, mas essa esperança só representa uma tentativa de ser otimista quanto ao resultado.
Talvez Juliette entenda.
– Aaron? – insiste, aproximando-se, diminuindo a distância que nos separa. – Você disse que queria conversar comigo, certo?
– Sim – respondo em um sussurro. – Sim. – Sinto-me entorpecido.
– Dá para esperar? – ela pergunta. – Só o tempo de eu me trocar.
Não sei o que toma conta de mim.
Desespero. Desejo. Medo.
Amor.
Mas me atinge com uma força dolorida, esse lembrete. De quanto a amo. Meu Deus, eu a amo por completo. Suas impossibilidades, suas exasperações. Eu amo o modo como ela é carinhosa quando estamos sozinhos. Como sabe ser delicada e gentil em nossos momentos a sós. O fato de ela nunca hesitar em me defender.
Eu a amo.
E ela está parada bem à minha frente com uma pergunta nos olhos, e eu não consigo pensar em nada além de quanto a quero em minha vida. Para sempre.
Mesmo assim, não digo nada. Não faço nada.
E Juliette não vai embora.
Espantado, percebo que ela continua aguardando uma resposta.
– Sim, claro – apresso-me em responder. – Claro que dá para esperar.
Mas ela está tentando decifrar meu semblante.
– Qual é o problema? – pergunta.
Faço que não com a cabeça enquanto seguro sua mão. Com doçura, com muita doçura. Ela dá um passo mais para perto e minhas mãos se fecham levemente sobre seus ombros nus. É um movimento singelo, mas sinto suas emoções se transformarem. Juliette treme quando a toco, minhas mãos deslizando por seus ombros, e sua reação alcança os meus sentidos. E me mata toda vez, me deixa sem ar toda vez que ela reage a mim, ao meu toque. Saber que Juliette sente algo por mim... Que me deseja...
Talvez ela vá entender, penso. Nós dois já passamos por tantas coisas juntos. Superamos tantos obstáculos. Talvez esse também seja transponível.
Talvez ela vá entender.
– Aaron?
O sangue avança em minhas veias, quente e rápido. Sua pele é macia e tem cheiro de lavanda e eu me afasto só um centímetro. Só para olhar para ela. Passo o polegar por seu lábio inferior antes de minha mão deslizar na direção de suas costas.
– Oi? – respondo.
E ela me encontra aqui, nesse momento, por um instante.
Beija-me livremente, sem hesitar, passando os braços em volta do meu pescoço. E sou arrebatado, pego-me perdido em uma enxurrada de emoções...
E a toalha desliza.
Cai no chão.
Surpreso, dou um passo para trás, conseguindo vê-la por completo. Meu coração bate furiosamente no peito. Nem consigo me lembrar do que estava tentando fazer.
Então ela dá um passo adiante, fica na ponta dos pés e me puxa para perto, toda calor e doçura, e eu a trago para junto de mim, entorpecido pelo contato, perdido na inocência de sua pele. Ainda estou totalmente vestido. Juliette, nua em meus braços. E, por algum motivo, essa diferença entre nós só deixa esse momento mais surreal. Ela está me empurrando para trás com cuidado, mesmo enquanto continua me beijando, mesmo enquanto usa a mão para explorar meu corpo por entre o tecido. E eu caio na cama, arfando.
Juliette monta em cima de mim.
Acho que perdi completamente a cabeça.
Juliette
Esse, penso eu, é o jeito certo de morrer.
Eu poderia me afogar nesse momento e não me arrependeria. Poderia pegar fogo com esse beijo e alegremente ser transformada em cinzas. Poderia viver aqui, morrer aqui, bem aqui, encostada ao quadril dele, tocando os lábios dele. Na emoção de seus olhos que me fazem afundar, em seus batimentos cardíacos, que agora já se tornaram indistinguíveis dos meus.
Isso. Para sempre. Isso.
Ele me beija outra vez, suas arfadas ocasionais e desesperadas por ar tocando minha pele, e eu o saboreio, sua boca, seu pescoço, o contorno duro de seu maxilar, e ele tenta engolir um gemido, se afasta, dor e prazer se misturando enquanto se enterra mais fundo, com mais força, músculos tensos, corpo sólido feito pedra tocando o meu. Uma de suas mãos envolve meu pescoço enquanto a outra se mantém atrás da minha coxa, e ele me puxa, impossível chegar mais perto, esmaga-me com um prazer extraordinário que não se parece com nada que já senti na vida. É inominável. Desconhecido, impossível de estimar. É diferente a cada vez.
