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RETRATO DE UMA ESPIÃ
RETRATO DE UMA ESPIÃ

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


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Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


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Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


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Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


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Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


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Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


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Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


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Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


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Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?


CONTINUA

23

Paris

 

Mais tarde, a equipe se lembraria do período de preparação que veio a seguir entre os mais desagradáveis por que já tinham passado. A causa não foi Gabriel, cujo estado de espírito irritadiço contaminou os salões do Château Treville. Ele cismou com a localização dos postos de observação, questionou planos contingenciais e até considerou brevemente requisitar uma mudança de abordagem. Em circunstâncias normais, a equipe não teria hesitado em recuar, mas todos sentiram que algo na operação inquietava Gabriel. Dina supôs que fossem Covent Garden e as terríveis lembranças do tiro não disparado, uma teoria descartada por Eli Lavon. Não era Londres o que pesava na consciência de Gabriel, explicou Lavon, mas Cannes. Gabriel tinha violado um princípio pessoal naquela noite: matara um homem na frente da filha. Zizi al-Bakari, financiador de assassinos, merecia morrer. Mas Nadia não deveria ser obrigada a testemunhar isso.

Somente Zoe Reed permanecia a salvo dos ataques de mau humor de Gabriel. Passou um último dia tranquilo em Nova York e, às cinco e meia da tarde, tomou o voo 17 da Air France em direção a Paris. Viajante contumaz, levava apenas uma pequena mala de viagem e uma pasta contendo seu notebook e dados de pesquisas, que incluíam um arquivo com material altamente sigiloso, bem como um detalhado plano sobre a estratégia do almoço. Aqueles itens foram entregues a Zoe pouco antes da decolagem pelo passageiro ao lado, um agente do Escritório da base de Nova York, e foram devolvidos logo antes da aterrissagem.

Ainda portando um passaporte britânico, Zoe passou fácil pela fila expressa da União Europeia na alfândega e tomou um táxi até o centro da cidade. Eram quase nove horas quando chegou ao Crillon. Depois de ocupar seu quarto, vestiu um traje esportivo e saiu para correr pelo Jardim das Tulherias. Às onze e meia, foi a um salão de beleza exclusivo perto do hotel para lavar e secar o cabelo antes de voltar ao quarto para se vestir para o almoço. Saiu cedo do aposento e já esperava no elegante saguão, as mãos entrelaçadas para esconder o nervosismo, quando o grande relógio antigo bateu uma e quinze.

Era uma época tranquila para o Crillon, o cessar-fogo anual entre a batalha febril da temporada de verão e as emboscadas de celebridades das férias de inverno. Monsieur Didier, o concièrge-chefe, postava-se atrás de sua barricada, óculos de leitura em meia-lua e de ouro pousados na ponta de seu nariz aristocrático, parecendo o último homem da terra a quem alguém pediria auxílio. Herr Schmidt, o gerente diurno alemão, estava a pouca distância, na recepção, segurando o telefone ao ouvido, enquanto Isabelle, a coordenadora de eventos especiais, dava uma atenção exagerada às orquídeas do cintilante vestíbulo. Seus esforços mal eram notados pelo entediado empresário árabe sentado perto dos elevadores e pelo casal aninhado em volta de seus cafés à sombra fresca do pátio interno. Na verdade, o empresário fazia parte do abastado departamento de segurança da AAB. Os namorados eram Yaakov e Chiara. Os funcionários do hotel achavam que eram um simpático casal de Montreal que viera a Paris de repente para consolar uma amiga passando por um complicado divórcio.

Quando o relógio deu uma e meia, Isabelle deslizou pela porta e olhou com expectativa para o carregado céu da tarde de Paris. Zoe olhou para o pátio e viu Yaakov batendo numa caixa de fósforos sobre a mesa. Era um sinal combinado indicando que o cortejo — dois sedans Mercedes S-Class para os funcionários e um Maybach 62 para Sua Alteza — tinha partido do edifício da AAB no Boulevard Haussmann e estava a caminho do hotel. Naquele momento, os carros estavam presos num engarrafamento na estreita rue de Miromesnil. Assim que se viram livres, levaram menos de cinco minutos para chegar à entrada do Crillon, onde estava agora Isabelle, flanqueada pela metade mais bonita do staff. O homem disfarçado da segurança da AAB não mais fingia tédio. Agora rondava Zoe, sem se preocupar em esconder que estava armado.

Do lado de fora, seis portas de automóveis se abriram em uníssono e seis homens saíram, todos ex-integrantes de elite da Guarda Nacional Saudita. Um era conhecido de Gabriel e do restante da equipe: Rafiq al-Kamal, o corpulento ex-chefe da segurança pessoal de Zizi al-Bakari, que agora exercia a mesma função ao trabalhar para sua filha. Al-Kamal já tinha conduzido a varredura do hotel mais cedo naquela manhã. E era Al-Kamal que caminhava agora subserviente, um passo atrás de Nadia, enquanto ela saía do banco traseiro de seu Maybach para o saguão onde Zoe esperava com um sorriso alvo e o coração batendo forte no peito.

Existem nos arquivos do King Saul Boulevard muitas fotos de uma versão mais jovem de Nadia ou, como Eli Lavon gostava de dizer, de Nadia antes da queda. Zoe teve acesso a algumas das fotos mais ilustrativas durante o voo até Paris. Mostravam uma mulher petulante com cerca de 25 anos, bonita, mimada e superior. Ela fumava e bebia escondida do pai e, em violação aos ensinamentos de Maomé, expunha sua pele em algumas das mais glamorosas praias do mundo. A morte do pai tinha endireitado Nadia e conferido uma expressão grave a seu rosto, mas não havia roubado nada de sua beleza. Usava um radiante vestido branco de inverno, com os cabelos escuros caindo sobre os ombros como uma capa de cetim. O nariz era longo e reto. Os olhos eram grandes e quase negros. Havia um colar de pérolas sobre a pele cor de caramelo do pescoço. Um pesado bracelete de ouro brilhava no pulso esguio. Seu perfume era uma inebriante mescla de jasmim e lavanda. A mão, quando apertou a de Zoe, era fria como mármore.

— É um grande prazer finalmente conhecê-la — disse Nadia com um sotaque que não revelava nenhuma origem a não ser um berço de ouro. — Já ouvi falar muito do seu trabalho.

Ela sorriu pela primeira vez, uma atitude cautelosa que não transparecia muito nos olhos. Zoe sentiu-se um pouco claustrofóbica por causa do cerco de guarda-costas, mas Nadia agia como se não notasse a presença deles.

— Desculpe ter feito você vir a Paris tão de repente.

— De forma alguma, Srta. Al-Bakari.

— Nadia — emendou, agora com um sorriso genuíno. — Insisto que me chame de Nadia.

Al-Kamal parecia ansioso para retirar a comitiva do saguão, assim como madame Dubois, que oscilava levemente em seus saltos, se apoiando ora no calcanhar, ora na ponta do pé. De repente Zoe sentiu uma mão invisível no cotovelo conduzindo-a em direção aos elevadores. Embarcou numa cabine apertada com Nadia e os guarda-costas e teve que encolher um pouco os ombros para que a porta fechasse. O perfume de jasmim e lavanda no espaço fechado era meio alucinógeno. O hálito de Nadia recendia levemente a cigarro.

— Você vem sempre a Paris, Zoe?

— Não tanto quanto antes.

— Já tinha se hospedado no Crillon?

— Não, é a primeira vez.

— Você realmente deveria permitir que eu pagasse o seu quarto.

— Receio que isso não seja possível — retrucou Zoe com um sorriso gracioso.

— É o mínimo que eu posso fazer.

— Mas também seria antiético.

— Como assim?

— Poderia criar a impressão de que estou aceitando algo de valor em troca de uma matéria favorável. Minha empresa proíbe isso. A maioria das empresas jornalísticas faz isso, pelo menos as idôneas.

— Não imaginei que houvesse algo assim.

— Uma empresa jornalística idônea? — perguntou Zoe com um sorriso confidente. — Existem uma ou duas.

— Inclusive a sua?

— Inclusive a minha. Aliás, eu me sentirei muito mais confortável se você permitir que eu pague o almoço.

— Não seja tola — contestou Nadia. — Tenho certeza de que a famosa Zoe Reed nunca seria influenciada por um belo almoço num hotel de Paris.

As duas passaram o resto da subida em silêncio. Quando as portas do elevador por fim se abriram com um ruído, Al-Kamal examinou o vestíbulo antes de conduzir Zoe e Nadia rapidamente até a suíte Louis XV. O mobiliário francês clássico na sala de estar tinha sido rearranjado para criar a impressão de uma elegante sala de jantar particular. Diante das janelas altas dando para a Place de la Concorde havia uma mesa redonda posta para duas pessoas. Nadia observou o recinto com ar de aprovação antes de apagar a vela solitária queimando em meio a prata e cristal. Depois, com um movimento de seus olhos escuros, convidou Zoe a se sentar.

Seguiram-se alguns momentos de guardanapos desdobrados, portas fechando, olhares furtivos e murmúrios — alguns em francês, outros em árabe. Afinal, diante da insistência de Nadia, os homens da segurança retiraram-se para o corredor, acompanhados por madame Dubois, que estava visivelmente incomodada com a perspectiva de deixar sua chefe sozinha com a famosa repórter. O sommelier colocou um pouco de Montrachet na taça de Nadia. Nadia considerou-o satisfatório e então olhou para o BlackBerry de Zoe, repousando sobre a mesa como um intruso.

— Você se importaria em desligar esse aparelho? — perguntou, tentando não soar rude. — Hoje em dia todo cuidado é pouco quando se trata de dispositivos eletrônicos. Nunca se sabe quem pode estar escutando.

— Entendo perfeitamente — disse Zoe.

Nadia pousou a taça na mesa.

— Tenho certeza de que entende.

 

Não fosse o minúsculo transmissor escondido na suíte do hotel, aquelas quatro palavras, ao mesmo tempo inocentes e ameaçadoras, poderiam ter sido as últimas ouvidas pelo homem que caminhava pelos cômodos de um château ao norte de Paris. Porém, depois de apertar algumas teclas do notebook, o sinal de áudio voltou após uma breve interrupção. No pátio do Crillon, o casal de Montreal saiu e foi substituído por duas mulheres com cerca de 35 anos. Uma tinha o cabelo cor de areia e quadris largos; a outra tinha cabelo escuro e mancava um pouco. Fingia ler uma revista de moda parisiense. Ajudava a acalmar o tique-taque incansável em sua cabeça.


24

Paris

 

Alguns recrutamentos são como uma sedução, outros beiram a extorsão, e outros ainda envolvem conflitos. Mas mesmo Ari Shamron, que pertencia ao mundo secreto há mais tempo que a maioria, diria mais tarde que nunca presenciara nada parecido com o recrutamento de Nadia al-Bakari. Tendo escutado o ato de abertura por uma conexão segura no King Saul Boulevard, declarou-o um dos trabalhos de campo mais primorosos que já ouvira. Era um grande elogio, pois Shamron costumava desprezar jornalistas.

Gabriel havia recomendado que Zoe fosse devagar, e assim ela fez. Na primeira hora do encontro, enquanto silenciosos garçons entravam e saíam da suíte do hotel, Zoe interrogou respeitosamente Nadia sobre as inúmeras mudanças ocorridas no perfil de investimentos da AAB e os desafios apresentados pela interminável recessão global. Para grande surpresa de Gabriel, a reclusa herdeira saudita revelou-se uma interlocutora franca e envolvente que parecia muito mais sábia do que seus 33 anos levariam a crer. Não houve o menor indício de tensão até que Zoe indagou com que frequência Nadia visitava a Arábia Saudita. A pergunta produziu o primeiro silêncio desconfortável do encontro, como Gabriel esperava. Nadia observou Zoe por um momento com seus olhos escuros profundos antes de responder com outra pergunta.

— Você já esteve na Arábia Saudita?

