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RETRATO DE UMA ESPIÃ
RETRATO DE UMA ESPIÃ

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.


CONTINUA

12

Georgetown, Washington

Os dois passaram para o terraço dos fundos e se acomodaram num par de cadeiras de ferro batido junto da balaustrada. Carter equilibrava uma xícara de café no joelho e olhava em direção aos graciosos pináculos cinzentos da Universidade de Georgetown. Ele estava falando de um bairro pobre de San Diego aonde, num dia de verão de 1999, chegou um jovem clérigo muçulmano iemenita chamado Rashid al-Husseini. Com dinheiro de uma instituição de caridade islâmica com base na Arábia Saudita, o iemenita comprou um precário imóvel comercial, estabeleceu uma mesquita e saiu em busca de uma congregação. Grande parte de seu recrutamento foi feita no campus da Universidade Estadual de San Diego, onde conseguiu seguidores fiéis entre os estudantes árabes que tinham vindo para os Estados Unidos fugindo da sufocante opressão social de seus países, só para se encontrarem perdidos e à deriva na ghurba, a terra dos estrangeiros. Rashid tinha todas as qualidades para ser um líder. Filho único de um ex-ministro do governo iemenita, havia nascido nos Estados Unidos, falava um inglês coloquial e tinha um passaporte norte-americano, ainda que não se orgulhasse muito disso.

— Todos os tipos de pessoa sem rumo e almas perdidas começaram a frequentar a mesquita de Rashid, inclusive dois sauditas, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi. — Carter olhou para Gabriel e acrescentou: — Imagino que você conheça esses nomes.

— Foram dois dos sequestradores do voo 77 da American Airlines, escolhidos pessoalmente por ninguém menos que Osama Bin Laden. Em janeiro de 2000, os dois estavam presentes na reunião de planejamento em Kuala Lumpur e depois disso a Unidade Bin Laden da CIA perdeu-os de vista. Mais tarde, foi descoberto que os dois tinham voado para Los Angeles e talvez ainda estivessem nos Estados Unidos, um fato que você deixou de contar ao FBI.

— Para meu eterno pesar — disse Carter. — Mas essa história não é sobre Al-Mihdhar e Al-Hazmi.

Era uma história, continuou Carter, sobre Rashid al-Husseini, que logo desenvolveu no mundo islâmico uma reputação de pregador fascinante, um homem a quem Alá havia presenteado com uma língua sedutora. Seus sermões se tornaram requisitados não só em San Diego como também no Oriente Médio, onde eram distribuídos em fitas cassetes. Na primavera de 2000, ofereceram-lhe uma posição num influente centro islâmico perto de Washington, no subúrbio de Falls Church, na Virgínia. Pouco tempo depois, Nawaf al-Hazmi estava orando lá com um jovem saudita de Taif chamado Hani Hanjour.

— Por coincidência — observou Carter ?, a mesquita está localizada em Leesburg Pike. Se você entrar à esquerda em Columbia Pike e continuar por alguns quilômetros, cai direto na fachada oeste do Pentágono, que foi o que fez Hani Hanjour na manhã de 11 de setembro. Rashid estava no escritório naquela hora. Na verdade, ele ouviu o avião passar poucos segundos antes do impacto.

Não demorou muito para o FBI ligar Al-Hazmi e Hanjour à mesquita de Falls Church, continuou Carter, nem para os jornalistas baterem à porta de Rashid. O que eles descobriram foi um eloquente e esclarecido jovem clérigo, um homem moderado que condenava abertamente os ataques de 11 de setembro e que instava seus irmãos muçulmanos a rejeitar a violência e o terrorismo em todas as suas formas. A Casa Branca ficou tão impressionada com o carismático imame que ele foi convidado a se juntar a diversos outros clérigos e acadêmicos muçulmanos para uma reunião particular com o presidente. O Departamento de Estado achou que Rashid poderia ser a pessoa perfeita para ajudar a construir uma ponte entre os Estados Unidos e 1,5 milhão de muçulmanos céticos. A Agência, porém, tinha outro plano.

— Nós achamos que Rashid poderia nos ajudar a penetrar no campo de nosso novo inimigo — prosseguiu Carter. — Mas antes de fazermos a nossa abordagem, tínhamos que responder algumas perguntas. Por exemplo, ele estaria de alguma forma envolvido no atentado de 11 de setembro ou seu contato com os três sequestradores foi pura coincidência? Examinamos o homem por todos os ângulos possíveis, partindo do pressuposto de que suas mãos estavam sujas com o sangue de norte-americanos. Verificamos todas as tabelas com datas e horários dos eventos ligados aos ataques. Averiguamos quem estava onde e quando. No final do processo, concluímos que o imame Rashid al-Husseini estava limpo.

— E depois?

— Despachamos um emissário para Falls Church para ver se Rashid estaria disposto a pôr em prática suas palavras. Sua resposta foi positiva. Pegamos o homem no dia seguinte e o levamos a um local seguro perto da fronteira com a Pensilvânia. E aí começou a diversão de verdade.

— Vocês começaram todo o processo de avaliação outra vez.

Carter assentiu.

— Mas dessa vez estávamos com o sujeito sentado à nossa frente, ligado num polígrafo. Nós o interrogamos durante três dias, examinando seu passado e suas conexões, nos mínimos detalhes.

— E a história se manteve.

— Ele foi aprovado com louvor. Então fizemos nossa proposta, acompanhada de uma grande quantia de dinheiro. Era uma operação simples. Rashid viajaria pelo mundo islâmico pregando tolerância e moderação ao mesmo tempo que nos forneceria nomes de outros possíveis recrutas para nossa causa. Além disso, ele deveria procurar jovens exaltados que parecessem vulneráveis ao canto da sereia dos jihadistas. Nós o acompanhamos num test drive interno, trabalhando junto ao FBI. Depois partimos para o campo internacional.

Operando de uma base num bairro predominantemente muçulmano em East London, Rashid passou os três anos seguintes transitando pela Europa e pelo Oriente Médio. Falava em conferências, pregava em mesquitas e concedia entrevistas a jornalistas bajuladores. Denunciava Bin Laden como um assassino que tinha violado as leis de Alá e os ensinamentos do Profeta. Reconhecia o direito de existência de Israel e propunha negociações de paz com os palestinos. Acusava Saddam Hussein de ser totalmente não islâmico, mas, seguindo os conselhos de seus operadores da CIA, ele parou um pouco de apoiar a invasão norte-americana. Sua mensagem nem sempre era bem recebida nos eventos, mas suas atividades não se restringiam ao mundo físico. Com a assistência da CIA, Rashid marcou sua presença na internet, onde tentou competir com a propaganda dos jihadistas da Al-Qaeda. Visitantes do site eram identificados e rastreados enquanto vagavam pelo ciberespaço.

— A operação foi considerada uma das iniciativas mais bem-sucedidas para adentrar um mundo que, na maior parte, nos era inteiramente obscuro. Rashid abasteceu seus operadores com um fluxo constante de nomes, bons sujeitos e possíveis vilões e até deu dicas sobre alguns planos em andamento. Em Langley, passamos um bom tempo maravilhados com nossa esperteza. Pensamos que aquilo continuaria para sempre. Mas terminou de repente.

O cenário foi bem apropriado: Meca. Rashid havia sido convidado para falar na universidade, uma grande honra para um clérigo muçulmano estigmatizado por um passaporte norte-americano. Como Meca é fechada aos infiéis, a CIA não teve escolha a não ser deixar que ele fosse sozinho. Pegou um avião de Amã para Riad, onde se encontrou com um dos operadores da CIA, depois embarcou em um voo doméstico da Saudia Airlines para Meca. Sua palestra estava marcada para as oito horas daquela mesma noite. Rashid não apareceu. Sumiu sem deixar vestígios.

— No início, tememos que ele tivesse sido raptado e morto por alguma ramificação local da Al-Qaeda. Infelizmente, não era o caso. Nossa valiosa aquisição ressurgiu na internet algumas semanas depois. O jovem eloquente e moderado havia desaparecido, substituído por um fanático enfurecido que pregava que a única maneira de lidar com o Ocidente era destruí-lo.

— Ele enganou vocês.

— É óbvio.

— Por quanto tempo?

— Isso continua em aberto — respondeu Carter. — Alguns em Langley acreditam que Rashid era mau desde o começo, outros têm uma teoria de que ele ficou enlouquecido pela culpa de trabalhar como espião para os infiéis. Seja qual for o caso, uma coisa é certa. Durante o tempo em que estava viajando com minha grana, ele recrutou uma extraordinária rede de agentes bem debaixo do nosso nariz. Ele tem um talento incrível para iludir e despistar. Tivemos esperança de que continuasse só pregando e recrutando, mas essa esperança se desfez. Os ataques na Europa foram a estreia de Rashid. Ele quer substituir Osama Bin Laden como líder do movimento jihadista. Quer fazer uma coisa que Bin Laden nunca mais conseguiu fazer depois do 11 de Setembro.

— Atacar o inimigo em seu território — disse Gabriel. — Derramar sangue norte-americano em solo norte-americano.

— Com uma rede recrutada e paga pela CIA — acrescentou Carter com amargura. — Você gostaria de ter isso gravado na sua lápide? Se vier a público que Rashid al-Husseini já esteve na nossa folha de pagamento... vamos todos sucumbir.

— O que você quer de mim, Adrian?

— Quero que faça com que o atentado em Covent Garden seja o último ataque realizado por Rashid al-Husseini. Quero que esmague a rede dele antes de alguém mais morrer por causa de um erro meu.

— Só isso?

— Não. Quero que mantenha toda essa operação em segredo, fora das vistas do presidente, de James McKenna e do restante da comunidade de inteligência norte-americana.


13

 

Georgetown, Washington

 

Adrian Carter era inflexível quando se tratava de negócios, e isso significava que eles não poderiam conversar por muito tempo dentro de uma casa, mesmo que fosse sua própria casa. Os dois desceram os degraus da entrada e, apenas com um segurança da CIA, seguiram na direção oeste pela N Street. Passavam alguns minutos das nove horas. Os sapatos de Carter soavam na calçada de tijolos num ritmo regular, mas Gabriel parecia se mover sem emitir qualquer som. Um ônibus passou lotado, fazendo um estardalhaço. Gabriel visualizou aquele ônibus todo retorcido, engolido pelas chamas.

— Para onde ele foi depois de sair de Meca?

— Acreditamos que ele vive sob a proteção das tribos do Vale de Rafadh, no Iêmen. É um lugar completamente sem lei, sem escolas, ruas asfaltadas ou mesmo um abastecimento de água satisfatório. Na verdade, o país inteiro é seco como um osso. Sana deve ser a primeira capital do planeta a realmente ficar sem água.

— Mas não sem militantes islâmicos — disse Gabriel.

— Não — concordou Carter. — O Iêmen está a caminho de se tornar o próximo Afeganistão. Por ora, nos limitamos a lançar um ocasional míssil Hellfire por sobre a fronteira. Mas é só uma questão de tempo até botarmos os pés na lama e drenar o pântano. — Olhou para Gabriel e acrescentou: — Existem mesmo pântanos no Iêmen... uma série de brejos ao longo da costa que produzem mosquitos da malária do tamanho de falcões. Meu Deus, que lugar infernal!

Carter caminhou em silêncio por um momento com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça baixa. Gabriel se desviou da raiz de uma árvore que tinha arrebentado a calçada e perguntou como Rashid conseguia se comunicar com sua rede estando num local tão remoto.

— Nós ainda não sabemos — respondeu Carter. — Imaginamos que esteja usando aldeões locais para mandar mensagens para Sana ou talvez através do golfo de Aden para a Somália, onde ele criou uma conexão com o grupo terrorista de Al-Shabaab. Mas de uma coisa estamos certos: Rashid não usa telefone nem satélite ou algo do tipo. Ele aprendeu bastante sobre a nossa forma de agir enquanto estava na nossa folha de pagamento. E agora que passou para o outro lado, usa bem esse conhecimento.

— Imagino que vocês não lhe tenham ensinado também como executar uma série de ataques sincronizados em três países da Europa.

— Rashid é um talentoso olheiro e fonte de inspiração, mas não é uma mente brilhante quando se trata de operações. Com certeza está trabalhando com alguém muito competente. Se eu fosse dar um palpite, diria que os três ataques na Europa foram coordenados por alguém que se iniciou em...

— Bagdá — completou Gabriel.

— O MIT do terrorismo — acrescentou Carter, aquiescendo. — Todos os que se formam são PhD e fazem estágio em confrontos com a Agência e o Exército dos Estados Unidos.

— Mais uma razão para vocês lidarem com eles.

Carter não respondeu.

— Por que nós, Adrian?

— Porque o aparato contraterrorista dos Estados Unidos ficou tão grande que mal conseguimos nos mexer. Segundo o último levantamento, nós estávamos com mais de oitocentos mil operadores em nível de confidencialidade. Oitocentos mil — repetiu Carter, incrédulo e mesmo assim não conseguimos evitar que um simples militante islâmico plante uma bomba no coração da Times Square. Nossa capacidade de coletar informações é incomparável, mas somos redundantes demais para sermos eficientes. Nós somos norte-americanos, afinal, e quando nos vemos diante de uma ameaça despejamos rios de dinheiro. Às vezes é melhor ser pequeno e impiedoso. Como vocês.

— Nós avisamos sobre os perigos da reorganização.