E hoje há algo selvagem e lindo nele, algo que não consigo explicar, algo na maneira como me toca – na forma como seus dedos pousam em minhas escápulas, na curva das minhas costas... Como se eu pudesse evaporar a qualquer momento, como se essa pudesse ser a primeira e última vez que nos tocaremos.
Fecho os olhos.
Entrego-me.
Os contornos de nossos corpos se fundiram. É onda depois de onda de gelo e calor, derretendo e pegando fogo e é sua boca em minha pele, seus braços fortes me envolvendo em amor e paixão. Estou suspensa no ar, submersa em água, no espaço sideral, tudo ao mesmo tempo, e os relógios congelam, as inibições já voaram todas pela janela e nunca me senti mais segura, amada e protegida do que me sinto aqui, nessa fusão de nossos corpos.
Perco a noção do tempo.
Perco a noção da mente.
Só sei que quero que isso dure para sempre.
Ele me diz alguma coisa, desliza as mãos pelo meu corpo, e suas palavras são leves e desesperadas, sedosas ao meu ouvido, mas quase não consigo ouvi-lo por sobre o som do meu coração batendo forte no peito. Mas vejo quando os músculos de seus braços marcam a pele, quando ele luta para ficar aqui, comigo...
Ele ofega, ofega alto, aperta os olhos com força enquanto estende a mão, agarra um pedaço do lençol, e eu me viro na direção de seu peito, passo o nariz pela linha de seu pescoço, inspirando seu cheiro, e meu corpo está pressionado contra o dele, cada centímetro de pele quente e exposto com desejo e necessidade e
– Eu te amo – sussurro
mesmo enquanto sinto minha mente se desligar do corpo
mesmo enquanto estrelas explodem atrás de meus olhos e o calor inunda minhas veias e sou dominada, fico atordoada e sou dominada toda vez, toda vez
É uma torrente de sentimentos, um sabor simultâneo e efêmero de morte e regozijo, e eu fecho os olhos, sinto um calor feroz atrás de minhas pálpebras e tenho a necessidade de gritar seu nome, mesmo enquanto nos sinto estilhaçando juntos, destruídos e restaurados tudo ao mesmo tempo, e ele arfa
– Juliette... – ele sussurra.
Adoro a imagem de seu corpo nu.
Especialmente nesses momentos silenciosos, vulneráveis. Essas pausas que habitam entre sonhos e realidade são minhas favoritas. Há uma graça nessa consciência hesitante, um retorno cuidadoso e gentil ao nosso jeito normal de funcionar. Descobri que amo esses minutos pela forma delicada como se desenrolam. São tenros.
Câmera lenta.
O tempo amarrando seus cadarços.
E Warner fica tão sereno, tão suave. Tão desprovido de defesas. Seu rosto é tranquilo; sua testa, relaxada; os lábios, imaginando se devem ou não se separar. E os primeiros segundos depois que ele abre a boca são os mais doces. Às vezes, tenho a sorte de abrir os olhos antes dele. Hoje, vejo-o revirar-se na cama. Vejo-o piscar, abrir os olhos, orientar-se. Mas então, o tempo que ele leva para me olhar – o jeito com que seu rosto se ilumina ao me ver –, essa parte faz algo palpitar dentro de mim. Descubro tudo, tudo o que importa, só pelo jeito como ele me olha nesse momento.
E hoje... Hoje há algo diferente.
Hoje, ao abrir os olhos, Warner parece subitamente desorientado. Pisca, analisa o quarto, faz movimentos rápidos demais, como se quisesse correr, mas não soubesse como. Hoje há alguma coisa errada.
E quando subo em seu colo, ele fica paralisado.
E quando seguro seu queixo, ele vira o rosto.
Quando o beijo com leveza, ele fecha os olhos e algo em seu interior se derrete, alguma coisa solta seus ossos. E quando abre os olhos, parece tão aterrorizado que, de repente, me sinto nauseada.
Há algo muito, muito errado.
– O que foi? – pergunto, mas minha voz quase não sai. – O que aconteceu? Qual é o problema?
Ele nega com a cabeça.
– Sou eu? – Meu coração acelera. – Fiz alguma coisa que você não gostou?
Warner fica de olhos arregalados.
– Não. Não, Juliette. Você é perfeita. Você é... Meu Deus, você é perfeita – elogia.
Ele leva a mão para trás da cabeça, olha para o teto.
– Por que não olha para mim, então?