— Uma vez — respondeu Zoe.

— A trabalho?

— Existe alguma outra razão para um ocidental ir à Arábia Saudita?

— Imagino que não. — A expressão de Nadia se suavizou. — Onde você esteve?

— Fiquei dois dias em Riad. Depois fui ao Empty Quarter para visitar o novo projeto de extração de petróleo da Saudi Aramco em Shaybah. Foi muito impressionante.

— Na verdade, você o descreveu como “uma maravilha tecnológica que vai assegurar a dominação saudita do mercado global de petróleo por ao menos mais uma geração”. — Nadia deu um sorriso furtivo. — Você realmente acha que eu concordaria com um encontro antes de examinar seu trabalho? Afinal, você tem uma reputação e tanto.

— Que reputação?

— De ser implacável — respondeu Nadia sem hesitar. — Dizem que você tem traços puritanos. Dizem que gosta de arruinar empresas e executivos que não andam na linha.

— Eu não faço mais esse tipo de trabalho. Agora estou na televisão. Nós não investigamos. Só falamos.

— Você não sente falta do verdadeiro jornalismo?

— Você quer dizer o jornalismo impresso?

— Sim.

— Às vezes — admitiu Zoe ?, mas aí eu olho para minha conta bancária e me sinto muito melhor.

— Foi por isso que saiu de Londres? Por dinheiro?

— Houve outras razões.

— Que tipo de razões?

— Do tipo que em geral não discuto em atividades profissionais.

— Pelo jeito teve algo a ver com um homem — disse Nadia, em tom conciliatório.

— Você é muito perspicaz.

— Sim, sou. — Nadia estendeu a mão para a taça de vinho, mas se interrompeu. — Não vou à Arábia Saudita com muita frequência — falou de repente. — Uma vez a cada três ou quatro meses, não mais do que isso. E quando vou, não fico muito tempo.

— Por quê?

— Pelas razões que você pode imaginar. — Nadia pareceu escolher as palavras seguintes com muito cuidado. — As leis e costumes do Islã e da Arábia Saudita são antigos e muito importantes para nossa sociedade. Aprendi a transitar no sistema para, assim, poder conduzir meus negócios com um mínimo de conflitos.

— E quanto a suas compatriotas?

— Como assim?

— A maioria não tem sua sorte. As mulheres sauditas são consideradas propriedades, não pessoas. A maior parte delas passa a vida trancada dentro de casa. Não podem dirigir um automóvel. Não podem sair em público sem um acompanhante do sexo masculino ou sem se esconder debaixo de um véu e uma abaya. Não têm permissão para viajar, nem mesmo dentro do país, sem a autorização do pai ou dos irmãos mais velhos. Permitem-se mortes em defesa da honra se uma mulher envergonhar a família ou adotar comportamentos não islâmicos, e o adultério é um crime que pode ser punido com apedrejamento. No lugar onde nasceu o Islã, as mulheres não podem entrar numa mesquita, exceto em Meca ou Medina, o que é estranho, pois o Profeta Maomé era um tanto feminista. “Trate bem suas mulheres e seja bom com elas”, disse ele, “pois elas são suas companheiras e auxiliares comprometidas”.

Nadia pegou um fiapo invisível da toalha de mesa.

— Admiro sua sinceridade, Zoe. A maioria dos jornalistas tentando obter uma entrevista importante se limitaria a elogios e lugares-comuns.

— Eu posso fazer isso se você preferir.

— Não, eu prefiro sinceridade. Não temos muito disso na Arábia Saudita. Aliás, nós a evitamos a qualquer preço. — Nadia voltou o olhar para as janelas. Fora, estava tão escuro que se podia ver seu reflexo no vidro. — Nunca percebi que você se interessava tanto pelas condições das mulheres muçulmanas — disse com suavidade. — Não há mostras disso em seus trabalhos anteriores.

— O quanto você leu do que escrevi?

— Tudo — respondeu Nadia. — Há muitas matérias sobre empresários corruptos, mas nenhuma sobre as condições das mulheres muçulmanas.

— Eu me interesso pelos direitos de todas as mulheres, independente de suas crenças. — Zoe fez uma pausa, depois acrescentou, provocante: — E imagino que alguém em sua posição estaria interessada também.

— Por que você acha isso?

— Porque você tem poder e influência para servir como um modelo importante.

— Eu administro uma grande empresa, Zoe. Não tenho tempo nem interesse em me envolver em política.

— Você não tem nenhum interesse?

— Em quê?

— Em política.

— Eu sou uma cidadã da Arábia Saudita. Nós temos um rei, não políticos. Além do mais, política pode ser uma coisa muito perigosa no Oriente Médio.

— Seu pai foi morto por causas políticas? — perguntou Zoe cautelosamente.

Nadia virou-se e olhou para Zoe.

— Eu não sei por que meu pai foi morto. Não sei se alguém mais sabe, exceto os assassinos, é claro.

Fez-se um pesado silêncio, que foi rompido segundos depois pelo som de uma porta se abrindo. Dois garçons entraram, trazendo bandejas com café e doces. Foram seguidos por Rafiq al-Kamal e por madame Dubois, que batia no mostrador de seu relógio Cartier, indicando que o encontro já tinha durado demais. Zoe teve medo de que Nadia aproveitasse o sinal para se desculpar e ir embora, mas ela mandou que os intrusos saíssem da sala com um autoritário aceno de mão. Fez o mesmo com o garçom que segurava a bandeja de doces, mas aceitou o café. Tomou o líquido puro com uma extraordinária quantidade de açúcar.

— É esse tipo de pergunta que você pretende me fazer diante das câmeras? Perguntas sobre os direitos das mulheres na Arábia Saudita? Perguntas sobre a morte do meu pai?

— Nós não divulgamos as perguntas antes de uma entrevista.

— Deixe disso, Zoe. Nós duas sabemos como funciona.

Zoe expôs seu raciocínio:

— Se eu deixasse de perguntar sobre seu pai, diriam que meu trabalho foi malfeito. Isso faria de você uma figura muito persuasiva.

— Isso só faz de mim uma mulher sem pai. — Nadia tirou um maço de Virginia Slims da bolsa e acendeu um cigarro com um isqueiro de ouro de aparência bem comum.

— Você estava lá naquela noite em Cannes?

— Estava. Num minuto desfrutávamos todos uma noite maravilhosa em nosso restaurante favorito. No momento seguinte eu estava segurando meu pai agonizante na rua.

— Você viu os homens que o mataram?

— Eram dois — respondeu ela, assentindo. — Estavam de moto, muito rápidos, muito habilidosos. Primeiro achei que eram apenas garotos franceses se divertindo numa noite quente de verão. Depois vi as armas. Eram nitidamente profissionais. — Deu uma tragada no cigarro e exalou uma tênue nuvem de fumaça em direção ao teto. — Depois, tudo virou um borrão.

— Segundo relatos de algumas testemunhas, você gritou exigindo vingança.

— Acho que retribuição faz parte do caminho do beduíno — disse Nadia com tristeza. — Acho que está no meu sangue.

— Você admirava seu pai — pressionou Zoe.

— Admirava.

— Ele era um colecionador de arte.

— Dos mais vorazes.

— Soube que você partilha dessa paixão.

— Minha coleção de arte é particular — observou Nadia, pegando a xícara de café.

— Não tão particular quanto você imagina.

Nadia ergueu o olhar abruptamente, mas não disse nada.

— Minhas fontes me dizem que você fez uma importante aquisição no mês passado. Dizem que foi você quem pagou o preço recorde pelo Rothko na Christie’s em Nova York.

— Suas fontes estão enganadas, Zoe.

— Minhas fontes nunca se enganam. E me disseram outras coisas sobre você. Parece que você não é tão indiferente em relação aos direitos das mulheres no mundo islâmico como aparenta ser. Tem doado milhões de dólares em segredo para combater a violência contra as mulheres e outros milhões para promover o empreendedorismo feminino, pois acredita ter o efeito de fortalecer como nunca as mulheres muçulmanas. Mas seus trabalhos beneficentes não param por aí. Disseram-me que você usou sua fortuna para fomentar uma mídia livre e independente no mundo árabe. Também tentou se opor à disseminação da perigosa ideologia wahhabita com doações para organizações que promovem uma versão mais tolerante do Islã. — Zoe fez uma pausa. — Juntando tudo isso, pode-se pintar o retrato de uma mulher corajosa que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno.

Nadia deu um sorriso indiferente.

— É uma história intrigante — disse depois de um momento. — Pena que nada disso seja verdade.

— Lamentável, pois algumas pessoas gostariam de ajudá-la.

— Que tipo de pessoas?

— Pessoas discretas.

— No Oriente Médio, pessoas discretas são espiões ou terroristas.

— Posso garantir que não são terroristas.

— Então devem ser espiões.

Não fui informada de suas afiliações.

Nadia lhe lançou um olhar cético. Zoe entregou um cartão. Sem nome algum, só o número de seu BlackBerry.

— Este é meu número particular. É importante que você tenha cuidado. Como você sabe, existem pessoas ao seu redor que não concordam com seu objetivo de mudar o mundo islâmico para melhor... inclusive seus guarda-costas.

— Qual é seu interesse nesse assunto, Zoe?

— Nenhum interesse a não ser conseguir uma entrevista com uma mulher que admiro muito.

Nadia hesitou. Em seguida aceitou o cartão e guardou-o na bolsa. Naquele instante, a porta da suíte foi aberta outra vez e madame Dubois entrou com Rafiq a seu lado. Estava outra vez batendo no relógio. Desta vez, Nadia se levantou. Parecendo de repente cansada, estendeu a mão para Zoe.

— Não sei bem se já estou pronta para abrir o jogo — falou ?, mas gostaria de ter algum tempo para considerar sua proposta. Seria possível você ficar em Paris mais alguns dias?

— Vai ser um sofrimento terrível — respondeu Zoe, brincando ?, mas vou ver se consigo.

Nadia largou a mão de Zoe e seguiu o chefe de segurança pelo corredor. Zoe esperou-os se distanciar um pouco mais antes de voltar a seu quarto, três andares abaixo. Chegando lá, ligou o BlackBerry e telefonou para seu produtor em Nova York a fim de explicar que iria continuar em Paris para continuar as negociações. Depois colocou o BlackBerry na mesa de cabeceira e ficou um longo tempo sentada na ponta da cama. Sentiu cheiro de jasmim e lavanda, o perfume de Nadia, e relembrou o momento em que se separaram. A mão de Nadia estava estranhamente fria. Era a mão do medo, pensou Zoe. A mão da morte.


25

Seraincourt, França

 

A ligação de Zoe para Nova York soou como trombetas nos salões de teto alto do Château Treville. Gabriel reagiu despachando de imediato um cabograma seguro para Adrian Carter, e isso fez com que a AAB Holdings e sua proprietária, Nadia al-Bakari, se tornassem alvos da vigilância da ANS. Significava que agora Carter sabia o nome do rico muçulmano com incontestáveis credenciais jihadistas que Gabriel queria que financiasse a rede de Rashid. Significava também que, em algum momento, milhares de outros membros da abrangente comunidade de inteligência norte-americana também saberiam do fato. Gabriel precisava correr esse risco. O serviço de inteligência de Israel baseado em sinais era formidável, mas sua capacidade não se comparava à da ANS. A maestria dos Estados Unidos no mundo digital era imbatível. Era o fator humano — a capacidade de recrutar espiões e penetrar no território dos inimigos — que frustrava os norte-americanos, e por isso eles haviam procurado o Escritório.