— E nós deveríamos ter prestado atenção. Mas nosso gigantismo é apenas parte do problema. Depois do 11 de Setembro deixamos de lado a cautela e passamos a fazer o que quer que fosse necessário ao lidar com o inimigo. Agora tentamos não chamar o inimigo pelo nome, para não ofendê-lo. Em Langley, atividades contraterroristas são consideradas politicamente arriscadas. Os melhores agentes do Serviço Clandestino estão aprendendo a falar mandarim.

— Os chineses não estão tramando para matar norte-americanos.

— Mas Rashid, sim — replicou Carter ?, e nossa inteligência supõe que está planejando algo grandioso num futuro próximo. Nós temos que romper essa rede e precisamos fazer isso rapidamente. Mas não podemos fazer nada se formos obrigados a operar sob as novas regras impostas pelo presidente Esperança e seu bem-intencionado cúmplice James McKenna.

— Então você quer que façamos o trabalho sujo para vocês.

— Eu faria o mesmo por vocês. E não venha me falar que você não tem capacidade. O Escritório foi o primeiro serviço de inteligência pró-Ocidente a estabelecer uma unidade analítica dedicada ao movimento jihadista. Seus agentes foram também os primeiros a identificar Osama Bin Laden como um grande terrorista e os primeiros a tentar matá-lo. Se tivessem conseguido, é bem provável que o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido.

Eles chegaram à esquina da Rua 35. O quarteirão seguinte estava fechado ao tráfego por uma barreira. No outro lado, crianças da Holy Trinity School pulavam corda e jogavam bola na calçada, os gritos de alegria reverberando pelas fachadas dos edifícios ao redor. Era uma cena idílica, cheia de vida e encantamento, mas que deixava Carter visivelmente desconfortável.

— A segurança interna é um mito — falou, observando as crianças. — É uma história de ninar que contamos ao nosso povo para que todos se sintam seguros à noite. Apesar de nossos esforços e dos bilhões gastos, os Estados Unidos são em grande parte indefensáveis. A única maneira de evitar ataques em solo norte-americano é acabar com eles antes que cheguem a nossas fronteiras. Precisamos desmantelar suas redes e matar seus agentes.

— Matar Rashid al-Husseini pode não ser uma má ideia também.

— Nós adoraríamos — disse Carter. — Mas isso não vai ser possível enquanto não entrarmos em seu círculo interno.

Carter levou Gabriel pela Rua 35, em direção ao norte. Tirou o cachimbo do bolso do casaco e começou a enchê-lo de tabaco, distraído.

— Você vem lutando contra terroristas há mais tempo que qualquer um, Gabriel... sem contar Shamron, é claro. Você sabe como penetrar nas redes deles, algo que nunca foi o nosso forte, e sabe como virá-las ao avesso. Quero que você entre na rede de Rashid e a destrua. Quero que acabe com isso.

— Penetrar em redes jihadistas não é a mesma coisa que penetrar na Organização para a Libertação da Palestina. Eles são muito mais fechados e seus integrantes são bastante imunes a tentações terrenas.

— Uma rosa é uma rosa é uma rosa. E uma rede é uma rede é uma rede.

— E isso significa...?

— É claro que existem diferenças entre redes de terroristas jihadistas e palestinos, mas a estrutura básica é a mesma. Existem os estrategistas e os agentes de campo, pagadores e intendentes, mensageiros e esconderijos. E nos pontos onde todas essas peças se interceptam existe uma vulnerabilidade esperando para ser explorada por alguém inteligente como você.

Uma lufada de vento soprou a fumaça do cachimbo no rosto de Gabriel. Preparado com exclusividade para Carter por um tabaquista de Nova York, o fumo cheirava a folhas queimadas e cachorro molhado. Gabriel afastou a fumaça com a mão e perguntou:

— Como seria isso?

— Isso quer dizer que você vai aceitar?

— Não ? respondeu Gabriel quer dizer que gostaria de saber exatamente como seria.

— Você iria operar como uma base do Centro de Contraterrorismo, da mesma forma como operava a Unidade Bin Laden antes do 11 de Setembro, mas com uma diferença importante.

— O restante do Centro não vai saber que estou lá.

Carter assentiu.

— Todas as requisições de documentos vão ser feitas por mim e minha equipe. E quando chegar a hora de você entrar em ação, vou orientá-lo para garantir que não tropece em nenhuma operação em andamento da CIA e que eles não tropecem em você.

— Eu precisaria ver tudo o que você tem. Tudo, Adrian.

— Você terá acesso a todo o material de inteligência disponível do governo dos Estados Unidos, inclusive os arquivos referentes a Rashid e todas as interceptações da Agência Nacional de Segurança. Vai ter acesso também a todos os dados de inteligência sobre os três ataques que estão sendo enviados para nós pelas agências europeias. ? Carter fez uma pausa. ? Imagino que só o acesso a essas informações já seja tentador o bastante e faça você aceitar a missão. Afinal, suas relações com os europeus não andam muito boas no momento.

Gabriel não deu uma resposta direta.

— É material demais para examinar sozinho. Eu precisaria de ajuda.

— Você pode ter a ajuda de quem quiser, na medida do bom senso. Dada a natureza sensível da informação, vou precisar também de alguém da Agência espiando por cima do seu ombro. Alguém que conheça os seus modos perniciosos. Eu tenho uma candidata em mente.

— Onde ela está?

— Esperando num café na Wisconsin Avenue.

— Você é muito confiante, Adrian.

Carter parou de andar e verificou o cachimbo.

— Se quisesse apelar para sentimentalismo puro ? falou depois de um momento ?, eu faria você se lembrar da carnificina que presenciou na tarde de sexta-feira em Covent Garden e pediria para imaginar aquilo acontecendo muitas outras vezes. Mas não vou fazer isso, pois não seria profissional. Só vou dizer que Rashid tem um exército de mártires iguais a Farid Khan esperando para cumprir ordens, um exército que ele recrutou com minha ajuda. O Rashid é obra minha. Ele é fruto de um erro meu. E eu preciso destruí-lo antes que mais alguém morra.

— Talvez você ache difícil de acreditar, mas eu não tenho autonomia para dizer sim. Uzi teria que aprovar antes.

— Ele já aprovou. Assim como o seu primeiro-ministro.

— Suponho que você também tenha tido uma conversinha com Graham Seymour.

Carter aquiesceu.

— Por razões óbvias, Graham gostaria de se manter a par de seus progressos. Também quer que você avise com antecedência caso sua operação venha dar nas Ilhas Britânicas.

— Você me enganou, Adrian.

— Eu sou um espião ? replicou Carter, reacendendo o cachimbo. ? Mentir para mim é um hábito. Para você também. Agora você só precisa arranjar uma maneira de mentir para Rashid. Só tenha muito cuidado. Ele é muito bom, o nosso Rashid. Eu tenho cicatrizes que provam.


14

 

Georgetown, Washington

 

O café ficava no extremo norte de Georgetown, ao lado do Book Hill Park. Gabriel pediu um cappuccino no balcão e o levou até um pequeno jardim com os muros recobertos de trepadeiras. Três das mesas estavam na sombra; a quarta recebia diretamente os raios de sol. Uma mulher estava ali sentada, lendo um jornal. Usava um traje de corrida preto bem justo em sua silhueta esbelta e um par de tênis brancos imaculados. O cabelo louro na altura dos ombros tinha sido penteado para trás e preso num rabo de cavalo baixo. Óculos escuros escondiam seus olhos, mas não sua notável beleza. Ela os tirou quando Gabriel se aproximou e inclinou a cabeça para ser beijada. Parecia surpresa com o encontro.

— Eu achava que seria você ? disse Sarah Bancroft.

— Adrian não disse que eu vinha?

— Adrian trabalha à moda antiga ? respondeu com um aceno de mão. Ela tinha a voz e o jeito de falar de outra época. Era como ouvir uma personagem de um romance de Fitzgerald. ? Ele me mandou um e-mail criptografado ontem à noite dizendo para eu estar aqui às nove. Eu deveria ficar até dez e meia. Se ninguém aparecesse, eu deveria ir embora e voltar à vida normal. Que bom que você veio. Você sabe o quanto eu detesto levar bolo.

— Vejo que você trouxe material de leitura ? observou Gabriel, olhando para o jornal.

— Você desaprova?

— A diretriz do Escritório proíbe agentes de ler jornais em cafés. É óbvio demais. ? Fez uma pausa. ? Achei que nós tínhamos ensinado isso, Sarah.

— E ensinaram. Mas de vez em quando gosto de me comportar como uma pessoa normal. E uma pessoa normal às vezes acha agradável ler jornal num café numa manhã de outono ensolarada.

— Com uma Glock escondida nas costas.

— Graças a você, é minha companheira de todas as horas.

Sarah deu um sorriso melancólico. Filha de um rico executivo do Citibank, passara boa parte da infância na Europa, onde adquiriu uma educação europeia e aprendeu idiomas e impecáveis modos europeus. Voltou para os Estados Unidos para estudar em Dartmouth e, depois de passar um ano no prestigioso Instituto de Arte Courtland em Londres, se tornou a mulher mais jovem a ser PhD em história da arte em Harvard.

Mas foi a vida amorosa de Sarah Bancroft, não sua refinada formação, que a levou ao mundo da inteligência. Enquanto terminava sua tese, ela começou a sair com um jovem advogado chamado Ben Callahan, que teve o azar de estar a bordo do voo 175 da United Airlines na manhã do dia 11 de setembro de 2011. Ele conseguiu dar um telefonema antes de o avião mergulhar contra a Torre Sul do World Trade Center. A ligação foi para Sarah. Com a bênção de Adrian Carter e com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel a infiltrou no entourage de um bilionário saudita chamado Zizi al-Bakari numa ousada tentativa de encontrar um importante terrorista. Após o fim da operação, ela entrou para a CIA e foi designada para o Centro de Contraterrorismo. Desde então, manteve contato permanente com o Escritório e tinha trabalhado com Gabriel e sua equipe em inúmeras ocasiões. Até arranjara um namorado no Escritório, um assassino e agente de campo chamado Mikhail Abramov. Como não havia um anel em seu dedo, o relacionamento devia estar num ritmo mais lento do que ela esperava.

— Nós estamos indo e voltando já há um tempo — disse Sarah, como que lendo os pensamentos de Gabriel.

— E como estão no momento?

— Separados. Separados em definitivo.

— Eu avisei para não se envolver com um homem que mata pelo seu país.

— Você tinha razão, Gabriel. Você sempre tem razão.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não entrar nos detalhes sórdidos.

— Ele me disse que estava apaixonado por você.

— Ele me disse a mesma coisa. Engraçado, né?

— Ele magoou você?

— Acho que não consigo mais ser magoada.

Demorou um tempo até Sarah sorrir. Ela não estava sendo sincera; Gabriel podia notar.

— Você quer que eu converse com ele?

— Pelo amor de Deus, não. Eu sou perfeitamente capaz de ferrar minha vida por conta própria.

Ele passou por umas operações bem difíceis, Sarah. A última foi...

— Ele me contou tudo. Às vezes meu desejo é que ele não tivesse saído vivo dos Alpes.

— Você não está falando sério.

— Não — concordou ela de má vontade ?, mas me sinto bem falando isso.

— Talvez seja melhor assim. Você deveria encontrar alguém que não viva do outro lado do mundo. Alguém aqui de Washington.

— E o que eu vou responder quando me perguntar onde trabalho?

Gabriel não disse nada.

— Eu já não sou mais tão jovem, sabe. Já estou com...

— Trinta e sete ? completou Gabriel.

— O que significa que estou me aproximando rapidamente do status de senhora ? continuou Sarah, franzindo a testa. ? Imagino que o melhor que posso esperar a essa altura é um casamento confortável e sem paixão com um homem rico e mais velho. Se eu tiver sorte, ele vai me deixar ter um ou dois filhos, que vão ser criados só por mim porque ele não vai se interessar por eles.

— Com certeza não pode ser assim tão deprimente.

Ela deu de ombros e bebericou o café.

— Como vão as coisas entre você e Chiara?

— Perfeitas ? respondeu Gabriel.

— Eu temia que você respondesse isso ? murmurou Sarah com malícia.

— Sarah...

— Não se preocupe, Gabriel, eu já superei você há muito tempo.

Duas mulheres de meia-idade entraram no jardim e sentaram-se do outro lado. Sarah inclinou-se para a frente e fingiu intimidade, perguntando em francês o que Gabriel fazia na cidade. Ele respondeu indicando a primeira página do jornal dela.

— Desde quando a nossa crescente dívida nacional é um problema para a inteligência de Israel? — perguntou em tom brincalhão.

Gabriel apontou para a matéria da primeira página sobre o debate furioso dentro da comunidade de inteligência norte-americana relacionado à procedência dos três ataques na Europa.

— Como você acabou se envolvendo com isso?

— Chiara e eu resolvemos dar uma volta em Covent Garden na última sexta-feira à tarde antes do almoço.

A expressão de Sarah se tornou sombria.

— Então os relatos sobre um homem não identificado sacando uma arma poucos segundos antes do ataque...

— São verdadeiros — completou Gabriel. — Eu poderia ter salvado dezoito vidas. Infelizmente, os britânicos não quiseram saber disso.

— E quem você acha que foi o responsável?

— Você é a especialista em terrorismo, Sarah. Diga você.

— É possível que os ataques tenham sido planejados pela antiga liderança da Al-Qaeda no Paquistão. Mas na minha opinião estamos lidando com uma rede nova.