Seus olhos encontram os meus. E não consigo não ficar impressionada com quanto amo seu rosto, mesmo agora, mesmo enquanto está tomado pelo medo. Warner tem uma beleza tão clássica. É tão notavelmente lindo, mesmo assim: com os cabelos raspados, curtos, macios; a barba por fazer, uma sombra loira contornado os traços firmes de seu rosto. Seus olhos têm um tom inconcebível de verde. Luminosos. Cintilantes. E então...
Fechados.
– Tenho uma coisa para contar – fala baixinho, olhando para baixo. Ergue a mão para me tocar, e seus dedos deslizam pela lateral do meu torso. Delicados. Aterrorizados. – Uma coisa que devia ter contado antes.
– O que quer dizer com isso?
Solto o corpo para trás. Agarro uma parte do lençol e a seguro com força junto ao meu corpo, de repente sentindo-me vulnerável.
Ele passa tempo demais hesitando. Exala. Passa a mão pela boca, pelo queixo, pela nuca...
– Não sei por onde começar.
Todos os meus instintos me dizem para sair correndo. Para enfiar algodão nos ouvidos. Para dizer-lhe que se cale. Mas não consigo. Sinto-me congelada.
E sinto medo.
– Comece pelo início – peço, surpresa pelo simples fato de conseguir falar.
Nunca o vi assim antes. Não consigo nem imaginar o que Warner tem a dizer. Agora está entrelaçando os dedos das mãos com tanta força, que receio que os quebre por acidente.
E então, finalmente. Lentamente.
Ele fala.
– O Restabelecimento tornou públicas suas campanhas quando você tinha sete anos. Eu tinha nove. Mas, antes disso, passaram muitos anos fazendo reuniões e planos.
– Entendi.
– Os fundadores do Restabelecimento eram militares, homens e mulheres que se tornaram peças da defesa. Eram responsáveis, em parte, pelo surgimento do complexo militar industrial que formou a base dos estados militares de fato, hoje conhecidos como Restabelecimento. Tinham seus planos definidos muito tempo antes de esse regime ganhar vida. Suas posições lhe davam acesso a armas e tecnologias das quais ninguém sequer tinha ouvido falar. Mantiveram uma vigilância extensiva, instalações totalmente equipadas, muitos hectares de propriedade privada, acesso ilimitado a informações... Tudo isso durou anos, antes mesmo de você nascer.
Meu coração acelera.
– Alguns anos depois, descobriram os não naturais, um termo que o Restabelecimento passou a usar para descrever aqueles com habilidades sobrenaturais. Você tinha mais ou menos cinco anos quando fizeram a primeira descoberta. – Warner olha para a parede. – Foi então que começaram a coletar informações, fazer testes e usar pessoas com habilidades para acelerar seus objetivos de dominar o mundo.
– Tudo isso é muito interessante – comento. – Mas a essa altura já estou começando a surtar e preciso que você pule logo para a parte na qual me conta o que isso tudo tem a ver comigo.
– Meu amor – responde, finalmente me olhando nos olhos. – Tudo isso tem a ver com você.
– Como?
– Há algo que eu sabia sobre a sua vida e que nunca lhe contei. – Ele engole em seco. Olha para as próprias mãos ao pronunciar: – Você foi adotada.
A revelação é como uma tempestade.
Saio cambaleando da cama, seguro o lençol junto ao corpo e fico ali parada, chocada, encarando-o. Tento permanecer calma, mesmo enquanto minha mente incendeia.
– Fui adotada...
Ele assente.
– Então, você está dizendo que aquelas pessoas que me criaram... que me torturaram... não são meus pais verdadeiros?
Ele faz que não com a cabeça.
– Meus pais biológicos ainda estão vivos?
– Sim – responde em um sussurro.
– E você nunca me contou nada disso?
Não, ele diz rapidamente
Não, não, eu não sabia que ainda estavam vivos, diz
Eu não sabia nada, exceto que você era adotada, diz. Só descobri recentemente, ainda ontem, que seus pai continuam vivos porque Castle, diz, porque Castle me contou...
E cada revelação subsequente é uma onda de choque, uma detonação repentina e inesperada dentro de mim...