A pedido de Gabriel, Carter fez o que pôde para esconder o nome de Nadia dos círculos oficiais de Washington. Apesar das óbvias implicações potenciais para as relações entre norte-americanos e sauditas, ele deixou de mencioná-la para o presidente e para James McKenna na reunião semanal de contraterrorismo da Casa Branca. Também tomou o cuidado de salvaguardar a identidade do grupo que inspecionaria as interceptações da ANS. As informações, eram primeiro enviadas apenas para Carter em Langley e depois direcionadas à base da CIA em Paris. O chefe encarregado, um homem que devia sua carreira a Carter, as transportava pessoalmente até a mansão em Seraincourt, onde eram assinadas por Sarah Bancroft. O número do telefone e a conta de e-mail de Rafiq al-Kamal eram de particular interesse para Gabriel e sua equipe. Apesar das muitas ligações para contatos dentro do serviço de inteligência saudita e para o Ministério do Interior, em nenhum momento Al-Kamal mencionou Zoe Reed. O mesmo não aconteceu com madame Dubois, que passou a maior parte das 72 horas seguintes pendurada na linha entre Paris e Londres em busca de fofocas e podres no passado profissional de Zoe. Gabriel viu isso como um bom sinal, pois dava a entender que, do ponto de vista da AAB, a repórter investigativa da CNBC era um problema de relações públicas, não uma ameaça à segurança.

Zoe permaneceu afastada da intriga que se agitava ao seu redor. Seguindo o roteiro cuidadosamente preparado por Gabriel, ela evitou outros contatos com a AAB ou com seus funcionários. Para preencher as horas vagas, ela visitou museus e fez longos passeios às margens do Sena, permitindo a Eli Lavon e aos demais agentes de campo determinarem que ela estava livre de qualquer vigilância. Quando se passaram mais dois dias sem resposta de Nadia, o produtor de Zoe em Nova York começou a ficar impaciente.

— Quero você de volta aos Estados Unidos o mais tardar na segunda-feira — falou pelo telefone ?, com ou sem a entrevista exclusiva. É simplesmente uma questão de dinheiro. Nadia tem os cofres cheios. Nós estamos catando moedas.

O telefonema esfriou os ânimos do pessoal do esconderijo de Seraincourt, assim como o discurso proferido pelo presidente francês naquela mesma tarde numa sessão de emergência na Assembleia Nacional.

— Não é uma questão de saber se a França será atacada por terroristas outra vez — alertou o presidente mas só uma questão de quando e como. É um triste fato que mais vidas serão perdidas para as bombas do extremismo. Lamentavelmente, ser um cidadão europeu no século XXI implica isso.

Poucos minutos depois do fim do discurso, chegou uma mensagem da Mesa de Operações do King Saul Boulevard. Continha apenas quatro caracteres — duas letras seguidas por dois números ?, mas seu significado era indiscutível. Deus estava dando um tempo num apartamento secreto em Montmartre. E Deus queria conversar com Gabriel em particular.


26

Montmartre, Paris

 

O apartamento ficava na rue Lepic, não muito longe do cemitério. O prédio era cinza e tinha sete andares, com balaustradas de ferro batido e um sótão. Uma única árvore desfolhada erguia-se no centro do pátio e, no elegante vestíbulo, havia uma escadaria em espiral com uma passadeira bem desgastada que abafou o som dos passos de Gabriel durante a rápida subida ao terceiro andar. A porta do apartamento 3A estava entreaberta; na sala de estar havia um senhor usando calças cáqui bem passadas, uma camisa branca de algodão e uma jaqueta de aviador feita de couro com um rasgo no ombro esquerdo. Estava acomodado na beira de uma poltrona forrada de brocado com as pernas um pouco abertas e as mãos grandes juntas sobre o cabo curvo de sua bengala de oliveira, como um viajante numa plataforma ferroviária resignado com a longa espera. Entre dois dedos amarelados queimava a ponta de um cigarro sem filtro. Uma fumaça acre redemoinhava acima de sua cabeça como uma nuvem de tempestade particular.

— Você está muito bem — observou Ari Shamron. — Voltar à ativa nitidamente fez bem a você.

— Não é como eu planejava passar o inverno.

— Então talvez não devesse ter seguido o terrorista suicida em Covent Garden.

Shamron deu um sorriso melancólico, em seguida esmagou o cigarro no cinzeiro na mesa de centro. Já havia outras seis pontas ali, bem-alinhadas, como balas esperando para serem carregadas numa arma. Acrescentou a sétima e olhou pensativo para Gabriel através da fumaça.

— É bom ver você, meu filho. Achei que nosso encontro na Cornualha no último verão seria o último.

— Na verdade, eu esperava que fosse.

— Você não poderia ao menos fingir ter alguma consideração por meus sentimentos?

— Não.

Shamron acendeu outro cigarro com seu velho isqueiro Zippo e soprou de propósito a fumaça na direção de Gabriel.

— Quanta eloquência — comentou Gabriel.

— Às vezes as palavras me falham. Felizmente, meus inimigos quase nunca falham. E mais uma vez eles conseguiram devolver você para os braços do King Saul Boulevard, que é o seu lugar.

— Provisório.

— Ah, sim — concordou Shamron com falsa urgência. — Sem dúvida, esse arranjo é totalmente provisório.

Gabriel andou até as portas francesas dando para a rue Lepic e abriu uma delas. Um vento gélido invadiu a sala, trazendo junto o som do tráfego noturno.

— Precisa disso? — perguntou Shamron, franzindo a testa. — Meu médico diz que eu preciso evitar correntes de ar.

— O meu diz que preciso evitar ser fumante passivo. Graças a você, tenho os pulmões de alguém que fuma quarenta cigarros por dia.

— Em algum momento você vai ter que parar de me culpar por tudo que deu errado na sua vida.

— Por quê?

— Porque é contraproducente.

— Mas acontece que também é verdade.

— Sempre achei melhor evitar a verdade. Ela sempre acarreta complicações desnecessárias.

Gabriel fechou a porta, silenciando o som do tráfego, e perguntou por que Shamron tinha vindo a Paris.

— Uzi achou que você poderia ter uma ajuda extra.

— Por que ele não me disse que você vinha?

— Ele deve ter esquecido.

— Ele ao menos sabe que você está aqui?

— Não.

Gabriel não pôde deixar de sorrir.

— Vamos tentar mais uma vez, Ari. Por que você está em Paris?

— Eu estava preocupado.

— Com a operação?

— Com você. Isso que é ser pai. Nós nos preocupamos com os filhos até o dia em que morremos.

— Sinto muito não saber nada sobre esse assunto.

— Peço desculpas, meu filho — disse Shamron depois de um momento. — Eu deveria saber disso. Afinal, é culpa minha também.

Levantou da cadeira e, pondo todo o peso sobre a bengala, andou até a cozinha. As peças de um filtro espalhavam-se pela bancada, junto com uma chaleira vazia e uma embalagem aberta de pó de café Carte Noir. Shamron fez uma débil tentativa de acender o fogão antes de levantar as mãos se rendendo. Gabriel conduziu-o até a mesa e levou a embalagem com cuidado até o nariz. Cheirava a poeira.

— Se não me engano — disse Shamron, sentando-se na cadeira ?, esse é o mesmo pó de café que usamos na última vez que estivemos aqui.

— Tem um mercado aqui ao lado. Você acha que consegue sobreviver até eu voltar?

Com um gesto displicente, Shamron descartou a saída, querendo dizer que o café ainda estava bom. Gabriel encheu a chaleira com água e colocou no fogão para ferver.

— Ainda tem uma coisa que eu não consigo entender — comentou Shamron, observando Gabriel, pensativo.

— Não é tão complicado, Ari. Primeiro você põe o pó, depois acrescenta a água e então abre o filtro.

— Eu estava me referindo a Covent Garden. Por que você seguiu o homem? Por que simplesmente não avisou Graham Seymour e voltou para seu chalé à beira-mar?

Gabriel não respondeu.

— Será que me permite oferecer uma explicação possível?

— Se você insiste.

— Você foi atrás dele porque sabia muito bem que os britânicos não tinham nem a coragem nem a determinação de parar o homem. Nossos amigos europeus estão no meio de uma crise existencial tremenda. Estou convencido de que é uma das razões de nos desprezarem. Nós temos um propósito. Acreditamos que nossa causa é justa. Eles não acreditam em nada a não ser em sua semana de trabalho de 35 horas, no aquecimento global e em suas férias anuais de seis semanas no Sul. O que me deixa confuso é por que você escolheu viver entre eles.

— Porque houve uma época em que eles realmente acreditavam em Deus e sua fé os inspirou a pintar como anjos.

— Isso é verdade — concordou Shamron. — Mas a fé em Deus agora é quase exclusiva dos jihadistas. Infelizmente, é uma fé nascida da intolerância wahhabita e alimentada por dinheiro saudita. Depois do 11 de Setembro, os sauditas prometeram pôr um fim ao incentivo que gerou Bin Laden e a Al-Qaeda. Mas agora, apenas dez anos depois, o dinheiro saudita está outra vez fomentando o ódio e os norte-americanos mal protestam.

— Eles se convenceram de que os sauditas são aliados importantes na luta contra o terrorismo.

— Eles estão iludidos — replicou Shamron. — Mas não é só culpa deles. Não só o petróleo flui da Arábia Saudita para o Ocidente. Existe também muita informação transitando do serviço de inteligência saudita para os serviços europeus, sobre planos e indivíduos suspeitos. Às vezes são informações úteis, mas a maior parte é um lixo total.

— Você está mesmo insinuando — disse Gabriel com ironia — que a inteligência saudita faz o velho jogo duplo de combater os jihadistas ao mesmo tempo que os apoia?

— É exatamente o que estou insinuando. E a economia dos norte-americanos está tão fraca no momento que eles não podem fazer nada.

A chaleira começou a apitar. Gabriel encheu o filtro com água fervente e ficou esperando o café ser coado. Olhou para Shamron. Sua expressão sombria deixava muito claro que ele continuava pensando nos norte-americanos.

— Todos os governos dos Estados Unidos têm os seus maneirismos. Esse gosta de falar em termos de igualdade. Estão sempre nos lembrando da igualdade que implantaram no Oriente Médio. Eles têm igualdade no Iraque, igualdade no Afeganistão e igualdade na manutenção de um preço estável do petróleo. No momento, não somos importantes no balanço dos norte-americanos. Mas se você conseguir neutralizar a rede de Rashid...

— Isso poderia gerar uma igualdade muito necessária para nós.

Shamron assentiu.

— Isso não quer dizer, porém, que temos que nos comportar como uma subsidiária da CIA. Aliás, o primeiro-ministro faz questão que usemos essa oportunidade para tratar de alguns negócios não concluídos.

— Como Malik al-Zubair?

Shamron fez que sim.

— Algo me diz que você sabia desde o começo que Malik estava envolvido nisso.

— Digamos que eu tinha uma forte suspeita.

— Então, quando Carter me pediu para ir a Washington...

— Eu deixei de lado minha habitual desconfiança e aceitei sem hesitar.

— Quanta generosidade de sua parte ? observou Gabriel. ? Então por que está tão preocupado agora?

— Nadia.

— Ela foi ideia sua.

— Talvez eu estivesse enganado. Talvez ela esteja nos enganando todos esses anos. Talvez seja mais parecida com o pai do que pensamos. ? Fez uma pausa, antes de acrescentar: ? Talvez seja melhor nos livrarmos dela e encontrar outra pessoa.

— Essa pessoa não existe.

— Então temos que fabricá-la.

— Isso não é possível, e você sabe.

Gabriel levou o café até a mesa e serviu duas xícaras. Shamron pôs açúcar na sua e mexeu o café pensativo por um momento.

— Mesmo que Nadia al-Bakari concorde em trabalhar para você ? disse Shamron ?, você não vai conseguir mantê-la disciplinada. Temos nossos métodos tradicionais. Kesef, kavod, kussit: dinheiro, status, sexo. Nadia al-Bakari não precisa de nenhuma dessas coisas. Portanto, não pode ser controlada.

— Então suponho que devemos confiar um no outro.