— Liderada por quem?

— Alguém com o carisma de Bin Laden que conseguiu recrutar seus agentes na Europa e recorrer a células terroristas de outros grupos.

— Candidatos?

— Apenas um. Rashid al-Husseini.

— Por que Paris?

— O veto ao véu facial.

— Copenhague?

— Ainda estão irritados com as caricaturas.

— E Londres?

— Londres está sempre ao alcance. Londres pode ser atacada à vontade.

— Nada mau para uma ex-curadora da Phillips Collection.

— Eu sou uma historiadora de arte, Gabriel. Sei ligar os pontos. Posso ligar alguns mais, se quiser.

— Por favor.

— Sua presença em Washington significa que os boatos são verdadeiros.

— Que boatos são esses?

Os que dizem que Rashid esteve na folha de pagamento da Agência depois do 11 de Setembro. Os que falam de um bom plano que deu muito errado. Adrian acreditou em Rashid, e Rashid retribuiu essa confiança construindo uma rede terrorista debaixo do nosso nariz. Agora imagino que Adrian queira que você resolva o problema para ele... extraoficialmente, é claro.

— Existe alguma outra forma?

— Não que envolva você. Mas o que isso tem a ver comigo?

— Adrian precisa de alguém para me espionar. Você era a candidata mais óbvia. ? Gabriel hesitou, depois falou: ? Mas se você acha que é inadequado...

— Por causa de Mikhail?

— É possível que vocês dois voltem a trabalhar juntos, Sarah. Eu não gostaria que relacionamentos pessoais interferissem no bom funcionamento da equipe.

— Desde quando sua equipe funciona tão bem? Vocês são israelenses. Estão sempre brigando uns com os outros.

— Mas nunca permitimos que relacionamentos pessoais influenciem em decisões operacionais.

— Eu sou uma profissional. Em vista da nossa história juntos, acho que não preciso lembrar isso a você.

— Não mesmo.

— Então por onde nós começamos?

— Precisamos conhecer Rashid um pouco melhor.

— E como vamos fazer isso?

— Lendo os documentos da Agência.

— Mas estão cheios de mentiras.

— É verdade. Mas essas mentiras são como camadas de tinta numa tela. Se as descascarmos, acabaremos olhando direto para a verdade.

— Ninguém fala desse jeito em Langley.

— Eu sei ? disse Gabriel. ? Se falassem, eu ainda estaria na Cornualha trabalhando num Ticiano.


15

Georgetown, Washington

 

— Gabriel e Sarah fixaram-se na casa da N Street às nove da manhã seguinte. A primeira pilha de documentos chegou uma hora depois ? seis contêineres de aço inoxidável, todos trancados com fechaduras digitais. Por alguma razão insondável, Carter só confiara as combinações a Sarah.

— Regras são regras ? explicou ele ?, e as regras da Agência dizem que funcionários de serviços de inteligência estrangeiros nunca têm acesso a combinações de receptáculos de documentos.

Quando Gabriel lembrou que estavam deixando ele ver os podres da Agência, Carter continuou inflexível. Tecnicamente falando, o material deveria ficar em posse de Sarah. As anotações deveriam ser mínimas e cópias eram proibidas. Carter retirou ele mesmo o fax e requisitou o celular de Gabriel — um pedido que Gabriel declinou com educação. O telefone havia sido fornecido pelo Escritório e possuía diversos recursos não disponíveis comercialmente. Na verdade, ele tinha usado o celular na noite anterior para varrer a casa em busca de dispositivos de escuta. E tinha encontrado quatro. Era óbvio que a cooperação entre os serviços ia só até certo ponto.

Os primeiros arquivos concentravam-se no tempo de Rashid nos Estados Unidos antes do 11 de Setembro e suas conexões, nefastas ou benignas, até o atentado em si. A maior parte do material havia sido gerada pelo insípido rival de Langley, o FBI, e compartilhada durante o pouco tempo em que, por ordem presidencial, as duas agências deveriam estar cooperando. Revelavam que Rashid al-Husseini surgiu no radar do Bureau semanas depois de sua chegada a San Diego e que foi alvo de uma vigilância meio desinteressada. Havia transcrições de gravações aprovadas pela Justiça de seus telefonemas e fotos tiradas durante o breve período em que os escritórios de San Diego e Washington tinham tempo e pessoal para segui-lo. Havia também uma cópia de um relatório confidencial entre agências que oficialmente eximia Rashid de qualquer papel no atentado de 11 de setembro. Para Gabriel, era um trabalho de extrema ingenuidade que preferiu retratar o clérigo sob o ângulo mais favorável possível. Gabriel acreditava que se podia conhecer um homem por suas companhias e já tinha estado próximo o suficiente de redes terroristas para reconhecer um agente quando avistava um. Era quase certo que Rashid al-Husseini se tratava de um mensageiro ou um hospedeiro. Na melhor das hipóteses, era um companheiro de viagem. E, na opinião de Gabriel, companheiros de viagem dificilmente poderiam ser aceitos por serviços de inteligência como agentes pagos com alguma influência. Deveriam ser vigiados e, se necessário, tratados com rispidez.

A segunda leva de documentos continha as transcrições e as gravações do interrogatório de Rashid feito pela CIA, seguidas pelos fragmentos da malfadada operação em que ele desempenhou o papel principal. O material terminava com uma análise desesperada da ação, escrita nos dias que se seguiram à deserção em Meca. A operação, dizia, tinha sido mal concebida desde o início. Grande parte da culpa foi jogada sobre os ombros de Adrian Carter, acusado de supervisionar de forma negligente. Anexada, havia uma avaliação do próprio Carter, também bastante rigorosa. Prevendo um tiro pela culatra, ele recomendava uma detalhada revisão dos contatos de Rashid nos Estados Unidos e na Europa. O diretor de Carter rejeitou essa diretriz. A Agência estava atarefada demais para perseguir fantasmas, disse o diretor. Rashid estava de volta ao Iêmen, que era sua terra. Boa estadia.

— Não foi exatamente um bom momento da Agência — comentou Sarah naquela noite, durante um intervalo na tarefa. — Só de tentar usá-lo já fomos tolos.

— A Agência começou com uma suposição correta, de que Rashid era mau, mas em algum ponto caiu no feitiço dele. Não é difícil entender como isso aconteceu. Rashid era muito convincente.

— Quase tão convincente quanto você.

— Mas eu não mando meus recrutas a ruas apinhadas para cometer assassinatos em massa.

— Não, você os manda a campos de batalha para esmagar seus inimigos.

— Não é tão bíblico assim.

— É, sim. Confie em mim, eu sei. — Ela olhou cansada para a pilha de arquivos. ? Nós ainda temos um monte de material para examinar e isso é só o começo. Vai chegar muita coisa ainda.

— Não se preocupe — disse Gabriel, sorrindo. — Nossa ajuda está a caminho.

 

Eles chegaram ao Aeroporto Dulles no fim da tarde seguinte com nomes e passaportes falsos. Uma equipe da Agência passou todos rapidamente pela alfândega e os conduziu até uma frota de Escalades blindados que seguiriam para Washington. Segundo instruções de Adrian, os Escalades partiram de Dulles em intervalos de quinze minutos. Por essa razão, a mais renomada equipe de agentes de inteligência do mundo ocupou a casa da N Street naquela noite sem que os vizinhos tomassem conhecimento.

Chiara chegou primeiro, seguida logo depois por uma especialista em terrorismo do Escritório chamada Dina Sarid. Miúda e de cabelos escuros, Dina conhecia muito bem os horrores da violência extremista. Ela estava na Dizengoff Street em Tel Aviv no dia 19 de outubro de 1994, quando um homem-bomba do Hamas transformou o ônibus número 5 num caixão para 21 pessoas. A mãe e duas de suas irmãs estavam entre os mortos; Dina ficou gravemente ferida e ainda hoje mancava um pouco. Depois de se recuperar, jurou derrotar os terroristas não com a força, mas com o cérebro. Como um banco de dados humano, era capaz de recitar hora, local, executores e número de baixas de todos os atos terroristas cometidos contra Israel e alvos ocidentais. Dina dissera uma vez a Gabriel que sabia mais sobre os terroristas do que eles sabiam sobre si mesmos. E Gabriel acreditava nela.

Em seguida chegou um homem já no fim da meia-idade chamado Eli Lavon. Pequeno e desalinhado, com ralos cabelos cinzentos e inteligentes olhos castanhos, Lavon era considerado o melhor agente de vigilância urbana que o Escritório já produzira. Dotado de uma invisibilidade natural, ele parecia ser oprimido pelo mundo. Na verdade, era um predador que podia seguir um agente de inteligência altamente qualificado ou um terrorista experiente em qualquer rua do mundo sem despertar a menor suspeita. A ligação de Lavon com o Escritório, assim como a de Gabriel, era tênue. Ele continuava lecionando na Academia — nenhum recruta do Escritório era mandado a campo sem antes passar algumas horas com Lavon ?, mas hoje em dia seu trabalho principal era na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde ensinava arqueologia. Com apenas um punhado de cerâmica quebrada, Eli Lavon conseguia desvendar os segredos mais obscuros de uma aldeia da Idade do Bronze. E com apenas umas poucas pistas podia fazer o mesmo com uma rede terrorista.

Yaakov Rossman, um veterano administrador de agentes com o rosto marcado por cicatrizes, apareceu depois, seguido dos dois ajudantes de campo multifuncionais Oded e Mordecai. Então foi a vez de Rimona Stern, ex-oficial de inteligência militar que agora tratava de assuntos relacionados com o desmantelamento do programa nuclear do Irã. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, de cabelos cor de areia, Rimona era também sobrinha de Shamron. Gabriel a conhecia desde que ela era pequena — aliás, sua mais terna lembrança de Rimona era de uma destemida garotinha indo ladeira abaixo com seu patinete na frente da casa do tio famoso. Em seu largo quadril, no lado esquerdo, havia a cicatriz de um ferimento sofrido num tombo particularmente violento. Gabriel tinha feito o curativo; Gilah enxugou as lágrimas de Rimona. Shamron estava muito perturbado para oferecer qualquer ajuda. Único membro de sua família a sobreviver ao Holocausto, ele não conseguia ver o sofrimento de seus entes queridos.

Alguns minutos depois de Rimona, chegou Yossi Gavish. Alto, calvo e vestido com cotelê e tweed, Yossi era um alto funcionário da Pesquisa, que é como o Escritório se referia à sua divisão de análise. Nascido em Londres, lera os clássicos na faculdade de Ali Souls e falava hebreu com um pronunciado sotaque inglês. Tinha feito ainda um pouco de teatro — sua interpretação de lago ainda era lembrada com grande entusiasmo pelos críticos de Stratford — e era também um talentoso violoncelista. Gabriel ainda não explorara o talento musical de Yossi, mas sua habilidade como ator já havia se provado útil em mais de uma ocasião no campo. Em um café à beira-mar em St. Barts, uma garçonete ainda achava que ele fora apenas um sonho e a conciérge de um hotel em Genebra tinha jurado atirar nele assim que o visse.

Como sempre, Mikhail Abramov foi o último a chegar. Esguio e louro, com um rosto frágil e olhos glaciais, tinha imigrado para Israel vindo da Rússia ainda adolescente e entrado para a Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais de elite das Forças Armadas de Israel. Já descrito como “um Gabriel sem consciência”, tinha assassinado diversos líderes terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Sobrecarregado por duas pesadas malas cheias de aparatos eletrônicos, ele cumprimentou Sarah com um beijo nitidamente frígido. Eli Lavon mais tarde o definiria como o cumprimento mais frio desde que Shamron, durante os agradáveis dias do processo de paz, fora obrigado a apertar a mão de Yasser Arafat.

Conhecidos pelo codinome Barak, palavra hebraica para relâmpago, os nove homens e mulheres da equipe de Gabriel apresentavam muitas idiossincrasias e muitas tradições. Entre as idiossincrasias havia uma disputa infantil para decidir a disposição das acomodações. Entre as tradições havia um banquete na primeira noite de planejamento, preparado por Chiara. O da N Street foi mais pesaroso do que o normal, pois jamais deveria ter acontecido. Como todos os outros no King Saul Boulevard, a equipe tinha esperado que a operação contra o programa nuclear iraniano fosse a última missão de Gabriel. A informação viera de seu chefe apenas nominal, Uzi Navot, que não estava de todo descontente, e de Shamron, que estava aborrecido. “Eu não tive escolha a não ser deixá-lo livre”, disse Shamron depois de seu famoso encontro com Gabriel no alto dos penhascos da Cornualha. “Desta vez é para sempre.”

Poderia ter sido para sempre se Gabriel não tivesse avistado Farid Khan andando pela Wellington Street com explosivos debaixo do casaco. Os homens e mulheres reunidos ao redor da mesa na sala de jantar entendiam o peso de Covent Garden sobre os ombros de Gabriel. Muitos anos antes, em outra época, sob outro nome, ele fracassara em evitar um atentado em Viena que alterou o curso de sua vida. Naquela ocasião, a bomba não estava escondida debaixo do casaco de um shahid, mas no chassi do carro do próprio agente. As vítimas não eram desconhecidos, mas entes queridos — sua esposa, Leah, e seu filho único, Dani. Leah vivia atualmente num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, em Jerusalém, aprisionada pela memória e com o corpo destruído pelo fogo. Tinha apenas uma vaga noção de que Dani estava enterrado não muito longe dela, no Monte das Oliveiras.