BUM
Sua vida foi um experimento, diz
BUM
Você tem uma irmã, diz, e ela está viva
BUM
Seus pais biológicos a entregaram, junto com sua irmã, ao Restabelecimento para que realizassem pesquisas científicas
e é como se o mundo tivesse sido arrancado de seu eixo, como se eu tivesse sido lançada para fora da Terra, direto a caminho do Sol,
como se estivesse queimando viva e, de alguma maneira, ainda pudesse ouvi-lo, mesmo enquanto minha pele derrete para dentro do corpo, minha mente vira do avesso, e tudo o que já conheci, tudo que o pensava ser verdade sobre quem sou e de onde venho
desaparece
Afasto-me dele, confusa e horrorizada e incapaz de formar palavras, incapaz de falar.
Ele diz que não sabia e sua voz falha quando pronuncia essas palavras, quando diz que não sabia até recentemente que meus pais biológicos ainda estavam vivos, não sabia até Castle contar, nunca soube como me contar que fui adotada, não sabia como eu receberia a notícia, não sabia se eu precisava enfrentar essa dor, mas Castle lhe disse que o Restabelecimento está atrás de mim, que estão vindo para me levar de volta
e sua irmã, ele diz
mas agora estou chorando e não consigo enxergá-lo porque as lágrimas embaçam minha visão e não consigo falar e
sua irmã, ele diz, o nome dela é Emmaline, é um ano mais velha que você e é muito, muito poderosa, e tem sido mantida como propriedade do Restabelecimento há doze anos
Não consigo parar de negar com a cabeça
– Pare – eu peço
– Não – ele responde
Por favor, não faça isso comigo...
Mas ele se recusa a parar. Diz que eu tenho que saber. Diz que tenho que saber disso agora... Que tenho que saber a verdade...
PARE DE ME CONTAR ESSAS COISAS, grito
Eu não sabia que ela era sua irmã, ele está dizendo
Não sabia que você tinha uma irmã
Juro que não sabia
– Foram quase vinte pessoas, entre homens e mulheres, que deram início ao Restabelecimento – continua –, mas só seis deles eram comandantes supremos. Quando o homem originalmente apontado para a América do Norte ficou irremediavelmente doente, meu pai foi designado para substituí-lo. Eu tinha dezesseis anos nessa época. Nós vivíamos aqui, no Setor 45. Na época, meu pai tinha uma posição inferior; então, se tornar comandante supremo significava que teríamos de nos mudar, ele quis me levar com ele. Minha mãe... Minha mãe teria de ficar para trás.
Por favor, não fale mais
Por favor, não diga mais nada, eu imploro
– Foi a única maneira de convencê-lo e a me dar essa posição – conta, agora desesperado. – De me deixar ficar para trás para cuidar dela. Ele fez o juramento como comandante supremo quando eu tinha dezoito anos. E me faz passar dois anos entre...
– Aaron, por favor – peço, sentindo-me histérica. – Eu não quero saber... Não pedi para você me contar nada disso... Eu não quero saber...
– Eu perpetuei a tortura da sua irmã – ele confessa, sua voz falhando, arrasada. – O confinamento dela. Recebi ordens para garantir a prisão daquela garota. Dei ordens que a mantiveram onde estava. Todos os dias. Nunca me contaram por que ela estava ali ou o que havia de errado com ela. Só me diziam para mantê-la presa. Foi isso. Ela só tinha vinte e quatro minutos de pausa fora do tanque de água a cada vinte e quatro horas, e costumava gritar... implorar para que eu a libertasse. Sua irmã implorava por misericórdia, e eu nunca lhe dei misericórdia.
E eu paro
Cabeça girando
Solto o lençol do corpo enquanto fujo, corro para longe
Vou enfiando as roupas no corpo o mais rápido possível e, quando volto ao quarto, transtornada, presa em um pesadelo, vejo-o também parcialmente vestido, sem camisa, só de calça, e nem sequer fala enquanto o encaro, assustada, uma mão cobrindo a boca enquanto nego com a cabeça e lágrimas se derramando aos borbotões pelo meu rosto e não sei o que dizer, não sei se conseguirei dizer alguma coisa para ele algum dia...
– Isso é demais para mim – consigo expressar, soluçando entre uma palavra e outra. – É demais... demais...
– Juliette...
E balanço a cabeça negativamente, minhas mãos tremem enquanto tento segurar a fechadura e
– Por favor – ele pede, e as lágrimas escorrem silenciosamente por seu rosto; está visivelmente abalado. – Você precisa acreditar em mim. Eu era muito novo. E um idiota. E estava desesperado. Naquela época, acreditava não ter nenhum motivo para continuar vivo... Nada tinha importância para mim, nada além de salvar minha mãe, e estava disposto a fazer qualquer coisa que pudesse para me manter aqui, perto dela...