? Confiar? Sinto muito, Gabriel, mas não estou familiarizado com essa palavra. — Tomou um gole de café e fez uma careta. — Existe um antigo provérbio de que eu gosto muito. Diz que o véu que esconde o futuro de nós é tecido por um anjo de misericórdia. Infelizmente, nenhum véu pode nos proteger de nosso passado. Está cheio de fantasmas. Os fantasmas dos entes queridos. Os fantasmas dos inimigos. Eles estão sempre conosco. Estão aqui entre nós agora. — Seus olhos azuis e aquosos observaram a minúscula cozinha por um momento antes de se fixarem em Gabriel. — Talvez seja melhor deixar o passado em paz. Melhor para Nadia. Melhor para você.

Gabriel examinou Shamron com atenção.

— Ari, você realmente se sente culpado por ter me trazido de volta?

— Você deixou seu desejo bem claro no verão passado na Cornualha. Eu deveria ter respeitado.

— Você nunca fez isso antes. Por que faria agora?

— Porque você merece. E a última coisa de que precisa nesse estágio da vida é ser confrontado com a filha de um homem que você matou a sangue-frio.

— Não pretendo confessar meus pecados.

— Você pode não ter escolha. Mas me prometa uma coisa, Gabriel. Se você insistir em usar Nadia, tome cuidado para não cometer o mesmo erro que os norte-americanos cometeram com Rashid. Considere-a uma inimiga mortal e a trate da forma adequada.

— Por que você não se junta a nós? Temos espaço suficiente na casa para mais um.

— Eu estou velho — disse Shamron com tristeza. — Só iria atrapalhar.

— E o que você vai fazer?

— Vou ficar aqui sozinho e preocupado. Atualmente, essa parece ser a parte que me cabe.

— Ainda não precisa se preocupar, Ari. É possível que Nadia não aceite.

— Ela vai aceitar — afirmou Shamron.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque no fundo ela sabe que é você quem está sussurrando no ouvido dela. E não vai conseguir resistir à oportunidade de ver seu rosto.

 

Os preceitos operacionais ditavam que Gabriel retornasse de imediato para o Château Treville, mas a raiva o obrigou a fazer uma peregrinação até o Champs-Élysées. Chegou pouco depois da meia-noite e descobriu que todas as evidências do atentado haviam sido apagadas com todo o cuidado. As lojas e restaurantes estavam reformados. Os prédios ganharam novas janelas e uma nova pintura. As pedras das ruas foram lavadas para tirar o sangue. Não havia nenhuma expressão de indignação, nenhum memorial para os mortos, nenhum apelo à sanidade num mundo enlouquecido. Não fosse pelos dois gendarmes de guarda na esquina, seria possível supor que nada de errado acontecera ali. Por um momento, Gabriel lamentou sua decisão de ter vindo, mas, quando já estava saindo, um e-mail criptografado da equipe em Seraincourt melhorou seu humor. Dizia que conversas interceptadas de Nadia revelavam que ela tinha cancelado sua viagem para São Petersburgo. Gabriel devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco e cruzou o feixe de luz de um poste. O véu que escondia seu futuro havia sido rasgado. Viu uma linda mulher de cabelos negros atravessando o átrio de um château ao norte de Paris. E um velho sentado sozinho num apartamento em Montmartre, mortalmente preocupado.


27

Paris

 

Nadia al-Bakari telefonou para Zoe Reed às 10h22 da manhã seguinte a fim de convidá-la para um chá em sua mansão na avenue Foch. Zoe declinou com delicadeza. Parece que já tinha outros planos.

— Vou passar a tarde com um velho amigo de Londres. Ele ganhou um monte de dinheiro com ações e comprou um château no Val-d’Oise. Acho que está organizando uma festa para mim.

— Uma festa de aniversário?

— Como você sabe?

— Minha equipe de segurança fez uma discreta verificação antes de nosso almoço no Crillon. Você está fazendo trinta...

— Por favor, não diga em voz alta. Estou tentando fingir que é apenas um pesadelo.

Nadia riu. Em seguida perguntou o nome do amigo de Zoe.

— Fowler. Thomas Fowler.

— Em que empresa ele trabalha?

— Thomas não trabalha para empresas. Thomas sempre luta para se manter independente. Parece que vocês se conheceram alguns anos atrás no Caribe. Numa das ilhas francesas. Não me lembro qual. St. Barts, acho. Ou talvez tenha sido Antígua.

— Eu nunca pus os pés em Antígua.

— Então deve ter sido St. Barts.

Fez-se silêncio.

— Ainda está me ouvindo?

— Sim, estou aqui.

— Algum problema?

— Onde eu o conheci?

— Ele disse que foi num bar perto de uma das praias.

— Que bar?

— Isso eu já não sei.

— Qual praia?

— Acho que Thomas não mencionou.

— Thomas estava sozinho nesse dia?

— Na verdade ele estava com a esposa. Garota adorável. Um tanto agressiva, mas acho que faz parte do pacote.

— E que pacote é esse?

— Ser mulher de um bilionário como Thomas.

Outro silêncio, dessa vez mais longo do que o primeiro.

— Receio não me lembrar.

— Ele com certeza se lembra de você.

— Descreva-o, por favor.

— Um sujeito alto. Parece um poste. Um pouco mais interessante quando você conhece melhor. Acho que fez um negócio alguns anos atrás com um associado do seu pai.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

 

No segundo andar do Château Treville havia uma sombria sala de música com paredes forradas de seda vermelha e luxuosos adornos nas janelas para combinar. De um lado, encontrava-se uma espineta com afrescos dourados e uma pintura pastoral a óleo na tampa. De outro, uma antiga mesa da Renascença francesa decorada com nogueira, à qual Gabriel e Eli Lavon estavam sentados, fitando dois computadores. No primeiro via-se uma luz piscante mostrando a altitude e localização atuais de Zoe Reed. No segundo estava gravada sua conversa com Nadia às 10h22. Gabriel e Lavon já a tinham ouvido dez vezes. Agora eram 11h55. Lavon franziu a testa quando Gabriel apertou play mais uma vez.

— Por acaso você se lembra do nome desse associado?

— Por que você não pergunta pessoalmente a Thomas?

— O que você quer dizer, Zoe?

— Que você devia vir à festa. Tenho certeza de que Thomas iria adorar, e seria uma oportunidade de passarmos mais tempo juntas.

— Receio que não seja apropriado.

— Por que não?

— Porque seu amigo... Desculpe, Zoe, por favor me diga o nome dele outra vez.

— Thomas Fowler. Como o personagem do romance de Graham Greene.

— Quem?

— Não é importante. O importante é que você venha.

— Eu não gostaria de impor minha presença.

— Não é nada disso, pelo amor de Deus. Além do mais, é meu aniversário e eu insisto.

— Onde exatamente é a casa de seu amigo?

— Logo ao norte de Paris. 0 hotel reservou um carro para mim.

— Peça para o hotel cancelar. Vamos no meu carro. Assim podemos conversar melhor.

— Maravilhoso. Thomas diz que o traje é château casual Mas vamos pegar leve na segurança, certo? Thomas é tagarela, mas, fora isso, é inofensivo.

— Nos vemos ao meio-dia, Zoe.

A chamada terminou. Gabriel apertou stop e em seguida viu Yossi encostado no batente da porta, parecendo de fato um próspero magnata passando o fim de semana em seu retiro de campo na França.

— Que fique registrado — disse em seu sotaque arrastado de Oxford. — Não gostei nada dessa parte de poste.

— Tenho certeza de que ela quis demonstrar estima.

— Como você se sentiria se alguém o comparasse a um poste?

— Estimado.

Yossi alisou seu paletó de caxemira da Bond Street.

— Será que estamos todos no estilo château casual?

— Acho que estamos.

— Com echarpe ou sem echarpe?

— Sem echarpe.

— Com echarpe — disse Lavon. — Sem dúvida com echarpe.

Yossi saiu. Gabriel estendeu a mão para o mouse mais uma vez, mas Lavon o impediu.

— Ela sabe que somos nós e está vindo assim mesmo — falou Lavon. — Além disso, é tarde demais para fazer qualquer coisa agora.

Gabriel olhou para o outro computador. O ícone indicava que Zoe estava se aproximando aos poucos do saguão de entrada. Poucos segundos depois, Gabriel teve a confirmação ao ouvir as portas do elevador se abrindo e, em seguida, o barulho dos saltos de Zoe atravessando o saguão. Cumprimentou Herr Schmidt, agradeceu a Isabelle pela cortesia da cesta de frutas deixada em seu quarto na noite anterior e soprou um beijo para monsieur Didier, que naquele momento tentava fazer uma reserva no restaurante Jules Verne para Chiara e Yaakov — uma reserva que, lamentavelmente, eles depois seriam forçados a cancelar. Então, vieram os ruídos do trânsito quando Zoe saiu, seguidos pelo som de uma porta de limusine se fechando. O silêncio a seguir foi completo. Ele foi rompido pela voz agradável de uma mulher com credenciais jihadistas incontestáveis.

— É um prazer ver você outra vez, Zoe — disse Nadia. — Trouxe para seu amigo uma garrafa de Latour como um presente para aquecer o château. Espero que ele goste de tinto.

— Não precisava.

— Não seja boba.

O ícone pôs-se outra vez em movimento, seguido por outros três pontos brilhantes representando as equipes de segurança. Momentos depois, todos estavam indo para o oeste pela Champs-Élysées a 50 quilômetros por hora. Ao se aproximarem do Arco do Triunfo, Zoe se ofereceu para desligar seu BlackBerry.

— Não precisa — disse Nadia em voz baixa. — Agora eu confio em você. Não importa o que acontecer, sempre vou considerá-la uma amiga.


28

Seraincourt, França

 

Os banlieues a nordeste de Paris pareciam se estender até o infinito, mas, gradualmente, os edifícios vulgares desapareceram e começaram a aparecer as primeiras áreas verdes. Mesmo no inverno, com o céu carregado, a zona rural da França parecia ter sido enfeitada para um retrato de família. As duas passavam pela região no sedan Maybach preto sem veículos de escolta, ao menos nenhum que Zoe pudesse avistar. Rafiq al-Kamal acomodava-se carrancudo no banco da frente. Estava com seu terno escuro habitual, mas, devido à ocasião informal, sem gravata. Nadia usava um esplêndido suéter de caxemira creme, calças de camurça marrom-claras e botas de salto baixo apropriadas para andar por regiões arborizadas. Para esconder seu nervosismo, ela falava sem parar. Sobre os franceses. Sobre a moda horrorosa daquele inverno. Sobre um artigo que tinha lido no Financial Journal naquela manhã que abordava o estado deplorável da economia da zona do euro. O calor dentro do carro era escaldante. Zoe suava, mas Nadia parecia até um pouco com frio. As mãos estavam estranhamente pálidas. Percebendo o interesse de Zoe, ela culpou o clima úmido de Paris, do qual falou sem interrupção até uma placa na estrada avisar que se aproximavam do vilarejo de Seraincourt.

Naquele instante, uma moto apareceu ao lado do carro. Era um modelo japonês de alta potência do tipo que forçava o piloto a se inclinar para a frente num ângulo que parecia desconfortável. Olhou para a janela de Zoe ao passar, como se quisesse saber quem estava dentro de um automóvel tão elegante, depois fez um gesto obsceno para o motorista antes de desaparecer por trás de uma nuvem de poeira. Olá, Mikhail, pensou Zoe. É muito bom ver você.

Ela pegou o BlackBerry na bolsa e digitou um número. A voz que atendeu era vagamente familiar. Claro que era, ela logo se lembrou. Era de seu velho amigo Thomas Fowler, de Londres. Thomas, que tinha ganhado uma bolada de dinheiro investindo em sabe Deus o quê. Thomas, que conheceu Nadia alguns anos atrás num bar no litoral de St. Barts. Thomas, que agora dava instruções para elas chegarem a seu novo e vistoso château — dobrar à direita na rue de Vexin, à esquerda na rue des Vallées, à direita na Route des Hèdes. O portão era do lado esquerdo da estrada, explicou, logo depois do vinhedo. Não ligue para a placa alertando sobre os cães. Era apenas um blefe, por questão de segurança. Thomas se preocupava com segurança. Tinha boas razões para isso.