Os integrantes da equipe de Gabriel não mencionaram Leah e Dani naquela noite nem abordaram muito os acontecimentos que levaram Gabriel a ser uma testemunha involuntária do martírio de Farid Khan. Preferiram falar de amigos e família, de livros lidos e filmes assistidos e das notáveis mudanças que atualmente varriam o mundo árabe. No Egito, o tirano finalmente tinha caído, desencadeando uma onda de protestos que ameaçava derrubar reis e ditadores que governavam a região havia gerações. Se as mudanças trariam mais segurança para Israel ou aumentariam o perigo era uma questão debatida com ardor dentro do Escritório e na mesa de jantar naquela noite. Yossi, otimista por natureza, acreditava que os árabes, se tivessem a oportunidade de se governar, não teriam mais ligação com os que desejam a guerra a Israel. Yaakov, que havia passado anos comandando espiões para combater regimes árabes hostis, declarou que Yossi estava delirando, como fazia quase todo mundo. Só Dina se recusou a dar um palpite, pois seus pensamentos concentravam-se nas caixas de documentos esperando na sala de estar. Havia um tique-taque em sua cabeça, pois ela acreditava que a cada minuto perdido os terroristas progrediam em seus planos. Os documentos eram a esperança de salvar vidas. Eram textos sagrados que continham segredos que só ela poderia decodificar.

Já era quase meia-noite quando o jantar afinal chegou ao fim, seguido pela tradicional discussão sobre quem limparia os pratos, quem lavaria e quem enxugaria. Depois de recusar a tarefa, Gabriel mostrou os documentos para Dina e, então, levou Chiara ao quarto dos dois, no andar de cima. Era no terceiro andar, com vista para o jardim dos fundos. As luzes de alerta para aeronaves no alto dos pináculos da Universidade de Georgetown piscavam suavemente à distância, uma lembrança de como a cidade era vulnerável a ataques aéreos.

— Imagino que existam lugares piores para se passar alguns dias — comentou Chiara. — Onde você colocou Mikhail e Sarah?

— O mais longe possível um do outro.

— Quais são as chances de essa operação juntar os dois outra vez?

— Mais ou menos as mesmas de o mundo árabe de repente reconhecer o nosso direito de existir.

— Está tão ruim assim?

— Receio que sim. — Gabriel levantou a mala de Chiara e a depositou na ponta da cama, que afundou com o peso. — O que você trouxe aí?

— Gilah mandou algumas coisas pra você.

— Pedras?

— Comida. Você sabe como ela é. Sempre acha que você está magro demais.

— Como ela está?

— Agora que Ari não passa tanto tempo em casa parece que está muito melhor.

— Ele finalmente se inscreveu naquele curso de cerâmica que sempre quis fazer?

— Na verdade, ele voltou para o King Saul Boulevard.

— Para quê?

— Uzi achou que ele precisava de algo para se manter ocupado, por isso o nomeou seu coordenador operacional. Você precisa ligar para ele amanhã logo cedo. ? Chiara beijou-o na bochecha e sorriu. ? Bem-vindo ao lar, querido.


16

Georgetown Washington

 

Uma verdade incontestável sobre redes terroristas é que juntar as peças não é tão difícil quanto se imagina. Mas assim que o idealizador puxa o gatilho e realiza o primeiro ataque, perde-se o elemento-surpresa e a rede se expõe. Nos primeiros anos do conflito contra o terrorismo — quando o Setembro Negro e Carlos, o Chacal, corriam soltos, auxiliados por idiotas europeus esquerdistas como o grupo Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas ?, os profissionais de inteligência empregavam basicamente vigilância física, grampos de escuta e o bom e velho trabalho detetivesco para identificar os membros de uma célula. Agora, com o advento da internet e das conexões via satélite, os contornos do campo de batalha tinham sido alterados. A internet deu aos terroristas uma poderosa ferramenta para organizar, inspirar e se comunicar, mas propiciou também aos serviços de inteligência uma maneira de rastrear cada um de seus movimentos. O ciberespaço era como uma floresta no inverno: os terroristas podiam se esconder por algum tempo, elaborando planos e organizando forças, mas não podiam sair sem deixar pegadas na neve. O desafio para os agentes do contraterrorismo era seguir as pegadas certas, pois a floresta virtual era um lugar escuro e confuso onde se podia vagar sem rumo enquanto inocentes morriam.

Gabriel e sua equipe entraram ali com todo o cuidado na manhã seguinte quando a inteligência britânica, cumprindo o acordo, compartilhou com seus parceiros norte-americanos os resultados preliminares do inquérito do atentado em Covent Garden. No material estavam o conteúdo dos computadores da casa e do local de trabalho de Farid Khan, uma cópia de todos os números digitados em seu celular e uma lista de conhecidos extremistas islâmicos que havia encontrado quando era integrante dos grupos de Hizb ut-Tahrir e Al-Muhajiroun. Havia ainda uma cópia da fita suicida, além de centenas de imagens estáticas captadas pelas CCTV durante seus últimos meses de vida. A última foto o mostrava em Covent Garden, os braços erguidos acima da cabeça, o fogo irrompendo do cinto de explosivos ao redor da cintura. Deitado no chão a poucos metros de distância, protegido por dois homens, estava Gabriel. Ao ampliar a foto, foi possível ver a silhueta de uma arma em sua mão esquerda.

Carter havia distribuído o material para o Centro de Contraterrorismo em Langley e para a Agência Nacional de Segurança, a ANS, em Fort Meade, Maryland. Depois, sem o conhecimento de ambos, entregou uma terceira cópia à casa da N Street. No dia seguinte, deixou um pacote muito semelhante vindo da Dinamarca, mas só uma semana depois chegou o material de Paris.

— Os franceses ainda não perceberam que estamos todos juntos nessa — disse Carter. — Eles veem o ataque como uma falha do nosso sistema de inteligência, o que significa que com certeza só vamos saber parte da história.

Gabriel e sua equipe examinaram o material o mais rápido possível, mas com a paciência e a atenção aos detalhes que a tarefa exigia. Por instinto, Gabriel recomendou que abordassem o caso como se fosse uma enorme tela que tivesse sofrido grandes danos.

— Não fiquem à distância tentando visualizar tudo ao mesmo tempo — alertou. — Isso só vai enlouquecer vocês. Sigam devagar. Concentrem-se nos pequenos detalhes: uma mão, um olho, a bainha de uma vestimenta, um único fio correndo por cada um dos três ataques. Talvez vocês não vejam no começo, mas está lá, garanto.

Com a ajuda da ANS e dos coletores de dados do governo que trabalhavam em descaracterizados prédios de escritórios que margeavam a rodovia interestadual em torno de Washington, a equipe mergulhou na memória de grandes computadores e servidores espalhados por todo o mundo. Números telefônicos gerando números telefônicos, contas de e-mail gerando contas de e-mail, nomes gerando nomes. Leram milhares de mensagens instantâneas em dezenas de idiomas. Examinavam históricos de navegação à procura de planos; fotografias, à procura de possíveis alvos; históricos de busca, à procura de desejos secretos e paixões proibidas.

De forma gradual, o contorno tênue de uma rede terrorista começou a tomar forma. Era dispersa e difusa — o nome de um possível agente em Lyon; o endereço de um possível esconderijo em Malmö; um número telefônico em Karachi; um site de origem incerta, oferecendo downloads de vídeos de atentados e decapitações, a pornografia do mundo jihadista. Acreditando lidar com a CIA, serviços de inteligência pró-ocidentais forneceram material que normalmente teriam retido. Assim como a polícia secreta do mundo islâmico. Em pouco tempo, as paredes da sala estavam cobertas com uma estonteante matriz de informações. Eli Lavon dizia que era como olhar o céu guiado por um mapa estelar: agradável, mas pouco produtivo quando vidas estavam em perigo. Em algum lugar ali havia um princípio organizador, algo que orientava os terroristas. Rashid, o clérigo carismático, havia construído a rede com sua persuasão, porém alguém mais o havia instruído para executar três ataques em três cidades europeias, cada um deles num minuto preciso. Não era um amador, esse homem. Era um mestre do terror.

Descobrir quem era esse monstro tornou-se a obsessão de Dina. Sarah, Chiara e Eli Lavon trabalhavam sem cessar a seu lado, enquanto Gabriel se contentava em fazer pequenas tarefas e levar e trazer mensagens. Duas vezes por dia, Dina passava para ele uma lista de perguntas que exigiam respostas urgentes. Às vezes Gabriel ia até a embaixada de Israel na zona noroeste de Washington e as transmitia a Shamron por uma linha segura. Outras vezes, as passava para Adrian Carter, que fazia então uma peregrinação até Fort Meade para uma conversa com os coletores de dados. Na noite de Ação de Graças, enquanto um ar de desolação pairava sobre Georgetown, Carter convocou Gabriel para ir a um café na Rua 35 para entregar um volumoso pacote de material.

— Aonde Dina vai chegar? — perguntou Carter, tirando a tampa de um copo de café que não tinha a intenção de tomar.

— Nem eu sei ao certo — respondeu Gabriel. — Ela tem sua metodologia própria. Eu só tento não ficar no caminho.

— Ela está nos vencendo, sabe? Os serviços de inteligência dos Estados Unidos têm duzentos analistas tentando decifrar esse caso e estão sendo vencidos por uma única mulher.

— Isso é porque ela sabe ao certo o que vai acontecer se não os derrotarmos. E parece que ela não precisa dormir.

— Ela tem alguma teoria sobre quem poderia ser?

— Ela tem a sensação de que o conhece.

— Pessoalmente?

— Com Dina tudo é sempre pessoal, Adrian. Por isso ela é tão boa no que faz.

Embora Gabriel não admitisse, o caso tinha se tornado pessoal para ele também. Quando não estava na embaixada ou em seus encontros com Carter, em geral ele podia ser encontrado no “Rashidistão”, que era como a equipe se referia agora à apinhada biblioteca da casa da N Street. Fotografias do clérigo recobriam as quatro paredes. Organizadas em ordem cronológica, elas mapeavam sua improvável ascensão de um obscuro pregador local em San Diego até líder de uma rede terrorista do jihad. Sua aparência tinha mudado pouco durante esse tempo — a mesma barba rala, os mesmos óculos de intelectual, a mesma expressão benevolente nos tranquilos olhos castanhos. Não parecia um homem capaz de executar um assassinato em massa nem mesmo alguém que poderia inspirar esse tipo de ação. Gabriel não estava surpreso: já havia sido torturado por homens com mãos de sacerdotes e uma vez matara um terrorista palestino que tinha rosto de criança. Mesmo agora, mais de vinte anos depois, Gabriel lutava para conectar a meiguice das feições sem vida do homem à espantosa quantidade de sangue em suas mãos.

O maior recurso de Rashid não era sua aparência banal, mas sua voz. Gabriel ouvia os sermões de Rashid — tanto em árabe como em seu inglês norte-americano coloquial — e as muitas entrevistas reflexivas que ele dera à imprensa depois do 11 de Setembro. Mais que tudo, ele analisava as gravações de Rashid fazendo jogos intelectuais com os interrogadores da CIA. Rashid era parte poeta, parte pregador, parte instrutor do jihad. Alertava os norte-americanos de que a demografia pesava de forma decisiva a favor de seus inimigos, que o mundo islâmico era jovem e estava crescendo, fervilhante com uma poderosa mistura de ira e humilhação. “Se algo não for feito para alterar a equação, meus caros amigos, toda uma geração será perdida para o jihad.” Os Estados Unidos precisavam era de uma ponte para o mundo muçulmano — e Rashid al-Husseini se oferecia para desempenhar esse papel.

Cansado da insidiosa presença de Rashid, o restante da equipe insistia para que Gabriel mantivesse a porta da biblioteca bem fechada sempre que escutava as gravações. Porém, tarde da noite, quando a maioria dos outros estava dormindo, ele desobedecia às ordens, nem que fosse para aliviar o sentimento de claustrofobia produzido pelo som da voz de Rashid. Invariavelmente, encontrava Dina olhando para o quebra-cabeça disposto nas paredes da sala de estar.

— Vá dormir, Dina — dizia.

— Vou dormir quando você for — respondia ela.

— Na primeira sexta-feira de dezembro, quando os flocos de neve embranqueciam as ruas de Georgetown, Gabriel ouvia mais uma vez as prestações de contas finais com seus operadores da Agência. Era a noite antes de sua deserção. Ele parecia mais excitado do que o normal e com uma leve ansiedade. No encerramento do encontro, passou a um agente o nome de um imame em Oslo que, na opinião de Rashid, estava levantando dinheiro para a resistência no Iraque.

— Eles não são a resistência, são terroristas — disse o homem da CIA de forma categórica.

— Me desculpe, Bill — replicou Rashid, usando o pseudônimo do agente ?, mas às vezes eu acho difícil me lembrar de que lado estou.

Gabriel desligou o computador e saiu em silêncio para a sala. Dina encontrava-se em silêncio diante de sua matriz, esfregando a perna no ponto que sempre doía quando ela estava cansada.

— Vá dormir, Dina — disse Gabriel.

— Esta noite, não — respondeu ela.

— Você o pegou?

— Acho que sim.

— Quem é?

— É Malik — respondeu com calma. — E que Deus tenha piedade de todos nós.