– Você mentiu para mim! – vocifero, a raiva mantendo meus olhos fortemente apertados enquanto me afasto dele. – Você mentiu para mim este tempo todo. Você mentiu para mim... Mentiu sobre tudo...
– Não – Warner responde, tomado por terror e desespero. – A única coisa que escondi de você foi a verdade sobre seus pais, eu juro que...
– Como pôde esconder isso de mim? Esse tempo todo, tudo isso... todas as coisas... Tudo o que você fez foi mentir para mim...
Negando com a cabeça, ele diz Não, não, eu te amo, meu amor por você nunca foi uma mentira...
– Então, por que não me contou antes? Por que manteve esse segredo escondido de mim?
– Eu achava que seus pais tinham morrido há muito tempo... Pensei que se soubesse da existência deles isso não ajudaria em nada. Pensei que saber que os tinha perdido só provocaria mais dor. E eu não sabia, não sabia nada mesmo sobre seus pais verdadeiros nem sobre sua irmã. Por favor, acredite em mim... Juro que não sabia, até ontem eu não sabia...
Seu peito palpita tanto que seu corpo chega a se inclinar, as mãos se apoiam nos joelhos enquanto tenta respirar, e não olha para mim quando sussurra:
– Desculpe. Eu sinto muito, mesmo.
– Pare... Pare de falar...
– Por favor...
– Como... Como eu vou... Como posso confiar em você outra vez? – Meus olhos estão arregalados e aterrorizados e estudo-o em busca de uma resposta que salve a nós dois, mas ele não responde. Não tem como responder. E me deixa sem nada a que me agarrar. – Como podemos voltar a ser o que éramos antes? – pergunto. – Como posso esquecer tudo isso? Que você mentiu para mim sobre meus pais? Que torturou minha irmã? Tem tanta coisa que desconheço a seu respeito... – Minha voz sai fraca, instável. – Tanta coisa... E não posso... Não consigo...
Ele ergue o olhar, congelado, encarando-me como se finalmente entendesse que não vou fingir que isso nunca aconteceu, que não posso continuar com alguém em quem não confio. E eu noto, vejo a esperança deixar seus olhos, vejo sua mão presa na nuca. O maxilar solto, o rosto espantado, de repente pálido, e ele dá um passo em minha direção, perdido, desesperado, implorando com o olhar
mas tenho que ir embora.
estou correndo pelo corredor e não sei qual é meu destino até chegar lá.
Warner
Então isso...
Isso é o que chamam de agonia.
É a isso que se referem quando falam em coração partido. Pensei que soubesse o significado da expressão antes. Pensava saber, com perfeita clareza, como é ter o coração partido, mas agora... Agora finalmente entendo.
Antes? Quando Juliette não conseguia escolher entre mim e Kent? Aquela dor? Aquilo era brincadeira de criança.
Mas isso.
Isso é sofrimento. É uma tortura completa, absoluta. E não posso culpar ninguém senão a mim mesmo por essa dor, o que me impossibilita de canalizar minha raiva para outro lugar que não para dentro de mim mesmo. Se não soubesse de nada, pensaria estar sofrendo um ataque cardíaco de verdade. A sensação é a de que um caminhão passou por cima de mim, quebrando cada osso em meu peito, e agora está parado em cima do meu corpo, com seu peso amassando meus pulmões. Não consigo respirar. Não consigo sequer enxergar direito.
Meu coração lateja nos ouvidos. O sangue avança rápido demais pela cabeça, deixando-me com calor, atordoado. Estou estrangulado em mudez, entorpecido em meus ossos. Não sinto nada além de uma pressão imensa e absurda me estilhaçando. Solto o corpo para trás, com força. A cabeça bate na parede. Tento me acalmar, acalmar minha respiração. Tento ser racional.
Não é um ataque cardíaco, digo a mim mesmo. Não é um ataque cardíaco.
Sei que não é.
Estou tendo um ataque de pânico.
Já aconteceu comigo outra vez e a dor se materializou como se saísse de um pesadelo, como se saísse do nada, sem qualquer aviso. Acordei no meio da noite tomado por um terror violento que não conseguia expressar, convencido, sem qualquer sombra de dúvida, de que estava morrendo. O episódio enfim passou, mas a experiência seguiu me assombrando.
E agora isso...
Pensei que estivesse pronto. Pensei estar preparado para o possível resultado da conversa de hoje. Mas estava errado.
Sinto que me devora.
Essa dor.