Zoe desligou e colocou o BlackBerry na bolsa. Erguendo o olhar outra vez, surpreendeu Rafiq vigiando-a atentamente pelo espelho. Nadia olhava tristonha a paisagem. Sorria, pensou Zoe. Estamos indo a uma festa, afinal. É importante você tentar sorrir.

 

Não havia um precedente formal para o que eles estavam tentando fazer, nenhuma diretriz estabelecida, nenhuma tradição do Escritório para orientar. Durante os intermináveis ensaios, Gabriel comparava toda a ação ao descerramento de uma obra num leilão, sendo Nadia a possível compradora e ele próprio a pintura à mostra em um pedestal. O evento seria precedido por uma pequena jornada — uma jornada, ele explicou, que levaria Nadia e a equipe para um passado não muito distante. A natureza dessa viagem teria que ser regulada com todo o cuidado. Teria que ser agradável para não assustar Nadia, porém incisiva a ponto de não lhe dar oportunidade de recuar. Mesmo Gabriel, que tinha elaborado a estratégia, achava que as chances de sucesso não eram mais que uma em três. Eli Lavon era ainda mais pessimista. Mas Lavon, um estudioso de desastres bíblicos, era preocupado por natureza.

Naquele momento, porém, a perspectiva de fracasso estava bem distante dos pensamentos de Lavon. Meio que embrulhado com várias camadas de algodão, remanescentes de outras operações, ele caminhava com dificuldade pelo acostamento gramado da rue des Vallées, um cajado numa das mãos, a cabeça parecendo nas nuvens. Fez uma breve parada para observar a limusine Maybach passar — seria estranho não fazer isso ?, mas não prestou atenção ao Renault hatch compacto que seguia o grande sedã como um primo pobre. Atrás deles a estrada estava deserta; Lavon esperava por isso. Levou a mão à boca e, fingindo tossir, informou a Gabriel que o alvo procedia como o instruído, sem nenhuma outra vigilância que não a da equipe deles próprios.

A essa altura, o Maybach já tinha entrado na Route des Hèdes e passava pelo antigo vinhedo em alta velocidade. Embicou pelo imponente portão do château e tomou a longa e reta via de cascalho, ao final da qual estava Yossi, numa pose preguiçosa que só o dinheiro poderia comprar. Esperou até o carro estacionar e se aproximou devagar, mas estancou quando Al-Kamal saiu com ímpeto. O guarda-costas saudita ficou ao lado do carro por um tempo, os olhos esquadrinhando a fachada da mansão, até que abriu a porta de trás num perfeito ângulo de 45 graus. Nadia surgiu aos poucos — uma luxuosa bota no cascalho, uma mão cheia de joias sobre a porta, um lampejo de cabelos sedosos que pareceu absorver o que restava da luz da tarde.

Por razões que Gabriel não partilhou com os outros, ele tinha decidido marcar a ocasião com uma fotografia, que está nos arquivos do King Saul Boulevard até hoje. Tirada por Chiara de uma janela no segundo andar, mostra Nadia dando seu primeiro passo no pátio com Zoe ao lado, a mão estendida de forma hesitante para Thomas Fowler, a outra segurando a garrafa de Latour pelo gargalo. A testa já está levemente franzida e em seus olhos vê-se um brilho fraco de reconhecimento. Era verdade que tinha visto aquele homem na ilha de St. Barts, num encantador bar de frente para a praia de Saline. Nadia tomava daiquiris naquele dia; o homem, queimado de sol, bebia devagar uma cerveja a algumas mesas de distância. Estava acompanhado por uma mulher com roupas mínimas, de cabelos cor de areia e generosos quadris — a mesma mulher que agora surgia na entrada da frente trajada em roupas comparáveis às de Nadia em custo e estilo. Uma mulher que agora segurava a mão de Nadia como se nunca mais quisesse largar.

— Eu sou Jenny Fowler — disse Rimona Stern. — Estou muito contente por ter se juntado a nós. Por favor, vamos entrar para não morrermos de frio.

Eles se viraram ao mesmo tempo e começaram a andar em direção à entrada. O guarda-costas tentou segui-los, mas Nadia, em seu primeiro ato conspiratório, o fez parar com um gesto e algumas palavras tranquilizadoras num árabe sussurrado. Se pensava que seus anfitriões não entenderiam, ela estava enganada; os Fowler falavam árabe fluentemente, assim como a mulher pequena de cabelos escuros esperando abaixo do lustre no grande vestíbulo.

— Eu sou Emma — apresentou-se Dina Sarid. — Sou uma velha amiga dos Fowler. É um prazer conhecê-la.

Nadia apertou a mão estendida e permitiu que Dina a conduzisse pelo grande salão abobadado. Em pé diante de uma fileira de portas francesas, o olhar fixo no esmerado jardim do terraço, havia uma mulher de cabelo louro-claro e pele cor de alabastro. Ao ouvir o som de passos, a mulher se virou devagar e encarou Nadia por um longo momento com seus olhos azuis inexpressivos. Não se deu ao trabalho de dar um nome falso. Não teria sido apropriado.

— Olá, Nadia — disse Sarah Bancroft, por fim. — É muito bom ver você outra vez.

Nadia recuou um pouco, parecendo amedrontada pela primeira vez.

— Meu Deus — falou depois de um momento de hesitação. — É você mesmo? Eu temia que você estivesse...

— Morta?

Nadia não respondeu. Seu olhar se moveu devagar de um rosto para o outro antes de repousar em Zoe.

— Você sabe quem são essas pessoas?

— É claro.

— Você trabalha para elas?

— Eu trabalho para a CNBC de Nova York.

— Então por que está aqui?

— Eles precisam falar com você. Não havia outra maneira.

Nadia pareceu aceitar a explicação, pelo menos por enquanto. Mais uma vez seu olhar passeou pela sala. Dessa vez, fixou-se em Sarah.

— Qual a razão de tudo isso?

— A razão é você, Nadia.

— Por que eu?

— Você está tentando mudar o mundo islâmico. Nós queremos ajudar.

— Quem são vocês?

— Eu sou Sarah Bancroft, a garota norte-americana que vendeu uma pintura de Van Gogh ao seu pai. Depois disso ele me ofereceu um emprego como sua consultora de arte pessoal. Acompanhei vocês no cruzeiro anual de inverno pelo Caribe. Depois fui embora.

Você é uma espiã? — perguntou Nadia, mas Sarah respondeu apenas estendendo sua mão. A jornada de Nadia estava quase completa. Havia só mais uma parada a fazer. Uma última pessoa para conhecer.


29

Seraincourt, França

 

Separado do grande salão por duas imponentes portas duplas havia uma sala de estar menor e mais informal com paredes forradas de livros e uma mobília estofada diante de uma grande lareira de pedra. Ao mesmo tempo reconfortante e conspirador, era um lugar onde beijos haviam sido roubados, pecados confessados e alianças secretas forjadas. Levada até lá por Sarah, Nadia andou distraída pelo cômodo antes de se acomodar num grande sofá. Zoe sentou-se na outra ponta, como para dar equilíbrio, e Sarah sentou-se em frente, com as mãos unidas no colo, sem olhá-las diretamente. Os outros integrantes da equipe estavam espalhados, como que retomando a festa interrompida com a chegada de Nadia. A única exceção era Gabriel, em pé na frente da lareira apagada, uma das mãos no queixo, a cabeça meio inclinada para um lado. Naquele instante, tentava decidir qual seria a melhor resposta para uma pergunta simples de Nadia, feita alguns segundos depois de ele ter entrado na sala. Frustrada por seu silêncio, ela indagou outra vez, agora com mais intensidade.

— Quem são vocês?

Gabriel tirou a mão do queixo e começou a gesticular para fazer as apresentações.

— Esses são os Fowler, Thomas e Jenny. Thomas ganha dinheiro. Jenny gasta. A garota melancólica no canto é Emma. Ela e Thomas são velhos amigos. Na verdade já foram namorados, e em seus momentos mais sombrios Jenny desconfia que são amantes. — Fez uma pausa por um instante para pôr a mão no ombro de Sarah. — E você se lembra desta mulher, é claro. Esta é Sarah, a nossa estrela. Sarah tem mais títulos do que todos nós juntos. Apesar dessa dispendiosa formação, totalmente paga por um pai culpado, ela trabalhava numa galeria de arte precária de Londres alguns anos atrás quando seu pai chegou procurando um Van Gogh, o único artista que faltava em sua coleção. Ficou tão impressionado com Sarah que demitiu seu consultor de longa data e ofereceu a ela um emprego com um salário muito maior. Os benefícios incluíam um convite para um cruzeiro no Caribe a bordo do Alexandra. Pelo que me lembro, no início você não se mostrou muito receptiva. Mas quando chegaram à ilha encantada de St. Barts, você e Sarah tinham se tornado grandes amigas. Até confidentes, eu diria.

Sarah agia como se não estivesse ouvindo nada. Nadia a observou por um momento antes de se virar para Gabriel.

— Não foi por acaso que essas quatro pessoas estavam em St. Barts na mesma época. Sabe, Nadia, todos são agentes de inteligência profissional. Thomas, Jenny e Emma trabalham para o serviço de inteligência estrangeira do Estado de Israel, assim como eu. Sarah trabalha para a CIA. Seu conhecimento artístico é autêntico, por isso ela foi selecionada para a operação contra a AAB Holdings. Seu pai era um filantropo secreto como você, Nadia. Infelizmente, suas contribuições dirigiam-se ao lado oposto do espectro islâmico. Ele doava aos incita? dores, aos recrutadores e aos próprios terroristas. Quando seu pai descobriu a verdade sobre Sarah, ele mandou que fosse torturada e morta. Mas isso você já sabe, não é, Nadia? Por isso você ficou tão surpresa ao ver que sua amiga Sarah ainda estava entre os vivos e bem-disposta.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Por enquanto, meu nome não é importante. Prefiro me ver como um coletor de fagulhas. ? Fez uma pausa. ? Igual a você, Nadia.

— Perdão?

— Alguns de nossos antigos rabinos acreditavam que quando Deus estava criando o universo, Ele depositou Sua luz divina em compartimentos celestiais especiais. Só que a Criação não correu de acordo com o plano de Deus, e aconteceu um acidente. Os recipientes foram quebrados e o universo ficou cheio de fagulhas de luz divina e cacos. Os rabinos acreditavam que o trabalho da Criação só estaria completo quando essas fagulhas fossem reunidas. Chamamos isso de Tikkun Olam, ou Reparação do Mundo. As pessoas nesta sala estão tentando consertar o mundo, Nadia, e acreditamos que você também esteja. Você está tentando reunir os cacos de ódio que têm sido espalhados pelos pregadores wahhabitas. Está tentando reparar os danos causados pelo apoio de seu pai ao terrorismo. Nós aplaudimos seus esforços. E queremos ajudar.

— Como você sabe disso tudo?

— Porque estamos observando você há muito tempo.

— Por quê?

— Por prudência. Quando seu pai foi assassinado em Cannes, ficamos com medo de que você tentasse vingar a morte dele. E a última coisa que o mundo precisava era de outro saudita rico enchendo de dinheiro os bolsos dos terroristas. Nossos temores se intensificaram quando você manteve em segredo os serviços de um ex-oficial da inteligência saudita chamado Faisal Qahtani para investigar as circunstâncias envolvendo a morte de seu pai. O Sr. Qahtani relatou que seu pai foi morto pelo serviço secreto israelense, com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano. Depois contou todos os detalhes da longa história do apoio de seu pai ao movimento jihadista. — Gabriel fez uma pausa. — Eu sempre tentei adivinhar qual aspecto da vida de seu pai mais a incomodava, Nadia: o fato de ele cometer assassinatos em massa ou de ter mentido para você. Pode ser muito traumático descobrir que se foi enganado pelo pai.