17

Georgetown, Washington

 

Passavam alguns minutos das duas da manhã, uma hora terrível, como disse uma vez Shamron, quando esquemas brilhantes raramente são elaborados. Gabriel sugeriu que esperassem até o dia clarear, mas o tique-taque na cabeça de Dina já estava alto demais. Foi tirar os outros da cama e andou ansiosa pela sala enquanto esperava o café ficar pronto. Quando ela por fim falou, o tom era urgente mas respeitoso. Malik, o mestre do terror, merecia.

Começou seu relato lembrando à equipe a linhagem de Malik — uma linhagem que só tinha um resultado possível. Descendente do clã Al-Zubair — uma família que misturava palestinos e sírios, original da aldeia de Abu Gosh, na fronteira ocidental de Jerusalém ?, tinha nascido no campo de refugiados de Zarqa, na Jordânia. Zarqa era um lugar desgraçado, mesmo para os deploráveis padrões dos campos de refugiados, propício para o extremismo islâmico. Jovem inteligente mas sem rumo, Malik passou muito tempo na mesquita de Al-Falah. Lá, encantou-se com um incendiário imame salafista que o conduziu ao Movimento de Resistência Islâmico, mais conhecido como Hamas. Malik entrou para o braço armado do grupo, as Brigadas Izzaddin al-Qassam, e estudou as técnicas terroristas com alguns dos mais mortais praticantes do ramo. Líder natural e habilidoso organizador, logo subiu na hierarquia e, por ocasião da Segunda Intifada, estava entre os principais terroristas do Hamas. Da segurança do campo de Zarqa, ele planejou alguns dos ataques mais fatais do período, inclusive um atentado suicida a um clube noturno em Tel Aviv que ceifou 33 vidas.

— Depois desse ataque, o primeiro-ministro assinou uma ordem autorizando o assassinato de Malik — disse Dina. — Malik se escondeu no campo de Zarqa e planejou o que seria sua maior investida até então: um atentado à Muralha Ocidental. Felizmente, conseguimos prender três shahids antes que alcançassem seu alvo. Acredita-se que tenha sido o único fracasso de Malik.

No verão de 2004, continuou Dina, ficou claro que o conflito entre Israel e Palestina era um palco pequeno demais para Malik. Inspirado pelo 11 de Setembro, ele fugiu do campo e, disfarçado de mulher, viajou para Amã a fim de se encontrar com um recrutador da Al-Qaeda. Depois de recitar o bayat, o voto pessoal de lealdade a Osama Bin Laden, Malik cruzou de forma clandestina a fronteira com a Síria. Seis semanas depois, entrou no Iraque.

— Malik era bem mais sofisticado que os outros integrantes da Al-Qaeda no Iraque — explicou Dina. — Ele passou anos aperfeiçoando suas técnicas contra as mais formidáveis forças antiterroristas do mundo. Não era apenas perito na fabricação de bombas, mas sabia como infiltrar seus shahids através dos esquemas de segurança mais complexos. Acredita-se que foi a mente por trás de alguns dos mais letais e espetaculares ataques dos rebeldes. Sua maior façanha foi uma onda de atentados a bomba de um dia no bairro xiita de Bagdá que matou mais de duzentas pessoas.

O último ataque de Malik no Iraque foi um bombardeio a uma mesquita xiita que assassinou cinquenta fiéis. Àquela altura, ele era o alvo de uma operação de busca maciça conduzida pela Força-Tarefa 6-26, uma unidade conjunta de inteligência e de operações especiais dos Estados Unidos. Dez dias depois do atentado, a força-tarefa soube que Malik estava num esconderijo a 15 quilômetros ao norte de Bagdá, junto com duas outras importantes figuras da Al-Qaeda. Naquela noite, jatos F-16 norte-americanos atacaram a casa com dois mísseis guiados por laser, mas foram descobertos apenas dois mortos entre os escombros. Nenhum pertencia a Malik al-Zubair.

— Aparentemente, ele fugiu da casa minutos antes de as bombas caírem — explicou Dina. — Mais tarde, ele falou a seus companheiros que Alá o instruíra a sair. O incidente só reafirmou sua crença em que havia sido escolhido por Deus para fazer coisas grandiosas.

Foi então que Malik achou que tinha chegado o momento de se internacionalizar. Depois de desenvolver um gosto por matar norte-americanos no Iraque, queria matá-los em seu país, por isso viajou para o Paquistão em busca de apoio financeiro da linha de frente da Al-Qaeda. Bin Laden ouviu com toda a atenção. Depois mandou Malik fazer as malas.

— Na verdade — logo acrescentou Dina ?, parece que Ayman al-Zawahiri esteve por trás da decisão de despachar Malik com as mãos abanando. O egípcio tinha diversos esquemas em andamento contra o Ocidente e não queria ser ameaçado por um arrivista palestino de Zarqa.

— Então Malik foi para o Iêmen e ofereceu seus serviços a Rashid? — perguntou Gabriel.

— Exato.

— Provas — questionou Gabriel. — Onde estão as provas?

— Eu sou uma analista de inteligência — disse Dina sem hesitar. — Raramente desfruto do luxo de provas absolutas. O que estou oferecendo são conjecturas, baseadas num conjunto de fatos pertinentes.

— Por exemplo?

— Damasco. No outono de 2008, o Escritório obteve uma informação de um espião dentro da inteligência síria de que Malik estava escondido lá, movimentando-se constantemente por diversos esconderijos de propriedade de vários membros do clã Al-Zubair. Instado por Shamron, o primeiro-ministro nos autorizou a começar a planejar a morte de Malik, há muito esperada. Uzi ainda era o chefe de Operações Especiais na época e despachou uma equipe de agentes de campo para Damasco... uma equipe que incluía um tal de Mikhail Abramov — acrescentou Dina, com um olhar na direção dele. — Em poucos dias, eles estavam com Malik sob vigilância total.

— Continue, Dina.

— Não era fácil seguir Malik, corno Mikhail pode confirmar. Mudava de aparência a toda hora, bigode e barba, óculos, chapéus, roupas, até a maneira de andar, mas a equipe não o perdeu. E no dia 23 de outubro, tarde da noite, eles viram Malik entrando no apartamento de um homem chamado Kemel Arwish. Arwish gostava de se mostrar como um moderado ocidentalizado que queria arrastar seu povo chorando e esperneando para o século XXI. Na verdade, era um islamista que chapinhava na periferia da Al-Qaeda e de seus aliados. Sua capacidade de viajar entre o Oriente Médio e o Ocidente sem despertar suspeitas o tornou valioso para levar mensagens e executar pequenas tarefas. — Dina olhou diretamente para Gabriel. — Corno você passou um bom tempo se familiarizando com os arquivos da CIA sobre Rashid, imagino que saiba o nome e o endereço de Kemel.

— Rashid participou de um jantar no apartamento de Kernel Arwish em 2004, quando foi para Damasco em nome da CIA — disse Gabriel. — Depois falou a seu contato da Agência que ele e Arwish tinham discutido muitas ideias interessantes sobre como sufocar o jihad.

— Se você acredita...

— Poderia ser apenas uma coincidência, Dina.

— Poderia, mas eu fui treinada para nunca acreditar em coincidências. E você também.

— O que aconteceu com a operação contra Malik?

— Ele escapou por entre nossos dedos, assim como escapou dos norte-americanos em Bagdá. Uzi pensou em colocar Arwish sob vigilância, mas isso acabou não sendo necessário. Três dias depois que Malik desapareceu, o corpo de Kernel Arwish foi encontrado no deserto do leste de Damasco. Teve uma morte relativamente indolor.

— Foi Malik quem mandou matá-lo?

— Talvez tenha sido Malik, talvez Rashid. Não importa muito. Arwish era peixe pequeno num grande lago. Fez o papel designado a ele. Entregou a mensagem e depois disso se tornou um risco.

Gabriel não pareceu convencido.

— O que mais você tem?

— O modelo dos cintos de explosivos usados pelos shahids em Paris, Copenhague e Londres. Eram idênticos ao tipo de cinto usado por Malik em seus ataques durante a Segunda Intifada, que por sua vez eram idênticos ao tipo usado por ele em Bagdá.

— O modelo não precisa ter vindo de Malik. Pode ter flutuado pelos esgotos do submundo jihadista há muitos anos.

— Malik não pode ter colocado esse modelo na internet para o mundo ver. A fiação, o detonador, o formato da carga e os estilhaços são inovadores. Malik está praticamente me dizendo que é ele.

Gabriel ficou em silêncio. Dina arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Mais algum comentário sobre coincidências?

Gabriel ignorou a observação.

— Onde ele foi localizado pela última vez?

— Houve alguns relatos não confirmados de que teria voltado para Zarqa e nosso chefe de base na Turquia ouviu um desagradável boato de que ele estaria vivendo com grande luxo em Istambul. O boato acabou se provando falso. No que diz respeito ao Escritório, Malik é um fantasma.

— Até mesmo um fantasma precisa de um passaporte.

— Acreditamos que ele use um passaporte sírio que lhe foi entregue pelo grande reformista em Damasco. Infelizmente, não temos ideia de que nome está usando ou de sua aparência. A última fotografia conhecida de Malik foi tirada mais de vinte anos atrás. É inútil.

— Existe alguém próximo a Malik que possamos encontrar? Um parente? Amigo? Um velho companheiro dos tempos do Hamas?

— Nós tentamos quando Malik nos bombardeava durante a Segunda Intifada — disse Dina, meneando a cabeça. — Não existe mais nenhum Al-Zubair em Israel ou nos territórios e os que estavam em Zarqa estão comprometidos demais com o conflito para colaborar conosco. — Ela fez uma pausa. — Mas talvez tenhamos uma coisa a nosso favor.

— E o que seria?

— Acho que a rede dele está ficando sem dinheiro.

— Quem disse?

Dina apontou para uma fotografia de Farid Khan, o homem-bomba de Covent Garden.

— Ele disse.


18

Georgetown, Washington


Nas últimas semanas de sua breve mas portentosa vida, Farid Khan, assassino de dezoito inocentes em sua terra natal, deixou diversas postagens desesperadas num fórum islâmico na internet lamentando o fato de não ter dinheiro suficiente para comprar um presente de casamento adequado para irmã. Aparentemente, ele estava considerando faltar à cerimônia para evitar constrangimento. Mas só havia um furo na história, apontado por Dina: Alá tinha abençoado a família Khan com quatro rapazes, mas nenhuma garota.

— Acredito que ele estivesse falando de um pagamento pelo martírio... um pagamento que Malik prometeu a ele. O Hamas funciona assim. O Hamas sempre cuida das necessidades financeiras póstumas de seus shahids.

— E ele chegou a conseguir o dinheiro?

— Uma semana antes do ataque ele fez uma última postagem dizendo que tinha conseguido. Afinal, ele poderia ir ao casamento, graças a Alá.

— Então Malik cumpriu a promessa.

— É verdade, mas só depois que o shahid ameaçou não dar continuidade à missão. A rede pode ter dinheiro disponível para financiar uma nova série de ataques, mas se Rashid e Malik vão se tornar os próximos Bin Laden e Zawahiri...

— Vão precisar de uma injeção de capital para trabalhar.

— Exato.

Gabriel deu um passo à frente e examinou a constelação de nomes, números de telefones e rostos. Depois virou-se para Lavon e perguntou:

— Quanto você acha que precisaria para criar um novo grupo terrorista do jihad com alcance global?

— Uns 20 milhões — respondeu Lavon. — Talvez um pouco mais se incluir acomodações e transporte de primeira classe.

— É bastante dinheiro, Eli.

— Terrorismo não é barato. — Lavon olhou Gabriel de soslaio. — Em que você está pensando?

— Estou pensando que temos duas escolhas. Podemos ficar aqui olhando para nossas matrizes de e-mails e telefones, esperando que uma informação valiosa caia no nosso colo, ou...

— Ou o quê?

— Ou podemos entrar para o negócio do terrorismo.

— E como faríamos isso?

— Dando o dinheiro a eles, Eli. Dando o dinheiro a eles.

 

Existem dois tipos básicos de inteligência, Gabriel lembrou a sua equipe, desnecessariamente. Existe a inteligência humana, ou “humint” no jargão do ramo, e a inteligência por sinais, também conhecida como “sinint”. Mas a capacidade de rastrear o fluxo de dinheiro em tempo real pelo sistema bancário global deu aos espiões uma poderosa terceira forma de inteligência às vezes chamada de “finint” ou inteligência financeira. Quase sempre a finint era bastante confiável. O dinheiro não mentia; apenas ia para onde era enviado. Mais ainda, o rastro eletrônico deixado por sua movimentação era previsível. Os terroristas islâmicos tinham aprendido há muito tempo como enganar as agências de espionagem ocidentais com falsos discursos, mas raramente investiam seus preciosos recursos financeiros para despistar. O dinheiro em geral ia para agentes reais engajados em planos reais. Siga o dinheiro, disse Gabriel, e ele irá iluminar as intenções de Rashid e Malik como as luzes de uma pista de aeroporto.

Mas como fazer isso? Essa era a questão sobre a qual Gabriel e sua equipe debateram durante o restante daquela longa noite sem dormir. Uma falsificação bem-elaborada? Não, insistia Gabriel, o mundo jihadista era fechado demais. Se a equipe tentasse inventar um rico benfeitor muçulmano do nada, os terroristas o colocariam na frente de uma câmera e o decapitariam com uma faca de pão. O dinheiro teria que vir de alguém com credenciais jihadistas incontestáveis, senão os terroristas jamais aceitariam. Mas onde encontrar alguém que transitasse dos dois lados? Alguém que fosse considerado autêntico pelos jihadistas e ainda assim disposto a trabalhar em prol de Israel e da inteligência norte-americana. Vamos falar com o Velho, sugeriu Yaakov. Provavelmente ele teria o nome na ponta da língua. Se não tivesse, sem dúvida saberia onde encontrar um.

Shamron tinha um nome. Murmurou-o no ouvido de Gabriel, por uma linha segura, poucos minutos depois das quatro da manhã no horário de Washington. Shamron vinha observando essa pessoa havia muitos anos. A abordagem seria bastante arriscada para Gabriel, tanto no campo pessoal quanto no profissional, mas Shamron tinha em seus arquivos muitas evidências relevantes de que o contato era confiável. Gabriel levou a ideia para Uzi Navot e em minutos Navot deu a autorização. E assim, com alguns rabiscos da ridícula caneta dourada de Navot, o retorno de Gabriel Allon, o filho teimoso da inteligência israelense, foi consumado.

Os integrantes da equipe Barak já haviam se envolvido em muitas discussões profundas ao longo dos anos, mas nenhuma se compararia à que ocorreu na casa da N Street naquela manhã de dezembro. Chiara descartou a ideia como uma perigosa invencionice; Dina considerou-a uma perda de tempo e de recursos preciosos que com certeza não daria em nada. Até Eli Lavon, o melhor amigo e aliado de Gabriel, se mostrou pessimista.

— Vai acabar sendo a nossa versão de Rashid — observou. — Vamos celebrar nossa esperteza. Depois, um dia, vai estourar tudo na nossa cara.

Para surpresa de todos, foi Sarah quem saiu em defesa de Gabriel. Sarah conhecia o candidato de Shamron bem melhor que os outros e acreditava no poder da redenção.

— Ela não saiu ao pai — disse Sarah. — Ela é diferente. Está tentando mudar as coisas.

— É verdade — concordou Dina ?, mas isso não significa que vai concordar em trabalhar conosco.

— A pior coisa que ela pode fazer é dizer não.

Pode ser — disse Lavon, de modo sombrio. — Ou talvez a pior coisa que ela possa fazer é dizer sim.


19

Volta Park, Washington

 

Gabriel esperou até o sol nascer para telefonar para Adrian Carter. Carter já estava a caminho de Langley, a primeira parada de um dia longo e cansativo. Incluía uma manhã de depoimentos a portas fechadas em Capitol Hill, um almoço ao meio-dia com uma delegação de espiões visitantes da Polônia e, por último, uma sessão de estratégia contraterrorista na Sala de Crise da Casa Branca, presidida por ninguém menos que James McKenna. Pouco depois das seis da noite, exausto e abatido, Carter desceu de seu Escalade blindado na Q Street e, na penumbra, entrou no Volta Park. Gabriel esperava num banco perto da quadra de tênis, a gola levantada protegendo do frio. Carter sentou a seu lado. O utilitário blindado estava parado com o motor ligado, discreto como uma baleia encalhada.

— Você se incomoda? — perguntou Carter, pegando o cachimbo e a bolsa de tabaco do casaco. — Foi uma tarde difícil.

— McKenna?

— Na verdade, o presidente resolveu nos agraciar com sua presença e receio que não se importou com o que eu tinha a dizer. — Carter parecia se concentrar ao máximo na tarefa de encher seu cachimbo. — Já tive o privilégio de ser repreendido por quatro presidentes durante meu serviço a este nosso grande país. Nunca foi uma experiência agradável.

— Qual é o problema?

— A ANS está interceptando muitas conversas sugerindo que outro ataque se aproxima. O presidente exigiu saber os detalhes precisos, inclusive a localização, dia e hora e a arma que será usada. Como não pude responder, ele ficou aborrecido. — Carter acendeu o cachimbo, iluminando por um breve momento sua expressão contraída. — Doze horas atrás, eu descartaria essas conversas, considerando-as insignificantes. Mas agora sei que estamos na mira de Malik al-Zubair e não me sinto tão otimista.

— Quando agentes do contraterrorismo se sentem otimistas, em geral morrem pessoas inocentes.

— Você é sempre assim tão animador?

— Tenho tido dias longos.

— Dina tem certeza de que é ele?

Gabriel listou os elementos básicos do argumento dela: a tentativa fracassada de conseguir apoio de Bin Laden, a reunião no apartamento de Kernel Arwish em Amã e o modelo exclusivo dos cintos de explosivos de Malik. Carter não exigiu mais provas. Já tinha agido no passado com base em muito menos e estava esperando por algo assim havia muito tempo. Malik era o tipo de terrorista que Carter mais temia. Malik e Rashid trabalhando juntos era o seu pior pesadelo ganhando vida.

— Oficialmente — disse ele ?, ninguém dentro do Centro de Contraterrorismo estabeleceu qualquer ligação entre Rashid e Malik. Dina chegou lá primeiro.

— Ela costuma fazer isso.

— E o que alguém faria com esse tipo de informação se estivesse no meu lugar? Entregaria para os analistas do Centro? Diria ao seu diretor e ao presidente?

— Não, guardaria a informação para si mesmo, para não arruinar minha operação.

— Que operação?

Gabriel levantou-se e conduziu Carter pelo parque até outro banco, virado para o playground. Inclinando-se até o ouvido de Carter, resumiu o plano enquanto um balanço sem nenhuma criança oscilava e gemia baixinho na brisa leve.

— Isso está me cheirando a Ari Shamron.

— Com razão.

— O que você tem em mente? Uma doação anônima para uma instituição de caridade islâmica à sua escolha?

— Na verdade, estamos pensando em algo um pouco mais objetivo.

— Uma doação direta para os cofres de Rashid?

— Algo assim.

O vento agitava as árvores ao redor do playground, arrancando um monte de folhas. Carter tirou uma que caíra em seu ombro e disse:

— Isso vai levar muito tempo.

— Paciência é uma virtude, Adrian.

— Não em Washington. Nós gostamos de fazer as coisas depressa.

— Tem alguma ideia melhor?

Carter ficou em silêncio, deixando claro que não.

— É interessante — admitiu. — Melhor ainda, é diabólico. Se conseguirmos nos tornar a principal fonte de financiamento para a rede de Rashid...

— Eles comeriam na nossa mão, Adrian.

Carter esvaziou o cachimbo batendo no lado do banco e voltou a enchê-lo.

— Não vamos nos entusiasmar ainda. Nada disso vai acontecer se você não convencer um muçulmano rico com credibilidade entre os jihadistas a trabalhar com você.

— Eu não disse que ia ser fácil.

— Mas é óbvio que tem um candidato em mente.

Gabriel olhou em direção à quadra de basquete em que um dos seguranças de Carter andava devagar de um lado para o outro.

— Qual é o problema? — perguntou Carter. — Você não confia em mim?

— Não é você, Adrian. São as outras oitocentas mil pessoas do seu serviço de inteligência autorizadas a receber informações confidenciais.

— Nós ainda não sabemos como compartimentá-las.

— Diga isso a seus amigos e aliados que permitiram a implantação de prisões secretas em seus países. Tenho certeza de que vocês prometeram que o programa ficaria em segredo. Mas não ficou. Aliás, foi estampado na primeira página do Washington Post.

— Sim — concordou Carter devagar. — Lembro de ter lido algo sobre isso.

— Essa pessoa que temos em mente é de um país muito ligado a vocês. Se alguém ficar sabendo que esse indivíduo estava trabalhando para nós... Digamos os que os danos não ficariam limitados apenas a uma constrangedora reportagem. Pessoas morreriam, Adrian.

— Pelo menos me diga o que vocês estão planejando fazer a seguir.

— Preciso encontrar uma amiga em Nova York.

— Alguém que eu conheça?

— Só de reputação. Era uma repórter investigativa de destaque no Financial Journal de Londres. Agora está trabalhando na CNBC.

— Nós temos uma regra contra o uso de repórteres.

— Mas nós não temos. E, como sabemos, esta é uma operação israelense.

— Tome cuidado onde pisa. Não queremos que você acabe aparecendo no noticiário.

— Algum outro conselho útil?

— As conversas que estamos captando podem ser irrelevantes ou enganosas — disse Carter, levantando-se. — Mas, como eu disse... podem também não ser.

Virou-se sem dizer mais nada e foi em direção a seu Escalade, seguido pelo segurança. Gabriel continuou no banco, observando o balanço vazio movendo-se ao vento. Depois de alguns minutos, saiu do parque e andou em direção ao sul, descendo a Rua 34. Duas motos pilotadas por vultos esguios de capacete pretos passaram rugindo e desapareceram na escuridão. Naquele momento uma imagem lampejou na memória de Gabriel ? uma mulher perturbada de cabelos negros, ajoelhada sobre o corpo do pai no Quai Saint-Pierre, em Cannes. O som das motos se dissipou, assim como a lembrança. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco e continuou andando, sem pensar em nada, enquanto as árvores derramavam folhas douradas.


20

Palisades, Washington

 

No mesmo instante, um automóvel estacionou na frente de uma casa de madeira no bairro de Washington conhecido como Palisades. O carro, um Ford Focus, era de Ellis Coyle, da CIA, assim como a casa. Uma minúscula estrutura, mais um chalé do que uma casa, que tinha arruinado suas finanças. Depois de muitos anos no exterior, ele queria se estabelecer em um dos subúrbios acessíveis do norte da Virgínia, mas Norah insistiu em viver no Distrito para ficar mais próxima do trabalho. A esposa de Coyle era psicóloga infantil, uma estranha escolha de carreira, ele sempre pensou, para uma mulher que não havia gerado filhos. Seu idílico trajeto para o trabalho, um agradável passeio por quatro quarteirões pela MacArthur Boulevard, era um gritante contraste com o de Coyle, que atravessava o rio Potomac duas vezes por dia. Durante um tempo, tentara ouvir uma música new age para acalmar os nervos, mas havia se sentido mais irritado ainda. Agora investia em audiolivros. Tinha terminado há pouco a obra-prima de Martin Gilbert sobre Winston Churchill. Por causa das obras de manutenção na Chain Bridge, mal levou uma semana. Coyle sempre admirou a determinação de Churchill. Ultimamente, Coyle também vinha sendo determinado.

Desligou o motor. Precisava estacionar na rua porque a casa pela qual havia pagado quase um milhão de dólares não tinha garagem. Esperava que o chalé servisse como um ponto de partida, que poderia trocar depois por uma casa maior em Kent ou em Spring Valley ou, talvez, até em Wesley Heights. Mas assistiu com frustração aos preços dispararem para bem longe do alcance de seu salário. Só os moradores mais ricos de Washington — advogados sanguessugas, lobistas corruptos, celebridades jornalísticas que difamavam a Agência sempre que podiam — tinham condições de pagar hipotecas nesses bairros agora. Mesmo em Palisades, os excêntricos chalés de madeira estavam sendo demolidos e substituídos por mansões. O vizinho de Coyle, um advogado de sucesso chamado Roger Blankman, havia construído recentemente uma monstruosidade que fazia sombra ao recanto outrora ensolarado onde Coyle tomava o café da manhã. Os mal-educados filhos de Blankman sempre invadiam o quintal de Coyle, assim como seu exército de paisagistas, fazendo pequenas mudanças constantes no formato dos juníperos e das cercas vivas. Coyle retribuía o favor envenenando as flores de Blankman. Coyle acreditava na eficácia de ações veladas.

Agora ele estava imóvel ao volante, olhando para a luz brilhando na janela de sua cozinha. Podia imaginar a cena que se desenrolaria a seguir, pois pouco mudava de uma noite para a outra. Norah estaria na mesa da cozinha com sua primeira taça de Merlot, examinando a correspondência e ouvindo algum programa horrível no rádio. Ela o beijaria distraída e o lembraria de que Lucy, um labrador preto, precisava dar sua caminhada noturna. A cadela, assim como a casa em Palisades, tinha sido ideia de Norah, mas cabia a Coyle a tarefa de cuidar de suas necessidades. Em geral Lucy se sentia inspirada no Battery Kemble Park, uma encosta densamente arborizada que deveria ser evitada por mulheres desacompanhadas. Às vezes, quando se sentia um tanto ou quanto rebelde, Coyle deixava as fezes de Lucy no parque em vez de levá-las para casa. Coyle também tinha outras atitudes de rebeldia — atitudes que escondia de Norah e dos colegas em Langley.

Um de seus segredos era Renate. Eles haviam se conhecido um ano atrás no bar de um hotel de Bruxelas. Coyle tinha vindo de Langley para uma reunião de agentes do contraterrorismo ocidental; Renate, uma fotógrafa, tinha vindo de Hamburgo para tirar fotos de uma ativista de direitos humanos para sua revista. As duas noites que passaram juntos foram as mais ardentes da vida de Ellis Coyle. Voltaram a se encontrar três meses depois, quando Coyle inventou uma desculpa para viajar a Berlim, usando dinheiro público, e outra vez um mês depois, quando Renate veio a Washington para fotografar uma reunião do Banco Mundial. Os encontros amorosos atingiram novos níveis, assim como a afeição que sentiam um pelo outro. Renate, que era solteira, insistia para que ele se separasse da esposa. Coyle, com o rosto banhado em lágrimas, dizia que era tudo o que desejava. Ele só precisava de uma coisa. Levaria algum tempo, dizia, mas não seria difícil. Coyle tinha acesso a segredos — segredos que poderia transformar em ouro. Seus dias em Langley estavam contados. E também as noites em que ele voltaria para Norah naquele pequeno chalé em Palisades.