Nadia não respondeu. Gabriel continuou:

— Nós sabemos o que o Sr. Qahtani contou porque ele fez o mesmo relato para nós pelo preço bem razoável de 100 mil dólares norte-americanos, depositados numa conta bancária numerada na Suíça. — Gabriel deu um breve sorriso. — O Sr. Qahtani é um homem de fontes incontestáveis, mas de lealdades suspeitas. Também gosta de mulheres bonitas do vaudeville.

— E a informação era precisa?

— Qual parte?

— A parte sobre o serviço secreto de Israel ter assassinado meu pai com as bênçãos da CIA e do presidente norte-americano.

Gabriel olhou para Zoe, que escondia sua curiosidade de forma admirável. Agora que sua missão estava concluída, ela deveria ter sido levada com discrição para fora da sala. Mas Gabriel permitiu que ela permanecesse na sala por enquanto. Seus motivos eram puramente egoístas. Tinha conhecimento do vínculo formado entre seu alvo e sua agente. Estava ciente, também, de que Zoe poderia ser um bem valioso para ajudar a fechar o acordo final. Apenas com sua presença, Zoe conferia legitimidade à causa de Gabriel e nobreza a suas intenções.

— Assassinato não é bem a palavra correta para descrever o que aconteceu com seu pai — falou. — Se não se incomoda, prefiro continuar a falar um pouco mais sobre o dissimulado Sr. Qahtani. Ele fez mais do que apenas um relato da morte de seu pai. Ele também entregou uma mensagem vinda de ninguém menos que o próprio monarca saudita. Ela deixava claro que certos elementos da Casa de Saud sabiam das atividades de seu pai e aprovavam suas ações e que sob nenhuma circunstância você deveria fazer retaliações contra alvos israelenses ou norte-americanos. Na época, a Casa de Saud sofria uma enorme pressão de Washington para suspender o apoio ao extremismo e ao terrorismo islâmicos. O rei não queria que você provocasse mais complicações entre Riad e Washington.

— Foi o Sr. Qahtani que deu também essa informação?

— Estava incluída no pacote original, sem custo adicional.

— O Sr. Qahtani descreveu minha reação?

— Sim — respondeu Gabriel. — Ele disse que o aviso da Casa de Saud provavelmente era desnecessário, pois na opinião dele você não tinha intenção de seguir adiante com a vingança pela morte de seu pai. O que o Sr. Qahtani não percebeu foi que você achou repugnante o que descobriu... tão repugnante, aliás, que se tornou uma espécie de extremista. Depois de consolidar sua posição na AAB Holdings, decidiu usar a fortuna do pai para desfazer os danos que ele causou. Você se transformou numa reparadora do mundo, uma coletora de fagulhas.

Nadia abriu um sorriso indiferente.

— Como expliquei à sua amiga Zoe no almoço outro dia, é uma história interessante, só que não é verdade.

Gabriel sentiu que faltava convicção em sua negativa. Decidiu que a melhor atitude seria ignorá-la completamente.

— Você está entre amigos, Nadia — falou com delicadeza. — Aliás, admiradores. Não só admiramos a coragem de seu trabalho como também estamos maravilhados com a habilidade com que você o mantém em segredo. Na verdade, demoramos um bom tempo para perceber que você estava usando transações bem-engendradas de obras de arte para lavar dinheiro e entregá-lo nas mãos das pessoas que queriam ajudar. Como profissionais, parabenizamos sua perícia. Com toda a honestidade, nós mesmos não conseguiríamos fazer melhor.

Nadia lhe lançou um olhar penetrante, mas dessa vez não negou nada. Gabriel foi em frente.

— Devido a seus habilidosos negócios, você conseguiu manter o trabalho em segredo da inteligência saudita e da Al-Saud. É um feito notável, pois você estava cercada dia e noite pelos antigos empregados e seguranças de seu pai. No início ficamos confusos com sua decisão de manter esses serviços. Em retrospecto, as razões são bem óbvias.

— São mesmo?

— Você não tinha escolha. Seu pai era um empresário astuto, mas ele não acumulou sua fortuna de forma muito honesta. A Casa de Zizi foi comprada e paga pela Casa de Saud, o que significa que a Al-Saud poderia arruinar você com um estalar de seus dedos reais.

Gabriel olhou para Nadia à procura de uma reação. O rosto dela se mantinha sereno.

— Significa que você está envolvida em um jogo perigoso — continuou Gabriel. — Usa o dinheiro do monarca para disseminar ideias que podem ameaçar o domínio de seu trono. Isso faz de você uma subversiva. Uma herege. E nós dois sabemos o que acontece com subversivos e hereges que ameaçam a Casa de Saud. De um jeito ou de outro, eles são eliminados.

— Você não fala como se quisesse me ajudar. Fala como se pretendesse me chantagear para fazer o que deseja.

— Nosso único interesse é que seu trabalho continue. No entanto, gostaríamos de dar um conselho.

— Que tipo de conselho?

— Um conselho de investimento. Achamos que é um bom momento para fazer algumas alterações em seu portfolio... alterações mais condizentes com sua condição de filha única do falecido Zizi al-Bakari.

— Meu pai era um financiador do terrorismo.

— Não, Nadia, ele não era um financiador qualquer do terrorismo. Seu pai era incomparável. Seu pai era a própria Corporação Jihad.

— Sinto muito, mas não compreendo o que você quer de mim.

— É simples. Queremos que você siga os passos de seu pai. Queremos que erga a bandeira do jihad que ele deixou de sustentar naquela terrível noite em Cannes. Queremos que você vingue a morte dele.

— Você quer que eu me torne uma terrorista?

— Exato.

— E como eu faria isso?

— Formando seu próprio grupo terrorista. Mas não se preocupe, Nadia. Você não vai fazer isso sozinha. Thomas e eu vamos ajudar.


30

Seraincourt, França

 

Eles tinham chegado a um bom lugar para fazer uma pausa — um oásis, pensou Gabriel, que de repente se sentia encantado pela iconografia do deserto. A razão para a convocação de Nadia havia sido abordada com sucesso. Agora era hora de descansar por um tempo e refletir sobre a jornada até ali. Era também o momento de lidar com certos negócios desagradáveis. Gabriel tinha algumas questões que precisavam ser respondidas antes que pudessem continuar — perguntas relacionadas com o emaranhado político e os antigos ódios do Oriente Médio. Fez a primeira pergunta enquanto estava agachado diante da lareira, segurando um fósforo.

— Como você se sente em relação a nós? — Ele riscou o fósforo na pedra da lareira.

— Em relação aos israelenses?

— Em relação aos judeus — retrucou Gabriel, encostando o fósforo nos gravetos. — Você acha que somos filhos do diabo? Acha que controlamos a mídia e as finanças do mundo? Acha que provocamos o Holocausto? Você acredita que o Holocausto aconteceu? Acha que usamos sangue de crianças não judias para preparar nosso pão ázimo? Acredita que somos porcos e macacos, como seus clérigos wahhabitas e os livros didáticos sauditas gostam de nos retratar?

— Eu não estudei na Arábia Saudita — respondeu Nadia sem parecer estar na defensiva.

— Não. Você estudou nas escolas mais prestigiadas da Europa, como sua amiga Sarah. E Sarah se lembra muito bem de um incidente na praia em St. Barts quando você disse algo bastante desagradável sobre um homem que acreditava ser judeu. Ela também se lembra de muitas conversas rudes sobre judeus sempre que seu pai e seu entourage começavam a discutir política.

Nadia olhou para Sarah com um ar de tristeza, como se ela tivesse traído sua confiança.

— As opiniões de meu pai sobre os judeus eram muito conhecidas — falou ela depois de um momento. — Infelizmente, fui exposta a essas opiniões todo dia, e a visão de meu pai, por pouco tempo, se tornou a minha. — Fez uma pausa e olhou para Gabriel. — Você nunca disse alguma coisa e depois quis voltar atrás? Nunca fez nada de que tenha muita vergonha?

Gabriel soprou os gravetos com suavidade, mas não disse nada.

— Sou dona de uma fortuna de muitos bilhões de dólares — continuou Nadia. — Então é provável que você não se surpreenda por eu não acreditar que os judeus controlam o sistema financeiro mundial. Nem acredito que controlem a mídia. Acredito que o Holocausto aconteceu e que seis milhões de pessoas pereceram, e considero que a negação dessa verdade faz parte de um discurso para incitar o ódio. Acredito também que essa história sobre sangue de não judeus seja uma calúnia e sinto repugnância cada vez que ouço um dos chamados homens religiosos da Arábia Saudita se referir a judeus e cristãos como porcos e macacos. — Fez uma pausa. — Esqueci alguma coisa?

— O diabo — lembrou Gabriel.

— Eu não acredito no diabo.

— E quanto a Israel, Nadia? Você acredita que temos o direito de viver em paz? Que temos o direito de levar nossos filhos à escola ou ir ao mercado sem medo de sermos despedaçados por um soldado de Alá?

— Acredito que o Estado de Israel tem o direito de existir. Também acredito que tem o direito de se defender contra os que querem destruí-lo ou matar seus cidadãos.

— E o que você acha que aconteceria se amanhã nós saíssemos da Cisjordânia e de Gaza e reconhecêssemos o direito do Estado palestino? Acredita que o mundo islâmico nos aceitaria ou estamos condenados para sempre a sermos considerados uma entidade estrangeira, um câncer que deve ser extirpado?

— Receio que a última alternativa — respondeu Nadia ?, mas estou tentando ajudar vocês. Seria bom se de vez em quando vocês não tornassem as coisas tão difíceis para mim. Todos os dias vocês humilham os palestinos e seus apoiadores no mundo islâmico. E quando você mistura humilhação com a ideologia dos wahhabitas...

— Bombas explodem nas ruas da Europa — completou Gabriel. — Mas é preciso mais do que humilhação e ideologia para provocar atos terroristas em escala global. Também é preciso dinheiro. Os idealizadores precisam de dinheiro para inspirar, dinheiro para recrutar e treinar e dinheiro para operar. Com dinheiro, eles podem atacar à vontade. Sem dinheiro, eles não são nada. Seu pai entendia o poder do dinheiro. Você também entende. Foi por isso que, apesar das dificuldades, nos dispusemos a falar com você, Nadia. É por isso que você está aqui.

Eli Lavon havia entrado em silêncio na sala e observava a conversa, impassível, perto das janelas. Nadia o examinou com atenção por um momento, como se tentasse localizá-lo nos arquivos desordenados de sua memória.

— É ele que está no comando? — perguntou ela.

— Max? — Gabriel negou lentamente com a cabeça. — Não, Max não está no comando. Eu sou o amaldiçoado com a responsabilidade do comando. Max é apenas minha consciência culpada. Max é meu espírito preocupado.

— Ele não me parece preocupado.

— Isso porque Max é um profissional. E como todos os profissionais, Max é muito bom em ocultar emoções.

— Assim como você.

— Sim, como eu.

Ela olhou para Lavon e perguntou:

— Por que ele está apreensivo?

— Max acha que estou indo pelo caminho errado. Max está tentando evitar que eu cometa o que pode ser o maior erro de uma carreira até aqui imaculada.

— Que erro seria esse?

— Você — respondeu Gabriel. — Estou convencido de que você é a resposta às minhas preces, que podemos trabalhar juntos para eliminar uma grave ameaça à segurança do Ocidente e do Oriente Médio. Mas como você pode ver, Max é muito mais velho que eu e muito apegado a sua maneira de agir. Considera a ideia de nossa parceria ingênua e risível. Ele acredita que, sendo uma mulher muçulmana da Arábia Saudita, você absorveu o ódio aos judeus pelo leite materno. Max também está convencido, acima de tudo, de que você saiu ao pai. E Max acredita que, como seu pai, você tem duas caras: uma que mostra ao Ocidente e outra que mostra em casa.