Desceu do carro e entrou na casa. Norah usava uma saia plissada fora de moda, meias grossas e óculos de meia-lua que Coyle considerava especialmente inadequados. Aceitou seu beijo sem vida e respondeu “Sim, claro, querida” quando ela lembrou que Lucy precisava sair.

— E não demore muito, Ellis ? recomendou, franzindo a testa diante da conta de luz. ? Você sabe como me sinto sozinha quando não está em casa.

Coyle usava as técnicas ensinadas pela Agência para amenizar sua culpa. Ao sair, foi brindado pela visão de Blankman entrando com o enorme Mercedes em sua garagem para três carros. Lucy emitiu um grunhido baixo antes de puxar Coyle em direção ao MacArthur Boulevard. No outro lado da larga avenida estava a entrada para o parque. Uma placa de madeira marrom avisava que eram proibidas bicicletas e que os cães não podiam ficar soltos. Ao pé da placa, encoberta em parte por ervas daninhas, havia uma marca de giz. Coyle tirou a coleira de Lucy e a observou passear livre pelo parque. Depois apagou a marca com a ponta do sapato e seguiu em frente.


Parte Dois

 

O Investimento


21

Nova York

 

Um relato de espantosa precisão do novo e preocupante discurso terrorista apareceu na manhã seguinte no New York Times. Gabriel leu a matéria com certa atenção no trem de Washington a Nova York. A mulher ao lado, uma consultora política de Washington, passou a viagem inteira gritando ao celular. A cada vinte minutos, um policial com uma farda paramilitar passava pelo vagão com um cão farejador. Parecia que o Departamento de Segurança Interna tinha afinal percebido que os trens eram possíveis focos para terroristas.

Ao sair da Penn Station, Gabriel foi recebido pela chuva. Mesmo assim, ele passou a hora seguinte andando pelas ruas do centro de Manhattan. Na esquina da Lexington Avenue com a Rua 62, viu Chiara observando a vitrine de uma loja de calçados, o celular no ouvido direito. Isso significava que ninguém seguia Gabriel e era seguro prosseguir até o alvo.

Ele atravessou a Quinta Avenida. Dina estava sentada na mureta de pedra que contornava o Central Park, com um kaffiyeh preto e branco em volta do pescoço. Alguns passos mais ao sul, Eli Lavon comprava refrigerante de um vendedor ambulante. Gabriel passou por ele sem uma palavra e seguiu em direção às tendas de livros usados na esquina da Rua 60. Uma mulher atraente estava sozinha em frente a uma das tendas, como se estivesse fazendo hora antes de um compromisso. Continuou olhando para baixo por alguns minutos depois da chegada de Gabriel e então o encarou longamente sem falar. Tinha o cabelo preto, a pele cor de oliva e olhos grandes e castanhos. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não era a primeira vez que Gabriel tinha a desconfortável sensação de ser examinado pela figura de um quadro.

— Era mesmo necessário que eu pegasse o maldito metrô? — perguntou Zoe Reed ressentida, com seu chique sotaque londrino.

— Nós tínhamos que garantir que ninguém seguia você.

— Como você está aqui, suponho que ninguém me seguia.

— Está tudo bem.

— Que alívio — comentou com ironia. — Nesse caso, você pode me convidar para um drinque no Pierre. Fiquei voando desde as seis da manhã.

— Receio que seu rosto seja muito conhecido para isso. Você se tornou uma estrela desde que veio para os Estados Unidos.

— Eu sempre fui uma estrela — replicou ela, brincalhona. — Mas só dão importância quando se está na televisão.

— Ouvi dizer que você vai ter seu próprio programa.

— No horário nobre, aliás. Deve ser um programa de entrevistas inteligente com ênfase em negócios e assuntos internacionais. Talvez você queira aparecer no programa de estreia. — Ela baixou a voz e acrescentou, de forma conspiratória: — Podemos enfim dizer ao mundo como desmantelamos juntos o programa nuclear do Irã. Tem todos os elementos de um sucesso estrondoso. Rapaz conhece garota. Rapaz seduz garota. Garota rouba os segredos do rapaz e passa para o serviço secreto israelense.

— Não acho que alguém acreditaria.

— Mas essa é a beleza dos noticiários da TV a cabo norte-americana, querido. Ninguém precisa acreditar. Só precisa ser entretenimento. — Enxugou um pingo de chuva da bochecha e perguntou: — A que devo essa honra? Não se trata de outra revista de segurança, espero.

— Eu não faço revistas de segurança.

— Não, imagino que não. — Pegou um romance da tenda e mostrou a capa para Gabriel. — Já leu esse autor? O personagem dele é um pouco como você... genioso, egoísta, mas com um lado sensível que as mulheres acham irresistível.

— Esse daqui faz mais o meu gênero — observou Gabriel, apontando para uma surrada monografia sobre Rembrandt.

Zoe riu.

— Por favor, deixe eu comprar para você.

— Não vai caber na minha mala. Além do mais, eu já tenho um exemplar.

— É claro. — Colocou o romance de volta no lugar e olhou para a Quinta Avenida com uma falsa casualidade. — Vejo que você trouxe dois de seus ajudantes. Acho que se referiu a eles como Max e Sally quando estávamos naquele esconderijo em Highgate. Não são codinomes muito realistas, sabe. Parecem mais nomes de cachorros do que de espiões profissionais.

— Não existe esconderijo em Highgate, Zoe.

— Ah, sim, é verdade. Foi só um pesadelo. — Deu um breve sorriso. — Na verdade não foi tão ruim, não é, Gabriel? Na verdade foi tudo muito bem até o fim. Mas é sempre assim com assuntos amorosos. Sempre terminam de forma desastrosa e alguém se machuca. Em geral é a garota.

Pegou a monografia sobre Rembrandt e a folheou até chegar a um quadro chamado Retrato de uma jovem.

— O que você acha que ela está pensando? — perguntou.

— Ela está curiosa — respondeu Gabriel.

— Para saber o quê?

— Por que o homem de seu passado recente reapareceu sem avisar.

— E por que ele fez isso?

— Porque precisa de um favor.

— Da última vez que ele disse isso, ela quase foi morta.

— Não é esse tipo de favor.

— E qual é?

— Uma ideia para o novo programa da TV a cabo no horário nobre.

Zoe fechou o livro e o devolveu à tenda.

— Ela é todo ouvidos. Mas não tente enganá-la. Lembre-se, Gabriel, ela é a única pessoa no mundo que sabe quando você está mentindo.

 

A chuva parou quando eles entraram no parque. Passaram devagar pelo relógio Delacorte, depois se dirigiram para o Caminho Literário. A maior parte do tempo, Zoe ouviu num silêncio reflexivo, interrompendo apenas para questionar Gabriel ou esclarecer algum ponto. As perguntas foram formuladas com a inteligência e a visão que a tornaram uma das mais respeitadas e temidas repórteres investigativas do mundo. Zoe Reed só havia cometido um erro em sua renomada carreira — tinha se apaixonado por um glamoroso empresário suíço que, sem que ela soubesse, vendia peças de usinas nucleares para a República Islâmica do Irã. Zoe conseguiu expiar seus pecados concordando em trabalhar com Gabriel e seus aliados dos serviços secretos britânico e norte-americano. O resultado da operação foi um programa nuclear iraniano em ruínas.

— Então você injeta dinheiro na rede — disse ela — e com um pouco de sorte consegue percorrer a corrente sanguínea até chegar à cabeça.

— Eu não poderia ter uma definição melhor.

— E o que acontece depois?

— Você corta a cabeça.

— O que isso significa?

— Imagino que isso vai depender das circunstâncias.

— Não tente me enrolar, Gabriel.

— Pode significar a prisão de importantes membros da rede, Zoe. Ou pode resultar em algo mais definitivo.

— Definitivo? Que eufemismo elegante.

Gabriel parou diante da estátua de Shakespeare, mas não disse nada.

— Eu não vou tomar parte numa matança, Gabriel.

— Você prefere ser parte de outro massacre como o de Covent Garden?

— Essa observação não é digna nem de você, meu amor.

Com um aceno de cabeça, Gabriel concordou. Em seguida pegou Zoe pelo cotovelo e a conduziu.

— Você está esquecendo uma coisa importante — continuou ela. — Eu concordei em trabalhar com você e seus amigos no caso do Irã, mas isso não quer dizer que reneguei meus valores. No íntimo, continuo sendo uma jornalista de esquerda bem ortodoxa. Assim, acredito que é essencial combatermos o terrorismo global sem comprometer nossos princípios fundamentais.

— Esse tipo de comentário incisivo soa maravilhosamente bem na segurança de um estúdio de televisão, mas acredito que não funciona no mundo real. — Gabriel fez uma pausa. — Você se lembra do mundo real, não é, Zoe?

— Você ainda não explicou o que tudo isso tem a ver comigo.

— Nós gostaríamos que você fizesse uma apresentação. Você só precisa começar a conversa. Depois desaparece em silêncio e nunca mais vai ser vista.

— De preferência ainda com a minha cabeça no lugar. — Ela estava brincando, mas só um pouco. — É alguém que eu conheço?

Gabriel esperou um casal de namorados passar antes de mencionar o nome. Zoe parou de andar e ergueu uma sobrancelha.

— Está falando sério?

— Você já sabe a resposta, Zoe.

— Ela é uma das mulheres mais ricas do mundo.

— Essa é a questão.

— E também todos sabem que é avessa à imprensa.

— E tem boas razões para isso.

Zoe começou a andar outra vez.

— Me lembro da noite em que o pai dela foi assassinado em Cannes — falou. — Segundo os relatos da imprensa, ela estava a seu lado quando ele foi morto a tiros. As testemunhas dizem que ela o abraçou enquanto ele morria. Parece que foi terrível.

— Foi o que ouvi dizer. — Gabriel olhou por cima do ombro e viu Eli Lavon andando poucos metros atrás, um moleskine debaixo do braço direito, parecendo um poeta em busca de inspiração. — Você chegou a investigar?

— Cannes? — Zoe estreitou os olhos. — Dei uma olhada.

— E...?

— Não consegui descobrir nada consistente o bastante para publicar. A teoria corrente nos círculos financeiros de Londres dizia que ele tinha sido morto por causa de uma rixa na Arábia Saudita. Parece que havia um príncipe envolvido, um membro de uma hierarquia inferior da família real envolvido em várias encrencas cora a polícia europeia e funcionários de hotéis. — Olhou para Gabriel. — Imagino que você vai me dizer que a história não termina aí.

— Algumas coisas eu posso contar, Zoe, outras não. É para o seu próprio bem.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Alguns metros à frente, Chiara estava sentada sozinha num banco. Zoe tentou não olhar para ela quando passaram. Seguiram um pouco mais, até a pérgula, e se refugiaram embaixo da galeria recoberta de flores. Quando a chuva começou outra vez, Gabriel explicou exatamente o que precisava que Zoe fizesse.

— O que acontece se ela ficar furiosa e resolver contar aos meus chefes que estou trabalhando para a inteligência israelense?

— Ela tem muita coisa a perder se der um golpe desses. Além do mais, quem acreditaria numa acusação tão louca? Zoe Reed é uma das jornalistas mais respeitadas do mundo.

— Conheço um empresário suíço que talvez não concorde com essa afirmação.

— Ele é a nossa menor preocupação.

Zoe caiu num silêncio pensativo, que foi interrompido pelo toque de seu BlackBerry. Ela pegou o telefone na bolsa e olhou para a tela em silêncio, a expressão perturbada. Poucos segundos depois, foi o BlackBerry de Gabriel que vibrou no bolso de seu casaco. Ele conseguiu manter uma expressão neutra ao ler a mensagem.

— Parece que não eram conversas inofensivas, afinal — falou. — Ainda acha que devemos lutar contra esses monstros sem comprometer nossos valores? Ou prefere retornar por um momento ao mundo real e nos ajudar a salvar vidas inocentes?

— Nem sabemos se ela vai me atender.

— Ela vai atender você — replicou Gabriel. — Todo mundo atende.

Gabriel pediu o BlackBerry de Zoe. Dois minutos depois, tendo baixado um arquivo de um site oferecendo descontos para viagens à Terra Santa, ele devolveu o aparelho.

— Conduza todas as negociações usando esse dispositivo. Se houver algo que queira nos dizer, diga perto do aparelho. Estaremos escutando o tempo todo.

— Como da última vez?

Gabriel assentiu.

— Como da última vez.

Zoe guardou o BlackBerry na bolsa e se levantou. Gabriel observou enquanto ela se afastava, seguida por Lavon e Chiara. Ficou sozinho por alguns minutos, lendo os primeiros boletins de notícias. Parecia que Rashid e Malik estavam mais próximos da América.

Vamos todos sucumbir.


22

Madri ? Paris

 

A antiga tranquilidade havia voltado a Madri, mas isso já era previsível. Passaram-se sete anos dos mortais atentados a bomba nos trens e as lembranças daquela manhã terrível já haviam se enfraquecido. A Espanha tinha respondido ao massacre de seus cidadãos retirando as tropas do Iraque e lançando o que foi descrito como uma “aliança de civilizações” com o mundo islâmico. Tal atitude, disseram os comentaristas políticos, serviu para direcionar a fúria muçulmana da Espanha para os Estados Unidos, a quem pertencia por direito. A submissão aos desejos da Al-Qaeda protegeria a Espanha de outro ataque. Ou foi o que pensaram

A bomba explodiu às 21h12, na interseção de duas movimentadas ruas perto da Puerta del Sol. Tinha sido plantada numa garagem alugada num bairro industrial no sul da cidade e escondida numa van Peugeot. Devido a sua engenhosa fabricação, a força inicial do impacto foi direcionada à esquerda para um restaurante frequentado pelas elites do governo da Espanha. Não haveria relatos em primeira mão do que tinha acontecido de fato lá dentro, pois ninguém sobreviveu. Se houvesse um sobrevivente, ele teria contado sobre um breve e terrível instante em que corpos voavam em meio a uma letal nuvem de vidro, talheres, porcelana e sangue. Em seguida o edifício inteiro desabou, soterrando os mortos e moribundos debaixo de uma montanha de alvenaria despedaçada.

O dano foi maior do que os terroristas esperavam. Fachadas foram arrancadas de prédios residenciais em todo o quarteirão, expondo vidas que, poucos segundos antes, seguiam em paz. Diversas lojas e cafés próximos sofreram danos e baixas, e as pequenas árvores na rua perderam as folhas ou tiveram as raízes arrancadas. Não restou nada da van Peugeot, somente uma grande cratera no local onde estivera. Nas primeiras 24 horas de investigação, a polícia espanhola estava convencida de que a bomba havia sido detonada remotamente. Depois descobriram traços do DNA do shahid espalhados pelas ruínas. Tinha só 20 anos, um carpinteiro marroquino desempregado do distrito de Lavapiés, em Madri. Em seu vídeo suicida, falou com afeto de Yaqub al-Mansur, o califa almôada do século XII conhecido por seus sangrentos ataques em terras cristãs.

Foi com esse horrível pano de fundo que Zoe Reed, da rede de notícias norte-americana CNBC, fez seu primeiro telefonema para a assessoria da AAB Holdings, outrora sediada em Riad e Genebra, e atualmente no Boulevard Haussmann, no nono arrondissement de Paris. Eram 16h10, e o tempo em Paris estava nublado, como era de se esperar. Seu pedido não foi atendido de imediato, seguindo o protocolo da AAB.

Citada todo ano pela revista Forbes como uma das mais bem-sucedidas e inovadoras companhias de investimento do mundo, a AAB foi fundada em 1979 por Abdul Aziz al-Bakari. Conhecido tanto por amigos quanto por detratores como Zizi, era o décimo nono filho de um proeminente mercador saudita que atuou como banqueiro pessoal e assessor financeiro de Ibn Saud, o fundador do reino e primeiro monarca absolutista. As empresas da AAB eram tão numerosas quanto lucrativas. A AAB trabalhava com mineração e transporte de carga. A AAB produzia drogas e produtos químicos. A AAB possuía ações majoritárias de bancos norte-americanos e europeus. A divisão hoteleira e de propriedades da AAB era uma das maiores do mundo. Zizi viajava pelo mundo a bordo de um 747 folheado a ouro, era dono de uma série de palácios que se estendiam de Riad à Riviera Francesa e Aspen e singrava os mares num iate do tamanho de um navio de guerra chamado Alexandra. Sua coleção de arte moderna e impressionista era uma das maiores entre as particulares. Por um curto período, ela incluía Marguerite Gachet em sua penteadeira, de Vincent van Gogh, adquirido junto à Isherwood Fine Arts, Masons Yard 7-8, St. James, Londres. A venda foi intermediada por uma jovem norte-americana chamada Sarah Bancroft, que depois trabalhou, por pouco tempo, como a principal consultora de arte de Zizi.

Era alvo de muitos rumores, em especial relacionados à fonte de sua enorme fortuna. Os brilhantes folders da AAB afirmavam que havia sido construída inteiramente a partir da modesta herança do pai de Zizi, afirmação que uma respeitada publicação de negócios norte-americana, depois de uma minuciosa investigação, achou insatisfatória. A extraordinária liquidez da AAB, declarou, só poderia ser explicada por uma coisa: ela era usada como fachada para a família real reinvestir sem alarde seus petrodólares no mundo todo. Indignado pelo artigo, Zizi ameaçou abrir um processo. Mais tarde, orientado por seus advogados, mudou de ideia. “A melhor vingança é viver bem”, declarou a um repórter do Wall Street Journal “E isso é algo que eu sei fazer”

Talvez, mas os poucos ocidentais que conseguiam entrar no círculo interno de Zizi sempre sentiram certa inquietude nele. Suas festas eram acontecimentos suntuosos, mas Zizi parecia não ter prazer com elas. Não fumava, não consumia álcool e recusava-se a ficar na presença de cães ou porcos. Rezava cinco vezes por dia; todos os invernos, quando as chuvas faziam o deserto saudita florescer, ele se retirava para um acampamento isolado no Nejd para meditar e caçar com seus falcões. Alegava ser descendente de Muhammad Abdul Wahhab, o pregador do século XVIII cuja visão austera e puritana do Islã tornou-se o credo oficial da Arábia Saudita. Construiu mesquitas no mundo todo, inclusive várias na América e na Europa Ocidental, e fazia doações generosas para os palestinos. Empresas que quisessem fazer negócios com a AAB não podiam mandar judeus para se encontrar com Zizi. De acordo com os boatos, Zizi gostava menos de judeus do que de perder dinheiro.

Como se supunha, as atividades filantrópicas de Zizi iam bem mais longe do que era divulgado. Ele também fazia doações generosas para instituições de caridade associadas com o extremismo islâmico e até diretamente para a própria Al-Qaeda. E acabou transpassando a linha tênue que separa os financiadores de terroristas e os próprios terroristas. O resultado foi um ataque ao Vaticano que deixou mais de setecentos mortos e a cúpula da Basílica de São Pedro em ruínas. Com a ajuda de Sarah Bancroft, Gabriel caçou o homem que planejou o ataque — Ahmed Bin Shafiq, um renegado oficial de inteligência saudita — e o matou num quarto de hotel em Istambul. Uma semana depois, no Quai Saint-Pierre, em Cannes, ele matou Zizi também.

Apesar de sua adesão às tradições sauditas, Zizi só tinha duas esposas — era divorciado de ambas — e uma filha única, uma linda jovem chamada Nadia. Ela enterrou o pai na tradição wahhabita, numa cova não identificada no deserto, e logo tomou posse de seus ativos. Mudou o quartel-general europeu da AAB de Genebra, que a entediava, para Paris, onde se sentia mais confortável. Alguns dos funcionários mais religiosos da empresa se recusaram a trabalhar para uma mulher — em especial uma que abandonara o véu e tomava bebidas alcoólicas ?, mas a maioria permaneceu. Conduzida por Nadia, a empresa adentrou territórios antes não explorados. Ela comprou uma famosa companhia de moda francesa, uma fábrica italiana de utensílios luxuosos de couro, boa parte de um banco de investimentos norte-americano e uma produtora de filmes alemã. Ela também fez mudanças significativas em suas posses pessoais. As muitas casas e propriedades do pai foram discretamente postas à venda, assim como o Alexandra e o 747. Nadia agora viajava num Boeing Business Jet mais modesto e tinha apenas duas casas — uma graciosa mansão na avenue Foch em Paris e um luxuoso palácio em Riad que ela raramente visitava. Apesar da falta de uma formação empresarial, ela se mostrou uma administradora hábil e capaz. O valor total dos ativos agora sob controle da AAB era maior do que em qualquer outro momento na história da empresa, e Nadia al-Bakari, com apenas 33 anos, era considerada uma das mulheres mais ricas do mundo.

As relações da AAB com a mídia eram supervisionadas pela assistente executiva de Nadia, Yvette Dubois, uma francesa de 50 anos bem conservada. Madame Dubois raramente se dava ao trabalho de atender a pedidos de repórteres, em especial os que trabalhavam para empresas norte-americanas. Mas ao receber um segundo telefonema da famosa Zoe Reed, ela decidiu que a jornalista merecia uma resposta. Deixou que outro dia se passasse e, além disso, fez a ligação tarde da noite pelo horário de Nova York, quando imaginou que a Srta. Reed estivesse dormindo. Por razões desconhecidas, esse não foi o caso. A conversa que se seguiu foi cordial mas pouco promissora. Madame Dubois explicou que o convite para um especial de uma hora no horário nobre, embora lisonjeiro, estava totalmente fora de cogitação. A Srta. Al-Bakari viajava a todo momento e tinha muitos negócios importantes pendentes. Mais ainda, a Srta. Al-Bakari simplesmente não concedia o tipo de entrevista que a Srta. Reed tinha em mente.

— Poderia ao menos transmitir meu pedido a ela?

— Vou fazer isso, mas as chances não são boas.

— Mas existem, não é? ? perguntou Zoe, sondando.

— Não fiquemos brincando, Srta. Reed. Isso não nos cai bem.

 

A observação conclusiva de madame Dubois provocou uma explosão de gargalhadas há muito necessárias no Château Treville, uma mansão francesa do século XVIII localizada ao norte de Paris, em Seraincourt. Protegida de olhares curiosos por muros de 4 metros de altura, tinha uma piscina aquecida, duas quadras de tênis, 32 acres de jardins bem cuidados e catorze cômodos ornamentados. Gabriel alugou a casa em nome de uma empresa de alta tecnologia alemã que só existia na imaginação de um advogado corporativo do Escritório e logo mandou a conta para Ari Shamron no King Saul Boulevard. Em circunstâncias normais, Shamron teria hesitado diante do preço exorbitante. Nesse caso, porém, ele encaminhou a conta, com certo prazer, para Langley, que havia assumido a responsabilidade pelas despesas operacionais.

Por vários dias, Gabriel e sua equipe passaram a maior parte do tempo monitorando o BlackBerry de Zoe, que agora funcionava como um pequeno e incansável espião eletrônico no bolso dela. Eles conheciam sua latitude e longitude com precisão e, quando ela estava em movimento, sabiam a velocidade. Sabiam quando estava pagando o café da manhã na Starbucks, quando estava presa no trânsito de Nova York e quando estava irritada com seus produtores, o que era frequente. Por monitorarem suas atividades na internet, sabiam que ela queria reformar seu apartamento no Upper West Side. Como liam seus e-mails, sabiam que ela tinha muitos pretendentes, inclusive um milionário negociador de títulos que, apesar das enormes perdas, de alguma forma conseguia arranjar tempo para enviar pelo menos duas mensagens por dia. Eles sentiam que, mesmo com todo o sucesso, Zoe não se sentia muito feliz nos Estados Unidos. Com frequência sussurrava cumprimentos codificados para eles. À noite, seu sono era perturbado por pesadelos.

Para o resto do mundo, no entanto, ela projetava uma atitude fria e indomável. E para os poucos e seletos que tinham o privilégio de testemunhar sua sedução da assessora francesa, ela fornecia ainda mais provas de que era a melhor espiã nata que qualquer um já tinha conhecido. Sua arte consistia de uma combinação certa de técnica de som com uma inflexível persistência. Zoe elogiava, Zoe bajulava e, ao fim de um telefonema bastante conflituoso, Zoe conseguiu até algumas lágrimas. Ainda assim, madame Dubois continuava se mostrando uma oponente mais do que valorosa. Depois de uma semana, ela declarou que as negociações estavam num impasse, só para, dois dias depois, enviar do nada a Zoe um detalhado questionário. Zoe preencheu o documento num francês perfeito e o devolveu na manhã seguinte; madame Dubois parou de se comunicar. No Château Treville, a equipe de Gabriel mergulhou num desespero atípico enquanto vários e preciosos dias se passaram sem contato. Somente Zoe continuava otimista. já tinha sido alvo de muitas seduções desse tipo no passado e sabia quando a pessoa estava no papo.

— Ela foi fisgada, querido ? murmurou para Gabriel tarde da noite, quando o BlackBerry era recarregado sobre a mesa de cabeceira. ? É, apenas uma questão de quando vai capitular.

A previsão de Zoe se mostrou correta, embora a francesa resistisse mais 24 horas antes de anunciar sua rendição. Ela ocorreu por meio de um convite relutante. Aparentemente, devido a um inesperado cancelamento, a Srta. Al-Bakari estava livre para almoçar dali a dois dias. Será que a Srta. Reed estaria disposta a ir a Paris mesmo tão em cima da hora? Profissional impecável, Zoe esperou noventa exasperantes minutos antes de retornar a ligação, aceitando.

— Mas deixe-me esclarecer uma questão ? disse madame Dubois. ? Não será uma entrevista. O almoço não será gravado. Se a Srta. Al-Bakari se sentir confortável em sua presença, ela vai considerar dar um próximo passo.

— Onde vamos nos encontrar?

— Como você deve imaginar, a Srta. Al-Bakari acha difícil falar de negócios em restaurantes. Tomamos a liberdade de reservar a suíte Louis XV no Hôtel de Crillon. Ela estará à sua espera à uma e meia. A Srta. Al-Bakari insiste em pagar. É uma de suas regras.

— Existem outras regras que eu deveria conhecer?

— A Srta. Al-Bakari é muito sensível a perguntas que envolvam a morte do pai — respondeu madame Dubois. — E eu não abordaria assuntos relacionados ao Islã e ao terrorismo, pois ela considera tudo isso entediante. Á tout à l’heure, Srta. Reed.

 

 

 


CONTINUA