Nadia sorriu pela primeira vez.

— Talvez você devesse lembrar a Max que eu não posso mostrar meu rosto em casa, ao menos não em público. E talvez devesse lembrar-lhe também que arrisco minha vida todos os dias tentando mudar isso.

— Max tem muitas dúvidas sobre suas atividades filantrópicas e as motivações por trás delas. Max acredita que são uma fachada para seus verdadeiros interesses, que estão muito mais próximos das atividades de seu falecido pai. Max acredita que você é uma jihadista. Em suma, Max acha que você é uma mentirosa.

— Talvez você seja o mentiroso.

— Eu sou um agente secreto, Nadia, o que significa que minto para sobreviver.

— E está mentindo para mim agora?

— Só um pouco — respondeu Gabriel, pesaroso. — Devo dizer que na verdade aquela pequena alma envelhecida não se chama Max.

— Mas ainda assim ele acredita que sou uma mentirosa?

— Ele espera que não. Mas precisa saber se você está do nosso lado antes que a conversa prossiga.

— E que lado é esse?

— O lado dos anjos, é claro.

— Os mesmos anjos que assassinaram meu pai a sangue-frio?

— Lá vem essa palavra de novo, Nadia. Seu pai não foi assassinado. Foi morto por forças inimigas num campo de batalha que escolheu. Morreu como um mártir a serviço do jihad. Infelizmente, a violenta ideologia que ele ajudou a propagar não morreu com ele. Ainda vive alimentada por uma ira sagrada crescente que se estende desde as áreas tribais do Paquistão até as ruas de Londres. E ainda vive numa nova rede terrorista letal com base nas montanhas do Iêmen. Essa rede tem um líder carismático, um habilidoso estrategista e um núcleo de treinamento de shahids determinados. O que falta a ele é uma coisa que você pode fornecer.

— Dinheiro — disse Nadia.

— Dinheiro — repetiu Gabriel. — A questão é se você é mesmo uma mulher que tenta sozinha mudar a face do Oriente Médio moderno ou se na verdade saiu ao pai.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Temo que vocês vão ter que decidir isso sem a minha ajuda — declarou afinal ?, porque neste momento esse interrogatório está oficialmente encerrado. Se houver algo que você queira de mim, sugiro que me diga o que é. E é melhor não demorar muito. Você pode ter muitas dúvidas sobre minha posição, mas não deve ter nenhuma a respeito da posição do chefe de segurança. Rafiq al-Kamal é um verdadeiro wahhabita e muito leal a meu pai. Suponho que ele esteja começando a suspeitar do que se passa aqui.


31

Seraincourt, França

 

A equipe saiu da sala aos poucos — todos menos Eli Lavon, que continuou perto das janelas, e Gabriel, que se acomodou no lugar deixado vago por Sarah. Olhou para Nadia por um momento em respeitoso silêncio. Depois, numa voz sombria emprestada de Shamron, começou a contar uma história. Era a história de um carismático clérigo islâmico chamado Rashid al-Husseini, de uma bem-intencionada operação da CIA que deu terrivelmente errado e de uma letal rede terrorista que precisava de capital para atingir seus objetivos. O resumo foi bem detalhado — de fato, quando Gabriel afinal terminou, o sol fraco do outono tinha se posto e a sala estava na penumbra. Lavon era então uma mera silhueta, indistinguível a não ser pelos cabelos despenteados que rodeavam sua cabeça como um halo. Nadia ficou imóvel na ponta do grande sofá, pernas recolhidas, braços cruzados. Seus olhos escuros fitavam Gabriel sem piscar enquanto ele falava, como se posasse. Era o retrato de uma mulher desvelada, pensou Gabriel, óleo sobre tela, artista desconhecido.

Ouviram-se gargalhadas no aposento adjacente. Quando cessaram, começou uma música. Nadia fechou os olhos e ouviu.

— Isso é Miles Davis? — perguntou.

— “Dear Old Stockholm” — confirmou Gabriel, aquiescendo.

— Eu sempre gostei muito de Miles Davis, apesar de que meu pai, muçulmano wahhabita devoto, tentou evitar que eu ouvisse qualquer tipo de música. — Fez uma pausa por um momento, ainda escutando. — Também gosto muito de Estocolmo. Tenho esperança de que Rashid não coloque a cidade na sua lista de alvos.

— Um homem muito sábio me disse uma vez que esperança não é uma estratégia aceitável quando vidas estão em risco.

— Talvez não, mas a esperança está muito em voga no momento em Washington.

Gabriel sorriu e disse:

— Você ainda não respondeu minha pergunta, Nadia.

— Que pergunta?

— O que foi mais doloroso: descobrir que seu pai era um terrorista ou que ele enganou você?

Ela olhou Gabriel com uma intensidade perturbadora. Depois de um tempo, tirou o maço de Virginia Slims da bolsa, acendeu um e ofereceu um cigarro a Gabriel. Com um breve gesto, ele recusou.

— Acho que sua pergunta mostra uma profunda ignorância da cultura saudita — falou ela finalmente. — Meu pai era bastante ocidentalizado, mas acima de tudo era um homem saudita, o que significa que tinha minha vida em suas mãos. Mesmo depois de sua morte, eu continuava com medo de meu pai. E mesmo na morte, nunca me permiti ficar decepcionada com ele.

— Mas você não era uma criança saudita típica.

— É verdade — admitiu ela. — Meu pai me deu muita liberdade quando estávamos no Ocidente. Mas essa liberdade não se estendia à Arábia Saudita ou a nossa relação pessoal. Meu pai era como Al-Saud: era o monarca absoluto da nossa família. E eu sabia exatamente o que aconteceria se eu saísse da linha.

— Ele ameaçou você?

— Claro que não. Meu pai nunca me dirigiu uma palavra ríspida. Não precisava. As mulheres na Arábia Saudita conhecem o seu lugar. Desde as primeiras menstruações, são escondidas embaixo de um véu negro. E que os céus as ajudem se desonrarem o homem que detém controle sobre elas.

Agora ela estava um pouco mais ereta, como se consciente de sua postura. A luz inconstante da lareira tinha apagado os primeiros sinais do tempo de seu rosto. No momento, ela parecia a jovem insolente e de beleza estonteante que eles tinham visto pela primeira vez muitos anos atrás andando pelas ruas de pedra da Masons Yard. Nadia tinha sido um problema a mais durante a operação contra o pai dela, um incômodo. Nem Gabriel conseguia acreditar direito que a filha mimada de Zizi al-Bakari tinha se transformado na mulher elegante e reflexiva sentada à sua frente.

— A honra é muito importante na psique do homem árabe — continuou ela. — Honra é tudo. Foi uma lição que aprendi de forma bem dolorosa quando tinha 18 anos. Uma das minhas melhores amigas era uma garota chamada Rena. Era de uma boa família, nem de perto tão rica quanto a nossa, mas proeminente. Rena tinha um segredo. Estava apaixonada por um bonito jovem egípcio que conheceu num shopping de Riad. Encontravam-se no apartamento dele. Avisei a Rena que aquilo era perigoso, mas ela se recusou a parar de encontrar o homem. No fim das contas, a mutaween, a polícia religiosa, flagrou os dois juntos. O pai de Rena ficou tão mortificado que tomou a única atitude possível, pelo menos na cabeça dele.

— Uma morte por honra?

Nadia assentiu lentamente.

— Rena foi presa a pesadas correntes. Depois, com o resto da família olhando, foi jogada na piscina da própria casa. A mãe e as irmãs foram obrigadas a assistir. Não falaram nada. Não fizeram nada. Estavam impotentes.

Nadia ficou em silêncio.

— Quando descobri o que tinha acontecido eu fiquei arrasada — disse por fim. — Como um pai podia ser tão bárbaro e primitivo? Como podia matar a própria filha? Mas quando fiz essas perguntas a meu pai, ele me disse que era a vontade de Alá. Rena teve que ser castigada por seu comportamento imprudente. Simplesmente precisava ser feito. — Fez uma pausa. — Nunca esqueci a expressão de meu pai quando ele falou essas palavras. Era a mesma expressão que vi no rosto dele muitos anos depois enquanto assistia ao desmoronamento do World Trade Center. Era uma terrível tragédia, dizia, mas era a vontade de Alá. Simplesmente precisava acontecer.

— Você chegou a suspeitar do envolvimento de seu pai com o terrorismo?

— É claro que não. Eu acreditava que o terrorismo era trabalho de jihadistas loucos como Bin Laden e Zawahiri, não de um homem como meu pai. Zizi al-Balcari era empresário e colecionador de arte, não um assassino. Ou ao menos era o que eu pensava.

O cigarro tinha se consumido até apenas uma ponta. Ela o esmagou no cinzeiro e imediatamente acendeu outro.

— Mas agora, com o passar do tempo, posso ver que havia uma ligação entre a morte de Rena e o assassinato de três mil pessoas inocentes no 11 de Setembro. Todos tinham um ancestral comum: Muhammad Abdul Wahhab. Enquanto essa ideologia de ódio não for neutralizada, haverá mais terrorismo e mais mulheres como Rena. Tudo o que eu faço é por ela. Rena é minha guia, meu farol.

Nadia olhou para o canto da sala onde Lavon estava sozinho, velado pela escuridão.

— Max ainda está preocupado?

— Não — respondeu Gabriel ?, Max não está nada preocupado.

— O que Max está pensando?

— Max acredita que seria uma honra trabalhar com você, Nadia. E eu também.

Nadia fitou a lareira por um momento.

— Já ouvi sua proposta — disse afinal — e respondi a todas as perguntas que pretendia. Agora você tem que responder algumas minhas.

— Pode me perguntar o que você quiser.

Nadia esboçou um sorriso.

— Talvez devamos tomar um pouco do vinho que eu trouxe. Sempre achei que uma boa garrafa de Latour pode aparar as arestas das conversas mais desagradáveis.


32

Seraincourt, França

 

Nadia observou com atenção as mãos de Gabriel abrindo a garrafa de vinho. Serviu duas taças, ficando com uma e entregando a outra a ela.

— Nada para Max?

— Max não bebe.

— Ele é um fundamentalista muçulmano?

— Max é abstêmio.

Gabriel ergueu um pouco a taça num brinde. Nadia não retribuiu. Depositou a taça de vinho na mesa com o que pareceu um cuidado exagerado.

— Há um grande número de perguntas sobre a morte de meu pai que eu nunca consegui responder — disse depois de um prolongado silêncio. — E preciso que as responda agora.

— Há restrições quanto ao que posso dizer.

— Eu aconselharia você a repensar essa posição. Senão...

— O que você quer saber, Nadia?

— Ele estava marcado para ser assassinado desde o começo?

— Muito pelo contrário.

— O que isso significa?

— Significa que os norte-americanos deixaram muito claro que seu pai era importante demais para ser tratado como um terrorista comum. Não era membro da família real, mas quase isso: descendente de uma família mercante de linhagem antiga, proveniente do Nejd, que alegava possuir laços de sangue com ninguém menos que o próprio Muhammad Abdul Wahhab.

— E isso o tornava intocável aos olhos dos norte-americanos?

— “Radioativo” foi a palavra que usaram.

— E o que aconteceu?

— Aconteceu Sarah.

— Eles machucaram Sarah?

— Ela quase morreu.

Nadia ficou em silêncio por um momento.

— Como ela foi resgatada?

— Nós lutamos num campo de batalha secreto, mas nos consideramos soldados e nunca deixamos os nossos nas mãos dos inimigos.

— Quanta nobreza.

— Pode ser que nem sempre você concorde com nossos métodos e objetivos, Nadia, mas tentamos operar segundo um certo código. Às vezes nossos inimigos fazem isso também. Mas não seu pai. Seu pai jogava pelas próprias regras. As regras de Zizi.

— E por isso foi morto numa rua cheia de gente em Cannes.

— Você preferia que fosse Londres? Ou Genebra? Ou Riad?

— Eu preferia não ter presenciado meu pai ser abatido a sangue-frio.

— Nós também. Infelizmente, não tivemos outra escolha.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Nadia encarava Gabriel. Não havia raiva nos olhos dela, só uma leve expressão de tristeza.

— Você ainda não me disse seu nome — falou por fim. — Isso não contribui para construir os alicerces de uma parceria forte e confiável.

— Acho que você já sabe meu nome, Nadia.

— Sei — admitiu ela depois de um momento. — E se os terroristas e os que os apoiam na Casa de Saud souberem que estou trabalhando com Gabriel Allon, o homem que matou meu pai, vão me declarar uma infiel. Assim, na primeira oportunidade, cortarão minha garganta. — Fez uma pausa. — Não a sua garganta, Sr. Allon. A minha.

— Estamos bem cientes dos riscos do que estamos pedindo e vamos fazer todo o possível para garantir sua segurança. Cada passo de sua jornada será cuidadosamente planejado e executado, como este encontro.

— Mas não é isso que estou pedindo, Sr. Allon. Preciso saber se você vai me proteger.

— Você tem a minha palavra — respondeu ele sem hesitar.

— A palavra do homem que matou meu pai?

— Sinto muito não poder fazer nada para mudar o passado.

Não, só o futuro.

Olhou para Eli Lavon, que, de forma admirável, escondia seu desprazer com o que estava se passando, depois olhou pelas janelas dando para o jardim do terraço.

— Ainda temos alguns minutos de sol — disse ela. — Por que não vamos dar uma volta, Sr. Allon? Há outra coisa que preciso contar.

 

Eles seguiram por um caminho de cascalho entre colunas de ciprestes agitados pelo vento. Nadia andava à direita de Gabriel. No começo, ela parecia cautelosa em chegar muito perto, mas quando se embrenharam mais entre as árvores, Lavon notou a mão dela repousando com discrição sobre o braço de Gabriel. Parou uma vez, como se compelida a fazer isso devido à gravidade de suas palavras, e uma segunda vez na beira de uma fonte inativa no centro do jardim. Ficou ali sentada por vários minutos, passando a mão, como uma criança, pela superfície da água, enquanto a última luz do dia se esvaía. A essa altura, Lavon quase não conseguia enxergá-los. Só viu Gabriel levar a mão brevemente ao rosto de Nadia, depois nada mais até eles saírem andando pela trilha em direção à casa, com Nadia se apoiando no braço de Gabriel.

Quando voltaram à sala de estar, Gabriel chamou o restante da equipe e a festa continuou. Por insistência de Gabriel, eles não falaram nada sobre seus passados em comum e o futuro incerto. Não havia uma guerra global ao terror, nenhuma nova rede que precisava ser desmantelada, nenhuma razão para se preocupar. Havia apenas um bom vinho, um bom papo e um grupo de bons amigos que na verdade não eram amigos. Nadia, como Gabriel, se manteve observando aquela fingida alegria. Continuou posando para seu retrato, os olhos vagando lentamente de um rosto para o outro, como se fossem peças de um quebra-cabeça que tentava montar. De vez em quando ela lançava um olhar para as mãos de Gabriel. Ele não tentou escondê-las, pois agora não havia nada a esconder. Estava claro para Lavon e o resto da equipe que Gabriel não tinha mais dúvidas a respeito das intenções de Nadia. Como dois amantes, eles tinham consagrado seus laços ao partilhar segredos.

Passavam alguns minutos das sete quando Gabriel deu o sinal de que a festa estava no fim. Ao se levantar, de repente Nadia pareceu tonta. Deu boa-noite a todos e, com Zoe a seu lado, andou pelo pátio às escuras até o carro onde Rafiq al-Kamal esperava por ela. Durante a volta a Paris, mais uma vez ela falou sem parar, dessa vez sobre os novos amigos, Thomas e Jenny Fowler. Gabriel monitorou a conversa pelo BlackBerry de Zoe. Na manhã seguinte, ele observou quando o ícone piscante se movia da Place de la Concorde até o Aeroporto Charles de Gaulle. Enquanto esperava o voo, Zoe ligou para seu produtor em Nova York para dizer que, pelo menos por ora, a exclusiva com Al-Bakari não ia acontecer. Em seguida, num sussurro provocante, disse a Gabriel:

— Hora da despedida, querido. Não hesite em me ligar se precisar de alguma outra coisa.

Gabriel esperou até Zoe estar a bordo em segurança antes de desabilitar o software no telefone dela. A luz piscou mais três vezes. E ela sumiu da tela.


33

Seraincourt, França

 

A operação começou para valer às 10h15 da manhã seguinte, quando Nadia al-Bakari informou a seus diretores que pretendia estabelecer uma parceria com a Thomas Fowler Associates, uma empresa de investimentos pequena porém muito bem-sucedida com sede em Londres. Naquela tarde, acompanhada apenas por seus seguranças, ela foi de carro até a casa do Sr. Fowler ao norte de Paris para a primeira rodada de negociações. Mais tarde, ela definiria as conversações como intensas e produtivas, e por acaso as duas características eram verdadeiras.

Ela voltou no dia seguinte e no outro também. Por razões que não revelou aos outros, Gabriel dispensou muito do treinamento habitual e se concentrou em especial na história de fachada de Nadia. Não era difícil de assimilar, pois, em sua maior parte, correspondia aos fatos.

— É a sua história — explicou Gabriel apenas com um ligeiro reordenamento dos detalhes relevantes. É uma história de assassinato, vingança e ódio tão antiga como o Oriente Médio. De agora em diante, Nadia al-Bakari não é mais parte da solução. Nadia é exatamente igual ao pai. É parte do problema. Ela é a razão pela qual os árabes nunca vão conseguir escapar de sua história.

Yossi ajudou Nadia nas questões superficiais relacionadas a sua atuação, mas em quase tudo o mais ela confiou nas instruções de Sarah. De início, Gabriel ficou apreensivo com o reatamento da amizade entre as duas, mas Lavon considerou valorosa a nova ligação. Sarah era uma lembrança conveniente da maldade de Zizi. E diferente de Rena, Sarah tinha olhado nos olhos do monstro e o derrotado. Era uma Rena sem correntes, uma Rena ressuscitada.

Nadia se mostrou uma ótima aluna, mas Gabriel já esperava isso. Sua preparação se tornou mais fácil porque, tendo uma vida dupla havia anos, ela era uma dissimuladora nata. Tinha ainda duas importantes vantagens em relação a outros que tentaram penetrar no movimento jihadista: seu nome e os guarda-costas. O nome era garantia de acesso imediato e credibilidade, enquanto seus guarda-costas lhe davam uma segurança de que a maioria dos agentes não dispunha. Filha única de um bilionário saudita assassinado, Nadia era um dos cidadãos mais bem protegidos do mundo. Não importava aonde fosse, estava sempre cercada por sua leal guarda palaciana, além de um anel secundário de seguranças do Escritório. Chegar até ela seria quase impossível.

O item mais valioso de Nadia, porém, era o dinheiro. Gabriel confiava que não faltariam pretendentes quando ela retornasse ao mundo do jihad e do terror. O desafio para Gabriel e sua equipe seria colocar o dinheiro nas mãos da pessoa certa. A própria Nadia sugeriu o nome de um possível candidato enquanto caminhava com Gabriel e Sarah durante uma tarde no jardim do château.

— Ele me procurou pouco depois da morte de meu pai e pediu uma doação para uma instituição beneficente islâmica. Apresentou-se como um associado de meu pai. Um irmão.

— E a instituição?

— Não era mais do que uma fachada para a Al-Qaeda. Samir Abbas é o homem que procuramos. Mesmo se não estiver envolvido com essa nova rede, ele vai conhecer gente que esteja.

— O que ele faz?

— É funcionário do TransArabian Bank nos escritórios de Zurique. Como você deve saber, o TransArabian tem sede em Dubai e é uma das maiores instituições financeiras do Oriente Médio. Também é considerado o banco preferido do movimento jihadista, do qual Samir Abbas é membro de destaque. Ele administra as contas de abastados clientes do Oriente Médio, o que o deixa numa posição privilegiada para buscar contribuições para as chamadas instituições beneficentes.

— Alguma parte de sua fortuna está atualmente sob administração do TransArabian?

— No momento, não.

Talvez você deva considerar abrir uma conta. Nada muito grande. Só o suficiente para chamar a atenção de Samir.

— Quanto devo dar a ele?

— Você teria 100 milhões disponíveis?

— Cem milhões? — Ela balançou a cabeça. — Meu pai nunca daria esse dinheiro a ele. Quanto, então?

— Vamos dar 200 milhões. — Sorriu. — Assim ele vai saber que estamos falando sério.

Doze horas depois daquela conversa, Gabriel já tinha uma equipe em Zurique e Samir Abbas encontrava-se. sob vigilância do Escritório. Eli Lavon permaneceu no Château Treville cuidando de detalhes da operação, inclusive da espinhosa questão de como uma empresária saudita de Paris iria financiar um grupo terrorista sem despertar suspeitas nas autoridades financeiras da França e de outros países da Europa. Os financiamentos secretos de Nadia ao movimento reformista árabe indicaram o caminho. Gabriel só precisava de uma pintura e de um cúmplice voluntário. Isso explicava por que na véspera de Natal, quando o resto da França se preparava para vários dias de festividades, ele pediu que Lavon o levasse de carro até a Gare du Nord. Gabriel tinha uma passagem para o trem das 15h15 até Londres e uma catastrófica dor de cabeça por não dormir. Lavon estava mais inquieto do que o normal para esse estágio da operação. Solteiro e sem filhos, ele sempre se sentia deprimido por ocasião desses feriados.

— Tem certeza de que quer levar isso adiante?

— O quê, pegar um trem para Londres na véspera de Natal? Acho que eu preferia ir andando.

— Eu estava falando de Nadia.

— Eu sei, Eli.

Lavon olhou pela janela do carro a multidão fluindo em direção à entrada da estação. Eram os tipos comuns — empresários, estudantes, turistas, imigrantes africanos, batedores de carteiras, todos vigiados de perto por policiais franceses fortemente armados. O país inteiro esperava a próxima bomba explodir. Assim como o resto da Europa.

— Algum dia você vai me contar o que ela disse a você naquela noite no jardim?

— Não, não vou.

Lavon já esperava essa resposta. Mesmo assim, não conseguia esconder o desapontamento.

— Há quanto tempo nós trabalhamos juntos?

— Há 150 anos. E até hoje nunca deixei de revelar para você uma migalha de informação importante.

— E por que agora?

— Ela me pediu.

— Você contou para sua esposa?

— Eu conto tudo para minha esposa e minha esposa não me conta nada. Faz parte do acordo.

— Você é um homem de sorte — disse Lavon. — Mais uma razão para não fazer promessas que não vai poder cumprir.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, Eli.

— É disso que tenho medo. — Lavon olhou para Gabriel. — Você confia mesmo nela?

— Tanto quanto confio em você.

— Vá embora — disse Lavon depois de um momento. — Não quero que você perca o trem. E se por acaso avistar um homem-bomba ali, faça o favor de informar um gendarme. A última coisa que precisamos agora é você explodir uma estação ferroviária francesa.

Gabriel entregou a Lavon sua pistola Beretta 9 mm, saiu do automóvel e andou em direção aos guichês da estação. Por um milagre, o trem partiu no horário, e às cinco da tarde ele estava mais uma vez andando pelas calçadas de St. James. Depois Adrian Carter identificaria muitos simbolismos na volta de Gabriel a Londres, onde sua jornada tinha começado. Na verdade, suas razões para voltar não eram tão grandiosas. Seu plano para destruir a rede de Rashid por dentro envolvia um ato criminoso fraudulento. E havia lugar melhor para executá-lo do que no mundo artístico?

 

 

 


CONTINUA